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Estado e sociedade em Oliveira Vinna e Raymundo Faoro


A relação de categorias, tais como Estado e sociedade civil, com o pensamento
político brasileiro está longe de ser óbvia. Como a maior parte dos conceitos políticos
que utilizamos, eles não são originários do Brasil e não correspondem inteiramente às
condições do país. Em particular, sociedade civil no sentido hegeliano, de burgerliche
Geselchaft, enfrenta grande dificuldade no contexto brasileiro, onde, na maior parte de
nossa história, prevaleceu uma economia escravista e, junto com ela, surgiu o que
alguns autores chamam de sociedade patriarcal. Nesse ambiente, é particularmente
difícil sair do círculo da família, estabelecendo algo como a sociedade civil.
Num sentido menos rígido, todavia, pode-se identificar, no pensamento político
brasileiro, como praticamente em todo o pensamento político, a existência de uma
dicotomia básica: a que opõe os autores que dão maior peso ao Estado ou à sociedade na
interpretação do país. De um lado, situa-se o que José Murilo de Carvalho chama de
tradição privatista que tem em Francisco José Oliveira Vianna e Nestor Duarte “seus
mais ilustres representantes”. Essa tradição, desde o século XIX, com o visconde do
Uruguai, enfatiza o poder privado dos grandes proprietários territoriais diante do Estado
como marca principal da sociedade e da política brasileiras. De outro lado, está a linha -
na qual Raymundo Faoro se destaca – que privilegia, como elemento fundamental do
processo histórico brasileiro, o peso do Estado a moldar a sociedade. Um precursor
desse tipo de interpretação é Tavares Bastos que, durante o Império, já denunciava “a
onipotência do Estado”.
Vejamos, mais de perto, quais os diagnósticos, soluções e interpretações a
respeito de dois dos principais expoentes dessas duas grandes abordagens: Oliveira
Vianna e Faoro. A partir daí, poderemos verificar melhor no que “privatismo” e
“estatismo” se aproximam e se distanciam.
Oliveira Vianna procura fazer uma análise “sociológica” da sociedade e da
política brasileiras, buscando desvendar as células mais primárias de nossa constituição,
desde os primórdios da colonização. Tal forma de proceder fica mais clara em
Instituições Políticas Brasileiras, quando explica a metodologia que utilizou, em
Populações meridionais do Brasil. Nota que, ao estudar o Estado, não se pode ignorar
“as condições da vida cultural do povo, entendida esta palavra no seu sentido
etnológico”. Ou seja, diferentemente do que fariam as elites políticas e intelectuais
brasileiras, se trataria de entender o Estado a partir do meio e da sociedade da qual
brota. Haveria mesmo, como sugeria o sociólogo francês Pierre Guilaume-Fréderic Le
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Play, uma preponderância do ambiente sobre os homens, com o meio criando os tipos,
até porque “não há tipos sociais fixos, e sim ambientes sociais fixos”.
A aristocracia que teria colonizado o Brasil descenderia dos ramos mais ilustres
da nobreza portuguesa. Seus hábitos, caracteristicamente urbanos, entrariam em choque
com o ambiente. Dessa forma, um segundo grupo, de origem plebéia, acabaria por
prevalecer. Isto é, o meio americano, cuja tendência seria centrífuga, absorveria o
espírito europeu, de orientação centrípeda. Conseqüentemente, por um certo período da
vida colonial, as cidades decairiam.
Ao mesmo tempo, a vida social dos colonizadores adquiriria uma fisionomia
própria, inédita. Em conformidade com o meio, ocorreria “a obra de adaptação rural, de
conformismo rural – em uma palavra, a obra de ruralização da população colonial”.
Derivaria daí a psicologia social do brasileiro, que continuaria a ser fundamentalmente
um homem do campo. No entanto, a influência do meio rural, segundo Oliveira Vianna,
varia de acordo com o predomínio da pequena ou da grande propriedade. No caso
particular do Brasil, “somos o latifúndio”. Nele, não haveria grande espaço para a
solidariedade social. Em compensação, o latifúndio, que tudo absorve, seria um mundo
em miniatura, onde prevaleceria a vida doméstica. Organizado à maneira romana, teria
o pater famílias como seu chefe supremo.
O problema principal que a aristocracia da terra teria que enfrentar seria de
conseguir braços que trabalhassem suas lavouras. Como a migração foi pequena, se teria
recorrido à escravidão. A partir daí, a estrutura da sociedade colonial se basearia na
divisão entre latifundiários e escravos. No entanto, entre os dois grupos apareceria um
terceiro, o dos homens livres pobres. Nem senhores, nem escravos, mergulhariam nas
zonas mais obscuras da sociedade colonial, vegetando como agregados-clientes dos
grandes latifundiários. Enquanto a família seria o princípio organizador dos latifúndios,
na plebe rural prevaleceria a mancebia. Resultaria também daí sua maior característica:
a instabilidade.
Quando se abre, o que Oliveira Vianna chama de IV século da história brasileira,
a aristocracia da terra se encontraria quase ausente da administração da colônia, que
seria reservada quase exclusivamente a metropolitanos. É apenas a transmigração da
família real portuguesa que mudaria esse quadro de isolamento. A nobreza nativa se
confrontaria, então, com outros dois grupos: a burguesia comercial, enriquecida pela
abertura dos portos, e os fidalgos portugueses, vindos com a família real e que exerciam
cargos burocráticos. Entre 1808 e 1822, se disputará a primazia política, a
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Independência representando a vitória da aristocracia da terra. Desenvolvimento esse


que seria inteiramente lógico, já que ela seria a única classe com verdadeira base na
sociedade brasileira.
No entanto, a aristocracia da terra, deixada a si mesmo, seria incapaz de dar
início à obra de unificação nacional. Dela não poderia prover solidariedade social, os
caudilhos, que a comporiam, formando clãs, que lutariam entre si. Como resolver o
problema? Se a aristocracia é incapaz, por conta própria, de estabelecer a unidade
nacional, ela teria que vir de fora, da Coroa. Isto é, para criar a nação, a Coroa, como
assinala Gildo Marçal Brandão, como que filtraria os elementos provenientes da
nobreza da terra mais capazes de contribuir para a tarefa.
Antes da independência, praticamente não existiria sentimento nacional. Apenas
a fidelidade ao Imperador teria evitado a secessão do Brasil. Ou seja, na luta “entre o
localismo e o centro, os caudilhos e a nação”, o rei aparece como elemento regulador de
conflitos. Aqui, o poder central, ao invés de ser o grande inimigo das liberdades locais,
como o é na Europa, seria quem defende essas liberdades contra os caudilhos. A defesa
da descentralização, à maneira dos anglo-saxões, como faziam os liberais, seria,
portanto, injustificável. No Brasil, o sentimento de liberdade apareceria apenas numa
minoria, cuja educação refletiria “as influências de meios exóticos, principalmente
americanos e ingleses”. Consequentemente, em realidade, onde não foi preciso lutar
contra a opressão, apareceria apenas o sentimento de independência individual.
Aqueles, que Oliveira Vianna nomeia como “reacionários audazes”, teriam
compreendido as condições americanas, “a diferença substancial entre os fins do Estado
na Europa e nas novas nacionalidades americanas”. A partir de um ambiente, em que
prevalecem tendências centrífugas, teriam tentado estabelecer o espírito público.
Estadistas, com tamanhas qualidades, surgiriam de maneira quase providencial,
principalmente devido à hereditariedade eugênica. Complementariamente, os
mecanismos que o Império criou, como o Senado vitalício, o Conselho de Estado
permanente e principalmente o Poder Moderador, permitiriam selecionar os homens
mais capazes para a tarefa de unificação nacional.
Mas “um dia, por uma bela manhã, uma simples passeata militar”, teria feito
com que a impressionante obra do Império desabasse, “inesperadamente, com fragor,
ante os olhos da Nação estupefada”. A federação impôs-se e, com ela, teria voltado a
prevalecer a fragmentação do poder. Mesmo assim, os governos republicanos,
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sobretudo ao estabelecerem uma poderosa rede ferroviária, teriam ironicamente


contribuído para a obra de unificação nacional.
Wanderley Guilherme dos Santos e José Murilo Carvalho apontam que, na
crítica à República, Oliveira Vianna e autores identificados com o pensamento
autoritário recuperam argumentos aparecidos no debate imperial, em particular, os
mobilizados por membros do Partido Conservador. Entre os conservadores, destaca-se,
pelo caráter mais sistemático de sua obra, Paulino Soares de Sousa. O visconde do
Uruguai critica os liberais por desejarem adotar instituições estrangeiras – como a
federação, o júri popular, o júri eletivo – sem demonstrarem maior preocupação com
sua adequação às condições brasileiras. Será precisamente isso que Oliveira Vianna
chamará de idealismo utópico ou constitucional.
O publicista do século XX também concorda, com o do século XIX, que a
opressão, diferentemente do que sugeriam os liberais, não sempre provém de cima, do
poder central, como também pode vir de baixo, das facções. A descentralização,
portanto, ao invés de gerar o self-government à americana, favoreceria o poder dos
caudilhos. Segundo Santos, os conservadores, numa postura oposta a dos liberais, não
veriam, conseqüentemente, o Estado como inimigo, mas como aquele que deveria
transformar a sociedade para a futura adoção de instituições européias e norte-
americanas. Ou, em outras palavras, a reforma política não poderia preceder à social. A
partir dessas características, o cientista político carioca considera que tanto o visconde
do Uruguai como Oliveira Vianna pertenceriam à tradição do autoritarismo
instrumental.
Numa postura oposta, Bolívar Lamounier critica a noção de autoritarismo
instrumental. Na verdade, com base num objetivo impreciso – a “ordem burguesa” – ela
apenas incorporaria “a auto-imagem do próprio pensamento autoritário”, continuando
uma tradição intelectual brasileira, que defenderia a tese que “os tecno-intelectuais
alojados no aparelho de Estado constituem uma elite especialíssima, movida por
intentos altruístas, por uma visão de grandes horizontes e uma incomparável
objetividade”. Assim, além do “fetichismo institucional”, discutido por Santos e
associados aos liberais, haveria o “objetivismo tecnocrático”, praticado pelos
conservadores, pensadores autoritários e pelo próprio autor de Ordem burguesa e
liberalismo político. Como contraponto ao dedutivismo jurídico, apareceria o
objetivismo pretensamente realista, que acreditaria que um único modelo político
deveria corresponder à “realidade”.
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Lamounier assinala, a partir daí, a existência de uma verdadeira “ideologia de


Estado”. Em contraste com o liberalismo, essa ideologia defenderia o predomínio do
Estado sobre o mercado como princípio organizador da sociedade. Ou melhor, a
sociedade, inicialmente amorfa, deveria ser transformada pelo Estado, passando então a
ter forma. Por fim, diferentemente do liberalismo, que acentuaria o papel do conflito na
política, o pensamento autoritário teria uma visão harmônica das relações sociais
predominantes no Brasil, o que, como tinha sugerido Oliveira Vianna, refletiria a
intrínseca bondade do povo brasileiro.
Há, porém, diferenças entre os intérpretes mais simpáticos a Oliveira Vianna.
Wanderley Guilherme dos Santos sugere, como vimos, que o objetivo que o jurista
fluminense e autores aparentados com ele perseguiriam seria o de reproduzir no Brasil
uma ordem social análoga à européia e norte-americana. Já outros, como José Murilo de
Carvalho e Luiz Werneck Vianna, argumentam que, na verdade, a defesa por parte do
autor de Instituições políticas brasileiras da ação autoritária do Estado vincula-se a uma
atitude iberista.
Inspirados principalmente por Richard Morse, caracterizam o iberismo como
uma das possíveis respostas à modernidade. Enquanto que a Anglo-América teria como
que sido fundada pelas Revoluções Religiosa e Científica do século XVI, o mundo
ibérico teria praticamente ignorado essa dupla revolução. Portanto, mais do que uma
incompatibilidade entre as duas partes do continente americano – protestante e católica
– existiria uma incompreensão mútua entre elas.
Aparecem, entretanto, também diferenças entre os autores que identificam uma
postura iberista em Oliveira Vianna. Luiz Werneck Vianna fala num “iberismo
instrumental”, que procuraria encontrar a “cultura política anglo-saxônica”, enquanto
que José Murilo de Carvalho insiste que o modelo de sociedade do autor de Populações
meridionais do Brasil “não era o do capitalismo industrial”. Isto é, os valores desse
católico, filho de fazendeiro, seriam pré-capitalistas.
Ou seja, em poucas palavras, a discussão de Wanderley Guilherme dos Santos,
José Murilo de Carvalho, Luiz Werneck Vianna e Bolívar Lamounier sobre Oliveira
Vianna, o pensamento conservador do Império e o pensamento autoritário da República
Velha deixa claro que se é relativamente fácil pôr-se de acordo em relação aos
instrumentos de ação política que essa tradição política preconiza, o mesmo não ocorre
com os valores que a orientam.
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Numa vertente oposta à interpretação de Oliveira Vianna, aparece a tradição que


enxerga como o grande mal do Brasil o peso opressor do Estado sobre a sociedade.
Faoro será o maior representante dessa linha de análise. Para tanto, se arma
principalmente da sociologia weberiana, mesmo que, diferentemente do mestre alemão,
não insista na afinidade entre calvinismo e capitalismo, mas na desejável precedência do
capitalismo pelo feudalismo. Estaria aí, para Faoro, a chave da excepcionalidade
portuguesa e depois brasileira. A experiência de dominação tradicional da metrópole
praticamente não teria conhecido feudalismo, a transição do patriarcalismo para o
patrimonialismo tendo sido quase imediata.
A partir dessas referências, Faoro reconstitui a história de Portugal e do Brasil,
ressaltando a relação de subordinação da sociedade ao Estado, que marcaria os dois
países. A origem de tal desenvolvimento estaria na formação no reino lusitano de um
Estado absolutista precoce, o que teria aberto caminho para o patrimonialismo. A
ascensão do Mestre de Avis ao trono (1385) marcaria, já no século XIV, a derrota do
feudalismo. Os reis, desde então, não se apoiariam mais nos proprietários de terra, mas
nos funcionários, sustentados economicamente pela burguesia comercial. A aventura
marítima contribuiria para destruir definitivamente a aristocracia feudal. Paralelamente,
o que passaria a nobilitar “são os postos e os cargos”; o estamento, inicialmente
aristocrático, se burocratizando. O que Faoro chama de estamento burocrático, desde
então, comportando-se como “proprietário da soberania”. Ou seja, o aparecimento, no
interior do patrimonialismo, do estamento burocrático seria o principal veículo para que
a cisão entre o Estado e sociedade se realizasse.
O patrimonalismo também estimularia o surgimento de um capitalismo
politicamente orientado, em que as atividades mercantis se subordinariam às
necessidades do Estado. O rei promoveria monopólios e privilégios, bloqueando o livre
desenvolvimento do mercado e, com ele, das classes. Portugal, dessa maneira, não
conseguiria ultrapassar a fase do capitalismo mercantil.
Nesse quadro, ocorre a descoberta do Brasil. A ocupação do território e a
colonização teriam sido obras do rei. Faoro admite, entretanto, que as capitanias
representam uma tendência de descentralização na história brasileira. Nelas, de certa
maneira, se encontrariam as raízes de outros movimentos que reivindicaram a
autonomia local e, de alguma forma, das oligarquias. Melhor, junto com a orientação
centralizadora dominante, que refletiria o patrimonialismo, “essa ideologia, que veio das
capitanias, continuará a fluir como corrente subterrânea, pressionando para vir à tona, e
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logrando vitórias incompletas, como a Independência, a Abdicação e a República”. A


criação do governo geral, em 1548, teria, porém, revertido a tendência
descentralizadora, estabelecendo, como orientação dominante na história do país, a
centralização.
Antes da transmigração da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, não
existiria nenhum sentimento nacional, a unidade aparecendo apenas no estamento
burocrático. Com a vinda da Corte, os senhores rurais brasileiros sairiam de seu
isolamento, encontrando pela frente funcionários e comerciantes portugueses. A solução
da independência representaria uma vitória dos brasileiros. A vitória seria, porém,
momentânea. Não tardaria para que o estamento burocrático voltasse a dar as cartas no
país, como já teria indicado a promulgação da Constituição de 1824. Com ela, o
estamento burocrático passaria a se sustentar no poder executivo, no Senado vitalício,
no Conselho de Estado e, principalmente, no Poder Moderador, elementos que, durante
todo o Império, garantiriam a manutenção de seu domínio.
Brasileiros, apoiados no liberalismo, não se contentariam com o arranjo,
conseguindo forçar, em 1831, a abdicação de Pedro I, que era apoiado por portugueses
com tendências absolutistas. Durante a Regência (1831–1840), reformas liberais, que
deveriam mudar a orientação do país, são ensaiadas. Mais uma vez, todavia, o
liberalismo é derrotado, com a “Lei de Interpretação” do Ato Adicional (1840),
marcando a vitória do recém-criado Partido Conservador.
Assim, no Segundo Reinado (1840–1889), o estamento burocrático teria se
reconstituído. O Poder Moderador fabricaria gabinetes, desconhecendo a vontade
popular, numa situação em que “o domínio de cima, despótico, absoluto, era possível
porque a nação fora triturada, amarrada ao carro do Estado, de pés e mãos atadas, pela
organização centralizadora”. No entanto, a Abolição (1888) e as chamadas questão
religiosa e questão militar fariam com que o Império perdesse seus suportes, fossem eles
representados pela propriedade rural ou pelas seções da Igreja e do Exército do
estamento burocrático.
Nos anos imediatamente posteriores à proclamação da República (1889), o
exército prevalece. A partir da presidência de Prudente de Morais, reapareceria,
entretanto, com força, a tendência subterrânea da história brasileira que, desde as
capitanias, se choca contra o domínio do Estado. Por um certo período, a “política dos
governadores” venceria o estamento burocrático, mas não o aniquilaria. Como é
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habitual no Brasil, o estamento burocrático se rearticularia, até que teria se tornado


capaz de voltar à tona.
A Revolução de 1930, que teve nas forças armadas uma de suas principais
promotoras, apareceria, assim, como momento em que a história brasileira retorna a seu
curso dominante, na relação de tutela da sociedade pelo Estado. Faoro sugere mesmo
que o papel desempenhado, durante o Império, pelo Poder Moderador, passa agora para
o exército. No mais importante, portanto, não teria ocorrido grande mudança no Brasil,
o estamento burocrático continuando a se comportar como árbitro da nação.
O tipo de análise de Faoro, que enfatiza o peso sufocante do Estado sobre a
sociedade no Brasil, encontra antecedentes, como assinala Luiz Werneck Vianna, em
outros autores. O liberal Tavares Bastos, em particular, já no século XIX, considerara
que a relação entre Estado e sociedade no Brasil assumia características quase
“asiáticas”. No entanto, o autor de Cartas do solidário não podia contar com o
instrumental teórico weberiano, que torna possível a Os donos do poder enquadrar o
caso brasileiro na categoria mais ampla de dominação tradicional patrimonialista.
Por outro lado, Faoro não é o primeiro cientista social brasileiro a se servir da
análise weberiana. Antes dele, Sérgio Buarque de Holanda fez uso de categorias
weberianas, chegando inclusive a falar na existência de patrimonialismo no Brasil. No
entanto, como percebe o próprio Faoro, o patrimonialismo não é a chave de Raízes do
Brasil,, na verdade, compondo, em linha oposta a Os donos do poder, uma das peças do
que caracteriza como uma “invasão do público pelo privado”.
Estão mais de acordo com o tipo de interpretação de Os donos do poder alguns
trabalhos posteriores, como Bases do autoritarismo instrumental, de Simon
Schwartzman, e O minotauro imperial, de Fernando Uricocheia. Esses livros
apareceram depois do golpe de 1964, quando se procurou compreender os antecedentes
do autoritarismo no Brasil. Nesse clima de opinião, a segunda edição de Os donos do
poder, aparecida em 1973, teve, como nota Marcelo Jasmin, muito mais sucesso do que
a primeira, de 1958. Num viés crítico, essa linha de interpretação do país, que destaca a
importância do Estado patrimonialista, pode inclusive ser censurada por não dar a
devida atenção a fatores sociais mais amplos, como a questão agrária, quase que
restringindo sua análise a aspectos institucionais da história brasileira.
Entretanto, os autores que enfatizam o peso do patrimonialismo no Brasil nem
sempre concordam entre si. Schwartzman, por exemplo, critica Faoro por não
diferenciar situações específicas na história brasileira, pintando um quadro em que ela
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praticamente não variaria, de Dom João VI a Getúlio Vargas. Bases do autoritarismo


brasileiro considera, assim, em linha divergente com Os donos do poder, que
conviveria no Brasil, junto com a burocracia patrimonial, um setor capitalista privado,
presente sobretudo em São Paulo. Conseqüentemente, a tensão do neo-patrimonialismo
com o capitalismo moderno pressionaria em favor da mudança.
Num sentido ainda mais amplo, não é difícil de notar que a linha “privatista” de
interpretação do Brasil se choca com a “estatista”. Enquanto para autores como Oliveira
Vianna, o maior problema do Brasil é o predomínio de tendências desagregadoras, para
Faoro e outros, ocorre justamente o oposto, o poder estatal oprime a sociedade.
Decorrem desta diferença básica, visões muito distintas sobre a experiência histórica
brasileira. Oliveira Vianna e Raymundo Faoro, parecem mesmo, à primeira vista, serem
autores distantes um do outro.
Um exame mais atento, entretanto, permite visualizar importantes pontos de
contato entre os dois. Para ambos, o Estado, desde a colônia, insiste em criar a realidade
por decreto. Na crítica à “antecipação política da realidade”, Faoro vai mesmo mais
longe do que Oliveira Vianna, já que uma das possíveis consequências de tal
procedimento seria confundir a “unidade do governo [...] com a própria unidade
nacional”.
Também a maneira de Faoro retratar a transmigração da Corte portuguesa (1808)
lembra em muito a caracterização de Oliveira Vianna sobre o evento. Segundo os dois
autores, é a vinda de Dom João VI para o Brasil que teria retirado os senhores rurais do
isolamento de suas fazendas, permitindo que passassem a ter atuação política. No Rio
de Janeiro de então, esses homens rústicos passariam a ver seus interesses e valores
chocarem-se com os da burguesia comercial e da nobreza burocrática portuguesas. Por
fim, a independência aparece como uma vitória dos brasileiros sobre os portugueses,
partidários da recolonização. Populações meridionais do Brasil e Os donos do poder
divergem, todavia, quanto a como avaliar esse desenvolvimento.
O livro de 1920 considera que a aristocracia da terra, deixada a si mesma, seria
incapaz de dar início à obra de unificação nacional, até porque no seu interior não
haveria solidariedade social, os caudilhos formando clãs-fazendeiros que lutariam entre
si. Seria, portanto, um elemento de fora, a Coroa, que deveria estimular a unificação
nacional, filtrando entre os senhores rurais os mais capazes de irem além de seus
horizontes imediatos.
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O livro de 1958 também entende que a nobreza da terra acaba assumindo um


papel secundário na formação do Estado imperial. Depois do seu triunfo inicial, as
características que o Estado assume no país seriam influenciadas principalmente pela
burocracia de origem portuguesa. Mas se criaria, a partir daí, uma realidade estranha à
sociedade, estabelecendo como que “uma carapaça que envolveu a nação, impedindo-
lhe os movimentos e a respiração”. Mesmo assim, continuaria a subexistir,
subterraneamente, na vida e no pensamento político brasileiro, outra corrente, ligada aos
senhores rurais subjugados.
Em razão da forma que interpreta a história brasileira, seria de esperar que as
simpatias de Faoro se voltassem contra os herdeiros do marquês de Pombal e em favor
do grupo derrotado, mais próximo do “país real” e defensor do liberalismo.
Curiosamente, entretanto, sua avaliação da Regência, período em que os então
dominantes liberais procuraram reformar o país, é muito próxima da de Oliveira Vianna.
Segundo o jurista gaúcho, o resultado dessas medidas não foi, como se queria, o auto-
governo, mas “o caos, a anarquia dos sertões”.
Faoro também concorda com Oliveira Vianna quanto às causas mais profundas
de tal desenvolvimento: a inadequação de idéias à realidade brasileira. Para os dois, o
desconhecimento da sociedade estimularia os legisladores a repetirem prestigiosas
fórmulas estrangeiras sem se preocuparem com sua correspondiam ou não às condições
locais. Faoro não chega a ir tão longe quanto Oliveira Vianna, que esboça uma
sociologia dos intelectuais para explicar esse pretenso fenômeno, mas concorda com seu
antecessor que homens sem raízes, situados entre a cultura de sua gente e a cultura
européia, realizam uma “perigosa antecipação política da realidade social”. De certa
forma, ambos sugerem que no Brasil instituições liberais não produziriam self-
government à americana, mas caudilhismo.
Em poucas palavras, Oliveira Vianna, depois de identificar no ambiente social o
maior desafio à unidade nacional, conclui que é preciso agir sobre ele, transformá-lo. É
o Estado que pode assumir esse papel, moldando a sociedade, como tentaram fazer os
homens de 1000 durante o Império. Isto é, a análise sociológica de Populações
meridionais do Brasil e dos outros livros do autor leva paradoxalmente à conclusão que,
em certas condições, a autonomia do Estado deve levar à criação, de maneira
voluntarista, da sociedade que se deseja.
Em chave oposta, diferentemente do que se poderia esperar e do que acredita a
maior parte dos seus intérpretes, Faoro, depois de identificar a opressão do Estado sobre
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a sociedade como o principal problema brasileiro, não defende a reforma institucional.


Até porque se não há muita dúvida quanto ao retrato fortemente negativo que Os donos
do poder fornece do estamento burocrático, sua caracterização dos grupos identificados
com a sociedade também está longe de ser positiva. Do fazendeiro ao bandido, passando
pelo caudilho, avança-se num grau de crescente desagregação. Talvez em razão dessa
maneira de entender o Estado e a sociedade, o livro não oferece propriamente um
programa político para o Brasil. Mais do que programa, Faoro fornece um retrato
desesperançado da política e da sociedade brasileiras, em que não enxerga muito espaço
para a ação, o que o afasta de Oliveira Vianna e de praticamente todos os intérpretes do
Brasil.

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