Você está na página 1de 10

O Culto do Amador de Andrew Keen

traduzido por Riverson em 20/nov/2011


Introdução
Se eu não fosse bem informado, pensaria que estamos de novo em 1999. O boom
retornou ao Vale do Silício, e os utopistas ensandecidos estão extrapolando de novo.
Topei com um desses evangelizadores recentemente numa festa em São Francisco.
Acabamos tendo uma rápida conversa enquanto bebíamos um chardonnay da
região. Ele me disse que naquele momento seu trabalho envolvia um novo software
para a publicação de música, texto e vídeo na Internet.
“É uma mistura de MySpace, YouTube, Wikipédia e Google”, disse. “Com anabolizantes”. Em
resposta, expliquei que estava trabalhando numa polêmica sobre o impacto destrutivo da revolução
digital em nossa cultura, economia e valores. “É uma mistura de ignorância com egoísmo, mau
gosto e ditadura das massas”, disse eu, incapaz de conter um sorriso. “Com anabolizantes.” Ele deu
um sorriso constrangido em troca. “Então é um encontro de Huxley com a era digital”, disse. “Você
está reescrevendo Huxley para o século XXI.” Ergueu seu copo de vinho em minha homenagem. “Ao
Admirável mundo novo 2.0!”
Nossos copos se tocaram. Mas eu sabia que estávamos brindando ao Huxley errado. A inspiração
por trás deste livro não vem de Aldous, mas de seu avô, T.H. Huxley, o biólogo evolucionista do
século XIX e autor do “teorema do macaco ininito”. Segundo a teoria de Huxley, se fornecermos
a um número ininito de macacos um número ininito de máquinas de escrever, em algum lugar
alguns macacos acabarão criando uma obra-prima — uma peça de Shakespeare, um diálogo de
Platão ou um tratado econômico de Adam Smith.
Na era pré-Internet, o cenário de T.H. Huxley de um número ininito de macacos munidos de
tecnologia ininita assemelhava-se mais a uma brincadeira matemática do que a uma visão distópica.
Mas o que outrora parecia uma piada agora parece predizer as consequências de um achatamento
da cultura que está embaçando as fronteiras entre público e autor, criador e consumidor,
especialista e amador no sentido tradicional. Isso não tem graça nenhuma.
A tecnologia de hoje vincula todos aqueles macacos a todas aquelas máquinas de escrever. Com a
diferença de que em nosso mundo Web 2.0 as máquinas de escrever não são mais máquinas de
escrever, e sim computadores pessoais conectados em rede, e os macacos não são exatamente
macacos, mas usuários da Internet. E em vez de criarem obras-primas, esses milhões e milhões de
macacos exuberantes – muitos sem mais talento nas artes criativas que nossos primos primatas –
estão criando uma interminável loresta de mediocridade. Pois os macacos amadores de hoje
podem usar computadores conectados em rede para publicar qualquer coisa, de comentários
políticos mal informados a vídeos caseiros de mau gosto, passando por música embaraçosamente mal-
acabada e poemas, críticas, ensaios e romances ilegíveis.
No cerne desse experimento de autopublicação por uma ininidade de macacos está o diário na
Internet, o onipresente blog. Blogar tornou-se uma tal mania que um novo blog é criado a cada
segundo de cada minuto de cada hora de cada dia. Estamos blogando com um despudor simiesco
sobre nossas vidas privadas, nossas vidas sexuais, nossas vidas oníricas, nossa falta de vida, nossas
Second Lifes. Neste momento, há 53 milhões de blogs na Internet. O número dobra a cada seis
meses. Enquanto você leu este parágrafo, dez novos blogs foram criados.
Se mantivermos o ritmo, haverá mais de 500 mi de blogs em 2010, corrompendo e confundindo
coletivamente a opinião popular sobre todas as coisas, da política ao comércio, das artes e à cultura.
Os blogs tornaram-se tão vertiginosamente ininitos que solaparam nosso senso do que é verdadeiro
e do que é falso, do que é real e do que é imaginário. Hoje em dia, as crianças não sabem distinguir
entre notícias críveis escritas por jornalistas proissionais objetivos e o que leem em
fulano.blogspot.com. Para os utopistas da Geração Y, toda postagem é a versão da verdade de mais
uma pessoa; toda icção é a versão dos fatos de mais uma pessoa.
Além disso há a Wikipédia, uma enciclopédia online em que qualquer um com polegar opositor e
cinco anos de escola pode publicar o que quiser sobre qualquer tópico, de AC/DC a zoroastrismo.
Desde o nascimento da Wikipédia, mais de 15 mil colaboradores criaram quase três milhões de
verbetes, em mais de uma centena de línguas diferentes — nenhum deles editado ou atentamente
examinado quanto à sua exatidão. Com centenas de milhares de visitantes por dia, a Wikipédia
tornou-se o terceiro site mais visitado em busca de informação e eventos hoje. Uma fonte de notícias
com mais crédito que os websites da CNN ou da BBC, embora a Wikipédia não tenha nenhum
repórter, nenhuma equipe editorial e nenhuma experiência na coleta de notícias. É o cego guiando
o cego — ininitos macacos fornecendo informação ininita para ininitos leitores, perpetuando o
ciclo de desinformação e ignorância.

1/10
Na Wikipédia, qualquer pessoa que tenha um motivo pode reescrever um verbete como bem
entenda – e os colaboradores frequentemente o fazem. A Forbes relatou recentemente, por exemplo,
o caso de empregados anônimos do McDonald’s e do Wal-Mart que usaram furtivamente verbetes da
Wikipédia para difundir propaganda corporativa de maneira enganosa. No verbete McDonald’s, um
link para o documentário de 2001 Fast Food Nation, de Eric Schlosser, desapareceu conveniente-
mente; no verbete WalMart, alguém eliminou a menção a empregados mal pagos, que ganhavam
20% a menos que os da concorrência.
Mas o experimento dos macacos ininitos na Internet não se limita à palavra escrita. A máquina
de escrever do século XIX de T.H. Huxley evoluiu, para transformar-se não só no computador, mas
também na ilmadora, convertendo a Internet numa vasta biblioteca de vídeos gerados pelos usuá-
rios. O YouTube, por exemplo, é um portal para vídeos amadores que, enquanto escrevo, é o site que
cresce mais rapidamente no mundo, atraindo 65 mil novos vídeos a cada dia e gabando-se de que 60
mi de vídeos são vistos diariamente; isso corresponde a mais de 25 mi de vídeos por ano e cerca de
25 bi de hits. Em 2006, essa súbita sensação foi comprada pelo Google por mais de US$ 1,5 bi.
O YouTube eclipsa até os blogs na vacuidade e no absurdo de seu conteúdo. Nada parece prosai-
co demais, ou narcísico demais, para esses macacos cineastas O site é uma galeria ininita de
ilmes amadores mostrando pobres idiotas dançando, cantando, comendo, lavando-se, comprando,
dirigindo, limpando, dormindo ou simplesmente olhando para seus computadores. Em agosto de
2006, um vídeo imensamente apreciado chamado Easter Bunny Hates You (O coelho da Páscoa te
odeia) mostrava um homem vestido de coelho importunando e agredindo pessoas na rua; segundo a
revista Forbes, foi visto mais de 3 mi de vezes em duas semanas. Alguns outros vídeos favoritos
incluem uma moça observando outra usuária do YouTube que está observando uma terceira usuária
— uma galeria de espelhos virtuais que conduz inalmente a uma mulher ocupada em fazer um
sanduíche de manteiga de amendoim com geleia na frente da televisão; uma dançarina malaia com
uma saia absurdamente curta curtindo Ricky Martin e Britney Spears; um cachorro perseguindo a
própria cauda; uma inglesa instruindo os espectadores sobre como comer um biscoito de chocolate;
e, numa contribuição extremamente apropriada, um vídeo de macacos empalhados dançando.
Mais perturbador que o fato de milhões de nós sintonizarmos de bom grado esse tipo de tolice
diariamente é que alguns sites estão nos transformando em macacos sem sequer nos darmos conta.
Quando digitamos palavras no Google, estamos de fato criando algo chamado “inteligência coleti-
va”, a sabedoria total de todos os usuários do Google. A lógica do mecanismo de busca, que os
tecnólogos chamam de algoritmo, relete a “sabedoria” das massas. Em outras palavras, quanto
mais pessoas clicam num link resultante de uma busca, mais provável esse link aparecer em buscas
subsequentes. O mecanismo de busca é uma união dos 90 mi de perguntas que fazemos coletiva -
mente ao Google todo dia; em outras palavras, ele só nos diz o que já sabemos.
A mesma “sabedoria” das massas se manifesta em sites não editados de agregação de notícias
como Digg e Reddit. A ordenação dos títulos nesses sites relete o que outros usuários estiveram
lendo, não o julgamento especializado de editores de notícias. Enquanto escrevo, há uma guerra
brutal no Líbano entre Israel e o Hezbollah. Mas o usuário de Reddit não sabe disso, porque não há
nada sobre o assunto entre as 20 matérias mais “quentes”. Em vez disso, os assinantes podem ler
sobre uma atriz inglesa sem seios, os hábitos de caminhar dos elefantes, uma paródia do último
comercial do Mac e túneis subterrâneos no Japão. O Reddit é um espelho de nossos interesses mais
banais. Faz um arremedo da mídia noticiosa tradicional e transforma eventos em curso num jogo
infantil de Trivial Pursuit.
O The New York Times noticia que 50% de todos os blogueiros postam com o propósito exclusivo
de relatar e partilhar experiências sobre suas vidas pessoais. O slogan do YouTube é “Transmita-se a
si mesmo”. E transmitir a nós mesmos é o que fazemos, com toda a autoadmiração desavergonhada
do Narciso mítico. À medida que a mídia convencional tradicional é substituída por uma imprensa
personalizada, a Internet torna-se um espelho de nós mesmos. Em vez de usá-la para buscar notí -
cias, informação ou cultura, nós a usamos para sermos de fato a notícia, a informação, a cultura.
Esse ininito desejo de atenção pessoal está movendo a parte mais dinâmica da nova economia da
Internet — redes sociais como MySpace, Facebook, Bebo e Orkut. Como santuários para o culto da
autotransmissão, esses sites tornaram-se repositórios de nossos desejos e identidades individuais.
Eles se dizem devotados à interação social, mas na realidade existem para que possamos fazer
propaganda de nós mesmos: desde nossos livros e ilmes favoritos até as fotos de nossas férias de
verão, sem esquecer “testemunhos” elogiando nossas qualidades mais cativantes ou recapitulando
nossas últimas farras. Não surpreende que autopropagandas de crescente mau gosto tenham levado
a uma infestação de predadores sexuais e pedóilos anônimos.
Mas não estão em jogo apenas nossos padrões culturais e valores morais. O mais grave de tudo é
que as próprias instituições tradicionais que ajudaram a promover e criar nossas notícias, nossa
música, nossa literatura, nossos programas de televisão e nossos ilmes estão igualmente sob ata-
2/10
que. Jornais e revistas de notícias, uma das fontes mais coniáveis de informação sobre o mundo,
estão em diiculdades graças à proliferação de blogs e sites gratuitos como o Craigslist, que ofere-
cem classiicados gratuitos, solapando a publicação de anúncios pagos. No primeiro trimestre de
2006, os lucros despencaram de maneira impressionante em todas as principais empresas jornalísti-
cas – 69% na New York Times Co., 28% na Tribune Co. e 11% na Gannett, a maior empresa
jornalística dos EEUU. A circulação também caiu. O público leitor do San Francisco Chronicle,
ironicamente um dos principais jornais do Vale do Silício, caiu estonteantes 16% apenas no começo
de 2005. E em 2007, a Time, Inc. dispensou quase 300 pessoas, sobretudo do corpo de redatores, de
revistas como Time, People e Sports Illustrated.
Aqueles de nós que ainda leem jornal e revistas sabem que as pessoas estão comprando menos
música também. Graças à pirataria digital desenfreada gerada pelas tecnologias de compartilha-
mento de arquivos, as vendas de música gravada caíram mais de 20% de 2000 a 2006.
Paralelamente à ascensão do YouTube, Hollywood está experimentando seus próprios problemas
inanceiros. A renda de bilheteria doméstica representa agora menos de 20% da receita e, com a redu-
ção das vendas de DVDs e a pirataria global descarada, a indústria está procurando desesperadamen-
te um novo modelo comercial que lhe permita distribuir ilmes na Internet de maneira lucrativa.
Segundo David Denby, crítico de cinema do The New Yorker, muitos executivos de estúdios em Holly-
wood encontram-se em “pânico” diante da receita declinante. Uma triste consequência são as demis-
sões. A Disney, por exemplo, anunciou 650 cortes de emprego em 2006, e uma redução de quase 50%
no número de animações produzidas anualmente. A mídia antiga está ameaçada de extinção. Mas,
o que tomará seu lugar? Ao que tudo indica, serão os novos e incrementados mecanismos de busca, os
sites das redes sociais e os portais de vídeo da Internet. Cada nova página no MySpace, cada nova
postagem num blog, cada novo vídeo no Youtube equivale a mais uma fonte potencial de renda com
anúncios perdida pela mídia convencional. Daí a decisão sábia ou desesperada tomada por Rupert
Murdoch em 2005 de comprar o MySpace por 580 mi. Daí a venda do YouTube por 1,65 bi e a
explosão de capital de risco no inanciamento de sites à la YouTube. Daí o crescimento aparentemente
irrefreável do Google, que, em meados de 2006, viu a receita avolumar-se a quase US$ 2,5 bi.
O que acontece, poderíamos nos perguntar, quando a ignorância se mistura ao egoísmo, ao mau
gosto e à ditadura das massas?
Os macacos assumem o comando. Diga adeus aos especialistas e guardiões da cultura de hoje
– nossos repórteres, âncoras, editores, gravadoras e estúdios de Hollywood. No atual culto do ama-
dor, os macacos é que dirigem o espetáculo. Com suas ininitas máquinas de escrever, estão escre-
vendo o futuro. E talvez não gostemos do que ele nos reserva.

Capítulo 1 – A Grande Sedução


Antes, uma conissão. Nos idos dos anos 1990, fui um dos pioneiros na primeira corrida do ouro na
Internet. Com o sonho de tornar o mundo um lugar mais musical, fundei o Audiocafe.com, um dos
primeiros sites de música digital. Certa vez, quando um repórter de jornal de São Francisco me
perguntou que mudança gostaria de fazer no mundo, respondi, meio a sério, que minha fantasia era
ter música jorrando de “todos os orifícios”, ouvir a obra inteira de Bob Dylan no meu laptop, ser
capaz de baixar os Concertos de Brandenburgo de Bach no meu telefone celular.
Portanto, sim, eu propaguei o sonho original da Internet. Seduzi investidores e quase enriqueci.
Esta, portanto, não é uma crítica usual do Vale do Silício. É a obra de um apóstata, um insider agora
do lado de fora, que despejou seu copo de Kool-Aid e renunciou à condição de membro do culto.
Minha metamorfose de crente a cético carece de dramaticidade. Não entreguei os pontos ao ler
um verbete incorreto da Wikipédia sobre T.H. Huxley nem fui fulminado por um raio ao fazer uma
busca sobre mim mesmo no Google. Por não envolver um coiote dançando, provavelmente minha
epifania não faria sucesso no YouTube.
Ela ocorreu durante 48 horas, em setembro de 2004, numa viagem para acampar com duzentos
utópicos do Vale do Silício. Saco de dormir debaixo do braço, mochila nas costas, marchei para o
acampamento como membro do culto; dois dias depois, nauseado, deixei-o na condição de incrédulo.
O acampamento teve lugar em Sebastopol, uma cidadezinha agrícola no Vale de Sonoma, na
Califórnia, cerca de 80 quilômetros ao norte do famigerado Vale do Silício — a estreita península
entre São Francisco e San José. Sebastopol é a sede da O’Reilly Media, um dos maiores negociantes
do mundo de livros, revistas e exposições sobre tecnologia da informação, um evangelizador da ino-
vação junto a uma congregação mundial de tecnóilos. É ao mesmo tempo o pregador mais fervoroso
e o coro mais barulhento do Vale.
Todo ano, a O’Reilly Media promove um evento exclusivo, apenas para convidados, chamado FOO
Camp (Friends of O’Reilly). Os amigos do fundador multimilionário Tim O’Reilly não são só inusita-

3/10
damente ricos e ricamente inusitados; também alimentam uma fé messiânica nos benefícios econô-
micos e culturais da tecnologia. O’Reilly e seus acólitos do Vale do Silício são uma mistura de hippies
grisalhos, empresários da nova mídia e especialistas em tecnologia. O que os une é uma hostilidade
partilhada em relação à mídia e aos entretenimentos tradicionais. Mistura de Woodstock com Burning
Man (o festival contemporâneo de autoexpressão realizado num deserto em Nevada) e com um pouco
de retiro da Stanford Business School, o FOO Camp é onde os partidários da contracultura dos anos
1960 se encontram com os entusiastas do livre-mercado dos anos 1980 e os tecnóilos dos 1990.
Conferências no Vale do Silício não eram novidade para mim. Eu mesmo tinha até organizado
uma quando o boom da Internet dava seus últimos suspiros. Mas o FOO Camp era radicalmente
diferente. A única regra era: “não há espectadores, só participantes”. O acampamento era organiza-
do segundo princípios participativos, de fonte aberta, ao estilo da Wikipédia — o que signiicava que
todo mundo falava muito e não havia ninguém comandando.
Assim, lá estávamos nós, 200 pessoas, o establishment antiestablishment do Vale do Silício,
valendo coletivamente centenas de milhões de dólares, contemplando as estrelas do gramado da
sede corporativa da O’Reilly Media. Durante dois dias inteiros, acampamos juntos, assamos marsh-
mallows na brasa e celebramos a reprise de nosso culto.
A Internet estava de volta! E, ao contrário do que acontecera na corrida do ouro dos anos 1990,
desta vez nossa exuberância não era irracional. Essa nova e reluzente versão da Internet, que Tim
O’Reilly chamou de Web 2.0, iria realmente mudar tudo. Agora que a maioria dos americanos
tinha acesso à banda larga, o sonho de uma sociedade inteiramente conectada, e sempre conectada,
seria inalmente realizado. Uma palavra estava em todos os lábios no FOO Camp: “democratização”.
Eu nunca me dera conta de que a democracia tinha tantas possibilidades, tanto potencial revolu-
cionário. Mídia, informação, conhecimento, conteúdo, público, autor — tudo iria ser democratizado
pela Web 2.0. A Internet ia democratizar a grande mídia, as grandes empresas, o grande
governo. Iria até democratizar os grandes especialistas, transformando-os no que um amigo de
O’Reilly chamou, num tom contido e reverente, de “nobres amadores”.
Embora Sebastopol icasse a quilômetros do oceano, no segundo dia comecei a sentir náusea. De
início pensei que era a comida gordurosa do acampamento ou talvez o clima quente. Mas logo
percebi que até minhas tripas estavam reagindo ao vazio que estava no âmago de nossas conversas.
Eu viera ao FOO Camp para imaginar o futuro da mídia. Queria saber como a Internet poderia me
ajudar “a levar mais música para mais orifícios”. Mas meu sonho de tornar o mundo um lugar mais
musical caíra em ouvidos moucos; a promessa de usar tecnologia para levar mais cultura às massas
fora abafada pelo grito coletivo dos membros do FOO Camp por uma mídia democratizada.
A nova Internet tinha a ver com música feita pelo próprio usuário, não com Bob Dylan ou os
Concertos de Brandenburgo. Público e autor haviam se tornado uma coisa só, e estávamos transfor-
mando cultura em cacofonia.
O FOO Camp, compreendi, era uma pré-estreia. Não estávamos ali simplesmente para falar sobre
a nova mídia; nós éramos a nova mídia. O evento era uma versão beta da revolução da Web 2.0, em
que a Wikipédia se misturava com MySpace e com YouTube. Todos estavam transmitindo a si mes-
mos simultaneamente, mas ninguém estava ouvindo. A partir dessa anarquia, icou claro, de repen-
te, que o que estava governando os macacos ininitos que agora introduziam informação na Internet
era a lei do darwinismo digital, ou seja, a sobrevivência dos mais ruidosos e mais dogmáticos.
Sob essas regras, a única maneira de prevalecer intelectualmente é mediante ininito obstrucionis-
mo. Quanto mais se falava naquele im de semana, menos eu queria me expressar. À medida que o
alarido do narcisismo crescia, eu icava mais e mais silencioso. E assim começou minha rebelião
contra o Vale do Silício. Em vez de contribuir para o barulho, violei uma lei do FOO Camp de 2004.
Parei de participar, relaxei e observei.
Desde então não parei mais de observar. Passei os dois últimos anos observando a revolução da
Web 2.0 e estou consternado pelo que vi.
Vi os ininitos macacos, é claro, digitando à vontade. E vi também muitos outros espetáculos
estranhos, inclusive um vídeo de pinguins andarilhos que vendiam uma mentira, uma “cauda
longa” supostamente ininita, e cães conversando um com o outro online. Mas o que estive
observando se parece mais com Os pássaros de Hitchcock do que com Dr. Doolittle: um ilme de
horror sobre as consequências da revolução digital.
Porque a democratização, apesar de sua elevada idealização, está solapando a verdade, azedando
o discurso cívico e depreciando a expertise, a experiência e o talento. Como observei antes, está
ameaçando o próprio futuro de nossas instituições culturais.
Eu chamo isso de a grande sedução. A revolução da Web 2.0 disseminou a promessa de levar
mais verdade a mais pessoas — mais profundidade de informação, perspectiva global, opinião
imparcial fornecida por observadores desapaixonados. Porém, tudo isso é uma cortina de fumaça. O
4/10
que a revolução da Web 2.0 está realmente proporcionando são observações supericiais do
mundo, em vez de uma análise profunda, opinião estridente, ou um julgamento ponderado. O
negócio da informação está sendo transformado pela Internet no puro barulho de 100 mi de
blogueiros, todos falando simultaneamente sobre si mesmos.
Além disso, o conteúdo gratuito e produzido pelo usuário, gerado e exaltado pela revolução da
Web 2.0, está dizimando as ileiras de nossos guardiões da cultura, à medida que críticos, jornalis-
tas, editores, músicos e cineastas proissionais e outros provedores de informação especializada
estão sendo substituídos (“desintermediados”, para usar um termo do FOO Camp) por blogueiros
amadores, críticos banais, cineastas caseiros e músicos que gravam no sótão. Enquanto isso, os
modelos de negócios radicalmente novos, baseados em material gerado pelo usuário, sugam o valor
econômico da mídia e do conteúdo cultural tradicionais.
Nós — aqueles que querem saber mais sobre o mundo, os que são os consumidores da cultura
convencional — estamos sendo seduzidos pela promessa vazia da mídia “democratizada”. Pois a
consequência real da revolução da Web 2.0 é menos cultura, menos notícias coniáveis e um caos
de informação inútil. Uma realidade arrepiante nessa admirável nova época digital é o obscure-
cimento, a ofuscação e até o desaparecimento da verdade.
A verdade, parafraseando Tom Friedman, está sendo “achatada” à medida que criamos uma
versão sob solicitação, personalizada, que relete nossa própria miopia individual. A verdade de
uma pessoa torna-se tão “verdadeira” quanto a de qualquer outra. Hoje a mídia está estilha-
çando o mundo em um bilhão de verdades personalizadas, todas parecendo igualmente válidas e
igualmente valiosas. Para citar Richard Edelman, o fundador, presidente e CEO da Edelman PR, a
maior empresa privada de relações públicas do mundo: “Nesta era de tecnologias de mídia em
explosão não existe nenhuma verdade exceto aquela que você cria para você mesmo.”
Precisa de provas? Vejamos o exército de pinguins falsos de o “Exército dos Pinguins”. Destaque
no YouTube, o ilme, uma sátira crua do ilme pró-ambientalista de Gore Uma Verdade Inconve-
niente, menospreza a seriedade da mensagem de Al Gore, descrevendo uma versão pinguim de Al
Gore pregando para os outros pinguins sobre o aquecimento global.
Mas o “Exército...” não é só mais um exemplo das bobagens do YouTube. Embora muitas dos 120
mil que viram o vídeo, sem dúvida, pensaram tratar-se do trabalho de algum usuário amador de car -
rões averso a reciclagem, na realidade o Wall Street Journal descobriu o real autor da sátira como
sendo o DCI Group, uma empresa conservadora de relações públicas e lobby de Washington, cujos
clientes incluem a Exxon Mobil. O vídeo nada mais é que uma jogada política, veiculada e perpetua-
da pelo anonimato da Web 2.0, que aparece como arte independente. Ou seja, uma grande mentira.
Os blogs também podem ser veículos para propaganda corporativa velada e decepção. Em 2006,
o NYT informou sobre um blogueiro cujos comentários elogiosos sobre o Wal-Mart eram "idênticos"
a press releases escritos por um supervisor de contabilidade sênior de uma empresa varejista do
Arkansas. Talvez esta seja a mesma equipe por trás da misteriosa eliminação de comentários pouco
elogiosos sobre o tratamento do Wal-Mart a seus funcionários em seu verbete da Wikipédia.
Os blogs são cada vez mais o campo de batalha em que os doutores em relações públicas estão
travando sua guerra de propaganda. Em 2005, antes de lançar um grande investimento, os executi-
vos da GE se reuniram com blogueiros ambientais para atraí-los para o verde de uma nova tecno -
logia de energia eiciente. Enquanto isso, multinacionais como a IBM, a Maytag, e a GM têm blogs
que, com disfarce, vendem suas versões corporativas da verdade para o mundo exterior.
Mas os blogs anticorporativos também são inimigos da verdade. Em 2005, quando bombou a
famosa estória ictícia de um dedo encontrado num chili, os blogueiros anti-Wendy usaram o fato
como prova de má-fé da empresa de fast-food. A falsa estória custou à Wendy US$ 2,5 mi em vendas
perdidas, perdas de emprego e queda no preço das ações.
Como disse o ex-primeiro-ministro britânico James Callaghan: "Uma mentira pode dar a volta ao
mundo antes de a verdade ter a chance de colocar suas botas". Isso nunca foi mais verdadeiro do
que com a veloz cultura da não-apuração em livre movimento na blogosfera de hoje.
Não é necessária a seriedade de um líder mundial para avaliar as implicações da mídia democra-
tizada. Num mundo plano, livre de editores, onde videomakers independentes, podcasters e
blogueiros podem postar à vontade suas criações amadoras, onde ninguém está sendo pago para
veriicar suas credenciais ou avaliar o material, a mídia encontra-se vulnerável aos conteúdos não
coniáveis de todos os matizes – seja de empresas de relações públicas dúbias, multinacionais como
a Wal-Mart e a McDonald's, blogueiros anônimos, ou predadores sexuais com soisticadas identi-
dades inventadas.
Quem pode saber, por exemplo, se uma rede de prostituição na Malásia não terá patrocinado o
famoso vídeo da dançarina sensual malasiana? Ou se a inglesa do vídeo comendo chocolate e
biscoito de marmelada não estaria sendo paga pela United Biscuits?
5/10
Quem pode saber se a maravilhosa resenha deste livro na Amazon.com que o levou a comprá-lo
não foi escrita por mim, posando como um fã entusiástico?
Como discutirei com mais detalhe, a verdade e a coniança são os bodes expiatórios da revolução
da Web 2.0. Num mundo com cada vez menos editores ou revisores proissionais, como vamos saber
o que acreditar e em quem acreditar? Como grande parte do conteúdo gerado pelo usuário é publi-
cado anonimamente ou sob um pseudônimo, ninguém sabe quem é o verdadeiro autor da maior par-
te do conteúdo autogerado. Poderia ser um macaco. Poderia ser um pinguim. Pode até ser Al Gore.
Tome a Wikipédia, a maior catedral do conhecimento na Internet. Ao contrário de editores em
uma enciclopédia de proissionais como a Britannica, a identidade dos editores voluntários da
Wikipédia é desconhecida. Estes editores cidadãos cortam trechos de outros editores cidadãos ao
deinir, redeinir, em seguida re-redeinir a verdade, às vezes centenas de vezes por dia. Veja, por
exemplo, quando Ken Lay da Enron morreu, em 2006. Às 10:06, a entrada da Wikipédia sobre Lay
dizia que ele morreu de um « suicídio aparente ». Dois minutos depois, dizia que a causa da morte
foi “um aparente ataque cardíaco”. Então, às 10:11, a Wikipédia informou que a "culpa por estragar
tantas vidas inalmente o levou ao suicídio”. Já às 10:12 estávamos de volta à massa coronária como
causadora da morte de Lay. E em 2007, poucos minutos depois da morte da ex-modelo da Playboy
Anna Nicole Smith, sua página na Wikipédia foi inundada por versões conlitantes e especulativas
sobre a causa mortis. Como Marshall Poe observou na edição de setembro de 2006 do Atlantic:
Somos tentados a pensar na verdade como algo que está no mundo. O fato de que dois
mais dois é igual a quatro está escrito nas estrelas... Mas a Wikipédia sugere uma teoria
diferente da verdade. Basta pensar sobre como aprendemos o signiicado das palavras... A
comunidade decide que dois e dois são quatro da mesma forma que decide o que é uma
maçã: por consenso. Sim, isso signiica que se a comunidade mudar de opinião e decidir
que dois mais dois são cinco, em seguida dois mais dois serão cinco. Ela pode até não ser
capaz de fazer um absurdo desses, mas tem a habilidade.
Em 1984 de Orwell, o Grande Irmão insistia em que dois mais dois eram cinco, transformando
uma declaração reconhecidamente errada em uma verdade oicial, sancionada pelo estado. Hoje,
como discuto no capítulo 7, há um Big Brother ainda mais ameaçador à espreita nas sombras: o
motor de busca. Derramamos nossos segredos mais íntimos para o todo-poderoso buscador, atra-
vés das dezenas de milhões de perguntas que digitamos diariamente. Os motores de busca como o
Google sabem mais sobre nossos hábitos, nossos interesses, nossos desejos do que nossos
amigos, nossos entes queridos e nosso psiquiatra juntos. Mas ao contrário do 1984, este Grande
Irmão é muito real. Temos de coniar que não revele nossos segredos, uma coniança que, como
veremos, já foi traída repetidas vezes.
Paradoxalmente, o Santo Graal dos anunciantes em todo o mundo plano da Web 2.0 é conseguir a
coniança dos outros. Isso está deixando de cabeça para baixo a indústria da publicidade conven-
cional. O MySpace, de acordo com o Wall Street Journal e outros jornais, agora tem peris de
personagens ictícios, numa tentativa de comercializar determinados produtos através da criação de
“relações pessoais com milhões de jovens”. A News Corp (dona do MySpace) comprou o direito de
incluir os peris de personagens ictícios, como Ricky Bobby (interpretado por Will Ferrell), do
blockbuster de 2006 « Talladega Nights ». Outros membros recentes incluem mascotes publicitários
como Gil, o caranguejo dos comerciais do Honda Element, a mascote real do Burger King, e uma
personagem chamado "Miss Irresistible", a porta-voz de dentes brilhantes da nova versão de pasta
de dentes Crest. Mas esse Gil, o rei do Burger King e a Miss Irresistible são realmente nossos
amigos? Não. São personagens de icção, cujo único objetivo é vender às nossas inluenciáveis
crianças mais creme dental e hambúrguer.
Nossa coniança na publicidade convencional está sendo ainda mais comprometida pelos anún-
cios falsos que proliferam na Internet. Por exemplo, o NYT informou em agosto de 2006 que,
naquela época, foram postados no YouTube mais de 100 vídeos zombando de uma campanha publici-
tária lançada pelo provedor de Internet Vonage, e que muitos tinham sido vistos pelo menos 5 000
vezes. Esses uploads amadores, não autorizados, de comerciais famosos raramente são elogiosos.
Normalmente inventam ou expõem as falhas de uma marca ou produto. No entanto, para desgosto
dos publicitários (o diretor criativo interativo da Crispin, Porter & Bogusky chama o fenômeno de
“terrorismo de marcas na Internet”), os vídeos caseiros são muitas vezes remendos de clips de
anúncios reais, o que torna as cópias muitas vezes indistinguíveis da publicidade original.
Nossas atitudes com relação a “autoria” também estão passando por uma mudança radical, como
resultado da cultura democratizada da Internet de hoje. Em um mundo no qual plateia e autor são
cada vez mais indistinguíveis, e onde a autenticidade é quase impossível de ser veriicada, a ideia
original de autoria e propriedade intelectual tem sido seriamente comprometida. Quem é o
“dono” do conteúdo criado pelos personagens de ilme de icção no MySpace? Quem é o “dono” do
conteúdo criado por um anônimo grupo de editores da Wikipédia? Quem é o “dono” do conteúdo
6/10
publicado por blogueiros, seja ele originário de porta-vozes das empresas ou de artigos no NYT?
Esta deinição nebulosa de propriedade, agravada pela facilidade como podemos copiar e colar o
trabalho de outras pessoas para fazê-lo parecer como se fosse nosso, resultou em uma nova permis-
sividade preocupante sobre a propriedade intelectual.
Copiar e colar, é claro, é brincadeira de criança na Web 2.0, que cria uma nova geração de
cleptomaníacos intelectuais que acham que só por poder copiar e colar opiniões ou um pensamento
bem formulado os faz donos deles. Tecnologias de compartilhamento de arquivos como o Napster e
o Kazaa, que ganhou tanta atenção durante o primeiro boom da Web, empalidece em comparação
com as últimas “remixagens” de conteúdo da Web 2.0 e dos mashups de software e música. Numa
espécie de lógica destorcida de Alice no País das Maravilhas descendo na toca do coelho, visionários
do Vale do Silício, como o professor de Direito de Stanford e fundador da Creative Commons,
Lawrence Lessig, e o autor cyberpunk William Gibson, elogiam a apropriação da propriedade
intelectual. Como este escreveu em julho de 2005 da revista Wired:
Nossa cultura não se importa mais em usar palavras como apropriação ou empréstimo
para descrever essas atividades. O espectador de hoje não está mais escutando, está
participando. Na verdade, o público é um termo tão antigo quanto LP, aquele arcaicamente
passivo, este arcaicamente físico. O LP, não o remix, é a anomalia hoje. O remix é a
verdadeira natureza do digital.
Os melhores estudantes de Oxford ignoram o conselho de Gibson: em junho de 2006, o jornal The
Guardian informou que a reputação da universidade estava “sob ameaça pois mais e mais alunos
copiam trechos de trabalho a partir da Internet, dizendo serem seus”. Uma pesquisa publicada na
Education Week constatou que 54% dos estudantes admitiram plagiar com ajuda da Internet. Quem
diz se os outros 46% estão dizendo a verdade? Copyright e autoria começam a perder o signiicado
para aqueles que postam seus mash-ups e remixes na web. Eles são, como observa a Prof a Sally
Brown da Universidade Leeds Metropolitan, “pós-modernos, ecléticos, googlegeneracionistas, wiki-
pedistas, que não necessariamente reconhecem os conceitos de autoria/propriedade”.
As consequências intelectuais desse roubo são profundamente perturbadoras. A cultura do remix
onipresente de Gibson não só está destruindo a santidade da autoria, mas também minando nossas
salvaguardas tradicionais da criatividade individual. O antigo valor de um livro de um grande autor
está sendo desaiado por um sonho coletivo de uma comunidade de autores hiperconectados que o
comentam e revisam ininitas vezes, sempre conversando uns com os outros em um ciclo intermi-
nável de autorreferências.
Kevin Kelly, num artigo de maio de 2006 no NYT fala com entusiamo da morte do tradicional
texto solitário – que séculos de civilização conheceram como livro. O que Kelly vislumbra ao invés
é uma mídia ininitamente interligada em que todos os livros do mundo são digitalizados e ligados
entre si: o que chama de "versão líquida" do livro. Na opinião de Kelly, o ato de copiar e colar e ligar
e comentar um texto é tão ou mais importante do que a escrita do livro em primeiro lugar. É a
versão literária da Wikipédia. Em vez dos livros tradicionais pelos Norman Mailers, Alice Walkers e
John Updikes, devemos abraçar, de acordo com elr, um único texto digital, hiperligado, comunitário,
editado e comentado por amadores.
Então o que acontece quando se combina a versão líquida do livro proposta por Kelly com um
wiki? Um milhão de pinguins. Esse é mesmo o título do wikirromance de janeiro de 2007 da
Universidade de Montford uma experiência literária democrática promovida pela editora britânica
Penguin, que convida todos a contribuir para um romance online coletivo. Mas uma colaboração de
vozes amadoras pode criar uma narrativa iccional coerente e iel? Duvido muito. Como o
blogueiro da Penguin e crítico literário Jon Elek escreveu: “Tudo bem, contanto que consiga evitar
tornar-se uma espécie de coisa do tipo robôs-zumbis-assassinos-contra-ninjas-africanos-do-espaço-
narrado-por-um-Tiara-Papal”.
Não são só nossas sensibilidades estéticas que estão sendo atacadas. A Internet tornou-se a mídia
escolhida para distorcer a verdade sobre a política e os políticos de ambos os lados do muro. O
ataque em 2004 à estória de John Kerry no Swift Boat no Vietnã, por exemplo, foi orquestrado por
centenas de blogueiros conservadores que descreveram um funcionário público patriótico como um
bode expiatório para a propaganda dos vietcongs. E o que dizer do assalto à blogosfera esquerdista
no verão-outono de 2006, sobre Joe Lieberman, o senador democrata de centro, que os atacantes
mostraram como um extrema-direitista, amante de Bush e republicano belicista, o que lhe custou as
primárias de 2006 (ele, claro, continuou e ganhou a eleição geral, airmando-se no inal). Nenhum
desses blogs, do MoveOn.org ao Swiftvets.com, debate de forma séria as questões, as ambiguidades
e a complexidade da política. Pelo contrário, atendem a uma minoria cada vez mais partidária que
usa a mídia digital "democratizada" para ofuscar a verdade e manipular a opinião pública.

7/10
O Custo da Democratização
O desfoque da fronteira entre o público e o autor, fato e icção, invenção e realidade obscurece mais
ainda a objetividade. O culto do amador tornou cada vez mais difícil determinar a diferença entre o
leitor e o escritor, o artista e o porta-voz, arte e propaganda, amadores e especialistas. O resultado?
A queda da qualidade e da coniabilidade das informações que recebemos, o que desvirtua, ou até
corrompe descaradamente nossa conversa cívica nacional.
Mas talvez as maiores vítimas da revolução da Web 2.0 sejam as empresas reais com produtos
reais, funcionários reais e acionistas reais, como discutirei nos capítulos 4 e 5. Cada gravadora
extinta, repórter de jornal despedido ou livraria independente falida é uma consequência do
conteúdo grátis gerado pelos usuários na Internet – da publicidade gratuita do Craigslist aos
vídeos de música gratuitos do Youtube, à informação gratuita da Wikipédia.
O que talvez não se perceba é que o grátis está na verdade nos custando uma fortuna. Os novos
vencedores – Google, YouTube, MySpace, Craigslist e as centenas de start-ups, todos famintos por
um pedaço do bolo da Web 2.0 – não são capazes de preencher o vazio das indústrias que estão
ajudando a destruir, em termos de produtos feitos, postos de trabalho criados, receitas geradas ou
benefícios conferidos. Atraindo nossos olhares, os blogs e wikis estão dizimando as indústrias da
publicidade, da música e da informação, que criaram o conteúdo original do “conteúdo” desses
sites. Nossa cultura está essencialmente canibalizando seus jovens, destruindo as próprias fontes do
conteúdo que almeja. Esse é o novo modelo de negócios do século XXI?
A estória de capa da edição de julho de 2006 da Business perguntou quem eram as 50 pessoas
mais inluentes da nova economia. No topo da lista não estavam Steve Jobs, Rupert Murdoch, Ser-
gey Brin nem Larry Page, fundadores do Google. Estava “VOCÊ! O Consumidor como Criador”:
Você – ou melhor, a inteligência colaborativa de dezenas de milhões de pessoas, você
conectado – a continuamente cria e iltra novas formas de conteúdo, consagrando o útil, o
relevante, o divertido e rejeitando o resto... Em todo caso, você se tornou parte integrante
da ação como membro do público agregado, interativo, auto-organizado, autoentretenido.
Quem foi a Pessoa do Ano da Time em 2006? Terá sido George W. Bush ou o Papa Bento XVI, ou
Bill Gates e Warren Bufett, que juntos contribuíram com mais de $70 bi de sua fortuna para
melhorar a vida na terra? Nenhuma das acima. A Time deu o prêmio a VOCÊ:
Sim, você. Você controla a Era da Informação. Bem-vindo ao seu mundo.
Este mesmo VOCÊ! manda na Wikipédia, onde o consumidor de conhecimento é também seu cria-
dor. VOCÊ! deine o YouTube, onde dezenas de milhares de vídeos diários são produzidos e assisti-
dos. VOCÊ! está comprando e resenhando livros na Amazon.com, dando lances e leiloando mercado-
rias no eBay, comprando e projetando videogames na plataforma Microsoft Xbox, e anunciando e
respondendo no Craigslist.
Cada anúncio gratuito no Craigslist signiica menos um anúncio pago num jornal local. Toda
visita à colmeia de informações gratuita da Wikipédia signiica um cliente a menos para uma enci-
clopédia proissionalmente pesquisada e editada como a Britannica. Cada música grátis ou upload
de vídeo é uma venda a menos de um CD ou DVD, um royalty a menos para o artista que a criou.
Em seu best-seller “A Cauda Longa”, o editor da revista Wired Chris Anderson comemora este
achatamento da cultura, que descreve como o im da parada de sucessos. No admirável mundo novo
de Anderson, haverá espaço ininito nas prateleiras para produtos ininitos, dando a todos escolhas
ininitas. A Cauda Longa praticamente redeine a palavra “economia”, deslocando-a da ciência da
escassez para a ciência da abundância, um mercado promissor e ininito no qual “ciclamos” e
reciclamos nossa produção cultural para o conteúdo de nossos corações. É uma ideia sedutora. Mas
mesmo que se aceitem os duvidosos argumentos econômicos de Anderson, a teoria tem um furo
gritante. Anderson assume que o talento bruto é tão ininito quanto o espaço de prateleira na
Amazon ou no eBay. Mas embora possa haver máquinas de escrever ininitas, há uma escassez de
talento, competência, experiência e domínio em qualquer área. Encontrar e promover o verdadeiro ta-
lento em um mar de amadores pode ser o verdadeiro desaio da Web 2.0. O fato é que a visão de
Anderson de uma mídia achatada, sem hits, é uma profecia autorrealizável. Sem o cultivo de talentos,
não haverá mais hits, pois o talento que os cria nunca é cultivado ou não tem permissão para brilhar.
Na Web, onde todos têm voz igual, as palavras do sábio valem mais do que os murmúrios de um
tolo. Claro, todos nós temos opiniões mas, como discuto no Capítulo 2, poucos de nós tem uma for -
mação especial, conhecimento ou experiência prática para gerar algum tipo de perspectiva real.
Thomas Friedman, colunista do NYT, e Robert Fisk, correspondente no Oriente Médio do jornal
Independent, por exemplo, não surgiram de algum blog obscuro – eles adquiriram conhecimento
profundo sobre a região passando anos lá. Isso envolveu investimentos consideráveis de tempo e re-
cursos, pelos quais os próprios jornalistas e os jornais em que trabalham merecem ser remunerados.

8/10
O talento, como sempre, é um recurso limitado, a agulha no palheiro digital de hoje. Não se
encontra o indivíduo talentoso, treinado, naufragado de pijama atrás de um computador, produzindo
postagens estúpidas em blogs ou resenhas anônimas de ilmes. Cultivar talento exige trabalho, capi-
tal, competência, investimento. Requer a infraestrutura complexa da mídia tradicional – olhei-
ros, agentes, editores, publicitários, técnicos, marqueteiros. O talento é construído pelos interme-
diários. Se se os “desintermedia”, acaba-se também com o desenvolvimento do talento.
A economia da Cauda Longa é absolutamente errada. Utopistas da tecnologia como Anderson
sugerem que o conteúdo autocriado resultará de algum modo numa aldeia interminável de
compradores e vendedores, cada um comprando pouco e escolhendo de um número extraordinário
de coisas. Mas quanto mais conteúdo autocriado é despejado na Internet, mais difícil ica distinguir
o bom do ruim – e fazer dinheiro com dele. Como Trevor Butterworth relatou no Financial Times,
ninguém está icando rico com os blogs, nem mesmo Markos Zuniga, o fundador do Daily Kos, o
mais popular de todos os blogs políticos.
Veja o caso do GoFugYourself, um site de paródia de celebridades que atrai um grande público de
100 mil visitantes por dia. Segundo Butterworth, o site gera apenas “dinheiro para a cerveja” de
seus fundadores. Sites acima da média como o JazzHouston, que atrai 12 mil visitantes por dia,
rende só amendoim – em torno de mil dólares por ano em receita de anúncios do Google. E Guy
Kawasaki, autor de um dos cinquenta blogs mais populares da Internet, cujas páginas foram vistas
quase dois mi e meio de vezes em 2006. Quanto ele ganhou em receita publicitária por ser dono de
um blog famoso? Míseros US$ 3.350. Se esta for a cauda longa de Anderson, é um rabo que não dá
emprego a ninguém. Na melhor das hipóteses, só gera amendoim e cerveja para os macacos.
O grande desaio do mercado da cauda longa de Anderson está em encontrar o que ler, ouvir ou
assistir. Se você acha que o sortimento em sua loja de discos é pequeno, espere até a cauda longa
desenrolar sua extensão ininita. Arrastar-se pela blogosfera, ou os milhões de bandas no MySpace,
ou as dezenas de milhões de vídeos no YouTube procurando um ou dois blogs, músicas ou vídeos de
real valor não é viável para aqueles de nós com uma vida ou um trabalho. O único recurso que é
desaiado por esta longa cauda de conteúdo amador é o nosso tempo, o recurso mais limitado e
precioso de todos.
Sim, vários sites iniciantes da Web 2.0 como o Pandora, o Goombah e o Moodlogic estão cons-
truindo motores inteligentes que supostamente podem nos dizer automaticamente qual a música ou
ilmes que nos agradará. Mas a inteligência artiicial é um fraco substituto para o gosto. Nenhum
software pode substituir a coniança implícita que colocamos na crítica de um ilme feita por Nigel
Andrews (Financial Times), A.O. Scott (NYT), Anthony Lane (New Yorker) ou Roger Ebert (Chicago
Sun-Times) – uma resenha cuidadosamente trabalhada, informada por décadas de educação,
treinamento e experiência em ver ilmes. Nenhum algoritmo pode equiparar-se à análise literária dos
revisores da London Review of Books, nem à riqueza do conhecimento musical dos revisores de
revistas como a Rolling Stones, Jazziz ou a Gramophone.
Chris Anderson está certo ao airmar que o espaço ininito da Internet vai dar cada vez mais
oportunidades para os nichos, mas o lado negativo é que isso vai garantir que tais nichos gerarão
menos receitas. Quanto mais especializado o nicho, mais estreito o mercado. Quanto mais estreito o
mercado, mais curto o orçamento de produção, o que compromete a qualidade da programação,
reduzindo ainda mais o público e alienando os anunciantes.
Um exemplo desse ciclo escuro é a tentativa da NBC de criar em 2006 miniepisódios exclusivos
para a Internet da sitcom interativa “The Ofice”. Os miniepisódios foram tão mal inanciados que a
NBC não pôde nem mesmo dar-se o luxo de ter no elenco Steve Carell, o astro do programa. Como
disse um crítico de TV, pareciam “cenas deletadas obtidas do lixo”.
As redes de televisão já estão lutando contra a fragmentação da audiência em fatias cada vez
mais inas. Em 2006, a NBC desenvolveu sites de vídeo para gays e viciados em TV, e a CBS apre -
sentou um canal Web interativo para adolescentes e outro dedicado a notícias de entretenimento e
fofoca (Showbuzz.com). A Scripps Network, em uma tentativa desesperada de expandir sua
audiência total, também introduziu canais de vídeo para assuntos cada vez mais segmentados, de
carpintaria e tricotagem a alimentação saudável.
Onde isso tudo vai parar? Com um canal para cada um de nós, onde seremos a emissora solitária
e seu único espectador? Esta seria a democratização no nível mais fundamental. Essa absurda
conclusão não é pura fantasia. No curto espaço de tempo desde o FOO Camp de 2004, explodiu a
revolução do conteúdo da Web 2.0, narcisista, autogratiicante, autogerada. Antes de setembro de
2004, não havia YouTub. Sites gerados pelo público como a Wikipédia e o MySpace eram segredos
bem guardados do Vale do Silício. Hoje estamos assistindo a uma centena de milhões de vídeos por
dia no YouTube. O MySpace, fundado em julho de 2003, tem mais de noventa e oito milhões de
peris. Existem hoje inúmeros sites de mídias sociais para adolescentes, pré-adolescentes, pós-
adolescentes, e, como veremos, até adolescentes fakes.
9/10
Blogueiros e podcasters assumiram o controle de nossos computadores, de nossos smartphones.
O que antes era apenas um estranho culto do Vale do Silício agora está transformando a América.
Num cartoon de 1993 da The New Yorker, dois cães estão sentados ao lado de um computador.
Um deles está com a pata no teclado, o outro o está olhando interrogativamente. “Na Internet”, o
cão com o teclado tranquiliza seu amigo canino, “ninguém sabe que você é um cachorro”.
Isso é mais verdadeiro do que nunca. Na era da autopublicação, ninguém sabe se você é um cão,
um macaco ou o coelhinho da Páscoa. Todo mundo está tão ocupado se autodifudindo ( egocasting),
imerso demais na luta darwiniana pela compartilhamento da mente, para dar ouvido ao outro.
Mas não podemos culpar outras espécies por este triste estado. Nós seres humanos monopolizamos
o centro das atenções nesta nova fase da mídia democratizada. Somos ao mesmo tempo os escritores
amadores, os produtores amadores, os técnicos amadores e, sim, os espectadores amadores.
A hora do amador chegou, e o público já está dirigindo o show.

10/10

Você também pode gostar