Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

Uma História do Torcer no Presente:: Elitização, Racismo e Heterossexismo no Currículo de Masculinidade dos Torcedores de Futebol
Uma História do Torcer no Presente:: Elitização, Racismo e Heterossexismo no Currículo de Masculinidade dos Torcedores de Futebol
Uma História do Torcer no Presente:: Elitização, Racismo e Heterossexismo no Currículo de Masculinidade dos Torcedores de Futebol
Ebook418 pages5 hours

Uma História do Torcer no Presente:: Elitização, Racismo e Heterossexismo no Currículo de Masculinidade dos Torcedores de Futebol

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

É possível torcer de verdade pelo seu time de futebol sem insultar o adversário? Sem ofender a mãe dos outros? O que se faz no estádio potencializa atitudes que depois iremos repetir "lá fora", ou "alivia" a vontade de sermos violentos no cotidiano? Com o auxílio da noção teórica de pedagogias das masculinidades, e tomando o ritual das partidas como um currículo que produz de modo simultâneo torcedores e homens, este livro oferta elementos preciosos para pensar essas questões. A análise toma como lócus as novas arenas de futebol do país, e os regramentos que acompanharam a Copa de 2014, discutindo-as em sintonia com a lógica de "modernização" do futebol.
LanguagePortuguês
Release dateNov 9, 2020
ISBN9788547342371
Uma História do Torcer no Presente:: Elitização, Racismo e Heterossexismo no Currículo de Masculinidade dos Torcedores de Futebol

Related to Uma História do Torcer no Presente:

Related ebooks

Teaching Methods & Materials For You

View More

Related articles

Reviews for Uma História do Torcer no Presente:

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    Uma História do Torcer no Presente: - Gustavo Andrada Bandeira

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS:DIVERSIDADE DE GÊNERO, SEXUAL, ÉTNICO-RACIAL E INCLUSÃO SOCIAL

    Para Laion Espíndola (in memoriam)

    À Letícia, que me abriu todas as portas, por essa imensa loucura que é dividir uma vida que, como diria o poeta, é este rio de maravilhas e de dor.

    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, agradeço aos noventa e três torcedores do Grêmio que se dispuseram a dialogar comigo na Arena para me auxiliarem na produção do material empírico de minha tese, agora transformada em livro.

    À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que me acolheu como calouro da graduação em 2001 e depois me permitiu realizar os cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado, além de me dar a oportunidade de desempenhar minhas funções como técnico em assuntos educacionais que tanto me satisfazem. Agradeço a Pró-Reitoria de Pesquisa, por ter financiado algumas participações em eventos nacionais e internacionais por meio do Programa de Fomento à Pesquisa.

    À Escola de Administração da UFRGS, pelo sem número de aprendizagens profissionais e, especialmente, pela disponibilidade de me concederem a licença para meus dois últimos anos no doutorado. Agradeço ao conjunto de colegas, técnicos administrativos em educação, que precisaram fazer um esforço maior para que minha saída fosse possível.

    À Faculdade de Educação em que cheguei ainda como aluno da licenciatura em Matemática, perto de desistir do curso de graduação, e me acolheu de forma tão importante. Um agradecimento a todos os professores e todas as professoras de minha trajetória.

    Aos meus queridos colegas do curso de especialização em Jornalismo Esportivo, que me deram a oportunidade de participar de um grupo único dentro desse ambiente de tanta vaidade que é o acadêmico.

    A mis amigos del Seminario Permanente de Deportes: mi hermano Alejo por muchos encuentros por todos lados, a Neme por su energía y sus ganas de querer disfrutar de todo, al cuervo Hernán por los muchos momentos futboleros, mi querida amiga (casi brasileña) Julia y a todos los demás por permitiren acercarme. Un saludo especial a Verónica Moreira por todo. Es una alegría estar cerca. Ojalá pueda seguir disfrutando tu amistad, los momentos de trabajo y también los de ocio.

    Ao Arlei Damo (quase coautor do livro, de tanto que é citado), pelas disciplinas e os diferentes encontros em que sempre foste muito interessado pelas coisas que eu estava dizendo, o que me dava um misto de orgulho e responsabilidade. À Dagmar, por ter nos alfabetizado no trabalho acadêmico a partir da iniciação científica da Letícia. Além disso, foste a responsável por eu ter começado a estudar futebol. À Guacira, que além do carinho e do cuidado com que me orientou no mestrado (sim, eu ostento a orientadora!), ensinou-me, e muito, a ser uma pessoa melhor.

    Ao Fernando, que me acompanha de perto desde o início do mestrado e com quem construí uma parceria que espero duradoura! Muito obrigado por toda a disponibilidade e confiança.

    Aos Pedros, Rocha, pelos gols e Geromel, pela arrancada! Ao Luan, pela cavadinha! E, como de rivalidade infantil também se vive, aos amigos Argel, Falcão, Roth e Lisca!

    Ao meu pai, por ter me levado ao estádio Olímpico no longínquo ano de 1988, ao Gabriel, que é meu grande parceiro de estádio. E à minha mãe, por ser muito mais apaixonada pelos filhos do que a Geral canta que é pelo Grêmio.

    APRESENTAÇÃO

    Sou torcedor do Grêmio! Mais do que me marcar dentro da escolha por um específico clube de futebol, esse nome performatiza minha identidade. Ser torcedor de futebol de estádio marca o meu lugar no mundo. Ser torcedor dos estádios Olímpico Monumental e Arena do Grêmio me permitiu um sem número de aprendizagens de formas adequadas de colocar o corpo, de gritar, de cantar, de me emocionar... Ser torcedor do Grêmio foi certamente o principal conteúdo de meu currículo de masculinidade.

    Este livro origina-se de minha tese de doutoramento, intitulada Do Olímpico à Arena: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio. Na tese, pretendi discutir como o processo de elitização dos estádios de futebol, o chamado caso Aranha e certo retorno da Coligay atravessaram o currículo de masculinidade dos torcedores do Grêmio que frequentam estádio. Os estádios de futebol inserem os sujeitos torcedores em diferentes pedagogias culturais. A modernização dos espaços do torcer, que vem ganhando andamento no Brasil, especialmente, a partir da década de 1990, foi catalisada com a realização da Copa do Mundo no país, em 2014. Com isso, diferentes olhares foram colocados para os estádios, os torcedores e suas práticas. Normativas vindas da Fifa e de federações nacionais têm colocado em questão práticas historicamente autorizadas nos estádios de futebol.

    Para buscar observar como os torcedores do Grêmio foram interpelados por esses diferentes conteúdos ao realizarem um trânsito entre o estádio Olímpico Monumental e a Arena do Grêmio, realizei uma etnografia no novo estádio gremista, que me permitiu discutir como o sujeito coletivo ‘torcida do Grêmio’ recebeu esses diferentes movimentos. Além disso, observei alguns ditos individuais e de que maneira eles ressoaram ou não nesse espaço. Por fim, produzi um terceiro material por meio de diálogos com pequenos grupos de torcedores, que me permitiram perguntar mais diretamente como esses indivíduos percebiam a elitização dos estádios, a interdição de cânticos e eventuais episódios de racismo e homofobia.

    O material apresentado neste livro dialoga com um vasto conjunto de trabalhos na área das Ciências Humanas e Sociais, que problematizam diferentes aspectos do futebol como prática de lazer e esportiva, especialmente a partir da realização dos megaeventos esportivos no Brasil, Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016. Ao mesmo tempo, inova ao analisar esses fenômenos a partir de categorias do campo da Educação, no viés dos Estudos Culturais, dos estudos de gênero e da sexualidade e numa perspectiva feminista e pós-estruturalista.

    É possível apontar que os torcedores entendem-se em trânsito e percebem certa diferença nas formas adequadas de ocuparem o novo estádio, sendo necessário algum tipo de adaptação. O processo de elitização acaba produzindo certa dicotomia entre o torcedor, representado como autêntico e popular, e o consumidor, que seria alguém estranho ao estádio. A esse consumidor, podem se somar outras alteridades do torcedor que poderiam incluir mulheres, crianças e homens mais velhos. Na Arena, é possível visualizar uma relação em tensionamento entre o torcedor e a torcida. Ora as ações do torcedor são narradas a partir da pertença ao coletivo, ora o sujeito pode ser individualizado e a coletividade se esvazia. Ainda é muito cedo para saber o que acontecerá com esse currículo de masculinidade dos torcedores de estádio a partir da desnaturalização de algumas práticas. Agora, mais do que antes, há um jogo a ser jogado sobre as construções das masculinidades torcedoras nos estádios de futebol.

    O autor

    PREFÁCIO

    NÃO ESTÁ FÁCIL SER TORCEDOR E SER HOMEM NO BRASIL DE HOJE!

    Há em tudo e por toda parte pedagogias em ação! Nos modos de ser, nos artefatos culturais, nos produtos da mídia, nas instruções escolares, nas regras de trânsito, nos espaços públicos ou privados, na bula de remédios, na organização da fila do banco. Não é diferente nos estádios de futebol. Há ali em ação uma pedagogia que se encarrega de produzir simultaneamente homens e torcedores e agencia modos de ser homem e modos de ser torcedor em estreita sintonia. Quando afirmo que há uma pedagogia em ação nos estádios de futebol me refiro a um conjunto visível ou pouco visível de ordenações, regras, valorações sociais, códigos culturais, práticas corporais, moralidades, juízos de valor, orientações escritas, leis, custo de ingressos e setores do estádio, mensagens em painéis luminosos, gritos de torcidas, admissão ou não de bebidas dentro do estádio, locais de concentração antes do jogo, permissão ou não do ingresso com material usado para torcer pelo seu time, faixas, letreiros, policiamento, propagandas de todo tipo de produto em conexão com o futebol, notícias de jornal e comentários jornalísticos sobre os jogos etc., e que efetivamente ensinam as pessoas a se portar na relação com o futebol e com aquele espaço. É produtivo pensar esse cenário com a ajuda de categorias do campo da Educação. Essa é uma das apostas deste livro.

    Esse diversificado conjunto de elementos pode ser analisado como uma pedagogia cultural, atuando no sentido de produzir, nos estádios de futebol, de modo simultâneo e coordenado, homens e torcedores. Em outras palavras, produção de um conjunto de atributos de masculinidade, e de um conjunto de marcas do que é ser um bom torcedor. Essa pedagogia move-se em uma direção precisa, um propósito específico. Quanto mais sou um torcedor fanático por futebol, mais sou homem, mais sou masculino, mais tenho virilidade. E quanto mais sou homem e viril, no caso brasileiro, mais será bem-vindo algum apoio do pertencimento futebolístico – jogar uma pelada com os amigos toda semana, ser claramente identificado como torcedor de certo time, ter em sua carreira desportiva algumas cenas interessantes para contar de ótimos desempenhos em partidas, de preferência ter sido o responsável por grande número de gols contra times adversários, e terem sido gols fruto de lances engenhosos e acrobáticos. Se a partida tiver sido jogada com forte torcida contrária, brigas ao final, e você tiver marcado os gols da vitória de seu time, certamente haverá um acréscimo de virilidade evidente! Claro está que podemos apresentar exceções à regra – há homens que torcem e são delicados, e há homens muito viris que não se envolvem em futebol. Mas não há como deixar de perceber esse mecanismo geral de produção de identidades masculinas, vinculando o mundo do futebol com o mundo da virilidade. Entre outras coisas, o que neste livro se pretende demonstrar é a produtividade das categorias pedagogias das masculinidades e currículo para dar conta de entender o complexo jogo de produção de comportamentos e identidades de homens em estádios.

    Este livro é fruto de pesquisa que utilizou então duas categorias teóricas do campo da Educação – pedagogias das masculinidades e currículo – para buscar entender o complexo jogo de aprendizagens de ser torcedor e ser homem em um contexto histórico marcado por três grandes reviravoltas no cenário futebolístico nacional e internacional: a inauguração de novos espaços para os jogos – chamados de arenas, em oposição à antiga designação de estádios; a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil – que colocou o país, nosso futebol e os torcedores brasileiros sob o escrutínio da opinião mundial; e um conjunto de normativas vindas da Fifa (Federação Internacional de Futebol), que impactou práticas e modos de ser que historicamente estavam autorizadas nos estádios de futebol – e que trouxe para o centro do debate acusações de racismo, homofobia, machismo, discriminação por origem regional ou de classe. Vale dizer que as exigências da Fifa para que o país sediasse a Copa do Mundo – definidas no Caderno de Encargos Fifa 2014 – alimentaram um bordão popular de grande impacto no país. A expressão padrão Fifa, amplamente aplicada quando se reivindicava melhorias materiais – ruas asfaltadas, melhores escolas, postos de saúde adequados, unidades de segurança pública, limpeza de praças e parques – foi em contrapartida muito pouco utilizada para pensar relações sociais e interpessoais marcadas pela não discriminação, pela inclusão, pela acolhida respeitosa das diferenças, pelo diálogo ao invés da hostilidade.

    Nesse movimentado terreno de disputas, coloca-se no livro a questão: é possível torcer de verdade e ser ao mesmo tempo correto do ponto de vista dos preconceitos e das discriminações contra outros? Dito de outro modo, é possível torcer de modo educado se arriscando talvez a ser menos homem? Questões difíceis, e para as quais o livro explora direções, evitando respostas definitivas e simplistas. O trabalho de campo da pesquisa que deu origem a este livro permitiu conhecer os impasses e percepções de torcedores, dirigentes e jornalistas, focando em um time específico, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, na conjuntura dos últimos anos, em que as partidas já eram disputadas na chamada Arena do Grêmio, inaugurada em 2012. O autor se beneficia também de pesquisa anterior, alguns anos atrás, debruçada sobre torcidas de futebol e masculinidades, e realizada com observação e entrevistas no antigo estádio do Grêmio, o Estádio Olímpico Monumental.

    É instigante perceber que já se vislumbram processos em andamento a produzir novas formas de torcer, em sintonia com o abandono dos tradicionais gritos homofóbicos, racistas e machistas, mas isso em meio a fortes tensões, dúvidas, ansiedades, culto ao passado e às tradições do que é torcer com emoção verdadeira pelo seu time. Torcer tem que ser algo feito com o coração, não apenas com a razão. Não é uma encenação vazia, tem que ter alma. Vale lembrar que na língua portuguesa torcer, no sentido que nos interessa aqui que é aquele vinculado a noção de apoiar, é verbo transitivo indireto, exige um objeto indireto para completar seu sentido. Esse objeto indireto complementa o verbo, indicando claramente para quem ou por quem eu torço. Posso dizer fulano adormeceu. Adormecer é verbo intransitivo, não necessita de complemento. Mais ainda, posso dizer apenas chove. Apenas o verbo já deixa tudo claro. Mas não tenho como dizer simplesmente torço. Preciso definir a favor de quem estou torcendo. Ao fazer isso, estabeleço uma preferência, torço pelo time tal. E numa partida de futebol se torço pelo time tal, sou necessariamente contra o time adversário. Posso torcer sem levantar dúvidas sobre a virilidade dos jogadores do outro time? Posso torcer sem aproveitar alguns marcadores sociais da diferença – a cor da pele dos outros, a classe social dos adversários, a origem regional do time contra o qual estamos jogando, eventuais marcas corporais de tal ou qual jogador – para injuriar os oponentes? São formas de violência ou são simples brincadeiras? Difíceis respostas, questões estimulantes. Vale seguir na leitura do livro.

    Prof. Dr. Fernando Seffner

    Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, coordenador do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (Geerge).

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Sumário

    1 TORCEDORES EM TRÂNSITO: DO ESTÁDIO OLÍMPICO À ARENA DO GRÊMIO 19

    2 ENTENDIMENTOS SOBRE A TRANSIÇÃO 39

    2.1 COMO OS JORNALISTAS NARRARAM A INAUGURAÇÃO DA ARENA 39

    2.2 COMO OS TORCEDORES INTERPRETAM A MUDANÇA DE ESTÁDIO 44

    3 PERSPECTIVAS, CONCEITOS E CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO 61

    3.1 CONCEITOS CHAVES: GÊNERO, HETERONORMATIVIDADE, LINGUAGEM E RACIALIZAÇÃO 65

    3.2 ANÁLISE CULTURAL, ETNOGRAFIA E ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO 78

    3.3 ESPORTES E CURRÍCULOS DE MASCULINIDADES NOS ESTÁDIOS DE FUTEBOL 96

    4 O TORCER EM QUESTÃO: TENSIONAMENTOS ENTRE O LEGÍTIMO E O ILEGÍTIMO NOS ESTÁDIOS DE FUTEBOL 125

    4.1 O ‘CASO ARANHA’, A INTERDIÇÃO DE MANIFESTAÇÕES VERBAIS NA ARENA DO GRÊMIO E A RIVALIDADE GRE-NAL 163

    4.2 O ‘RETORNO’ DA COLIGAY E SUA PRESENÇA NA MEMÓRIA DOS TORCEDORES DO GRÊMIO 213

    5 DO OLÍMPICO À ARENA: ELITIZAÇÃO, RACISMO E HETEROSSEXISMO NO CURRÍCULO DE MASCULINIDADE DOS TORCEDORES DE ESTÁDIO 239

    5.1 TORCEDORES EM TRÂNSITO, ELITIZAÇÃO E A RELAÇÃO TORCEDOR E TORCIDA 242

    5.2 UM ENFRENTAMENTO ENTRE NÓS, TORCEDORES DE FUTEBOL, E ELES, OS DE FORA 245

    5.3 COMO O ‘CASO ARANHA’ E CERTO RETORNO DA COLIGAY ATRAVESSARAM O CURRÍCULO DE MASCULINIDADE DOS TORCEDORES DO GRÊMIO 248

    6 POSFÁCIO: O JOGO EM ANDAMENTO 257

    REFERÊNCIAS 269

    1

    TORCEDORES EM TRÂNSITO: DO ESTÁDIO OLÍMPICO À ARENA DO GRÊMIO

    Poucas coisas foram tão esperadas em meus, então, vinte e cinco anos de estádio de futebol como aquele Gre-Nal de 2 de dezembro de 2012. Como sempre, era um Gre-Nal, o que por si só já seria motivo suficiente para o aumento da ansiedade, e, além disso, valia o vice-campeonato brasileiro para o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense¹, o que lhe daria uma pequena vantagem na disputa da Libertadores de 2013. Mas, a espera por aquele domingo não se justificava pelo adversário, pela posição na tabela e, nem mesmo, pelo excelente meio de campo com Fernando, Souza, Elano e Zé Roberto. Era a despedida do estádio Olímpico Monumental. Aquele Gre-Nal marcaria a última partida oficial do estádio Olímpico² e esse era o motivo de tamanha ansiedade.

    Em 2012, o Grêmio realizou diversas ações de marketing relacionadas à despedida de seu estádio. No aniversário do clube, um ‘abraço’³ ao Olímpico mobilizou mais de dez mil torcedores que realizaram ao menos oito voltas ao redor do estádio. Um dia antes do Gre-Nal, fui um entre os dez mil torcedores que participaram da Corrida Monumental. Após percorrerem distintas distâncias ao redor do estádio, os torcedores concluíram a prova com uma volta ao redor do gramado principal, dentro do Olímpico.

    Como sempre, desde 1997, fui ao estádio com a minha mãe e o meu irmão. Provavelmente, a companhia era a única coisa que poderia ser considerada ‘cotidiana’ em minhas vivências no estádio Olímpico. Pela primeira vez, cheguei ao estádio antes de o portão abrir. A sensação era de que a última vez precisaria ser ampliada em todos os minutos possíveis. Subi pelo portão 2 até o espaço dos sócios locatários de cadeira. Resolvi caminhar um pouco pelo estádio. Fui de um lado a outro do setor localizado no anel superior. Era uma caminhada de despedida com o olhar perdido procurando fotografar em minha memória diferentes pontos de vista daquela grandiosa edificação.

    O Gre-Nal, em si, foi um jogo nervoso. As duas equipes, com três volantes marcadores cada, estavam mais preocupadas em não perder o jogo histórico de despedida do estádio Olímpico do que em vencer a partida. O Sport Club Internacional⁴, que acumulava uma sequência de quatro derrotas consecutivas, as duas últimas em seu estádio, conseguiu resistir à pressão gremista, que, no segundo tempo, trocou um de seus volantes por um atacante. O Grêmio acabou perdendo o vice-campeonato após o empate sem gols. Após a partida, caí em um choro infantil, exagerado, quase como o de alguém que perde um ente querido. O jogo encerrou pouco antes das 19 horas, mas só saímos do estádio quarenta e cinco minutos após o final da partida. Esse ‘terceiro tempo’ serviu para a torcida cantar, chorar e fazer uma última avalanche⁵, dessa vez a maior de todas, incluindo a totalidade do anel inferior. Para mim, foi a possibilidade de ficar um pouco mais nesse lugar que atravessou, de forma muito significativa, minha constituição como sujeito generificado. Local que visitei pela primeira vez em 1988 e onde aprendi que os palavrões, que não deveriam ser ditos em outros espaços, estavam ali autorizados. Ali, também, aprendi que não devemos abandonar o time na segunda divisão ou nas derrotas esmagadoras, incluindo Gre-Nais. Aprendi, também, que as glórias e conquistas são efêmeras e poucas vezes resistem à próxima rodada, ou, em casos de títulos, ao próximo campeonato.

    Era e foi uma dupla despedida. Despedi-me do estádio Olímpico e, em alguma medida, de um modo específico de torcer. Naquele momento, acreditava com muita força que, ao transitar para a nova casa do Grêmio, um novo torcedor precisaria ser pedagogizado...

    ***

    As emoções no futebol não estão associadas exclusivamente aos acontecimentos esportivos demarcados pelas quatro linhas do campo de jogo. Os jogos acontecem entre jogadores que representam clubes, e estes, estão associados a uma determinada comunidade de sentimentos⁶. O calendário das competições acaba por dar significado aos confrontos. Mesmo quando inseridos em competições diferentes, a ocorrência de partidas em sequência ensina, desde muito cedo, que os eventos precisam ser repetidos. Os sucessos e os fracassos são efêmeros. Uma nova partida estará marcada para dali há pouco tempo, o que poderá arruinar a sensação prazerosa de uma vitória empolgante, mas poderá, também, redimir uma derrota acachapante. Essa constância de eventos acaba naturalizando os confrontos e exigindo a necessidade de reafirmação do lugar de vencedores e vencidos, que não poderá ser definitivamente conquistado.

    Seis dias depois de chorar como criança por me despedir do estádio Olímpico, já estava envolvido na inauguração da Arena do Grêmio. Da mesma forma em que a expectativa pela despedida do Olímpico tocou profundamente os gremistas, a inauguração de nosso novo estádio também nos mobilizou contundentemente. Era necessário aprender rapidamente como fazer para participar desse momento histórico.

    Ainda antes do dia 8 de dezembro, precisei comprar meu ingresso, atividade que não estava acostumado a realizar no Olímpico, pois minha modalidade de sócio permitia o acesso aos jogos no antigo estádio em contrapartida ao pagamento de uma mensalidade, sem a necessidade de comprar uma entrada avulsa. Dessa vez, além da mensalidade, precisei pagar por meu ingresso. Durante a compra, aproveitei a oportunidade para comprar uma vaga de estacionamento. Ao Olímpico, no bairro Azenha, eu ia a pé. À Arena, no bairro Humaitá, precisaria ir de automóvel. Comprei três ingressos, novamente para mim, minha mãe e meu irmão.

    Aquele sábado era um dia especial. Familiares vieram do Rio de Janeiro para acompanhar a inauguração, que prometia shows pirotécnicos, uma apresentação dos artistas do Blue Man Group e, para finalizar, a partida de estreia da nova casa tricolor contra os alemães do Hamburger Sport-Verein⁷, o mesmo adversário da final do torneio Intercontinental vencido pelo Grêmio em 1983.

    A festa estava marcada para as 20h e o jogo previsto para as 22h30. Saí de casa às 18h para buscar meus acompanhantes corriqueiros e um casal de amigos a quem dei carona. O caminho foi longo, não tanto pela distância, mas pelo trânsito intenso, muito maior do que aquela região da cidade estava acostumada a comportar. Conseguimos entrar no estádio com certa facilidade às 19h30, ao contrário de outras pessoas que chegaram mais cedo e ficaram aproximadamente duas horas nas filas aguardando para ingressar no estádio.

    Subi um tanto contrariado as escadas que davam acesso aos nossos lugares, uma vez que era visível que a obra não estava concluída e o número de degraus parecia infinito. Acessei o local e fiquei boquiaberto com a magnitude do empreendimento. Aquilo tudo era muito diferente do que eu conhecia. As pessoas tentavam fazer analogia com estádios europeus. Como nunca fui ao Velho Continente, não conhecia a pertinência da comparação. A única comparação que tinha capacidade de fazer era com o velho Olímpico. Nesse caso, sim, as diferenças eram imensas.

    Meu início foi um pouco tortuoso, ao menos para alguém tão familiarizado com a ‘casa do Grêmio’. Não sabia como acessar adequadamente o portão que me levaria aos assentos adquiridos semanas antes, e, mesmo depois de tentarmos realizar essa localização, acabamos errando os nossos assentos. Fiquei um pouco impaciente com o excesso de flashes disparados a todo o momento. Parti do pressuposto de que aquele era o novo estádio do Grêmio e, como eu já era muito íntimo do antigo, o comportamento dos ‘turistas’ me deixou incomodado. Ao contrário da ampla maioria das pessoas, eu estava ali para ver o jogo. Nunca me sensibilizei muito por essas festas no estádio para além da emoção da partida.

    Após a festa e todos os protocolos, finalmente o Grêmio entrou em campo para enfrentar o Hamburgo. Saímos vencendo no início, com um gol de André Lima, um folclórico atacante muito mais destacado por suas comemorações e entrevistas do que por seus atributos técnicos. Aos poucos, o time alemão, que havia jogado no dia anterior e encarado um deslocamento oceânico, começou a tomar conta da partida, mostrando um posicionamento mais acertado, o que facilitava a troca de passes. Os alemães empataram no segundo tempo. Mas, ao final da partida, para concluir com êxito o drama da estreia, o Grêmio chegou à vitória com um gol de Marcelo Moreno, repetindo o placar da conquista Intercontinental. No momento do gol, porém, boa parte do público já não estava mais no estádio, um tanto preocupada em como acessar melhor as formas de saída daquele ambiente todo novo.

    Era tudo tão diferente que não parecia possível pensar que meu processo de construção generificada aconteceria naquele ambiente da mesma forma como ele ocorreu no estádio Olímpico. Esse deslocamento temporal e geográfico e a mudança de estádio são o cenário deste livro. Procurarei descrever e problematizar de que forma essa mudança, além de outros atravessamentos culturais impactaram o currículo de masculinidades dos torcedores de futebol de estádio.

    ***

    O estádio Olímpico possuía dois anéis. O superior era quase todo composto por cadeiras com encosto, com exceção da área destinada aos torcedores adversários (que não possuía encosto), e era dividido entre os sócios-locatários de cadeira (para esse espaço também se vendiam ingressos de cadeira especial), as cadeiras laterais, que ficavam atrás dos gols (uma delas era destinada a torcida adversária), e, em frente as cadeiras dos sócios, ficavam as cadeiras centrais (mesmo ângulo em que a televisão fazia a transmissão das partidas). Os ingressos desse setor eram os de preço mais elevado. O anel inferior era dividido em apenas duas partes, as sociais e as arquibancadas. Duas avenidas passavam ao lado do Estádio Olímpico, ‘atrás’ dos gols. São elas a Dr. Carlos Barbosa e a Cel. Gastão Haslocher Mazeron, chamada popularmente de Cascatinha. Foi na goleira da Carlos Barbosa que o jogador Aílton fez o gol do segundo título do Campeonato Brasileiro, conquistado pelo Grêmio, em 1996. E foi na goleira da Cascatinha que o argentino Riquelme, infelizmente, fez os gols do Boca Juniors na final da Libertadores da América de 2007.

    IMAGEM 1 – ESTÁDIO OLÍMPICO

    FONTE: arquivo pessoal do autor.

    IMAGEM 2 – ESTÁDIO OLÍMPICO

    FONTE: arquivo pessoal do autor.

    A Arena, por sua vez, conta com quatro andares (ou anéis). Apenas na Arquibancada Norte não existem cadeiras. Esse é o setor originalmente destinado para que os torcedores realizassem a avalanche, além de assistirem às partidas em pé.

    O mais importante a registrar no caso do Grêmio é o duelo entre tradição e modernidade, entre liberdade e controle, entre coletivo e individual no debate sobre o estádio. Sua torcida, reconhecida internacionalmente pela postura atuante, reivindicou a permanência da geral, setor popular em que tradicionalmente se realiza a famosa avalanche a cada gol de sua equipe. Após hesitar, o clube atendeu e destinou no projeto um pequeno espaço para essa coreografia espetacular. Um acidente, embora sem mortes, ocorrido um mês após a inauguração do estádio, foi suficiente para recolocar o tema em debate, com forte argumentação a favor da ordem e contra a selvageria da perigosa e anacrônica atitude inscrita na avalanche. Por fim, vale frisar que a própria existência de um setor planejado e destinado a uma coreografia coletiva já porta em si a natureza autoritária de estabelecer precisamente onde e o que será realizado pelos torcedores rebeldes. [...]. A avalanche, que é um fenômeno histórico recente (menos de dez anos), torna-se, então, naturalizada e, ao mesmo tempo, domesticada pelos gestores do estádio.

    Se no Olímpico os sócios ficavam restritos aos espaços das sociais e dos locatários de cadeiras, na Arena, eles podem ocupar todos os setores do estádio, dependendo de sua modalidade associativa. Ao contrário da divisão em seis espaços que existia no estádio Olímpico, na Arena se comercializam doze espaços diferentes para os torcedores: Arquibancada Norte, na qual os ingressos são mais baratos; Cadeira Gramado (Sul; Oeste/Corners Oeste; Leste/Corners Leste), localizados no primeiro anel do estádio; Cadeira Gold (Oeste/Corners Oeste; Sul; Leste/Corners Leste), localizadas no segundo anel e com os ingressos de valores mais elevados excetuando-se os Camarotes; Cadeira Superior (Norte/Sul; Leste/Corners Leste; Oeste/Corners Oeste), com os ingressos

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1