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», James Clifford * George Marcus Organizagao A escrita da cultura pbética e politicada Bala Pa Raney Copyright © 2016, dos autores, ‘Todos on direitos deta edigto reservados Edita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Epoibide 4 duplicago ou repro deste volume, ou de parte do mesmo, em dutinguer meio, sem aurizagao cexpresa da editor EAUERI Editor da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua Sio Francisco Xavier, 526 ~ Maracand CEP 2080-013 ~ Rio de aneio — RI ~ Brasil Tel/Fax: $5 (21) 334.0720 2334-0721 www eer rb eduesives be ator Ecco Glavcio Marafon Coordenadora Admiistratisa Elsete Canara Coordenadora Editorial Silvia Nobeega Asuisonte Editorial Thing Brus Coondenadora de Prodigdo Rosana Rone Assisteme de Produgao Maur Sigueira ‘Supervisor de Revsdo Elmar Aquino Rewsdo “Magda Fredni Marine Maria Filomena Jardim Diniz Projtoe Diggramagao EnilioBiseand Capa Paps Selagens/ Marin Rodriguez DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGACAO NA PUBLICAGAO (CIP) Brana Heller ~ CRB 10.248 Em Acscrita da cultura: poctica€ politica da etnogeafia / James Clifford, George E. Marcus (orgs); [tradu- ‘¢f0) Maria Claudia Coelho. ~ Rio de Janeiro: Ed. ER}; Paps Sctvagens EaligBes, 2016, 388 p.: 16x23 em. Incl bibliografia. ISBN 978-85-7511-4315 1. Ecnografia. 2. Poéticas. 3. Politica. 4. Culeura. 1. Clifford, James. I. Marcus, George E. cpu 39 Imagem de capa gentimente cedida pelos orgenizadones do ivro Sumario Sobre tropas e comneras: apresentagio a edigéo brasileira de Writing Culture. Maria Claudia Coelho PreFECiO.ennnnnnnnnnnnn James Clifford e George F. Marcus Introdusio: Verdades parciais... James Clifford ‘Trabalho de campo em lugares comuns Mary Louise Pratt O dilema de Hermes: 0 disfarce da subversio na descrigio etnografica.. Vincent Crapanzano Da porta de sua tenda: 0 etnégrafo ¢ 0 inquisidor... Renato Rosaldo Sobre a alegoria etnogrifica James Clifford “A ernografia pés-moderna: do documento do oculto ‘#0 documento oculto mA, Tyler ‘eonceito de tradusio cultural na antropologia social britanica.. Aud 7 31 63 ao 125, 151 O conceito de traducio cultural na antropologia social britanica Talal Asad Introdugao Todos 0s antropélogos estio familiarizados com a famosa definigio de cultura de E. : “cultura ou civilizagio, em seu sentido etnogrifico amplo, é esse todo complexo que inclui conhecimento, crenca, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades ¢ hibitos adquiridos pelo ho- mem enquanto um membro da sociedade”. Seria interessante rastrear como quando essa nogio de cultura, com sua enumeragio das “capacidades ha- bitos” e sua énfase naquilo que Linton chamou de bereditaiedade social (Focan- do no processo de aprendizagem), foi transformada na nogio de um fexio ~ isto é, em algo parecido com um discurso inscrito. Uma pista Obvia para essa mudanga pode ser encontrada na forma como uma nogiio de dinguagem como a precondigio da continuidade histérica e da aprendizagem social (“cultivo”) veio a dominar a perspectiva dos antropélogos sociais. 5 claro que, de ma- neira geral, esse interesse pela linguagem é anterior a Tylor, mas, no século XIX e no inicio do século XX, tendia a ser central em algumas correntes da teoria literéria nacionalista e da educagao (cf. Eagleton, 1983, cap. 2), mais do que em outras ciéncias humanas. Quando ¢ de que forma esse interesse se tonou crucial para a antropologia social britinica? Nao pretendo tentar tracar essa historia aqui, mas apenas lembrar que a expressio “traducio de culturas”, que, cada vez mais, desde os anos 1950, tem se tornado uma des- crigo quase banal da tarefa especifica da antropologia social, nem sempre 208 A cxcria da cultura pottics politica da canograia esteve to em evidéncia. Quero enfatizar que essa mudanea aparente nio coincide de forma plena com a velha periodizagao pré-funcionalismo/fun- cionalismo, Nio se trata, também, meramente de um problema de interesse direto na linguagem e no significado que antes estaria ausente (Crick, 1976). Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da escola conhecida como fun- cionalista, escreveu muito sobre a “linguagem primitiva” e coletou enormes quantidades de material linguistico (provérbios, terminologia de parentesco, feiticos etc.) para andlise antropolégica. Mas ele nunca pensou em seu traba- Iho em termos de uma tradueao de culturas. O trabalho de Godfrey Lienhardt, “Modes of Thought” (1954), é, pos- sivelmente, um dos primeiros ~ certamente um dos mais sutis — exemplos do uso dessa nogio de tradugdo para descrever explicitamente uma tarcfa central da antropologia social © problema de descrever para outros © modo como membros de uma tri- bo distante pensam come: entio a se parecer muito com um problema de traducio, de wornar a coeréncia que © pensamento primitive tem na lingua fem que realmente vive to clara quanto possivel na nossa propria lingua (Lienhardt, 1954, p. 97). Essa afirmativa ¢ citada e criticada no artigo de analiso na proxi ner. Chamo, aqui, imnest Gellner que 1 Seco, e voltarei a ela no contexto do argumento de Gell- atencio rapidamente para o uso, por Lienhardt, da pala vra “traducio” para se referir no aos assuntos linguistics per se, mas a “mo- dos de pensamento” embutidos nesses assuntos. Talvez nao seja irrelevante, 4 propésito, que Lienhardt tenha formacio em literatura inglesa e tena sido, aluno de F. R. Leavis, em Cambridge, antes de se tornar aluno e colaborador de E, B, Evans-Pritchard, em Oxford. Oxford, evidentemente, é famosa como o centro antropolégico da Gri-Bretanha mais autoconsciente quanto 4 sua preocupacio com a “tradu- ‘do de culturas”, O mais conhecido livto didatico produzido naquele centro, Other cultures, de John Beattie (1964), enfatizava a centralidade do “problema da tradugio” para a antropologia social e distinguia (mas no separava) a “cultura” da “linguagem”, de uma forma que comecava a se tornar familiar para os antropélogos ~ embora nio necessariamente, por isso, totalmente clara (ver pp. 89-90). |V conceno ae trmaurae cumure: ne amerwponagpe meee wince wow i interessante ver Edmund Leach, que nunca esteve associado a Oxford, empregar a mesma nogio em sua conclusio de um retrato histérico da antropologia social escrito uma década mais tarde: Deixem-me recapitular. Comegamos enfatizando quio diferentes si0 “gs outros” — € 08 tornamos nao apenas diferentes, mas distantes ¢ in- {etiores. No plano sentimental, seguimos ento 0 caminho oposto e ale- ‘gamos que todos os seres humanos sio semelhantes; podemos entender 6 trobriandeses ou os Barotse porque suas motivagdes sto idénticas as nosss; mas isso também ao funcionow, “os outros” continuaram sendo, obstinadamente, outros. Mas agora nos demos conta de que 0 problema essencial é uma questio de tradugdo, Os linguistas nos mostra- tam que toda traducio € dificil, e que a traduedo perfeita em geral é im: possivel, Mas, mesmo assim, sabemos que, para objetivos praticos, uma traducio accitavelmente satisfardria € sempre possivel, mesmo quando 0 “texto” original é extremamente obscuro. As linguas sao diferentes, mas aio tio diferentes assim. Vistos por esse Angulo, os antropélogos sociais esto dedicados criagio de uma metodologia para a tradugio da lingua cultural (Leach, 1973, p. 772). [Até mestro Max Gluckman (1973, p. 905), em resposta, logo depois, a Leach, aceita a centralidade da “tradugio cultural”, embora proponha uma genealogia muito diferente para essa pritica antropolégica. ‘Ainda assim, apesar da concordincia getal com a qual essa nogio foi aceita como parte da autodefinigdo da antropologia social britinica, ela foi objeto de escasso exame sistemitico no seio da profissio, Uma excecio par- cial é Baie, language, and experience, de Rodney Needham (1972). Trata-se de uma obra complexa ¢ crudita que merece uma anilise atenta. Aqui, contudo, desejo me concentrar em um texto mais curto — “Concepts and Society”, de Ernest Gellner -, que parece set amplamente usado em cursos de graduagao nas universidades briténicas € ainda esta disponivel em algumas coletaneas muito conhecidas. A proxima seco é, assim, dedicada a um exame detalha- do desse ensaio, e, nas segdes seguintes, abordo alguns pontos que emergem. desse exame. Um texto tebrico ‘Concepts and Society”, de Gellner, é dedicado a anilise do modo como os antropélogos funcionalistas lidam com problemas de interpretagio € tradugio do discurso de sociedades estrangeiras. Seu argumento bisico € que (a) os antropélogos contemporineos insistem em interpretar conccitos € crencas exéticos em um contexto social, mas, (b) a0 fazé-lo, garantem que afirmages aparentemente absurdas ou incoerentes recebam sempre um sen- tido aceitivel, e que, (©) embora o método contextual de interpretagio seja vilido em principio, a “indulgéncia excessiva” que costuma acompanhé-lo nao o €. O trabalho contém varios diagramas, cujo propésito € organizar € esclarecer, de forma visual, os processos culturais relevantes Geliner apresenta o problema da interpretagio em referéncia ao Rell sion and economic action (1961), de Kurt Samuelsson, um ataque empreendido por um historiador da economia a tese weberiana da ética protestante, Sa- muelsson critica o fato de Weber e seus seguidores terem reinterpretado textos religiosos de uma forma que Ihes permite extrait significados que con- firmam a tese. Gellner apresenta este exemplo apenas para tornar mais nitida a posigio contrastante do antropélogo funcionalis Nio estou preocupado, acm apto, a discutir se, nesse caso especific, & vi- lido o emprego por Samuelsson de seu principio ticito de que nao se deve reinterpretar as afiemagies encontradas, © que interessa aqui € que, se esse principio for explicitado generalizado, ele tornaria absurda a maior parte 1ga € conduta, Encontea- dos estudos sociolégicos sobre a relagio entre ct remos antropélogos inclinados a utilizar 6 principio exatamente oposto, ain- sisténcia, ¢ nao a recusa, na reinterpretagio contextual (Gellner, 1970, p. 20). Mas essa afirmacio modesta de inaptido deixa a deriva um nimero excessivo de questées interessantes. Para comecar, nao € preciso ter maiores ‘competéncias para observar que Samuelsson nio defende o principio de que no se deve munca reinterpretar. Ele também nao insiste em que nio ha nunca uma conexdo significativa entre um texto religioso e seu contexto social; seu ponto é que a conclusio a que a tese de Weber pretende chegar nio pode set estabelecida. (Ver, por exemplo, Samuelsson, 1961, p. 69). Além disso, ha ‘um contraste real que Gellner pode ter captado entre o exemplo de Samuels- © comceito de waducto cultural na antropologia socal breinica 211 son ¢ as dificuldades tipicas do antropélogo. Para os historiadores da eco- nomia € os socidlogos envolvidos no debate weberiano, os textos histéricos sao um dado primario em relagio ao qual os contextos sociais precisam ser reconstruidos. O antropélogo pesquisador de campo parte de uma situagio social na qual algo é dito, ¢ é o significado cultural dessas enunciagdes que precisa ser reconstruido. Isso no quer dizer, evidentemente, que o historia- dor possa abordar seu material de arquivo sem alguma concepgio a respeito de seu contexto hist6tico, ou que o pesquisador de campo possa definir a situagio social independentemente daquilo que foi dito nela. © contraste Parece ser de orientagio, que decorre do fato de que 0 historiador recebe um texto, 20 passo que o etndgrafo precisa construir um texto. Em vez de investigar esse contraste tio relevante, Gellner se apressa a definir recomendar como método aquilo a que chama de “funcionalismo moderado”, o qual [.-] consiste em insistir no fato de que conccitos e crencas niio existem em es- tado de isolamento, em textos ou mentes individuais, mas na vida de homens « sociedades. As atividades e instituigdes, no contexto das quais uma palavra, 0 expressio, ou conjunto de expressées, é usada, precisam ser conhecidas antes que essa palnvra ou essas expressdes possam ser compreendidas, an. tes que possamos realmente falar de um concifo ou de uma erenpa (Gellner, op. cit, p 22), E uma boa formulacio ¢, mesmo que jé tenha sido enunciada antes, vale a pena reafirmé-la, O leitor talvez espere, agora, uma discussio sobre as. diversas formas como a linguagem é encontrada pelo etdgrafo no campo, sobre 0 modo como as elocugées si0 produzidas, os significados verbais organizados, os efeitos retéricos obtidos € as reagdes culturalmente apro- Priadas suscitadas.Afinal, Wittgenstein ja havia sensibilizado 0s fildsofos bri- tanicos para a complexidade da lingua em uso, ¢ J. L. Austin havia definido distingdes entre os diferentes niveis de produgio ¢ recepcio da fala de uma maneira que antecipava aquilo que os antropélogos mais tarde chamariam de etnografia da fala. Mas Gellner havia anteriormente rejeitado a sugestio de que esse movimento filoséfico tivesse qualquer coisa valiosa a ensinar (wer sua polémica em Words and things, 1959) e, como outros ctiticos, sempre insistiu que sua preocupacio com a compreensio da linguagem cotidiana era 212 Acer da cur: pti politica da ctnograi enas um sara a defesa de formas de falar sobre © mundo ja estabe- writ prs ng posse de ques fomas del ose gic ‘ou absurdas. Gellner sempre esteve decidido a manter a distingio entre de- fender c explicar “conceitos e crencas” ea prevenir contra o tipo de traducio antropol6gica que descarta, 2 prior, a distancia eritica necessiria para explicar como os coneeitos de fato funcionam, pois “entender 0 finonamento dos conceitos de uma sociedade”, escteve ele, “é entender suas instituigdes” (p. 18; ver também a nota 1, na mesma pigina) E por isso que a breve afirmativa de Gellner sobre o funcionalismo moderado, citada acima, 0 conduz imediatamente a uma discussio de Ay formas clementares da vida religca, de Durkheim, 0 qual, além de ser “uma das fontes originals do funcionalismo em geral” (p. 22) esti preocupado em explicar, mais do que em defender conceitos ~ explicar, mais exatamente, “a natureza coercitiva dos nossos conceitos e categorias” (p. 22) em termos de determinados processos coletivos. Assim: Nossas invocagdes contemporineas da abordagem funcional, voltada para 0 conceitos é, sob varios aspec- contexto social, do estudo eda interpretacio d 10s, muito diferente daquela de Durkheim. Durkheim nio estava tio preoct pado cm defender os conceitos das sociedacles primitivas: em seu ambiente, ‘les no precisavam de defesa, e, no ambiente das sociedades modernas € em mudanca, ele no tinha maiores anseios em defender o que era arcaico, ‘nem relutava em sugerir que determinada bagagem intelectual poderia muito ‘bem ser atcaica. Fle estava realmente preacupado em explicar a capacidade ca, nao parecia precisar de qualquer defesa (e, ieee soft de agra que ene reakendo o probed cnkeinents pee eee cee cs G cnn rnc wr ero econ cm n score NBO & ease decree fl bem sedi on 8: por desc, ‘me parece que nao foi (Gellner, op. cit, p. 23). F claro que Gellner compreendeu 0 projeto fundamental das Formas clmentars — a saber, sua tentativa de explicar a natureza coercitiva de conceitos socialmente definidos ~, mas ele passa, de maneira sacar io daquilo que esti em questio nesse problema apressada, de uma apreciacio daquilo que € para uma dispensa da tentativa de explicacio de Durkheim. A possibilidade © conceito de radugo cultural aa aneropologa sci bitnica 213 de que, a priari, uma densincia possa nao atender aos propésitos da explicacio melhor do que uma defésa nao parece estar i vista em “Concepts and Society”. Em vez disso, 0 leitor é lembrado, pot meio de uma citacio de Lienhardt, que 0 antropélogo contemporineo, em geral, “parece cleger como condic para uma boa traducio que ela expresse a coeréncia que ele assume poder ser encontrada no pensamento primitivo” (ibid., p. 26). Temos aqui, entio, o que acredito ser um contraste enganoso — a tentativa de Durkheim de explicar versus a tentativa do antropdlogo contemporineo de defender. Voltarei a esse ponto mais tarde, mas quero insistr que argumentar em favor de uma forma de coeréncia que dé coeso a um discurso nao ¢, ipso facto, justificar ou defender esse discurso; & apenas dar um passo essencial no problema de explicar sua capacidade cerita. Qualquer pessoa que esteja familiarizada com a psicanilise entender esse ponto, com facilidade. Podemos colocé-lo dle outra mancira: o crtério da “coeréneia” abstrata ou da “logica” (Gellner tende a usar esses ¢ outros termos de forma intercambivel) nio é sempre, € em qualquer caso, decisivo para a accitacio ou a rejei¢io do discurso. Isso se di porque, conforme o proprio Gellner observa, “a linguagem funciona de diversas manciras além de ‘referir-se a objetos” (ibid., p. 25). Nem toda clocugio é uma firmagao, Ha muitas coisas que a lingua em uso faz, ¢ pretende Fazer, que explica por que podemos reagir positivamente a um discurso que Datece inadequado de um ponto de vieta “ligico” cstrito. As Fangs de ust lingua particular, as intengdes de um discurso particular, sio, evidentemente, parte daquilo que todo etnégrafo competente tenta aprender antes de poder tentar uma tradugio adequada para sua propria lingua. Geliner parece de fato ter alguma consciéncia desse ponto, mas ra- pidamente o deixa de lado, em sua ansiedade de mostrar aos antropélogos funcionalistas sua “indulgéneia excessiva” na traducio cultural. A situagio diante de um antropélogo social que quer interpretar um concei {, afirmativa ou doutrina em uma cultura estrangeira é basicamente muito’ simples. Ele esti, digamos, diante de uma afirmativa J na lingua local. Tem sua disposicio 0 conjunto grande, ou infinito, de frases possiveis em sua propria lingua. [..] Ele talvez nio estejaimteiramente feliz com essa situagio, mas nio pode evi ti-la, Nio hi uma terceira lingua que possa fazer a mediagio entre a lingua rnativa € a sua propria, na qual se poderiam encontrar equivaléncias, € que 214 Aseria da cultura: poi plitin d emografa cevitaria as armadilhas provenientes do fato de que sua propria lingua tem seu proprio modo de lidar com o mundo, o qual pode nio ser 0 mesmo da lingua nativa estudada, ¢ que, consequentemente, pode distorcer 0 que est sendo traduzido, Tngenuamente, as pessoas as vezes pensam que a propria realidade poderia ser cesse tipo de mediador e de “terceita lingua”. [..] Por diversas razdes podero- sas, obviamente isso no serve (Gellner, op. cit. pp. 24-25). Mais uma vez, essa afirmativa razoavel pode parecer, a alguns leitores, apoiar a demanda de que 0 etnégrafo precisa tentar reconstruir as varias for~ mas pelas quais a “lingua nativa” lida com o mundo, expressa informacées € constitui a experiéncia, antes de traduzir um discurso estrangeiro na lingua do seu texto etnogrifico. Mas o relato de Gellner prossegue em uma dire¢io, diferente e bastante dibia. ‘Apés localizar uma frase equivalente em inglés, continua ele, 0 antro- pélogo percebe que ela inevitavelmente contém uma conotacio valorativa — que é em outras palavras, Boa ou Ruim. Nao digo ‘verdadeita’ ou “f alguns tipos de afirmativas. Em relagio aos outros, outzas dicotomias, tas como “dotada de sentido” ou “absurda", ov “sensata” ou “boba”, podem. ser mais adequadas. Uso, intencionalmente, “Boa” ¢ “Ruim” para cobrir to dla essas polaizagdes possiveis, qualquer que seja a que melhor se apica a0 equivalente de $ (Gellnes, op. cit, p.27)- pois isso 6 & uma questio em relagio a Nao estamos, aqui, diante de alguns pressupostos muito curiosos, que nenhum tradutor experiente adotaria? O primeiro é que a discriminagio ava- liativa é sempre uma questio de escolher entre alternativas polatizadas, ¢ © segundo, que distingdes avaliativas sio redutiveis, em ultima instincia, a “Boa” e “Ruim”, Evidentemente, nenhum desses pressupostos € aceitivel, se postulado como uma regra geral. E hi também a sugestio de que a tarefa do tradutor inclui, necessariamente, emparelhar frase com frase. Mas, se 0 tradutor experiente procura, primeito, algum principio de coeréncia no dis- curso a ser traduzido e, em seguida, tenta reproduzir essa coeréncia da ma- neira mais préxima possivel em sua propria lingua, no pode haver qualquer regra geral relativa a quais unidades o tradutor empregari — frases, pargrafos ‘Oreoneeko de waduto cleat na antropologi cel HARES ‘ou mesmo unidades de discurso mais amplas. Para deixar meu ponto malt claro: a adequario da unidade empregada dependera, ela mesma, 6. pio da coeréncia Mas a parabola de Gellner do antropélogo-tradutor exige posto de que sio frases que ele emparelha, porque isso torna mais trar como o pecado da indulgéncia excessiva se da. Tendo ‘equivaléncia inicial entre uma frase na lingua local ¢ uma frase na lingua, 0 antropdlogo percebe que a frase em inglés contém “Ruim”. Isso preocupa o antropélogo porque — e assim pros de Gellner — um relato etnogrifico que dé essa impressio pode rado como depteciativo dos nativos estudados, e depreciar uum sinal de etnocentrismo, € 0 etnocentrismo, por sua vez, € um ‘mé antropologia, de acordo com os dogmas da antropologia método funcionalista exige que as frases sejam sempre avaliadas. de seu préprio contexto social. Assim, 0 antropélogo pi preta a frase original, com um uso mais flexivel € cuidadoso contextual, de forma a produzir uma “Boa” traducio. pecado da indulgéncia excessiva, e 0 proprio método conceal tio ligados, de acordo com Gellner, 4 visio relativista-funcionalista do pen samento, que tem inicio no iluminismo: i dilema (io resolvido), enfrentado pelo pensamento do iluminisma, er entre uma visio relativista-funcionalista do pensamento, ¢ as reivindicagdes absolutstas da Razio iluminada. Enearando 0 homem como parte da ate reza, como exige a Razio iluminada, 0 iluminismo desejava encarar suas ate vidades cognitivas ¢ avaliativas também como partes da Natureza e, portant, ‘como legitimamente varidveis de organismo para organismo ¢ de contexto ara contexto, (Esta € a visio funcionalista-relativista.) Mas, aconselhando ‘40 mesmo tempo uma vida de acordo com a Razio e a Natureza, desejava, ‘no minimo, libertar essa mesma visio (¢, na pritica, algumas outras) desse telativismo (Gellne, op. ct, p. 31). A formulagio filoséfica de Gellner costuma apresentar esse “

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