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Índice
1. Introdução
2. Religião e Poder - O Testemunho da História
3. 'Milagres' - Questão de Fé ou de Má-Fé?
4. Cultos - a Morte Ronda a Fé
5. Jihad - "Deus Está do nosso Lado"
6. Entendendo o Controle Mental dos Cultos
7. Os Casos Hearst e Walker
8. O Perfil dos Líderes de Cultos
9. Os Cultos no Brasil
10. Conclusão
Introdução
"O cristianismo não garantiu ao homem sua segurança, sua felicidade, nem mesmo sua dignificação.
Mas oferece uma esperança. Trata-se de um agente civilizador. Ajuda a encarcerar a besta.
Proporciona vislumbres da verdadeira liberdade, sugestões de uma existência calma e razoável.
Mesmo do modo como o vemos, distorcido pelos estragos da humanidade, não é desprovido de
beleza."
Com estas palavras, o escritor Paul Johnson (1928 - ) conclui a sua obra "História
do Cristianismo" (1976), na qual traça um abrangente retrospecto deste relevante
movimento religioso, desde seus primórdios até os nossos dias. Em seu comentário, o
autor parece sintetizar bem um dos papéis da religião na sociedade (no caso, o
cristianismo), a saber, seu efeito moderador sobre os ímpetos do homem. Segundo
esta visão, o sentimento religioso funcionaria como uma espécie de 'amortecedor'
sobre o espírito humano, salvaguardando os povos da barbárie. Sob o abrigo da fé,
cada indivíduo 'encarceraria a besta' primitiva que carrega dentro de si - seus instintos
animalescos e sua rebeldia natural - permitindo-se ser 'civilizado'. A proteção de um
deus (ou deuses) traria quietude ao ser humano, pondo-o a salvo de sua inaceitável
pequenez e efemeridade, diante das quais nada lhe restaria, exceto os constantes
vagalhões de uma crise existencial, a mesma crise retratada de forma contundente no
mundo futurístico do filme Blade Runner [O Caçador de Andróides] - dirigido
por Ridley Scott - no qual os andróides criados pelo homem adquirem consciência de
sua efêmera existência e tornam-se psicóticos, rebelando-se contra seus criadores.
Da mesma forma, a escritora Mary Shelley (1797-1851), em seu clássico
romance Frankenstein, retrata uma criatura que, ao tomar conhecimento de sua
natureza decaída, revolta-se contra seu criador. Há aqueles que vaticinariam
semelhante destino para os homens, caso lhes fosse subtraída a espiritualidade. Este
peculiar sentimento foi brilhantemente expresso pelo matemático Blaise Pascal (1623-
1662), no século dezessete:
"Assistindo à cegueira e miséria do homem, bem como às assombrosas contradições apresentadas por
sua natureza, e vendo todo o universo mudo, e o homem sem nenhuma luz, abandonado a si mesmo,
e, por assim dizer, perdido neste canto do universo, sem saber quem o colocou aqui, no que se tornará
ao morrer, fico temeroso - como um homem que, transportado em seu sono para uma ilha deserta e
medonha, acorda sem saber onde se encontra e sem qualquer possibilidade de deixá-la; espanta-me,
então, que alguém não se desespere diante de condição tão miserável."
Não se pode negar que tais palavras, em sua pujança, comoveriam pessoas de
origens e culturas diversas. Certamente, muitos fariam coro com esta
declaração. Pascal parece ter captado, em toda sua essência, o eterno dilema humano
- 'quem sou', 'de onde vim', 'para onde vou'. Sem uma resposta - factual ou não - a
tais indagações, a sociedade humana, como a conhecemos, provavelmente não teria
subsistido. Visto dessa forma, o sentimento religioso reveste-se de inegável relevância
social e - por que não dizer - nobreza de objetivos. Todavia, como os demais atributos
da humanidade, está sujeito à perversão.
Ao longo do livro, o autor passa a expor de forma bem direta - e com boa dose de
ironia - a trajetória de trinta pontífices que aviltaram a história da igreja. Isto é
particularmente embaraçoso para aqueles que advogam o cristianismo, pois, querendo
ou não, a história do catolicismo confunde-se com a história dos movimentos cristãos
dos primeiros séculos. Foi a Igreja Romana que convocou o grande concílio de Nicéia
(325 DC), reconhecido pelos historiadores como um marco decisivo na trajetória do
cristianismo. Ademais, foram os teólogos católicos que estabeleceram aquilo que hoje
é aceito pelas religiões em geral como o cânon sagrado. Eram católicos os primeiros
grandes estudiosos e tradutores das Escrituras. Em vista disso, todas as religiões
cristãs têm dívidas históricas para com a Igreja Católica, quer gostem disso quer não.
É compreensível, então, que diversos historiadores cristãos tenham hesitado em
relatar os fatos com isenção. Sobre isso, o autor Paul Johnson declara:
"No passado, muito poucos estudiosos cristãos tiveram a coragem ou a confiança de colocar a livre
perseguição da verdade antes de qualquer outra consideração. Quase todos estabeleceram um limite
em algum ponto. Não obstante, como seus esforços defensivos provaram-se fúteis! Como seu sacrifício
da integridade parece ridículo em retrospecto!... Afinal, o cristianismo, identificando verdade como fé,
deve ensinar - e, adequadamente compreendido, de fato, o faz - que qualquer interferência à verdade é
imoral. Um cristão com fé nada tem a temer dos fatos; um historiador cristão que estabelece limites
para o campo de investigação, em qualquer ponto que seja, está admitindo os limites de sua fé." -
História do Cristianismo, p. 8
Em uma época em que o poder religioso confundia-se com o poder real, o Papa
Gregório IX - famoso pelo seu caráter irascível e intolerante - editou, em 20 de abril
de 1233, a bula Licet ad capiendos, a qual marca o início da infame Inquisição,
instituição da Igreja Católica Romana, criada com o hediondo propósito de perseguir,
torturar e executar aqueles que ousassem discordar de suas doutrinas - os 'hereges',
assim definidos:
"Chamam-se hereges pertinazes e impenitentes aqueles que interpelados pelos juizes, convencidos
de erro contra a fé, intimados a confessar e abjurar, mesmo assim não querem aceitar e preferem se
agarrar obstinadamente aos seus erros. Estes devem ser entregues ao braço secular para serem
executados. Chamam-se hereges penitentes os que, depois de aderirem intelectual e efetivamente à
heresia, caíram em si, tiveram piedade de si próprios, ouviram a voz da sabedoria e, abjurando dos
seus erros e procedimento, aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor. Denominam-se
hereges relapsos os que, abjurando da heresia e tornando-se por isso penitentes, reincidem na
heresia."
Tal quadro horrendo suscita uma questão ainda não respondida de modo
definitivo: foi o estado que se rendeu à igreja ou foi a igreja que se prostituiu junto ao
estado? Os frutos dessa união indecorosa depõem contra ambos.
Séculos mais tarde, em uma carta redigida em 1770, Voltaire (1694-1778), grande
filósofo do Iluminismo francês, declarou:
"...Não creio que haja, neste mundo, [uma só autoridade], tendo apenas quatrocentos cavalos
chamados homens para liderar, que não reconheça a necessidade de colocar um deus nas bocas para
servir de freio..."
De forma sarcástica, porém enfática, Voltaire tocou no ponto crucial - a religião
como instrumento tradicional de poder. Ele sabia que a razão - tão enfatizada pelo
Iluminismo - esbarraria ela própria em seus limites. Por isso, seguindo na contra-mão
daquele movimento, admitia a necessidade social de uma divindade.
Todavia, opunha-se - e, aparentemente, com razão - à religião organizada tal qual se
conhecia. Via nela, antes de tudo, um instrumento de opressão, um meio de legitimar
o jugo do dominador sobre o dominado. Era o que havia mostrado a história até então
- a profana união entre igreja e estado, um dando proteção e legitimidade ao outro.
Certa vez, referindo-se ao cristianismo histórico, Voltaire escreveu a Frederico, o
Grande: "Vossa majestade prestará à raça humana um serviço eterno se extirpar essa
superstição infame..." Noutra ocasião, em meio aos debates sobre a suposta
'moralidade' presente na ordem universal, ele, tomando como exemplo o terrível
terremoto de 1755, em Lisboa, declarou:
"...Lisonjeia-me que pelo menos os padres inquisidores tenham sido esmagados com os outros.
Isso deveria ensinar os homens a não se perseguirem uns aos outros, pois, enquanto uns poucos
santos patifes queimam alguns fanáticos, a terra engole todos de uma vez."
Não são palavras vazias. Naquele momento, Voltaire criticava de forma brilhante o
sistema opressivo que o catolicismo mantinha há séculos em nome de Deus -
instrumento hediondo cuja eficácia já houvera tentado reformadores como João
Calvino (1509-1564), mais de duzentos anos antes. Já aos 24 anos de
idade, Calvino havia rejeitado o catolicismo e, valendo-se da predestinação pregada
por Santo Agostinho, criou um sistema que, em autoritarismo e intolerância, nada
ficava a dever àquele que havia repudiado. Pelo contrário, seu radicalismo acabou por
se degenerar em monstruosidade. Certa vez, em sua obra Declaratio orthodoxae fidei,
definiu a forma com que se devia lidar com os 'hereges':
"Deve-se esquecer toda a humanidade quando a glória [de Deus] está em questão. (...) Deus não
permite que sequer cidades e populações inteiras sejam poupadas, mas arrasa muros e destrói a
lembrança dos habitantes e arruína todas as coisas em sinal de Sua total abominação, para que o
contágio não se difunda."
Mais uma vez, não são frases vazias. Parecem copiadas dos manuais de tortura da
Inquisição. A brutalidade calvinista já havia se revelado meses antes, com uma
execução à moda católica - na fogueira. A vítima foi outro intelectual, Miguel Servet, o
qual ousou discordar publicamente da visão de Calvino sobre a natureza de Jesus
Cristo. Esta era a teocracia calvinista, já em vigor na Suíça, por volta de 1538. Eis a
sua definição da misericórdia divina:
"Se indagarmos por que Deus tem pena de alguns e por que deixa que outros se vão, não há outra
resposta que não o fato de agradá-lo fazer assim."
É notável que tal doutrina medonha - em comunhão com a figura de Cristo - tenha
atraído a tantos daquele tempo. Com base em tal sistema teológico, desenvolveu-se
este ramo do movimento reformista do século XVI. Muito embora, Martinho
Lutero (1483-1546), ao contrário de Calvino, tenha inicialmente manifestado
moderação, as pressões de sua aliança com a nobreza, pouco a pouco, fizeram-no
sucumbir ao fundamentalismo. Em 1525, proibiu a celebração da missa. Em 1529,
chegou ao ponto de criticar a "liberdade de consciência", a qual houvera
anteriormente defendido. Por fim, dois anos mais tarde, aprovou a condenação à
morte de Anabatistas e outros 'extremistas' por parte das autoridades. Na obra
mencionada no início deste artigo, o escritor Paul Johnson declara:
"Se tanto luteranos quanto calvinistas (assim como católicos) perseguiam ativamente os extremistas
contrários, também se opunham e odiavam entre si." - História do Cristianismo, p. 349
Novembro de 1978 - Em Jonestown, Guiana Inglesa, cerca de 900 adeptos do culto "O Templo
do Povo", sob as ordens de seu líder, Jim Jones, cometem suicídio bebendo uma mistura de cianureto e
tranqüilizantes. Os pais, antes de se matarem, envenenam as crianças lançando a mistura em suas
bocas por meio de seringas. Os adeptos que se recusavam a beber eram baleados. Ao final, o
próprio Jones também se matou, com um tiro na cabeça. A comunidade estava sob investigação das
autoridades por violações dos direitos humanos e seus membros assassinaram representantes do
congresso norte-americano, que haviam sido enviados ao local para averiguação. Jones havia emigrado
dos EUA com seu grupo - sob uma onda de denúncias - e gozava de prestígio divino entre seus
seguidores, chegando a ter como concubinas as esposas dos fiéis. Na verdade, ele se considerava a
reencarnação de Jesus Cristo e tinha visões de um apocalipse nuclear.
Fevereiro de 1993 - Após 51 dias de cerco policial, uma brigada das forças especiais dos EUA
tenta invadir o quartel general do culto "Ramo dos Davidianos". Seus membros estavam entrincheirados
e fortemente armados, já tendo abatido a bala quatro agentes federais americanos e ferido outros
dezesseis. O resultado foi um terrível incêndio que liquidou a maioria dos fiéis. O culto originou-se de
um grupo dissidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia e passou a estar, a partir dos anos 80, sob a
liderança de Vernon Howell, um convertido que adotou o nome de David Koresh, numa alusão ao rei
israelita Davi e ao monarca persa Ciro. Ele se considerava um messias retornado e pregava a vinda de
eventos apocalípticos sobre sua comunidade, após os quais o antigo reino israelita seria restabelecido
na terra. Assim, restaurou o antigo costume da poligamia, tomando por concubinas diversas
seguidoras. Após denúncias de abusos físicos e porte ilegal de armas, o governo decidiu intervir,
cumprindo a 'profecia' de Koresh, com conseqüências catastróficas. O líder do culto morreu com um tiro
na cabeça. A contagem final foi de 85 mortos.
Março de 1995 - 12 pessoas morrem e outras 5 mil são hospitalizadas como resultado de um
ataque de gás "sarin" em uma estação do metrô de Tóquio - Japão. Os responsáveis pelo atentado
foram os membros do culto "Verdade Suprema", fundado por Shoko Asahara, um fanático que se
considera a reencarnação de Buda. Mantendo controle mental absoluto sobre seus seguidores, ele havia
reunido um arsenal em armas de fogo e materiais para guerra química. Seu objetivo - 'agilizar' o
apocalipse. Seu grupo foi acusado de realizar também seqüestros e assassinatos de dissidentes e
advogados de ex-membros. Supõe-se que seguidores da "Verdade Suprema" estejam por trás de outro
ataque com gás similar ao de Tóquio, ocorrido na cidade de Matsumoto, em 1994, do qual resultaram 7
mortos e 144 feridos.Asahara criou uma seita milionária, com patrimônio estimado em até 1 bilhão de
dólares. Seus seguidores chegam a 10 mil no Japão e uns 40 mil em outros países. Enquanto o
anunciado 'fim do mundo' não chega, o líder do culto aguardará por ele na cadeia, onde se encontra
até este dia.
Março de 1997 - 39 membros do culto "Portal do Paraíso" - uma seita ufológica - decidem se
"livrar de seus corpos" cometendo suicídio coletivo. Seu objetivo era o de libertar seus espíritos para
que embarcassem em uma espaçonave na cauda do cometa Hale-Bopp, numa jornada em direção ao
paraíso. As vítimas tinham entre 26 e 72 anos de idade. Elas ingeriram uma associação de vodka e
barbitúricos, após o que deitaram-se tranqüilamente em suas camas, à espera da morte. Para apressá-
la, uns dos membros foi designado para sufocar as vítimas. Os corpos foram encontrados em uma
mansão no rancho Santa Fé, ao norte de San Diego - California. O ambiente estava limpo e arrumado e
os mortos, portando identificação. Um manuscrito da seita declara : "Alegramo-nos de que nosso
Membro Ancião no Nível Evolucionário deixou claro para nós que a aproximação do Hale-Bopp é o 'sinal'
pelo qual estávamos esperando... Nossos 22 anos de aprendizado aqui no planeta terra estão
finalmente chegando à sua 'graduação' final do Nível Evolucionário Humano. Estamos alegremente
preparados para deixar 'este mundo'..." O 'membro ancião' a que o documento se refere corresponde
ao fundador do culto, Marshall Applewhite, um professor de música que vivia atormentado por sua
homossexualidade. Em razão disso, chegou a submeter-se a uma castração cirúrgica. Sua
personalidade apresentava traços claros de esquizofrenia. Ainda assim, conseguiu arrebanhar discípulos
que também se submeteram à castração, antes de o seguiram felizes, na morte.
Março de 2000 - Em uma inesquecível manhã de terror, cerca de 500 corpos calcinados foram
retirados dos escombros de uma igreja incendiada em Uganda, África - ao que tudo indica, um suicídio
em massa dos membros do culto "Restauração dos Dez Mandamentos". Eles foram trancados no
templo e tiveram seus corpos banhados em óleo inflamável, antes de se atearem as chamas. Policiais
que foram ao local afirmaram que a maior parte das vítimas estava irreconhecível. O fundador da
seita, Josef Kibwetere, é o principal suspeito de ter planejado o morticínio. O movimento havia se
iniciado por volta de 1980 e seus adeptos o consideravam uma espécie de "arca de Noé", que os
protegeria do apocalipse, previsto para o ano 2000. Aparentemente, os fiéis decidiram antecipá-lo.
Ainda não se sabe se o fundador do culto e seus colaboradores estavam entre os mortos ou se fugiram,
levando os bens dos adeptos. Moradores próximos da área da tragédia descreviam os membros do
culto como sendo pacíficos e educados e as autoridades os consideravam inofensivos. Infelizmente,
estavam enganados...
Os episódios acima foram selecionados por sua maior divulgação junto às grandes
redes de comunicação. Inúmeros outros massacres - não tão noticiados - aconteceram
em diversos países. Na verdade, entre os anos de 1969 e 2000, foram registrados no
mundo cerca de 40 casos de homicídios ou suicídios relacionados a cultos, com um
total de mais de 2300 mortos. Isto representa uma média de mais de um caso por
ano - com 75 vítimas, cada! Um agravante: este pesado tributo do fanatismo
religioso considera apenasos grupos menores. A maioria das pessoas nem saberia da
existência deles se não fosse pela carnificina que promovem de tempos em tempos.
Há desde seitas da "Nova Era" a cultos satânicos, provenientes de lugares tão
distantes geográfica e culturalmente entre si quanto o Japão e o Congo. Estamos
diante de uma onda de misticismo que não parece respeitar barreiras culturais,
tecnológicas ou econômicas.
Jihad - "Deus Está do Nosso Lado"
No tempo de Jesus Cristo um movimento religioso radical recrudescia na judéia -
o zelotismo. Criado por judeus contrários à tributação a Roma, tinha também caráter
político. O nacionalismo exacerbado de alguns de seus adeptos tornou os atentados
individuais uma ocorrência comum, já no primeiro século. Era a sangrenta reação
judaica à invasão romana. É uma amarga ironia que hoje o povo judeu sofra, ele
próprio, atentados por parte de grupos radicais oriundos de um povo que também se
considera invadido em seu território - os palestinos. Alguns supõem tratar-se de uma
mera disputa de terra, como os movimentos pela reforma agrária. É um equívoco - o
que ocorre ali é, antes de tudo, o choque entre dois sistemas religiosos imiscíveis
entre si: judaísmo e islamismo. Curiosamente, ambos os lados alegam direito divino à
terra que disputam. Em 1987, os palestinos repetiram o gesto dos antigos zelotes,
insurgindo-se contra Israel, por meio de passeatas e atentados - um movimento que
ficou conhecido como Intifada. Desde então, deflagrou-se um ciclo perene de
hostilidades. Turbas enfurecidas são dispersadas a bala pelas forças israelenses, com
diversas baixas de ambos os lados. Todos os dias, os noticiários exibem os terríveis
efeitos deste antigo instrumento do radicalismo político-religioso, o atentado terrorista.
Para agravar ainda mais a situação, o povo muçulmano tem sido convocado por seus
líderes a uma 'guerra santa' - ou jihad - contra o ocidente.
I - Controle de comportamento:
1. Regulação da realidade física do indivíduo:
1.a - Onde, como e com quem o adepto vive e com quem se associa
1.b - Que vestimenta ou estilo de cabelo a pessoa usa
1.c - O que se deve comer ou beber, aceitar ou recusar
1.d - O quanto é desejável que a pessoa durma
1.e - Dependência financeira
1.f - Pouco ou nenhum tempo para entretenimento, férias ou leitura (exceto se for literatura do
culto)
2. Maior parte do tempo dedicada a sessões de doutrinação e rituais do grupo. Em um
culto, há sempre muita atividade, de modo a suprimir o tempo livre do adepto, tempo
este que o poderia levar a pensamentos "perigosos".
3. Necessidade de solicitar permissão para decisões de maior importância, tais como
aceitar um emprego, cursar a universidade, namorar ou casar-se. Ex: os membros da
Igreja da Unificação têm de solicitar autorização ao líder para cada passo decisivo de
suas vidas.
4. Necessidade de relatar pensamentos, sentimentos e ações aos superiores.
5. Recompensas e punições - os membros mais dedicados são agraciados com 'cargos'
e lisonjas, enquanto os pouco engajados são apontados como 'fracos' ou 'mau
exemplo'. Aqueles considerados pela liderança como infratores são definitivamente
afastados do convívio dos demais. Todas as religiões têm sistemas de "excomunhão"
ou o equivalente a ela.
6. Individualismo ou pensamento independente é desencorajado, prevalece o
pensamento do grupo. Ex: as Testemunhas de Jeová são exortadas a evitarem pensar
por si mesmas, alinhando-se inteiramente com o ensino que emana de sua sede (A
Sentinela de 15/7/1983, pág. 22).
7. Regras e regulamentos rígidos. Ex: as Testemunhas de Jeová são proibidas de
votar, prestar serviço militar, celebrar aniversários ou feriados e de receber
tratamentos à base de sangue.
8. Necessidade de obediência e dependência. Ex: o líder do culto 'Portal do
Paraíso', Marshall Applewhite, determinava cada pormenor da vida de seus seguidores
- a dieta, a vestimenta, os pensamentos etc.
II - Controle de Informação:
1. Uso de logro:
1.a - Ocultar deliberadamente informação (como o as práticas ocultas da organização)
1.b - Distorcer informação para torná-la mais 'aceitável' ("branquear" o passado)
1.c - Mentir, caso seja necessário, para proteger o culto (mentir às autoridades)
2. Acesso a informação de outras fontes é reduzido ou desencorajado:
2.a - Desencorajada a consulta a livros, artigos, jornais, revistas, TV ou rádio
2.b - Evitar informação crítica
2.c - Evitar ex-membros do culto
2.d - Membros são mantidos tão ocupados que não têm tempo para checar a veracidade das
informações
3. Informação em compartimentos; doutrinas para os "de dentro" e para os "de fora".
Ex: as Testemunhas de Jeová possuem manuais 'secretos' (como o "Livro dos
Anciãos"), dirigidos apenas pessoas em cargos especiais.
3.a - A informação não é posta livremente à disposição
3.b - A informação varia em diferentes níveis dentro da pirâmide hierárquica
3.c - Os líderes decidem quem "precisa saber" o quê e quando
4. Vigilância de uns sobre os outros é encorajada:
4.a - Ingressar em um sistema de 'irmandade' para monitorar e controlar
4.b - Delatar pensamentos, ações ou sentimentos "errôneos" à liderança do culto
4.c - O comportamento de cada adepto é monitorado pelo grupo inteiro
5. Uso extensivo de informação e propaganda geradas pelo culto. Ex: Igreja Universal
- proprietária de redes de TV e rádio - e Testemunhas de Jeová, divulgadoras de
revistas com tiragem de milhões de exemplares.
5.a - propaganda por meio de cartas, revistas, jornais, gravações e mídia
5.b - Citações críticas são deturpadas, declarações de dissidentes, tiradas de contexto
6. Uso antiético de confissões :
6.a - Informação usada para estabelecer 'limites' de conduta
6.b - 'Pecados' passados são usados para manipular e controlar
IV - Controle de emoções:
1. Manipular e estreitar o campo de sentimentos da pessoa.
2. Fazer a pessoa pensar que, caso haja problemas, é por sua culpa, nunca do líder do
grupo.
3. Uso excessivo do sentimento de culpa:
3.a - Culpa de Identidade: "quem sou eu, minha família, minhas companhias, meus pensamentos,
sentimentos e ações"
3.b - Culpa social
3.c - Culpa pelo passado
4. Uso excessivo do medo:
4.a - Medo de pensar por si mesmo
4.b - Medo do mundo "lá fora"
4.c - Medo de inimigos
4.d - Medo de perder a "salvação"
4.e - Medo de deixar o grupo ou de ser evitado por ele
4.f - Medo de desaprovação
5. Manifestação extrema de "altos" e "baixos" emocionais.
6. Freqüente confissão pública de "pecados".
7. Doutrinação à base de fobias: medo irracional de algum dia deixar o culto ou de
questionar a autoridade do líder. A pessoa sob controle mental não consegue
visualizar um futuro positivo fora do grupo:
7.a - Nenhuma felicidade ou realização é possível aos que deixam o culto
7.b - Terríveis conseqüências terão lugar se a pessoa sair do grupo: inferno, possessões
demoníacas, doenças incuráveis, acidentes, suicídio, insanidade, falência etc.
7.c - Evitar os que saem; medo de ser rejeitado pelos semelhantes, pelos amigos e pela família
7.d - Nunca há uma razão legítima para sair do grupo. Do ponto de vista do culto, todos os que
saem são "fracos", "indisciplinados", "sem espiritualidade", "mundanos", "corrompidos pela família" ou
"seduzidos" por sexo, dinheiro etc.
Todos os cultos - e, às vezes, também as igrejas ortodoxas - utilizam-se de, pelo
menos, algumas das técnicas acima descritas. A metodologia, evidentemente, segue o
princípio de "para cada peixe, uma isca certa", ou seja, o meio adequado
para doutrinar e manter cada adepto toma em conta fatores como nível de
escolaridade, histórico familiar, condição sócio-econômica e, principalmente, a
suscetibilidade psicológica do indivíduo. É significativo que os cultos introduzam
importantes alterações em sua propaganda ao se instalarem em países distintos ou
regiões distintas de um mesmo país. Pessoas de caráter místico e pouca escolaridade
são mais facilmente seduzidas por apelos ao sobrenatural - a figura do 'demônio'
costuma ser o 'cabo eleitoral' predileto. É o caso das populações de periferia em
grandes metrópoles ou dos camponeses - um sermão simples, a evocação de
deidades, uma sessão de 'exorcismo' e pronto! Para muitos, os percalços da vida e a
sôfrega necessidade de crer em uma alternativa viável - seja ela qual for -
sobrepujam-lhes a lucidez, tornando-os presa fácil de aproveitadores da miséria
alheia. Já os indivíduos mais pragmáticos e ambiciosos são atraídos aos cultos pela
oferta de prosperidade, enquanto outros - sem qualquer destaque em suas vidas
pessoais - encantam-se com a possibilidade de galgar 'posições' na hierarquia da
igreja, experimentando uma autoridade que dificilmente teriam em sua vida
profissional ou familiar. É o caso do indivíduo iletrado que, durante o dia, é um
serviçal obediente em uma firma e, à noite, é um inflamado 'pastor' em seu local de
culto - em um turno, recebe ordens, em outro, ele as dá. Seja como for, anos e anos
de submissão a este sistema podem gerar desajustes sociais ou acentuar graves
distúrbios psíquicos, desde depressão até comportamento paranóide. Pessoas
pacíficas, naturalmente calorosas, podem tornar-se irreconhecivelmente frias e hostis.
Alguns, saudosos pela 'velha autoridade', sentir-se-ão reconfortados em julgar as
pessoas com base em um critério legalista - regras e mais regras. Por sua vez, aqueles
com caráter obsessivo encontrarão no ambiente xenófobo dos cultos sua pátria
espiritual - tornar-se-ão fanáticos. Serão convencidos a praticar qualquer ato, se assim
a liderança ordenar. Um exemplo grotesco é o de um culto secreto existente em San
Francisco - EUA, no qual o 'guru' convenceu seus súditos de que a imortalidade estaria
presente nos órgãos internos dos mortos. Assim, em uma de suas sessões, o cadáver
de um adepto recentemente falecido foi aberto e devorado pelos presentes num
horrendo e macabro ritual. A cerimônia atingiu seu ápice em uma sanguinolenta orgia
sexual. Antes de perguntar como alguém em gozo de suas faculdades mentais
perpetraria tal seqüência de insanidades, talvez devêssemos indagar por que
meios um único indivíduo induziu uma multidão a crer em tal absurdo.
Segundo Hassan, o processo de ganhar controle sobre a mente passa por três
estágios:
I. Descongelamento:
a) Desorientação e confusão
b) Privação ou sobrecarga sensorial
c) Manipulação fisiológica: privação de sono, alteração de dieta, ausência de privacidade
d) Hipnose: regressão, visualização, contos, sugestão, meditação, preces, cânticos
e) Questionamento da própria identidade
f) Redefinição do passado
II. Modificação:
Durante seu cárcere, Patricia foi mantida por longos períodos dentro de um
cubículo e com os olhos vendados. Não tinha privacidade, sendo obrigada a fazer suas
necessidades fisiológicas na presença dos seqüestradores. Foi seguidamente
humilhada, espancada e estuprada pelo líder dos terroristas. Palavras de ordem foram
repetidas aos seus ouvidos, constantemente. Mantida neste estado miserável, ela foi
vencida física, mental e espiritualmente. Seus algozes conseguiram quebrantar sua
resistência. Ela perdeu seu senso de identidade e uma nova personalidade - definida
pelo grupo - aflorou. Sua mente fragilizada acatou os argumentos falaciosos dos
criminosos sobre uma suposta 'causa' de relevante valor social. Até mesmo a
relutância dos pais de Patricia em pagar a quantia absurda proposta pelo grupo - um
valor com o qual, de fato, não podiam arcar na ocasião - foi exposta à vítima como
evidência de que sua família não se importava com ela. Àquela altura, sua mente
havia se tornado 'massa de oleiro' às mãos do líder do SLA. Esta tese parece ter sido,
de forma tácita, acatada pelas autoridades, pois a pena de Patricia foi comutada, em
1979, para uma forma mais branda e, finalmente, ela recebeu o perdão oficial do
presidente Bill Clinton, em 2001. Ela leva hoje uma vida aparentemente normal.
Pat Hearst em quatro momentos: no primeiro quadro, vemos uma foto dela antes do
seqüestro - uma inocente menina de classe alta; no segundo quadro, a famosa foto
de Tania, sua nova identidade como guerrilheira do SLA; no terceiro quadro, seu
julgamento - perceba o leitor que ela, algemada, sorri, como se nada estivesse
acontecendo, sinal típico de alienação mental; por último, uma foto recente dela,
agora Patricia novamente.
John Walker em três momentos: em seus anos de adolescência, nos EUA; a seguir, a
transformação, após anos de doutrinação em umamadrassa, no Paquistão;
finalmente, exausto e abatido, após sua captura, no Afeganistão.
Madrassa - escola de religiosos ou de fanáticos?
Tal perfil não é exclusivo dos líderes religiosos, mas também dos políticos. Adolf
Hilter, por exemplo, teve uma infância conturbada, um pai autoritário e uma grande
frustração - queria ser arquiteto ou pintor. Não foi uma coisa nem outra. Seus anos
em Viena - Áustria, em busca de uma vaga na Academia de Artes, foram descritos por
ele mesmo como dias de 'sofrimento e aprendizagem'. Desde sua adolescência, teve a
sensação de ser alguém especial, escolhido para um propósito único. Seu professor de
História incutiu-lhe idéias anti-semíticas, que seriam a argamassa com a
qual Hitler construiria, décadas no futuro, seu odioso Reich. Sua experiência amarga
nos campos de batalha da I Guerra, de onde saiu ferido por um ataque de gás, bem
como a humilhante rendição da Alemanha, só o convenceram mais ainda de que ele
estava destinado a mudar o curso da História. O que muitos desconhecem é o lado
místico de Hitler- ele cultuava os seres da raça ariana e pregava uma nova ordem
mundial. Sua máquina de propaganda fez da história da Alemanha a pré-história do
nazismo. Para seus comandados, ele era um messias - o homem 'forte' que arrumaria
a bagunça e restauraria a ordem nacional. Castelos medievais foram transformados
em locais de culto e foram criados rituais de iniciação às diversas ordens
do Reichalemão. Os membros da "SS" faziam um juramento de fidelidade ao supremo
chefe da nação ariana, até à morte. Não se dá algo semelhante no ambiente dos
cultos religiosos? Sobre isso, o historiador Alan Wykes comenta:
"... o culto semi-religioso do salvador difundiu-se entre os milhares que o ouviam com
uma histeria só comparável à dele - uma histeria que, como dizia o próprio Hitler, não era
involuntária e sim 'uma tática baseada no cálculo preciso de todas as fraquezas
humanas'..." - Hitler (1970), p.37 (negrito acrescentado)
É claro - nem toda pessoa que experimenta sensações incomuns ou passa por
adversidades funda um partido ou um culto. Há diversos outros fatores envolvidos.
Assim, além dos aspectos relacionados à infância e à hiperatividade límbica, podemos
destacar alguns pontos em comum na personalidade dos líderes de cultos:
II) Carisma pessoal - eles são indivíduos entusiasmados com o que fazem e
conseguem cativar os outros; têm espírito de liderança.
III) Boa oratória - eles, instintivamente, sabem como motivar as multidões mediante
frases de efeito e gestos enérgicos; são bons manipuladores das massas.
IV) Intransigência - eles não admitem ser contrariados em seus propósitos; sua
palavra deve ser a última.
Os Cultos no Brasil
Atualmente, em diversos países, qualquer pessoa pode fundar e registrar uma
igreja - e com muita facilidade. As leis concedem ampla liberdade de culto e não há
mecanismos de fiscalização do funcionamento de tais instituições. Na verdade, elas
contam com total isenção de impostos, o que só vem a estimular o oportunismo.
Certos países têm se tornado um autêntico 'celeiro' místico, importando e exportando
ideologias religiosas. É o caso do Brasil.
Segundo uma pesquisa, encomendada pela revista "Veja" ao Instituto Vox Populi e
destinada a aferir a espiritualidade do povo brasileiro, 99% da população acreditam
em Deus. No entanto, quando indagada sobre a figura do demônio, apenas metade da
população professa acreditar na existência dele. Por outro lado, dados do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) demonstram que tem crescido o
contingente da população que não professa qualquer religião - ele representa, na
atualidade, cerca de 5% do povo. Trata-se de um notável paradoxo. Com efeito, o
Brasil é um país fecundo em contrastes - sociais, culturais e religiosos.
Ainda segundo estimativas do IBGE, na década de 40, mais de 95% dos brasileiros
se diziam católicos, percentual que caiu para 80% na virada do século. Por outro lado,
os evangélicos saltaram de humildes 2% para 13% no mesmo período, ou seja, o
percentual dos que professam esta corrente religiosa mais do que sextuplicou em 60
anos. A Igreja Católica tem se mostrado apreensiva com estes números e com razão,
pois é de suas fileiras que saem os recém-convertidos dos inúmeros movimentos
religiosos surgidos nos últimos anos. Por esta razão, tratou de adaptar-se aos 'novos
tempos'. Já em 1975, o Papa Paulo VI deu um parecer favorável ao movimento de
renovação carismática, o qual tem crescido grandemente no seio da igreja. Suas
razões não são difíceis de deduzir - a monotonia dos ritos católicos seculares havia
produzido um estado de "letargia" espiritual entre os fiéis, que, entediados,
afastavam-se da igreja, em busca de "algo mais". As inflamadas sessões de glossolalia
(falar em 'línguas') e exorcismo - oferecidas pelas denominações pentecostais e
carismáticas - acabaram por prover a emoção que faltava na vida dos católicos.
Alguns ramos deste movimento levaram suas crenças às últimas conseqüências - por
exemplo, nas colinas do Kentucky e Tenesse, EUA, um culto pentecostal denominado
"Ramo Sagrado da Igreja de Deus" oferece um bizarro espetáculo ao público.
Tomando literalmente o relato do capítulo 16 do evangelho de Marcos, seus membros
promovem um festival de transe coletivo, no qual as pessoas, em estado de histeria e
convulsão, manipulam serpentes venenosas, expõem-se ao fogo e tomam
beberagens. É claro, caso alguém morra envenenado ou sofra queimaduras, a culpa
será sempre atribuída ao fiel, por sua pouca fé...
Para atingir seu objetivo, Edir Macedo ressuscitou um velho, mas eficiente recurso
religioso - o fetichismo. Segundo o historiadorPaul Johnson, a partir do 4o. século, o
bispo de Milão, Ambrósio, introduziu o culto a relíquias - havia quem alegasse possuir
o corpo de Sto. Estêvão, a cabeça de João Batista, a própria cruz de Cristo e até um
dente de São Benedito. Cemitérios foram saqueados em busca de objetos preciosos
dos 'santos'. Espalhadas pela Europa, havia cinco tíbias do jumento sobre cujo lombo
Jesus entrou em Jerusalém - como se o animal tivesse possuído cinco patas! Tal
prática caiu no ridículo, lançando vitupério sobre o cristianismo. Ainda assim, vestígios
dela permanecem até hoje. Por exemplo, a Igreja Católica guarda, desde o século
XIII, em uma catedral de Nápoles, na Itália, um recipiente supostamente contendo
uma amostra de sangue de São Genário, o qual se liquefaz 'milagrosamente', todos os
anos. Em Turim, persiste até hoje um dos diversos sudários surgidos na Idade Média.
Apesar de apontado, por análises científicas, como uma falsificação do século XIV, a
reverência à relíquia é mantida pelo fascínio que exerce sobre os fiéis. De fato,
milhões de fiéis peregrinaram, por séculos, até ele, eventualmente deixando gordas
contribuições para os cofres da Igreja Romana. A Igreja Universal relançou a antiga
fórmula, desenvolvendo seus próprios fetiches. Por exemplo, em suas sessões, é
costumeiro apresentar um copo d'água para ser abençoado, lembrando de perto a
liturgia espírita, na qual o mesmíssimo objeto - um copo com água - é posto para ser
'energizado' por espíritos; ou a aspersão de água benta, realizada em ritos católicos.
Lençinhos 'abençoados' também são, ocasionalmente, distribuídos ao público. Há
algum tempo, a igreja criou sua própria versão do sudário de Turim – um gigantesco
pedaço de pano, ao qual se atribuem poderes sobrenaturais, tem sido passado por
sobre as cabeças dos fiéis durante os cultos, fazendo lembrar as inflamadas torcidas
de futebol quando realizam um ritual semelhante usando as bandeiras de seus clubes,
em estádios lotados. E, como acontecia na Idade Média, o recurso tem surtido forte
efeito, levando as pessoas a um estado de euforia coletiva. Deveras, a criatividade dos
dirigentes da Universal parece não ter limites. De tempos em tempos, novos
'lançamentos' têm gerado nas platéias um frenesi semelhante àquele do século XIII.
Há 'produtos' para todos os gostos, desde sabonetes, folhas de arruda e até
palmilhas. Com efeito, todo e qualquer fetiche que Edir Macedo e seu pessoal criem
ou venham a criar – por mais bizarro que seja – encontrará sempre uma resposta
positiva da parte de seus crédulos seguidores.
Como se sabe, as sessões de culto da igreja têm sido marcadas por uma
abundância de símbolos ditos 'sagrados', tais como vinho, água, óleo etc.
Surpreendentemente, um dissidente declara que o vinho 'curativo', oferecido nas
reuniões, era, na verdade, suco de uva em pó - desses à venda em qualquer
mercearia; que a água, apresentada nas sessões do culto como obtida do Rio Jordão,
era oriunda da companhia municipal de água e esgotos, e que o óleo de 'unção',
supostamente proveniente de Jerusalém, não passava de azeite comum, comprado
em supermercados. O dissidente acima mencionado chama-se Mário Justino de Souza,
um menino pobre nascido na Bahia e que, aos 15 anos de idade, abandonou a família
e recusou uma bolsa de estudos para residir na sede da igreja. Sua carreira foi
meteórica - logo se tornaria um dos mais ardorosos e prestigiados pastores da
Universal. Sua presença era suficiente para atrair milhares de fiéis. Todavia, à medida
que se aproximava da cúpula do culto - como é, aliás, costumeiro - sua fé,
inexoravelmente, declinava. Atormentado por sua homossexualidade, ele acabaria se
envolvendo sentimentalmente com outro pastor. Padecendo de dores de consciência,
procurou um superior e relatou o acontecido. Após a conversa, foi incentivado a
manter sigilo absoluto e esquecer o caso. Segundo ele, pressionado pela igreja,
ingressou em um casamento infeliz e, sobrecarregado com os afazeres da fé, sequer
pôde estar presente ao funeral de sua mãe. Na fase mais crítica de sua vida,
envolveu-se com drogas e prostituição. Em 1995, afastado da organização por ser
portador do vírus HIV, ele lança um bombástico livro intitulado "Nos Bastidores do
Reino de Deus", nos quais disseca toda a entidade e faz revelações estarrecedoras
sobre seu funcionamento. Familiarizado com os interstícios da igreja, tinha
conhecimento de fatos que jamais chegaram ao conhecimento dos fiéis. Aqueles que
esperavam encontrar no livro um tom rancoroso e vingativo, ficariam surpresos com o
linguajar simples e franco do autor, o qual acabou, na verdade, produzindo uma
autobiografia, na qual relata toda sua trajetória, desde o humilde começo, passando
pelos momentos de glória no púlpito da igreja, até sua maior aflição, abandonado no
exterior por seus ex-associados e sem, ao menos, ter como retornar ao Brasil. Mário
não poderia falar das graves transgressões da igreja sem falar nas suas próprias, e ele
o faz de forma aberta, citando nomes de pessoas e lugares, bem como assumindo
plenamente suas culpas. Talvez esse seja o ponto mais forte do relato. A obra, porém,
não passaria mais do que um mês no mercado - uma ação judicial impetrada pela
Universal retirou o livro de circulação, em 15 de dezembro de 1995. Deveras,
considerando seu conteúdo, a organização de Macedo muito teria a temer com sua
divulgação. Eis alguns trechos, particularmente chocantes:
"As reuniões dos pastores, que nos anos anteriores continham leituras de salmos (...)
assumiam agora características de reunião de conselho administrativo de megaempresa.
Os assuntos do dia eram a compra e venda de imóveis ao redor do mundo, as cotações do
ouro e do dólar ou os movimentos das bolsas de São Paulo e Londres. O único Evangelho
pregado nesses encontros era aquele segundo Lilian Witte Fibe".
"Havia tido minha primeira relação sexual, com um homem, também pastor, da própria
Igreja Universal do Reino de Deus. Pensei em largar tudo, pois já não me sentia mais
digno de continuar pregando a palavra de Deus. A condenação do Levítico martelava
diuturnamente a minha mente: 'Maldito é o homem que se deita com outro homem'."
"Sexo e dinheiro eram as maiores causas de queda dos pastores. Talvez pelo fato de esses
dois itens serem muito acessíveis dentro da igreja. Quase todos os pastores recebiam
bilhetinhos de mulheres se declarando apaixonadas e implorando por uma tarde de amor
em um motel de beira de estrada. Algumas mulheres que freqüentavam a igreja viam os
pastores como galãs de telenovelas que povoavam as suas fantasias. Sempre vinham a
nós confessando os sonhos sexuais que tinham conosco... Sexo, porém, não era motivo
para mandar um pastor embora. A não ser quando o adultério ganhava proporções de
escândalo..."
"Quando o bispo fechou a compra da Record, por US$ 45 milhões, nós tivemos de 'pagar o
pato'. Apesar de que não havia necessidade disso, nossos salários foram cortados por três
meses com a desculpa de que a igreja precisava economizar dinheiro para o investimento.
Ninguém se atreveu a protestar."
Esse último trecho refere-se a uma gigantesca e obscura operação financeira sobre
a qual pairam, até hoje, graves suspeitas, a saber, a compra de uma rede de
televisão. Edir Macedo tornou-se, algumas vezes, vítima de uma coisa que sempre
caracterizou sua trajetória - a dissidência. Só que ela veio de uma fonte inesperada -
alguém que tinha sido, por anos, seu associado íntimo e "braço direito", o pastor
Carlos Magno de Miranda, afastado da igreja em 1991. Em entrevista à maior
emissora do país, a TV Globo, Magno entregou um dossiê, no qual denunciava, entre
outras coisas, o envolvimento da Igreja Universal em lavagem de dinheiro do
narcotráfico colombiano. Além disso, levou a público duas fitas de vídeo: uma
mostrava uma 'aula' de Edir Macedo a seus bispos sobre a melhor técnica de extorquir
dinheiro dos fiéis, e a outra - mais chocante - mostrava o bispo-empresário, nos
bastidores, agarrado a sacos de dinheiro, em meio a caretas, e caçoando de suas
vítimas (os vídeos podem ser vistos neste
endereço: http://media.putfile.com/macedo). Infelizmente, as investigações foram
eclipsadas no turbilhão de uma degradante rixa entre as duas emissoras, a que
divulgou as denúncias e aquela controlada pela igreja.
Magno descreveu seu antigo colega como um indivíduo inescrupuloso, fanático por
vídeos eróticos e sexualmente insaciável - sem dúvida, um quadro bem diferente da
figura piedosa e entusiástica que aparecia no púlpito da igreja. Uma autoridade do
ministério público, ao assistir a fita, requisitou-a, afirmando tratar-se de um crime.
Obviamente, Macedo pôde contar com hábeis advogados para protelar o inquérito
ou livrá-lo da pena. Seu patrimônio lhe permitia tal privilégio. Além disso, inquéritos
não eram novidade na história da organização. Por volta da mesma época, um dos
bispos da igreja cometeu crime de vilipêndio a objeto de devoção religiosa, ao chutar
a imagem de uma santa católica, diante das câmeras. Uma juíza da comarca do Rio de
Janeiro, após anos de acompanhamento das atividades do bispo, declarou, em
entrevista televisiva, "a Igreja Universal não passa de uma rede de estelionatários".
Enquanto isso, uma onda de denúncias varria as páginas dos principais jornais
brasileiros. Seriam todas improcedentes?
Edir Macedo em três momentos: diante de seu público, nos grandes espetáculos da
Igreja Universal; a seguir, no instante mais desonroso de sua trajetória, brincando com
dinheiro, no intervalo de uma sessão de doações; por último, na cadeia, após uma
das denúncias de que foi alvo na década de 90.
Curiosamente, o denunciante Magno - a despeito do 'arsenal' de denúncias contra
seu antigo associado - parece ter continuado a crer no modelo proposto por Macedo,
pois fundou ele próprio sua igreja na cidade do Recife, nos mesmos moldes litúrgicos
daquela da qual desertou. Obviamente, com a diferença de não ter alcançado o
mesmo sucesso. Esse episódio mostra que o líder da Universal fez 'escola' - agora é
ele que perde adeptos para alguns de seus ex-pastores...
"Embora tal fenômeno religioso não seja mero efeito de nossa modernização e política
econômica excludentes, sua pujança advém da tentativa de milhões de excluídos de
superar a injustiça social e os problemas afetivos, psíquicos e físicos de toda espécie.
Desiludidos e frustrados com os poderes constituídos, inseguros e dotados de baixa auto-
estima, crêem contar apenas com o poder divino, ainda que tal poder supostamente seja
intermediado, entre outras, por uma eficiente e implacável caixa registradora chamada
Igreja Universal do Reino de Deus."
A velha fórmula de Edir Macedo funciona bastante bem, mas não é perfeita - já
apresenta sinais de desgaste. À época da produção desse texto, uma reportagem da
revista "Isto É" retratou uma crise empresarial sem precedentes na história do
culto. Segundo o artigo, a Universal assiste ao pior momento de sua história - o
faturamento da igreja começou a despencar no Brasil. Caiu de R$ 1 bilhão ao ano, no
início de 1990, para R$ 420 milhões, em 96. No pico, em 1989, havia chegado a US$
1,5 bilhão. Atento às planilhas e gráficos que lhe são apresentados diariamente, o
'bispo' foi informado de que 30% dos fiéis da Universal migraram para as igrejas
pentecostais "Assembléia de Deus", "Deus é Amor", "Renascer em Cristo" e, em
menor escala, para outras denominações tradicionais. Além disso, o Banco Crédito
Metropolitano, de propriedade de Macedo, está na mira do Banco Central, após
investigações terem apontado para fraudes da ordem de R$ 13 milhões. Para salvar
seu império, o líder da Universal anuncia uma série de medidas: remover pessoas de
cargos-chave, construir, no Rio de Janeiro, uma monstruosa catedral - segundo ele, a
maior do mundo - e investir em entidades filantrópicas. Todas as medidas são
administrativas e de cunho político - próprias de um grande empresário. Afinal, a
prática de investir em benefícios sociais para a população, como forma
de marketing, já é conhecida dos traficantes de drogas nos morros do Rio de Janeiro,
os quais, às vezes, buscam granjear a simpatia da comunidade por este meio. E, não
raramente, conseguem...
"... A prova em contrário por parte dos acontecimentos parece não ter contribuído em
nada para abalar a crença humana na profecia; anos cruciais vieram e se foram - 1260,
1290, 1305, 1335, 1350, 1360, 1400, 1415, 1500, 1535; nada ocorreu tal como predito,
mas, ainda assim, as pessoas acreditavam." - História do Cristianismo, p. 311
O território brasileiro tem sido pasto para toda sorte de movimento esotérico ou
culto, a ponto de um deles cobiçar - não apenas adeptos entre os brasileiros - mas o
próprio solo nacional. Trata-se da Igreja da Unificação, um movimento cujo criador, o
coreano Sun Myung Moon (conhecido como 'Reverendo' Moon), visualizou, neste país,
um novo "jardim do Éden". Segundo uma reportagem do famoso jornal New York
Times, ele teria investido cerca de 30 milhões de dólares em propriedades rurais no
Estado do Mato Grosso do Sul, despertando a preocupação do governo estadual. A
área total adquirida é de cerca de 570 quilômetros quadrados. Ninguém sabe ao certo
quais as pretensões do homem que, há mais de sessenta anos, se descobriu o
"sucessor" de Jesus Cristo, mas, a julgar pelo rastro deixado por ele em outros países,
as autoridades brasileiras têm razões para apreensão. O 'Reverendo' Moon tem o
hábito nada saudável de freqüentar a prisão nos países onde se instala. Já foi
encarcerado em seu país de origem, a Coréia do Norte, depois mudou-se para a
Coréia do Sul, onde também foi preso e, finalmente, foi condenado e cumpriu pena
nos EUA - as principais acusações, nestes casos, foram sonegação de impostos e
evasão de divisas. Moon criou sua igreja oficialmente em 1954 e ficou famoso por
aliciar jovens para seu movimento. Sobre isso, os autores George Mather e Larry
Nichols comentam:
"Moon alcança o maior sucesso evangelístico entre os jovens, os quais, ao abandonar o lar
e os estudos, freqüentemente sentem-se inseguros e solitários. São abordados por
pessoas simpáticas e amáveis, que lhes oferecem a necessária segurança durante o
momento da vulnerabilidade. O candidato recebe o convite para uma visita inicial a uma
casa onde outros membros da seita concedem-lhe amor e compaixão. Depois disso,
segue-se um retiro de final de semana, no qual o candidato é cercado de atenção especial,
palestras, cânticos e orações. O bombardeio dos ensinos da Unificação, juntamente com a
manipulação emocional feita durante as muitas horas de treinamento, são armas eficientes
na conquista do indivíduo, a fim de transformá-lo em um convertido totalmente
comprometido." - Dicionário de Religiões, Crenças e Ocultismo (2000), p. 202
O estudioso Steve Hassan, mencionado neste trabalho, foi ele próprio um devoto
seguidor deste culto por vários anos. Em seu testemunho, ele expõe o abuso de
autoridade praticado pelo líder do culto, o qual, segundo ele, exerce controle total
sobre a mente de seus comandados. "Mais que uma seita, trata-se de um negócio que
se esconde atrás da fachada de religião, a fim de ganhar dinheiro", diz o arcebispo de
Campo Grande, capital do Mato-Grosso do Sul. As palavras do sacerdote não parecem
infundadas - o culto da Unificação foi criado nos moldes de uma religião-empresa,
possuindo hoje, pelo menos, cinco organizações eclesiásticas, quatro grupos políticos
e seis empresas. No entanto, desde 1996, seu império econômico entrou em declínio.
Escândalos financeiros rebentaram de todos os lados. Seus débitos ultrapassaram a
cifra de US$ 1 bilhão e dezessete de suas companhias estiveram sob intervenção.
Desse modo, sua entrada em qualquer país sempre desperta a desconfiança das
autoridades. O governador do estado onde Moon adquiriu as terras diz: "Ninguém
sabe o que ele pretende aqui, quais os objetivos de seus investimentos ou a origem
de seu dinheiro. Isto tornou-se uma questão de segurança nacional, e eu acho
necessária uma investigação".
Conclusão
Não se pode afirmar, com propriedade, que o sentimento religioso não é legítimo.
Na verdade, ele é uma das peculiaridades humanas, distinguindo o homem de outros
seres, com os quais compartilha a vida neste planeta. Sepultar os mortos sem
cerimônia, por exemplo, parecia tão condenável às tribos antigas como parece a
qualquer comunidade urbana na atualidade. Realizar um rito para marcar esta ocasião
parece 'correto', 'justo' e 'apropriado'. Não realizá-lo parece 'desumano' ou
'vergonhoso'. Tais sentimentos são comuns a qualquer pessoa, seja qual for sua
origem cultural. De modo que, a espiritualidade é um inegável atributo humano, com
o qual temos de conviver, queiramos ou não. O conceito de valor social está
inexoravelmente ligado à nossa espécie. Esta realidade foi percebida pelo pai da
Sociologia, o francês Émile Durkheim, em diversas de suas obras, entre
elas, Elementary Forms of Religious Life[Formas Elementares de Vida
Religiosa], escrita em 1912. Durkheim cria que os métodos científicos poderiam ser
aplicados ao estudo da sociedade. Sua teoria era a de que as características dos
grupos transcendem à soma dos comportamentos individuais daqueles que os
compõem. Uma coisa em especial era objeto de sua atenção - a base da estabilidade
social, manifesta na forma de valores compartilhados, como a moral e a religião. Uma
ruptura destes valores resultaria em sentimentos de ansiedade e insatisfação
individuais, culminando, finalmente, com o colapso social.
Émile Durkheim (1858-1917)
"Os dois primeiros são incompatíveis com a verdadeira religião, e o terceiro deve ser
encarado com suspeita... a palavra 'mistério' não pode ser aplicada à verdade moral, mais
do que a escuridão pode ser aplicada à luz... Mistério é antagonista da verdade... A
religião, deste modo, sendo a crença em um Deus, e a prática da verdade moral, não pode
ter conexão com mistério... Como as aparências facilmente enganam, e coisas que não
são reais têm forte semelhança com coisas que são, nada pode ser mais inconsistente do
que supor que o Todo-Poderoso faria uso de tais meios, os assim chamados 'milagres', os
quais colocariam aquele que os realiza sob suspeita de ser um impostor, a pessoa que os
relata como suspeita de estar mentindo, e a doutrina que se quer apoiar, como suspeita
de ser uma fábula... isso implicaria na fraqueza ou deficiência da doutrina que é pregada...
seria reduzir o todo-Poderoso ao papel de uma mágico, fazendo truques para as pessoas
verem e se maravilharem... pois é mais difícil obter credibilidade para um milagre do que
para um princípio evidentemente moral, sem qualquer milagre. Milagres podem ser coisa
do momento, e vistos por poucos; após isso, requerem a transferência da fé em Deus para
a fé no relato de homens... a palavra 'profeta' presumivelmente indica pessoas a quem
Deus comunicou algum evento a ocorrer no futuro... se existiram, é consistente supor que
o evento assim comunicado fosse expresso em termos que pudessem ser entendidos, e
não relatado de modo solto e obscuro à compreensão de quem ouve, e tão ambíguo que
pudesse se encaixar em qualquer circunstância que viesse à frente... é uma concepção
muito irreverente do Todo-Poderoso supor que ele lidaria com a humanidade desta forma
infantil."
Sobre o uso da figura do demônio como instrumento de intimidação por parte das
religiões, o autor declara:
"A fim de criar uma fundação sobre a qual edificar, os inventores se viram obrigados a
conceder ao ser a quem chamam Satã um poder tão grande quanto, senão maior do que
aquele que atribuem ao Todo-Poderoso. Não apenas deram-lhe o poder de libertar a si
próprio das profundezas, após o que chamam de 'derrocada', mas eles fizeram tal poder
aumentar posteriormente, até o infinito. Antes desta queda, eles o representam como um
anjo de existência limitada, assim como representam os demais. Após sua queda, ele se
torna, pelo relato deles, onipresente. Ele está em todo lugar... Não contentes com esta
deificação de Satã, representam-no como derrotando, por meio de um estratagema, na
forma de animal da criação, todo o poder e sabedoria de Deus. Representam-no como
tendo compelido o Todo-Poderoso a entregar sua criação inteira ao governo e soberania de
Satã, ou a se render por meio de uma redenção, vindo à terra e exibindo-se em uma cruz,
na forma de homem... fazem o transgressor triunfar e o Todo-Poderoso cair... muitos
homens bons têm crido nesta estranha fábula, e vivido suas boas vidas sob tal crença,
disto estou ciente... eles foram educados para acreditar nisso, e acreditariam em qualquer
outra coisa da mesma maneira... Quanto mais desnatural uma coisa é, mais passível é de
se tornar objeto de triste admiração."
Com base nos mecanismos agora estudados, podemos compreender melhor o que
provavelmente acontece na mente dos líderes de culto e seus seguidores. Eles, por
assim dizer, condicionam sua mente emocional - o sistema límbico - a produzir
respostas afetivas sempre que um pensamento é evocado. Uma vez, este processo
tenha sido repetido um número suficiente de vezes, o comportamento torna-se
'automatizado'. Esta hiperestimulação límbica acaba por deformar o intelecto do
indivíduo, colocando-o a serviço de suas emoções. Linhas de pensamento alternativas
são bloqueadas em favor de uma única via. Isto supostamente explicaria como
indivíduos cultos tornam-se fanáticos - com efeito, até utilizando seu conhecimento
para justificar seu fanatismo. Poderíamos mencionar o caso deAbimael Guzmán, um
filósofo e professor universitário, que, a partir de suas convicções políticas, criou, na
década de 60, o mais temido movimento terrorista do Peru - a organização
comunista Sendero Luminoso. A partir dos anos 80, o grupo iniciou uma série de
sangrentos atentados, ceifando muitas vidas entre civis e militares. A brutalidade dos
ataques induziu o governo peruano a suspender direitos constitucionais, em 1982.
Atribuem-se cerca de 25 mil mortes às atividades desta organização. A crença de seus
membros nas idéias de seu líder tem traços quase hipnóticos. Em 1992, Guzmán foi
capturado e sentenciado à prisão perpétua. Vendo-o enjaulado, como uma fera, e
gritando palavras de ordem, fica-se a imaginar por que razão a educação não
protegeu este intelectual dos abismos espirituais em que ele e muitos outros cairiam.
A resposta, como vimos, está na própria mente...
Guzmán - o intelectual e a besta
Exemplos como este ilustram bem a que ponto as pessoas podem ir e quão cegas
podem ficar em virtude de um ideal obsessivo, a ser concretizado a qualquer custo. O
desejo de mudar a realidade deixa, muitas vezes, um rastro de sangue no caminho.
Isto é verdadeiro tanto no caso das organizações políticas quanto das religiosas. No
turbilhão dos cultos, a realidade cinzenta coagula-se em ilusão cor-de-rosa. O preço
desta ilusão costuma ser aquilo que deveria ser uma prioridade - a vida humana.
"Lamento pelas pessoas que se sentirão traídas por esta obra. Mas espero que ela
contribua para que se forme uma discussão de âmbito nacional sobre a influência nociva
que pseudo-pastores vêm exercendo sobre as massas, fazendo com que menores
abandonem famílias e estudos, desgraçando assim seu futuro e sua vida. Isso, se não é,
deveria ser caso de polícia... Recuso-me a acreditar que a Constituição, quando protege a
liberdade de culto, também proteja a lavagem cerebral e a exploração financeira da
credulidade pública."
Certamente não era pensamento do legislador prover, nos interstícios da lei, abrigo
para os mercadores da fé. Seu objetivo era o de garantir o pleno exercício dos direitos
humanos, os mesmos de que os criminosos se valem, só para violá-los. A
característica marcante dos tiranos religiosos é sua astúcia. Astúcia também é
requerida para identificar lobos sob peles de ovelha, de modo a coibir sua ação
nefasta sobre a sociedade. O controle da mente de uma pessoa só deve ser exercido
por ela própria. Que a espiritualidade não sirva de pretexto para aliená-lo a outrem.
Que o sentimento religioso sirva para reconfortar os homens em seus momentos de
adversidades, para trazer-lhes júbilo e incutir-lhes fraternidade, não para torná-los
escravos de outros homens!