Você está na página 1de 130

“Com o grupo de ajuda e suporte mútuo é diferente (...

), o que faz com


que eu participe é a minha vontade e/ou necessidade, nada mais. Não sou
manual
pressionada. E quando falo de minhas coisas não estou mais tão sozinha.
Porque no grupo a minha participação faz diferença. E nesse ouvir e falar
acabo descobrindo coisas e sentimentos que ajudam a melhor me conduzir num
ajuda e suporte mútuos
mundo de pessoas ‘normais’.

No grupo aprendi a aceitar as minhas limitações (antes chorava muito quan-


em saúde mental
do sem querer me faziam perceber o quanto era diferente). Aprendi que o para facilitadores, trabalhadores

ajuda e suporte mútuos em saúde mental


cuidar, tratar alguém com carinho, possui uma força surpreendente, leva
qualquer pessoa a realizar seu potencial mais naturalmente. E isso pode
e profissionais de saúde e saúde mental
ir além do esperado.
Eduardo Mourão Vasconcelos (coord.)
Hoje, consigo escrever assim. Porque passei por experiências inespera- Glória Lotfi
das e contei com ajuda de pessoas que apostaram em mim. E depois, pelo Rosaura Braz
conhecimento que fui adquirindo aos poucos através das pessoas do grupo. Rosaura Di Lorenzo
Há dois anos atrás não teria condições emocionais de sequer começar uma
Tatiana Rangel Reis
linha. Fico feliz por ainda existir pessoas que lutam para dar dignidade
e voz a nós, no nosso sofrimento cotidiano, ao tentar existir e ainda re-
alizar sonhos, apesar da sociedade ainda nos ver com olhos cautelosos e
amedrontados...”

(Depoimento de participante de nosso primeiro grupo de ajuda mútua)

REALIZAÇÃO APOIO
manual

Saúde
Escola de Serviço Social da UFRJ
manual
ajuda e suporte mútuos
em saúde mental
para facilitadores, trabalhadores
e profissionais de saúde e saúde mental

Projeto Transversões
Escola de Serviço Social da UFRJ
RIO DE JANEIRO

Saúde

REALIZAÇÃO
APOIO

Saúde
Escola de Serviço Social da UFRJ
Créditos

Ilustrações Henrique Monteiro da Silva, artista plástico, usuário de serviço de saúde mental da cidade do
Rio de Janeiro, participante do movimento antimanicomial e trabalhador da TV Pinel, um projeto do Instituto
Municipal Philippe Pinel, no Rio de Janeiro.
Programação visual um triz comunicação visual
Revisão e finalização da programação visual Frito Studio
Revisão Renato Deitos e Eduardo Mourão Vasconcelos

Concepção geral Projeto Transversões, nome síntese do projeto de pesquisa e extensão integrado

manual
“Saúde mental, desinstitucionalização e abordagens psicossociais”, lotado na Escola de Serviço
Social da UFRJ, com apoio do CNPq, Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras
Drogas e do Fundo Nacional de Saúde, ambos do Ministério da Saúde.

CM294 Manual [de] ajuda e suporte mútuos em saúde mental: para ajuda e suporte mútuos
em saúde mental
facilitadores, trabalhadores e profissionais de saúde e saúde
mental / Coordenação de Eduardo Mourão Vasconcelos;
ilustração de Henrique Monteiro da Silva. – Rio de Janeiro :
para facilitadores, trabalhadores
Escola do Serviço Social da UFRJ; Brasília: Ministério da Saúde,
e profissionais de saúde e saúde mental
Fundo Nacional de Saúde, 2013.

231p. : il.; ...cm.


ISBN: 978-85-66883-01-5 Projeto Transversões
Projeto Transversões: projeto de pesquisa e extensão integrado Escola de Serviço Social da UFRJ
Saúde Mental, desinstitucionalização e abordagens psicossociais na RIO DE JANEIRO
UFRJ, Termo de Cooperação entre UFRJ e Fundação Nacional de
Saúde, Ministério da Saúde, e apoio do CNPq.

1. Grupos de ajuda mútua – Brasil. 2. Serviços de saúde mental Eduardo Mourão Vasconcelos (coord.)
comunitária - Brasil. I. Vasconcelos, Eduardo Mourão, coord. II. Glória Lotfi
Silva, Henrique Monteiro, ilust. Rosaura Braz
Rosaura Di Lorenzo
CDD: 361.40081 Tatiana Rangel Reis

Contato:
Projeto Transversões / Escola de Serviço Social da UFRJ
A/C Prof. Eduardo Vasconcelos
Av. Pasteur 250 Fundos - Rio de Janeiro 22.290-160
Fone: (21) 3873-5413
E-mails: emvasconcelos56@gmail.com e rosaura.braz@gmail.com
sumário



Sumário 5

I. Apresentações 10
1) A força criativa da solidariedade e da busca de autonomia – Pedro Gabriel Delgado (Coordenação Nacional
de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, Ministério da Saúde) 10
2) A partir da própria vivência sofrida de crise mental, surgem novos caminhos coletivos de cuidado e saúde
– Eduardo Mourão Vasconcelos (Projeto Transversões) 12
3) Carta de Richard Weingarten, uma das principais lideranças do movimento de usuários dos Estados
Unidos 18
4) Agradecimentos 20

II. Formação básica operativa para facilitadores e apoiadores 24


1) A diferenciação entre os grupos de ajuda mútua e de suporte mútuo 24
2) Regras básicas dos grupos e atividades de ajuda e suporte mútuos 26
3) O ambiente e os recursos necessários para as reuniões e atividades, e sua influência sobre o coletivo 28
4) As relações de poder e a disposição das pessoas no grupo 29
5) A dinâmica de funcionamento e facilitação dos grupos de ajuda mútua em saúde mental 30
6) O suporte de profissionais e trabalhadores de saúde e/ou saúde mental no acompanhamento
e supervisão dos grupos 32
7) O caso de um programa municipal de grupos de ajuda mútua, com bolsas de trabalho: gestão,
supervisão e monitoramento, e atuação de profissionais ou trabalhadores 34
8) Exemplos de temas a serem discutidos nos grupos de ajuda e suporte mútuos 36
9) Tipos de reunião de ajuda mútua e aproximações com o suporte mútuo 39 6) “A família e os grupos de ajuda e suporte mútuos em saúde mental”, de Rosaura Maria Braz 149
10) Esquema básico para uma reunião de ajuda mútua 42 7) “Modelos de intervenção e práxis grupal, grupos de ajuda mútua e os desafios de sua utilização com
usuários do campo da saúde mental”, de Eduardo Mourão Vasconcelos 169
III. Temas de aprofundamento operativo para facilitadores, trabalhadores e profissionais 49 8) “Uma contribuição da psicologia analítica para a compreensão da ajuda mútua em saúde mental:
o arquétipo do Curador Ferido”, de Glória Lotfi 217
9) “Indicações para a inserção dos grupos de ajuda e suporte mútuos na atenção primária em saúde”, de
1) Características e objetivos dos grupos de ajuda e suporte mútuos 49
Eduardo Mourão Vasconcelos 220
2) Recomendações para lidar com comportamentos e atitudes não construtivos e desagregadores, ou com
situações de crise 52
Apêndice 1: Tabelas de Fases dos Vários Tipos de Reunião 234
3) Busca de membros, participação inicial, gestão das atividades e crescimento do grupo 53
4) O registro das atividades 55
Apêndice 2: Plano e Cartão de Crise 244
5) A importância e os cuidados necessários com a gestão de recursos financeiros e materiais 56
6) Qualidades pessoais e éticas desejáveis para facilitadores 57
Apêndice 3: Relatório Mensal de Atividade de Grupo de Ajuda Mútua 252
7) A supervisão externa para os facilitadores 58
8) O trabalho de facilitação como militância e como gerador de renda, e demais recursos necessários para a
Apêndice 4: Comunicado para Tomada de Providências 253
capacitação e manutenção do projeto 60
9) Grupos de ajuda e suporte mútuos e a organização de associações de usuários e familiares 61
Anotações 254

IV. Textos de aprofundamento teórico-conceitual e sobre a inserção no sistema de saúde e saúde


mental 63

1) “Conceitos básicos para se entender as propostas e estratégias de empoderamento no campo da


saúde mental”, de Eduardo Mourão Vasconcelos 63
2) Histórico, princípios ético-políticos e processo metodológico de construção do “Manual de ajuda e suporte
mútuos em saúde mental”, de Eduardo Mourão Vasconcelos 90
3) “Quadro atual da organização e agenda política dos usuários e familiares em saúde mental no Brasil”,
de Eduardo Mourão Vasconcelos e Jeferson Rodrigues 107
4) “Para além do controle social: a insistência dos movimentos sociais em investir na redefinição
das práticas de saúde”, de Eymard Mourão Vasconcelos 116
5) “A família como usuária de serviços e como sujeito político no processo de reforma psiquiátrica
brasileira”, de Lúcia Cristina dos Santos Rosa 134
apresentações
APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

Apresentação 1 tão inestimável que não deve ser vivido apenas de atividades de ensino e de pesquisa, como
pelos sujeitos que a experimentam. Ela deve protagonistas legítimos da produção de
ser generosamente compartilhada com todos, conhecimento no campo da saúde mental.
A força criativa da criando não só uma corrente de solidariedade, mas As experiências brasileiras de ensino com
solidariedade e da busca formulando meios práticos e eficazes de lidar com participação destes atores ainda são raras, mas
de autonomia os problemas da vida. este é um campo promissor, e ajudará a formar
Pedro Gabriel Delgado profissionais melhores.
Em que consiste o protagonismo dos usuários e
Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e familiares no processo da Reforma? Sem dúvida, na Várias destas iniciativas, de ajuda e suporte
Outras Drogas sua participação política, exigindo a criação de CAPS, mútuos e protagonismo dos usuários e familiares,
programas de geração de renda, fortalecimento da são discutidas neste livro, cujo objetivo é apoiar
Ministério da Saúde
atenção primária, qualificação dos serviços e dos a expansão de uma rede de grupos autônomos,
profissionais, e a substituição definitiva dos serviços articulados com os CAPS e com a rede intersetorial
fechados e manicomiais. A participação política é de serviços. São ações simples e solidárias,
fundamental na construção da autonomia. coletivas, que vão construindo aos poucos uma vida
Aos usuários dos serviços de saúde mental e seus melhor para todos.
familiares: Mas há também outras formas de participação,
igualmente eficazes e igualmente políticas. Quando
os usuários e familiares participam da criação Dezembro de 2010
É uma honra para mim dirigir umas palavras aos de cooperativas de geração de renda, estão
usuários e familiares, na apresentação deste fazendo ação política e solidária e contribuindo
Manual para grupos e atividades de suporte mútuo, para consolidar a Reforma Psiquiátrica. Quando
organizado por Eduardo Vasconcelos e sua equipe. se reúnem em grupos solidários, para buscarem
Tenho certeza de que este pequeno livro será caminhos de apoio mútuo, de modo a compartilharem
de grande utilidade para ampliar e fortalecer as a sabedoria decorrente da experiência do vivido,
iniciativas de ação solidária que já estão em pleno estão demonstrando a possibilidade concreta e
andamento no Brasil. sem retorno de uma nova saúde mental, em que
A Reforma Psiquiátrica tem muito a avançar neste a autonomia e a gestão da vida cotidiana são os
campo. Em alguns outros países, as iniciativas conceitos fundamentais. Do mesmo modo, quando
solidárias envolvendo usuários e familiares, com estabelecem um pacto com os serviços de saúde e
participação de trabalhadores e da sociedade os profissionais, definindo as formas de lidar com as
em geral, já são uma tradição consolidada, e crises, construindo consensos sobre a melhor forma
se expressam na forma de organizações, redes, de agir nas situações difíceis – como nos exemplos
grupos, intervenções culturais etc., que contribuem do “Cartão de Crise” e da gestão autônoma de
de forma decisiva para melhorar a vida das pessoas medicamentos –, os usuários estão interferindo
que trazem consigo a experiência do sofrimento ativamente na clínica, na compreensão mais global
psíquico. do tratamento, ampliando a visão de todos os
envolvidos e contribuindo para melhorar as práticas
Experiência: esta é uma palavra-chave neste
em saúde mental.
trabalho solidário. A experiência do sofrimento,
e de como lidar com ele, construindo estratégias Outro exemplo de exercício da autonomia se
cotidianas de busca do bem-estar, é em si um bem dá quando usuários e familiares participam

10 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 11
APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

Apresentação 2 A vivência de uma crise mental profunda é uma Nos anos 1980, assumimos a estratégia mais relativa ao tratamento a usuários e familiares, ou
possibilidade efetiva para cada um de nós, homens radical de desinstitucionalização como bandeira, nas assembleias dos serviços, ou ainda no máximo
e mulheres. Todos os tipos de sociedade humana formando um movimento social que chamamos de no ativismo direto nos conselhos de controle social.
A partir da própria vivência tiveram contato e a conhecem de alguma forma, antimanicomial. Logo a seguir, na década de 1990, Tudo isso é reforçado por uma cultura difusa,
sofrida de crise mental, pois ela sempre atinge pelo menos uma pequena criamos o Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, e ainda hegemônica, que valoriza a hierarquia e a
surgem novos caminhos parcela de pessoas. No entanto, constitui uma dentro dele passamos a criar os serviços de atenção dependência, em meio a uma sociedade com forte
coletivos de cuidado e saúde experiência radical, como se um terremoto, vulcão psicossocial para concretizar essa estratégia. desigualdade social e desvalorização das pessoas
Eduardo Mourão Vasconcelos e invasão da lava ardente das profundezas abissais Nesta mesma época, foram concebidos também oriundas das classes populares.
do inconsciente aflorasse no terreno que sustenta os dispositivos de controle social do SUS, através
Projeto Transversões Nós, integrantes do Projeto Transversões2,
nossas vidas concretas. de conselhos e conferências em todos os níveis
da sociedade, em que usuários de serviços, seus
Essa desmontagem do eu e de nossas certezas
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma familiares e demais representantes da sociedade 2 A cartilha e o manual foram organizados pela subequipe
mais básicas pode ser uma experiência impactante,
e que você não pode vender no mercado civil têm um papel-chave na definição dos rumos do Projeto de Ajuda Mútua, que se insere no Transversões,
podendo levar a atitudes de risco em relação a si e que é composta pelos seguintes membros: o próprio
como, por exemplo, o coração verde da política de saúde e saúde mental. E aos poucos,
dos pássaros próprio e aos que convivem conosco, ou simplesmente Prof. Eduardo Vasconcelos, também coordenador desta
foram criadas associações de usuários e familiares subequipe, psicólogo, cientista político, doutor pela
serve para poesia à insegurança, isolamento, passividade e
junto à rede de serviços de saúde mental, com Universidade de Londres e professor da Escola de Serviço
(...) invalidação pessoal. As respostas mais comuns que Social da UFRJ; a psicóloga e terapeuta de família
participação nos conselhos. Na verdade, não são
Tudo aquilo que a nossa nossas sociedades deram a esta experiência radical Rosaura Braz, que acompanha desde 1997 o Grupo Alento,
muitas em nosso país, têm um funcionamento frágil,
civilização rejeita, pisa e mija em cima, foi por muitos séculos a segregação, o abandono, de ajuda e suporte mútuos entre familiares no campo da
serve para poesia mas seu número vem crescendo gradualmente. saúde mental, na cidade do Rio de Janeiro, e que desde
o cárcere privado ou público, a institucionalização
Entretanto, em outros países, particularmente nos de o início dos anos 1990 atua e faz parte do Transversões; a
nos hospícios, o tratamento como doença a ser Profª Tatiana Rangel Reis, assistente social, doutora pela
Os loucos de água e estandarte língua inglesa e na Europa do Norte, a organização
servem demais objetivada, escrutinada e isolada, o estigma UFRJ e professora da Escola de Serviço Social da UFF,
generalizado na cultura, ou a própria negligência de usuários e familiares avançou muito, na direção em Niterói; Glória Lotfi, psicóloga e analista junguiana,
O traste é ótimo
de movimentos mais autônomos e radicais. Eles vêm membro analista e fundador da Sociedade Brasileira
O pobre-diabo é colosso indiferente nas ruas das cidades contemporâneas. de Psicologia Analítica (SBPA-RJ) e membro analista
(...) construindo novas iniciativas de empoderamento,
Mais recentemente, a partir de meados do século da International Association for Analytical Psychology
As coisas jogadas fora têm grande importância de grupos de ajuda e suporte mútuos, de defesa (IAAP), com sede em Zurique, Suíça, e que também
– como um homem jogado fora XX, surgiram novas esperanças, nos processos dos direitos, mudança na cultura de segregação atua na cidade do Rio de Janeiro, bem como Rosaura
de reforma psiquiátrica. Abriram-se inicialmente e estigma na sociedade, bem como de militância Di Lorenzo, psiquiatra argentina. Jeferson Rodrigues e
Aliás, é também objeto da poesia experiências de instituições mais humanizadas, de social, com vasto material de educação popular, Girlane Peres, de Florianópolis (SC) membros ativos de
saber qual o período médio outro projeto do Transversões, colaboraram em muitas
crítica aos fundamentos e à prática da psiquiatria projetos e serviços mais autônomos, muitas vezes ocasiões, com conversas e sugestões, mas não puderam
que um homem jogado fora objetivante e segregadora, mas a partir dos anos organizados pelo próprio movimento e, na maioria participar diretamente da produção destas publicações.
pode permanecer na terra sem nascerem 1970 se iniciaram os projetos mais radicais de Verônica Processi, psicóloga carioca, participou da
dos casos, também com financiamento público.
em sua boca as raízes da escória fase inícial do projeto. Incluo também na equipe de
serviços abertos na comunidade, tendo a liberdade
No Brasil, entretanto, apenas uma parcela do produção deste projeto as irmãs Márcia Nascimento
como principal agente terapêutico e a reinserção
As coisas sem importância são bens de poesia. movimento antimanicomial e dos serviços de atenção Silva e Claudia Helena Nascimento Silva, com seu
destas pessoas na vida social concreta da cidade apoio no campo administrativo e financeiro. Nos últimos
psicossocial esboçou iniciativas e estratégias claras
como direção-chave do tratamento. anos, juntaram-se à equipe do Transversões alguns
Manoel de Barros1 nesta direção do empoderamento. Na maioria dos estudantes da Escola de Serviço Social da UFRJ, que
No Brasil, apesar de algumas iniciativas isoladas serviços, ainda vigora de forma dominante aquela estão realizando seus trabalhos de pós-graduação ou
anteriores, este processo se iniciou de forma mais visão mais convencional de que tratamento e cuidado de final de curso de graduação (TCC) sobre este projeto
1 Trechos do poema “Matéria de poesia”, do livro de ou temas associados. Embora não tenham participado
explícita no final da década de 1970, ainda em constituem uma prerrogativa dos profissionais e
mesmo nome, publicado em 1974, e também disponível diretamente da montagem destes manual e cartilha, seus
em “Gramática expositiva do chão (poesia quase toda)”, plena ditadura militar, junto aos demais movimentos trabalhadores, de que a participação se dá apenas trabalhos contribuem para a construção do projeto. Tiago
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1996, p. 180-1. sociais que lutaram pela redemocratização. no processo de escuta e de prover informação Lopes Bezerra vem participando também dos grupos,

12 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 13
APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

investimos fortemente desde o início da década forte satisfação de podermos agora oferecê-los como facilitadores de grupos. Assim, profissionais experiência em serviços de atenção psicossocial,
de 1990 na pesquisa e na produção de estudos para o grande público, particularmente na forma e demais trabalhadores de saúde e saúde mental, e aos poucos a expandindo para a comunidade
sobre as possibilidades de mudar esta realidade e de publicações financiadas e apoiadas pelo próprio desde que comprometidos com os valores de e atenção primária. Além disso, várias outras
de avançar no Brasil a perspectiva e as estratégias Ministério da Saúde. empoderamento e autonomização dos usuários, propostas e iniciativas de empoderamento dos
de empoderamento que testemunhamos em vários poderão ter também um papel importante como usuários e familiares, particularmente de suas
Para os interessados em nos contatar, em trocar
países europeus e anglo-saxônicos. O Transversões estimuladores na formação de grupos, suporte direto associações e organizações, devem ser estimuladas
ideias, em contar sua experiência de grupos de ajuda
constitui um projeto de pesquisa e extensão voltado na facilitação das reuniões, ou como observadores e/ou adotadas pelas gerências de forma associada
e suporte mútuos, em dar sugestões e nos fazer
para o tema das abordagens psicossociais e da e avaliadores do processo, e particularmente como ou não à atenção básica, como indicado em alguns
críticas construtivas para aperfeiçoar a cartilha e o
saúde mental, lotado na Escola de Serviço Social da supervisores. Para isso, nossos cursos de capacitação dos textos de aprofundamento.
manual, o nosso endereço e contatos estão no final
Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado também incluem os profissionais e trabalhadores de
deste texto de apresentação. Somos muito gratos
pelo autor deste texto. Temos também o apoio do saúde e saúde mental, para atuarem na formação,
a qualquer contribuição para esta caminhada tão
difusão e assessoria a estes grupos pelo país. Este c) Por ONGs e por associações de usuários e
CNPq, Conselho Nacional de Pesquisa, ligado importante, na qual estamos engajados.
manual tem exatamente este objetivo primordial, familiares: os grupos de ajuda e suporte mútuos
ao Ministério de Ciência e Tecnologia, através
O apoio a este projeto por parte do Ministério da de formação para facilitadores de grupo, bem como podem ser assumidos por estas organizações e
de uma reavaliação regular de nossos projetos
Saúde constitui na verdade a expressão de um para profissionais e trabalhadores de saúde e saúde associações, até mesmo dentro de um conjunto
e da concessão de uma bolsa de produtividade
processo mais amplo nos últimos anos, que é gradual mental que queiram colaborar e assessorar os de iniciativas de caráter voluntário e realizadas
em pesquisa, como também da Coordenação
mas cada vez mais incisivo, de reconhecimento e grupos, além da difusão em aberto da metodologia em rodízio por suas lideranças. Entretanto, devem
Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras
legitimação das estratégias de empoderamento para o grande público em geral. buscar sua estabilidade e difusão ampla por meio
Drogas e do Fundo Nacional de Saúde, ambos
dos usuários e familiares como uma necessidade de trabalho remunerado, através de convênios ou
do Ministério da Saúde, que apoiam e financiam De nosso ponto de vista, a inserção dos grupos de
real do movimento de reforma psiquiátrica e de luta recursos oriundos de projetos próprios de renda e
o projeto como um todo, e sua cartilha e o manual. ajuda e suporte mútuos no campo da saúde e saúde
antimanicomial. Este reconhecimento teve seu ápice trabalho, de forma a prover bolsas ou salários para
Mais recentemente, também a FAPERJ tem apoiado mental pode se dar de diferentes formas:
na recente IV Conferência Nacional de Saúde os facilitadores. No entanto, esta iniciativa não
nossos projetos.
Mental – Intersetorial, que ocorreu em todo país deve substituir a difusão mais ampla dos grupos via
Nos últimos anos, a equipe do Transversões investiu de março a junho de 2010, quando o assunto foi a) Na Atenção Primária em saúde, junto ao a atenção básica e a gerência do programa de saúde
especialmente na pesquisa, sistematização e claramente assumido no temário prévio divulgado e Estratégia de Saúde da Família (ESF): esta mental, como política pública para todos.
publicação de textos sobre as experiências de na aprovação final de inúmeras diretrizes gerais e é a inserção que achamos prioritária, pois nosso
grupos de ajuda e suporte mútuos naqueles países propostas nesta direção4. projeto coincide inteiramente com os objetivos
e sobre os dispositivos criados pelo movimento de Temos consciência de que metodologias similares
É bom lembrar que, particularmente no Brasil, onde e estratégias estabelecidos neste campo tão
usuários e familiares no próprio Brasil3. Portanto, à que estamos propondo aqui já estão acontecendo
estamos iniciando a difusão desta metodologia importante de atenção pública à saúde para todos,
estes manual e cartilha significam o coroamento de e em que o cuidado em saúde mental também ou podem ser adaptadas também para outros grupos
de ajuda e suporte mútuos, é muito provável que
um enorme esforço de muitos anos, e temos uma se insere. Para isso, incluímos neste manual um sociais e em variadas áreas da saúde e saúde
lideranças de usuários e familiares, mesmo após
pequeno ensaio sobre o tema, no capítulo de textos mental, e particularmente da assistência social. É o
uma capacitação para a formação destes grupos,
de aprofundamento. caso, por exemplo, de cuidadores de ou das próprias
enquanto Valéria Debortoli Queiroz, Louise Rangel e ainda se sintam inseguros para atuarem sozinhos
pessoas com doenças crônicas com forte impacto
Marcele Arruda estudam ou estudaram temas correlatos. na vida humana ou com deficiências; pessoas com
E Tarcísia Castro Alves, que concluiu recentemente seu
mestrado na UFSC e assumiu o tema do empoderamento 4 Uma avaliação mais cuidadosa e detalhada das b) Pelas gerências e coordenações municipais poucas alternativas terapêuticas; idosos ou seus
como objeto de sua dissertação. resoluções da IV Conferência foi incluída no texto de do programa de saúde mental: se a integração familiares e cuidadores; pessoas que passaram por
3 A indicação de nossos estudos e publicações é feita aprofundamento sobre a história deste projeto, disponível com a atenção primária não for possível inicialmente, traumas oriundos de violência, acidente ou grande
nos textos de aprofundamento. Aos interessados neste manual. Também o texto sobre a organização
os grupos podem ser temporariamente iniciados de calamidade; pessoas institucionalizadas ou sob
diretamente nestes trabalhos basta ver as referências e a agenda de lutas e reivindicações dos usuários e
nos finais dos textos, que geralmente tomam a forma de familiares no Brasil recente é bastante sugestivo para a forma independente, mas buscando a integração medida de segurança; familiares de pessoas com
livros, coletâneas, capítulos de livros e artigos. abordagem do tema. tão logo seja possível. É possível também iniciar a uso abusivo de drogas etc. Entretanto, para cada

14 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 15
APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

área destas, a metodologia deve ser examinada Por sua vez, o manual apresenta apêndices grande número de cartilhas avulsas. Sabemos de Contato:
com cuidado, para avaliar as mudanças, adaptações exclusivos, não disponibilizados na cartilha antemão que os exemplares da presente edição
Projeto Transversões
e cuidados necessários. Sugerimos também que, dos participantes, e que constituem um material serão necessariamente insuficientes para a
neste processo de adaptação, se devam realizar indispensável: enorme demanda potencial. Para supri-la, nós, do A/C do Prof. Eduardo Mourão Vasconcelos
experiências-piloto prévias, acompanhadas de Projeto Transversões, em uma decisão que conta Escola de Serviço Social da UFRJ
avaliação cuidadosa, para se fazer as devidas com o apoio da Coordenação de Saúde Mental do
a) Apêndice 1: Tabelas de Fases dos Vários Av. Pasteur 250 Fundos
correções5. Ministério da Saúde, iremos abrir mão dos direitos
Tipos de Reunião de ajuda mútua (tabelas 1 a 7) autorais e disponibilizar o original na forma digital Rio de Janeiro
e suporte mútuo (tabelas 8 e 9): a organização das para publicação direta por gestores de saúde e Fone: (21) 3873-5413
reuniões de grupo está toda inserida em tabelas saúde mental e por associações de usuários e
individuais de uma só página, que devem ser familiares do país6. Hoje em dia, a maquinaria
Antes de concluir, chamamos a sua atenção para
levadas para todos os encontros, pois resumem as eletrônica das gráficas mais atualizadas pode
o fato de que este manual inclui, integrada à
fases e etapas de cada tipo de reunião, e portanto executar com facilidade a publicação de pequenas
sua encadernação, mas também destacável, E-mails:
são fundamentais no trabalho dos facilitadores. quantidades de livros, sem custo adicional, como
uma cartilha mais simplificada dirigida para os
participantes dos grupos, e que deve ser estudada acontecia nas gráficas convencionais. Em caso emvasconcelos55@gmail.com
com cuidado pelos facilitadores. Os facilitadores e disso não ser possível, recomendamos que, para rosaura.braz@gmail.com
b) Apêndice 2: Plano e Cartão de Crise:
demais pessoas interessadas em implementar uso local, a cartilha e o próprio manual possam ser
constitui um conjunto de informações importantes,
esta metodologia devem necessariamente reproduzidos em cópias reprográficas comuns.
sintetizadas previamente pelo próprio usuário e
manter para si as duas publicações Finalizando, portanto, desejamos então a todos
técnicos de referência, para auxiliar profissionais,
integradas, pois há algumas seções que não uma boa leitura deste manual, colocando-nos à
amigos e serviços a tomarem as iniciativas e
foram necessariamente repetidas em cada disposição para esclarecimentos e reafirmando que
providências necessárias para garantir o bem-estar
uma de suas partes, por motivos econômicos. sugestões e críticas são bem-vindas e necessárias
da pessoa, em caso de uma eventual crise mental.
Assim, o anexo da cartilha contendo documentos ao aperfeiçoamento desta metodologia.
Sua face visível é o Cartão de Crise, com menos
importantes, de legislação e cartas de defesa
dados, e mantido junto aos documentos pessoais,
de direitos no campo da saúde mental, não
e que anuncia onde se encontra o Plano de Crise,
foi repetido no manual. O mesmo ocorre com um Um grande abraço do amigo
para informações mais detalhadas. Este manual
apêndice intitulado Plano pessoal de ação
apresenta duas versões de plano e cartão, uma
para o bem-estar e a recuperação, essencial
holandesa e uma primeira adaptação brasileira,
para o processo de recuperação. Da mesma forma, Prof. Eduardo Vasconcelos e da Equipe do Projeto de
sendo que esta última já está inserida na cartilha
algumas seções internas e documentos importantes Ajuda Mútua
dos participantes.
para a realização das reuniões de grupo, como, por Projeto Transversões
exemplo, o Contrato de Funcionamento, só estão c) Apêndices 3 e 4: Aqui, temos propostas de 2
disponíveis na cartilha. documentos básicos para registro e monitoramento
de grupos de ajuda mútua em programas formais
geridos por municípios, com bolsa de trabalho para
os facilitadores.
6 Tão logo o manual e a cartilha sejam lançados em papel,
5 Para ajudar neste trabalho, fizemos questão de redigir estaremos providenciando a montagem de um site ou
um texto compilando os princípios ético-políticos e Na medida em que a cartilha constitui o material blog na internet onde estes textos serão disponibilizados.
metodológicos que nos orientaram na construção da de base para cada um dos participantes dos grupos, Esperamos receber dados básicos sobre responsáveis
cartilha e do manual, e que foi incluído no capítulo de pela republicação, com número de exemplares produzidos,
sabemos que a sua implementação vai exigir um
textos de aprofundamento. área e mecanismos de distribuição etc.

16 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 17
APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES

Apresentação 3 Nas reuniões seguintes, à medida que comecei saber que o grupo tinha possibilitado a eles o uma nova era em saúde mental no Brasil, e com
a dividir com os demais as minhas experiências, acesso a eventos sociais e culturais. certeza ajudando a criar um sistema de cuidados
percebi como eu também podia ser útil para eles. muito mais humano e capaz de despertar cada
Carta de Richard Weingarten, Mas há também encontros muito difíceis. Uma
Devagarzinho, vendo os outros líderes de grupo, e no vez mais esperança nas pessoas!
uma das principais lideranças noite, uma mulher veio muito deprimida para
início com muitos receios, aprendi a facilitar grupos.
do movimento de usuários dos o grupo e falou abertamente em querer se Abração do amigo
Depois de minhas primeiras tentativas, perguntei a
Estados Unidos machucar. Nós não a deixamos só. Depois do
um usuário conhecido como tinha ido na reunião. Richard Weingarten8, M.A., CPRP
encontro, a conduzimos para o hospital mais
E ele me respondeu: “Você foi um ‘profissa’, meu New Haven, CT, USA
próximo, e a esperamos na sala de emergência
chapa, como se estivesse fazendo isso a vida toda!”.
New Haven (Connecticut, EUA), 6 de março de 2011 até que a família viesse e a equipe a avaliasse.
Saber que eu tinha tido um efeito muito positivo nos 8 Nota do coordenador: É necessário fazer aqui uma
Destas experiências tão pessoais, eu passei
outros me deu a confiança necessária para tentar apresentação de Richard, para que se possa entender
a apreciar e valorizar os grupos de ajuda e a sua presença nestes manual e cartilha. Weingarten
Caros Eduardo e demais membros da equipe de achar um trabalho no campo da saúde mental.
suporte mútuos também em sua dimensão esteve no Brasil entre 1968 e 1973, como trabalhador
ajuda e suporte mútuos, Quando achei o primeiro trabalho, uma das tarefas
mais coletiva, como uma parte integrante e do “Corpo da Paz” (“Peace Corps”) ou da United Press
iniciais foi facilitar um grupo de ajuda mútua para International (UPI), como jornalista correspondente, e
necessária do sistema de saúde mental. Além
pessoas com depressão e ansiedade. Depois das apaixonou-se pelo nosso país, por nossa gente e cultura.
Parabéns pela nova cartilha e o manual de ajuda disso, os grupos são o terreno preparatório para Entre 1974 e 1986, teve fortes crises mentais, com
quintas à noite, ao final do grupo, nós saíamos
e suporte mútuos! Estou certo de que os usuários as futuras lideranças do movimento de usuários ataques severos de depressão e sintomas psicóticos.
para tomar um café em um restaurante próximo. Foi internado cinco vezes. Uma boa medicação e o
e familiares brasileiros vão se beneficiar muito e familiares. Em outras palavras, conversar sobre
Daí, fomos ficando muito amigos uns dos outros. envolvimento com grupos de ajuda mútua em Cleveland,
com os novos grupos a serem formados, como eu minhas experiências pessoais, ter atividades Ohio, em 1986-87, o ajudaram a sentir-se melhor consigo
As pessoas podiam entrar e sair do grupo quando
mesmo o fiz muitos anos atrás, quando eu estava sociais e trabalhar, descobrir novos objetivos mesmo e estabeleceram a base para a sua recuperação,
queriam ou precisavam. Era muito gratificante vê-
muito deprimido e tão desesperado da vida. Foi num de vida, tudo isso não só ajudou a aceitar o ao mesmo tempo em que o iniciaram como ativista do
las sorrindo após os encontros, depois de entrarem movimento de usuários em seu país, que já vinha se
grupo deste tipo que aprendi a falar livremente, sem com tristeza e expressões carregadas no rosto, com meu transtorno e me fez sair daquela situação
organizando desde o início da década de 1970. A partir
medo ou vergonha, dos problemas que emergiram todo o peso do mundo em suas costas. de solidão e isolamento, mas também me abriu dos anos 1990, Richard vem exercendo várias funções
com o meu transtorno e da vida empobrecida que novas e ricas oportunidades para uma vida ativa como diretor de assuntos dos usuários em serviços
parecia vir junto com ele. Fiz novos amigos entre os Em algumas semanas, em vez de ter o encontro, e participativa na sociedade. Na medida desta públicos de saúde mental e em atividades acadêmicas,
a gente ia para o teatro local, para uma noite que particularmente na Universidade de Yale, e é reconhecido
companheiros do grupo e adorei o dar e receber do aceitação, fui elaborando meu processo pessoal como uma das principais lideranças do movimento nos
fundo do coração que acontece nas conversas do passamos a chamar de “para ver o que a gente de recuperação, e também fui me capacitando Estados Unidos, mas também desenvolve atividades e
pode pagar”. Antes da peça, a gente parava em para trabalhar e participar deste processo é muito conhecido em vários outros países. Tem voltado
grupo, que me informaram e inspiraram.
uma cafeteria para um café e conversa. Meses regularmente ao Brasil, em iniciativas de intercâmbio
mais amplo no sistema de saúde mental e na
Eu me lembro da primeira vez em que fiz parte de um depois, fui a este mesmo local com um conhecido, com o Projeto Transversões ou como convidado para
sociedade em geral. eventos relacionados com a reforma psiquiátrica e com
grupo desses. Era uma noite escura e chuvosa, e eu e descobri alguns dos membros do grupo tendo
a política de saúde mental. Em 2001, publicou no Brasil,
estava tão deprimido que não conseguia falar. Mas um café com seus amigos. Ao estar com eles, Eduardo e sua equipe, eu desejo a vocês, bem
através do Projeto Transversões e do Instituto Franco
eu escutei as pessoas conversarem abertamente me informaram que estavam indo para o teatro, como a todos os usuários e familiares que Basaglia, no Rio de Janeiro, a cartilha intitulada “O
sobre seus problemas e dificuldades, e assim, fui em uma daquelas noites “para ver o que a gente certamente se beneficiarão destes grupos de movimento de usuários em saúde mental nos Estados
recebendo compreensão e encorajamento dos outros ajuda e suporte mútuos, boa sorte e muito Unidos: história, processos de ajuda e suporte mútuos
pode pagar”.7 Eu fiquei então muito satisfeito em e militância”. Construímos conjuntamente e lançamos
membros do grupo. Quando saí daquele encontro, me sucesso! Com estes grupos, vocês estão iniciando em 2006 o livro Reinventando a vida: narrativas de
senti muito animado, de uma forma que não sentia há recuperação e convivência com o transtorno mental (Rio/
muito tempo. Fora do hospital, onde foi a reunião, vi as 7 Nota do coordenador desta publicação: no Brasil, São Paulo, EncantArte/Hucitec). Assim, o movimento
como até mesmo um cinema ou teatro pode não ser do teatro ou do cinema, no qual se explica a natureza norte-americano e o próprio Richard tiveram, portanto,
luzes da rua brilharem e piscarem intensamente. Foi aí
acessível para a maioria de nossos usuários e familiares do projeto. Em geral, não é difícil se conseguir as um papel fundamental nestes manual e cartilha, seja
então que percebi mais claramente que tinha tido uma de serviços públicos, este tipo de iniciativa de suporte entradas grátis necessárias para os membros dos grupos, como uma das principais experiências inspiradoras, seja
experiência muito positiva. mútuo é realizado com um contato prévio com a direção particularmente em centros culturais públicos. como assessor concreto no seu processo de construção.

18 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 19
APRESENTAÇÕES

no Brasil, e algumas delas tiveram contribuições diretas (Olaria), e a Paula Urzua, no CAPS Maria do Socorro Santos
Agradecimentos nomeá-los fatalmente nos faria cometer muitas e indiretas fundamentais neste projeto. Aqui, não posso (Rocinha). Nos demais estados, temos que agradecer a
injustiças, e prefiro não me arriscar. deixar de citar os importantes aportes de Manuel Desviat Norma Casimiro, de Camarajipe (PE); a Maria do Horto
de Madrid (Espanha); Lucia dos Santos Rosa, de Teresina Salbego, Teresinha Aurélio e Judete Ferrari, de Alegrete
Ainda no Brasil, gostaríamos de agradecer
A cartilha e seu manual, bem como as experiências (PI);de Jeferson Rodrigues, de Florianópolis; de Rosana (RS); a Suzana Roportella, Dirce Cordeiro, Elisabete Henna,
primeiramente ao Fundo Nacional de Saúde e
piloto que subsidiaram a construção desta Onocko Campos, em Campinas (SP); de Sandra Fagundes, Iana Ribeiro, Drauzio Viegas Junior e Décio Alves em São
à Coordenação Nacional de Saúde Mental,
metodologia, não poderiam ser desenvolvidos sem em Porto Alegre (RS); de Ana Simões da Fonseca, em Recife Bernardo do Campo (SP); a Albano Felipe, de Santo André
Álcool e Outras Drogas, do Ministério da
o apoio de um enorme conjunto de instituições e (PE), de Magda Dimmenstein, em Natal (RN); de Tarcísia (SP); a Rodrigo Presotto e Waldemar Souza, em Campinas;
Saúde, que apoiam e financiam este projeto, e esta
pessoas, e neste momento gostaríamos de fazer Castro Alves, em Vitória da Conquista (BA); de Willian a João Batista Pereira de Souza, Luciene Lemos e Nazareth
cartilha e o manual. Na Coordenação, queríamos
justiça reconhecendo-as e manifestando nosso Castilho Pereira, em Belo Horizonte (MG); de Erika Finotti, Reis, em Angra dos Reis (RJ); a Eraldo Ferreira, de
lembrar especialmente do coordenador até a
agradecimento. Sabemos que, ao nomear pessoas, em Uberlândia (MG); e de Pedro Gabriel Delgado, Paulo Carapicuíba (SP); e a Marta Evelyn Carvalho, em Teresina
ano de 2010, Dr. Pedro Gabriel Godinho Delgado,
caímos no risco de fazer injustiças esquecendo de Amarante, Marta Zappa, Rita Cavalcante Lima e Eduardo (PI). Entre as várias associações de usuários e familiares
que acreditou na idéia, e de toda a sua equipe;
algumas delas, mas não podemos deixar de fazê-lo Passos, no Rio de Janeiro. Quero lembrar especialmente que apoiaram ou abraçaram inteiramente este projeto, não
e nesta, especialmente de Milena Leal Pacheco
em relação àquelas que pelo menos deram o seu de Eymard Mourão Vasconcelos, de João Pessoa (PR), podemos deixar de agradecer e citar a APACOJUM e a
e Karime Fonseca, mais diretamente ligadas ao
suporte mais direto para nossa iniciativa. meu irmão e amigo pessoal, companheiro de caminhada AFAUCEP, no Rio de Janeiro; a AFAUC, de Angra dos Reis; a
desenvolvimento deste projeto. Foi fundamental
desde o início de nosso ativismo social na década de AFLORE, de Campinas; a De Volta pra Casa, de Santo André;
Em primeiríssimo lugar está a contribuição “a também o apoio político dos integrantes do Grupo 1970, um dos fundadores e liderança-chave do movimento a Mente Ativa, de São Bernardo do Campo; e a Âncora, de
quente” da experiência de vida, dos depoimentos e de Trabalho de Demandas de Usuários e de educação popular em saúde do país, e que também Teresina (PI).
das sugestões de todos os usuários e familiares Familiares, criado junto àquela Coordenação e em contribui neste projeto com um texto de aprofundamento.
que participaram de nossos projetos-piloto atividade em 2009 e 2010, que analisou e aprovou Voltando à cidade do Rio de Janeiro, este projeto não
Também Victor Valla (Rio de Janeiro, RJ), intelectual e co-
de grupos, incluindo os participantes do Grupo integralmente esta iniciativa. Ainda no âmbito poderia se desenvolver de forma alguma sem toda a
fundador deste mesmo movimento, um saudoso amigo que
Alento9, de familiares do Rio de Janeiro, mais de Brasília, é fundamental não esquecer ainda do equipe do Projeto Transversões, já nomeados na
nos deixou recentemente, nos inspirou e fez sugestões
antigo, que vem constituindo significativa fonte CNPq, Conselho Nacional de Pesquisa, ligado apresentação, especialmente aqueles mais diretamente
fundamentais. Ainda neste âmbito das parcerias nacionais,
de inspiração para nossos trabalhos. São assim ao Ministério de Ciência e Tecnologia, com seu ligados a esta iniciativa, que também assinam a autoria
é fundamental agradecer pelo apoio que temos recebido de
mesmo, anônimos, porque temos que garantir o apoio regular ao Projeto Transversões na forma de desta cartilha e do manual, como também a autoria dos
várias lideranças de profissionais, e particularmente
sigilo em todos os nossos grupos. De forma similar bolsa de produtividade em pesquisa. textos de aprofundamento neste último. Em especial,
gestores estaduais e municipais de programas
estão muitos militantes usuários, familiares, gostaria de lembrar de Rosaura Braz, que me acompanhou
Este projeto também não poderia se desenvolver e serviços de saúde mental em todo o país,
trabalhadores e profissionais do movimento em cada passo deste projeto, em todas as decisões,
sem a inspiração nos movimentos de usuários e principalmente através da receptividade em nos receber
antimanicomial em todo o Brasil, principalmente reuniões e viagens por esse Brasil afora. Rosaura tem
familiares de outros países e na sua sistematização e, em muitos casos, em desejar ou dar suporte concreto
do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, que uma sensibilidade toda especial pelos familiares da saúde
em textos e publicações. Para ter acesso a toda esta para implementar o projeto em seus municípios. Aqui,
vêm desenvolvendo iniciativas similares em seus mental, e foi pioneira na criação do Grupo Alento, que
até o presente momento, no Rio de Janeiro, somos muito
locais de moradia e de ativismo, que entenderam experiência, contamos com a intensa colaboração,
gratos ao Dr. Francisco Sayão Lobato Filho e à Dra. Márcia tanto nos inspirou. Na conjunto do Transversões, temos
logo a importância deste projeto e o apoiaram de assessoria e o apoio efetivo de nossos vários
Schmidt, na esfera estadual ; ao Dr. Mario Barreira Campos, um ativismo hegemonicamente voluntário, de profissionais
todas as formas. Em especial, não podemos deixar parceiros internacionais, e não podemos deixar
a Pilar Belmonte, Alexander Ramalho, Ana Carla Silva, que arregaçam as mangas a partir da compreensão da
de citar todo o suporte dado pelo Núcleo Estadual de citar aqui, dentre eles, particularmente Richard
Ana Felisberto Silveira, Mariana Sloboda e Aline Cescon importância ética, política e metodológica do dispositivo
do Movimento da Luta Antimanicomial do Rio Weingarten, liderança dos usuários nos Estados
Jardim, na Coordenação Municipal de Saúde Mental do de cuidado e ativismo que estamos sistematizando. Na
de Janeiro. Quanto aos membros do movimento Unidos; Claudia de Freitas, psicóloga, pesquisadora
município; a Patrícia Matos, Andrea Farnettane, Elida dos criação do projeto gráfico da cartilha e manual, na revisão
antimanicomial brasileiro, qualquer tentativa de e ativista do movimento de usuários na Holanda; e
Santos, Renata Miranda e Marcia Bezerra, no CAPS João e diagramação, somos gratos pelo trabalho maduro e
a Profª Shulamit Ramon, pesquisadora e ativista do
Ferreira (Complexo do Alemão); a Andrea Marcolan e Tânia profissional da designer gráfica Renata Figueiredo e sua
campo da saúde mental na Inglaterra.
Cerqueira, do CAPS Ernesto Nazareth, além de Glória de equipe, uma feliz indicação de Kitta Eitler, nossa amiga
9 Para os interessados em maiores informações sobre
este grupo, ver o texto de aprofundamento neste manual, É claro que temos também importantes parcerias Fátima Veiga Santos, que atuam na Ilha do Governador; pessoal e também profissional da área. E a revisão final da
de autoria de Rosaura Maria Braz. intelectuais e de companheirismo acadêmico a Carla Cavalcante Paes Leme, no CAPS Fernando Diniz programação visual coube ao Frito Studio, também do Rio

20 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental


APRESENTAÇÕES

de Janeiro, e assim, nosso muito obrigado a Clara no resto do país, e queremos lembrar especialmente
Colker e a Peu Fulgêncio. E ainda nesse campo, da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e da
queremos agradecer especialmente a Henrique Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Formação básica
Monteiro da Silva, desenhista e usuário da saúde
E, finalmente, temos as instituições e pessoas que
mental, membro atuante da TV Pinel, pelas ótimas
acolheram em suas instalações os nossos grupos-
ilutrações que inserimos neste manual e cartilha.
piloto iniciais no Rio de Janeiro, que serviram

operativa para
No apoio institucional ao Projeto, é fundamental de base para a experimentação da metodologia.
reconhecer que ele não seria possível sem o suporte Agradecemos ao Colégio Pinheiro Guimarães e ao
integral da Vice-Reitoria da UFRJ, que faz a Museu da República, no Catete, que nos cederam
gestão do convênios externos desta universidade, suas instalações para a primeira capacitação, em

facilitadores e
assumindo portanto o convênio com o Fundo 2008. Depois, as reuniões passaram a acontecer
Nacional de Saúde. Assim, nosso muito obrigado nas salas cedidas pelo Núcleo de Saúde Mental e
aos vice-reitores, nas pessoas da Prof.a Sylvia da Trabalho (NUSAMT), na Secretaria Municipal de

apoiadores
Silveira Mello Vargas, que exerceu o cargo até 2011, Trabalho, e agradecemos por isso a Vera Pazos,
e do atual, Prof. Antônio José Ledo Alves da Cunha. Reneza Rocha e Carlos Frederico (Fred). Em 2010,
Além deles, dentro da UFRJ, a tramitação contou fomos “adotados” com muito carinho pela Escola de
com o enorme suporte e aconselhamento regular de Formação Técnica em Saúde Enfermeira Izabel dos
Inês Maciel, Regina Célia Loureiro, Silvia Reis dos Santos, em Botafogo, e por isso somos muito gratos
Santos e Penha Ferreira dos Santos, bem como com a sua diretora, Márcia Cristina Cid Araujo e a sua
o apoio administrativo da Fundação José Bonifácio equipe, com destaque para Luís Aquino. Em 2011,
(FUJB). Por sua parte, Eneida Oliveira, do Sistema com o fechamento desta escola em Botafogo, fomos
de Bibliotecas e Informações (SIBI) foi fundamental acolhidos pelo Instituto Franco Basaglia e Instituto
no suporte técnico em biblioteconomia. Philippe Pinel, com o apoio pessoal de Esther Arotchas
e Marta Zappa, aos quais somos muito gratos.
Ainda na UFRJ, tivemos todo o total apoio da
direção da Escola de Serviço Social da UFRJ, Antes de terminar, gostaria de lembrar de nossas
nas pessoas dos professores Mavi Rodrigues e famílias, que compreenderam a importância e estão
Marcelo Braz; do Programa de Pós-Graduação apoiando integralmente este projeto desde o início,
em Serviço Social, na sua coordenadora na apesar de saber que ele implicaria em diminuir
época, Prof. Sara Graneman, e do Departamento sobremaneira o nosso tempo de convívio familiar.
de Métodos e Técnicas, chefiado neste período No meu caso pessoal, quero expressar minha mais
pela Prof. Rita Cavalcante Lima. Estas instâncias são profunda gratidão a Denise Pamplona; a Pedro
aquelas que nos acolhem, avaliam e aprovam todos Henrique, Carolina e a nossa neta Luisa; e a Maria
os nossos projetos, e dão todo o apoio institucional, Paula e Roberto Rivelino.
o espaço e a infraestrutura básica de funcionamento
A todos vocês, e aos vários apoiadores que não
para nosso trabalho interno. Somos muito gratos
pudemos nomear aqui, nosso muito obrigado!
a todos eles. Além da Escola, onde estou lotado,
o Instituto de Psicologia da UFRJ também tem Rio de Janeiro, setembro, 2012.
apoiado a proposta, na pessoa de seu diretor, o
Prof. Marcos Jardim. Outras universidades também Eduardo Mourão Vasconcelos
tiveram um papel importante em nossas atividades e equipe do Projeto Transversões

22 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental


FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

II. FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA 10 Para a construção deste capítulo e do seguinte, foram Por sua vez, o suporte mútuo visa primordialmente defesa informal ou profissional dos direitos das
fundamentais várias experiências de militância social e saúde
PARA FACILITADORES E mental em ambientes populares, desde a década de 1970, e
realizar juntos (usuários, familiares e pessoas pessoas envolvidas, à transformação da cultura
APOIADORES10 o trabalho de pesquisa geral do Projeto Transversões, mais conhecidas e amigas do campo) atividades sociais, de discriminação ou estigma na sociedade, ou
particularmente sobre a experiência dos grupos de ajuda e artísticas, culturais, esportivas, comunitárias, de ainda podem desenvolver iniciativas de militância
Este capítulo contém as informações essenciais suporte mútuo no Brasil, nos Estados Unidos e de outros países. lazer, de reconhecimento, e a utilização de recursos social e política mais ampla, aliando-se a outros
e imprescindíveis que devem constar em uma As seguintes fontes constituíram as principais referências aqui:
- O ativismo e acompanhamento de grupos e projetos populares sociais na comunidade local e na sociedade. As grupos e movimentos sociais, e procurando
capacitação básica inicial para facilitadores de
no campo social, da saúde e particularmente de saúde mental ideias originais destas iniciativas podem até influenciar e realizar transformações no âmbito da
grupo, bem como para trabalhadores de saúde e na Cidade Industrial de Belo Horizonte, nas décadas de 1970 mesmo nascer dentro dos grupos de ajuda mútua, sociedade, das instituições, das leis e das políticas
saúde mental que queiram dar suporte aos grupos e 1980 (Exemplo: VASCONCELOS, E. M. O que é psicologia
mas a organização para realizá-las é feita em públicas envolvidas no campo em foco. Sobre
e aos facilitadores. comunitária. São Paulo: Brasiliense, 1985, e VASCONCELOS
[2008], indicado abaixo); reuniões e atividades diferenciadas, em diversos este tema, sugerimos ao leitor a leitura do texto
- A experiência de grupo de usuários realizada no Hospital- tipos de locais na sociedade, e os grupos de ajuda de aprofundamento sobre os conceitos básicos de
Dia do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, entre 1993 e 1995, empoderamento neste manual.
1) A diferenciação entre os grupos de ajuda mútua devem manter suas reuniões regulares.
acompanhada por Eduardo Vasconcelos, no qual os usuários
mútua e de suporte mútuo gradativamente assumiram a coordenação dos trabalhos; Assim, as atividades de suporte mútuo não se
- A experiência prática do Grupo Alento, de familiares do confundem e não substituem as reuniões de
campo da saúde mental, formado em 1997, na cidade do Rio de ajuda mútua, que constituem a base e porta b) Tipo de participantes e de problemas comuns:
Janeiro, acompanhada pela psicóloga Rosaura Braz, da equipe
As iniciativas e atividades de ajuda e suporte mútuos organizadora deste manual; de entrada do sistema de empoderamento No campo da saúde mental, os grupos de ajuda
devem estar integradas entre si, mas correspondem - ZINMAN, S. et al. (ed.). Reaching across: mental health clients para a maioria dos usuários e familiares, e mútua são primeiramente voltados para as pessoas
a objetivos, locais de funcionamento e tipo de helping each other. Self-Help Committee of the California portanto devem ser contínuas e permanentes. com transtorno mental, usuárias ou não de serviços
Network of Mental Health Clients, Sacramento, 1987;
participantes diferenciados. Em outras palavras, - VASCONCELOS, E. M. O poder que brota da dor e da opressão: Dessa forma, os objetivos, a organização separada de saúde mental. Outros grupos separados, mas
as mesmas pessoas podem, e até mesmo devem, empowerment, sua história, teorias e estratégias. São Paulo: e o trabalho conjunto são os principais elementos com dinâmica de funcionamento idêntico, devem ser
participar dos dois tipos de grupos, mas estes têm Paulus, 2003; diferenciadores do suporte mútuo. Este busca, nos criados para os familiares. O importante, então, é
- VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens psicossociais, vol II:
arranjos e características bem diferenciadas, como primeiros momentos, ampliar as oportunidades que estes grupos reúnem os pares, ou seja, pessoas
reforma psiquiátrica e saúde mental na ótica da cultura e das
indicado a seguir: lutas populares. São Paulo Hucitec, 2008; de cuidado, sociabilidade, lazer e vida cultural: com problemas semelhantes, cujas experiências,
- REIS, T. R. “Fazer em grupo o que não posso fazer sozinho”: promover o acompanhamento, ir juntos ao cinema, sentimentos e estratégias de lidar serão trocadas
indivíduo, grupo e identidade social em Alcoólicos Anônimos. entre si, gerando também o apoio emocional mútuo.
teatro, shows, museus, fazer passeios ou realizar
a) Objetivos: Tese de doutoramento em Serviço Social, ESS-UFRJ, Rio de
Janeiro, UFRJ, 2007; atividades esportivas e de lazer, em qualquer tipo de Os grupos de ajuda mútua podem ser formados em
A ajuda mútua visa primordialmente à acolhida, - WEINGARTEN, R. O movimento de usuários em saúde mental local público e também utilizado por outras pessoas outros campos, com pessoas que passam por outros
nos Estados Unidos: história, processos de ajuda e suporte da sociedade.
à troca de experiências e de apoio emocional, tipos de sofrimento e opressão, e possivelmente
mútuos e militância. Rio de Janeiro: Projeto Transversões/
realizadas em grupos compostos, na medida do Instituto Franco Basaglia, 2001; Os grupos de suporte mútuo podem chegar, mais
possível, apenas por pessoas com problemas - VASCONCELOS, E. M.; WEINGARTEN, R. et al. Reinventando a
tarde, a desenvolver projetos mais complexos de
comuns, que partilham do mesmo tipo de vida: narrativas de recuperação e convivência com o transtorno
mental. Rio/São Paulo: EncantArte/Hucitec, 2006; trabalho/renda e moradia, que promovam uma
sofrimento. São grupos “coordenados” – - Troca regular de informações e de ideias com Richard vida mais independente e mais autônoma de seus
preferimos dizer facilitados – por essas mesmas Weingarten, liderança do movimento de usuários de membros. Nestes casos, chegam a se organizar
pessoas, e a eventual presença de profissionais Connecticut, EUA, nosso companheiro de intercâmbio e amigo
há muitos anos. inclusive formalmente, com estatuto e registro civil,
se dá apenas como suporte indireto. Suas em associações civis, cooperativas ou como grupos
reuniões são realizadas em locais e espaços filiados a outras entidades sociais ou ONGs.
mais protegidos. No campo da saúde mental, há
dois tipos de grupos: aqueles diretamente para Nestes estágios mais avançados, os grupos
pessoas com transtorno mental e aqueles para de suporte mútuo podem também constituir
seus familiares. a “incubadora” de outras estratégias de
empoderamento, como aquelas que visam à

24 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 25
FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

com um funcionamento muito similar, mas em todos Nesta direção, o que mais distingue a ajuda mútua Nos grupos que ainda estão em formação ou b) Principalmente nos grupos de ajuda mútua,
os casos o mais importante é esta característica é sua realização em salas em centros sociais e quando há membros novos, o contrato deve o nome dos participantes e o que é dito dentro
de grupos entre pares, de pessoas que vivem um comunitários, cujas portas possam ser fechadas ser obrigatoriamente lido no início da reunião. do grupo por um de seus membros não pode ser
mesmo problema ou forma de opressão comum. durante as reuniões, para possibilitar um ambiente Por sua vez, os facilitadores devem conhecer e levado para fora, particularmente para a sua
seguro para seus participantes se mostrarem e discutir este documento em profundidade, pois família, amigos ou serviço de saúde mental. A
Os grupos e projetos de suporte mútuo, no campo
exporem suas vivências. Exige, portanto, a garantia ele constitui o dispositivo-chave para se garantir isso nós chamamos de direito à privacidade, à
da saúde mental, têm prioridade para os usuários
de não haver interrupções e entrada de pessoas a ordem e a convivência pacífica nas reuniões, o confidencialidade e à proteção das informações
e familiares da área, mas podem e devem incluir
estranhas, o que ajuda a assegurar o sigilo em que é uma exigência central para a continuidade pessoais, e representa um valor importante no
outros tipos de pessoas, como uma forma de buscar
relação aos participantes e às informações faladas dos grupos de ajuda e suporte mútuos e para que mundo dos profissionais e também nos grupos de
a integração na sociedade e combater o estigma
durante a reunião. eles possam desenvolver seus efeitos psíquicos13. ajuda e suporte mútuos. Apenas em situações de
associado ao transtorno mental.
emergência, quando um dos membros precisa de
Por sua vez, as atividades de suporte mútuo também A seguir, buscamos comentar e dar esclarecimentos
algum esforço comum do grupo para ser ajudado, é
visam sair dos serviços para espaços comunitários adicionais acerca de algumas das regras do contrato:
c) Local e espaços de realização: que se pode dividir um mínimo de informações que
e públicos, geralmente abertos e compartilhados
possibilite aos demais compreender a situação
No campo da saúde mental, as duas modalidades pelo grande público. Elas podem ser também
a) Em retorno pela ajuda e o suporte recebidos, os e prover ajuda. Sempre que possível, pergunte à
podem ser realizadas dentro de serviços abertos realizadas em locais cujo acesso pode ser comprado
membros devem ter respeito, consideração e buscar pessoa se ela não se importa com essa divulgação
de saúde e saúde mental, como, por exemplo, os ou negociado, como nos cinemas, teatros, museus,
dar suporte e respostas às necessidades de cada de suas informações, para ajudar no cuidado
CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), centros de parques e centros culturais.
um dos colegas. necessário de emergência.
convivência, ambulatórios, e centros de saúde, mas
ambas devem também procurar sair dos serviços
para outros locais da comunidade e da sociedade, c) Talvez a regra mais importante deste contrato
como na própria atenção primária em saúde11. Isto 2) Regras básicas dos grupos e atividades de seja a que exige “respeito aos valores e ausência
é muito importante, porque existe uma tendência ajuda e suporte mútuos 13 Este tema é longamente discutido no texto de de crítica ou julgamento em relação ao que o outro
muito forte para que as atividades de atenção aprofundamento, incluído neste manual, sobre processo está falando, não sendo permitida nenhuma forma
psicossocial fiquem restritas aos serviços, gerando grupal e grupos de ajuda mútua.
uma predisposição para o que às vezes é chamado As regras dos grupos de ajuda e suporte mútuos devem
de “cronificação” dos usuários e familiares nos ser poucas e simples, mas são importantíssimas,
serviços12. porque elas sintetizam a experiência anterior de
grupos similares, evitando problemas e conflitos que
podem inclusive inviabilizar o funcionamento do grupo.
11 Os interessados neste tema devem buscar o texto de A cartilha do participante traz um “contrato de
aprofundamento sobre o assunto neste manual. participação nos grupos”, com as regras básicas
e indispensáveis que devem ser discutidas e
12 Em muitos países que avançaram em seu processo de
reforma psiquiátrica, busca-se compensar essa tendência assumidas como o documento mais fundamental
nos serviços abertos de saúde mental com uma busca do grupo. Todos os participantes devem conhecê-
ativa de atividades e recursos sociais e culturais fora dos lo previamente, e a aceitação das regras do
serviços. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, bem como
contrato é precondição para participar do grupo.
em vários países de língua inglesa, esta proposta recebe
o nome de reach out programmes, expressão que pode
ser traduzida como “programas de busca ativa fora dos
serviços”. Neles, profissionais e lideranças assumem a
função de oficineiros, estimulam os grupos de suporte recursos e projetos a serem realizados na comunidade e
mútuo e partem para passeios, atividades, busca de na sociedade em geral.

26 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 27
FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

de preconceito, intolerância, violência verbal ou a nossa experiência mostra que o tempo inicial para Em todos estes locais, é importante assegurar
física; em caso de não respeito a esta regra, a cada fala deve ser de 3 minutos, podendo então ser o acesso a banheiros adequados, com asseio e
pessoa é convidada a sair da sala de reuniões estendida sob a permissão do grupo, ou, em caso de segurança, e a água potável.
até se recompor e não mais repetir este tipo de não haver forte necessidade de continuar, a pessoa
comportamento”. Essa regra, nos grupos com pouca pode se inscrever novamente.
experiência, tende a ser frequentemente quebrada, b) Recursos necessários para os encontros e
atividades:
e o papel dos facilitadores, e principalmente do
f) À medida que o grupo vai se organizando, ele deve
facilitador específico que chamamos de guardião, é Nas reuniões de ajuda mútua, é aconselhável ter
conquistar a liberdade de criar seu próprio estilo de
de assegurar a todo o custo a ordem e o respeito no sempre disponíveis lenços de papel (para auxiliar
funcionamento e de revisar o presente contrato.
grupo. Como indicamos acima, para uma discussão as pessoas que se emocionarem), caneta e papel
Quando o grupo ganhar estabilidade, recomenda-
mais detalhada deste tema tão importante, para se anotar sugestões e dicas, água para beber
se que se produza um pequeno folheto explicativo
sugerimos a leitura do texto de aprofundamento e o material do lanche no final da reunião. Para as
dos objetivos, das regras, do funcionamento, dos
sobre processo grupal e suas implicações nos atividades de suporte mútuo fora dos ambientes e) Trabalho e base financeira individual:
projetos, da organização etc.
grupos de ajuda mútua, incluído neste manual. protegidos, os recursos dependerão da duração e do
Alguns participantes podem ter atividades de
tipo de atividade, mas é importante garantir sempre
d) Os pedidos de fala devem ser anotados pelos trabalho, e estes horários devem ser respeitados
3) O ambiente e os recursos necessários para a alimentação e a existência de meios de transporte
facilitadores, e a palavra deve ser cedida a cada no momento de se marcar os encontros. Às vezes,
as reuniões e atividades, e sua influência adequados para as pessoas.
um nesta ordem. O contrato prevê apenas a no fim do mês, quando as pessoas estão mais
possibilidade de sugestões de encaminhamento, sobre o coletivo “duras”, pode ser mais difícil arranjar o dinheiro
também conhecidas como “questões de ordem”, que c) Problemas com transporte: da passagem. Estas questões devem ser discutidas
têm precedência sobre a ordem da fala e, portanto, no grupo para se pensar as melhores maneiras de
a) Local adequado para os encontros e atividades: A falta de acesso a transporte público adequado
devem ser imediatamente atendidas. Às vezes, enfrentá-las, podendo se desdobrar em ações de
Nos grupos de ajuda mútua, os encontros devem ser pode prejudicar muito as pessoas e a participação
em reuniões com menos participantes, a ordem da suporte mútuo e em reivindicações à esfera pública.
em local que assegure a privacidade e o anonimato nos grupos e atividades. Para enfrentar isso, o
fala ocorre naturalmente, sem exigir inscrições, e
das pessoas, bem como garanta o direito de não grupo deve buscar se reunir ou realizar atividades
os facilitadores podem experimentar suspender
serem interrompidos. Também é importante ter um em locais de fácil acesso para a maioria dos 4) As relações de poder e a disposição das
a lista. Muito frequentemente, durante a fala de
conforto básico, em termos de boas cadeiras e de participantes, e criar estratégias junto aos serviços pessoas no grupo
uma pessoa, é comum um ou mais participantes de saúde e saúde mental, às associações, entidades
fazerem perguntas rápidas ou pedidos breves de baixo ruído no ambiente externo.
comunitárias e movimentos sociais da área, para se
esclarecimento sobre algum ponto que não ficou As atividades de suporte mútuo, como já indicado conseguir o passe livre para todos os participantes. Os facilitadores devem também estimular a
claro, e isso deve ser permitido. acima, requerem por um lado uma “sala de participação e as relações de poder igualitárias
base”, com características similares às salas de e horizontais nos grupos e atividades. Um dos
ajuda mútua, e, por outro, os demais espaços na d) Férias e outros eventos: principais dispositivos para induzir a isso, que
e) Outra regra de fundamental importância comunidade e na sociedade. Para estes últimos,
Os períodos de férias, feriados e outros eventos recomendamos para todos os tipos de grupo ou
deste contrato, e que exige muito cuidado aos quando se sai dos serviços e centros sociais já
podem afetar a continuidade dos encontros. É reunião, é a disposição das cadeiras em círculo,
facilitadores, é aquela que sugere o “respeito pelo conhecidos, é importante que os facilitadores
muito importante prever os possíveis períodos que que iguala todos os membros no espaço do grupo e
tempo de fala dos demais participantes, falando de grupo investiguem previamente a segurança
potencialmente apresentem maiores dificuldades, permite a visão e a comunicação direta de cada um
nas reuniões um de cada vez, sem o monopólio da e os possíveis riscos do espaço, o conforto das
montando um cronograma realista e com com todos os demais participantes do encontro. Em
fala; no entanto, em caso de uma fala emocionada, instalações, as formas de acesso gratuito ou não,
antecedência. Da mesma forma, um bom sistema algumas ocasiões, podem ser oferecidos espaços
os facilitadores podem pedir ao grupo um tempo as atividades disponíveis, a forma de transporte, as
de comunicação com as pessoas, por telefone, por para reuniões com cadeiras fixas, dispostas na forma
maior para melhor escutar e acolher a pessoa”. Para possibilidades de realização de lanches ou refeições
e-mail ou aviso em lugar comum de referência, é de auditório. Se não houver possibilidade de fazer
permitir a manifestação de todos em uma reunião, acessíveis para o grupo etc.
muito importante. deslocamentos ou adicionar cadeiras que possam

28 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 29
FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

formar círculos, estes locais devem ser evitados. é o de que os postos de liderança e poder no - facilitar e assegurar o direito de fala para todos; presença de profissional ou trabalhador de saúde/
Lembremos que as reuniões de depoimentos grupo nunca devem ser ocupados de forma fixa e saúde mental na facilitação do grupo, em sua fase
- impedir que a fala seja monopolizada; neste caso,
dos Alcoólicos Anônimos (AA) e seus derivados rígida. Sugerimos a troca não só entre a dupla de inicial, é recomendável que ele comece assumindo
ele pode propor, por exemplo, a introdução de um
funcionam com esta disposição das cadeiras em facilitadores “oficiais”, como também incluir as este papel. Gradualmente, é importante que outro
tempo máximo de fala para cada um. No caso de
auditório, e nossa avaliação deste dispositivo é de novas lideranças que sempre emergem dentro facilitador usuário ou familiar também aprenda a
uma fala mais emocionada e pessoal de um dos
que não estimula a troca mais livre de vivências e dos grupos, que devem ser convidadas também assumir este posto, trocando de papel.
membros, dando indicações de que precisa de mais
comentários entre os membros do grupo, podendo a experimentarem os dois postos. Mais tarde,
tempo, o guardião é o facilitador mais adequado para
servir de freio ao crescimento e à criatividade das após estarem mais bem preparadas, elas podem
pedir ao grupo mais tempo para aquele participante;
pessoas no médio e longo prazos14. se candidatar também para o posto de oficineiro b) Facilitador incentivador: Este é um facilitador
facilitador de reuniões em outros locais. - garantir o bom clima na reunião, sendo o participante ativo, que pode também falar de si,
Outro fator fundamental para gerar relações
primeiro a buscar colocar limites aos eventuais de sua experiência pessoal, das estratégias que
horizontais e participantes entre os membros é o Nos grupos de ajuda mútua, os profissionais e
comportamentos inadequados, se necessário aprendeu para lidar com os desafios do transtorno
tipo de facilitação e coordenação das atividades trabalhadores de saúde e saúde mental podem
lembrando as regras e o contrato de funcionamento; mental, das experiências de outros companheiros.
e reuniões. Isso é particularmente importante nos até assumir temporariamente um papel mais
ou, ainda, tomando a iniciativa, em caso de ser Este facilitador participa ativamente e estimula os
grupos e projetos de suporte mútuo, como veremos direto de facilitador no grupo, quando não existem
necessário, de convidar a pessoa mais exaltada a demais a expressarem suas vivências, e pode inclusive
logo a seguir. ainda usuários ou familiares capazes de fazê-lo.
dar uma “voltinha lá fora”, sempre acompanhada; mobilizar um suporte especial a participantes que
Entretanto, devem estar plenamente conscientes
assim o necessitem, podendo sugerir palavras de
de que esta função é estritamente temporária, - assegurar o tempo previsto para o início e o término
apoio ou mesmo uma manifestação mais concreta,
buscando estimular o espírito de liderança entre da reunião, alertando o grupo sobre o avanço do
quando alguém expõe algo muito importante e está
usuários e familiares, e capacitando-os para que tempo e para as eventuais atividades ainda por
muito emocionado. Entretanto, em caso deste posto
assumam o mais rapidamente possivelmente uma serem realizadas antes da conclusão do encontro,
ser assumido eventualmente por um profissional
ou ambas as funções de facilitação descritas aqui. em caso de notar atividades ou comportamentos
ou trabalhador de saúde mental, é recomendável
muito dispersivos.
que fale pouco de si e que seja o menos diretivo
possível, que não faça recomendações diretas,
As duas posições básicas de facilitação são:
O guardião é um posto central e indispensável fazendo sempre referência de que sua fala parte de
nos grupos de usuários15, e geralmente é menos experiências de pessoas que conhece, valorizando
5) A dinâmica de funcionamento e facilitação sempre as lições e a sabedoria gerada pela vivência
a) Facilitador guardião: é o facilitador que garante demandado nos grupos de familiares. É muito
dos grupos de ajuda mútua em saúde mental direta de usuários e familiares, e que portanto não
as regras do contrato e do bom funcionamento do importante que a pessoa que assume esta função
dispositivo grupal, com as seguintes funções e de garantidor das regras não fale de si mesmo advêm de sua autoridade como profissional.
Para os grupos de ajuda mútua, estamos sugerindo atribuições: nesta reunião, para poder exercer melhor esta
um dispositivo com dois facilitadores com funções função. Se for extremamente importante a sua
Além destas duas funções ou postos diferentes,
diferentes, e os oficineiros que as assumem podem manifestação pessoal, ele deve pedir ao outro
há algumas recomendações comuns para os
trocar de papel em reuniões ou datas diferentes, ou facilitador que assuma temporariamente o papel de
dois facilitadores. É muito importante que eles
em caso do guardião desejar falar sobre si, como guardião durante sua fala, pois o posto do guardião
assegurem a continuidade do grupo. As pessoas
veremos adiante. nunca deve ficar vazio. Em caso de ser necessária a
com transtorno mental ou familiares precisam sentir
O princípio básico que orienta a nossa metodologia esta segurança mínima da existência do grupo como
15 Para um detalhamento dos desafios do processo
um suporte efetivo para lidar com seus desafios, ao
de facilitação dos grupos de usuários, ver o texto de mesmo tempo em que também vão se implicando
14 Este tema é discutido de forma muito detalhada no aprofundamento sobre modelos de intervenção e práxis com o grupo e se corresponsabilizando pela sua
texto de aprofundamento, incluído neste manual, sobre grupal neste manual. continuidade. Este sentimento de segurança é
processo grupal e grupos de ajuda mútua.

30 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 31
FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

induzido principalmente pela responsabilidade e sentido de dar segurança inicial e colaborar na ainda se sentirem inseguros, este pode ficar como de aprendizagem de como facilitar reuniões. Nestas
a firmeza dos facilitadores, garantindo um bom assessoria aos verdadeiros atores da ajuda e do observador da reunião, como sugerido a seguir. circunstâncias, é recomendável que este profissional
clima de interação entre os participantes e criando suporte mútuos, os usuários e os familiares. Gradualmente, os dois facilitadores usuários ou deva também assumir o papel de apoiador local dos
expectativas em relação ao que poderá ser trazido familiares devem ser estimulados a atuar sozinhos, facilitadores, ou necessariamente estar presente
Podemos então pensar as várias formas desta
para a próxima reunião. podendo ter o suporte do profissional apenas como nas reuniões de supervisão já disponíveis na
participação profissional nos grupos e na gestão de
supervisor externo, como descrito abaixo. área, para terem uma atuação bem integrada e
um programa mais amplo de grupos de ajuda mútua,
em graus cada vez maiores de autonomização para coordenada.
os facilitadores usuários e familiares:
6.2) A atuação de profissionais ou trabalhadores
como observadores das reuniões: 6.3) A atuação de profissionais como supervisor(es)
6.1) A atuação temporária de profissionais ou dos facilitadores:
É também possível pensar na situação de grupos
trabalhadores como facilitadores em grupos de de ajuda ou suporte mútuos em que há lideranças Já no início dos grupos, consideramos fundamental
ajuda mútua: de usuários ou familiares para atuarem como a criação de um dispositivo para a supervisão dos
facilitadores, mas estas não têm experiência prévia facilitadores de ajuda e suporte mútuos, no qual eles
Em caso de não haver em uma região ou cidade
ou ainda se sentem inseguras para iniciar sozinhos possam trocar suas experiências, suas dificuldades
as duas lideranças de usuários ou de familiares
os grupos. Nestes casos, é possível também pensar e acertos nos seus respectivos grupos e atividades,
que se sintam capazes de se colocar logo de início
no suporte de um profissional ou trabalhador amigo, bem como tirar suas dúvidas, sugerir entre si
como facilitadores, podemos ter o apoio inicial
que atue apenas como observador das reuniões e estratégias de ação etc. Assim, já na fase inicial
e temporário de profissionais e trabalhadores de
que intervenha somente em caso de problemas de implementação dos grupos, recomendamos a
serviços locais de saúde ou de saúde mental, com
6) O suporte de profissionais e trabalhadores experiência com pessoas com transtorno mental
mais difíceis, como indicado anteriormente. É imediata formação de grupo(s) de supervisão em
de saúde e/ou saúde mental no severo, interessados na criação de grupos de ajuda
muito importante também que profissionais e que os profissionais devem ter um importante papel
acompanhamentona e supervisão dos grupos: mútua, e que se disponham a se capacitar para tal.
trabalhadores controlem o impulso de responder de, a partir de sua experiência de trabalho, ajudar
as demandas de informação e orientação, pois os facilitadores a lidar com os desafios usuais da
Consideramos de vital importância a participação de No caso de grupos de ajuda mútua, recomendamos
ao fazerem isso, a tendência é do grupo se tornar condução dos grupos. Mais tarde, facilitadores
profissionais de saúde e/ou saúde mental ajudando que este profissional não atue como facilitador
um grupo de orientação, como se faz hoje nos usuários e familiares com experiência consolidada
e dando suporte aos facilitadores e demais dentro do serviço de saúde mental em que trabalha
serviços de atenção psicossocial. As demandas poderão também ocupar esta função.
participantes no processo inicial de formação dos cotidianamente, para não criar constrangimentos à
de informação e discussão com profissionais
grupos de ajuda e suporte mútuos, e mais tarde liberdade de expressão dos participantes usuários
devem ser encaminhadas para a realização de uma
colaborando na supervisão dos facilitadores e, deste serviço específico, bem como porque as duas
reunião específica deste tipo, com convites formais
no caso de um programa municipal montado com funções têm significados simbólicos diferenciados.
a profissionais que não atuam regularmente nos
bolsas de trabalho, na gestão do programa em seus De qualquer forma, esta possibilidade de suporte de
grupos. Acima de tudo, o princípio chave para a
diversos níveis. Assim, temos o que chamamos um profissional permite a montagem de grupos em
presença de profissionais e trabalhadores é de que
na experiência do Rio de Janeiro das seguintes locais sem nenhuma ou com apenas uma liderança
qualquer intervenção deles deve sempre reforçar
funções: o apoiador local, o supervisor e o gestor de usuários ou de familiares disposta a assumir a
a autoridade dos dois facilitadores de plantão,
central do programa. atividade. Nas primeiras reuniões, recomenda-se
e nunca se sustentar na autoridade do próprio
que o profissional atue na posição do facilitador
Diretamente nos grupos, a direção principal profissional. Isso pode ser concretizado fazendo
guardião, mas logo o usuário ou familiar deve ser
de atuação dos profissionais é estimular o sugestões e recomendações como qualquer outro
estimulado a trocar de papel e também assumir
empoderamento e a autonomia dos usuários tipo de participante, para que os facilitadores
este posto. Gradualmente, outra liderança deve ser
e familiares, repassando gradualmente todos a implementem. Isso lhes propicia suporte e
chamada a assumir o papel de segundo facilitador,
os postos de poder para eles. Daí, a presença segurança nesta fase inicial do grupo e do processo
em substituição ao profissional, e, se ambos
profissional é sempre temporária e apenas no

32 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 33
FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

7) O caso de um programa municipal de grupos um profissional ou trabalhador com familiaridade manual. O supervisor tem uma primeira função de postos e funções principais foram indicados acima,
de ajuda mútua, com bolsas de trabalho: com a rede local de saúde ou saúde mental, para agenciar ou organizar a capacitação para gestores, mas é possível também sugerir alguns instrumentos
gestão, supervisão e monitoramento, e atuar de forma integrada com estes serviços. Os facilitadores e apoiadores locais, e depois fazer a básicos de registro que, sem criar uma burocracia
atuação de profissionais ou trabalhadores apoiadores podem assumir a função temporária de supervisão das atividades, em reuniões regulares exagerada, podem gerar uma formalização
facilitador e de observador diretamente nos grupos, com eles, podendo ser reuniões conjuntas ou mínima da dinâmica de trabalho e sustentar a
como descrito na seção anterior. Por sua parte, os em separado, dependendo das necessidades e responsabilização individual e compartilhada. Para
Em caso de um programa municipal institucionalizado facilitadores devem reportar a eles as atividades condições locais. Nelas, são expostas e discutidas isso, sugerimos 3 instrumentos:
para grupos de ajuda mútua, com provisão de bolsas realizadas, a frequência nos grupos, as dificuldades, as experiências dos facilitadores com o exercício da
de trabalho, a gestão local e municipal do programa problemas e desafios, para os encaminhamentos função e com o trabalho em grupo, com seus desafios
deve necessariamente ser assumida inicialmente necessários. Nesta relação com os apoiadores, de condução e encaminhamento; as dificuldades da a) Diário de campo: os facilitadores devem ter um
por profissionais ou trabalhadores de saúde e saúde são discutidos os critérios de participação e relação entre os próprios facilitadores; a relação caderno, preferencialmente de capa dura (para
mental, até que tenhamos facilitadores usuários e as estratégias de divulgação e mobilização de com os serviços de saúde e saúde mental local; permitir anotações em quaisquer ambientes), em
familiares com experiência mais sedimentada para participantes para os grupos; a relação com as como lidar com problemas mais complexos (como que registram os dados mais fundamentais de
assumir as funções descritas abaixo. Assim, nossa instituições que provêem espaço para a reunião violência, drogas, entre outros), etc. cada reunião: dia, local, número de participantes,
experiência nos mostrou a importância de formalizar ou que referenciam participantes dos grupos; presença de profissional ou trabalhador, quem
alguns postos ou funções chaves para a gestão do c) O trabalho de gestão do programa no município
questões de transporte e infra-estrutura; os vários assumiu o posto de coordenador e de guardião,
programa, bem como alguns instrumentos para o ou em consórcios de municípios menores: o(s)
tipos de vínculos com os serviços locais de saúde eventos e temas mais importantes, desafios,
seu monitoramento, como descrito a seguir. Gestor(es) Municipal(is): esta função deve
e saúde mental e o encaminhamento de usuários e problemas e intuições interessantes. O diário de
ser assumida por um profissional ou, em caso de
familiares em caso de necessidade; a relação com campo é fundamental como fonte para pesquisa,
necessidade, por uma pequena equipe bem integrada
a comunidade local, etc. Mais tarde, facilitadores para a discussão nas reuniões de supervisão, e para
7.1) Postos ou funções básicas da gestão do programa de gestores. O gestor tem a responsabilidade de
experientes podem assumir também esse posto de procedimentos de avaliação e de desenvolvimento
e a atuação de profissionais e trabalhadores: mobilizar recursos para o financiamento do programa;
apoiador local, sem dispensar o apoio dos serviços, da presente metodologia de grupos.
de estabelecer os trâmites administrativos de
Até o momento, a experiência nos indica a profissionais e trabalhadores. b) Relatório Mensal de Atividades: o relatório
pagamento dos bolsistas; de planejar a capacitação
necessidade de 3 postos ou funções fundamentais constitui o principal instrumento de registro
e a implantação do programa junto à rede de saúde
na implantação do programa: administrativo e de monitoramento do programa.
mental e de atenção primária em saúde; de executar
a seleção dos bolsistas; de gestão e monitoramento No Apêndice 3, temos uma proposta de documento
central do programa, com contatos regulares com os básico para este relatório.
a) O trabalho no plano local, de uma região da
cidade ou área rural - o Apoiador Local: os apoiadores locais, supervisor(es) e também, quando c) Comunicado para Tomada de Providências: este
grupos e facilitadores devem atuar localmente necessário, com os facilitadores; e de prestar contas comunicado, sugerido no Apêndice 4, constitui
sob o comando de um serviço de referência e que para os responsáveis pelo programa de saúde um instrumento para informar, discutir e avaliar
organiza a rede de saúde mental ou de atenção mental e de atenção básica no município. eventuais problemas ocorridos nos grupos, e para
primária em saúde na área, como um Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS), ou a gerência local
b) O trabalho de acompanhamento técnico- 7.2) A dinâmica de registro e monitoramento:
da atenção primária, com seu Núcleo de Apoio à
institucional: o Supervisor dos facilitadores e
Saúde da Família (NASF). Os facilitadores usuários e Um programa institucional envolvendo bolsas
apoiadores: os programas municipais devem escolher
familiares com bolsa de trabalho assumem portanto de trabalho implica em relações trabalhistas;
um profissional com experiência consolidada de
uma relação trabalhista, atuando sob a gestão responsabilidades específicas e/ou compartilhadas,
trabalho de grupo em saúde mental, que tenha um
e responsabilidade institucional de um agente, com vistas a um bom andamento das atividades;
perfil de relações mais horizontais e empáticas com
que chamamos de Apoiador Local. Sugerimos que prestação de contas; registro, monitoramento e
usuários e familiares, e devidamente capacitado
este seja, pelo menos no início das atividades, avaliação regular do trabalho realizado, etc. Os
para trabalhar com a metodologia exposta neste

34 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 35
FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES FORMAÇÃO BÁSICA OPERATIVA PARA FACILITADORES E APOIADORES

mobilizar providências conjuntas imediatas com o soltar pipa, ir dançar, ir ao cinema, visitar amigos etc.); técnicos, de diminuição da dosagem ou retirada, 8.2) Lista de temas mais comuns nos grupos de
apoiador local, no sentido de sanar estes problemas. e suas consequências; como conversar e negociar familiares16:
b) coisas e eventos da vida mais comuns que causam
ansiedade e estresse, e que podem ser evitados, ou com os médicos e com a equipe dos serviços sobre s desafios da participação e as questões trazidas
O
como criar estratégias para lidar com eles; a medicação, etc.; pelos familiares para os grupos apresentam muitas
8) Exemplos de temas a serem discutidos nos
grupos de ajuda e suporte mútuos c) sentimentos, sintomas e sinais mais comuns que k) como lidar com os serviços de saúde mental, com especificidades. Em primeiro lugar, não é fácil
indicam a proximidade de uma crise ou que a pessoa seus psiquiatras e demais profissionais, bem como mobilizá-los para as reuniões, pois isso implica
deve procurar ajuda imediata; com os serviços de saúde em geral; como avaliar “quebrar” a longa rotina diária de cuidados e
A experiência dos grupos de ajuda e suporte mútuos o momento de tomar decisões mais difíceis, como afazeres, e superar a frequente tendência ao
no campo da saúde mental oferecem inúmeros Obs.: sobre estes três primeiros temas, recomendamos desânimo e mesmo à depressão. Em segundo, os
mudar de profissional ou de serviço;
exemplos de temas discutidos nos grupos, que utilizar o apêndice da cartilha intitulado “Plano de grupos precisam construir um nível de cumplicidade
apresentamos abaixo, discriminando aqueles ação para o bem-estar e a recuperação”, com base l) bons cuidados com a saúde física: alimentação, e confiança mútua muito alto entre si e com os
que emergem mais nos grupos de usuários, de na experiência norte-americana dos grupos de ajuda atividades físicas e terapêuticas, sono, prevenção e trabalhadores que eventualmente assessoram os
familiares, e os comuns aos dois grupos. Muitos mútua. Sugerimos inclusive que este apêndice deva acompanhamento de doenças crônicas etc.; grupos, para que se disponham a falar de temas tão
dos temas mais associados à esfera pessoal e ser usado nas primeiras reuniões temáticas, logo na difíceis e dolorosos, como os listados abaixo:
m) a experiência de buscar uma atividade laborativa e
privada apresentados a seguir são mais comuns em fase inicial dos grupos.
de trabalho, capacitação e treinamento para o trabalho;
grupos de ajuda mútua, mas eles podem e devem d) relatos da experiência cotidiana dos membros do
ser trazidos também para o suporte mútuo. Aqueles grupo sobre a convivência com o transtorno mental, n) os vários tipos de família e formas de viver a) o sofrimento, dúvidas e esperanças vividas
indicados na terceira lista, de temas mais coletivos, sobre seus desafios e as estratégias de como lidar sozinho, e a experiência de moradia; alternativas e quando os serviços de saúde mental informam o
são comuns aos grupos de usuários e familiares, e com eles. Este tema é o mais frequente no tipo de serviços de moradia na região; diagnóstico;
são fundamentais e indispensáveis para estimular reuniões que chamamos de “arroz com feijão”. o) a experiência de lidar com drogas lícitas (bebidas b) a procura por serviços e profissionais
as iniciativas de suporte mútuo e demais estratégias alcoólicas, café, cigarro etc.) e ilícitas; comprometidos com o cuidado ao longo do tempo,
e) plano de crise (ver anexo neste manual sobre o
de empoderamento. Além disso, estas listas são humanizados, competentes e capazes de um bom
tema);
apenas ilustrativas, e não têm qualquer pretensão acolhimento e sensibilidade com os usuários e
de esgotar todos os temas possíveis. f) os cuidados necessários durante e após a particularmente com os próprios familiares;
internação psiquiátrica, por parte da própria pessoa,
seus familiares, amigos e companheiros de grupo;
16 Para uma discussão mais detalhada destes temas, ver
g) boas formas de suporte e de tratamento, em
o texto de aprofundamento de Rosaura Maria Braz neste
serviços sociais, de saúde e saúde mental de manual.
qualidade disponíveis na região;
h) recursos culturais, musicais, artísticos, sociais,
esportivos, religiosos, comunitários e de lazer
disponíveis na região e a experiência de interação
social e convivência neles;
8.1) Lista de temas mais comuns nos grupos de i) como lidar com e avaliar os diferentes tipos de
usuários: tratamento em saúde mental;
a) formas de estimular o bem-estar e a saúde, e de j) como lidar com a medicação psiquiátrica: efeitos
lidar com as dificuldades no dia a dia, ao alcance das de cada um no corpo e na mente; ajuste dos
pessoas (exemplo: fazer mais coisas que dão paz e remédios, da dosagem, e dos efeitos colaterais;
diminuem a ansiedade, como caminhadas, pescar, as experiências informais e sem conhecimento dos

36 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 37
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

c) como conversar com os profissionais sem n) como avaliar a melhor indicação e a dosagem, com e de suas implicações na família: o que é, e como 9) Tipos de reunião de ajuda mútua e
censuras e aprender mais sobre medicamentos, o menor nível de efeitos colaterais; como conseguir lidar com a incapacidade civil, tutela, imputabilidade aproximações com o suporte mútuo
os efeitos colaterais, o que se pode e não se fazer, a medicação e garantir a rotina que garanta o uso (não responsabilidade por crimes) etc.
incluindo a possibilidade de expressar dúvidas e regular e adequado de todos os medicamentos;
d) a luta política por serviços e por uma política de
questionamentos; 9.1) Tipos clássicos de reuniões de ajuda mútua:
o) o reconhecimento e as estratégias de garantir o saúde mental na sociedade; a reforma psiquiátrica e
d) como reconhecer os sinais de piora no quadro do direito ao descanso, ao cuidado de si e a um projeto a luta antimanicomial; a participação nos conselhos
usuário, e de um eventual próximo surto; de vida por parte dos familiares e cuidadores; de política social e de saúde; a) Relatos e trocas de experiências pessoais e apoio
e) a definição e decisão do melhor momento e da p) o dilema de geração na produção do cuidado, ou e) como difundir a luta pelos direitos das pessoas emocional, entre os participantes associados do
melhor forma de se internar (voluntária e involuntária) seja, como os familiares lidam com o medo/pavor com transtorno mental: educação política, materiais grupo ou novatos: este tipo e o seguinte são os mais
o usuário, seus dilemas e consequências; de se confrontarem com a própria morte e com o e formas de educação popular em saúde e saúde frequentes, que estruturam a base de funcionamento
desafio de quem e como se proverá o cuidado para mental etc. (o “arroz com feijão”) dos grupos de ajuda mútua. Os
f) a fragilidade e as necessidades próprias dos
seu familiar com transtorno no futuro; grupos e lideranças iniciantes devem começar com
familiares durante o período da internação; f) a luta pelos direitos civis, políticos e sociais e a
estes dois tipos, que apresentam vários desafios,
g) a necessidade de ter um arsenal de estratégias de q) os desafios adicionais de lidar com usuários aliança com outros movimentos sociais populares,
principalmente se se utiliza uma metodologia não
convivência diária, no lidar com as particularidades idosos; partidos políticos, ONGs, intelectuais e profissionais
tão homogênea e rígida como a dos Alcoólicos
da relação com o usuário e com seus comportamentos r) as dificuldades próprias dos casos que envolvem engajados etc.
Anônimos. Estes últimos optaram por uma dinâmica
mais desafiantes; infração penal e medidas de segurança. de reunião muito padronizada e simples, sem
h) estratégias de lidar com o uso frequente e abusivo risco, com uma disposição na forma de auditório,
de álcool e outras drogas, com suas consequências para evitar qualquer possibilidade de emergência
8.3) Lista de temas comuns aos grupos de usuários
e dilemas; de surpresas, eventos disruptivos e conflitos,
e familiares:
visando a uma difusão geográfica dos grupos sem a
i) os enormes desafios de lidar com os
Esta lista indica temas que são comuns aos grupos
comportamentos autoagressivos e suicidas;
de usuários e de familiares, levantam questões
j) os dilemas e estratégias relacionadas à recusa mais coletivas e são fundamentais para as demais
de tratamento e a suas consequências na piora no estratégias de empoderamento:
quadro do usuário;
a) como lidar com o preconceito e a discriminação
k) as diversas estratégias de lidar com os contra a pessoa com transtorno mental e sua
comportamentos ofensivos aos próprios cuidadores família, e como promover mudanças na comunidade
e familiares, ou como “cuidar bem de seu algoz”; e na sociedade a este respeito;
l) como lidar com a tristeza em ver as expectativas b) direitos das pessoas com transtorno mental e Para concluir esta seção, sugerimos também que
frustradas e os comprometimentos mais acentuados de suas famílias na sociedade e junto a serviços e os facilitadores anotem, após as reuniões, as dicas
da vida afetiva, social e profissional de seu familiar órgãos públicos17; de experiências e estratégias mais bem-sucedidas
com transtorno; e também o que se deve evitar, para cada um
c) os direitos civis da pessoa com transtorno mental
m) os desafios da busca e conquista de atividades destes temas. Assim, quando o tema reaparecer
que ampliem as possibilidades de vida e que novamente, os facilitadores poderão apresentar
respeitem as limitações e potencialidades de seu 17 Para a discussão deste tema, recomendamos as experiências dos usuários e familiares que
fortemente a leitura do livro de Luciana Barbosa Musse,
familiar, nas áreas de tarefas do cotidiano, cultura, participaram das reuniões anteriores. Para isso,
Novos sujeitos do direito: as pessoas com transtorno
lazer, sociabilidade, esporte, vida comunitária, mental na visão da bioética e do biodireito, publicado em vejam o item sobre registro das atividades no
educação, trabalho etc.; 2008 pela Editora Elsevier, do Rio de Janeiro. próximo capítulo deste manual.

38 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 39
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

necessidade da presença de especialistas. Na e) Reuniões com convidados externos, como diversas conquistas e desafios. Em grupos mais direitos e militância social: um grupo de ajuda
metodologia adotada aqui, a dinâmica proposta para profissionais, lideranças de movimentos sociais e regulares, com encontros semanais, essa tendência mútua já estabilizado deve partir para ampliar suas
este tipo de reunião, descrita abaixo, bem como os gestores de serviços: neste tipo, estes convidados não é tão significativa, mas em grupos quinzenais atividades nestas várias direções, sem desmobilizar
vários tipos de reunião propostos nesta seção, irão são chamados para prover informações gerais ou mensais o desejo dos participantes de falarem sua dinâmica básica de reuniões de ajuda
permitir maior flexibilidade e maior possibilidade de ou temáticas do campo da saúde mental, discutir de suas vivências no período entre as reuniões é mútua. Assim, podemos ter reuniões no horário
surpresas, mas de forma razoavelmente segura. estratégias de tratamento e cuidado, avaliar os maior. De qualquer forma, os facilitadores devem convencional da ajuda mútua para discutir temas
recursos e serviços existentes, os direitos dos ser compreensivos, entendendo e respeitando que levem a este tipo de iniciativas, tais como
b) Reuniões temáticas de troca de experiências
usuários etc. A escolha deste tipo de convidado é essa tendência. Assim, depois de algum tempo necessidades comuns dos usuários, a formação de
e apoio emocional com base na vivência dos
importante, e um dos critérios mais importantes é discutindo um tema ou ouvindo a experiência de novo grupo de ajuda mútua em outro local, direitos,
participantes associados ou novatos: nesta
o de ser “amigo” ou estimulador da organização alguém de fora, não há problemas em deixar que os iniciativas de luta, projetos culturais, de trabalho,
modalidade, busca-se trocar as experiências
autônoma dos usuários. participantes voltem a suas experiências pessoais. de moradia etc. Entretanto, não se deve gastar
pessoais relativas a um tema específico, como,
por exemplo, lidar com os sintomas, conviver com f) Reunião para estudo e discussão de texto ou mais de uma ou duas reuniões para estes temas,
os efeitos colaterais dos remédios, a relação com publicação específica: nesta reunião, textos, pois o desdobramento destas iniciativas deve ser
9.2) Tipos de reuniões e atividades na direção do feito sempre em reuniões à parte, em outro horário,
a família e seus conflitos, sexualidade, dificuldades cartilhas, artigos, textos literários, narrativas
suporte mútuo, defesa de direitos e militância com uma dinâmica diferenciada para tal, mais
de criar laços de amizade, desafios para ter trabalho, pessoais, capítulos de livros acadêmicos etc.
social: objetiva e voltada para a prática, e sem substituir
dificuldades na relação com drogas lícitas ou ilícitas que forem considerados importantes serão lidos,
etc. Para este tipo de reunião, recomendamos previamente ou não à reunião, e discutidos pelo a reunião convencional de ajuda mútua. Em caso
fortemente os facilitadores a utilizarem em primeiro grupo. Visa ampliar o conhecimento dos processos de participantes que avançaram no seu processo
lugar o apêndice disponível apenas na cartilha, de recuperação, a troca de experiências de vida, os de recuperação e não sentem mais a necessidade
intitulado “Plano de ação para o bem-estar e a direitos dos usuários, as formas de suporte mútuo e pessoal de reuniões de ajuda mútua, estes devem
recuperação”, sintetizado a partir da experiência de militância social. ser convidados a participar da formação de novos
norte-americana dos grupos de ajuda mútua. grupos de ajuda mútua, já como facilitadores, ou de
g) Reunião para se ver juntos filmes importantes e outros tipos de grupos, projetos de suporte mútuo,
c) Relato e troca de experiências pessoais e apoio discuti-los: hoje temos um acervo muito grande de defesa de direitos e militância.
emocional, mas a partir do convite e do relato de um filmes muito importantes para o campo da saúde
usuário ou familiar, que seja uma liderança externa mental, e que estão disponíveis em DVD. Muitos deles
ao grupo com nível mais avançado de experiência: contam histórias de usuários, de experiências pessoais b) Atividade conjunta externa de suporte mútuo,
o convite a outras lideranças com boa experiência de processos de recuperação, de lutas pelos direitos ou Naturalmente, os grupos de ajuda mútua vão como lazer, cultura, turismo e esporte: os grupos
pessoal de convívio com o transtorno mental permite contra a discriminação na sociedade etc. Assistir a eles sentindo a necessidade de partir para atividades de ajuda mútua podem e devem se organizar para
conhecer suas estratégias individuais e coletivas de juntos e discuti-los constitui uma oportunidade muito comuns fora do grupo, que muitas vezes se iniciam seus membros saírem juntos para ir a cinema, jogos
lidar no dia a dia, suas formas de participação na grande de crescimento para os participantes do grupo. no campo do lazer, de atividades culturais ou de esportivos, festas, eventos públicos, passeios,
sociedade e na militância social. suporte direto a colegas usuários ou familiares, locais recreativos, viagens de turismo e férias, sair
A experiência demonstra que, mesmo quando
podendo se desdobrar em outras iniciativas mais
d) Relato e troca de experiências grupais, a partir do se começa uma reunião optando pelos tipos (b) e
permanentes de suporte mútuo, defesa dos direitos,
convite e do relato de uma liderança de outro grupo seguintes, a tendência mais forte nos grupos de
mudança cultural na sociedade, conscientização
de ajuda/suporte mútuos: neste tipo de reunião, a ajuda mútua é se voltar ao “arroz com feijão”, com
política ou militância social. Indicaremos aqui
participação de liderança de outro grupo permite os participantes retornando aos seus relatos de
apenas algumas atividades de transição, já que os
conhecer a experiência de outros grupos, suas experiências pessoais. Isso acontece porque muitas
tipos de reuniões e dispositivos coletivos nestes
formas de funcionamento, as estratégias de lidar vezes estes grupos constituem o único espaço para
novos campos são muito variados.
com o transtorno que eles sistematizaram etc. se falar e se trocar mais abertamente a experiência
cotidiana de vida com o transtorno, com suas a) Reunião de discussão e proposição de outras
iniciativas de ajuda/suporte mútuo, defesa dos

40 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 41
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

juntos à noite etc. Podem, para isso, buscar apoio tipos de reunião que devem sempre existir nestes oficial da reunião, e os novos membros devem ser reler os objetivos e as regras do contrato de
nos serviços e programas de saúde mental e de grupos, a partir do quais os outros tipos serão um estimulados a chegar mais cedo para terem este participação, que integram a cartilha do participante.
outras organizações e entidades culturais, sociais e desdobramento natural. contato com a equipe. Isso deve ser feito pelo facilitador guardião do dia.
comunitárias. É muito comum que museus, teatros, Mesmo na ausência de novatos, em caso do grupo ter
cinemas e centro culturais ofereçam livre acesso demonstrado nas reuniões anteriores uma tendência
para públicos com necessidades especiais, desde 10.1) Primeira fase: acolhimento e regras da reunião: b) Apresentação: já sentados em círculo, faz-se uma a quebrar uma ou mais regras básicas ou dos itens
que isso seja negociado previamente. apresentação pessoal de todos os participantes. do contrato, este facilitador pode lembrar o grupo
Esta é fundamental particularmente nos dias em desta(s) regra(s) de forma positiva, dizendo algo
c) Atividade ou projeto externo mais permanente a) Recepção: trata-se de receber os membros já que há novatos no grupo. Formas mais dinâmicas assim: “é bom lembrar das regras X e Y, que dizem
de suporte mútuo, mudança cultural, defesa dos veteranos, mas particularmente acolher de forma de apresentação podem ser usadas, substituindo a ..., e esperamos que o grupo hoje tenha uma reunião
direitos, e militância social: cada um destes vários
calorosa os novatos, que irão participar da reunião dinâmica de quebra-gelo indicada logo abaixo. Nas
tipos de projetos exige reuniões com objetivos e tranquila e proveitosa para nós todos”.
pela primeira vez. Para isso, os facilitadores e reuniões iniciais dos grupos em que as pessoas não
dinâmicas diferentes.
principalmente a equipe de boas-vindas, já descrita se conhecem previamente, pode ser interessante
acima, têm um papel fundamental. Como indicado sugerir o uso de crachás improvisados18. d) Dinâmica simples de quebra-gelo: os participantes
10) Esquema básico para uma reunião de naquela ocasião, a equipe de boas-vindas mostra o do grupo podem propor uma pequena dinâmica para
ajuda mútua lugar, apresenta a versão mais simples da cartilha, quebrar a timidez e “esquentar” o grupo, e se os
explica como funciona o grupo e suas regras básicas c) Exposição das regras básicas da reunião: Este vários participantes não tiverem nenhuma ideia,
(indicando o contrato), apresenta os novos aos procedimento se inicia com a apresentação dos dois aí os facilitadores devem propô-la. A forma mais
O primeiro contato com os esquemas apresentados membros antigos. Para isso, sempre que houver facilitadores, indicando claramente quem será o simples de quebrar o gelo e estimular a amizade
aqui pode dar a impressão de algo complicado. Não novatos, os integrantes desta equipe devem estar guardião e quem será o incentivador naquela reunião. e a imaginação é cantar uma música sugestiva
é, nem é preciso decorar nada. Basta compreendê-los, disponíveis pelo menos 30 minutos antes do início Particularmente quando há novatos, é importante e conhecida de todos. Para isso, incluímos na
identificar a tabela das fases da reunião (Apêndice cartilha dos participantes alguns exemplos de letras
1) que corresponde ao tipo de reunião desejada, e levá- de músicas brasileiras sugestivas para este fim. Os
la para a reunião para servir de guia. Recomendamos facilitadores e o próprio grupo devem estimular que
que as primeiras reuniões dos facilitadores iniciantes seus participantes também indiquem outras boas
sejam sempre lideradas ou acompanhadas por pessoas letras de música para isso, com as quais se sintam
(lideranças ou profissionais) que tenham experiência identificados e gostem de cantar, e que valorizem a
em coordenar reuniões. cultura local. Como indicado antes, uma dinâmica
Serão tratados aqui os dois tipos básicos de reunião: de apresentação mais estimulante pode também
ser uma boa forma de quebrar o gelo entre os
- Tipo 1: reuniões de relatos pessoais e trocas
participantes. Os facilitadores de grupos devem
de experiências e apoio emocional, entre os
pesquisar e conhecer como aplicar alguns jogos e
participantes associados do grupo ou novatos
dinâmicas de grupo simples, rápidas, não invasivas
- Tipo 2: reuniões temáticas de troca de experiências e que não exijam conhecimento complexo para sua
e apoio emocional com base na vivência dos 18 Existem formas simples de se fazer estes crachás. Uma aplicação, podendo ser reproduzidas facilmente nos
participantes associados ou novatos delas é usar pequenos pedaços de papel com o nome de demais grupos. Existem também técnicas simples
cada pessoa escrito em letra grande e legível, e preso
Estes dois tipos nos parecem os mais desafiantes com alfinete, clipe ou fita-crepe dobrada sobre si mesmo, e breves de relaxamento que podem ser úteis em
e pelos quais todos os grupos devem se iniciar. na roupa de cada participante. Pedaços de fita-crepe mais caso de haver pessoas que aparentam um nível de
largas também podem ser usados diretamente sobre a ansiedade mais alto. A mais comum e fácil de se
Como dissemos acima, eles constituem o dia a roupa, escrevendo-se previamente sobre uma mesa o
dia dos grupos de ajuda mútua, ou seja, os dois utilizar em grupos é sentar-se de forma cômoda e
nome da pessoa com uma caneta de ponta mais grossa.
posição ereta, baixar os olhos (apenas olhar para

42 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 43
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

o chão, fixando em um ponto, mas não fechar) e Para o tipo 1 (reuniões de relatos e trocas de Para o tipo 2 (reuniões temáticas de troca de a parte que ficou confusa. Os próprios facilitadores
respirar espontânea e relaxadamente, sem forçar o experiências pessoais e apoio emocional, entre os experiências e apoio emocional com base na podem também pedi-los diretamente, sugerindo
ritmo, contando cada inspiração até dez, e depois participantes associados do grupo ou novato): vivência dos participantes associados ou novatos): que a pessoa explique melhor algum ponto obscuro,
voltar e recomeçar de novo a conta, não devendo para que os demais possam entendê-lo. Apenas
durar em grupos do campo da saúde mental mais de em situações extremas, de forte incompreensão no
dois ou três minutos. a) Primeiro tipo de encaminhamento: expressão livre c) Terceiro tipo de encaminhamento: escolha prévia de grupo, o facilitador pode ele mesmo tentar traduzir
de experiências do conjunto dos participantes: tema e troca de experiências apenas em torno dele: o que está sendo dito. Em caso de precisar fazê-lo,
Neste encaminhamento, os membros perguntam e Neste tipo de encaminhamento, geralmente decidido deve sempre perguntar à pessoa se é isto mesmo
10.2) Segunda fase: relatos e trocas de experiências: que ela pretendia dizer, valorizando-a e fazendo
falam livremente, um após o outro, em falas curtas. com antecedência na última reunião, se elege um
Aqui, os facilitadores têm um papel específico tema de interesse geral, e todos os participantes são sempre referência a que ela é a autora desta fala
importante de: chamados a trazer contribuições para a reunião, em ou da experiência.
Nesta fase, os participantes são livres para fazer
perguntas e relatar livremente episódios de sua termos de informações, pequenas contribuições na
história pessoal, suas vivências e emoções, vitórias forma de texto (reportagens, artigos etc.), perguntas,
c) Contextualização: os facilitadores podem
- garantir oportunidades para que todos possam experiências e vivências pessoais relevantes. Os
e conquistas alcançadas, estratégias bem e/ou pedir a quem fala para dar mais dados sobre a
se expressar, sem monopólio da fala por nenhum depoimentos de todos durante a reunião devem
malsucedidas de lidar com o transtorno e com a vida, situação, contextualizando-a melhor e tornando-a
dos participantes, ou evitando polarizações entre idealmente ser ligados ao tema em foco.
e particularmente os desafios atuais que enfrentam. mais compreensível para todos. Em caso de haver
apenas dois ou três participantes;
Nesta fase e na seguinte, os facilitadores têm um informações contextuais simples e breves, mas
papel central no bom encaminhamento das atividades. - identificar um ou mais temas ou desafios comuns importantes, e que ajudem a entender melhor
10.2.2) Tarefas comuns dos facilitadores nesta fase:
importantes, do ponto de vista emocional, pessoal, a situação em foco, e que sejam apenas do
10.2.1) As três possibilidades de encaminhamento
ou da perspectiva da recuperação, que estão conhecimento dos facilitadores, estes podem relatá-
desta fase da reunião:
em foco, e sobre os quais os demais colegas são las muito brevemente, sem porém tirar a palavra e a
Independente do tipo de encaminhamento, os
convidados a se manifestar. vez da pessoa que faz seu relato.
facilitadores têm funções muito importantes nesta
Esta fase pode então ter três encaminhamentos fase. Podemos listar as seguintes:
diferentes, dependendo do tipo de reunião
b) Segundo tipo de encaminhamento: escolha da a) Mobilização de apoio emocional: em caso do d) Perguntas reflexivas: os facilitadores podem
planejado. Assim, os facilitadores devem propor e
experiência de um dos membros como foco central participante que estiver relatando se emocionar, também fazer perguntas que levem a pessoa que
ouvir sugestões quanto ao tipo e encaminhamento
da reunião: precisando de suporte, os facilitadores podem: expõe a refletir sobre a situação, ajudando-o a
a ser feito, podendo inclusive se prever na reunião
anterior qual o tipo a ser encaminhado no próximo Se o grupo constata que alguém está necessitando - encorajá-lo, falando da importância de se abrir e do
encontro. As opções são: de maior atenção, os facilitadores podem sugerir acolhimento e a amizade que ele(a) tem disponível ali
e os demais participantes podem decidir ser no grupo, e pedindo ao grupo mais tempo para isso;
mais generosos com ele, concedendo-lhe mais - em caso de choro, oferecer lenço de papel;
tempo para falar, sem entretanto tomar todo o
tempo disponível, sendo recomendável que não - sugerir que os demais participantes, particularmente
ultrapasse mais que um terço do tempo da reunião. aqueles vizinhos a ele(a), o encorajem, manifestando
de alguma forma o seu apoio ou suporte pessoal.
Os facilitadores então propõem ao grupo que esta
experiência constitua então a base da reunião, após
a qual os outros devem buscar relatar experiências b) Clarificação: em caso de um relato não estar
semelhantes ou sugestões que ajudem o colega, claro, perguntar se os demais participantes estão
particularmente aquelas bem-sucedidas. entendendo a história que está sendo contada,
estimulando-os a pedirem esclarecimentos sobre

44 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 45
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

sair de situações emocionais difíceis. Exemplos: conclusões imediatamente, os facilitadores podem g) em caso de um relato muito difícil e emocional de 10.4) Quarta fase: encaminhamentos sociais,
Existiria nesta situação alguma outra forma de agir? iniciar o processo, fazendo indicações nas seguintes uma experiência pessoal, e particularmente quando encerramento e confraternização:
O que você acha que as pessoas estavam sentindo direções: se nota que esta pessoa não está completamente
naquela situação? recomposta, os facilitadores podem propor aos
a) a boa oportunidade de conhecer melhor um ou Nesta fase, são dadas as notícias de interesse geral,
presentes parabenizá-la e cumprimentá-la com um
mais participantes que tiveram mais possibilidades são relembrados os encaminhamentos sociais e
aperto de mão ou abraço, para que esta possa se
10.3) Terceira fase: síntese reflexiva e emocional e tempo de falar; administrativos do grupo e é montado o planejamento
sentir recompensada e reconfortada pelo esforço
dos depoimentos: b) o reconhecimento da importância afetiva e realizado, bem como ter o apoio do grupo para se das atividades futuras. A sequência destes
emocional de uma temática ou vivência para um ou recompor emocionalmente. Além disso, o facilitador encaminhamentos deve seguir a seguinte ordem:
mais participantes, particularmente aqueles mais deve estimular o grupo a demonstrar para este a) informações e notícias de interesse geral
Quando o tempo de relatos planejado estiver silenciosos, e que muitas vezes passa despercebida membro a importância de persistir na sua busca dos participantes do grupo, incluindo as datas
terminado, e espera-se que neste momento haja um no dia a dia; pessoal, já que a recuperação sempre é gradual comemorativas, aniversários, eventos do campo da
mínimo de sensação entre os presentes de terem e exige tempo e paciência. Além disso, nos casos
c) a importância da escuta, do acolhimento, da saúde mental etc.;
sido ouvidos, os facilitadores dão por terminado visivelmente necessários, os facilitadores devem se
o momento de depoimentos e estimulam então troca de experiência, do suporte ou da amizade b) decisões administrativas, indicativos e tarefas do
aproximar deste participante após o final da reunião,
os participantes a tentarem resumir as principais vivida na reunião. Muitas reuniões não possibilitam grupo a serem planejadas e realizadas;
perguntar como este está se sentindo, e estimulá-
lições aprendidas, as conclusões, as sugestões e conclusões, mas apenas possibilitam a livre lo a procurar suporte profissional adequado nos c) planejamento da próxima reunião (escolha do
propostas tiradas no decorrer da discussão. expressão das vivências e das emoções e a troca de serviços de saúde mental disponíveis; tipo, data, local, horário etc.).
apoio entre os participantes, e isso já constitui um
Esta fase tem uma importância central para ganho enorme para o grupo; esta simples lembrança h) a importância de um bom clima na reunião, ou d) confraternização: dependendo das condições
fixar os principais ganhos da reunião, mostrando da capacidade do grupo de superar os conflitos e financeiras do grupo e de seus participantes, pode
pode significar um bom fechamento da reunião,
a importância do grupo, estimulando a sua dificuldades, promovendo ganhos positivos para ser cantada uma música, leitura de poesias, ser
encorajando-se os participantes a continuarem essa
continuidade e mobilizando emocionalmente os todos os participantes, estimulando-os a voltarem feito um lanchinho comum etc. Havendo recursos, o
vivência na próxima reunião;
participantes para estarem presentes no próximo na próxima reunião. lanche final é muito positivo, pois permite maiores
encontro, bem como fazendo a opção pelo tipo de d) a recuperação das principais estratégias para trocas informais entre as pessoas, e na cultura
reunião que será realizada. Para esta fase, devem lidar com o transtorno ou com os desafios da vida, brasileira tem significados simbólicos profundos de
ser garantidos pelo menos dez minutos. Em caso sugeridas na reunião, particularmente as mais bem- comunhão e solidariedade entre as pessoas.
dos participantes não serem capazes de resumir tais sucedidas;
e) a identificação de desafios que, mesmo não tendo
sido apresentadas sugestões e soluções, precisam
voltar na discussão do grupo, para um maior
aprofundamento nas próximas reuniões etc.;
f) a coragem de um ou mais participantes
de enfrentarem experiências dolorosas, que
normalmente ficam fechadas, esquecidas ou mesmo
trancadas “debaixo do tapete” de nossa existência
pessoal, e serem capazes de expô-las no grupo,
gerando um processo de aceitação e de recuperação
destas vivências, juntando-as em um todo mais
coerente e se apropriando de nossa história pessoal
mais integralmente;

46 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 47
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

III. TEMAS DE APROFUNDAMENTO razoavelmente semelhantes em nossas vidas.


OPERATIVO PARA FACILITADORES, g) autonomia crescente em relação ao sistema de
TRABALHADORES E PROFISSIONAIS saúde, saúde mental e aos profissionais. O apoio
de profissionais e trabalhadores de saúde e saúde
mental como um dos facilitadores de reuniões deve
1) Características e objetivos dos grupos de
durar o menor tempo possível, para permitir que nós
ajuda e suporte mútuos
usuários ou familiares assumamos integralmente
este papel. A partir daí, é possível ter apoio deles
1.1) Características essenciais dos grupos: apenas como observadores,supervisores apoiadores
locais e gestores municipais.
h) sensibilidade para as necessidades específicas de
a) processo de autodefinição das necessidades; grupos particulares da população e de nós usuários
total controle da vida grupal por nós, usuários e familiares, tais como pessoas com necessidades
ou familiares membros, nos dando a chance de especiais, deficientes, grupos étnicos, por sexo e
experimentar o que nos ajuda e o que não nos serve; gênero (homens, mulheres e outras identidades
b) estrutura interna com baixíssimo nível de sexuais e preferências eróticas), grupos geracionais
hierarquia, visando o máximo de poder igual ou de idade (adolescentes, jovens, adultos, idosos)
entre nós membros; divisão de responsabilidades, etc. Esta sensibilidade pode gerar a formação de
grupos específicos para alguns destes coletivos.

Temas de
habilidades e poder, tornando-nos também
provedores e vice-versa;
c) respeito a cada colega como pessoa, e não como
portador de diagnósticos clínicos, independente das

aprofundamento
possíveis contribuições que a medicina e demais
ciências possam ter na abordagem do transtorno
mental e no seu tratamento;

operativo para
d) participação totalmente voluntária e não
coercitiva;
e) promoção da independência e da autodeterminação

facilitadores,
grupal e individual;
f) abertura e troca de experiências pessoais (em
inglês: self-disclosure): diferentemente da forma

trabalhadores
como os profissionais atuam nos serviços, quando 1.2) Objetivos dos grupos
não se expõem ou falam de si, nos grupos de
ajuda mútua e nas relações criadas a partir deles,
a abertura para falar de si e trocar as experiências 1.2.1) Os grupos de ajuda e suporte mútuos DEVEM:

e profissionais
pessoais é altamente desejável e valorizada. Isso a) estar atentos a como as necessidades de
permitir humanizar as pessoas, mostrando que todos nossos companheiros estão sendo respondidas,
compartilhamos experiências difíceis e desafiadoras tais como sono, alimentação, um bom lugar para

Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 49


TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

morar e viver, atenção médica em geral, acesso ajudar os colegas usuários ou familiares, a luta pela b) pretender realizar psicoterapia de grupo, ao e) negligenciar as necessidades próprias dos
a medicamentos e outras necessidades básicas defesa dos nossos direitos e por mudanças graduais acreditarem ser capazes de lidar com problemáticas cuidadores, pois no caso dos grupos de familiares o
pessoais e de saúde, e conversar com eles sobre na relação de poder dentro do sistema de saúde subjetivas mais profundas ou com experiências interesse a ser defendido prioritariamente é o deles.
as melhores estratégias para conquistar uma boa mental e na sociedade; traumáticas graves de seus participantes. O Isso não significa romper com uma direção ética
resposta a estas necessidades. Para isso, o grupo e acolhimento neste nível não só constitui uma fundamental: não podemos nos desvencilhar de
seus facilitadores devem buscar conhecer cada vez atribuição privativa dos profissionais de saúde nossa parcela de responsabilidade e investimento no
mais todos os recursos e serviços de saúde, saúde g) ter sempre em mente que ajuda e suporte mental, como indicado no tópico anterior, como cuidado aos membros de nossa família com alguma
mental, de educação, cultura, transporte e da área mútuos “não são terapia”, embora tenham efeitos também os facilitadores não têm a formação forma de fragilidade, tarefa que é compartilhada
social disponíveis no local, no bairro e na cidade, e terapêuticos, pois o objetivo é estar junto e necessária nem a experiência suficiente que lhes com as agências públicas. Participar de um
as melhores estratégias de ter acesso a eles; disponível como um amigo e colega interessado permitam abordar estes processos. Quando este grupo de ajuda mútua de familiares já significa,
em escutar, trocar experiências e conhecimento, e tipo de vivência aflora, o grupo deve fazer um na prática, continuar a investir neste cuidado e
realizar atividades de forma solidária e coletiva. acolhimento mais imediato, reconhecendo a sua nesta(s) pessoa(s), mas o objetivo prioritário do
b) sistematizar e tornar accessível informação sobre importância e a coragem do colega em partilhar a grupo é olhar para as necessidades e os desafios
assuntos que mais nos afetam profundamente, sua experiência difícil, mas os facilitadores devem próprios dos cuidadores, que geralmente têm muita
tais como efeitos colaterais dos medicamentos 1.2.2) Os grupos de ajuda e suporte mútuos NÃO
encorajar ou acompanhar este colega na procura dificuldade em falar abertamente sobre si mesmos.
e tratamentos, nossos direitos, indicações para DEVEM:
de ajuda dos profissionais e dos serviços em que No campo mais geral da saúde e da saúde mental,
serviços que respeitem esses direitos, e informações participa ou que estão disponíveis na área; ao mesmo tempo em que existe um largo campo
gerais que nos ajudem a viver dignamente; de convergência entre os interesses de usuários
a) prover ou substituir a atenção médica e psicológica
especializada, que é papel e atribuição privativa e familiares, que deve ser exercido nas atividades
c) desrespeitar a vontade de cada um dos comuns de suporte mútuo e militância, é preciso
c) superar o isolamento e promover o respeito, a dos profissionais e dos serviços de saúde e saúde
membros, mesmo que este eventualmente queira também reconhecer as diferenças de perspectivas,
consideração, o apoio emocional, a amizade e os mental, e aos quais o acesso constitui direito social
ser hospitalizado ou tratado em serviços não fazendo parte da diversidade dos atores sociais e da
laços comunitários entre nós membros; de todos os cidadãos, e portanto constitui dever do
amigáveis, ou ainda não queira levar em conta as riqueza do campo19.
Estado a sua provisão com qualidade e com formas
informações e recomendações do grupo sobre o
adequadas de acessibilidade para todos;
assunto. Como indicado mais à frente, o tema das
d) trocar experiências e estratégias não médicas e
melhores alternativas de cuidado e tratamento deve f) achar que os facilitadores sejam os “heróis
não profissionais de lidar com o transtorno e a vida
ser objeto da discussão permanente no grupo, e as salvadores” de cada um dos participantes do grupo,
em geral;
diretrizes de como cada um quer ser tratado nos e sobre os quais podemos despejar todas as nossas
momentos de crise devem ser estabelecidas por dificuldades e os desafios existenciais e sociais.
e) desmistificar gradualmente a vida emocional, como escrito com anterioridade, nos planos de crise, tema Na verdade, os facilitadores são também usuários
se fosse algo que só os especialistas entendem e que foi incluído na cartilha e no manual, mas que ou familiares que já carregam seu fardo diário de
pudessem atuar sobre ela, buscando então respeitar também será objeto de novos textos no futuro; dificuldades, e eles não substituem os serviços e os
e validar o nosso próprio conhecimento e recursos trabalhadores de saúde e saúde mental, que têm
para nos ajudarmos mutuamente, tornando-nos aos sim a responsabilidade efetiva de prover cuidados
d) buscar adaptar e ajustar os usuários às expectativas e assistência na área programática em que atuam.
poucos nossos próprios consultores e especialistas;
que as famílias e a sociedade têm para com eles, pois os
grupos de ajuda e suportes mútuos de usuários devem
f) lembrar sempre do dito popular “a união faz a sempre se posicionar e se colocar em primeiro lugar
força”, visando superar o sentimento de invalidação ao lado dos interesses e da perspectiva dos próprios 19 Para os interessados nesta discussão, ver os vários
e ausência de poder perante os serviços, usuários, mesmo que isso possa significar frustrar mais textos de aprofundamento sobre o tema da família neste
imediatamente as expectativas colocadas sobre ele; manual.
estimulando a autoestima, força interior, poder de

50 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 51
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

- como gostaria de ser tratado em caso de crise c) é recomendável que todo facilitador conheça f) só em último recurso, no caso de ameaça real
pessoal; a si mesmo. Em caso de uma situação disruptiva, à integridade da pessoa envolvida e dos demais,
qual é a sua tendência instintiva? Ficar com medo, é que medidas mais radicais podem ser tomadas,
- qual(is) serviço(s), profissional(is), familiares
deixar correr solto ou entrar nela imediatamente como chamar o SAMU (tel. nº 192) ou o Corpo de
e amigos devem ser contatados imediatamente
para revidar uma ofensa ou agressão? Para manter Bombeiros (tel. nº 193, em caso de crise em via
e quais os contatos (telefone e endereço) destas
o bom andamento do grupo nestas situações, é pública). Os serviços de emergência disponíveis
2) Recomendações para lidar com pessoas e serviços;
importantíssimo manter a calma. Se você for do tipo na área e o perfil de atuação de cada um e seus
comportamentos e atitudes não construtivos - qual o papel que é esperado dos familiares ou que não consegue lidar com estas situações, planeje números devem ser conhecidos com antecedência
e desagregadores, ou com situações de crise representantes pessoais durante o tratamento; com o outro facilitador do grupo, com antecedência, pelos facilitadores de atividades;
- que tipo de atendimento gostaria de ter; o seu possível afastamento da situação e como este
deverá assumir o encaminhamento da questão;
Geralmente, estes comportamentos e situações - quais os medicamentos clínicos e psiquiátricos g) após a superação da situação disruptiva, é
são pouco comuns nos grupos de ajuda e suporte que costuma tomar nestas situações e quais sempre aconselhável conversar com os presentes
mútuos. Entretanto, quando ocorrem, é bom ter uma costumam ter efeitos colaterais problemáticos em d) busque entender a natureza e as possíveis causas que permaneceram no grupo, para aliviar as tensões
ideia do que é possível fazer: seu caso; do comportamento disruptivo. Ele pode ocorrer e dar suporte às pessoas que necessitarem.
por uma situação estressante ou de crise já vivida
a) à medida que o grupo vai se organizando, ele deve - com que tipos de suporte e cuidados especiais
pela pessoa, pela falta de atenção do grupo, por
discutir o assunto e estabelecer algumas diretrizes gostaria de contar por parte dos familiares, dos 3) Busca de membros, participação inicial,
diferenças muito acentuadas de personalidade
de como atuar coletivamente nestas situações; representantes pessoais e dos companheiros do gestão das atividades e crescimento do grupo
ou competição entre membros do grupo, por mal-
grupo etc.
entendidos na comunicação etc.;

b) entre estas diretrizes, sugere-se que o grupo a) O grupo deve estabelecer que tipo de membros ele
discuta as melhores alternativas e estratégias de Em alguns países como Estados Unidos, Inglaterra quer aceitar, ou seja, os critérios de participação. A
e) se uma situação muito disruptiva acontecer, pare
cuidado local para situações de crise, e que cada e Holanda, o Plano de Crise é reconhecido metodologia que estamos propondo é mais dirigida
imediatamente as atividades e busque mobilizar
participante preencha seu “Plano de Crise” (ver pelas autoridades de saúde, e há situações ou as pessoas mais próximas e amigas da pessoa para grupos de ajuda mútua de usuários de serviços
versões colocadas no apêndice nº 2 da cartilha). modalidades que podem ter valor legal, constituindo envolvida, para tentar acalmá-la, se necessário de saúde mental ou para grupos de familiares,
Em geral, os modelos internacionais de Plano de diretrizes efetivas a serem respeitadas na atenção à retirando-a temporariamente da reunião, a fim de mas os grupos de suporte mútuo podem aceitar
Crise costumam indicar as seguintes informações pessoa em crise. que ela possa se recompor ou receber o acolhimento também a presença de profissionais, familiares de
básicas: devido. Se for necessário, os facilitadores devem usuários, ou outras “pessoas amigas”. Neste caso,
lembrar da regra referente ao tema, incluído no o tipo de participação e de responsabilidades que
contrato de funcionamento dos grupos, e nas podem assumir deve ser previsto com anterioridade.
reuniões seguintes, todo o contrato deve ser lido no É possível também prever, como indicado acima,
início das reuniões; grupos voltados para situações existenciais
específicas ou para pessoas que vivam alguma
forma particular de opressão ou discriminação, como
mulheres, idosos, afrodescendentes, indígenas,
pessoas com preferências eróticas específicas etc.

b) Os grupos de ajuda e suporte mútuos devem se


iniciar pequenos e crescer devagar, particularmente
se os facilitadores e participantes têm ainda pouca

52 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 53
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

experiência. Neste caso, a recomendação é de que mútua, a partir de uma pergunta simples a este
os facilitadores devem primeiro aumentar o número participante, se deseja ou não continuar no grupo.
de grupos, mantendo-os pequenos, e só quando se
sentirem mais seguros devem ampliar o número de
membros em cada grupo. g) Nos grupos voluntários de associações civis,
haverá alguma taxa simbólica para permanência no
grupo, para ajudar nas despesas eventuais? Em caso
c) É muito importante que os novos membros positivo, como fazer com aqueles participantes que
sejam recebidos de forma atenciosa e hospitaleira. não podem pagar até mesmo uma taxa simbólica?
Participar de um grupo deste tipo pela primeira vez Nos grupos promovidos pelo Sistema Único de
sempre gera medo, ansiedade, incertezas e dúvidas, Saúde (SUS) ou qualquer outra política social,
ou lembranças de situações anteriores nas quais não com facilitadores já recebendo bolsas ou salário, a
4) O registro das atividades do encontro. Ajuda também no processo posterior
fomos bem tratados. Para isso, é muito importante lógica que deve presidir é a gratuidade e o acesso
e regular de sistematização e troca de experiências
eleger algumas pessoas para atuarem como uma universal, sem qualquer possibilidade de cobrança
equipe de boas-vindas: eles mostrarão o lugar, entre os membros do grupo, que vai criando as bases
de taxas, mesmo que simbólicas. No caso de grupos a) O grupo deve discutir e indicar qual o tipo de
explicarão como funciona o grupo, apresentarão os para uma competência coletiva dos usuários ou
e projetos de suporte mútuos, como os recursos registro das reuniões ele quer desenvolver. Sugere-
novos aos membros antigos, estarão disponíveis podem ser mobilizados através das políticas de familiares e para o seu empoderamento. Além disso,
se que se mantenha apenas dois tipos de registro,
para responder perguntas e esclarecer dúvidas etc. Estado e, quando for o caso, de apoios na sociedade o registro também constitui uma fonte fundamental
que podem ser separados ou não, de acordo com a
em geral e na comunidade local? Essas são algumas para as reuniões de supervisão, pois confiar apenas
escolha do grupo: um registro mínimo com data e
das questões que irão merecer uma discussão mais na memória nunca é recomendável. Mais tarde,
tipo de reunião, número de participantes e tema ou
d) Como indicado anteriormente, na medida em cuidadosa na medida do avanço do grupo. Para poder estes registros poderão também constituir uma fonte
atividade principal, e um outro com a data e a lista
que o grupo vai se organizando, ele deve criar seu melhor se esclarecer nestes assuntos, verifique as importantíssima para a pesquisa e para montagem
próprio estilo. Quando o grupo ganhar estabilidade, de presença.
próximas seções deste capítulo e também utilize as de material educativo em saúde mental para os
recomenda-se que se produza um pequeno folheto reuniões de supervisão. usuários e familiares, como, por exemplo, por meio
explicativo a que os novos membros tenham acesso de folhetos, pequenos jornais, cartilhas, vídeos e
b) As lideranças de grupos e particularmente os
e que possa esclarecer as suas dúvidas. inserções na internet. Para o diário de campo, é
facilitadores devem manter um registro pessoal,
h) Depois do grupo já estar bem organizado e se na forma de diário de campo, sem identificar recomendável o uso de um caderno de capa dura,
propor a crescer, quais os meios de divulgação nomes das pessoas, realizado preferencialmente que permita fazer anotações em qualquer lugar
e) É importante que o grupo estimule e que garanta que serão usados para convidar novos membros? logo após as reuniões, no qual anotam os temas que não disponha de cadeira e mesa para a escrita.
aos novos membros a oportunidade para falar nos Que tipo de pessoa será prioridade do grupo para
encontros e para se envolverem o quanto antes em principais que estão sendo discutidos, as várias Cada registro deve se iniciar com um cabeçalho com
o seu crescimento e expansão? Que tipo de imagem estratégias que as pessoas vão desenvolvendo data, local, colega facilitador do dia, para melhor
atividades e projetos do grupo. externa e quais eventos públicos podem ser para lidar com os desafios da convivência com o rastreamento posterior da experiência.
realizados? Que alianças podem ser estabelecidas transtorno mental, as melhores recomendações
com outros grupos e movimentos sociais da área? de como atuar em atividades de suporte mútuo
f) O grupo pensa em estabelecer uma inscrição
Qual a relação que o grupo terá com outros grupos etc. É importante esclarecer os objetivos deste c) Qualquer registro das reuniões constitui
formal? De qualquer forma, a cartilha do
de ajuda e suporte mútuos? Existe a possibilidade e registro para os participantes, e o compromisso documentação confidencial, e portanto deve ser
participante já traz um modelo de ficha de inscrição
é desejável do grupo se dividir em dois, ou criar um de não incluir o nome das pessoas, para evitar guardado em lugar seguro e se possível trancado, e
com informações básicas sobre o novo membro
novo grupo em outro local? Estas questões também fantasias persecutórias. Este registro pode ajudar nenhuma informação pode ser passada para pessoas
e sobre a melhor forma de contatá-lo em caso
exigirão cuidado no processo de crescimento dos os facilitadores a ganharem prática e agilidade para e instituições externas ao grupo, a não ser mediante
de necessidade. Parece-nos recomendável o seu
grupos. pedido escrito ou expresso, e cujo conteúdo é
preenchimento depois de duas ou três reuniões de a fase de síntese das reuniões, quando o facilitador
experiência, particularmente nos grupos de ajuda busca resumir alguns dos pontos mais importantes autorizado pela própria pessoa envolvida e/ou pelo

54 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 55
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

grupo. Na medida do necessário e da curiosidade - eleição de tesoureiros e conselhos fiscais impossível, que eles sejam avisados logo no início
dos participantes, esta regra deve ser informada ao responsáveis pela gestão dos recursos financeiros do encontro, para se evitar o desgaste da espera,
conjunto do grupo. e de coordenadores dos projetos que envolvam e para se planejar o que se pode fazer na ausência
produção e guarda de recursos materiais, com regras das lideranças.
prévias e claras de como deve ser esta gestão;
d) Os registros devem evitar qualquer linguagem
- registro escrito e sempre atualizado da
diagnóstica ou do tipo clínico, ou de julgamento das c) paciência e perseverança: no início, a
movimentação financeira e dos recursos materiais
pessoas envolvidas no grupo. participação é sempre pequena e normalmente há
sob guarda, com acesso garantido para consulta
inúmeros problemas de organização, coordenação
de todos os participantes do grupo em qualquer
e falta de experiência. Sem deixar de tomar as
momento;
medidas necessárias para sanar os problemas, os
- local e métodos adequados para guarda dos facilitadores devem persistir no processo e mostrar
recursos, com trancas e cadeados de qualidade e aos participantes que o amadurecimento do grupo é
com toda a segurança. No caso de dinheiro, quantias 6) Qualidades pessoais e éticas desejáveis normalmente gradual e sempre apresenta este tipo
mais significativas devem ser depositadas em conta para facilitadores de dificuldades.
bancária, se possível própria do grupo. Em caso de
objetos, particularmente de arte, deve-se garantir a
sua guarda com a segurança e todos os cuidados Facilitar grupos de ajuda ou suporte mútuo não d) disposição para aprender: um bom facilitador está
necessários para cada tipo de material, para se exige qualidades sofisticadas ou especializadas, sempre refletindo e aprendendo com a sua própria
evitar arranhões, danos ou quebras. mas apenas um processo de aprendizagem pessoal prática com grupos e com a troca de experiências
e coletiva e de acúmulo gradual de experiência a com outros grupos e facilitadores. Neste sentido, a
partir da prática. Entretanto, há algumas qualidades visita a outros grupos, a vinda de outras lideranças
A gestão de recursos financeiros e materiais no grupo e as reuniões de supervisão constituem
pessoais e éticas desejáveis e que podem ser
constitui um dos aspectos mais problemáticos de sempre boas oportunidades de aprendizagem e
desenvolvidas no processo:
qualquer grupo. O tema é particularmente sensível
troca de experiências.
quando seus membros têm muitas dificuldades
de sobrevivência, o que aumenta o risco de uso a) facilidade de acesso: os facilitadores devem ser
dos recursos comuns para pequenas emergências pessoas de fácil acesso, se possível com telefone e) reconhecimento das dificuldades e dos enigmas
5) A importância e os cuidados necessários regulares e normais da vida, mesmo sem intenção fixo, e/ou celular, e e-mail, quando possível. próprios do processo de recuperação, sabendo lidar
com a gestão de recursos financeiros e de furto, particularmente quando não se tem a com humildade e respeito com a própria frustração
materiais capacidade de reposição posterior. Muitos grupos nos casos de não correspondência a nossas
e associações de base comunitária têm suas b) responsabilidade e compromisso com as expectativas: os caminhos de vida e da recuperação
piores crises a partir de apropriações dos seus atividades agendadas: os atrasos ou a ausência de cada pessoa são sempre enigmáticos, e
Gradualmente, as atividades de ajuda e suporte recursos comuns, e portanto esta gestão constitui dos facilitadores podem impossibilitar a realização muitas vezes vão na direção contrária de nossas
mútuos podem incluir a manipulação de dinheiro um dos maiores desafios de qualquer projeto do encontro e tendem a desmobilizar o grupo. Para expectativas. Esta é uma característica própria do
para custear determinadas atividades que tenham coletivo. Este tema também constitui um desafio o caso de algum imprevisto, o facilitador deve ter campo da saúde mental, que não pode pretender
custo, bem como recursos materiais, como, por para os trabalhadores e profissionais de saúde, um substituto à altura que possa ser chamado de adaptar e ajustar as pessoas à sociedade vigente,
exemplo, os frutos de oficinas de arte, trabalho e particularmente quando têm apenas experiência imediato. Em caso de impossibilidade absoluta e saber lidar com estes limites e frustrações deve
renda. É fundamental manter uma gestão destes anterior em atividade clínica individualizada, sem de substituição, devem-se prever meios de avisar ser uma busca permanente dos facilitadores,
recursos com as seguintes exigências mínimas: vivência de projetos sociais. previamente os participantes, para que evitem o profissionais e demais trabalhadores de saúde e
deslocamento até o local da reunião, ou, se isso for saúde mental ligados a projetos de ajuda mútua.

56 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 57
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

f) sensibilidade e acolhimento: a ajuda e o suporte para o desenvolvimento da autonomia, liberdade


mútuos requerem que o facilitador tenha uma boa e empoderamento dos usuários e familiares; os
sensibilidade para os sentimentos e para o perfil direitos, as leis e normas mais importantes da área;
de vulnerabilidades de cada um dos participantes, e as formas de participação, os atores políticos
sendo capaz de acolher, demonstrar interesse e e movimentos sociais, as lutas e conquistas do
estimular que os demais membros participem deste campo. Para isso, os textos de aprofundamento
acolhimento. deste manual constituem um material significativo
para leitura, discussão e reflexão, mas é importante
buscar sempre outras formas de melhor conhecer,
g) conhecimento de seu próprio estilo: não existe discutir e participar destas lutas. Os movimentos
um único estilo ideal de trabalhar com grupos. sociais, reuniões, encontros e congressos da saúde
Por exemplo, alguns falam mais, outros gostam mental também representam ótimas oportunidades
mais de escutar. Este estilo tem mais a ver com as para este crescimento. Aos poucos, o engajamento
características de personalidade e a história de cada pessoal e coletivo nestas lutas vai se tornando não
pessoa. É interessante que cada facilitador busque só uma forma de conhecer melhor esta realidade na
identificar, conhecer e aperfeiçoar o seu próprio estilo prática, como também uma exigência ética e política tenha à sua disposição um dispositivo regular que o profissional de saúde mental do núcleo
pessoal de lidar com o grupo. de participar na transformação da vida social, contra destes, e o ideal é contar com a presença de uma local de apoio à rede seja aquele responsável pelo
todas as formas de opressão, na construção de uma liderança de usuário ou familiar com experiência acompanhamento e a supervisão dos facilitadores.
sociedade mais justa, igualitária e solidária, em já consolidada em atividades grupais, ou com um
h) senso de seus próprios limites: é aconselhável que As reuniões de supervisão devem acontecer
aliança com os demais movimentos populares. profissional que tenha conhecimento de processo
o facilitador saiba reconhecer seus pontos positivos e regularmente, de forma a permitir que os
grupal e seja comprometido com a perspectiva
suas limitações, e até que ponto pode efetivamente facilitadores tenham orientação acerca dos desafios
de empoderamento e de reforma psiquiátrica.
exigir de si mesmo. Em alguns momentos, deve sentidos nas últimas reuniões, e possam planejar
Quando isso não for possível, pode ser também
explicitar ao grupo suas limitações ou sua eventual previamente o retorno aos grupos. No caso dos
um profissional amigo com alguma experiência em
sensação de estar sendo muito cobrado pelo grupo, e grupos de ajuda mútua, a supervisão deve contar
grupos. O mais importante é que possa respeitar
das necessidades e demandas que devem ser dirigidas sempre com a presença de ambos os facilitadores
e estimular a autonomia dos usuários e familiares
aos serviços e aos trabalhadores de saúde, saúde que trabalham em dupla. É desejável que vários
como princípio ético e político básico do presente
mental e da área social da região. Em outras ocasiões, facilitadores que atuam na mesma cidade ou
projeto.
pode reconhecer a impossibilidade temporária adjacências, ou em uma mesma região de uma
de assumir o lugar da facilitação, sugerindo um No atual estágio de disseminação deste projeto no
grande cidade, possam frequentar um mesmo grupo
substituto, de forma que ele possa participar desta Brasil, no período entre 2010 e 2012, a equipe do
de supervisão, para facilitar a troca de experiências
reunião como um membro convencional. Transversões está recebendo recursos para prover
uma capacitação básica inicial de poucos dias e a discussão dos desafios comuns. Os grupos de
7) A supervisão externa para os facilitadores
intensivos em algumas cidades-chave do país. O supervisão podem também colaborar na formação
i) consciência e engajamento ético, social e político: curso inclui a apresentação/discussão do projeto e de novos facilitadores, na medida em que devem
os facilitadores devem ir conhecendo cada vez Os facilitadores de grupos, particularmente no de seus conceitos básicos, e duas vivências práticas. estar abertos para aprendizes e iniciantes (desde
mais a realidade social do país, seus conflitos início, devem criar um dispositivo regular de Além disso, é possível se pensar em dispositivos via que as regras de confidencialidade e sigilo sejam
e desafios, e como tudo isso interfere na saúde preparação inicial e de avaliação do andamento internet para se tirar dúvidas e discutir os problemas garantidas), e podem também estimular novos
mental das pessoas; a política de saúde e saúde dos grupos e de discussão dos desafios que vão de implementação do projeto e da supervisão dos arranjos de duplas de facilitadores, a partir de
mental, os serviços e formas de tratamento mais aparecendo. É imprescindível que o processo grupos. No caso de grupos implantados através descoberta de afinidades pessoais, condições
adequados (e os menos aconselháveis também!) inicial dos grupos e da atividade de facilitação da rede de atenção primária à saúde, sugerimos comuns que facilitam o trabalho conjunto etc.

58 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 59
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

8) O trabalho de facilitação como militância c) Este tipo de trabalho de liderança de usuários e) Após o período de capacitação, a ser definido no As associações civis, se devidamente orientadas,
e como gerador de renda, e demais recursos de serviços, em processo mais avançado de processo, o projeto deve propor uma bolsa para os têm um potencial de maior autonomia em relação
necessários para a capacitação e a recuperação, vem sendo utilizado com muito sucesso facilitadores regulares, suficiente para cobrir suas aos serviços públicos e ao Estado, e sua formalização
manutenção do projeto no Brasil e particularmente no Rio de Janeiro, no despesas cotidianas e para a sua manutenção, e permite a gestão formal de recursos financeiros e
campo da atenção ao abuso de álcool e outras que ela seja, após um período de experimentação, materiais, inclusive a celebração de convênios ou
drogas, na figura do antigo “conselheiro de álcool transformada em contrato de trabalho regular, entrada em editais com repasse de recursos, abrindo
Os facilitadores, como usuários ou familiares que e outras drogas”, hoje “técnico de reabilitação em normatizado pela CLT. Mais tarde, quando o projeto boas possibilidades de sustentação e para a difusão
precisam sobreviver, necessitam ter suporte para dependência química de álcool e drogas”. No campo já estiver consolidado e reconhecido pela sociedade geográfica de projetos mais complexos. De forma
desempenhar este trabalho. Alguns usuários ou da saúde mental, já temos a figura do “oficineiro”, e pelo Estado, recomendamos abrir o debate sobre similar, as associações têm um maior reconhecimento
familiares já trabalham e/ou têm renda própria ou seja, daqueles que coordenam oficinas, como, a possibilidade e se é desejável uma carreira de e legitimidade para participar como representantes da
satisfatória, mas a maioria das lideranças oriundas por exemplo, em artes, artesanato etc. Assim, oficineiro em saúde mental como servidor público. sociedade civil nos conselhos de política social no país.
dos serviços públicos de saúde mental sobrevivem sugerimos que os facilitadores sejam reconhecidos
Os grupos de ajuda mútua e os projetos de suporte
com muitas dificuldades. Além disso, a participação como “oficineiros em saúde mental”, cuja função
nas reuniões implicam despesas, como as de mútuo constituem atividades fundamentais para
seja associada a uma forma de remuneração justa Mais detalhes e propostas de iniciativas públicas
transporte e recursos para necessidades correntes fortalecer a mobilização e organização de associaçoes
pelo seu trabalho, como indicado a seguir; de estímulo a grupos de usuários e familiares se
(como, por exemplo, lenço de papel para apoio a encontram nos textos de aprofundamento. de usuários e familiares em saúde mental. Outra
pessoas emocionadas, papel higiênico, sabonete, possibilidade é de grupos e projetos independentes
papel toalha, lápis, papel etc.), e particularmente d) As lideranças de usuários participantes do projeto de ajuda e suporte mútuos se organizarem na forma
para o lanche no final. Assim, o projeto de formação devem contar com uma ajuda de custo na fase inicial 9) Grupos de ajuda e suporte mútuos e a de associação civil, para ampliar o seu crescimento e
de grupos de ajuda e suporte mútuos deve discutir do projeto, para as suas despesas correntes e como organização de associações de usuários e formas de sustentação financeira. Esta opção deve ser
previamente as seguintes sugestões: estímulo à participação no projeto; familiares avaliada em suas vantagens e desvantagens, levando
em conta a conjuntura local e as possíveis alianças
com outras associações e movimentos sociais. Nos
a) O projeto deve ter o apoio e o subsídio dos No processo brasileiro de reforma psiquiátrica, textos de aprofundamento, é indicada uma série
programas e serviços de saúde e/ou saúde mental, iniciado em 1978 e que avançou muito a partir da de propostas para estimular e empoderar usuários
e/ou do movimento da luta antimanicomial e/ou década de 1990, estamos assistindo à expansão e familiares do campo da saúde mental e suas
das associações de usuários e familiares existentes do movimento antimanicomial, dos serviços associações no Brasil atual, incluindo esta proposta
na cidade, e/ou ainda de entidades e ONGs do substitutivos e dispositivos de atenção psicossocial, de formalização dos oficineiros de saúde mental.
Terceiro Setor ou de associações civis e religiosas. bem como do número de associações de usuários
A inserção prioritária que estamos propondo no e de familiares. Estas associações hoje no Brasil
contexto brasileiro atual é no Estratégia de Saúde da são geralmente mistas, formadas por usuários,
Família, de forma integrada aos serviços de atenção familiares, profissionais e “amigos”, e vêm
psicossocial, proposta esta melhor desenvolvida em desenvolvendo uma série de atividades, geralmente
um dos textos de aprofundamento deste manual; de suporte mútuo (principalmente de trabalho e
renda) e de defesa dos direitos, como raros casos de
grupos de ajuda mútua20.
b) A provisão de um curso de capacitação para
facilitadores (usuários, familiares e trabalhadores) ou
supervisores profissionais também deve contar com
20 Para aprofundamento sobre o perfil das associações
este apoio, em termos da provisão das cartilhas, local, de usuários e familiares e outros dispositivos Abordagens psicossociais, vol II: reforma psiquiátrica e
recursos educacionais, lanches e refeições etc.; organizativos no campo da saúde mental no Brasil, ver saúde mental na ótica da cultura e das lutas populares,
o livro organizado por Eduardo Vasconcelos, intitulado publicado pela Editora Hucitec, de São Paulo, em 2008.

60 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental


TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

IV. TEXTOS DE APROFUNDAMENTO Texto 1


TEÓRICO-CONCEITUAL E SOBRE A
INSERÇÃO NA REDE NO SISTEMA
Conceitos básicos para se entender as
DE SAÚDE E SAÚDE MENTAL
propostas e estratégias de empoderamento no
campo da saúde mental
Eduardo Mourão Vasconcelos
Este manual e cartilha de ajuda e suporte mútuos
em saúde mental estão sustentados em um já longo
percurso de sistematização teórico-conceitual e de
experiências tanto no plano internacional como no 1. Apresentação
contexto brasileiro. Nesta perspectiva, este capítulo
mais amplo e longo do manual busca colocar à
disposição do leitor uma série de textos que nós Este primeiro texto de aprofundamento visa fazer
consideramos fundamentais, por possibilitar ao uma apresentação inicial deste percurso teórico-
leitor um aprofundamento gradual neste arcabouço conceitual e de experiências dentro do manual,
já construído ao longo dos anos pelos integrantes retomando e ampliando um texto originalmente
do Projeto Transversões, incluindo também dois oferecido ao público em outras publicações21, mas
autores não participantes diretos do projeto, mas em versões iniciais mais reduzidas. O texto passou
muito próximos a nós, como é o caso de Eymard por um processo de revisão e ampliação, com

Textos de
Mourão Vasconcelos e Jeferson Rodrigues. acréscimo de novos comentários e de uma seção
inteiramente nova, incorporando novas discussões
e avaliações consideradas também relevantes nos

aprofundamento
últimos anos. O ensaio busca exatamente fazer esta
apresentação introdutória dos conceitos básicos de
empoderamento de usuários e familiares no campo

teórico-conceitual
da saúde mental, a partir de uma apropriação
crítica daqueles já disponíveis na literatura e nas
experiências internacionais e brasileiras. A partir de

e sobre a inserção
nossa experiência, recomendamos que os conceitos
básicos de recuperação, empoderamento e suas
variadas estratégias, aqui sistematizados, devem

na rede no sistema
fazer parte do conteúdo de qualquer capacitação
básica para facilitadores de grupos, para que

de saúde e saúde 21 O poder que brota do fundo da dor e da opressão:


empowerment, sua história, teorias e estratégias,
lançado em 2003 pela Editora Paulus, de São Paulo,

mental
e Reinventando a vida: narrativas de recuperação e
convivência com o transtorno mental. São Paulo/Rio de
Janeiro: Hucitec/EncantArte, 2006.

Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 63


TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

possam compreender o campo mais geral e as dominação e discriminação social”. b) Na direção emancipatória e antiopressiva, forma adequada aos interesses emancipatórios e
demais estratégias em que a ajuda e o suporte temos os vários movimentos e organizações de para as características de cada contexto particular;
Entretanto, é preciso esclarecer que não se trata
mútuos estão inseridos. trabalhadores, de direitos civis e de minorias étnicas,
de um conceito com estatuto teórico e ético- - admitir que não se trata de fazer simples
Contudo, é preciso ressaltar que este texto não político próprio. Em nossa visão, trata-se de uma o movimento feminista etc. No Brasil, durante a
transposições transnacionais ou transculturais de
esgota todos os ângulos e dimensões de nosso “interpelação”22 de caráter polissêmico, similar ditadura militar, tivemos vários movimentos sociais
conceitos e estratégias oriundas de outros países,
tema, e por isso outros textos foram escritos ou às de participação e humanização, que pode ser populares importantes com forte perspectiva
pois sua apropriação em cada contexto exige
incluídos como textos de aprofundamento neste apropriada tanto para fins conservadores quanto de empoderamento de seus membros, como as
adaptações, revisões críticas, comparação com
manual.. Assim, aos interessados em uma visão emancipatórios. Em outro trabalho de revisão Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), inspiradas
as experiências locais já existentes, experiências-
mais ampla, sistemática e aprofundado do tema, (VASCONCELOS, 2003), procurei mostrar como, na na Teologia da Libertação; a educação popular
piloto e sua avaliação etc., previamente a sua
recomendamos também a leitura dos demais textos história ocidental desde a modernidade, a ideia e as de Paulo Freire e seus desdobramentos; e, mais
difusão ampla.
a seguir. práticas de empoderamento foram apropriadas em recentemente, os próprios dispositivos de controle
ambas as direções. Alguns exemplos: social das políticas sociais, como em nosso sistema
de saúde atual.

a) Do lado conservador, temos a cultura de 3. Patologias crônicas, sofrimento, seu


2. A noção de empoderamento (empowerment) significado pessoal e coletivo, seus
autoajuda (self-help) desde o século XIX, como Esta mesma revisão mostrou que, particularmente
o movimento de temperança nos países anglo- na literatura anglo-saxônica, a interpelação de desafios cotidianos e as estratégias de seu
saxônicos, e seus desdobramentos até hoje, como empoderamento muitas vezes é apresentada enfrentamento
“Empowerment” constitui um termo da língua
inglesa de difícil tradução direta em português. na ampla literatura atual de autoajuda, com seus como única ou principal direção ética e política de
Alguns a traduzem por fortalecimento, ou por principais componentes de liberalismo radical, categorias profissionais, sem outras qualificações,
como um consenso possível. Entretanto, De acordo com o especialista em psiquiatria
aumento da autonomia, que me parecem alternativas individualização, recalque da dimensão coletiva
estas apropriações deixam de explicitar um transcultural norte-americano Arthur Kleinman
interessantes, mas limitadas quanto à riqueza dos problemas sociais e individuais, pragmatismo e
posicionamento mais claro em relação ao modelo (1988), as doenças crônicas levantam sempre duas
do termo. Boa parte dos autores a tem traduzido utilitarismo, que visam predominantemente adaptar
os indivíduos ao status quo e ao bom cumprimento econômico e social vigente na sociedade, bem como linhas de perguntas fundamentais:
criando o termo empoderamento, e, embora
esta solução não seja totalmente satisfatória, das expectativas sociais práticas (expresso, por em relação às características das políticas sociais - por que eu (nós)?
não vemos outra alternativa. Em meus trabalhos exemplo, na expressão “alcançar o sucesso”). que devem ser priorizadas pelo conjunto dos atores
- o que pode ser feito?
anteriores, optei por usar o termo original em inglês, sociais e políticos do campo.
exatamente para manter a complexidade, a força e Em meu ponto de vista, entretanto, acredito que
Assim, nosso posicionamento é de que a interpelação e
o caráter multifacetário do conceito. Entretanto, fui 22 As interpelações são chamamentos que fazemos no podemos acrescentar mais duas linhas de perguntas
as estratégias de empoderamento podem e devem ser
dia a dia: “ei, você aí!”. Na concepção de Ernesto Laclau também essenciais:
percebendo que a maioria das pessoas às quais apropriadas para fins emancipatórios, mas isso requer:
(1885), cientista político de origem uruguaia, e inspirado
a palavra busca interpelar, ou seja, as classes em Althusser e Gramsci, as ideologias têm esse papel - estas experiências que estou vivendo
populares e os grupos oprimidos em nosso país, ativo de chamar, interpelar e conformar a visão de mundo podem ter sentidos/significados pessoais,
não eram capazes de entender o termo original em dos indivíduos e grupos sociais, mas em interação com - reconhecer seu caráter polissêmico;
seus próprios valores e emoções. Para ele, a hegemonia
existenciais e sociais para além da dor e
inglês. Assim, passei a utilizar a forma portuguesa. - conhecer minimamente sua história anterior de de todos os seus aspectos negativos e de
ideológica na sociedade não está propriamente na
De qualquer forma, mantenho a conceituação capacidade de propor uma visão de mundo inteiramente apropriações conservadoras e emancipatórias; sofrimento?
original já utilizada anteriormente, de “aumento coerente e racional, mas sim na habilidade de propor
do poder e autonomia pessoal e coletiva de interpelações que condensem, no sentido freudiano - reconhecer que as abordagens de empoderamento - esta experiência pessoal pode significar
do termo, os valores e vivências morais, familiares, não são suficientes por si mesmas, requerendo algo mais que vivências apenas individuais/
indivíduos e grupos sociais nas relações
religiosas e políticas dos diversos grupos sociais, de
interpessoais e institucionais, principalmente portanto que sejam ancoradas em princípios ético- singulares e que possam ter algum valor para
forma a propor uma articulação com um projeto social e
daqueles submetidos a relações de opressão, político mais amplo. políticos e teorização política, social, cultural e as demais pessoas que vivem experiências
psicossocial, para poderem ser sustentadas de semelhantes e seus familiares?

64 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 65
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

Kleinman mostra como as ciências biomédicas, relacionamento com seus clientes, no sentido de - a energia e o tempo despendido com a busca de - muitas doenças crônicas apresentam
clínicas e comportamentais não têm como oferecer prover tais formas de resposta, suporte e apoio. informação e experimentação de alimentos mais características e implicações incapacitantes,
respostas satisfatórias a estas perguntas para além saudáveis, terapias alternativas etc.; depreciadoras, segregadoras, desvalorizadoras
Além destas perguntas básicas, patologias crônicas
da indicação de fatores de risco e dos procedimentos e estigmatizantes, muitas vezes amplificadas
como os transtornos mentais maiores levantam - a atenção necessária para auscultar
clínicos cabíveis, nem têm categorias e meios para por representações preconceituosas difusas na
problemas e desafios de vários tipos, vividos de rotineiramente os processos corporais e psíquicos,
registrar e descrever este sofrimento para além da sociedade.
forma cotidiana, que necessariamente recolocam no sentido de controlar os agentes de risco, as
abordagem descritiva das dores e dos sintomas estas perguntas de forma reiterativa. Mesmo que fontes potenciais de piora, de decidir quando
corporais e psiquiátricos. A antropologia, a filosofia e possa ser um pouco cansativo, creio que é possível iniciar ou terminar determinados procedimentos
a psicologia podem ajudar um pouco mais no sentido Lidar com todas estas questões no contexto da vida
ampliar as indicações de Kleinman, lembrando de clínicos, quando utilizar remédios alternativos além
do seu registro, de mapear como estas perguntas contemporânea, que já apresenta suas pressões,
forma mais sistemática os vários desafios: dos rotineiros, quando procurar ajuda profissional
foram respondidas de forma mais abstrata pelos confusões e estresses, geralmente adicionam às
ou mesmo, mais radicalmente, quando mudar de
homens até o momento, ou de algumas técnicas de dificuldades intrínsecas da doença e do sofrimento
serviço ou profissão, dada a exaustão dos recursos
mais frustração, irritabilidade, exaustão, e às vezes
apoio, através dos métodos etnográficos, da história - os períodos de melhora, piora ou crise aguda, utilizados até o momento;
gera franca rebelião e revolta diante de tantas
de vida, da pesquisa filosófica, ou da psicoterapia. algumas vezes de forma previsível e compreensível,
- os riscos e os efeitos colaterais e iatrogênicos de limitações e adversidades. Isso tudo é vivido não
Entretanto, não podem oferecer respostas efetivas outras vezes não;
remédios e das diversas formas de tratamento; só pela própria pessoa, mas também pelos seus
às complexas questões da emoção, da dor, do - as ameaças e limitações colocadas à vida familiares e cuidadores informais. Além disso, este
desespero, da angústia moral e da perda de sentido - muitas doenças e formas de sofrimento exigem
diária, como à rotina doméstica, ao trabalho, aos processo exige um longo processo de acumulação
de vida. Além disso, as contribuições parciais das uma atenção constante de cuidadores formais e
relacionamentos, aos deslocamentos, com seus de experiências, de “dicas” informais, de pesquisa
profissões de saúde e saúde mental vão depender informais, principalmente pela família, e dentro
mais diversos aspectos estressantes; e troca de informações e de conhecimento técnico,
muito das referências culturais da clientela, já que os dela principalmente as mulheres, exigindo delas a
- as mudanças corporais e/ou perceptivas advindas de adequação às singularidades de cada um, de
sistemas de interpretação da doença, do corpo e do mobilização de tempo, recursos, sacrifício de seus
de vários tipos de doença ou deficiência e suas aprendizagem individual e coletiva, mas, mais
sofrimento variam basicamente com a cosmovisão projetos de vida e a exposição a diferentes formas
exigências de transformações inclusive físicas do fundamentalmente, de luta, de acomodações
de cada indivíduo e grupo social23. Normalmente, de estresse24;
espaço doméstico, em banheiros, nos prédios, nos substanciais de vida e de elaboração pessoal e
o saber acadêmico-centífico dos profissionais se - os conflitos decorrentes das constantes falhas
meios de transporte, e no espaço urbano em geral, coletiva das emoções e dos significados de todas
sustenta em representações muito particulares das na qualidade ou nas características estruturais
para permitir uma melhor qualidade de vida para as estas vivências.
elites letradas das sociedades ocidentais, tendo do sistema de saúde, das relações muitas vezes
pessoas acometidas; Mas lidar bem com tudo isso, ou seja, com
pouca aderência e eficácia simbólica efetiva para autoritárias, impessoais ou de negligência dos
a grande maioria da população de países como o - as despesas extras para custear remédios, esta busca de respostas às perguntas básicas
trabalhadores e profissionais;
Brasil. exames, tratamentos, pessoal de apoio, bem como identificadas acima, com o enfrentamento de tantos
- principalmente na assistência psiquiátrica, a problemas e questões diárias, com a aprendizagem
as complicações e os custos mais gerais inerentes à
Na verdade, estas questões e perguntas mais existência de instituições e formas de tratamento
contratação e ao acesso ao sistema de saúde; individual e coletiva necessária de estratégias
fundamentais são normalmente respondidas pelos anacrônicas, segregadoras, violadoras dos direitos deste enfrentamento, e com o necessário processo
sistemas particulares de crenças culturais, morais, - a enorme quantidade de tempo despendido com de cidadania e com efeitos mortificadores e de elaboração pessoal e grupal, vai depender
espirituais e religiosas, bem como pelos seus serviços médicos, psicológicos, de exames, com suas violadores do eu; fundamentalmente da rede de apoio, suporte e
rituais de cura, suporte e cuidado. E do ponto de salas de espera, os períodos de repouso obrigatório
solidariedade disponível para cada pessoa ou grupo
vista das terapêuticas formais, os profissionais não (algumas vezes inclusive restrito à cama) etc.;
de pessoas.
podem importar seus sistemas de crenças para o - a energia, o cuidado necessário e as limitações
24 Para discutir os aspectos ligados à produção do
Como indicamos acima, a maior parte destas
exigidas pelos regimes especiais que interferem
cuidado pela família e cuidadores informais, seu peso e questões e necessidades não podem ser providas
na dieta, no estilo de vida, nas possibilidades de
23 Para uma revisão da bibliografia brasileira a respeito suas estratégias, ver Melman (2001), Rosa (2003), bem diretamente pelos serviços e pelos profissionais
deste assunto, ver o trabalho de Venâncio (2001) e de atividades de lazer e de esporte e demais atividades como os demais textos sobre o tema incluídos neste diretamente, mas estes podem se constituir como
Fonseca (2008). mais simples do dia a dia; manual.

66 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 67
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

fontes importantes de estímulo ao suporte que a efeitos emocionais e/ou comportamentos positivos. variam entre os indivíduos e grupos sociais, e entre elas. Estes estudos demonstraram uma
pessoa já tem, mas também de estímulo à construção Trata-se de um processo recíproco, que tanto gera particularmente de como ele induz em cada pessoa enorme confluência dos resultados, indicando que
e/ou ampliação desta rede de apoio social. Vejamos efeitos positivos para o sujeito que recebe como a experiência subjetiva que conhecemos como as mulheres têm maior probabilidade de desenvolver
isso de forma um pouco mais detalhada. também para quem oferece o apoio, permitindo solidão. Mesmo que possamos fazer alguns reparos depressão, fenômeno que aumenta expressivamente
que ambos tenham mais sentidos e controle ao modelo hegemonicamente biomédico e/ou nas classes populares, particularmente se estas
sobre suas vidas. Desse processo se apreende biológico de investigação dos autores, as evidências mulheres passaram por processos de migração
do que as pessoas necessitam umas das outras. empíricas sistematizadas por eles demonstram que (distanciamento de seus vínculos familiares e
4. Apoio e rede social versus desfiliação, Essencialmente, o debate sobre o apoio social se entre os efeitos e sintomas associados à solidão culturais de origem), perda ou ausência de vínculos
individualização e solidão, e suas baseia em investigações que apontam para o seu estão o pessimismo, a desconfiança e a depressão, conjugais (solteiras, separadas ou viúvas), com
consequências no campo da saúde mental papel de manutenção da saúde, na prevenção contra o mau funcionamento imunológico, o aumento maior ênfase a partir dos 30 anos de idade. Este
doenças e como forma de facilitar a convalescença. da pressão sanguínea, a elevação dos níveis de quadro contribui diretamente para um maior
Uma das premissas principais da teoria é a de que o hormônio do estresse, a má qualidade de sono, consumo e dependência de drogas tranquilizantes
O reconhecimento da importância das redes de apoio social exerce efeitos diretos sobre o sistema o alcoolismo, o uso de drogas, a aceleração dos e sedativas (por exemplo, diazepínicos) entre as
apoio social para a promoção da saúde e saúde de imunidade do corpo, isto é, agindo como um processos de demência em idosos etc. Assim, a mulheres com tais características. Para os homens,
mental vem sendo afirmado e reiterado em efeito tampão, no sentido de aumentar a capacidade solidão pode ser considerada um fator de risco tão a nosologia mais prevalente é o abuso de drogas, se
diversos campos de saber e de política social, das pessoas a lidar com o stress. Outro possível sério para a saúde quanto a obesidade e o tabagismo. destacando entre elas o álcool. Quanto à etiologia,
tanto no exterior quanto no Brasil. Vale a pena resultado do apoio social seria sua contribuição No campo da saúde mental, é importante lembrar a relação entre alcoolismo e isolamento social é
resenhar, mesmo que rapidamente, algumas das no sentido de criar uma sensação de coerência que os transtornos mentais maiores tendem a gerar complexa, controversa e dependente de fatores
contribuições que consideramos as mais relevantes da vida e de controle sobre a mesma, o que, por mais isolamento social e solidão, aumentando ainda culturais, mas os dados existentes indicam que o
para nossos objetivos neste trabalho, ou seja, para sua vez, afeta o estado de saúde das pessoas de mais estes riscos. quadro é claramente indutor de isolamento social,
a sistematização e avaliação das abordagens e uma forma benéfica. Partindo desse pressuposto, dado o efeito devastador que possui nas relações
Os processos e os efeitos do isolamento e da
estratégias de empoderamento. poderíamos dizer que, na direção contrária, quando conjugais e familiares, bem como nos vínculos de
solidão, contudo, devem ser considerados em
Na área da saúde, particularmente na atenção o apoio social diminui, o sistema de defesa poderia trabalho (CARDIM et al., 1986).
suas particularidades de gênero, que são mais
primária e na educação popular e/em saúde no ser afetado, fazendo que o indivíduo se torne mais
acentuados nas classes populares, em um fenômeno O fenômeno do isolamento social tem também claras
Brasil, um dos autores pioneiros foi Victor Valla, suscetível à doença. (VALLA, 1998: 156)
já assinalado desde os anos de 1970 em vários dimensões sociais. Nesta direção, podemos citar
professor emérito da ENSP-FIOCRUZ, no Rio de estudos de epidemiologia psiquiátrica tanto o já clássico estudo do sociólogo francês Robert
Janeiro, falecido em 2009. Em um artigo já clássico internacionais25 como brasileiros26, vários deles Castel sobre a desfiliação social no contexto
Pesquisas internacionais mais recentes em
e considerado de referência (VALLA, 1998), baseado influenciados direta ou indireta pelo movimento europeu, mas que tem clara aplicabilidade no
psiquiatria e psicologia médica corroboram
em extensa pesquisa sobre as condições de saúde feminista. Os efeitos do isolamento são mais claros Brasil (CASTEL, 1994 e 1998). Para ele, o quadro de
claramente com esta perspectiva de análise.
nas classes populares brasileiras, Valla trouxe para entre as mulheres, com mais ênfase quando se vulnerabilidade social depende da situação de três
Em livro recente publicado por Johan Cacciopo,
o debate brasileiro a noção de apoio social, já considera a depressão, nosologia mais comum eixos fundamentais de inserção social dos indivíduos:
professor emérito da Universidade de Chicago e
corrente em outros países de língua inglesa, obtendo os vínculos de trabalho, os laços relacionais (família
Willian Patrick, editor fundador do Journal of Life
no Brasil enorme repercussão. Apesar de um pouco e rede social próxima) e a proteção social privada
Sciences (CACCIOPO e PATRICK, 2010), os autores
longo, vale a pena reproduzir todo o trecho mais ou pública. A situação é agravada e se radicaliza
sistematizam os resultados de várias pesquisas 25 Entre os estudos internacionais, estão Brown and
conceitual do autor: Harris (1982), Brown et al. (1975), Weissman and Klerman em situações abertas de desfiliação social, quando
sobre a solidão, entendida como um isolamento
(1977), Miles (1988) e Pearlin and Johnson (1977). há perdas significativas e simultâneas nestes
social involuntário e de longo prazo, em que o
três eixos, ou seja, quando temos desemprego
Apoio social se define como sendo qualquer indivíduo se encontra desprovido de vínculos sociais 26 Entre os estudos brasileiros, podemos citar Almeida
Filho e Bastos (1982), Mari (1986), Tancredi (1979), Mari ou situações precárias de trabalho, perda de
informação, falada ou não, e/ou auxílio material, significativos, chegando à conclusão de que este
e Andreoli (1990) e também na investigação de natureza vínculos familiares e da rede social primária, e
oferecidos por grupos e/ou pessoas, com os quais estado tem impacto devastador sobre a saúde. A
mais abrangente de Vasconcelos (1992b). falta de acesso a programas sociais, como ocorre
teríamos contatos sistemáticos, que resultam em intensidade e as características deste isolamento

68 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 69
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

em conjunturas de desinvestimento em políticas dependentes ou em situação de vulnerabilidade inteiramente sujeitos às leis do mercado e psicológica e individualismo cultural. O
sociais. Este parece ser o quadro típico gerado para (crianças, idosos, doentes crônicos, deficientes, do Estado. Nós os chamamos de massa ou processo de individuação pode ser entendido como
uma parcela significativa da população nas últimas pessoas com transtorno mental etc.), com aumento povo, conotando assim sua individualização ou uma exigência inexorável de amadurecimento
décadas pelas políticas neoliberais, particularmente do número de casos de negligência, abandono, falta de apadrinhamento social. (...) Essa é a psicológico requerido em cada indivíduo, de forma
em países periféricos e semiperiféricos, como o cárcere privado e violência; mais profunda experiência de exploração em gradual e diferencial em cada fase de seu ciclo
Brasil. sociedades semitradicionais, como é o caso de vida, e que é mobilizado mais intensamente
Os estudos sobre a transição e as mudanças da sociedade brasileira: a de ser um indivíduo nos processos de enfrentamento do sofrimento e
e) uma tendência ao abandono ocasional ou
demográficas recentes27 no Brasil e demais países numa sociedade que tem seu esqueleto numa no tratamento em saúde mental. Dependendo do
permanente da casa da família como opção inevitável
periféricos identificam processos (Vasconcelos e hierarquia, a de ser tratado como um número contexto cultural em que ocorre, pode requerer
de sobrevivência, e aumento do contingente de
Morgado, 2005) que estimulam ainda mais esta ou um dado global de uma massa, num mundo momentos de interiorização e autorreflexão de forma
crianças, adolescentes e adultos como moradores
tendência à desfiliação social: altamente pessoalizado, onde todos são “gente” mais ou menos acentuada. Contudo, isso não se dá
de rua, gerando perdas cada vez mais definitivas dos
e vistos com o “devido respeito” e a “devida necessariamente pelos mecanismos individualizantes
laços relacionais, um dos componentes do processo
consideração”. (DA MATTA, 1977: 198-9) dominantes da cultura ocidental e de suas elites, a
de desfiliação social.
a) o aumento significativo e constante de domicílios partir da modernidade capitalista. No momento atual,
com pessoas que moram sozinhas e do número por exemplo, estas sociedades estão marcadas por
de famílias monoparentais (chefiadas geralmente Nesta mesma linha, pesquisas antropológicas um lado pelo enfraquecimento dos espaços urbanos
O impacto deste quadro no campo da saúde mental,
por mulheres), com enfraquecimento dos laços voltadas especificamente para o fenômenos mentais públicos, cada vez mais atingidos pela miséria,
particularmente para a maioria da população
conjugais e precarização da estrutura familiar; têm demonstrado que, em vários países do mundo, desfiliação e violência, e de outro, pelo fortalecimento
pauperizada, é brutal. A desfiliação social contínua,
a perda de vínculos sociais significativos, o mas particularmente em nações periféricas como das fronteiras dos ambientes isolados, como os
“desmapeamento cultural”, a situação de morar nas o Brasil, temos um conjunto de representações shopping centers e condomínios fechados, em que a
b) a crescente participação da mulher no mercado com características próprias, como uma concepção
ruas, o abuso de drogas e a exposição sistemática e sociabilidade é associada aos simulacros de sonho,
de trabalho, com sobre-trabalho doméstico (tendo própria e particular de representar e vivenciar os
regular à violência são conhecidos fatores de risco de consumo, do mundo virtual, de uma individualidade
como co-adjuvante a continuidade da cultura
e deterioração do quadro de saúde mental para os fenômenos mentais nas classes trabalhadoras. à margem do social e da história, e que reduzem
machista entre os homens, que tendem a não dividir
indivíduos e grupos populacionais atingidos. Esta concepção é denominada pela literatura de portanto a intimidade, a liberdade e a individuação
a carga das tarefas e o cuidado na esfera familiar);
modelo do nervoso, cujo principal sistematizador a um refinamento muitas vezes estritamente privado,
O processo de isolamento social também tem
no Brasil tem sido Luís Fernando Duarte (DUARTE, narcísico e fechado para a convivência, a troca e o
uma dimensão cultural muito importante em
c) uma diminuição real da presença física paterna e 1986; DUARTE e LEAL, 1998; FONSECA, 2008). engajamento social.
sociedades periféricas e fortemente hierarquizadas,
materna na família e uma precarização das funções É bastante diferenciada do modelo psicologista
como a brasileira. A meu ver, quem melhor Nos estudos antropológicos indicados e na avaliação
simbólicas de maternagem (cuidado, atenção etc.) e da cultura letrada das classes médias e da elite
descreveu esse processo nas classes populares, do de experiências brasileiras de projetos de saúde
paternagem (autoridade, colocação de limites etc.); (origem sociocultural da maioria dos profissionais
ponto de vista antropológico, foi sem dúvida alguma mental que buscaram se adequar aos interesses e à
de saúde mental) ou do modelo estritamente
Roberto Da Matta, em seu clássico livro Carnavais, cultura dos setores populares (VASCONCELOS, 2008),
biomédico dominante. Muitas vezes, as estratégias
malandros e heróis, publicado em 1978: que emergiram no Brasil particularmente a partir da
d) uma diminuição da capacidade das famílias terapêuticas utilizadas no sistema de saúde mental
redemocratização e de ascensão dos movimentos
proverem cuidado informal aos seus membros são oriundas originalmente da prática clínica
sociais populares, a partir do final da década de 1970,
“Essa é a massa individualizada, deslocada dirigida para estas classes, e não se adaptam aos
vimos constatando que o processo de individuação e
de seus locais de origem, onde seus membros códigos próprios das classes populares.
suas implicações terapêuticas, particularmente para
27 Para os interessados em uma exploração mais detida eram tratados com respeito e consideração. De Para levarmos a sério o objetivo assistencial, ético e as classes populares, devem ser pensados de outras
dos estudos demográficos sobre o país, recomendo fato, sua maioria é de migrantes deslocados,
político de pensarmos processos terapêuticos mais formas. Por exemplo, Jurandir Freire Costa (1983 e
fortemente uma visita ao site na internet da Associação passo fundamental para sua transformação
Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP): www.abep. adequados para as classes trabalhadoras, podemos 1989), conhecido psicanalista e pesquisador brasileiro
em indivíduos sem representação alguma,
org.br partir de uma distinção entre individuação do campo da saúde mental, procurou na década de

70 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 71
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

1980 adaptar métodos terapêuticos convencionais Nestes vários tipos de grupos, pode-se não só estilos de vida etc.30 Aqui, o princípio de contraste é participantes, podem ser o ponto de partida para a
para a clientela das classes populares, no então reconstruir uma rede pessoalizada de vínculos amplamente acionado; criação de novos vínculos de amizade, sociabilidade
Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro. Uma de suas e a identidade pessoal em novas bases, como e de suporte social concreto para lidar com os
conclusões principais é a de que, entre aqueles também reestruturar esta identidade em termos desafios cotidianos.
que vivenciam o modelo do nervoso, a “identidade c) a noção de “troca de figurinhas, de experiências
de relacionamentos com maior reciprocidade,
psicológica” é altamente dependente da identidade e de estratégias de lidar com os desafios da vida e
participação e igualdade, o que pode ser
social, em um processo não somente dependente de sofrimento”, pela qual os participantes relatam Diretamente no campo da saúde mental brasileira,
interpretado também como um componente político
das condições econômicas, mas também com e escutam diferentes estratégias de lidar com a a perspectiva que estamos desenvolvendo nesta
e de cidadania dessa busca, em sua dimensão
fortes características simbólicas. Outros grupos dor, o sofrimento, com os sintomas difíceis, com seção pode ganhar uma dimensão para além da
mais micropolítica e subjetiva. Assim, de um ponto os dilemas da relação com a sociedade e com o análise cultural das classes populares, conquistando
sociais podem lidar com os estresses da vida, sem
de vista mais etnográfico, é possível postular que sistema de saúde etc. Aqui também o princípio do o estatuto de um postulado mais geral, inspirado na
que estes conflitos alcancem necessariamente a
estes dispositivos grupais e comunitários podem, contraste fica muito claro; teoria sistêmica, para a atenção em saúde mental
identidade psicológica. Todavia, a peculiaridade
em determinadas condições29, funcionar como pública. Em um trabalho hoje citado como referência
das classes populares está em que alguns estresses
ambientes estimuladores ou dispositivos de cuidado no debate sobre a contratualidade e autonomização
concretos da vida (o exemplo dado por Costa é o
e individuação, que poderiam ser descritos através d) o conceito de rede social, no sentido de que na atenção psicossocial, Roberto Tikanori Kinoshita,
desemprego e problemas de trabalho para homens)
dos seguintes conceitos: os grupos, particularmente quando ocorrem uma das conhecidas lideranças do processo de
podem realmente atingir a esfera “psicológica”,
em espaços acessíveis ao local de moradia dos reforma psiquiátrica no Brasil, propõe a seguinte
identificada por eles como “problemas de nervo”.
definição para autonomia:
Outra sugestão importante foi dada por Duarte a) o conceito de refúgio, muito utilizado para se
(1981), indicando que a noção de princípio do referir à função positiva que os dispositivos, projetos 30 A “viagem”, como dispositivo de individuação, é
contraste no processo de formação da identidade um elemento sempre presente nos mitos e histórias “Entendemos a autonomia como a capacidade
e serviços de saúde mental podem ter, como um de heróis, que Carl Gustav Jung, conhecido psiquiatra
social pode ser bastante útil para se pensar a ambiente protegido que permite ao indivíduo de um indivíduo gerar normas, ordens para a
suíço e fundador do movimento de psicologia analítica,
dinâmica interna no modelo do nervoso. Sugere que ressignificar e reconstruir uma identidade pessoal e eleva como imagens e relatos representativos de um sua vida, conforme as diversas situações que
o processo de individuação pode ser vivido por cada social em crise ou estigmatizada;
arquétipo essencial e universal no inconsciente coletivo, enfrente. Assim, não se trata de confundir
pessoa das classes populares pelo estabelecimento inerente ao desenvolvimento psicológico humano (JUNG, autonomia com auto-suficiência nem com
1964/2008). Na modernidade, este dispositivo é assumido
voluntário de contrastes entre sua identidade como elemento fundamental da estrutura narrativa do
independência. Dependentes somos todos;
e a dos outros, visando se diferenciar deles, ou b) o conceito de viagem, como um percurso chamado “romance de formação” (na expressão original a questão dos usuários é antes uma questão
ressignificar sua própria experiência de vida. Assim, simbólico para além dos limites geográficos e em alemão, Bildungsroman), cujo exemplo fundamental quantitativa; dependem excessivamente de
para as pessoas marcadas mais fortemente pelos é Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, do apenas poucas relações/coisas. Esta situação de
culturais já conhecidos, e como uma oportunidade reconhecido autor alemão Goethe (1749-1832), publicado
códigos hierárquicos e pelo modelo do nervoso, as de contato com novas formas de olhar o mundo, nos anos 1795-6. O romance de formação como gênero
dependência restrita/restritiva é que diminui a sua
estratégias terapêuticas mais adequadas deveriam é considerado hoje pela teoria literária como um cânone autonomia. Somos mais autônomos quanto mais
com novas e diferentes visões da vida humana, com
incluir alguma forma de reintegração em dispositivos ou modelo de valor universal, dada a sua significação dependentes de tantas mais coisas pudermos
novas pessoas, com diferentes tipos de trabalho e cultural e psicológica. Para um aprofundamento nesta
grupais e comunitários. Este princípio orienta a ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de
discussão, ver os trabalhos de Vasconcelos (2010) e de
abordagem da Terapia Comunitária (Barreto, 2005), Maas (2000). É interessante lembrar que também Fausto,
estabelecer novas normas, novos ordenamentos
hoje em acelerada difusão na atenção em saúde comunitária será discutida no texto de aprofundamento avaliada como a obra mais importante de Goethe, tem para a vida.” (Kinoshita, 1996: 57).
mental junto à rede de Estratégia de Saúde da sobre a inserção dos primeiros na rede de atenção a viagem como elemento fundamental de sua estrutura
Família (EFS), na atenção primária em saúde, no primária em saúde. narrativa, embora a obra não seja considerada um típico
romance de formação. No cinema contemporãneo, filmes Sua proposta concorda inteiramente com a perspectiva
Brasil 28. 29 Este tema das condições para os grupos funcionarem de viagem constituem um gênero específico, conhecido
que estamos defendendo aqui, mas apenas ressaltamos
como dispositivo de individuação é discutido em na língua inglesa como “on the road movies” (em
profundidade no texto de aprofundamento sobre modelos tradução livre, “filmes de estrada”), usualmente com que, de nosso ponto de vista, não deveríamos
28 A relação e diferenciação entre a presente abordagem de intervenção e práxis grupal neste manual. características similares aos romances de formação. dispensar as dimensões qualitativas das classes
de grupos de ajuda e suporte mútuos e a terapia

72 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 73
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

sociais e da cultura que atravessam este campo, e que a) Recuperação (recovery): o conceito da língua (DAVIDSON et al., 2005-6). A avaliação do impacto venho propondo que o conceito inglês de self-
matizam e complexificam a dinâmica do processo de inglesa de recovery (DAVISON, 2003) não é de do tempo nos sintomas, funcionamento social e help (autoajuda) seja reapropriado criticamente
autonomização nos vários sujeitos e grupos sociais. fácil tradução em outras línguas. Em português, qualidade de vida nestes casos demonstrou que, em e desdobrado em cuidado de si, ajuda mútua e
estamos propondo uma primeira tentativa de vez da esperada trajetória no sentido de cenários suporte mútuos, categorias estas expostas a seguir.
aproximação através de noção de recuperação, mas piores indicados pelos prognósticos da psiquiatria No nível individual, temos então o que chamo de
Para concluir esta seção, podemos dizer então ainda a achamos limitada, mas não encontramos convencional, mais da metade das coortes cuidado de si, me reapropriando parcialmente
que a busca de compreensão dos processos e de outra alternativa. Toda tradução para outras investigadas, independente de ainda estarem em de uma ideia chave de Foucault 33, significando
serviços de apoio social e de saúde mental mais línguas exige discutir com cuidado qual a palavra tratamento, mostraram uma melhora significativa
adequados às classes populares tanto no exterior disponível que melhor se aproxima ao conceito ou o que chamaram de recovery. Aqueles
quanto no Brasil tem dimensões sociais, políticas, ou à apropriação crítica que se queira fazer. A indivíduos que foram inseridos em programas de diferentes conceitos (cuidado de si, ajuda mútua e
de gênero, culturais e subjetivas muito próprias, já suporte mútuo), para se adequar à realidade brasileira
noção original em inglês tem origem no campo reabilitação psicossocial, integração comunitária
razoavelmente investigadas e sistematizadas por e aos pressupostos ético-políticos que defendemos. À
das doenças e deficiências físicas (WRIGHT, e autossuficiência demonstraram um perfil mais medida que vou me aprofundando no tema, mais me
estudos acadêmicos e pela avaliação de experiências 1983). Como assinala Anthony (1993) em relação à avançado de recuperação. Nos programas de convenço da necessidade de evitar a tradução direta
concretas. A síntese feita aqui nos permite agora doença física, ela não significa que a limitação ou reabilitação, entre os principais fatores que induzem do termo em inglês para o conceito em português de
avaliar de forma mais crítica, com parâmetros mais “autoajuda”. Uma das razões é se distinguir do sentido
deficiência física desapareceu, ou que os sintomas o processo de recuperação, estão a moradia,
claros e também assentados sobre a cultura e a amplo e acrítico associado à “literatura de autoajuda”,
foram removidos e o funcionamento da pessoa a capacitação e o trabalho supervisionado, as tão marcante na cultura individualista e alienada do
práxis dos movimentos sociais populares no Brasil, foi restaurado inteiramente. Significa então que a oportunidades educativas, as oportunidades reais de mercado editorial ocidental contemporâneo. Além
a possível contribuição do movimento de usuários e pessoa, a despeito das limitações, e dependendo socialização, incluindo amizades e inserção em disso, a representação historicamente sedimentada de
familiares de outros países, relativas às estratégias de autoajuda enfatiza a capacidade do próprio indivíduo
do suporte e das mudanças sociais, ambientais e grupos e movimentos de usuários. O movimento
empoderamento, bem como algumas das abordagens de promover o seu processo de recuperação, sem ajuda
culturais necessárias, pode retomar uma vida usual de usuários e familiares nos Estados Unidos, por externa, tendo implícitas visões liberais fortemente
profissionais de saúde mental comprometidas com relativamente ativa. No campo da saúde mental, ela sua vez, vem se apropriando desta abordagem, individualistas inspiradas na cultura da temperança
eles, como a seguir. tem sido apropriada pela perspectiva da psiquiatria propondo que ela constitui um processo pessoal e difundida a partir do século XIX nos países anglo-
saxônicas. Finalmente, o desdobramento do conceito
norte-americana autodenominada de psychosocial coletivo de mudanças que pode levar a uma vida
permite acentuar o componente de suporte mútuo,
rehabilitation31, e objeto há algumas décadas com satisfação, desejo e participação social, mesmo indicado a seguir, vetor muito frágil na tradição principal
5. Alguns conceitos-chave para se entender
de investigações epidemiológicas, de políticas com as limitações associadas ao transtorno. Para de origem norte-americana que se espalhou em todo o
as práticas de empoderamento de usuários mundo, a dos Alcoólicos Anônimos. Para aqueles que
e programas de saúde mental e de avaliação de a consecução destes objetivos, consideram como
individuais, de grupos, associações e quiserem se aprofundar no assunto, sugiro retomar o
serviços. O conjunto de evidências mais sólido, a elementos fundamentais a existência de um sistema
movimentos sociais no campo da saúde mental meu livro O poder que brota... e um outro interessante
nosso ver, parte de estudos longitudinais de longa de saúde mental orientado efetivamente para a trabalho publicado no Brasil, por Rüdiger (1996).
duração (20 a 30 anos) de pessoas diagnosticadas recuperação e o empoderamento, e a existência
como esquizofrênicas, investigando as perspectivas de um movimento de usuários e familiares que 33 O conceito de cuidado de si foi introduzido por Foucault
Como indicamos acima, os usuários, grupos e
em seus últimos livros, publicados antes de sua morte
associações de usuários e familiares do campo da de recuperação e reinserção social, realizados nos desenvolvam os dispositivos de cuidado de si, ajuda
prematura, em 1983 (História da sexualidade, em 3 vols).
saúde mental nos vários países vêm desenvolvendo Estados Unidos e em alguns outros países, por e suporte mútuos, defesa de direitos e militância, Mais recentemente, o assunto constituiu tema central
práticas fundamentais no processo de enfrentamento autores como Anthony, Harding, Strauss, Breier, como descrito a seguir. nas publicações feitas a partir da gravação de suas aulas
Ashikaga, Brooks, Ciompi, Davidson e outros magistrais no Collège de France nos seus últimos anos de
pessoal, familiar e coletivo dos desafios colocados
vida (ver Foucault, 2008; e para o conceito do cuidado de
pelo sofrimento psíquico. A relação dos conceitos si, ver Foucault, 2011). Nesta temática, Foucault retoma
b) O cuidado de si e demais estratégias de
para descrição destas práticas proposta abaixo uma certa noção de sujeito ativo que havia sido descartada
31 O principal centro de investigação, sistematização e enfrentamento dos desafios cotidianos32: no conjunto anterior de sua obra, de teor claramente anti-
consiste de uma tentativa minha de adaptação e
divulgação desta perspectiva nos Estados Unidos, com humanista. Neste trabalho, o uso do conceito retoma essa
diversificação dos termos originais em inglês, para
várias obras já publicadas, é sem dúvida alguma o Center significação mais ampla de Foucault, mas se apropria dele
adequá-los às condições e estratégias no campo da for Psychiatric Rehabilitation, da Boston University, cujo 32 Como indicado no texto, o conceito amplo e de uma forma muito prática, a partir da experiência concreta
saúde mental em nosso país. Vejamos: website é www.bu.edu/cpr impreciso de self-help da língua inglesa foi reapropriado de recuperação dos núcleos internacionais mais ativos e
criticamente aqui de forma a desdobrá-lo em três avançados do movimento de usuários em saúde mental.

74 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 75
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

aqui as estratégias para mobilizar a iniciativa e a dando um novo sentido a elas, em um conjunto mais estratégias de lidar com os problemas comuns, - páginas especializadas no assunto, que muitas
vontade individual de cada pessoa, para que atue compreensível de eventos, sentimentos e sensações tais como aqueles descritos acima. São dispositivos vezes estimulam os grupos de discussão; os chats,
para responder os desafios pessoais concretos integrados em um todo, recuperando a auto-estima importantíssimos em si mesmos, mas a experiência (conversas entre usuários por texto ou até mesmo
colocados pelo transtorno mental no dia a dia e e sua inserção ativa na sociedade. Outra forma internacional do movimento de usuários em saúde por voz e imagem, para os que têm câmeras e
para reinventar uma nova vida que vá além destes importante de cuidado de si é buscar cultivar amizades mental tem mostrado que, apesar de seus numerosos microfone); blogs (espécie de página pessoal onde
desafios, no sentido de recuperar uma vida ativa, profundas, aqueles amigos “irmãos”, com os quais pontos positivos, apresentam ainda algumas escrevemos como em um diário, e que fica aberta
participativa e prazeirosa do ponto de vista pessoal podemos conversar e desabafar tudo, sem restrições, limitações e características polêmicas. Este tema é para os comentários e até mesmo contato via correio
e social. Acima, listamos uma série de desafios com regularidade ou nas horas mais difíceis, discutido de forma detalhada no meu livro O poder eletrônico dos que têm interesse no assunto);
que os usuários têm que enfrentar, e têm de fazê- trocando nossas experiências, emoções, dúvidas e que brota... e na tese de doutorado de Tatiana Rangel
- correio eletrônico, quando já conhecemos o
lo para além do suporte provido pelos serviços e sugestões. Com a Internet, como descrito no próximo Reis (2007), mas uma das principais limitações, pelo
endereço da pessoa com quem queremos trocar
profissionais de saúde mental. Neste trabalho, item, podemos inclusive manter tais amizades à menos dentro da estrutura original do AA, diz respeito
mensagens mais pessoalizadas, e que têm um
de um ponto de vista mais prático, o cuidado de distância. É claro que este processo pode e deve a uma prática de ajuda mútua relativamente isolada,
caráter confidencial;
si significa inicialmente desenvolver, individual e contar também o suporte de práticas profissionais, fechada em si mesma, sem estimular de forma mais
coletivamente, a capacidade de identificar: dos serviços de saúde mental 34, dos dispositivos sistemática os vários outros tipos de iniciativas35, - redes sociais (Orkut, Facebook etc.).
coletivos do movimento de usuários e da construção principalmente de suporte mútuo e militância, como
- as atividades cotidianas que fazem cada um se
de narrativas, como descritos a seguir. Contudo, ele descrito a seguir. Outro caminho para a ajuda mútua
sentir melhor, que geram bem estar, e que portanto d) Suporte mútuo: na maioria das vezes, a partir
só pode ser iniciado e desenvolvido efetivamente pela é constituído pelas redes informais mais amplas de
devem ser cultivadas; de dispositivos de ajuda mútua, podemos também
mobilização e investimento pessoal intenso por parte amigos e companheiros, com os quais vamos trocando
- as nossas qualidades pessoais que se devem ser desenvolver atividades e iniciativas de cuidado e
do próprio usuário. regularmente as nossas experiências, vitórias,
valorizadas, e como podemos ajudar para que sejam suporte concreto na vida cotidiana, compreendendo
desafios e dificuldades da vida. Uma outra forma
reconhecidas pelas pessoas mais próximas de nós; desde, por exemplo, passeios e atividades de lazer
importante de ajuda mútua surgiu mais recentemente
c) Ajuda mútua: este tipo de prática ficou conhecida e cultura nos fins de semana; cuidado informal do
- os eventos e processos desagradáveis através da internet36, para os que têm computadores
historicamente principalmente por meio dos grupos outro que se encontra em maior dificuldade; ajuda
(“disparadores”), que geram estresse, ansiedade e pessoais e acesso a ela, e que permite ajuda mútua
do tipo Alcoólicos Anônimos (AA), Neuróticos nas tarefas diárias na casa e fora dela; suporte
angústia, e as estratégias e ações para lidar com entre pessoas em todo o mundo, por meio de:
Anônimos e organizações similares. Constituem a familiares que precisam de uma “folga” para
eles;
grupos de troca de vivências e experiências, descansar ou viajar, assumindo-se o cuidado do
- os sinais de alerta e os sintomas de que a nossa de ajuda emocional e discussão das diferentes usuário; até o desenvolvimento de projetos comuns
saúde mental não está bem, ou de que uma eventual 35 Os grupos de AA desenvolvem algumas atividades de mais complexos. Estes podem atuar em várias áreas:
crise pode estar próxima, e quais as iniciativas que suporte mútuo como os grupos Al Anon, para apoio dos cultura, artes, dispositivos residenciais, projeto
familiares dos alcoolistas, mas não há outras iniciativas
devem tomar nestas ocasiões. 34 Não compartilho de uma visão a meu ver unilateral para os próprios alcoolistas a não ser a difusão das
de trabalho, cooperativas, cuidado domiciliar,
defendida por alguns grupos autonomistas mais radicais reuniões com uma dinâmica mais padronizada de ajuda acompanhamento, telefone de serviço de suporte
Todos estes pontos são discutidos em detalhe no
do movimento de usuários em países anglo-saxônicos, de mútua. Como dito acima, uma análise mais detalhada do pessoal, clubes sociais, e elaboração de cartilhas
texto “Plano pessoal de ação para o bem estar e que se deva estimular apenas o uso de serviços e projetos AA é desenvolvida no livro O poder que brota..., de onde informativas e educativas para temas relevantes
a recuperação”, disponível na cartilha para os organizados ou dirigidos por usuários. Além disso, o fato se originou este texto.
(tais como estratégias de enfrentamento no dia a dia,
participantes dos grupos. de termos identificado acima uma série de limitações
estruturais dos serviços e dos profissionais de saúde, 36 É possível indicar endereços sugestivos na internet efeitos colaterais de remédios, defesas de direitos,
Do ponto de vista subjetivo, o cuidado de si também em questões que devem ser respondidas pelos próprios para vários dos dispositivos listados a seguir no texto, serviços, experiências bem-sucedidas, como
implica que o usuário em processo de recuperação usuários, não significa negar que o suporte de serviços e mas estes variam muito com o tempo e a região relevante organizar grupos de ajuda mútua e suporte mútuo
possa gradativamente ir se reapropriando de suas de profissionais de saúde mental é imprescindível para no país e no exterior. Assim, penso que a melhor forma
o processo de recuperação no campo da saúde mental. de contatar estes dispositivos é fazer pesquisa, através
etc.). Também neste campo as redes de amizade e
experiências catastróficas de vida, principalmente os dispositivos da internet são fundamentais.
Novamente, aos leitores que quiserem uma visão mais de bons instrumentos de busca que temos, tais como o
aquelas associadas às fases mais agudas do sistemática do debate, sugiro a leitura de meu livro “O Google. Para isso, sugiro se usar as categorias acima
transtorno, aceitando-as como parte de sua história e poder que brota...”. (“autoajuda”, “ajuda mútua”, e “suporte mútuo”)
acrescidos de “saúde mental”.

76 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 77
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

e) Defesa de direitos (advocacy): pode ser iniciativas de defesa de direitos devem estar estimular projetos de lazer, arte, cultura, esporte concreta dos programas, a partir de capacitação
de dois tipos principais. A informal pode ser integradas de forma orgânica às duas estratégias de e sociabilidade que estimulem a convivência das permanente. Como exemplos deste tipo de iniciativa
desenvolvida pelo próprio usuário (autodefesa), que empoderamento indicadas a seguir. Os dispositivos pessoas com transtorno com os demais habitantes no Brasil, temos a Rádio Tantan, de Santos (SP); a TV
é capacitado pelos grupos de suporte mútuo para tal, de defesa de direitos devem utilizar largamente os da cidade e de suas comunidades locais. Além Pinel, no Rio de Janeiro; a Rede Parabolinoica, em
ou pelos companheiros usuários e familiares, como, dispositivos da internet, dada a sua agilidade para disso, é necessário fomentar a produção de obras Belo Horizonte (MG) o Estúdio Ondas Mentais, de
por exemplo, para ajudar o outro a conseguir um troca de informações, para comunicação de eventos, culturais e artísticas pelas pessoas portadoras de rádio, em Campinas, etc. A internet também tem tido
benefício ou a resolver problemas na comunidade. para a circulação de denúncias, para montagem de transtorno, bem como a sua exibição e divulgação na um papel importante neste campo, principalmente
A defesa de direitos pode ser ainda formal, através abaixo-assinados e para a mobilização concreta das sociedade, não só como estratégia de recuperação pela facilidade de divulgação de denúncias, de
da criação de serviços, algumas vezes liderados pessoas. destas pessoas, mas também como forma de circulação de ideias e de troca e experiências neste
por usuários, nos quais profissionais de saúde sua valorização social, quebrando a percepção campo.
mental e advogados são colocados à disposição dos convencional de sua invalidação39. Estes dois
usuários e familiares para defender seus direitos f) Transformação do estigma e dependência na últimos aspectos são componentes essenciais dos
civis, políticos e sociais. Além disso, esta prática relação com a loucura e o louco na sociedade: eventos públicos que são realizados no Brasil pelo g) Participação no sistema de saúde e saúde
no âmbito micropolítico deve ser expandida para a desenvolvimento de iniciativas individuais e movimento antimanicomial, nos dias em torno do mental e militância social mais ampla: de
criação de cartas de direitos, normas de serviços coletivas, cotidianas ou mais permanentes, de 18 de maio, data anual eleita pelo movimento para forma integrada aos demais tipos de organização
e de legislações municipais, estaduais e federais, caráter social, cultural e artística para mudar as divulgar a luta por uma sociedade sem manicômios. descritos anteriormente, os grupos de usuários e
que busquem consagrar os direitos dos usuários e atitudes discriminatórias em relação à loucura nas Também tem sido fundamental a produção de familiares participam das instâncias e de conselhos
familiares em todas as esferas do sistema de saúde relações cotidianas, na comunidade local, na mídia e programas para a mídia que divulguem as ações de saúde, saúde mental e outras políticas sociais,
mental e da sociedade37. Um bom exemplo deste tipo na sociedade mais ampla. Um exemplo simples mas dos usuários e familiares, os novos serviços e bem como podem desenvolver projetos de pesquisa,
de iniciativa está na Carta dos Direitos dos Portadores importante está na própria linguagem que usamos abordagens, e particularmente que discutam as planejamento e avaliação de serviços, incluindo a
de Transtorno Mental da ONU de 1991. Esta carta cotidianamente para nos referir aos fenômenos diferentes formas de estigma e discriminação na capacitação de profissionais. Em outros termos,
inspirou a Carta de Direitos e Deveres dos Usuários e pessoas: expressões tais como “paciente” e sociedade. É importante que nestes projetos sejam valoriza-se no sistema de saúde, saúde mental e
em Saúde Mental, lançada em sua primeira versão “doença mental” acentuam a passividade e a os próprios usuários e familiares que realizem toda assistência social o ponto de vista, o testemunho e
por usuários e familiares brasileiros presentes no III segregação, e podem ser substituídos por “usuário” a concepção, o uso dos aparelhos e a produção a voz dos que viveram ou vivem concretamente, no
Encontro de Associações de Usuários e Familiares e “sofrimento psíquico”, “problema mental”, plano pessoal, os problemas mentais. Além disso,
em Saúde Mental, em Santos (SP), em 1993, que “experiências subjetivas radicais”, ou, quando se os grupos também desenvolvem a participação
virou um documento de referência para os usuários exige uma linguagem mais técnica, por “transtorno cidadã na comunidade vizinha do serviço ou do
mental”. Outro exemplo simples está na tradição 39 Neste âmbito, temos projetos muito bem-sucedidos local de moradia dos usuários e familiares, através
ligados ao Movimento da Luta Antimanicomial. Em realizados de forma intersetorial com o Ministério da
paralelo a este processo foi lançado no Congresso do movimento de usuários em vários países anglo- Cultura, chamados de Pontos de Cultura, e inseridos em das associações de moradores, outros movimentos
Brasileiro em 1989 o projeto de lei Paulo Delgado, saxônicos e europeus, mas que também já está um programa mais amplo denominado de Cultura Viva. sociais, ONGs etc. E neste âmbito, a internet
sedimentado no Brasil, de reivindicar que qualquer Os pontos são ações e projetos de produção de arte e também tem tido um papel fundamental. Todas
que, doze anos mais tarde, em abril de 2001, após
evento no campo da saúde mental e principalmente cultura, particularmente de origem popular, apoiados essas formas de inserção criam uma rede de vínculos
inúmeros debates e reformulações, foi promulgada financeira e institucionalmente pelo Ministério da
como a Lei 10.216, que estabelece as linhas básicas acerca da reforma psiquiátrica (palestra, Cultura, que tenham impacto nas suas comunidades. fundamental para os momentos de mobilização
do processo de reforma psiquiátrica brasileira, e conferência, seminário, curso, conselho de gestão Têm formatos muito flexíveis, sem modelo único, nem de política, para uma participação em campanhas
etc.) tenha a participação de representantes de instalações físicas, nem de programação ou atividade. e reivindicações por mudanças mais globais nas
que inclui direitos básicos dos usuários38. Estas
usuários e familiares. Ainda neste campo da Em abril de 2010, havia 2,5  mil ações em 1.122 cidades, políticas e legislação em saúde, saúde mental e
ou seja, um quinto do total de municípios brasileiros. No
transformação da cultura dominante, é fundamental campo da saúde mental, há inúmeros projetos e ações outras políticas sociais, bem como nos modelos e no
37 Para uma discussão mais pormenorizada dos direitos em andamento, com vários tipos de produção artística sistema socioeconômico. No Brasil, as associações
dos usuários nas diversas instâncias mencionadas, ver um e cultural, incluindo até mesmo escolas de samba. Para de usuários e familiares já realizaram seis encontros
outro trabalho meu já publicado (VASCONCELOS,1992). uma visão mais detalhada deste programa, ver o site nacionais: em 1991, em São Paulo, promovido pela
38 Os textos da carta da ONU e da nova lei foram incluídos oficial do Ministério da Cultura (www.cultura.gov.br).
como anexos no meu livro O poder que brota... Prefeitura e pelo Ministério da Saúde; em 1993, em

78 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 79
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

Santos, como já mencionamos anteriormente, no que tinha sido perdido”; que, além de seu próprio conteúdo, pode alcançar obtidas por profissionais em gravações do discurso
qual foi redigida a Carta de Direitos dos Usuários e níveis elevados de elaboração estética e linguística, de seus clientes, como parte de estudos de caso
- uma forma de aceitar o transtorno mais
Familiares em Saúde Mental; em 1995, em Salvador, podendo ser inclusive publicado em papel e na clínico, como desenvolvido por um grupo de
integralmente, como uma experiência radical e difícil,
organizado pelo Ministério da Saúde; em 2003, no internet, o que também implica valorização de seus pesquisadores ligados ao Instituto de Psiquiatria da
mas que constitui parte integral da vida humana;
Rio de Janeiro; em 2007, em Vitória; em 2009, em autores e maior difusão de suas ideias. UFRJ (RIBEIRO et al., 2001) ou por pesquisadores
São Bernardo (SP), e em Angra dos Reis, em 2011. - uma estratégia que possibilita outros usuários individuais (MIRANDA, 1998), com publicação de
Além disso, os usuários e familiares, avulsos ou a terem contato entre si e aprender individual e trechos considerados mais significativos;
integrantes de associações e grupos já organizados, coletivamente, a partir da vivência daqueles que têm No Brasil, o uso direto, as referências e estudos
mais experiência no processo de recuperação, com - no campo da saúde e saúde mental coletiva,
também vem constituindo gradativamente a maioria sobre narrativas pessoais vêm se desenvolvendo
um grande potencial de uso nos grupos e dispositivos narrativas são muito frequentemente obtidas a
dos participantes nos eventos do Movimento da Luta em várias direções, a saber:
de cuidado de si, de ajuda e suporte mútuos; partir de gravações de depoimentos de moradores
Antimanicomial, fundado em 1987, e que já conta
de comunidades, usuários de serviços e seus
com uma história de vários encontros de âmbito - uma afirmação da experiência subjetiva humana
- no campo da história da literatura, já há uma familiares, como material de estudos etnográficos
nacional e de intensa participação nos eventos e e de seu papel como sujeito, em detrimento da
razoável valorização das narrativas orais e de sua e antropológicos. Aqui, destacam-se as pesquisas
campanhas por conquistas e avanços na política de autoridade e das narrativas feitas de fora e de
transposição para a publicação impressa no país, sobre representações sociais de saúde e doença, e
saúde mental no Brasil. cima pelos profissionais e especialistas, e contra
a partir do início do século XIX. Para conhecer no Brasil particularmente acerca do fenômeno da
a impessoalidade e padronização de sistemas de doença de nervos, tais como aqueles desenvolvidos
esta história, sugiro conhecer a excelente obra de
assistência centrados nas prioridades de eficiência, por grupos de pesquisadores do Museu Nacional da
h) As narrativas pessoais de vida com o Almeida e Queiroz (2004);
economia ou até mesmo de segregação e negligência, UFRJ (DUARTE e LEAL, 1998), do Núcleo de Estudos
transtorno mental: A experiência do movimento - na área da educação, tem havido em alguns centros
particularmente no atual contexto de crise das em Ciências Sociais e Saúde da Universidade
de usuários e familiares no campo da saúde acadêmicos internacionais uma forte valorização
políticas sociais; Federal da Bahia (RABELO et al., 1999) e de
mental, principalmente nos países anglo-saxônicos da história de vida, como dispositivo de educação
e europeus, vem demonstrando a importância de - uma estratégia de mostrar como as representações outros pesquisadores de Santa Catarina e Paraná
de adultos. A experiência de Pierre Dominicé
incentivar que usuários de serviços e seus familiares, sociais, culturais e institucionais modelam a (SILVEIRA, 2000);
na Universidade de Genebra, com repercussões
e particularmente aqueles que se encontram em um experiência de estar doente, denunciando e - ainda na área da saúde mental, existem
similares nos Estados Unidos e em Portugal, foi
estágio mais avançado de recuperação, escrevam ou iluminando os conflitos e as estruturas de poder entre pequenas narrativas escritas por usuários, que
sistematizada por Marie-Christine Josso, ex-aluna
gravem depoimentos em primeira pessoa, contando usuários e as culturas institucionais de assistência, são divulgadas em publicações do tipo boletim
de Dominicé, e traduzida para o português, em uma
a sua história pessoal de crise, das dificuldades desafiando as ideologias dominantes de tratamento/ informativo ou literário, normalmente informais,
obra que recomendo, intitulada Experiências de vida
durante o processo de tratamento e das estratégias assistência e os padrões aceitos de comportamento produzidas por serviços de saúde mental ou pelo
e formação (JOSSO, 2004);
de recuperação. A literatura internacional neste campo, essencialmente marcados pela movimento de usuários, ou ainda em publicações
polarização entre passividade (por parte do chamados - no campo da comunicação social, começam a
(KLEINMAN, 1988; SAKALIS, 2000) vem indicando e páginas na internet de ONGs, engajados na luta
“pacientes”) e atividade (pelos “profissionais”), bem aparecer os primeiros estudos sobre os blogs, como
a importância das narrativas pessoais de doenças pela reforma psiquiátrica ou no movimento de luta
como apontando direções para mudanças em todo o um novo padrão de comunicação, de gênero literário,
no campo da saúde mental, indicando os seguintes antimanicomial;
campo; e de escrita íntima – tais como os antigos diários
objetivos:
pessoais, só que agora digitais e compartilhados - finalmente, algumas histórias de vida e narrativas
- uma voz autêntica e instrumento de mudança social, mais longas de usuários são publicadas como
via internet. O interessante estudo dos blogs
cultural e institucional na sociedade civil difusa, livros. Um importante exemplo recente deste tipo
- uma forma de se apropriar das experiências recentemente publicado por Denise Schittine (2004)
principalmente tendo em vista a defesa e conquista é o livro produzido por Austregésilo Carrano (1990),
catastróficas de vida, principalmente associadas traça esta história desde os diários pessoais e suas
de direitos e a luta contra o estigma associado aos intitulado Canto dos Malditos, que foi transformado
às fases mais agudas do transtorno, e dar um novo características hoje. Em minha opinião, do ponto de
transtornos mentais; no filme Bicho de Sete Cabeças, e que teve um forte
sentido a elas em um conjunto mais compreensível vista das estratégias de empoderamento, os blogs
de eventos, sentimentos e sensações integrados em têm um enorme potencial ainda por ser explorado; impacto no país e foi várias vezes premiado, tendo
um todo, resultando em “dar de volta a si mesmo algo um papel político considerável na luta pela reforma
- uma forma de texto com enorme potencial literário, - em psicologia clínica, narrativas costumam ser

80 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 81
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

uma boa parte poderá conseguirá apenas participar reconhecidos de forma praticamente consensual
Quadro 1: A dinâmica mais geral do processo de empoderamento dos grupos de ajuda mútua, pois estes são os mais entre as lideranças do movimento antimanicomial
simples e acessíveis para todos, independente das no país é a cristalização da rotina e do papel
cuidado de si ajuda mútua suporte mútuo defesa dos direitos dificuldades emocionais e cognitivas dos usuários de uma relativa passividade dos usuários
e familiares. Até mesmo um usuário em silêncio, e familiares nos novos serviços. Da mesma
emsimesmado, é capaz de estar presente em forma, também os profissionais, as equipes e seus
luta contra a discriminação e estigma participação, controle social e militância
um grupo e receber contribuições dos relatos e dispositivos de ação tendem a se institucionalizar e
experiências dos demais. Contudo, se houver um entrarem na rotina cotidiana, na direção da repetição
psiquiátrica e antimanicomial. movimento de usuários, como divulgador da estímulo adequado, muitos usuários e familiares e da rigidez, o que acaba estimulando a reprodução
perspectiva de recuperação e de empoderamento, poderão partir da ajuda mútua para desenvolver um da mentalidade manicomial até mesmo dentro dos
Creio ser importante comentar um pouco
e como estratégia da luta antimanicomial e pela cuidado de si mais variado e com mais autonomia, novos serviços. Esta tendência à institucionalização
mais sobre as direções listadas acima mais
reforma psiquiátrica40. bem como para o suporte mútuo, ou para as demais é enfaticamente reconhecida como um componente
diretamente ligadas ao campo da saúde mental.
Nos tópicos (e) e (f), as narrativas constituem Antes de concluir esta seção, é interessante estratégias. Por exemplo, se temos uma rede destes intrínseco aos processos grupais, organizacionais
um material de pesquisa que é recortado pelos retomar a maior parte destes conceitos que grupos, em qualquer iniciativa de luta contra o e institucionais, pelas abordagens sartriana,
pesquisadores, de acordo com a lógica analítica expomos acima, para uma visão mais integral da estigma ou campanha por direitos, os membros basagliana e pelas várias vertentes da análise
proposta, sendo apresentado ao público apenas dinâmica de empoderamento e de organização dos grupos devem ser convidados a participar. institucional, que sustentam nossas abordagens
um pequeno conjunto de trechos dos originais, dos usuários e familiares. Podemos representá- Consideramos, portanto, a ajuda mútua como a principais na reforma psiquiátrica brasileira.
para efeito ilustrativo da análise realizada. Têm la pelo Quadro nº 1. Nele, tentamos representar a base deste sistema de empoderamento, como o Entretanto, estas abordagens chamam também
uma importância fundamental como revelador idéia de que os diversos dispositivos e estratégias dispositivo mais acessível para todos. Por outra e enfaticamente a atenção para se estimular os
das estruturas implícitas, das representações de empoderamento descritos acima estão todos ótica, a partir dessa dinâmica, podemos também processos instituintes nos grupos e instituições, e
coletivas e dos processos psíquicos associados interligados, de forma que os movimentos sociais afirmar que os grupos de ajuda mútua, dependendo é isso que sustenta um dos aspectos centrais da ideia
à saúde e doença mental em nossa sociedade e e os programas públicos de saúde mental devem do conjunto de estratégias em que estao inseridos, de desinstitucionalização, como um princípio tão
em nossas particularidades culturais, objetivando promover todo o conjunto, e que usuários e não constituem um dispositivo fechado em si caro para nossa estratégia como movimento social e
a produção de conhecimento e uma formação familiares sejam estimulados a transitar entre todos mesmo, individualizante ou despolitizante, pois como política pública. Nesta direção, as estratégias
profissional mais sensível. Nos blogs e nas duas eles. Mesmo se isso ocorrer, podemos esperar que têm o potencial para constituir uma base ampla de de empoderamento significam estimular os atores
últimas modalidades, entretanto, as narrativas mobilização para outras formas de participação e sociais que mais têm este potencial instituinte,
são apresentadas na primeira pessoa, em sua militância social e politica. pela posição de interessados mais diretamente na
totalidade, mostrando toda a trajetória e o esforço qualidade dos serviços. Além disso, os grupos têm
40 Para este fim, é interessante relembrar que o trabalho
pessoal de compreender, dar sentido e totalizar de intercâmbio internacional com Richard Weingarten um papel fundamental de promover o acolhimento
as experiências fragmentada da vida, revelando já gerou uma pequena publicação, em associação com o e o ativismo dos usuários e familiares fora dos
“por dentro” a visão existencial e política do Instituto Franco Basaglia (IFB), do Rio de Janeiro, intitulada 6. As diversas estratégias de empoderamento, serviços, na própria comunidade, na medida em
O Movimento de Usuários em Saúde Mental nos Estados sua importância para a reforma psiquiátrica e
processo de saúde-sofrimento, dos serviços e que são realizados em quaisquer lugares com
Unidos: história, processos de ajuda e suporte mútuos e
da atenção à saúde mental vivida, pontos que militância, lançada em 2001, na qual várias das questões para a participação/controle social no SUS alguma função pública, como igrejas, associações
reafirmam os tópicos levantados acima sobre desenvolvidas neste anexo são mais bem explicitadas e de moradores, sindicatos, centros comunitários,
a importância destas narrativas pessoais de exemplificadas. A publicação está disponível para compra
escolas etc., o que inclusive já estimula as iniciativas
(por apenas R$ 3,00) no IFB, através dos seguintes contatos: Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção
vida com transtorno mental como elemento- de suporte mútuo dentro do grupo ou de forma
Endereço: Av. Wenceslau Brás 65, 3º andar. CEP 22.290- para um aspecto importante destas estratégias de
chave das estratégias de recuperação e integrada com atividades semelhantes promovidas
140 - Rio de Janeiro. empoderamento para a rede de atenção psicossocial
empoderamento. Além disso, considero que no por outros grupos comunitários.
Fone (telefax): 2295-1857 - E-mail: ifb@ifb.org.br - Site: em saúde mental e para a perspectiva mais geral
Brasil elas têm também um potencial enorme e
www.ifb.org.br da desinstitucionalização psiquiátrica e da luta Em segundo lugar, a experiência em vários países e
ainda pouco explorado, como coadjuvante do
antimanicomial no Brasil. Hoje, um dos riscos os grupos já existentes no Brasil vêm demonstrando

82 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 83
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

que a participação nestes grupos constitui fator e/ou sob inteiro controle de profissionais ou de e dificuldade. A maioria dos participantes e usuários que ficou historicamente nos ombros das mulheres,
fundamental para uma reabilitação psicossocial empresas prestadoras de serviços ou da indústria pode se inserir nos níveis mais elementares, como na invisibilidade dos lares e da vida privada. As novas
mais consistente e eficaz. Como indicado acima, farmacêutica, que buscam difundir seus interesses os grupos de ajuda e suporte mútuos, mas alguns modalidades socializadas de cuidar usam instituições
os estudos epidemiológicos longitudinais de através da fala e da ação dos usuários. Além usuários e familiares com características pessoais abertas, no território, mas também, como que já se
longo prazo realizados principalmente nos Estados disso, muitas vezes a representação nos conselhos e culturais compatíveis e potencial de liderança mostra hoje na atenção básica à saúde e nas políticas
Unidos vêm demonstrando a importância dessas é aparelhada “por cima” por partidos políticos, poderão ser chamados a criar ou participar de oriundas dos estatutos da criança/adolescente e
estruturas de suporte nos programas de reabilitação transformando estes conselheiros em correia de projetos nos níveis mais avançados. Da mesma do idoso, batem nas portas das casas, entram na
psiquiátrica de usuários como transtornos mentais transmissão de decisões tomadas nas cúpulas forma, estes, idealmente, quando se alçam nestas privacidade de cada um, examinam a intimidade de
severos (DAVIDSON et al., 2005a). As revisões das partidárias ou em redes de influência clientelista. esferas, não devem perder de vista seus vínculos suas relações e os seus corpos, para avaliar, cuidar
evidências existentes, mesmo que baseadas ainda Algumas iniciativas vêm sendo tomadas nos últimos com os grupos de base, e nos casos de reincidência e defender os direitos de todos os que têm alguma
em pesquisas sem o tradicional desenho de grupo anos no SUS para prover capacitação política de uma crise psíquica, que constitui sempre uma fragilidade ou limitação em sua autonomia, bem
controle, têm mostrado que três formas de ajuda e para estes conselheiros, bem como de valorizar possibilidade no campo da saúde mental, já terão seu como de sua família. Entretanto, na prática, esta
suporte mútuos são fundamentais para o processo a militância política de lideranças individuais de acolhimento garantido nestes grupos. Dessa forma, “clientela” acaba sendo praticamente todos nós,
do que chamam de recuperação: os grupos informais usuários e familiares. Iniciativas como estas são o ideal em um movimento social mais amplo deste por que, em regra, na maioria das famílias, temos no
de ajuda e suporte mútuos, os serviços dirigidos fundamentais, mas a meu ver ainda limitadas, tipo seria valorizar todos os níveis de organização e mínimo crianças e/ou idosos. Assim, na busca ativa
por usuários e o emprego formal de usuários nos pois ainda não intervêm ou promovem propostas estimular o trânsito de seus associados entre eles. de cuidar e defender os direitos humanos e sociais
serviços de saúde mental (DAVIDSON et al., 2005b). para uma organização de base mais autêntica e
A proposta dos grupos de ajuda e suporte mútuos destes cidadãos “especiais”, nós, agentes estatais e
representativa dos próprios usuários e familiares.
É por isso que considero que a proposta dos grupos e seu gradual empoderamento, portanto, apresenta profissionais, também estamos construindo, no longo
de ajuda e suporte mútuos, como a base primordial A experiência internacional e brasileira no campo uma estratégia global de organização de base prazo, verdadeiras “máquinas de intervenção” nas
das estratégias de empoderamento, tem um papel específico da saúde mental indica também que a dos usuários e familiares em seus vários estágios esferas mais íntimas das pessoas, verdadeiros big
essencial e imprescindível em nossas lutas pela militância social e política direta, por si só, com seus de organização e consciência, com um profundo brothers de nós próprios e de todos os cidadãos, mas
reforma sanitária, pela reforma psiquiátrica e conflitos, relações de poder e formas de cooptação impacto para ampliar a luta pela reforma sanitária, particularmente dos extratos mais empobrecidos41.
particularmente na luta antimanicomial. por cima, sem os demais níveis de acolhimento e Contudo, longe de qualquer ilusão romântica ou de
reforma psiquiátrica e na luta antimanicomial
participação, não só gera um perigoso descolamento análises apressadas inspiradas em alguns autores
Em terceiro lugar, gostaria de considerar a no país. Contudo, ela também implica questões
das lideranças de suas bases, como também muitas pós-modernos, penso que todo o cuidado social e toda
importância dos grupos para o conjunto da reforma voltadas para a consideração de nossas utopias
vezes só é viável para pouquíssimos usuários e luta de defesa dos direitos de pessoas fragilizadas
sanitária e das demais políticas sociais. É preciso no futuro, e as considero também fundamentais
familiares, devido às dificuldades e limitações envolvem inevitavelmente este tipo de relações de
reconhecer que no Brasil e em nosso movimento nesta discussão. Queremos não só uma sociedade
intrínsecas colocadas pelo próprio transtorno, pela
sanitário, parte dessa estratégia participacionista sem manicômios, que reconheça a legitimidade das poder, e que essas máquinas de intervenção são
ausência de organizações de base que sustentem
e de empoderamento dos usuários e familiares diferenças existenciais e subjetivas, mas também necessárias e inevitáveis. Entretanto, que tipo de
essa militância, ou pelas próprias exigências da
do sistema de saúde já vem sendo estimulada e uma sociedade não pautada pela indiferença e contrapoder poderá contrabalançar o poder crescente
vida cotidiana e de cuidado no âmbito da família.
reconhecida, no âmbito do SUS e de outras políticas exclusão, e que portanto, assuma as bandeiras e cada vez mais penetrante da esfera pública e dos
Assim, uma noção muito restrita e politicista
sociais, na noção de controle social, através da da garantia da cidadania e do cuidado a todos profissionais na esfera privada, corporal e subjetiva
de participação, com foco exclusivo no controle
presença de representantes da sociedade civil nos os cidadãos, mas particularmente para todos das pessoas? Esta discussão talvez tenha sido
social e na militância, apresenta fortes limitações,
conselhos e conferências destas políticas a nível aqueles marcados por alguma forma de fragilidade, temporariamente ofuscada pela miséria, violência e
particularmente no campo da saúde mental.
distrital, municipal, estadual e nacional. Entretanto, dependência e sofrimento, que constitui o nosso desassistência que o neoliberalismo nos impõe hoje,
é praticamente consenso que o perfil desta A história já consolidada do movimento internacional objeto central no campo da saúde mental, como
participação ainda é muito incipiente. Por exemplo, de usuários e familiares do campo da saúde mental também de outras áreas da saúde e da assistência
muitas organizações que se dizem representantes nos aponta então na perspectiva de que é necessário 41 Um bom exemplo disso está nos programas contra a
social. Estas novas formas de cuidado não só devem
dos usuários e de familiares na verdade propor estratégias concretas de empoderamento em negligência, a violência e o abuso sexual de crianças e
excluir as instituições fechadas e totais, como adolescentes, que exigem um acompanhamento rigoroso
correspondem a associações criadas, financiadas níveis diferenciados de participação, complexidade também devem assumir e dividir o peso do cuidar da situação social, familiar, psicológica e corporal delas.

84 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 85
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

mas este dispositivo é sempre mobilizado a cada que temos criado e acompanhado nos últimos anos. Paulo: Hucitec, 1994. psicossociais, vol. II: reforma psiquiátrica e saúde
novo passo de construção de serviços de atenção Outros textos a seguir neste manual visam explorar mental na ótica da cultura e das lutas populares.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social.
social, de saúde e saúde mental no território, e com mais detalhes as diversas dimensões deste São Paulo: Hucitec, 2008.
Petrópolis: Vozes, 1998.
que nós necessariamente devemos universalizar processo, e é para a sua leitura que convidamos o
FOUCAULT, M. - Nascimento da biopolítica. São
e massificar tão logo as condições econômicas e leitor neste momento. COSTA, J. F. A consciência da doença enquanto
Paulo, Martins Fontes, 2008.
políticas o permitam. consciência do sintoma: a “doença dos nervos” e a
identidade psicológica. Rio de Janeiro: Instituto de FOUCAULT, M. - A hermenêutica do sujeito. São
Medicina Social, UERJ, mimeo, 1983. Paulo, Martins Fontes, 2011.
7. Considerações finais
Referências COSTA, J. F. Psicanálise e contexto cultural: Josso, M-C. Experiências de vida e formação. São
imaginário psicanalítico, grupos e psicoterapias. Paulo: Cortez, 2004.
Para concluir este texto, espero que a presente Rio: Campus, 1989. JUNG, C. G. (org.). O homem e seus símbolos. Rio de
ALMEIDA FILHO, N.; BASTOS, S. B. Estudo de caso-
sistematização de conceitos e estratégias possibilite DA MATTA, R. Carnavais, melandros e heróis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964/2008.
controle da associação entre migração e desordens
uma melhor compreensão da metodologia para grupos Janeiro: Guanabara Koogan, (1978) 1990.
depressivas em mulheres, in Jornal Brasileiro de KINOSHITA, R. T. - Contratualidade e reabilitação
de ajuda e suporte mútuos proposta neste manual,
Psiquiatria, 31 (1), jan/fev, 1982. DAVIDSON, L. Living outside mental illness: psicossocial, in A PITTA (org) Reabilitação
e que possa contribuir realmente para aqueles
Almeida, M. I.; Queiroz, S. Na captura da voz: as qualitative studies of recovery in schizophrenia. psicossocial no Brasil. São Paulo, Hucitec, 1996
que quiserem se juntar aos seus companheiros e
amigos, usuários ou familiares, para trocarem suas edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte, New York: New York University Press, 2003. Kleiman, A. The illness narrative: suffering,
experiências, para se darem apoio emocional e para, Autêntica/FALE-UFMG, 2004. healing and the human condition. New York: Basic
DAVIDSON, L. et al. (ed.). Recovery form severe mental
a partir daí, desenvolverem outros tipos de grupos, Anthony, W. Recovery from mental illness: the illnesses: research evidence and implications for Books, 1988.
projetos e lutas no campo da saúde mental. guiding vision of the mental health service system practice. Boston: Center for Psychiatric Rehabilitation, LACLAU, E.; CHANTAL, M. Hegemony and socialist
Este ensaio também procurou demonstrar que a in the 1990s, in Psychosocial Rehabilitation Journal Boston University, 2005a. strategy: towards a radical democratic politics.
apropriação que estamos fazendo das experiências, 16 (4), 11-24. Boston, April 1993 London: Verso, 1985.
DAVIDSON, L. et al. Peer support among individuals
abordagens e estratégias de empoderamento BROWN, G.W. et al. Social class and psychiatric with severe mental illness: a review of the evidence. In: MAAS, W. P. O cânone mínimo: o Bildungsroman na
disponíveis no plano internacional não implica disturbance among women in an urban population, DAVIDSON, L. et al. (ed.). Recovery form severe mental história da literatura. São Paulo: Ed. UNESP, 2000.
qualquer forma de transplante automático para o in Sociology, 9, p 225-54, 1975. illnesses: research evidence and implications for MARI, J. Psychiatric morbidity in three primary
nosso país. Como indicamos acima, os conceitos e practice. Boston: Center for Psychiatric Rehabilitation,
BROWN, G. W.; HARRIS, T. Social origins of medical care clinics in the city of São Paulo – issues
estratégias de empoderamento são polissêmicos,
depression – a study of psychiatric disorder in Boston University, 2005b. on the mental health of the urban poor. São Paulo:
prestando-se a apropriações tanto conservadoras
women. London: Tavistock, 1982. DUARTE, L. F. Da vida nervosa nas classes Faculdade Ciências Médicas de Santa Casa de São
como progressistas e emancipatórias. O caminho
Bueno, A. C. Canto dos malditos. Curitiba: Scientia trabalhadoras urbanas. Rio: Jorge Zahar, 1986. Paulo, mimeo, 1986.
realizado por nós passa por um processo complexo
de revisão histórica e teórico-conceitual, visando et Labor, 1990. DUARTE, L. F. Construção social da identidade e MARI, J.; ANDREOLI, S. B. Estudo multicêntrico de
adequá-los aos objetivos ético-políticos que CACIOPPO, J. T.; PATRICK, W. Solidão: a natureza hierarquia em um grupo de classe trabalhadora. V transtornos mentais – relatório preliminar, Setor
adotamos no processo de reforma psiquiátrica e humana e a necessidade de vínculo social. São Encontro da ANPOCS, Nova Friburgo, 1981. São Paulo. São Paulo: Escola Paulista de Medicina,
de luta antimanicomial no Brasil, bem como às Paulo: Record, 2010. mimeo, 1990.
indicações que temos a partir da literatura, da Duarte, L. F. D.; Leal, O. F. (org.). Doença,
CARDIM, M. S. et al. Epidemiologia descritiva do sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Melman, J. Doença mental e família. São Paulo:
cultura e das experiências de projetos populares
alcoolismo em grupos populacionais do Brasil, in Rio: FIOCRUZ, 1998. Iluminuras, 2001.
inovadores no campo da saúde mental, com
os quais tivemos contato. Além disso, nossa Cadernos de Saúde Pública 2 (2), Rio de Janeiro, 1986. MILES, A. Women and mental illness – the social
FONSECA, M. L. Sofrimento difuso nas classes
metodologia vem adquirindo consistência a partir CASTEL, R. Da indigência à exclusão, à desfiliação. populares no Brasil, uma revisão da perspectiva do context of female neurosis. Sussex: Wheatsheaf, 1988.
da experimentação concreta, nos projetos-piloto In: LANCETTI, A. (org.). Saúde e Loucura 4. São nervoso. In: VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens Miranda, C. S. L. Identidade: síntese das múltiplas

86 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 87
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

identificações. Taubaté (SP): Cabral Editora VASCONCELOS, E. M. The new alienists of the poor: o transtorno mental. São Paulo/Rio de Janeiro:
Universitária, 1998. developing community mental health services in Hucitec/EncantArte, 2006.
Brazil – 1978/1989. PhD Thesis, London School of Venâncio, A. T. A. Antropologia e saúde mental:
PEARLIN, L. I.; JOHNSON, J. S. Marital status, life
Economics, 1992b. uma revisão. In: VENÂNCIO, A. T. A.; CAVALCANTI,
strains and depression. In: American Sociological
Review, 42 (5), p 704 a 715, 1977. Vasconcelos, E. M. (org.). Transversões – saúde M. T. (orgs.). Saúde mental: campo, saberes e
mental, desinstitucionalização e abordagens discursos. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria da
Rabelo, M. C. M. et al. (org.). Experiência de doença
psicossociais (1) 1, Escola de Serviço Social da UFRJ, Coleção IPUB/CUCA, 2001.
e narrativa. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999.
UFRJ, Rio de Janeiro, 1999. Weingarten, R. Os usuários como atores
REIS, T. R. “Fazer em grupo o que não posso fazer
Vasconcelos, E. M. Saúde mental e serviço social: ativos no planejamento, execução, avaliação
sozinho”: indivíduo, grupo e identidade social
o desafio da subjetividade e interdisciplinaridade. São de serviços e formação de profissionais de
em Alcoólicos Anônimos. Rio de Janeiro: Tese
Paulo: Cortez, 2000. saúde mental, in Transversões – Saúde Mental,
de doutoramento em Serviço Social, ESS-UFRJ,
Desinstitucionalização e Abordagens Psicossociais
UFRJ, 2007. Vasconcelos, E. M. A proposta de empowerment
(1) 1, Escola de Serviço Social da UFRJ, Rio de
Ribeiro, B. T. et al. (org.). Narrativa, identidade e e sua complexidade: uma revisão histórica na
Janeiro, 1999.
clínica. Rio de Janeiro: Ed. IPUB/CUCA, 2001 perspectiva do serviço social e da saúde mental,
in Serviço Social e Sociedade 65 (XXII). São Paulo: Weingarten, R. O movimento de usuários em saúde
Rosa, L. S. Transtorno mental e o cuidado na Cortez, 2001a. mental nos Estados Unidos: história, processos de
família. São Paulo: Cortez, 2003. ajuda e suporte mútuos e militância. Rio de Janeiro:
Vasconcelos, E. M. O controle social na Projeto Transversões/ IFB, 2001.
Rüdiger, F. Literatura de autoajuda e individualismo. perspectiva da transformação do modelo assistencial
Porto Alegre: Editora da Universidade (UFRGS), em saúde mental no Brasil. In: VASCONCELOS, E. WEISSMAN, M.; KLERMAN, G. Sex differences
1996. M. et al. (org.). Cadernos de Textos – III Conferência and the epidemiology of depression, in Arch. Gen
Nacional de Saúde Mental. Brasília, Ministério da Psychiatry, 34, p 78-11, 1977.
Sakalis, A. The political role of illness narratives, in
Journal of Advanced Nursing 31 (6):1469-1475, 2000. Saúde, 2001b. Wright, B. Physical disability – a psychosocial
approach. New York: Harper & Row, 1983.
Schittine, D. Blog: comunicação e escrita íntima na Vasconcelos, E. M. O poder que brota da dor e
internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. da opressão: empowerment, sua história, teorias e
estratégias. São Paulo: Paulus, 2003.
Silveira, M. L. O nervo cala, o nervo fala: a linguagem
da doença. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000. VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens Sites da internet citados
psicossociais, vol. II: reforma psiquiátrica e saúde
TANCREDI, F. B. Aspectos epidemiológicos do
mental na ótica da cultura e das lutas populares.
consumo de medicamentos psicotrópicos pela
São Paulo: Hucitec, 2008. www.abep.org.br
população de adultos do distrito de São Paulo.
www.bu.edu/cpr
Dissertação de mestrado, Fac. Saúde Pública da VASCONCELOS, E. M. Karl Marx e a subjetividade
www.cultura.gov.br
USP, São Paulo, 1979. humana, vol. II: uma história das ideias psicológicas
www.ifb.org.br
na Europa até 1850. São Paulo: Hucitec, 2010.
VALLA, V. V. Apoio social e saúde: buscando
compreender a fala das classes populares. In: VASCONCELOS, E. M. e MORGADO, R. Proposta
COSTA, M. V. (org.). Educação popular hoje. São conceitual do PAIF. Secretaria de Estado da Família
Paulo: Loyola, 1998. e da Assistência Social, Rio de Janeiro, 2005.
Vasconcelos, E. M. Do hospício à comunidade. Vasconcelos, E. M. et al. (org.). Reinventando a
Belo Horizonte: SEGRAC, 1992a. vida: narrativas de recuperação e convivência com

88 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 89
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

população, mas também pelas características 2) Breve história político-institucional deste Projeto Transversões, um projeto integrado de
próprias do desenvolvimento das políticas sociais projeto pesquisa e extensão voltado para o tema da saúde
em nosso contexto. mental e das abordagens psicossociais, e por mim
Assim, os serviços e metodologias que estamos coordenado. Ele está lotado institucionalmente na
Na experiência mundial, as várias formas de Escola de Serviço Social da Universidade Federal
recriando no campo da saúde mental no Brasil exigem
organização, participação e empoderamento do Rio de Janeiro, onde trabalho como professor
coragem para montar as primeiras iniciativas-piloto,
de grupos populares são parte integrante da associado, e conta desde 1996 com a avaliação
ter a devida disciplina de trabalho e paciência
história humana, particularmente na modernidade periódica e o apoio do CNPq, Conselho Nacional
histórica para monitorar sua implementação, criar
(VASCONCELOS, 2003). Contudo, os grupos de de Pesquisa, ligado ao Ministério de Ciência e
uma sustentação teórico-conceitual adequada,
ajuda mútua propriamente ditos, na forma como os Tecnologia, através de bolsa de produtividade em
discutir e avaliar seus resultados e desafios, compará-
conhecemos hoje, tiveram seu início em 1935, nos pesquisa (do tipo I-C), e mais recentemente também
las com as experiências similares internacionais, e
Estados Unidos, com os Alcoólicos Anônimos (AA), e do Fundo Nacional de Saúde, ligado ao Ministério
para reorientar e corrigir os eventuais problemas.
Além disso, na maioria das vezes, estes projetos sua metodologia foi expandida para abarcar outros da Saúde. Desde seu início, a pesquisa sobre o tema
ocorrem em contexto de intenso debate político, tipos de problemas, como, por exemplo, a neurose e gerou inúmeros artigos e textos dentro de nossas
muitas vezes sem conseguir mobilizar todo apoio a psicose, o que resultou nos Neuróticos Anônimos publicações42. Além disso, em nossa militância
institucional e profissional que seria desejável, e (NA) e nos Psicóticos Anônimos (PA), além de junto ao movimento antimanicomial, passamos a
Texto 2
que só mais tarde o reconhecimento e a legitimidade muitos outros grupos voltados para problemas estimular a formação de associações de usuários e
da experiência consolidada conseguirá angariar. semelhantes. Mas a experimentação não parou aí. familiares, que vêm se difundindo a partir de 1990
Histórico, princípios Depois disso, em vários países, no campo da saúde em todo o país, processo cuja avaliação foi também
Entretanto, este é o preço a pagar para campos
ético-políticos e processo mental, foram iniciados outros movimentos e tipos assumida como objeto de pesquisa, cujos resultados
de militância e política social que se querem
metodológico de construção de grupos, com metodologias mais diversificadas, e vêm sendo divulgados de forma mais sistemática
inovadores e que buscam auscultar o máximo
do “Manual de ajuda e muitas vezes a partir de avaliações da experiência a partir de 2007 (VASCONCELOS, 2007 e 2008b;
possível os interesses popular-democráticos e
suporte mútuos em saúde dos AA, como novos desdobramentos operacionais VASCONCELOS e RODRIGUES, 2010).
as características particulares destes grupos, e
mental” (VASCONCELOS, 2003 e 2008b; REIS, 2007). No Em outubro de 2008, o Projeto Transversões
que visam não se submeter ao conjunto de forças
Eduardo Mourão Vasconcelos Brasil, no campo específico da saúde mental, esta promoveu na cidade do Rio de Janeiro um primeiro
hegemônicas na economia, na política, na cultura e
experiência se iniciou nos anos 1970, quando foi curso intensivo para profissionais, usuários e
até mesmo nas organizações corporativas.
criada uma primeira associação de familiares familiares, para formação de facilitadores de grupos,
1) Apresentação Sem dúvida alguma, o presente projeto de do campo da saúde mental no Rio de Janeiro, e iniciou dois grupos-piloto, um para usuários e
sistematização de uma metodologia para grupos de mas só se difundiu amplamente a partir dos anos outro para familiares, para um experimentação mais
ajuda e suporte mútuos em saúde mental tem estas 1990. Estes grupos e associações compõem o que sistemática da metodologia, grupos estes que vêm
Como pesquisadores e militantes do campo social, da características. Contudo, apesar da significativa hoje chamamos de movimento de usuários e de se reunindo mensalmente desde então. Estes dois
saúde e saúde mental, e particularmente engajados margem de incertezas que envolve o seu processo familiares de serviços de saúde mental. grupos têm proporcionado uma experimentação
na luta antimanicomial e no processo de reforma de desenvolvimento, a estratégia e os passos
Desde o final da década de 1980, quando iniciei bastante rica da metodologia, cuja sistematização
psiquiátrica brasileira, estamos contribuindo para o que seguimos não são aleatórios, são frutos de
desenvolvimento de políticas, programas, projetos e valores ético-políticos, teóricos e metodológicos meu programa de doutoramento na Inglaterra, tive
metodologias que muitas vezes, apesar das múltiplas sistematizados em experiências e projetos contatos regulares com os grupos e movimentos 42 O leitor interessado em se aprofundar no processo
experiências internacionais já consolidadas, passam anteriores e claramente objetiváveis, e portanto de usuários e familiares em saúde mental acumulativo de estudo deste tema deve consultar as
a ter um perfil muito particular em nosso país. Isso devem ser explicitados e colocados em discussão particularmente na Inglaterra, Holanda, Suécia e seguintes publicações: Vasconcelos, 1992, 1999, 2000,
2003, 2007; 2008a, 2008b, 2008c, 2010a e 2010b;
se dá não só pelas condições socioeconômicas, juntamente com todo o conjunto do manual. Este é Estados Unidos, que desenvolvem grupos de ajuda
Vasconcelos e Furtado, 1997; Vasconcelos et al., 2006;
demográficas e culturais específicas de nossa o objetivo deste texto. mútua desde o início dos anos 1970. O tema foi Vasconcelos e Rodrigues, 2010; Weingarten, 2001; Reis,
assumido como objeto de estudo e pesquisa no 2007; Rosa, 2003 e 2009.

90 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 91
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

foi sendo inserida gradualmente neste manual. interesse em celebrar um convênio com a Escola de de fortalecimento das associações de usuários esfera de controle social maior, a IV Conferência
Desde então, cursos similares foram realizados Serviço Social da UFRJ, que permitisse ao Projeto e familiares do campo. Assim, a Coordenação Nacional de Saúde Mental – Intersetorial, da
autonomamente pelo Projeto Transversões em Transversões capacitar profissionais, usuários e de Saúde Mental já desenvolve ou ainda se qual participei intensamente, assumindo o papel de
Teresina (PI), Natal (RN) e em Angra dos Reis (RJ). familiares e implementar mais amplamente estes comprometeu a encaminhar e implementar outros membro da Comissão de Organização e de relator
dispositivos em vários locais no país, na forma de projetos, tais como: adjunto. A conferência foi convocada por decreto
O último trabalho publicado sobre o perfil das
capacitação, bem como de seguimento/supervisão presidencial em abril, quando foram iniciadas as
organizações e movimentos sociais no campo da
de experiências-piloto por meio de pesquisa. A conferências municipais e estaduais, tendo a sua
saúde mental no país (VASCONCELOS, 2008b) a) desenvolvimento de programas de inclusão
proposta foi encaminhada ao GT de Demandas etapa nacional realizada em Brasília no final de
teve um impacto significativo, inclusive porque digital para associações e para cada um dos
de Usuários e Familiares, sendo aprovada em sua junho. O assunto constituiu um subeixo específico (o
foi divulgado nos maiores eventos do movimento usuários. Uma das alternativas levantadas é a
reunião de 17/9/2009, incluindo o próprio GT como de nº 3.7, intitulado “Organização e mobilização de
antimanicomial no final de 2008. As propostas criação de Escolas de Informática e Cidadania para
uma das instâncias gerenciadoras e de prestação de usuários e familiares em saúde mental”) do terceiro
sugeridas a partir da pesquisa (e, entre elas, a usuários e familiares, promovido conjuntamente
contas deste convênio. Nesta reunião, a proposta e último eixo (“Direitos humanos e cidadania como
sugestão de se ter um projeto sistemático de com as associações, em convênio com a ONG
do convênio foi ampliada, passando a incluir os
implantação destes grupos de ajuda e suporte desafio ético e intersetorial”) do temário geral da
seguintes itens: CDI – Comitê de Democratização da Informática.
mútuos no país), foram integralmente assumidas conferência.
Outra forma possível de implementar este tipo de
como reivindicações próprias pelas lideranças de  
programa é através da Casa Brasil, que está sendo Como destacou Delgado, titular da Coordenação
usuários e familiares de uma das duas alas de nosso a) publicação oficial de uma cartilha nacional, em vinculada diretamente ao Ministério da Ciência Nacional de Saúde Mental em sua carta de
movimento antimanicomial, que passou a cobrar do linguagem popular, sobre direitos dos usuários e Tecnologia. Ainda uma terceira forma seria apresentação do Relatório Final, o processo
Ministério da Saúde a sua implementação. e familiares no campo da saúde mental; colocar um computador adicional em cada CAPS, de mobilização, discussão e participação na
Ao receber estas reivindicações, no final de 2008, a b) capacitação para usuários, familiares e juntamente com a capacitação adequada para o conferência foi significativo, apesar de todas as
Coordenação de Saúde Mental do Ministério profissionais para implantar experiências- seu uso, e estímulo para que todos os usuários que limitações conjunturais, com a participação de
da Saúde tomou a iniciativa de formar o Grupo de piloto de grupos de ajuda mútua em quatro assim o quiserem tenham e-mail próprio; cerca de 1.200 municípios nos debates do temário
Trabalho de Demandas de Usuários e Familiares, ou cinco cidades do país, com acompanhamento b) apoio ao estudo multicêntrico do projeto de desde fevereiro de 2010; a participação efetiva de
que iniciou seus trabalhos em abril de 2009. Assim, do e supervisão por um ano; “Gestão Autônoma da Medicação” por parte dos variadas agências intersetoriais na discussão do
ponto de vista institucional e político, esta proposta de usuários do campo da saúde mental, experiência já tema da saúde mental, com repercussões tanto no
c) publicação oficial do manual específico
criação de grupos de ajuda e suporte mútuos em saúde para este projeto de ajuda e suporte mútuos, o implantada no Canadá, e que está sendo realizado nível federal como no plano estadual e municipal;
mental, coordenados por facilitadores usuários e/ou que está sendo objetivado na presente publicação; em Campinas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul; e a participação decisiva dos usuários e familiares
familiares em processo mais avançado de recuperação, no próprio processo, ocupando lugares nas mesas-
d) capacitação específica para o Plano e c) continuidade do programa de geração de
já foi avaliada e aprovada em 2009 pela coordenação redondas e painéis, na coordenação de atividades
Cartão de Crise, em quatro ou cinco experiências- renda e trabalho para usuários do campo da saúde
no âmbito deste grupo de trabalho, como parte de e facilitação de grupos, na Tenda Austregésilo
piloto no país, preferencialmente de forma orgânica mental, já em implementação pela Coordenação e
um conjunto maior de iniciativas. Este inclui também Carrano, na Feira de Empreendimentos de Geração
ao projeto de grupos de ajuda e suporte mútuos;  realização de Encontro Nacionais de Práticas
a criação de um cadastro nacional de associações de de Renda e Economia Solidária, bem como no
Inovadoras em Geração de Trabalho e Renda;
usuários e familiares, um programa de inclusão digital e) pesquisa avaliativa do cadastro de conjunto de propostas aprovadas no sentido de
de associações de usuários e familiares, além da associações de usuários e familiares que se d) estímulo a grupos de teatro do oprimido na fortalecer o seu empoderamento e a sua organização
implantação do Plano/Cartão de Crise, um dispositivo inscreveram junto à Coordenação. rede de CAPS, com o lançamento do Prêmio na rede de serviços e nas políticas de saúde mental.
já em vigor na Inglaterra e na Holanda, cuja visibilidade Augusto Boal entre os CAPS. (Sistema Único de Saúde / Conselho Nacional de
no Brasil partiu da mesma publicação do Projeto Saúde, 2010: 9)
A reunião do GT de setembro de 2009 também
Transversões (VASCONCELOS, 2008b). Nas decisões finais da IV Conferência, expostas
contemplou outras propostas que não serão incluídas Em 2010, o tema da organização e empoderamento
Ainda em 2009, a Coordenação de Saúde neste convênio com o Projeto Transversões, mas de usuários e familiares, juntamente com várias em seu Relatório Final, as diretrizes gerais de
Mental do Ministério da Saúde demonstrou que também fazem parte desta linha de trabalho destas propostas, foi colocado em discussão em uma fortalecimento da organização dos usuários e

92 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 93
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

familiares foi claramente enfatizada43. Da mesma forma, os projetos específicos de empoderamento Antes de terminar esta seção de história do projeto, área da saúde, sendo necessariamente um do
e particularmente o de grupos de ajuda e suporte é importante ainda lembrar que já existem na campo da saúde mental, o que permite que eles
mútuos foram claramente aprovados, nas propostas prática antecedentes de inserção de usuários possam assumir uma supervisão mais próxima dos
43 Isso pode ser claramente constatado nos tópicos 893 e de número 897 a 899, também constantes do Relatório e familiares com maior experiência de vida futuros facilitadores dos grupos. Além disso, outra
894 do relatório, de princípios e diretrizes gerais relativas Final44. Assim, podemos concluir que a proposta e de trato com o transtorno e com práticas iniciativa do governo federal também favorece a
ao subeixo 3.7, “Organização e mobilização de usuários e tema deste manual foi discutida, reconhecida e organizativas, no contexto de iniciativas de implantação da proposta dos grupos, a de introduzir
familiares em saúde mental”:
aprovada na instância maior de controle social saúde mental junto à rede de atenção em saúde na atenção primária a abordagem de Terapia
“893. Da mesma forma, estas diretrizes implicam também da política de saúde mental no país. e saúde mental. Exemplos interessantes são os Comunitária (TC), desenvolvida pelo etnopsiquiatra
em fortalecer as associações de usuários, familiares e dos cuidadores de saúde mental (para os serviços cearense Adalberto Barreto (BARRETO, 2005),
No atual momento, o presente projeto de metodologia
trabalhadores de saúde mental, em estimular a criação residenciais), dos oficineiros em saúde mental como estratégia específica de elaboração das
de cooperativas e a participação dos familiares nos de grupos de ajuda e suporte mútuos vem sendo
empreendimentos solidários em saúde mental, visando discutido no âmbito de alguns municípios brasileiros (que coordenam oficinas de artes e artesanato questões de saúde mental na população, cujos
a reintegração social e o enfrentamento do desemprego que possuem uma experiência mais consolidada de nos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS) e grupos podem dirigidos inclusive pelos próprios
e a inserção dos usuários de serviços de saúde mental dos técnicos em reabilitação em dependência Agentes Comunitários de Saúde (ACSs). Assim, em
no mercado de trabalho, conforme suas habilidades e
organização de usuários e familiares, para a montagem
de cursos de capacitação e início das primeiras química, em serviços na área de abuso de álcool um futuro breve, esperamos ter o seguinte conjunto
possibilidades, favorecendo a redução do preconceito, a
conquista da cidadania e a diminuição do estigma. Ao experiências locais de grupos de ajuda e suporte e outras drogas, sendo que estes já exercem suas de estratégias dirigidas para a saúde mental no
mesmo tempo, este fortalecimento das organizações mútuos. Este é o quadro em que nos encontramos no atividades desde o início da década de 1980 no contexto da atenção básica:
também requer a criação e diversificação de mecanismos Rio de Janeiro, como ex-usuários de drogas e ex-
de denúncias quanto à violação e de defesa de direitos final de 2010, em que escrevo este texto.
alcoolistas que agora realizam um trabalho de
dos usuários de saúde mental, bem como a produção
de material de educação popular, formação política e de reabilitação diretamente junto aos usuários. Além a) as formas já convencionais de suporte e intervenção
defesa de direitos. Estas mesmas diretrizes devem visar destes, é importante lembrar também dos próprios da rede específica de atenção psicossocial na
também a organização dos familiares e usuários dos 44 O texto integral destas propostas aprovados é o Agentes Comunitários de Saúde (ACSs), que já estão atenção básica, como o apoio matricial, as visitas
serviços dirigidos aos problemas decorrentes do uso de seguinte: domiciliares, a intervenção no ambiente das casas
álcool e outras drogas, de forma que possam defender avançados no caminho da conquista de uma carreira
seus direitos civis, políticos e sociais junto à rede de “897. Garantir financiamento público para como servidores públicos estáveis e inteiramente e no bairro, os encaminhamentos e a capacitação
serviços e ao poder público. bolsas de incentivo à formação de lideranças de inseridos no SUS. de agentes e profissionais das equipes de saúde da
familiares e usuários de saúde mental, de modo a família;
894. No plano local dos serviços, o fortalecimento estimular projetos de produção de autonomia e de A proposta dos grupos de ajuda e suporte mútuos
da organização de usuários e familiares implica protagonismo, desde que em concordância com os também se insere na perspectiva da Estratégia
criar dispositivos de conscientização da população, princípios da reforma psiquiátrica.
de Saúde da Família (ESF), como um dispositivo b) os grupos de Terapia Comunitária (TC), voltada
principalmente dos familiares, sobre a importância da 898. Implantar, nos serviços de saúde mental,
participação dos mesmos no processo de tratamento, metodologias específicas de grupos, empoderamento, voltado para a atenção de portadores de transtorno principalmente para a abordagem dos chamados
assim como sobre as formas de acesso e modos de psicoeducação, conhecimento do uso de mental mais grave e de suporte para seus familiares “transtornos mentais comuns” (FONSECA, 2008),
funcionamento dos serviços. Ao mesmo tempo, exige medicamentos, grupos de ajuda e suporte mútuos, e no próprio local de moradia das comunidades. Esta
também implementar políticas públicas explícitas de Plano/Cartão de Crise para os usuários, valorizando
ou seja, os transtornos mentais leves e difusos
suporte e assistência psicossocial aos familiares e sempre os usuários, sua autonomia e autoestima,
proposta emerge em uma conjuntura bastante na população. Eles também são identificados pela
cuidadores de usuários dos serviços de saúde mental, e objetivando de forma ampla as conquistas dos favorável, coincidindo com a recente iniciativa de antropologia social e pelas próprias representações
reconhecendo importância dos mesmos nesse campo. direitos de cidadania. criação pelo Ministério da Saúde dos Núcleos sociais populares como “problemas de nervo”
Além disso, é preciso garantir que as equipes dos CAPS e 899. Criar cartilhas informativas e outros materiais de Apoio à Saúde da Família – NAFS (Portaria
outras unidades de saúde e saúde mental sustentem um de divulgação, a serem disponibilizados em órgãos (idem);
diálogo ativo e permanente com os usuários, familiares públicos e nos diversos espaços da vida social, 154/2008 do Ministério da Saúde), que realizam
e cuidadores, fortalecendo os dispositivos internos de que esclareçam os direitos e deveres dos cidadãos a supervisão das equipes de atenção básica e
participação (assembleias, oficinas, grupos de trabalho, portadores de sofrimento psíquico e contemplem dão um grande estímulo à plena implantação c) os grupos de ajuda e suporte mútuos, objeto
conselho gestor etc.) e regulamentando os espaços as redes de atendimento em suas especificidades”
destas equipes no nível do município, pelo apoio da presente iniciativa, capazes de lidar com as
próprios de sua organização, dotados de autonomia e (Sistema Único de Saúde / Conselho Nacional de
condições próprias de funcionamento” (Sistema Único Saúde, 2010: 143; grifo do autor do presente texto). financeiro federal embutido na medida. Os núcleos especificidades de uma abordagem comunitária do
de Saúde / Conselho Nacional de Saúde, 2010: 142). são formados por um grupo interprofissional da quadros chamados de psicose.

94 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 95
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

Em outro texto deste manual, discutimos com de mudança. Este dispositivo pode ter seus adequadas, capazes de superar as barreiras universalização e a acessibilidade a dispositivos
maiores detalhes a inserção dos grupos de ajuda efeitos e sua validade particular no seu terreno linguísticas, sociais, de gênero e culturais de troca adequados de atenção e cuidado;
e suporte mútuos na atenção primária em saúde. próprio e em termos de eficácia clínica, mas social e de acesso aos dispositivos de cuidado, ou - a reinvenção de modos de viver no sentido de
Penso que agora já temos todos os elementos acaba sendo expandido a todo o edifício teórico que comprometam a continuidade e a qualidade da uma maior criatividade e inovação, estimulando
históricos necessários para iniciar a exposição sobre e epistemológico da maioria das abordagens atenção nos serviços; indivíduos e grupos sociais para que questionem os
os princípios éticos e metodológicos que inspiraram clínicas, criando nelas uma impossibilidade
padrões aceitos de normalidade e os mecanismos
e orientaram a construção deste manual. radical de abordar fenômenos mais amplos ou de
de estigma e discriminação, para que ampliem o
outra natureza. A perspectiva de abordagens e de c) as teorias psicossociais comprometidas com
rol de possibilidades e a aceitação das diferenças
atenção psicossocial que defendemos se coloca na uma perspectiva popular-democrática devem
existenciais na vida social e cultural, exatamente na
direção contrária, na perspectiva de uma atenção evitar qualquer perspectiva teórica funcional,
direção contrária da adaptação e do ajustamento;
3) Princípios ético-políticos de base que pública e gratuita, como direito social e que isole e autonomize a dimensão psíquica
orientaram a construção desta metodologia e responsabilidade do Estado, baseado nos ou que a aprisione em fronteiras rígidas - a mudança dos serviços e políticas sociais
do manual princípios da universalização, integralidade, de normalidade e de doença, que acabem envolvidas, bem como dos saberes científicos
intersetorialidade, descentralização e empurrando-a na direção da adaptação e e profissionais que incidem no campo e dos
territorialização da atenção, integração ajustamento dos indivíduos e grupos humanos aos pressupostos epistemológicos que os sustentam;
A construção deste manual se insere em um institucional e da gestão, bem como de valores e padrões sociais aceitos pela sociedade - a ampliação e a defesa dos direitos civis,
processo mais longo de ativismo e militância social participação e controle social das políticas mais ampla. Ao contrário, a transformação da políticos e sociais dos usuários e principalmente
junto às classes populares, e que se sustenta em e programas pela sociedade civil e pelos realidade psíquica interna em cada indivíduo dos indivíduos mais fragilizados, no sentido de
um conjunto de valores ético-políticos que devemos trabalhadores. Daí, a responsabilização se dá de forma inteiramente conectada e ao seu empoderamento, autonomização, participação
explicitar45, já que inspiram e dão a orientação mais dos serviços públicos pela integralidade das mesmo tempo conflituosa com a realidade política e social, e conquista de plena cidadania.
geral também para o nosso trabalho profissional no necessidades de seus usuários, que pressupõe social e cultural externa, na medida em que o
campo da saúde mental: sua provisão integrada pelas diversas agências do inconsciente e o desejo forçam permanentemente
Estado e dispositivos de ação intersetorial, o que os limites atuais da realidade, conformando d) estas lutas por políticas e direitos sociais
acaba por também implicar a ampliação do objeto os processos instituintes e transformando o devem ser inseridas em um projeto histórico
a) na relação dos fenômenos psicológicos com da atenção psicossocial; real existente. Assim, os seguintes elementos mais amplo de emancipação social,
as outras dimensões da vida, uma perspectiva
fazem parte integral do objeto das abordagens econômica e política, por formas de sociedade
democrático-popular e crítica das abordagens e
psicossociais: mais igualitárias, solidárias, democráticas
dispositivos psicossociais não pode reproduzir as b) abordagens psicossociais emancipatórias no
e participativas. Para isso se torna fundamental
características mais gerais das práticas terapêuticas campo da saúde, saúde mental, assistência social
o engajamento de todo este conjunto de ativistas,
e teorias clínicas convencionais, realizadas no e educação devem ser capazes de identificar - o conhecimento crítico da realidade, das relações trabalhadores, usuários e familiares em movimentos
âmbito privado, como nos consultórios particulares. e analisar os mecanismos estruturais de de poder e das contradições e lutas sociais na sociais e partidos que buscam estes objetivos, como
Estas tendem a colocar entre parênteses o contexto opressão, de desigualdade e discriminação
sociedade envolvidos nos processos psicossociais; condição imprescindível para estabelecer uma
histórico e suas determinações e finalidades social, de gênero, etnia, geração, identidade
- a luta pela transformação das condições concretas integração e universalização das lutas setoriais com
sociais, políticas e culturais, visando realçar a sexual e cultura que atravessam a vida social, a
de vida, de moradia e trabalho, e de reprodução a luta emancipatória mais global;
importância e as particularidades dos fenômenos vivência dos usuários e o acesso aos serviços.
subjetivos e inconscientes para cada sujeito Neste esforço, devem procurar identificar também social dos usuários da atenção psicossocial;
e sua responsabilidade no processo pessoal as principais representações específicas - o amplo reconhecimento das necessidades e) este compromisso ético-político de base é
envolvidas nos grupos espoliados, no sentido de específicas dos indivíduos e grupos sociais que orienta a avaliação e inclusão das diferentes
melhor ouvir suas demandas, estabelecer um usuários da atenção psicossocial, particularmente abordagens existentes, em uma perspectiva pluralista,
45 Esta perspectiva foi desenvolvida com maiores diálogo multi- e intercultural compreensivo,
detalhes em outros trabalhos (VASCONCELOS, 2008a e daqueles com algum grau de dependência mobilizando para a sistematização teórica e sua
2010a). e desenvolver metodologias operativas ou fragilidade, aumentando a oferta, a práxis o máximo possível de forças e atores

96 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 97
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

sociais progressistas e engajados que lutam - de um lado, está o de criar um dispositivo com alto aponta necessariamente para que seja adotada e riscos, temos por um lado maiores exigências
no campo. Dessa forma, cria-se um campo nível de proteção e segurança para os participantes. exercida por lideranças reconhecidas de usuários e de rigor epistemológico e metodológico
de alianças, ou, em termos gramscianos, um Como exemplo deste encaminhamento, o dispositivo familiares, a partir de uma seleção criteriosa, como (VASCONCELOS, 2002), de organicidade permanente
bloco histórico de atores sociais, políticos e proposto deve prover mecanismos claros de uma atividade remunerada, que, embora no com a pesquisa, com as práticas nas políticas
acadêmicos, que vêm contribuindo para as controle da agressividade, dos conflitos e do caos, início possa utilizar mecanismos provisórios públicas e com os movimentos sociais, e de análise
várias formas de práxis emancipatórias dirigidas o que constitui um fantasma concreto no caso de como bolsa de trabalho, deve se encaminhar da implicação dos produtores deste conhecimento,
para um objeto de estudo e/ou intervenção. grupos facilitados por usuários do campo da saúde para contratos formais com plenos direitos para constante checagem do saber produzido. Além
Esta identificação comum estimula que estes atores mental. Uma das formas de concretizar isso está trabalhistas e quem sabe, no futuro, até disso, as próprias características do campo revelam
possam reconhecer suas várias contribuições, possam no dispositivo de coordenação dos grupos, que mesmo na direção de uma carreira de servidor um conhecimento de feitio mais militante, uma
colaborar, se criticar e competir fraternalmente entre exige sempre dois facilitadores, sendo um deles público dentro do SUS. Um exemplo deste certa provisoriedade e uma exigência de renovação
si, colocando a prioridade e a centralidade responsável pela ordem da reunião; processo ocorreu no Brasil na atenção primária em permanente, sem a pretensão do caráter mais
da práxis como principal critério de aferição, saúde, no caso dos Agentes Comunitários de Saúde definitivo reivindicado pelo conhecimento herdado.
escolha e produção de conhecimento, no sentido (ACSs). Além disso, estes projetos exigem um cronograma
de construírem historicamente abordagens mais - de outro, está a exigência de que o dispositivo
mais alongado, que permita a sedimentação das
complexas e eficazes na transformação da realidade também permita a flexibilidade necessária para se
experiências e a avaliação das práticas, de sua
existente e na construção de novas formas mais produzir diferentes tipos de reunião e para não gerar
efetividade e implicações em um tempo mais longo.
comprometidas de cuidado humano para todos; padronização identitária e/ou normatização social,
4) Princípios e aspectos ético-metodológicos
portanto criando espaço para que os participantes
do processo de construção deste manual
possam crescer e avançar na sua experiência de
b) A revisão bibliográfica como dispositivo
f) no processo de construção desta metodologia e gestão grupal e em seu processo de individuação.
permanente de explorar as várias dimensões
deste manual, buscamos ter a máxima abertura A partir dos princípios ético-políticos listados do objeto de estudo e das experiências
para explicitar o mais claramente possível os acima, temos agora a condição de alinhavar as
g) a partir dos valores e estratégias envolvidas na similares:
desafios e dilemas presentes na metodologia principais diretrizes e estratégias metodológicas
para os participantes, facilitadores dos grupos e abordagem de empoderamento (VASCONCELOS, Uma das principais formas de lidar com esta
que orientaram a construção deste manual:
profissionais. Isso visa esclarecer os benefícios e os 2003), adotada como princípio básico da presente dimensão complexa e interdisciplinar do estudo
eventuais riscos de uma metodologia em construção, metodologia, buscamos o desenvolvimento e da intervenção está na permanente revisão
propiciar as melhores condições de conquista do do máximo possível de autonomização e a) Processo de produção de conhecimento bibliográfica, teórico-conceitual, histórica
máximo de autonomia na gestão de seus projetos empoderamento da gestão dos grupos nas mãos complexo que assume maior nível de incerteza e de experiências similares relevantes no
locais e para que possam participar do processo dos usuários e familiares, sem criar formas de e riscos: campo, que apontem para os diversos olhares e
coletivo de construção e avaliação da própria dependência permanente em relação aos contribuições possíveis para o objeto de estudo.
Adotar o posicionamento ético-político de base
metodologia. Por exemplo, considero que o principal profissionais e aos serviços de saúde mental. Assim, a revisão produz o mapeamento dos principais
sistematizado acima implica trabalhar com
desafio da presente proposta de metodologia está Por outro lado, esta autonomização crescente dos indícios, de possíveis insights, correlações, relações
objetos de estudo e intervenção, assumindo toda
na busca de um equilíbrio sutil entre duas exigências usuários e familiares não implica reprivatização paradoxais etc., que exigirão aprofundamento
a sua complexidade e multidimensionalidade, em
polares, estruturais e contraditórias que perpassam do cuidado, e daí a preocupação em criar
colocar a práxis como componente de reinvenção na discussão teórica, no processo investigativo
todos os tipos de dispositivo grupal de ajuda mútua mecanismos concretos para que o trabalho eventual
permanente das ações emancipatórias, de ausculta e na avaliação e sistematização dos dispositivos
no campo da saúde mental46: e inicialmente voluntário de facilitadores de grupo
das forças sociais instituintes, e de forma orgânica de intervenção. Neste manual, particularmente
em associações de usuários e familiares não seja
aos movimentos e projetos sociais populares. Esta o capítulo de textos de aprofundamento teórico-
apropriado por serviços e programas públicos
postura implica fazer do processo de construção conceitual busca cumprir este objetivo, trazendo
46 Para o leitor interessado na discussão mais de saúde e saúde mental, com vistas a redução
de conhecimento uma atividade com “riscos” para a análise contribuições de diferentes campos
pormenorizada deste tema, sugiro a leitura do texto de custos dos serviços e projetos de atenção
específico de aprofundamento sobre processo grupal, e incertezas muito maiores, em relação (psicologia, psicologia analítica, teorias sociais e
psicossocial. Portanto, a metodologia proposta
dentro deste manual. ao pensamento herdado. Para enfrentar estes políticas, análise institucional, educação etc.).

98 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 99
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

c) Desenvolvimento de uma base de sustentação e) Experimentação independente e a econômicas, políticas e culturais envolvidas foram fundamentais no processo de construção
interteórica complexa e não linear: necessidade de fomento estatal, com os seus nestas práticas, não só entre diferentes exposto neste manual. Isso envolveu vários projetos
devidos cuidados: contextos nacionais, mas também culturais, de pesquisa e estudos prévios dentro do Projeto
Esta revisão permite não só construir elementos de
étnicos, de classe social e de perspectiva Transversões, incluindo viagens internacionais para
contextualização e comparação, mas também forjar to de vista político-institucional, processos de
ético-política das práticas (VASCONCELOS, 1989 conhecimento e avaliação de experiências similares,
uma sustentação teórico-conceitual particular capaz apropriação e adaptação deste tipo de projetos no
e 2005). No campo psicossocial isto é fundamental, o que gerou várias publicações, como já indicado
de sustentar o projeto em foco. Essa estratégia não campo popular-democrático deveriam ser idealmente
ao se considerar que os fenômenos mentais são no histórico acima. Após este processo, passamos
se dá de forma eclética ou aleatória, pois se exige desenvolvidos pelos próprios movimentos sociais
abordados de forma muito diferenciada entre à experimentação cuidadosa de alguns dos
um conhecimento mínimo das diferentes perspectivas populares e serviços locais, de forma independente.
classes sociais e culturais, sendo as representações dispositivos grupais concretos utilizados em alguns
teóricas adotadas na estrutura analítica proposta. O Entretanto, estes atores sociais contam com poucos
do “nervoso” um bom exemplo (DUARTE, 1986; países, com destaque para o movimento de usuários
desenvolvimento de estrutura teórica interdisciplinar recursos para tal. Assim, um processo mais
FONSECA, 2008). Mais particularmente, a dos Estados Unidos e da Inglaterra. Normalmente,
e interteórica complexa e não linear passa por uma sistemático de experimentação e avaliação
experiência internacional dos grupos de ajuda e estes dispositivos foram primeiramente avaliados,
decodificação dos diferentes conceitos-chave requer formas especiais de fomento, para a
suporte mútuos é atravessada por este dilema, foram feitas as devidas adaptações, para só então
e uma comparação contextualizada que aponte própria implementação experimental dos projetos
na medida em que há uma clara diferenciação serem divulgados e experimentados nos nossos
para as diferenças teóricas e ético-políticas, e para a sua avaliação de forma o mais orgânica
cultural entre a Europa latina e católica, com sua grupos. Só mais tarde, após serem devidamente
contradições e críticas mútuas, como também possível, para que possam conquistar gradualmente
cultura hierárquica, comunitária e valorizadora verificados e aprovados na prática, é que passaram a
para sinergias, possíveis apropriações ou seu próprio reconhecimento, podendo então mais
da dependência, e a cultura predominantemente ser incluídos na metodologia exposta neste manual.
fertilizações recíprocas (VASCONCELOS, 2002). tarde competir com as outras abordagens e os
protestante, individualista e mais valorizadora
Para isso, os projetos integrados de pesquisa são projetos já legitimados e em oferta na sociedade e
da autonomia pessoal da Europa do Norte, o que
fundamentais, pois vão explorando o objeto de nas políticas sociais já institucionalizadas. No caso
determina as características mais autonomistas e g) Implementação e avaliação integrada, por
estudo por várias perspectivas diferentes, tanto do de fomento estatal, entretanto, é fundamental
combativas do movimento de usuários nos países meio de métodos de pesquisa interventiva e
ponto de vista histórico como teórico-conceitual, e garantir que as modalidades de apoio e auxílio
desta região. Daí, a importância da permanente qualitativa, com resultados convertidos em
as publicações anteriores do Projeto Transversões, a tenham palcos decisórios os mais legítimos,
vigilância teórica e prática, no sentido de levar em revisões e acréscimos regulares ao manual:
maioria delas já indicadas aqui, apontam para esta visíveis e democráticos possível, e que não
conta as especificidades do contexto brasileiro de Ao mesmo tempo em que a metodologia foi sendo
perspectiva cumulativa de produção de conhecimento comprometam de forma alguma a autonomia
país semiperiférico, com alto grau de espoliação, implementada em projetos-piloto, foi feito um
sobre o objeto. dos projetos locais e dos grupos populares
desemprego estrutural e desigualdade social, enorme esforço de registro e avaliação regular e
que o implementam. Os editais públicos que
crise do Estado e das políticas sociais efetivas, e sistemática das vivências dos grupos, na forma
funcionam com recursos a fundo perdido, se
particularmente com sua cultura predominantemente de observação participante com diário de
d) Articulação de ativistas, pesquisadores e garantidas estas condições, constituem uma das
hierárquica nas classes populares. Assim, as campo, entrevistas e conversas rápidas, e
estudiosos dos campos envolvidos: formas de encaminhar isso.
propostas que estamos sistematizando aqui têm reuniões e seminários internos regulares da
Do ponto de vista organizacional, a perspectiva inspiração em experiências bem-sucedidas em equipe do projeto para discussão e análise da
interdisciplinar e interteórica indicada cima requer outros países, outras em projetos mais isolados em
f) Cuidados exigidos na transposição experiência. A opção por métodos de pesquisa
um mínimo de articulação entre ativistas, locais específicos do Brasil (VASCONCELOS, 2008b),
transnacional de abordagens e experiências interventivos e qualitativos é fundamental
pesquisadores e estudiosos das diversas e portanto requerem ser mais bem avaliadas,
internacionais: nesta fase de sistematização e experimentação
abordagens e experiências similares experimentadas e adaptadas para o contexto
A avaliação e a experimentação de teorias, da metodologia, em que diferentes tipos de
envolvidas, que contribuem para o debate e a brasileiro como um todo e para assegurar a efetiva
abordagens e dispositivos de atenção psicossocial orientações e dispositivos grupais são colocados à
análise do fenômeno, a partir de sua vivência mais participação e empoderamento de usuários e
que tiveram origem e desenvolvimento em outros prova, com os desafios e problemas que emergem
sistemática de seus próprios campos particulares. familiares.
países requerem um enorme cuidado para evitar sendo devidamente examinados e avaliados à
importações e transposições automáticas, No caso da presente metodologia de grupos de medida que surgem, e com estabelecimento de
que desconheçam as diferenças sociais, ajuda e suporte mútuos, todos estes cuidados estratégias alternativas de ação. Este tipo de

100 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 101
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

pesquisa interventiva e de corte qualitativo tem do Projeto Transversões ou de projetos aliados. receber o manual no formato digital, e várias destas Tendo em vista o público-alvo deste manual e
uma tradição já bastante sedimentada no país, com Nestes, contudo, além de serem fruto de discussões listas continham mais de uma centena de contatos. os princípios ético-políticos fundamentais de
vasta bibliografia já publicada em vários campos coletivas prévias, suas versões iniciais são Nestes eventos, encorajamos estes interessados a participação, democratização do conhecimento e
disciplinares47. No futuro, já com uma metodologia repassadas previamente ao conjunto da equipe para enviarem de volta comentários, críticas e sugestões. empoderamento, foi dada uma enorme ênfase na
de grupos mais consolidada e difundida no país, análise, revisão e acréscimos. Embora o número destes comentários escritos acessibilidade, através de uma estrutura e estilo
acreditamos que a inclusão de métodos avaliativos não tenha sido elevado, os que recebemos foram de texto o mais simples possível e adaptado
de cunho quantitativo, de forma integrada e com bastante sugestivos e úteis. às características cognitivas, culturais e
triangulação de métodos (MINAYO et al., 2005), h) Redação e divulgação de várias versões linguísticas das pessoas com transtorno
de ensaios clínicos convencionais (VASCONCELOS, preliminares do manual na forma de apostila mental e às classes populares. Entretanto,
e texto digital, para uso, testagem, validação i) Valorização máxima da contribuição dos
1995; HULLEY et al., 2003; OLIVEIRA, 2006) e de isso é feito sem se descuidar do rigor necessário
e saturação nas capacitações e nos grupos, usuários e familiares da saúde mental no
estudos sistemáticos de caso (YIN, 2001) serão para a sistematização conceitual e operativa da
antes da versão e publicação final: processo de construção da metodologia e
bem-vindos e necessários. metodologia. Daí, em primeiro lugar, a separação
das publicações, de forma coerente com os
Os resultados da avaliação realizada ao longo nos A primeira versão integrada da cartilha e deste entre a cartilha dos participantes, que parte de
valores do empoderamento e como exemplo
vários anos de experimentação desta metodologia manual, divulgada em 2008, resumiu-se a cerca conteúdos mais simples, operacionais, de interesse
demonstrativo de sua efetividade:
foram formatados para serem incluídos como texto de 30 páginas de formato A4, em espaço simples. imediato e com um maior nível de pessoalidade no
Gradualmente, novos acréscimos e correções Neste processo de construção da cartilha e do manual, estilo, e o manual, voltado para facilitadores
regular das diversas seções deste manual. Em
foram feitos no texto principal, mas também foi dada uma enorme importância às intuições e de grupo e profissionais. Em segundo lugar, no
outras palavras, a equipe de pesquisa foi orientada
e particularmente pela redação e inclusão sugestões dadas pelos usuários e familiares na manual, colocamos como prioridade fundamental
no sentido de que os resultados da observação
de novos textos de aprofundamento, gerando construção da metodologia e na redação deste manual uma estrutura sequencial das seções com níveis
participante, das entrevistas e conversas rápidas,
novas versões do manual que foram colocadas e cartilha. Todos os participantes dos cursos e grupos crescentes de dificuldade, para que lideranças de
bem como dos seminários internos, fossem redigidos
à prova em nossos cursos de capacitação e receberam as duas publicações e foram estimulados usuários, familiares e profissionais, à medida de seu
e convertidos em acréscimos e novos textos do
nas vivências de grupos. Alguns documentos- a lê-las e a fazer sugestões de mudanças no texto e maior engajamento no projeto, possam gradualmente
próprio manual, objetivo central do projeto neste
chave da metodologia, como, por exemplo, o no processo de condução dos grupos. No dia a dia dos explorar cada vez mais o manual, com um tratamento
momento, colocando em segundo plano outros
contrato de participação nos grupos, foram objeto de grupos, seus aportes foram anotados sistematicamente de maior complexidade, multidimensionalidade
tipos de publicação, como artigos em periódicos ou em nossos diários de campo, e serviram de base para
inúmeras discussões entre os participantes, e entre e detalhamento dos problemas e desafios. Em
capítulos de livros avulsos. as constantes revisões e versões do texto, como
eles e a equipe de pesquisadores, com inúmeras terceiro lugar, buscamos condensar as instruções
Enquanto o corpo do manual foi construído na versões escritas e divulgadas, até chegar à presente indicamos acima.
operativas para cada tipo de reunião de grupo
forma de texto coletivo, a maioria absoluta dos versão. Trabalhamos, portanto, com o princípio De forma similar, a escolha de Henrique Monterio em tabelas simples de apenas uma página, para
textos de aprofundamento são individuais e da saturação, pelo qual se avalia o processo de da Silva como ilustrador das duas publicações que os facilitadores das reuniões possam usar uma
assinados por cada um dos membros da equipe, maturação da metodologia, do texto e da pesquisa segue o mesmo princípio. Além da indubitável referência simples e esquemática na condução dos
pelo número decrescente de acréscimos e correções capacidade artística e expressiva intrínseca grupos. De forma similar, temos como objetivo que
necessárias, só permitindo sua publicação final revelada em seus desenhos, o fato de ser um usuario o estilo de editoração e diagramação de todo o
47 Para os interessados em se aprofundar neste
tema, sugerimos o contato com as seguintes linhas de quando estas tendem a ficar residuais. e um membro ativo da TV Pinel busca demonstrar texto para a publicação definitiva siga a mesma
desenvolvimento e suas referências: nas ciências sociais Além disso, foi realizada uma divulgação massiva na prática que os usuários da saúde mental têm diretriz, com uma escala decrescente de
(SILVA, 1991; THIOLLENT, 1992 e 1997; DEMO, 2004; efetiva habilidade de participar profissionalmente
por meio digital, via e-mail, para ampliar o recursos didáticos e visuais, partindo da cartilha,
DIONNE, 2007); no campo da antropologia e educação
acesso ao manual e o universo de pessoas que em projetos editoriais como este. onde tais recursos devem ser explorados ao máximo.
popular (MORIN, 2004; BRANDÃO e STECK, 2006); na
análise institucional (LOURAU, 1993; BARBIER, 2002); potencialmente poderiam contribuir para a avaliação j) Estrutura e estilo de texto acessível ao
na assistência social e saúde mental com crianças e
do material. Em todos os eventos em que o tema vem público-alvo do projeto, com níveis crescentes
adolescentes (CASTRO e BESSET, 2008) e no próprio
campo da avaliação de serviços de saúde mental sendo discutido pela equipe, fazemos uma lista de de complexidade e aprofundamento histórico,
(PINHEIRO et al., 2007; CAMPOS et al., 2008). endereços de e-mails das pessoas interessadas em teórico-conceitual e operativo:

102 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 103
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

5) Considerações finais no ativismo e na gestão coletiva que levará à frente MINAYO, M. C. S. et al. (org.). Avaliação por developing community mental health services in
seus projetos. triangulação de métodos. Rio de Janeiro: Brazil, 1978-1989. PhD thesis, London School of
FIOCRUZ, 2005. Economics, 1992.
Para nós, membros da equipe deste projeto, que Este pequeno texto visou tais objetivos, e temos o
maior interesse em receber críticas, comentários MORIN, A. Pesquisa-ação integral e sistêmica. Rio VASCONCELOS, E. M. Avaliação de Serviços no
visamos construir projetos de atenção psicossocial
e sugestões, e para isso pedimos que sejam de Janeiro: DP&A, 2004. Contexto da Desinstitucionalização psiquiátrica:
que buscam auscultar ao máximo os interesses
encaminhados aos contatos do Projeto Transversões. revisão de metodologias e estratégias de pesquisa,
históricos das classes populares, e que possam OLIVEIRA, G. O. Ensaios clínicos: princípios e prática.
in Jornal Bras. Psiquiatria 44 (4): 169-197, Rio de
ter a maior capacidade de difusão, aprendizagem Brasília: ANVISA, 2006.
Janeiro, Instituto de Psiquiatria da UFRJ, 1995.
e gestão coletiva entre os interessados, seria PINHEIRO, R. et al. (org.). Desinstitucionalização
Referências
impossível publicar este manual sem explicitar os VASCONCELOS, E. M. (org.). “Transversões” –
em saúde mental: contribuições para estudos
valores que orientaram e o “como” construímos esta BAREMBLITT, G. (org.). Grupos: teoria e técnica. Rio Saúde Mental, Desinstitucionalização e Abordagens
avaliativos. Rio de Janeiro: CEPESC – IMES/UERJ
metodologia e este manual. Além disso, faz parte de Janeiro: Graal, 1982. Psicossociais – Periódicos de Pesquisa do Programa
– ABRASCO, 2007.
de nosso arsenal teórico, neste caso inspirado no de Pós-Graduação da ESS-UFRJ – 1 (1). Rio de Janeiro:
BARRETO, A. Terapia comunitária passo a passo. REIS, T. R. “Fazer em grupo o que não posso fazer
movimento institucionalista (BAREMBLITT, 1992; UFRJ, 1999.
Fortaleza: Gráfica LCR, 2005. sozinho”: indivíduo, grupo e identidade social em
VASCONCELOS, 2008a) e em nossos fundamentos VASCONCELOS, E. M. (org.). Saúde mental e
BRANDÃO, C. R.; STECK, D. R. (org.). Pesquisa Alcoólicos Anônimos. Tese de doutoramento em
epistemológicos (VASCONCELOS, 2002), explicitar serviço social: o desafio da subjetividade e da
participante: o saber da partilha. Aparecida (SP): Serviço Social, ESS/UFRJ, 2007.
sempre os atravessamentos e a nossa implicação interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2000.
Ideias e Letras, 2006. ROSA, L. Transtorno mental e o cuidado na família.
com o conhecimento que produzimos. Assim,
VASCONCELOS, E. M. Complexidade e pesquisa
devemos colocá-los também em análise e discussão, CAMPOS, R. O. et al. (org.). Pesquisa avaliativa em São Paulo: Cortez, 2003.
interdisciplinar. Petrópolis: Vozes, 2002.
no momento em que apresentamos os resultados saúde mental: desenho participativo e efeitos de ROSA, L. A família como usuário de serviços e como
objetivos de nosso trabalho. narratividade. São Paulo: Hucitec, 2008. VASCONCELOS, E. M. O poder que brota da dor e
sujeito político no processo de reforma psiquiátrica.
da opressão: empowerment, sua história, teorias e
Da mesma forma, consideramos que a metodologia CASTRO, L. R.; BESSET, V. L. (orgs.). Pesquisa- In: VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens
estratégias. São Paulo: Paulus, 2003.
que estamos propondo neste manual “não tem psicossociais, vol. III: perspectivas para o serviço
intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro:
social. São Paulo: Hucitec, 2009. VASCONCELOS, E. M. Structural issues underpinning
dono”, ou, melhor, é fruto de um processo coletivo NAU/FAPERJ, 2008.
mental health care and psychosocial approaches
cujos principais autores devem ser os ativistas do Silva, M. O. S. Refletindo a pesquisa participante.
DEMO, P. Pesquisa participante: saber juntos e in developing countries: the Brazilian case. In:
movimento antimanicomial, particularmente as São Paulo: Cortez, 1991.
intervir juntos. Brasília: Líber, 2004. RAMON, S.; WILLIANS, J. E. (ed.). Mental health
lideranças de usuários e familiares, alvo principal SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE / CONSELHO NACIONAL
DUARTE, L. F. D. Da vida “nervosa” da classe at the crossroads: the promise of psychosocial
deste projeto. Assim, é fundamental que todos os DE SAÚDE – Relatório Final do IV Conferência
trabalhadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. approach. Hants (UK): Ashgate, 2005.
elementos necessários para a apropriação desta Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. Brasília:
metodologia devam ser claramente explicitados, FONSECA, M. L. Sofrimento difuso nas classes VASCONCELOS, E. M. Dispositivos associativos
Ministério da Saúde, 2010.
para que ela possa ser modificada, transformada de luta e empoderamento de usuários, familiares
populares no Brasil, uma revisão da perspectiva do
THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São e trabalhadores em saúde mental no Brasil. In:
e aperfeiçoada livremente pelos diferentes atores nervoso. In: VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens Paulo: Cortez, 1992. Vivência nº 32, Natal, Ed. UFRN, 2007.
sociais do campo. Isso significa também que não psicossociais, vol. II: reforma psiquiátrica e saúde
temos receio de receber críticas construtivas mental na ótica da cultura e das lutas populares. Thiollent, M. Pesquisa-ação nas organizações. VASCONCELOS, E. M. Abordagens psicossociais,
e mesmo contestações diretas, e neste caso São Paulo: Atlas, 1997. vol. I: história, teoria e prática no campo. São Paulo:
São Paulo: Hucitec, 2008.
me lembro dos poderosos adversários do atual VASCONCELOS, E. M. Políticas sociais no capitalismo Hucitec, 2008a.
HULLEY, S. B. et al. Delineando a pesquisa clínica:
processo de reforma psiquiátrica em curso no país, periférico. In: Serviço Social e Sociedade 29. São
uma abordagem epidemiológica. Porto Alegre:
pois acreditamos que qualquer movimento social Paulo: Cortez, 1989.
Artmed, 2003.
com pretensões emancipatórias deve ter em suas
VASCONCELOS, E. M. The alienists of the poor:
produções este caráter público e aberto, acreditando

104 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 105
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens de Saúde Mental – Intersetorial, em curso no


psicossociais, vol. II: reforma psiquiátrica e saúde país, em suas etapas municipal/regional, estadual
mental na ótica da cultura e das lutas populares. e nacional, sendo que esta última está marcada
São Paulo: Hucitec, 2008. para os últimos dias de junho de 2010. No temário
VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens geral da conferência, o tópico da organização e
psicossociais, vol. III: perspectivas para o serviço mobilização dos usuários e familiares constitui um
social. São Paulo: Hucitec, 2009. dos subeixos do Eixo Temático 3 (Direitos Humanos
e Cidadania como Desafio Ético e Intersetorial), e,
VASCONCELOS, E. M. Karl Marx e a subjetividade
assim, vem sendo objeto de discussões nos vários
humana. 3 vols. São Paulo: Hucitec, 2010a.
grupos de trabalho em conferências em todo o país.
VASCONCELOS, E. M. (org.). Desafios políticos da
Assim, este texto visa sistematizar, na medida do
reforma psiquiátrica brasileira. São Paulo: Hucitec,
acesso possível, as principais ideias e propostas
2010b.
sobre o assunto discutidas no âmbito dos dois
VASCONCELOS, E. M.; FURTADO, T. (org.). Saúde ramos do movimento antimanicomial brasileiro
mental e desinstitucionalização: reinventando (Movimento Nacional de Luta Antimanicomial
serviços. Cadernos do IPUB nº 7, Rio de Janeiro, Texto 3
– MNLA e Rede Nacional Internúcleos da Luta
Instituto de Psiquiatria da UFRJ, 1997.
Antimanicomial – RENILA), bem como nas esparsas
VASCONCELOS, E. M. et al. (org.). Reinventando a Quadro atual da organização referências bibliográficas acadêmicas, citadas no
vida: narrativas de recuperação e convivência com e agenda política dos usuários decorrer do trabalho50, e na iniciativa governamental
o transtorno mental. São Paulo/Rio de Janeiro: e familiares em saúde mental neste campo. Este trabalho constitui um dos textos
Hucitec/EncantArte, 2006. no Brasil de apoio escritos a convite da Comissão
VASCONCELOS, E. M.; RODRIGUES, J. Organização Organizadora, para subsidiar as etapas finais
Eduardo Mourão Vasconcelos
de usuários e familiares em saúde mental no Brasil. deste processo, e portanto, foi montado dentro de
Jeferson Rodrigues48
In: VASCONCELOS, E. M. (org.). Desafios políticos da um cronograma apertado. Os relatórios de cada uma
reforma psiquiátrica brasileira. São Paulo: Hucitec, das fases da conferência em todo o país certamente
2010. constituirão um material muito rico a este respeito,

WEINGARTEN, Richard. O movimento de usuários 1) Apresentação


em saúde mental nos Estados Unidos: história, 50 As seguintes fontes documentais foram utilizadas
O presente texto49 se integra ao esforço e às inúmeras
processos de ajuda e suportes mútuos e militância. aqui: as propostas aprovadas em encontros nacionais do
iniciativas de realização da IV Conferência Nacional MNLA (2001, 2005 e 2009a), RENILA (2004, 2007), em
Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia e Projeto
Encontros Nacionais de Usuários e Familiares do MNLA
Transversões, 2001.
(MNLA, 2003 e 2009b) e os relatórios de duas reuniões do
YIN, R. Estudo de caso: planejamento e métodos. 48 Enfermeiro, doutorando pelo PEN/UFSC, militante Grupo de Trabalho de Demandas de Usuários e Familiares
do movimento antimanicomial no Brasil e membro da (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009a e 2009b). É importante
Porto Alegre: Bookman, 2001.
Comissão Organizadora da IV Conferência Nacional de informar que os dois autores deste texto participam
Saúde Mental – Intersetorial representante da ABEn do MNLA, mas há uma confluência significativa entre
(Associação Brasileira de Enfermagem). as principais reivindicações mais gerais para a política
Site na internet citado de saúde mental nos dois movimentos. Contudo, as
49 O presente texto foi publicado originalmente na diferenças se acentuam particularmente nas análises
www.ifb.org.br seguinte obra: VASCONCELOS, E. M. (org.). Desafios sobre o movimento (item 2 a seguir) e nas propostas de
políticos da reforma psiquiátrica brasileira. São Paulo: fortalecimento da organização dos usuários e familiares
Hucitec, 2010. na base, tema da última seção deste curto ensaio.

106 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 107
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

a ser devidamente sistematizado no futuro, mas no quase simbólica (2 a 5 reais), apoiando a reforma e política. Uma fonte clássica e eventual de seus pares, para que possam se recuperar e retomar
atual momento, em meados de maio, seu acesso é psiquiátrica, expressando sua missão em termos recursos para as atividades são as coordenações mais tarde a militância política. Assim, ainda que
ainda pontual ou impossível, e, naturalmente, não da defesa dos direitos do usuário e familiar, e de saúde mental municipais, estaduais e nacional as atividades públicas regulares em torno do 18 de
foram utilizados para a montagem do presente texto. desenvolvendo pelo menos alguma oficina, projeto comprometidas com a reforma. Entretanto, como maio, ou os eventuais momentos de mobilização
ou atividade de trabalho e geração de renda. sabemos, para qualquer movimento social popular, razoavelmente fortes, possam dar uma primeira
a dependência contínua e regular em relação impressão de força, a fragilidade organizacional
2) Análise sucinta do quadro atual da Há vários outros tipos de associações, e em alguns
aos governos e ao Estado é consequentemente nas bases do movimento de usuários e familiares
organização de usuários e familiares no Brasil casos com uma estrutura organizativa e consciência
problemática. Outra estratégia tem sido utilizar as se mantém.
hoje política mais avançada, mas o perfil descrito acima
organizações corporativas dos profissionais, o que É fundamental lembrar que esta fragilidade
corresponde à maioria absoluta das associações
Há uma considerável escassez de pesquisas mais pode até mesmo constituir um avanço político para também aumenta o risco de sua apropriação por
existentes. Além disso, é preciso lembrar também
abrangentes a respeito da organização dos usuários as suas respectivas categorias. Contudo, do ponto atores políticos contrários a nossa estratégia de
que o número de CAPS no país que possuem uma
e familiares em saúde mental no Brasil. Certamente, de vista do movimento, pode também apresentar desinstitucionalização. Um elemento preocupante
associação de usuários e familiares constitui uma
temos algumas dissertações, teses e artigos vários riscos, particularmente se for centralizada do quadro político atual no campo da saúde
fração muito pequena do total geral destes serviços.
científicos acerca do movimento antimanicomial em apenas poucas categorias profissionais. mental tem sido o movimento de reorganização da
Hoje, em maio de 2010, temos mais de 1.500 CAPS
como um todo, estudos sobre projetos e iniciativas Isso gera dependência em relação aos recursos psiquiatria biomédica, com campanha já aberta
no Brasil, e o cadastro de associações criado pela
locais de usuários e familiares, trabalhos de coleta de seus aparelhos institucionais, centralização contra a reforma psiquiátrica na grande imprensa,
Coordenação Nacional de Saúde Mental em 2009
de depoimentos e narrativas pessoais de lideranças, política nos principais detentores de cargos e no Congresso (Câmara Federal e Senado) e no
recebeu apenas cerca de 120 inscrições.
ou ainda estudos de políticas municipais nas quais lideranças, descolamento das bases do movimento Ministério Público. Já tivemos no passado o
há inserção de algumas destas organizações. Em tese, este perfil se coaduna com países cuja e continuidade da concentração do poder nas mãos exemplo de uma associação de familiares de
Contudo, uma tentativa recente de investigar e cultura é ainda hegemonicamente patrimonialista dos profissionais. alcance nacional (AFDM) que foi financiada pela
traçar o perfil, a tipologia das formas de organização e hierárquica, ou seja, que estimula a dependência Federação de Hospitais Psiquiátricos, e que fez
Neste contexto, podemos ter casos de lideranças
dos usuários e familiares no país e sua comparação econômica, política e até mesmo pessoal às aberta campanha contra nossas propostas. A
extremamente capazes e que se politizaram no
internacional (VASCONCELOS, 2008), mostrou não lideranças e autoridades sociais. Há que considerar perspectiva dos familiares é bastante sensível
processo, mas a tendência é de se autonomizarem
só a inexistência de estudos abrangentes, como também que a maioria absoluta dos usuários dos a este tipo de apropriação, e a fragilidade
do cotidiano das associações de usuários e
também a enorme dificuldade de coleta de dados serviços de atenção psicossocial é oriunda dos organizacional e financeira das associações
familiares, passando à militância social e política
em associações e projetos de caráter muito local, setores mais empobrecidos, com menor nível de aumenta ainda mais este risco.
mais ampla nos conselhos de políticas sociais e
e cuja estrutura organizativa se mostrou muito escolaridade formal, com pouco acesso a bens
de saúde, ou na própria militância antimanicomial. A nosso ver, reconhecer a fragilidade da
informal, frágil ou volátil. e serviços culturais, e com poucos recursos para
Entretanto, estas lideranças não têm mais tempo, organização e a ambiguidade política do
pagar até mesmo o transporte público para a
Entre os vários achados desta pesquisa, realizada recursos ou paciência de acompanhar o processo segmento dos familiares no contexto da reforma
presença regular nos serviços ou em atividades
entre 2004 e 2007, destacou-se o seguinte perfil na base, deixando a associação com os padrões psiquiátrica não implica ignorá-los como atores
organizativas. Assim, no campo da saúde mental
mais comum: associação mista (usuários, organizacionais de fragilidade indicados acima. políticos ou desconhecer suas necessidades
brasileiro, as iniciativas são geralmente induzidas
familiares, e técnicos), fundada depois de 1992, Além disso, o engajamento e a participação política específicas. Processos de reforma que não fazem
por profissionais a partir das discussões e da cultura
criada a partir de e ligada a um CAPS, fortemente nas esferas institucionais apresentam enormes este reconhecimento e não proveem o devido
política gerada dentro dos movimentos de reforma
dependentes dele e de seus profissionais, com desafios em termos de conflito, competição, ritmo suporte aos familiares podem gerar privatização
psiquiátrica e antimanicomial.
um funcionamento central baseado em plantão de militância e cooptação política, em certas do cuidado e da desassistência, em um contexto
ou atendimento regular por técnico do CAPS e Os resultados da pesquisa permitem então concluir fases incompatíveis com os limites existenciais de limitações cada vez maiores para sua produção
membro da associação, muitas vezes um militante que atualmente um dos problemas principais das e psíquicos de usuários e familiares da saúde no âmbito da família, dada a sua fragmentação
do movimento antimanicomial ou de reforma associações de usuários e familiares e do próprio mental. Por isso, mesmo para estas lideranças atual, a participação das mulheres no mercado de
psiquiátrica, com uma reunião quinzenal ou movimento antimanicomial está em suas bases mais avançadas, é necessário pensar espaços de trabalho e a ainda forte resistência dos homens
mensal, cobrando uma contribuição financeira de sustentação econômica, organizacional acolhimento e elaboração na retaguarda, junto a em também se responsabilizar por ele, processos

108 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 109
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

estes que têm pouca visibilidade social. Em outras 3) As principais reivindicações e propostas do relação ao perfil das propostas mais gerais para a - aceleração dos processos de desinstitucionalização
palavras, o tema do cuidado na família está movimento de usuários e familiares no Brasil política de saúde mental no país. Os principais eixos de hospitais de longa permanência, com medidas
intrinsecamente ligado às lutas femininas, contra recente de reivindicações são: imediatas para coibir ações degradantes e maus
as formas mais sutis de opressão de gênero! - efetivação imediata da rede substitutiva de tratos;
3.1) Reivindicações gerais em relação à política de
Assim, sem a devida atenção aos familiares na saúde mental mais ampla no país: atenção em saúde mental: aqui, a ênfase principal - promoção de eventos e ações para garantia dos
rede de saúde mental, estes ficam cada vez mais está na ampliação do número de CAPS III e CAPS direitos das pessoas com transtorno mental no
disponíveis para serem capturados por posturas e III ad, pela sua capacidade de lidar com crises e sistema prisional, visando também a revisão de toda
forças políticas contrárias à reforma psiquiátrica O movimento de usuários e familiares e as duas urgências, mas também são indicados os serviços a legislação penal neste campo;
(ROSA, 2009). principais tendências do movimento antimanicomial residenciais e demais serviços de saúde mental;
- implantação de política conjunta com o Ministério
(MNLA e RENILA) vêm regularmente produzindo
E, finalmente, também preocupa a atuação da - ampliação dos projetos de trabalho e renda, da Cultura para iniciativas em arte e cultura para as
documentos e encaminhando reivindicações às
indústria farmacêutica. Um estudo da ONG cursos profissionalizantes; iniciativas de pessoas com transtorno mental, e particularmente
agências pelas políticas de saúde mental nas três
norte-americana Essential Action, dedicada à empreendedorismo, cooperativismo e economia com a participação das associações de usuários e
esferas de governo. No ano de 2009, se destacaram
saúde pública, resenhado pela Folha de S. Paulo solidária; bolsa-trabalho; trabalho protegido etc.; familiares;
três iniciativas principais neste campo:
(18/5/2008), indica que até então pelo menos
- ampliação do Programa de Volta para Casa, com - revisão dos critérios e garantia do acesso ao
nove entidades brasileiras de defesa dos direitos
revisão dos mecanismos de inclusão, dos valores da Benefício de Prestação Continuada (BPC), sem a
de usuários da saúde (hemofílicos, diabéticos e - a Marcha dos Usuários, convocada originalmente bolsa e de suas formas de financiamento; exigência de curatela.
usuários com câncer e hepatite) são financiadas pela RENILA, que aconteceu em Brasília em setembro
por fabricantes de remédios. As entidades - regulamentação e financiamento próprio para os
de 2009, com participação aproximada de mais de
passam então a defender os interesses do Centros de Convivência;
2.300 pessoas de todo o país, formalizando junto a A discussão destas reivindicações e propostas
setor farmacêutico, realizando campanhas pela diferentes órgãos do governo uma pauta importante - não financiamento de ECT e outras intervenções dentro do movimento de usuários e familiares
proteção de patentes de remédios ou contra os de reivindicações e propostas, documentada em invasivas pelo SUS; cumpre um papel importante de crescimento da
genéricos, pela compra estatal de remédios caros publicação recente (CFP e RENILA, 2010). Este foi - garantia de provisão regular e adequada de consciência política, de preparar o movimento
ou estimulando usuários a entrar na justiça para sem dúvida alguma o principal evento político no medicação psiquiátrica pelo SUS a todos os usuários para o exercício do controle social nos conselhos e
adquirir medicamentos novos e muito caros. ano de 2009 neste campo, levando à conquista final de serviços e pessoas com transtorno mental; conferências, bem como de mobilizar para as lutas
É importante relembrar que esta análise não é da realização da IV CNSM-I; concretas por sua conquista perante a sociedade e
- transporte coletivo gratuito para as pessoas com
consensual entre as duas alas do movimento as várias instâncias do aparelho de Estado.
- a realização do VII Encontro Nacional de Usuários transtorno mental;
antimanicomial, e tem constituído uma e Familiares do MNLA, que aconteceu em São
- criação de comissões de saúde mental em todos
preocupação maior entre as lideranças do MNLA. Bernardo do Campo, em 2009, que produziu um
os conselhos estaduais e municipais de saúde, 3.2) Reivindicações e propostas para o
Estas têm enfatizado que, neste contexto, torna- relatório final (MNLA, 2009a);
conforme a Lei 8.142, que garante o controle social empoderamento e fortalecimento organizacional do
se fundamental para a continuidade da luta pela
- a realização do IX Encontro do Movimento Nacional pela participação da sociedade civil; movimento de usuários e familiares em suas bases
reforma psiquiátrica tentar investir diretamente
da Luta Antimanicomial, também em São Bernardo,
no fortalecimento da organização dos usuários e - ação conjunta da Secretaria Especial de Direitos
em 2009, que também produziu um relatório final
familiares pela base no país. Na seção seguinte, Humanos e Poder Judiciário para revisão das Tendo em vista o enfrentamento do quadro de
(MNLA, 2009b).
passaremos ao exame das reivindicações e interdições judiciais de pessoas com transtorno fragilidade da organização de usuários e familiares
propostas pelo movimento como um todo, tanto mental; no Brasil, descrito na seção 2, há um conjunto de
para a política de saúde mental em geral como Embora o documento da Marcha dos Usuários - abertura de projetos e serviços gratuitos de defesa propostas e reivindicações que vem sendo levantado
para o seu fortalecimento organizacional em constitua a pauta mais abrangente e sistemática dos direitos dos usuários e familiares, com equipes nos últimos anos. Como vimos anteriormente,
suas bases, para poder enfrentar a fragilidade entre as três fontes, podemos dizer que há uma interdisciplinares e particularmente com assistência neste campo não há consenso entre as duas alas
identificada acima. forte confluência entre os dois movimentos em jurídica especializada no campo da saúde mental; do movimento antimanicomial. Este foco particular

110 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 111
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

sobre estratégias adequadas de empoderamento projetos desenvolvidos pelas associações, por para escuta de demandas e defesa dos direitos decisões formais na esfera do controle social e da
e fortalecimento da organização nas bases do todos os atores do campo, bem como de estímulo à de usuários e familiares, com encaminhamentos gestão do programas de saúde mental. Esta lógica
movimento de usuários e familiares constitui uma criação de novas associações: monitorados pelas associações de usuários e levou à reivindicação por parte do MNLA de um
preocupação mais específica do MNLA51, pelo familiares, pelas assembleias de usuários dentro grupo de trabalho junto ao Ministério da Saúde em
- criação de equipes específicas para produção de
menos ao se considerarem os documentos e a dos serviços de atenção psicossocial e pelos 2008/2009, e que agora acreditamos ser necessário
material de educação popular (cartilhas, vídeos,
literatura a que tivemos acesso. Neste campo, as conselhos distritais de saúde. garantir a sua institucionalidade, na seguinte
filmes, revistas etc.) no campo da saúde mental;
principais propostas são: proposta adicional:
- implantação de grupos de ajuda e suporte mútuos
facilitados por lideranças de usuários em processos Propostas inovadoras como estas não são
- ampliação e fortalecimento do Cadastro Nacional mais avançados de recuperação e de familiares com reivindicações que se fazem ao Estado para que - oficialização do Grupo de Trabalho de Demandas
de Associações de Usuários e Familiares em mais experiência, de forma separada para ajuda sejam implementadas automaticamente por ele, de Usuários e Familiares, ligado à Coordenação
Saúde Mental, de acesso público, para facilitar o mútua e conjunta no suporte mútuo (VASCONCELOS como a maioria daquelas listadas na seção anterior, Nacional de Saúde Mental do Ministério da
intercâmbio dentro do movimento, e como porta et al., 2010), com esquemas de trabalho remunerado que têm formatos já razoavelmente consolidados no Saúde, mas com representação plural de todas as
de entrada para uma política de apoio sistemático de “oficineiro em saúde mental”, com capacitação e país, a partir das primeiras experiências iniciadas na tendências do movimento de usuários e familiares e
a estas associações, por todos os atores do campo supervisão específica, para atuar principalmente na década de 1980. Ao contrário, várias das propostas da CISM (Comissão Intersetorial de Saúde Mental)
da saúde mental, incluindo as propostas indicadas comunidade e na rede de atenção básica em saúde; acima têm inspiração em projetos bem-sucedidos do Conselho Nacional de Saúde, como uma instância
a seguir; em outros países, outras nascem de projetos mais de debate e amadurecimento das propostas listadas
- experimentação e implantação de dispositivos
- programa de inclusão digital para usuários e isolados em locais específicos do país, e requerem acima, para mais tarde poderem ser encaminhadas
variados de apoio a familiares na rede, de forma
familiares nos CAPS e para suas associações, com ser mais bem conhecidas, experimentadas e com mais segurança ao controle social e às
orgânica com as associações de usuários e
provisão de um computador completo em cada adaptadas para o contexto brasileiro como um todo, coordenações executivas da área nas três esferas
familiares;
CAPS com acesso gratuito à internet e a cursos de com formas de fomento e avaliação orgânicas aos de governo, como política para todo o país.
- experimentação e difusão de metodologias de
informática, e estímulo ao uso de articulações via projetos-piloto. Um bom exemplo de uma área da
gestão autônoma da medicação psiquiátrica para
teleconferências, grupos de discussão, e-mails etc.; saúde coletiva que se desenvolve desta forma no
usuários, com base em experiência bem-sucedida 3.3) Outras reivindicações e propostas a partir de
Brasil é a da Educação Popular e Saúde (MINISTÉRIO
- programa de estímulo a pesquisas sobre a realizada no Canadá, no sentido de os capacitarem espaços específicos:
DA SAÚDE, 2007; VASCONCELOS, Eymard M., 2009).
realidade do movimento de usuários e familiares; para identificar melhor os seus efeitos desejáveis
Além disso, a história da organização popular no
- criação de fundos públicos para financiamento de e indesejáveis, para discuti-los nas consultas com
Brasil e nos países periféricos mostra que entre os - A partir dos CAPS ou de serviços de saúde e/ou
pequenos projetos autônomos de associações de os psiquiatras, melhorando o monitoramento da
fatores primordiais para que os movimentos sociais assistência social: que a concepção de clínica seja
usuários e familiares, com seleção pública para os medicação e seus efeitos colaterais;
de base se mantenham ativos estão o intercâmbio eminentemente política e psicossocial; que os CAPS
projetos mais consistentes, e premiação periódica - promoção de cursos de capacitação de conselheiros nacional e internacional, bem como o fomento tenham assembleias gerais e que seja estimulada a
para os melhores projetos executados; em saúde e saúde mental, incluindo itens de efetivo à experimentação para projetos inovadores participação de usuários, familiares e comunidade
- política ativa de comunicação regular, de educação e formação política; em todo o país, com forte participação popular. democraticamente; oficinas, cursos e grupos de
divulgação e apoio estratégico às ações e aos - criação e implementação gradual na rede de saúde Assim, as propostas indicadas acima precisam ser formação política; estímulo à participação em
mental do “Plano de Crise”, pelo qual o usuário mais bem conhecidas, financiadas e experimentadas instância de controle social intersetorial na cidade;
estabelece as diretrizes e medidas necessárias para em projetos-piloto, avaliadas e legitimadas, para encontros entre usuários e familiares das redes
51 É importante lembrar que, como membros do MNLA,
o seu cuidado em períodos de crise aguda, conforme garantir as estratégias mais adequadas à realidade territoriais.
não há aqui qualquer pretensão de exclusividade por
parte de nosso movimento em relação a estas propostas. a experiência internacional já consolidada em países brasileira, e para assegurar a efetiva participação, - A partir das associações: clareza de que esta
Pelo contrário, gostaríamos muito de que as diversas alas como Holanda, Inglaterra, Estados Unidos etc.; empoderamento e autonomização de usuários e ação coletiva potencializa e organiza a soma das
do movimento antimanicomial e de reforma psiquiátrica
conhecessem melhor, discutissem e desenvolvessem - abertura de ouvidorias em saúde mental, nas familiares. À medida que forem sendo testados, ações individuais no sentido “juntos podemos
iniciativas nesta perspectiva ou similares. áreas programáticas e serviços mais complexos, poderão ser difundidos com mais segurança, em mais”; parcerias intersetoriais para criar estatuto

112 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 113
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

da entidade e prestação de contas; articulação com Este campo é amplo, cheios de possibilidades, Referências RENILA. Relatório Final do Encontro Nacional da
OAB, Defensorias Públicas e serviços universitários com linhas de ação e agendas diferenciadas para Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial.
de escritório- modelo montados por faculdades de todas as perspectivas de luta e movimentos sociais Goiânia, 2007.
direito para ampliar o entendimento e a montagem do campo da reforma psiquiátrica. Ações mais CFP e RENILA. IV Conferência Nacional de Saúde
ROSA, L. A família como usuário de serviços e como
de serviços de defesa de direitos sensíveis às militantes, de luta e de mobilização, complementam- Mental – Intersetorial. Por uma IV Conferência
sujeito político no processo de reforma psiquiátrica.
particularidade da saúde mental; treinamento para se e se integram com o fortalecimento das Antimanicomial: contribuições dos usuários.
In: VASCONCELOS, E. M. Abordagens psicossociais,
elaborar e administrar projetos que possibilitem organizações pela base e atuantes no cotidiano da Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2010.
vol. III: perspectivas para o serviço social. São Paulo:
renda; contribuição para transformação do estigma e rede, nos curto, médio e longo prazos, elevando o Ministério da Saúde. Caderno de educação popular Hucitec, 2009.
do preconceito individual e coletivo; formação política patamar de participação para novas mobilizações e saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2007.
e atualizações em encontros para a participação social VASCONCELOS, E. M. Abordagens psicossociais,
no futuro, e vice-versa. Em certas ocasiões, Ministério da Saúde. Relatório da I Reunião do Grupo
e militância política e social ampla. vol. II: reforma psiquiátrica e saúde mental na ótica
alguns atores do campo expressaram o receio de Trabalho de Demandas de Usuários e Familiares. da cultura e das lutas populares. São Paulo: Hucitec,
- A partir dos núcleos e movimentos sociais: de que o desenvolvimento de uma destas linhas Brasília: Coordenação Nacional de Saúde Mental, 2008.
qualificação dos integrantes dos movimentos com pudesse ser incompatível ou competir com a Álcool e Outras Drogas, Ministério da Saúde, 2009ª.
investimentos em lideranças críticas, reflexivas e outra. Em outros momentos, outros companheiros VASCONCELOS, E. M. et al. Manual de ajuda e suporte
mostraram reservas em relação a esta perspectiva Ministério da Saúde. Relatório da II Reunião do mútuos em saúde mental. Rio de Janeiro: Projeto
propositivas e que consigam organizar e estabelecer
Grupo de Trabalho de Demandas de Usuários e Transversões, ESS-UFRJ, 2010. Disponível a pedidos
relações com sua base; incentivo a diferentes formas de empoderamento e organização pela base, como
Familiares. Brasília: Coordenação Nacional de pelo e-mail emvasconcelos@skydome.com.br.
organizativas novas e autônomas para o movimento se ela pudesse competir com as atribuições dos
Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, Ministério
de luta antimanicomial; formação/educação política; profissionais e gestores, principais responsáveis VASCONCELOS, Eymard M. Para além do controle
da Saúde, 2009b.
planejamento e agendas de lutas com pautas pela assistência em saúde mental. social: a insistência dos movimentos sociais em
prioritárias conforme o momento histórico, político MNLA. Relatório Final do V Encontro Nacional do investir na redefinição das práticas em saúde. In:
Nossa expectativa é de que este texto sirva para
e social; diálogo mútuo entre os movimentos sociais Movimento da Luta Antimanicomial. Rio de Janeiro, FLEURY, S; LOBATO, L. V. C. (org.). Participação,
esclarecer e subsidiar o debate destas e outras
de luta antimanicomial para estabelecer estratégias 2001. democracia e saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2009.
questões adicionais, mostrando a importância
de participação e representação em relação ao de fomentar a organização e a luta dos usuários MNLA. Relatório Final do VII Encontro Nacional de
Estado e à sociedade; ampliar a participação em e familiares. A nossa história recente mostra que Usuários e Familiares do Movimento Nacional da
fóruns nacionais e internacionais de movimentos em conjunturas desfavoráveis para a expansão das Luta Antimanicomial. Rio de Janeiro, 2003.
sociais, e aproximações com movimentos sociais políticas sociais universais, em que profissionais MNLA. Relatório Final do VI Encontro Nacional do
mais experientes; seminários sobre financiamento e gestores apresentam mais limites para a Movimento da Luta Antimanicomial. São Paulo,
para movimentos sociais; tornar a comunicação ação política, a organização popular pela base, 2005.
interna e externa do movimento mais ampla e combinada com momentos de grandes mobilizações
acessível e com páginas de internet; instâncias para MNLA. Relatório Final do VII Encontro Nacional do
e lutas, constitui o principal vetor para garantir o
decisões políticas emergenciais que assegurem Movimento da Luta Antimanicomial. São Bernardo
avanço da reforma psiquiátrica com um todo. Além
representatividade. do Campo, 2009a.
disso, há uma perspectiva ético-política de base,
que identifica nos atores sociais mais diretamente MNLA. Relatório Final do IX Encontro Nacional
oprimidos os principais sujeitos políticos no processo de Usuários e Familiares do Movimento Nacional
4) Considerações finais
de superação mais radical das diferentes formas de da Luta Antimanicomial. São Bernardo do Campo,
opressão. Estes postulados, a nosso ver, constituem 2009b.
Esperamos que este breve texto sirva de subsídio a razão de ser do movimento antimanicomial, desde RENILA. Relatório Final do Encontro Nacional da
efetivo para a compreensão dos desafios atuais a sua fundação, em 1987. Quem acredita nesta Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial.
da organização de usuários e familiares em saúde perspectiva, que assuma este debate como bandeira Fortaleza, 2004.
mental no Brasil e para os debates da IV CNSM-I. e instrumento de luta.

114 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 115
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

tem sido as questões relativas ao fortalecimento seus representantes no governo para gerirem dificultam esta expressão?
e ao papel dos conselhos e conferências de saúde, as políticas públicas durante o período de seus
Os conselhos e conferências de saúde têm se
bem como às lutas sociais para ampliação dos mandatos. No processo de gestão do Estado, ela já
dedicado principalmente a temas correlacionados
recursos disponíveis. A participação da população não aceita ser apenas representada pelas lideranças
à gestão e ao planejamento das políticas de saúde
em ações concretas de atenção à saúde tem políticas eleitas; quer continuar influenciando a
e não têm contemplado a articulação e o apoio às
sido discutida principalmente na perspectiva de criação e a orientação de várias iniciativas públicas.
práticas solidárias e participativas de enfrentamento
mobilização e apoio para sua implementação Os conselhos de saúde representam um grande
dos problemas de saúde na sociedade. No clima
ampliada nas comunidades nos moldes previamente avanço neste sentido. O setor saúde foi pioneiro
de embate que costuma predominar, é exigido dos
planejados pelos profissionais e gestores. Apesar de neste processo no Brasil, servindo de referência
participantes um amplo e sofisticado conhecimento
estas dimensões serem muito importantes, acredito para outros setores das políticas sociais. Em
dos meandros das instituições envolvidas para
estar sendo pouco valorizada a importância da nenhum destes outros setores se atingiu os níveis
que seus posicionamentos sejam considerados,
Texto 4 participação popular na reorientação das práticas tão amplos de mobilização e organização obtidos
dificultando muito a participação de ativistas que
cotidianas de atenção à saúde. Este texto buscará pelos conselhos de saúde. Muito ainda precisa ser
ainda não acumularam este conhecimento. Isso
refletir essencialmente sobre a importância política avançado para que estes conselhos possam cumprir
espanta a participação de outras pessoas e ajuda
Para além do controle social: e epistemológica desta dimensão da participação suas possibilidades e as expectativas da população.
a perpetuar a permanência de lideranças antigas,
a insistência dos movimentos popular e as formas como ela vem ocorrendo no Mas este não é o tema deste texto.
que vão se distanciando das bases dos movimentos
sociais em investir na Brasil, procurando ressaltar as suas possibilidades
Apesar de tantos avanços neste campo, tem sido que representam. Forma-se uma burocracia
redefinição das práticas de para a criação de um sistema de atenção à saúde mais
muito comum encontrar um forte sentimento de das organizações sociais que é muito hábil em
saúde52 integral e eficaz, menos subordinado aos interesses
incômodo e insatisfação entre muitos trabalhadores articulações políticas e em jogos institucionais
Eymard Mourão Vasconcelos53 econômicos e corporativos das empresas e grupos
sociais e lideranças populares mais envolvidos com de enfrentamento de outros participantes de
profissionais do setor saúde e mais adequado às
a construção e a ampliação da participação popular movimentos sociais que questionem seus
características e aos interesses da população.
no setor saúde. Este sentimento tem se manifestado posicionamentos. Não se encontra, no espaço
Estas iniciativas ampliam a solidariedade, a
O debate sobre a participação popular na saúde, muito nos espaços de debate do movimento de dos conselhos, um ambiente de solidariedade e
amorosidade e a autonomia das pessoas na vida
que vem ocorrendo amplamente em congressos, educadores populares do setor saúde, aglutinado de investimento na participação ampliada que
social e no enfrentamento dos problemas de saúde.
reuniões de serviço e publicações do campo da principalmente pela Rede de Educação Popular e predomina no cotidiano da maioria dos movimentos
Procurará mostrar que, apesar de pouco ressaltadas
saúde coletiva, tem estado centrado em sua Saúde54, e está correlacionado à percepção de que os populares. Foi, assim, se criando um sentimento
nas discussões no campo da saúde coletiva, as
dimensão de reorientação do planejamento e da diferentes conselhos e das diferentes conferências de cansaço e desânimo entre muitas lideranças
iniciativas populares de construção e redefinição
gestão das políticas de saúde. A ênfase principal de saúde têm possibilitado pouco espaço para populares em relação à possibilidade de influir
de práticas de saúde continuam muito presentes no
manifestação de dimensões importantes da criação de forma significativa no espaço dos conselhos e
cotidiano da vida comunitária e apontam para uma
própria do mundo popular no enfrentamento de seus das conferências de saúde. Ali, não se sentem à
dimensão de seus interesses que vem sendo pouco
problemas de saúde. Percebe-se sua importância, vontade. Muitas de suas propostas e questões não
52 O presente texto foi publicado originalmente em: discutida.
mas constata-se, ao mesmo tempo, a inadequação cabem neste espaço. Percebem que tendem a ser
Sonia Fleury e Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato A participação da população e de seus grupos deste espaço para expressão de dimensões convocados e valorizados quando os conselheiros e
(org.). Participação, Democracia e Saúde. Rio de Janeiro,
CEBES, 2009, e sua publicação neste manual foi organizados na gestão dos serviços de saúde, importantes da participação popular na saúde. Que outras lideranças mais envolvidas no controle social
devidamente autorizada pelo autor e pelos portadores de principalmente através dos conselhos e conferências dimensões são estas que não conseguem ser ali precisam ser legitimados pelo apoio de sua base.
seus direitos autorais. de saúde, representa um grande avanço no processo expressadas? Que constrangimentos ali presentes
Muitos ativistas sociais e lideranças populares
de democratização da sociedade brasileira, ajudando
53 Professor do Departamento de Promoção da Saúde e do locais percebem estes conselhos essencialmente
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade a pensar os caminhos de superação da democracia
voltados para a orientação da ação dos serviços
Federal da Paraíba (UFPB), e uma das principais lideranças representativa, conquista ainda recente na América 54 Para maiores informações sobre esta Rede, ver estatais sobre os problemas de saúde; mas para
do movimento de educação popular e/em saúde no Brasil. Latina. A sociedade não aceita mais apenas eleger os sites: http://www.redepopsaude.com.br/ e http://
br.groups.yahoo.com/group/edpopsaude a população a busca da saúde não se restringe a

116 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 117
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

ações mediadas pelo Estado, pois está também na atuação de lideranças mais aproximadas da que os trabalhos comunitários expandissem muito popular passaram a estar fortemente presentes em
estreitamente correlacionada a iniciativas e lutas dinâmica de funcionamento do SUS. Pouco se tem suas lutas políticas mais amplas, pois isso lhes daria seu cotidiano: valorização das decisões coletivas,
de reorganização da vida pessoal e social que, reparado e valorizado a outra gama, muito mais uma visibilidade que acabaria atraindo a repressão problematização em roda das dificuldades mais
muitas vezes, ela quer autônomas em relação às ampla e difusa, de movimentações e iniciativas policial. Percebia-se que as ações de saúde, importantes, participação igualitária de todos os
organizações estatais. Assim, muitos ativistas sociais voltadas para a busca da saúde. Mas esta individuais ou coletivas, podiam ter importante profissionais (do servente ao médico) nas decisões,
sociais e lideranças populares sentem que estes situação é relativamente recente. Nas décadas de significado educativo e político para a comunidade, valorização dos saberes e iniciativas populares na
espaços institucionais de participação são restritos 1970 e 1980, não foi assim. dependendo da forma como eram organizadas. Com construção de soluções, ênfase na construção de
para a amplitude de suas motivações e buscas. isso, até meados da década de 1980, era muito forte dinâmicas e ações educativas que permitam incluir
É muito compreensível que os profissionais de saúde a valorização das diferentes dinâmicas culturais e os atores sociais usualmente mais excluídos etc.
1) A centralidade das práticas comunitárias
progressistas, ligados à luta para o fortalecimento organizativas de enfrentamento dos problemas Estes elementos metodológicos marcaram muito as
solidárias de saúde nos primórdios do
do SUS, mirem para os movimentos sociais a partir locais, bem como o investimento na criação de características das práticas de saúde que surgiram
Movimento Sanitário
do local em que se encontram. Estes profissionais, práticas sanitárias baseadas no trabalho coletivo nesta época.
enfrentando inúmeras dificuldades e oposições e e solidário. Os detalhes técnicos da organização Naquele contexto social, era muito enfatizada a
preocupados em conseguir parceiros para o difícil Os primórdios do atual sistema de saúde brasileiro destas ações de saúde eram amplamente discutidos
integração dos profissionais na vida comunitária,
trabalho de qualificar e democratizar as políticas remontam às lutas do Movimento Sanitário, que não apenas pela iniciativa dos chamados “agentes chegando-se a insistir na importância dele ir ali
públicas de saúde, tendem a ver a vida popular a foi se delineando na década de 1970. Ele tinha externos”, como naquela época se denominavam
morar. Era a chamada “conversão aos pobres”,
partir do mirante institucional em que estão. O duas faces: uma do movimento de profissionais e os técnicos, intelectuais e lideranças populares que, segundo o discurso muito presente nestas
controle social das políticas de saúde passa, então, estudantes que lutavam contra a ditadura e sua vindas de outros locais, mas também pela vontade igrejas, os agentes oriundos de outras classes
a ser visto como se fosse a totalidade da luta pela política de saúde privatista e hospitalocêntrica. dos moradores envolvidos. Percebia-se o grande sociais necessitariam fazer para poderem realmente
saúde dos movimentos sociais e das redes locais Tinha também outra face popular, constituída por interesse e a mobilização das pessoas e grupos compreender a vida popular e, assim, conseguirem
de apoio mútuo. Mas não é. Existem muitas outras movimentos que se organizaram, inicialmente locais em repensar as práticas de enfrentamento estabelecer diálogos mais profundos no processo
dimensões da luta popular pela saúde que só bastante integrados às igrejas cristãs, com suas dos problemas que mais lhes incomodavam. de construção de soluções para os problemas
podem ser percebidas se há uma inserção no mundo inúmeras experiências de saúde comunitária. Estas A ditadura havia reprimido as várias organizações locais e de organização de novas formas de vida
popular não preocupada apenas com a dinamização duas faces sempre estiveram muito integradas. da sociedade civil com atuação junto às classes social. Muitos profissionais de saúde foram morar
e o aprimoramento das políticas de saúde. A ação do Muitos profissionais que lideraram a luta pela populares, mas não conseguiu reunir força política nas periferias urbanas e rurais. Outros passaram
Estado é fundamental para a saúde da população, Reforma Sanitária se formaram nestas experiências para esvaziar o trabalho social das igrejas cristãs, a conviver intensamente com o seu cotidiano
mas não é tudo. A população, com suas iniciativas de saúde comunitária das décadas de 1970 e muito legitimadas na cultura brasileira. Estas de vida. Este processo de aproximação cultural
diversificadas e autônomas, está afirmando que sua 1980. Muitos movimentos populares de saúde se igrejas passaram, então, a abrigar e proteger de muitos profissionais com o mundo popular
busca pela saúde não se restringe ao que pode ser organizaram e se expandiram pela presença de muitos ativistas sociais sem maiores ligações significou algo semelhante ao que ocorre na
fornecido pelos serviços de saúde. técnicos bastante integrados em sua dinâmica. anteriores com as mesmas. Tornaram-se, por isso, observação participante, metodologia de pesquisa
Após a criação do SUS, foi criado um amplo Durante a ditadura militar, iniciada no Brasil em as principais instituições de suporte das iniciativas da antropologia, em que se busca aproximar da
movimento de conselheiros e de ativistas sociais 1964, muitos trabalhos comunitários de saúde, de resistência política à ditadura e suas políticas compreensão dos grupos sociais pesquisados a
muito hábeis na importante tarefa de controlar a implementados com a participação de profissionais econômicas e sociais. Muitos profissionais de saúde partir de seus próprios sentimentos e lógicas. A
gestão das políticas de saúde, mas que é apenas uma de saúde, dedicaram muita energia ao processo de foram trabalhar junto às igrejas cristãs. Por isso, as aproximação intensa e a integração com a dinâmica
pequena parcela dos movimentos de solidariedade fortalecimento das redes locais de solidariedade experiências de saúde comunitária cresceram muito de vida local vão permitindo que o pesquisador
e luta pela saúde, existentes no meio popular de nas comunidades, com a discussão de problemas de integradas às práticas pastorais destas igrejas que ou o trabalhador social comece a captar estes
cada recanto da nação. Infelizmente, quase todo o saúde ali presentes e buscando criar novas práticas de se deixavam conduzir pela teologia da libertação, sentimentos e estas lógicas. Criaram-se, assim,
debate sobre a participação popular na saúde tem saúde que fossem, ao mesmo tempo, participativas em que a educação popular é a principal referência condições para que muitas ações de saúde,
se focado apenas neste importante, mas restrito, e adequadas aos interesses e peculiaridades dos teórica na orientação do trabalho social. Assim, executadas por estes profissionais fortemente
setor mais organizado dos movimentos sociais e moradores. A repressão da ditadura militar impedia muitas orientações metodológicas da educação inseridos, começassem a ser redefinidas, mesmo

118 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 119
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

que não fossem explicitamente discutidas nos Foucault. Ele criticou as análises tradicionais Muitas práticas, que hoje marcam as características e educativo voltadas para a população. Mas não
grupos comunitários. da esquerda sobre o poder, na medida em que de funcionamento dos serviços brasileiros de tinha como não ser assim, pois era urgente a
se centram basicamente nos grandes aparelhos atenção primária à saúde, foram delineadas nas reestruturação da vida política nacional. E, nesse
Experiências de saúde comunitária, alternativas à
estatais e na burguesia. O poder seria algo mais experiências alternativas de saúde comunitária sentido, os movimentos populares, ainda bastante
forma dominante de organização da assistência à
difuso. O poder funciona e se exerce em rede. que se multiplicaram a partir da década de 1970. recentes, tiveram um papel fundamental e inovador
saúde, espalharam-se por toda a nação que passaram
Nunca está localizado aqui ou ali, nem está só Entre estas práticas podemos citar a valorização no alargamento das formas tradicionais de se
a ser articuladas pelo MOPS – Movimento Popular
nas mãos de alguns. Não é a dominação global da ação educativa de agentes comunitários de fazer política, antes, muito centradas no partido
de Saúde – na década de 1980. Nos seus encontros
que se divide e repercute, de cima para baixo, no saúde da própria comunidade, formas grupais de político e na ação de personalidades da aristocracia
locais, regionais e nacionais, era impressionante
tecido social. A dominação geral pode funcionar enfrentamento de problemas de saúde específicos econômica e política. Eles possibilitaram a
o entusiasmo com que se discutiam tanto as suas
porque se sustenta em micropoderes, com relativa (grupos de hipertensos, diabéticos, gestantes etc.), multiplicação dos atores no jogo político e a
lutas por mais recursos sanitários e pelo direito
autonomia, que acontecem a partir de múltiplos ênfase na construção de ações de saúde integradas diversificação das formas de ação organizada no
de controlar seu funcionamento, como também
atores sociais. Para se entender o poder é preciso aos movimentos sociais locais, conselhos locais de interior do Estado e no mundo da produção. Foram
a criação de novas práticas técnicas e sociais de saúde buscando se estruturar de forma inclusiva marcantes na explicitação do caráter multifacetado
buscar perceber as táticas e técnicas de dominação
enfrentamento de problemas específicos de saúde. e participativa, envolvimento da equipe de saúde da realidade social e, consequentemente, da luta
no detalhe da vida social e procurar compreender
A luta política por mais serviços e pelo seu controle com lutas políticas locais, gestão do trabalho dos anticapitalista. Fizeram emergir o desafio e a utopia
como os diversificados mecanismos de poder são
social era integrada e apoiada na mobilização profissionais por meio de rodas de conversa, estudo de se construir uma nova hegemonia política através
utilizados, transformados e ampliados pelas formas
popular despertada por ações e práticas de saúde e negociação que inclui todos os membros da equipe, da intervenção direta das massas, trazendo para a
mais gerais de dominação. O poder, para se exercer,
solidárias, participativas e tornadas adequadas às valorização de dimensões emocionais, artísticas arena política a diversidade e o cotidiano da vida
precisa produzir, organizar e colocar em circulação
peculiaridades locais. A palavra de ordem do MOPS e espirituais nos grupos, integração com práticas das classes populares (EVERS, 1984).
saberes que o tornem legítimo. As práticas técnicas
por muitos anos, “saúde, uma conquista popular”, e saberes populares etc. Sanitaristas de outros
presentes nas instituições foram sendo estruturadas À medida que as forças repressivas da ditadura
não valorizava apenas a necessidade de se países, com frequência, reconhecem no SUS um
a partir de saberes marcados pelos interesses dos militar foram sendo controladas, vão se estruturando
conquistar mais serviços, mais recursos sanitários modo de atuação que diferencia e inova em relação
grupos hegemônicos e contribuem para os legitimar novos partidos políticos. Surgem também novos
e deles participar na gestão. Significava também a ao que é praticado em países mais avançados, que
na medida em que lhes emprestam uma aparência sindicatos de trabalhadores. Velhos sindicatos se
valorização da redefinição das práticas de saúde a são considerados referências internacionais para a
meramente racional. Elas induzem na população reorganizam. São formadas diferentes centrais
serem expandidas, ou seja, a conquista de modos reforma de sistemas de saúde.
comportamentos e formas de encarar a vida em sindicais e diferentes instituições de assessoria.
de se obter saúde, mais integrados à vida popular.
acordo com estes interesses. Multiplicam-se as ONGs – Organizações Não
Percebia-se que a atenção médica tradicional não é Governamentais. A imprensa e as cadeias de rádio
A partir desta contribuição de Foucault, as práticas 2) Ações e práticas de saúde são um dever do
injusta apenas porque é oferecida de forma limitada e televisão fortalecem-se, passando a alojar os mais
cotidianas de conformismo e resistência que Estado. À população cabe apenas o controle
aos pobres, mas também porque a sua racionalidade diversos grupos de interesse e crença. Mesmo as
acontecem no cotidiano da vida passaram a ser destas ações?
interna reforça e recria, no nível das microrrelações, entidades de classe dos setores dominantes são
centrais, respectivamente, na sustentação e na
as estruturas de dominação da sociedade. O seu obrigadas a se aparelhar, dinamizar e até mesmo se
superação da dominação que marca a sociedade.
biologicismo, o autoritarismo do doutor, o desprezo Com a conquista do fim da ditadura militar, o poder recriar, uma vez que já não contam e nem confiam
Assim, a luta pela transformação das dimensões
ao saber e à iniciativa do doente e familiares, a político se tornou mais permeável às pressões da mais, como antes, na ação do Estado autoritário.
políticas do processo de adoecimento na sociedade
imposição de soluções técnicas para problemas sociedade civil. Neste novo contexto, os movimentos Constituem-se e fortalecem-se múltiplas entidades
se descentraliza das instâncias partidárias, dos
sociais globais, o mercantilismo e a propaganda sociais reorientaram suas práticas tentando ocupar e instituições da sociedade civil voltadas para a
conselhos gestores, do aparelho estatal de direção
embutida dos grupos políticos dominantes são este espaço de participação nas ações do Estado. difusão de propostas culturais, artísticas, religiosas
política e do comando das grandes empresas, para
exemplos de alguns dos mecanismos entranhados na A luta política voltada para a transformação das e filosóficas. Associações profissionais e científicas
se estender também às cumplicidades, apoios e
assistência à saúde oficial que se procurava superar. políticas sociais passa a centralizar atividades passam a ter uma atuação marcante. Os dirigentes
resistências que envolvem todo o tecido social e
de grande parte dos movimentos populares, em políticos constroem formas de organização
Essas percepções daquela época ganharam, depois, também à reorientação dos saberes que orientam diferenciadas: Conselhos de Secretários Municipais
detrimento de atividades de cunho mais cultural
maior ressonância com os estudos de Michel as práticas institucionais (FOUCAULT, 1985).

120 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 121
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

e Estaduais de Saúde, associações de prefeitos rica interação. Um não pode ser compreendido hoje organizadas na sociedade civil. Assim, à medida visibilidade dentro do Movimento Sanitário.
e vereadores, Conselho de Reitores etc. Mesmo sem a presença do outro. Muitas das organizações que a situação começou a se reverter e os partidos Passaram a ser valorizados e ressaltados apenas
dentro das grandes instituições públicas e privadas formais da sociedade civil constituíram-se a partir políticos readquiriram presença e competitividade os movimentos que participam nos espaços oficiais
organizam-se grupos, com níveis diferentes de do processo de tecnificação e alargamento da na sociedade, os movimentos tenderam a perder o de controle social. A discussão sobre participação
formalização, voltados para a defesa de interesses atuação dos movimentos sociais que exigiam um seu dinamismo e visibilidade, mostrando seu caráter popular em saúde quase que se resumiu à questão
e propostas específicas. Os Núcleos de Estudo em maior aparelhamento institucional. Por sua vez, os conjuntural, ou seja, algo significativo apenas em da participação nos conselhos e nas conferências
Saúde Coletiva das Universidades são exemplo movimentos sociais são hoje bastante dependentes situações em que inexistem outros canais mais de saúde. Mesmo no seio dos movimentos sociais,
importante dos grupos mais formalizados. Enfim, a das assessorias e apoios dos grupos mais formais. eficientes de representação e em que o Estado, muitas lideranças passaram a valorizar apenas as
sociedade civil tornou-se recortada e povoada por Um tem no outro um elemento dinamizador. tornando-se totalmente omisso como provedor de lutas políticas mais amplas, capazes de influenciar
múltiplas, diversas e até mesmo surpreendentes serviços de consumo coletivo às populações carentes, nos espaços de decisão das políticas sociais.
Tornou-se habitual ouvir de lideranças dos
formas de organização, muitas vezes com sofisticado tenha levado a um aumento da insatisfação e revolta.
movimentos populares e de intelectuais que os O investimento em práticas comunitárias solidárias
e amplo aparelhamento institucional e material. Mas seriam movimentos limitados apenas a esses
assessoram queixas sobre o seu esvaziamento. de enfrentamento dos problemas de saúde passou
Configura-se, cada vez mais, o quadro político Afirma-se que a população não mais se aglutina e lugares e a esses períodos (JACOBI, 1989, p. 16). a ser visto como algo do passado. Quando o Estado
descrito por Gramsci como característico das mobiliza em torno de seus grupos organizados. As Assim, a partir da segunda metade da década de era omisso, os movimentos sociais eram obrigados a
sociedades capitalistas complexas: a presença reuniões estão esvaziadas. Lutas básicas, como 1980, muitos profissionais de saúde, que vinham se assumir a frente da implementação destas práticas.
de uma sociedade civil repleta do que chamou de a reivindicação de saneamento para favelas, não dedicando ao trabalho educativo nas comunidades, Com a democratização da sociedade e a criação de
“aparelhos privados de hegemonia”: organizações conseguem mais despertar interesse da maioria começam a se deslocar para os espaços institucionais um SUS regido pelos princípios da universalidade,
responsáveis pela elaboração e difusão das da população local. Reclama-se intensamente tornados mais permeáveis aos interesses da integralidade e equidade, o que passou a ser
ideologias, compreendendo o sistema escolar, da fragmentação e da divisão dos movimentos, população. O processo de constituição de um considerado legítimo foi encarar a implementação
as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as impedindo a soma de forças em torno de questões sistema de saúde público, que começa a incorporar de qualquer prática de saúde como uma obrigação
organizações profissionais, a organização material mais amplas. os anseios e o saber dos movimentos sociais, atrai o do Estado. À população e seus movimentos
da cultura etc. (COUTINHO, 1981). Estes organismos investimento e a energia da maior parte da militância organizados caberia lutar para que estas ações
Assim, a partir de meados da década de 1980,
sociais coletivos voluntários e relativamente do movimento sanitário brasileiro. O desafio central, fossem implementadas e buscar controlar sua
passa-se a reclamar muito da incapacidade desses
autônomos face ao Estado (entendido dentro do a partir de 1988, passou a ser a criação do arcabouço operacionalização. O envolvimento da população
movimentos sociais em saírem de reivindicações
conceito que Gramsci chamou de “Estado restrito”) jurídico e institucional do SUS. Este deslocamento com práticas de saúde passou a ser considerado,
mais restritas e assumirem lutas mais globais.
formam uma trama marcada pelo conflito. Nesta muitas vezes, como algo conservador e reacionário,
Tenderiam a se constituir e a sobreviver em torno de da dedicação do movimento sanitário chegou a
trama sustenta-se a hegemonia do grupo político pois ajudaria a escamotear a responsabilidade do
demandas específicas que, uma vez solucionadas, tal ponto que Giovani Berlinguer, um dos líderes
dominante e desenvolve-se a luta dos grupos Estado de prover todos os serviços necessários. O
desencadeiam o fim da mobilização sem deixar da reforma sanitária italiana, afirmou, já em 1988,
interessados em alterar o poder político, em uma conceito de controle social passou, assim, a ser o
formas mais permanentes e contínuas de organização quando visitava o Brasil:
guerra de trincheira em trincheira, de aparelho em centro do debate progressista sobre a participação
popular. Têm dificuldade de se articular mais
aparelho privado de hegemonia. da população na luta pela saúde.
amplamente entre si, formando frentes nacionais
Neste contexto, os inconstantes, fluidos e informais com maior poder de pressão. Ficariam, pelo contrário, Não quero criticar os amigos, mas a implantação
movimentos sociais perderam muito de sua restritos à ação mais localizada, difundindo uma visão do SUDS e toda a luta necessária na Constituinte
podem ter levado a uma preocupação muito 3) Os movimentos sociais insistem em
centralidade como instrumentos de expressão dos paroquial dos problemas que atingem a população.
institucional, com risco de subestimar os problemas implementar e propor práticas de saúde
interesses da sociedade. Muitos trabalhadores As grandes questões nacionais ficariam distantes
reais de saúde. Como provocação, sugiro avaliarem regidas por lógicas diferentes
sociais, intelectuais e lideranças políticas passaram de suas práticas. Para muitos teóricos, seriam
a enxergar este processo como se significasse a uma forma atrasada de organização social, que se quantas páginas das publicações de saúde falavam,
morte dos movimentos sociais. Mas antes de uma desenvolveu no período da ditadura, principalmente neste período, de regulamentações, legislações e
No entanto, os movimentos sociais e as redes locais
substituição ou de uma superação dos mesmos por como reflexo da precariedade ou falta de canais instituições. (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 1989)
de apoio social continuaram a investir na criação
entidades mais estruturadas, o que temos é uma mais formais de representação e de instituições mais Os movimentos sociais em geral perderam de práticas voltadas para o enfrentamento de

122 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 123
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

seus problemas de saúde. Fora do foco de atenção enfatizando esta desvalorização pelo Movimento as iniciativas coletivas no mundo popular, mas, pentecostalismo (VALLA, 2001). O pentecostalismo
da maioria do Movimento Sanitário, em cada Sanitário das lutas sociais pela saúde não muitas vezes, só se percebem e valorizam suas das igrejas cristãs, mas principalmente das igrejas
comunidade multiplicam-se ações solidárias de correlacionadas diretamente ao controle social no lutas políticas principais. São práticas informais, evangélicas, vem se expandindo não apenas
saúde. Que ações são estas e como se organizam? SUS. Victor Valla, há uma década, vem afirmando com grande nível de espontaneidade e sem uma quantitativamente, mas também gerando um nível
Em muitos movimentos nacionais, como o MST – que a sensação de decepção com os movimentos organização estável, mas extremamente importantes de engajamento religioso muito mais intenso no
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra sociais, tão forte entre os profissionais de saúde, e presentes no cotidiano de todas as pessoas do meio popular. As igrejas orientadas pela teologia da
–, são organizadas iniciativas próprias de saúde. significa mais uma crise na compreensão dos mundo popular e que a maioria dos profissionais libertação já conseguiram uma boa aceitação entre
Parcelas crescentes da população recorrem às intelectuais sobre os atuais caminhos de busca de saúde não considera ao planejar a orientação os sanitaristas por sua contribuição ao Movimento
igrejas cristãs pentecostais para solucionarem de ser mais e de organização da população do de cuidados terapêuticos. Elas, muitas vezes, são Sanitário, mas este crescimento do pentecostalismo
seus problemas de saúde. Na Igreja Católica, que uma crise dos movimentos sociais. Para capazes de reorientar o caráter individualista, é comumente analisado como fruto da alienação
houve expansão de várias atividades pastorais ele (VALLA, 1997), os intelectuais tendem a ver biologicista e autoritário das prescrições médicas ou “lavagem cerebral” feita por lideranças
voltadas para problemas de saúde com bastante apenas as iniciativas de organização popular que usuais. Estruturam cuidados e tratamentos para religiosas espertas. No entanto, inúmeros estudos
capilaridade no tecido social. ONGs, ligadas ao se enquadram nas formas clássicas de organização muitos problemas, que não chegam aos serviços de têm mostrado a impressionante capacidade de
enfrentamento da AIDS, articuladas em fóruns, política descritas nos textos de ciências sociais e saúde ou que deles se afastam, frustrados com os transformação positiva para pessoas, famílias e
vêm desenvolvendo práticas inusitadas de apoio não enxergam modos novos de organização. Muitas resultados. As conversas, reuniões e celebrações grupos do meio popular a partir do momento em que
aos doentes e de prevenção, com grande impacto. vezes, as associações de moradores, os sindicados que acontecem nestas práticas solidárias de saúde passam a participar de igrejas pentecostais a ponto
Movimentos e organizações sociais muito antigos, e os partidos políticos estão vazios, mas as igrejas, são ainda espaços centrais de elaboração dialogada de a pesquisadora Regina Novaes tê-las chamado
como a Sociedade São Vicente de Paula e os as escolas de samba e situações concretas de de sentidos e entendimentos para o que está de “via subalterna de produção de dignidade”
Alcoólicos Anônimos, continuam presentes, de padecimento estão mobilizando muita gente. E estas acontecendo na crise da doença. (NOVAES, 2001, p. 68). Tal fato é repetidamente
forma importante, na vida das comunidades. mobilizações geram iniciativas muito importantes Do mesmo modo como as redes de apoio social têm constatado por trabalhadores sociais que atuam
A expansão do Programa Saúde da Família, ao para a saúde local. pouca visibilidade para a maioria dos trabalhadores nas periferias urbanas. Situações de alcoolismo,
colocar profissionais mais próximos do cotidiano sociais e intelectuais, as suas práticas solidárias de dependência de outras drogas, envolvimento
Valla passou a difundir no Brasil o conceito de redes
da população, está possibilitando que muitas saúde também são pouco percebidas e valorizadas. com grupos ligados a atividades ilícitas, violência
de apoio social para compreender formas menos
iniciativas locais de saúde comecem a ganhar São desenvolvidas por mães, vizinhas, amigos, doméstica, crises conjugais intensas, distúrbios
estruturadas de organização social, ajudando a dar
novamente uma maior visibilidade no Movimento conhecidos e “entendidos” de modo “misturado” mentais, crises existenciais graves, abandono
visibilidade a muitas práticas solidárias de saúde
Sanitário. Em muitos municípios brasileiros, onde há no dia a dia da vida local. Não se mostram como familiar, conflitos entre vizinhos e desajustes no
que acontecem cotidianamente nas comunidades
gestores orientados pela educação popular, o SUS práticas distintas, especiais ou especializadas. Por trabalho, com frequência são resolvidas nestas
(VALLA, 1998). Criou-se, assim, um instrumental
vem possibilitando a emergência e a expansão de isso, tendem a não ser identificadas como práticas igrejas. Elas são organizadas nas periferias com
teórico capaz de entender e valorizar as inúmeras
práticas de saúde construídas de forma dialogada de saúde com eficácia, saberes e características a participação intensa de pastores, obreiros e
práticas de apoio solidário que sempre aconteceram
entre a população e os profissionais de saúde que próprias e importantes. Mas seu caráter difuso e auxiliares que moram na região, ajudando a formar
no seio das famílias, nas redes de parentesco,
vêm surpreendendo pelo alcance. É necessário dar generalizado na vida social não significa que não fortes redes de apoio social entre os participantes.
entre vizinhos, nos grupos religiosos, nas iniciativas
mais visibilidade a estas iniciativas tão numerosas sejam instruídas por saberes bastante elaborados, Por terem uma forma de organização do culto
culturais e esportivas de caráter local, entre
e difundidas. É preciso buscar entender melhor o muitas vezes milenares, e com características em que as emoções são cultivadas, possibilitam
colegas de trabalho, nos grupos de filantropia e
que elas apontam como necessidade e proposta próprias que variam nos diversos grupos sociais. a explicitação do turbilhão emocional a que os
nas ações de pessoas devotadas aos cuidados de
da população. É importante buscar compreender moradores das periferias são submetidos pela
saúde, presentes em cada comunidade. Possibilita Victor Valla vem também, há uma década,
o seu significado político e epistemológico. O que situação de opressão em que vivem, criando
também ressaltar dimensões muito concretas do denunciando o olhar preconceituoso e desqualificador
esta insistência da população, suas redes de apoio dinâmicas religiosas para sua elaboração.
fazer cotidiano dos movimentos sociais que não da maioria dos profissionais do campo da
e seus movimentos podem ensinar ao Movimento Muitas das igrejas pentecostais assumem
se restringem às suas lutas centrais. A riqueza e a saúde coletiva em relação a uma das maiores
Sanitário sobre os caminhos do SUS? explicitamente rituais de “cura” para doenças, mas
diversidade das práticas solidárias de apoio social transformações culturais que vem acontecendo nas
Há anos a Rede de Educação Popular e Saúde vem marcam profundamente o fazer de quase todas classes populares: o surpreendente crescimento do o enfrentamento dos problemas de saúde acontece

124 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 125
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

em todo o conjunto de suas atividades. Vários mais avançados, com a emergência de inúmeros várias igrejas evangélicas) têm trazido elementos Paula, organização centenária com uma autonomia
estudos vêm buscando desvendar os caminhos deste estudos epidemiológicos comprovando a correlação muito inovadores para a cultura de enfrentamento muito grande em relação ao clero católico, que
enfrentamento a partir de diferentes abordagens entre vida religiosa e saúde, ajudaram a legitimar dos problemas de saúde, em que se articulam continua presente na maioria das periferias
teóricas da ciência. Um exemplo importante são estas constatações (VASCONCELOS, 2006). dimensões técnicas, psicológicas, espirituais, urbanas e rurais com atividades de identificação
os estudos de Paulo Bonfatti sobre os significados A maioria da população brasileira (cerca de 75%) estéticas e políticas. Experiências muito exitosas, e apoio às famílias mais pobres. São grupos, em
dos ritos da Igreja Universal do Reino de Deus, continua, no entanto, ligada à Igreja Católica. Nela, a desenvolvidas por unidades básicas de saúde do sua maioria compostos por moradores da própria
utilizando a psicologia junguiana e a antropologia questão da saúde é assumida direta ou indiretamente SUS, foram construídas a partir da integração de região, bastante pobres, que têm um trabalho muito
(BONFATTI, 2000). Outros estudos do grupo de nos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base seus profissionais com grupos destas igrejas. Há organizado e persistente de apoio às famílias em
pesquisadores próximos a Victor Valla têm frisado (CEBs) e nas suas inúmeras pastorais (da criança, uma dimensão epistemológica desta integração que situação especial de pobreza. São grupos tímidos,
a importância das fortes redes de apoio social saúde, sobriedade, terra, dos índios, portadores vem sendo pouco ressaltada. O já referido dualismo com uma visibilidade muito inferior ao tamanho de
criadas por estas igrejas para as pessoas vivendo de deficiência física, presídios e direitos humanos do paradigma newtoniano e cartesiano de ciências sua presença. É preciso maior divulgação de estudos
problemas de saúde. Eles resgatam também estudos etc.). Em qualquer recanto da nação, há grupos gerou um tipo de ação de saúde que pretende ser sobre a diversidade de formas de organização social
antropológicos que apontam para a importância da destas distintas pastorais organizando práticas orientado apenas pela razão e pelos conhecimentos presentes nas comunidades periféricas brasileiras.
vida religiosa, celebrada com intensidade, de ajudar solidárias de enfrentamento de problemas de construídos racionalmente. Para este paradigma, O olhar dos profissionais, muito centrado em formas
a criar uma linguagem simbólica em que se pode saúde ou investindo na promoção da saúde. Muitas a presença de outras dimensões da subjetividade mais tradicionais de organização popular, faz com
elaborar o sentido da crise trazida pela doença, vezes, a equipe de saúde do SUS, por não conseguir turvaria o agir objetivo e eficaz. Mas as ações que muitos grupos importantes, com suas práticas e
bem como a motivação para o seu enfrentamento compreender suas ações como práticas de saúde construídas com a participação intensa de grupos seus saberes tão diversos, não sejam considerados.
(VALLA, 2001b). ou mesmo visualizá-las, por seu olhar focado na religiosos são estruturadas “regadas” pela emoção e As religiões afro-brasileiras são exemplos muito
rotina do serviço, despreza as ricas possibilidades a espiritualidade, em meio a encontros organizados
Pesquisas para entender as razões do ricos de como formas bastante tradicionais de
de parceria que poderiam ser construídas. A maior com celebrações e dinâmicas. Se entendermos a
grande interesse das classes populares pelo vida religiosa têm conseguido se organizar de
influência da teologia da libertação na Igreja Católica religiosidade, de acordo com a psicologia junguiana,
pentecostalismo, que gerou tanta estranheza no modo inovador no enfrentamento de problemas
fez com suas práticas de saúde tivessem uma maior como a forma mais utilizada pela população para
meio intelectual, ajudaram a resgatar estudos, de saúde. Em 2003, foi formada a Rede Religiões
ênfase na dimensão política. Toda a experiência de expressar e elaborar a integração, por meio de
alguns bastante antigos, da antropologia, psicologia, Afro-Brasileiras e Saúde, que vem realizando muitos
luta social de seus grupos mostrou a possibilidade uma linguagem simbólica, das dimensões racional, seminários estaduais, regionais e nacionais para
sociologia e das ciências das religiões que vinham
e a importância de integrar a dimensão espiritual emocional, sensitiva e intuitiva, ou a articulação
sendo pouco valorizados pela saúde coletiva, estudar, valorizar e aperfeiçoar as práticas de saúde
individual com a dimensão de enfrentamento das das dimensões consciente e inconsciente da
tornando mais claro o papel da vida religiosa na que, há tantas décadas, vêm sendo desenvolvidas
dimensões estruturais do processo de adoecimento subjetividade humana e de seu imaginário coletivo,
busca da saúde. Foi ficando claro que, para a maioria nos terreiros. Multiplicam-se experiências muito
e cura. Mostrou que há uma espiritualidade da esta aproximação da equipe de saúde com estes
da população latino-americana, a vida religiosa é ricas de enfrentamento de problemas de saúde
luta social que é capaz de gerar maior potência grupos religiosos, na construção de novas práticas,
elemento fundamental na elaboração do sentido mental, AIDS, sexualidade, dependência de
às mobilizações e enfrentamentos políticos representa também uma superação epistemológica
e da motivação para enfrentar as crises pessoais, drogas e vários outros, bem como de promoção da
(VASCONCELOS, 2006, p. 95-111). A oposição dos do paradigma newtoniano e cartesiano de ciências
familiares e comunitárias que acompanham as saúde pela valorização da autoestima de grupos
papados de João Paulo II e Bento XVI à teologia que está sendo legitimado pela eficácia social das
doenças graves. A população não incorporou o marginais e da identidade negra. Pais e mães
da libertação, numa tentativa de volta à grande práticas que tem gerado para o SUS.
dualismo do paradigma newtoniano e cartesiano de de santo vão se capacitando para uma ação de
ciência, que afasta a dimensão espiritual da análise disciplina e à hierarquia do catolicismo tradicional As CEBs e as diversas pastorais da Igreja Católica saúde que integre suas práticas espirituais com o
dos fenômenos materiais. Em pleno século XXI, as (LIBÂNIO, 1984), refreou parcialmente a expansão são formas relativamente recentes de ação religiosa saber científico e as políticas sociais. Lidam com
classes populares latino-americanas insistem em desta forma de organização da vida religiosa no e social. Mas o quadro atual da vida religiosa católica grupos sociais com cultura muito própria que, por
valorizar a dimensão espiritual no enfrentamento de Brasil, que, no entanto, continua muito presente na não é só composto de elementos novos. Organizações isso, costumam ter dificuldades na relação com os
todos os problemas de saúde, sejam eles de ordem grande maioria das dioceses. muito antigas da Igreja continuam muito presentes serviços públicos. Com sua linguagem simbólica
emocional, biológica ou social. A valorização dos As práticas sociais de igrejas influenciadas pela e ativas no cotidiano de inúmeras comunidades. Um rica, bonita, mobilizadora de fortes motivações e
estudos sobre espiritualidade na saúde em países teologia da libertação (ela está também presente em exemplo importante é a Sociedade São Vicente de com grande poder transformador de atitudes diante

126 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 127
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

das doenças, estas religiões têm ajudado a trazer práticas extremamente potentes de enfrentamento compositores, danças e ritmos que passaram a ser diabéticos) que têm colaborado muito no
para o setor saúde uma melhor compreensão da de problemas de saúde muito difíceis, pela importantes canais de construção de identidade, questionamento e no aperfeiçoamento das práticas
dimensão espiritual no processo de luta pela vida presença de dimensões inconscientes muito expressão de interesses, elaboração de leituras do de atenção a eles específicas, criação de redes
(SILVA, 2003). arraigadas. Apesar da origem norte-americana, mundo e criação de novas formas de sociabilidade. de apoio solidário e de intercâmbio, construção e
reafirmam elementos repetidamente presentes É impressionante a intensidade e a velocidade das difusão de informações que julgam importantes
A dimensão espiritual na saúde vem sendo
nas práticas de saúde do meio popular latino- transformações culturais e de organização social que (muitas vezes bastante diferentes daquelas
valorizada e fortalecida não apenas pelas
americano: enfrentamento coletivo, solidário, com as classes populares vêm passando. No entanto, os informações selecionadas pelos profissionais) e
religiões, mas também pelos grupos de autoajuda.
os participantes buscando superar desigualdades profissionais de saúde responsáveis pelos serviços resgate da autoestima dos membros. Mais uma
Apesar do termo autoajuda ser usado com vários
entre si, compartilhamento intenso de dimensões a elas destinados tem investido pouco no estudo e vez, não aceitam apenas reivindicar mais recursos
sentidos, usualmente os grupos de autoajuda se
subjetivas envolvidas, organização não dependente compreensão destas transformações. e serviços e participar de sua gestão. Insistem
referem a uma série de movimentos anônimos (os
de especialistas e centralidade da dimensão em participar da redefinição das várias práticas
componentes não se identificam publicamente) Grandes movimentos sociais, de abrangência
espiritual. técnicas de tratamento e promoção da saúde e em
formados por pessoas com problemas específicos nacional e importante força política, foram
Nas novas e contraditórias formas de organização formados nos últimos anos. Muitos deles vêm organizar iniciativas próprias, com grau significativo
e que se orientam por metodologias semelhantes
e manifestação cultural das classes populares, também se dedicando diretamente às questões da de autonomia em relação às instituições de apoio.
ao AA – Alcoólicos Anônimos, criado em 1935, nos
EUA. Vários outros movimentos foram criados nesta integram-se dinâmicas internacionais e locais, saúde, mesmo que elas não sejam o centro de suas Diferentemente do que acontece em muitos
perspectiva: Al Anon (com familiares de alcoólicos, como é o caso do narcotráfico. Ele não é apenas atividades. Um exemplo importante é o MST – o outros países, no Brasil, as Organizações Não
no que chamam de codependência), Al Ateen uma atividade ilícita que vem penetrando nas Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – Governamentais – ONGs – foram formadas
(adolescentes familiares de alcoólicos), Mulheres periferias urbanas de forma crescente, mas que, mesmo com sua grande força política, optou principalmente a partir de grupos ligados aos
que Amam Demais, Neuróticos Anônimos etc. No também uma forma de organização e manifestação por querer orientar as práticas dos serviços de movimentos sociais, mantendo um grande
Brasil, existem 5.700 grupos de AA, com 120.000 de interesses de grupos juvenis. Ele interfere e saúde de seus acampamentos e assentamentos, vínculo com estes e continuando várias de suas
participantes. Não recebem apoio de instituições reorienta as várias outras formas de organização não aceitando a apenas reivindicá-los e depois formas de atuação (SOUZA, 1991). No setor
públicas ou privadas, demonstrando enorme social local. Ao mesmo tempo em que cria redes participar de sua gestão. Vem formando muitos de saúde, vêm se ocupando de muitas frentes, mas
capacidade de organização autônoma de seus de apoio social próprias, desorganiza e desagrega seus profissionais de saúde em cursos conveniados, é no enfrentamento da AIDS que elas mais se
participantes. São importantes referências para os muitas outras redes locais de solidariedade local. em que participa da organização. Busca reorganizar expandiram, devido à integração com a política
serviços de saúde de todo o Brasil encaminharem Reforça uma cultura individualista, competitiva e as práticas de seus serviços de saúde, procurando nacional de enfrentamento desta patologia.
seus pacientes com alcoolismo, problema com de violência na juventude. Por aparelhar com armas integrá-los com as práticas organizativas locais. Formaram-se Fóruns ONG/AIDS nos vários estados
baixíssima resolutividade pelos métodos médicos sofisticadas muitos grupos de periferia, gera formas Valoriza muito a fitoterapia e outras tecnologias brasileiros que vêm articulando a ação das diversas
tradicionais. Apesar de terem sido criados por audaciosas e agressivas de afirmação de identidade alternativas, tendo clareza das implicações políticas ONGs do setor. Além de promoverem mobilizações
pessoas dependentes, não profissionais de e enfrentamento de humilhações e opressões. Por dos formatos técnicos de cada prática de saúde. reivindicativas, influenciarem fortemente as políticas
saúde, e continuarem a existir sem supervisão de gerar medo e desencadear situações de extremo Apesar da ênfase na dimensão política, criam muito sociais, prestarem assessoria jurídica e atuarem nos
especialistas, eles têm uma eficácia amplamente sofrimento, baixa a autoestima dos moradores, espaço para a dimensão espiritual. As suas várias meios de comunicação de massa divulgando suas
reconhecida na sociedade. Trabalham com uma desconstrói outras iniciativas de afirmação social e reuniões, quase sempre, iniciam ou terminam com perspectivas sobre o problema, elas têm tido um
espiritualidade não vinculada a uma religião reforça o preconceito contra os pobres. uma “mística”, uma dinâmica coletiva que busca, forte investimento na criação de práticas bastante
específica, apesar de vários autores identificarem por meio de símbolos, histórias ou manifestações diferenciadas e criativas de cuidado e apoio aos
Movimentos artísticos vêm também criando
uma inspiração no protestantismo norte-americano artísticas, expressar os sentidos e motivações do doentes e pessoas portadoras do vírus, de prevenção
formas inusitadas de organização e expressão
(DUMONT, 1974). No entanto, muitas pessoas não momento e da ação. junto aos grupos populacionais mais vulneráveis e
de identidade e interesses no mundo popular. Um
religiosas se envolvem muito em suas atividades. exemplo marcante é o hip hop, movimento iniciado Há ainda vários movimentos organizados por de educação da população em geral. Muitas das
Inovaram ao apropriarem do cristianismo elementos nos EUA, na década de 1980, que rapidamente se portadores de problemas específicos de saúde práticas de atenção e prevenção, hoje incorporadas
da vida espiritual que transcendem as diversas espalhou nas periferias urbanas de todo o Brasil, (hanseníase, deficiência física, AIDS, usuários nos serviços públicos de saúde, foram concebidas e
religiões e por terem, com estes elementos, criado com suas festas, grupos locais, rodas, músicas, de serviços de saúde mental, colostomizados, aperfeiçoadas por ONGs. A diversidade das ONGs

128 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 129
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

permite o investimento em formas muito diferentes de saúde, dedicados à militância política contra a de nível superior que a pudessem acompanhar. Trata- Para isso é preciso olhar para as iniciativas e lutas
de atuação. ditadura militar, inseriram-se profundamente nas se, portanto, de um processo de maturação teórica populares de forma menos focada na dimensão do
Outra frente de atuação de ONGs no setor saúde, comunidades periféricas e tiveram a oportunidade e prática de uma experiência inicialmente local, a controle social.
que tem mostrado imensa capacidade de inovar de conhecer de perto a cultura e o contexto de ponto de se tornar uma técnica com possibilidades
A ANEPS – Articulação Nacional de Movimentos e
em termos de práticas de atenção e prevenção, é o opressão e miséria ali existente. Esta nova leva de expansão para outros contextos bastante
Práticas de Educação Popular e Saúde55 –, criada
campo voltado para a redução de danos decorrentes de inserção profissional, agora muito mais ampla diferentes. Esta técnica difundida tende a levar para
em 2003, tem representado um importante espaço
do uso de drogas. Por lidarem com públicos numericamente, no ambiente de vida das classes outros recantos os princípios teóricos da educação
de visibilidade política e debate destas práticas
extremamente marginalizados, considerados populares, está possibilitando um grande movimento popular, da psicologia sistêmica e da valorização da
de saúde construídas integradas aos movimentos
muito próximos da criminalidade e extremamente de redefinição das práticas da atenção básica. cultura local, mesmo que as pessoas que a operem
sociais. Nos seus encontros estaduais e nacionais,
perturbados emocionalmente, foram exigidas Diferentemente do que acontece nos hospitais e nestes novos locais não conheçam muito esses
bem como na sua lista de discussão pela internet
abordagens muito criativas e bastante afastadas nos grandes ambulatórios, nas unidades do PSF, os princípios. Trata-se de um caminho a ser seguido por
e nos textos produzidos por seus participantes
dos modos mais conhecidos de atuação em saúde, profissionais estão constantemente tendo acesso a outras práticas desenvolvidas localmente.
esta questão tem se clareado. O presente texto
a ponto de causarem rejeição de pessoas que não informações vindas da população que apontam para Se, nas décadas de 1980 e 1990, o centro do representa uma tentativa do autor de sistematizar as
conhecem o contexto em que atuam. Apesar de as limitações das práticas do modelo biomédico.
interesse do movimento sanitário foi principalmente discussões que aí tem acompanhado. Mas é preciso
serem financiadas principalmente com o objetivo Nos últimos dez anos, cresceu muito o interesse de a criação do arcabouço jurídico e administrativo um maior esforço teórico para tornar mais claras e
de diminuir a transmissão de AIDS, hepatites B e C, inúmeros profissionais no questionamento, estudo e
do SUS, na atual década começa a crescer o dar maior visibilidade política às contribuições dos
estas ONGs foram desenvolvendo formas muito sutis redefinição das práticas profissionais. Alguns desses interesse na redefinição das práticas de saúde movimentos sociais para a integralidade em saúde.
de aproximação e cuidado das pessoas envolvidas profissionais, que tiveram uma maior preparação
nos serviços expandidos. O Ministério da Saúde
com drogas que têm encantado. Têm desencadeado para uma relação dialogada com a população e os
passa a organizar Mostras Nacionais de Produção
muitos casos de resgate da autoestima e de criação seus movimentos, têm conseguido criar práticas 5) Considerações finais
em Saúde da Família, com Concursos Nacionais
de atitudes solidárias entre os usuários de drogas novas de extrema eficácia social.
de Experiência em Saúde da Família. O conceito
que, algumas vezes, conseguem trazê-los para Algumas destas práticas se aperfeiçoaram e se de práticas exitosas em saúde da família começa
uma vida mais digna. Os serviços estatais não consolidaram, possibilitando que pudessem ser a ser divulgado. Em 2000, é criado, no Instituto de A maioria das atuais práticas técnicas de atenção à
teriam liberdade para desenvolver estas práticas. expandidas para muitos outros locais. O exemplo Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de saúde foi criada regida pela lógica do capitalismo,
São um exemplo muito rico da possibilidade de mais importante é o da Terapia Comunitária, Janeiro, o LAPPIS – Laboratório de Pesquisas sobre em seus centros de pesquisa médica. São práticas
criação de práticas inovadoras de saúde, em desenvolvida pelo Projeto Quatro Varas, em Práticas de Integralidade em Saúde –, que vem que induzem o consumo exagerado de mercadorias
situações extremamente difíceis, que rompem com Fortaleza, sob o comando do médico Adalberto desenvolvendo intensa programação voltada para e serviços, reforçam os caminhos individualistas de
o paradigma biomédico em direção à integralidade Barreto. Orientado pela psicologia sistêmica, a o repensar as práticas de atenção à saúde numa busca da saúde, deslegitimam saberes e valores da
da atenção. educação popular e a antropologia, em intensa perspectiva de integralidade. Mas é importante não população, consolidam a racionalidade instrumental
interação com a população e os movimentos sociais repetir o erro realizado pelo Movimento Sanitário e fria da modernidade e reforçam o poder da
locais, foi sendo desenvolvida a técnica da terapia em outros momentos de muito enfatizar o trabalho tecnoburocracia estatal e empresarial. Sob sua
4) Práticas de integralidade em saúde:
comunitária. Princípios básicos foram definidos, dos profissionais e intelectuais do setor saúde e aparência técnica e racional, elas escondem lógicas
contra uma construção centrada apenas em
cuidados metodológicos foram padronizados e pouco valorizar as contribuições da participação e interesses de acumulação de capital e legitimação
iniciativas e na lógica dos profissionais de
organizaram-se os conhecimentos mais importantes popular na construção destas práticas integrais. política. Portanto, não são neutras. Representam a
saúde
para sua implementação. De uma prática de saúde Os movimentos sociais e as redes locais de apoio cristalização das lógicas e dos interesses dos grupos
local construída processualmente, emergiu uma social têm apontado para dimensões importantes que as geraram. Ao serem difundidas, reforçam a
A expansão do Programa Saúde da Família tem técnica de abordagem do sofrimento psíquico em da integralidade que têm sido pouco valorizadas
inserido milhares de profissionais no meio popular. comunidades populares, de forma suficientemente pela maioria dos pesquisadores. É importante ouvir,
55 Para maiores informações ver site: http://br.groups.
Assiste-se algo correlato ao que aconteceu, nas clara e padronizada para poder ser expandida estudar e valorizar mais o que vem sendo motivo de yahoo.com/group/aneps/
décadas de 1970 e 1980, quando muitos profissionais nacionalmente, inclusive em locais sem profissionais tanta insistência por parte dos movimentos sociais.

130 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 131
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

lógica capitalista na microcapilaridade do tecido nas redes sociais. Iniciativas populares podem se Referências VALLA, Victor Vincent. Apoio social e saúde:
social. São instrumentos dos grupos dominantes expandir e multiplicar com pequenos apoios das buscando compreender a fala das classes populares.
manterem sua hegemonia cultural e política sobre instituições públicas que respeitem sua autonomia. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). Educação popular
o restante da sociedade. BONFATTI, Paulo. A expressão popular do sagrado: hoje. São Paulo: Loyola, 1998, p. 151-76.
Muitas destas iniciativas são frágeis e podem
uma análise psicoantropológica da Igreja Universal
A insistência dos movimentos sociais e das redes perder suas potencialidades de solidariedade, de VALLA, Victor Vincent. O que saúde tem a ver com
do Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 2000.
locais de apoio social em redefinirem as práticas ampla participação e de valorização dos saberes religião? In: VALLA, V. V. (org.). Religião e cultura
locais próprios, se tratados de forma pouco COUTINHO, Carlos Nelson. Fontes do pensamento popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 113-39.
de saúde tem um significado político que não
compreensiva por gestores e profissionais de saúde político: Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981.
está sendo devidamente valorizado e explicitado VALLA, Victor Vincent. Globalização e saúde no
entre os profissionais ligados ao campo da saúde com promessas de recursos materiais. Não basta DUMONT, M. P. Self-help treatment programs. Brasil: a busca da sobrevivência pelas classes
coletiva. Ela pode ser entendida como uma anunciar e desejar desenvolver formas dialogadas American Journal of Psychiatry. V. 131, p. 631-63, populares via questão religiosa. In: VASCONCELOS,
tentativa de desconstruir as lógicas e os interesses e participativas de relação com a população. Esta é 1974. Eymard. A saúde nas palavras e nos gestos:
presentes nas práticas técnicas dominantes nos uma relação assimétrica, tornando difícil o diálogo reflexões da Rede de Educação Popular e Saúde.
EVERS, Tilman. Identidade, a face oculta dos novos
serviços de saúde e de ampliar as dimensões respeitador da autonomia popular. A educação movimentos sociais. Novos estudos Cebrap. São São Paulo: Hucitec, 2001b.
de solidariedade, amorosidade e autonomia das popular tem mostrado ser um saber importante neste Paulo, v. 2-4, 1984. VASCONCELOS, Eymard M. (org.). A espiritualidade
pessoas no enfrentamento dos problemas de saúde. processo. Educação popular é uma arte e um saber,
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5.ed. Rio no trabalho em saúde. São Paulo: Hucitec, 2006.
O Movimento Sanitário, muito preocupado na desenvolvidos na América Latina e respeitados em
de Janeiro: Graal, 1985.
redefinição do desenho institucional do SUS, tem todos os continentes, de condução desta difícil
valorizado pouco essa insistência. relação entre trabalhadores sociais e a população, FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Entrevista com
voltada para a construção de uma sociedade sem Giovanni Berliguer. Proposta; jornal da Reforma
Saúde não se alcança apenas com mais e melhores
opressão a partir da participação ampliada dos Sanitária. Rio de Janeiro, n.14, jan. 1989.
serviços de saúde, tal como hoje estão concebidos.
Pressupõe justiça, integração e respeito ao meio grupos sociais subalternos e dos seus movimentos. JACOBI, Pedro. Movimentos sociais e Estado.
ambiente, valorização das dimensões subjetivas A democratização radical da vida social tem um Demandas populares, políticas públicas e saúde.
profundas das pessoas e democratização sem fim grande efeito no processo de democratização Petrópolis: Vozes, v.2, 1989.
das relações sociais no mundo da economia, nas interna das políticas de saúde por caminhos muito LIBÂNIO, João Batista. A volta da grande disciplina.
famílias, comunidades, instituições e organizações mais amplos do que apenas o fortalecimento dos São Paulo: Loyola, 1984.
civis. Não basta investir na democratização da conselhos e suas conferências voltadas para o NOVAES, Regina Reyes. Pentecostalismo, política,
gestão das políticas de saúde; é preciso também controle de sua gestão. Muito se discute hoje como mídia e favela. In: VALLA, V. V. (org.). Religião e
investir nas relações sociais que criam condições fortalecer o controle social através de estratégias de cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 41-
para a saúde acontecer na vida das pessoas. apoio e reorganização dos conselhos e conferências 74.
A assistência à saúde, pela grande presença de de saúde. Há muito o que fazer neste sentido, mas
SILVA, José Marmo (org.). Religiões Afro-Brasileiras
seus serviços na capilaridade da sociedade, pode o controle social pleno só virá com democratização
e Saúde. São Luís: CNN, 2003.
contribuir muito para isso. Muitas experiências radical da vida social, que exige enormes esforços
a serem desenvolvidos fora do espaço destes SOUZA, Herbert. As ONGs na década de 90. PG-
comunitárias vêm demonstrando a forte
conselhos e destas conferências. Este processo é Políticas Governamentais. Rio de Janeiro, v. 7, p. 68,
potencialidade das ações de saúde na reorientação
dependente de dinâmicas políticas e econômicas 1991.
da vida social. Para isso, é preciso todo um movimento
de redefinição das práticas sanitárias e da forma gerais, mas o setor saúde tem muito a contribuir se VALLA, Victor Vincent. A crise de interpretação é
como os serviços se relacionam com a população, passar a encarar o investimento na democratização nossa; procurando compreender a fala das classes
sabendo ouvir e valorizar as contribuições e criações da vida social e o enfrentamento das opressões como subalternas. Educação e Realidade. Porto Alegre,
que já vêm sendo desenvolvidas nos movimentos e parte central do trabalho de promoção da saúde. 1997.

132 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 133
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

1. Introdução familiares de segmentos de baixa renda no contexto educativo, pelo temor de acionamento das instâncias
piauiense e como docente, no acompanhamento de garantia de direitos de seus próprios filhos.
de estagiárias do Curso de Serviço Social da Em uma outra arena, na pediatria, por exemplo, a
Este texto objetiva analisar a família como usuário Universidade Federal do Piauí junto aos diferentes presença da mãe como acompanhante da criança
de serviços e como sujeito político do processo de serviços do Hospital Areolino de Abreu, hospital é uma exigência de humanização da assistência,
reforma psiquiátrica brasileira, em curso no país, psiquiátrico gerido pelo governo estadual e no em nome de direitos, conforme reza o Estatuto da
como política oficial, desde o início dos anos 1990. diálogo e trocas com os profissionais dos serviços Criança e do Adolescente, e ao mesmo tempo de
A desinstitucionalização58 emerge como eixo de assistência psiquiátrica, sobretudo da Região apoio ao serviço, pela própria carência no número
norteador da política de assistência psiquiátrica, Nordeste. de trabalhadores em saúde. O cotidiano em uma
norteada pelos direitos da pessoa com transtorno enfermaria hospitalar é muito tenso e comumente
mental e pela criação de uma outra relação entre entediante para um acompanhante, que algumas
sociedade e loucura. Esta mudança no modelo 2. Contextualizando o engajamento da família vezes procura circular pelos corredores do hospital
assistencial exige uma outra relação entre os na assistência psiquiátrica para se distrair, fato que frequentemente é visto
serviços destinados à assistência psiquiátrica e o como perturbador das rotinas pelos profissionais.
grupo familiar, principalmente com os cuidadores- Em saúde mental, por sua vez, é com a portaria nº
Texto 5 Nas políticas hoje em curso no país, sobretudo no
familiares, manifesto na sua incorporação como 251/GM, de 31 de janeiro de 2002, que estabelece
campo da assistência social, parece haver uma
parceiros dos novos dispositivos. Tal inserção, em diretrizes e normas para a assistência hospitalar em
tendência de mudança, com uma ampliação na lógica
processo de construção, implica vários limites,
A família como usuária de da cidadania, da proteção exclusiva do indivíduo psiquiatria e reclassifica os hospitais psiquiátricos,
possibilidades e riscos, cujo mapeamento se
serviços e como sujeito para a proteção de seu grupo familiar. Assim, cada que passa a ser vislumbrado oficialmente um
pretende realizar neste trabalho.
político no processo de vez mais o grupo familiar é chamado, e às vezes dispositivo na mudança nas relações entre os
reforma psiquiátrica A família, e principalmente o familiar-cuidador, exigido, a se inserir nos programas sociais na área de serviços psiquiátricos e a família, haja vista que os
brasileira56 são sujeitos políticos importantes para a garantia assistência e nos projetos terapêuticos dos serviços cuidadores domésticos, até então, eram percebidos,
da direção imposta ao processo em andamento, de saúde. Tal tendência, contraditoriamente, preponderantemente, das seguintes formas: como
Lúcia Cristina dos Santos Rosa57
mas ao mesmo tempo se depara com uma série de acompanha as mudanças societárias e legislativas informantes; como um recurso episódico ou como
questões que merecem ser levadas em consideração que realçam cada vez mais os direitos específicos de uma visita, muitas vezes, inconveniente. A citada
56 Este texto foi publicado originalmente no livro para sua inclusão mais ativa na supracitada alguns segmentos no interior da família, sobretudo portaria prevê, no desenvolvimento dos projetos
Abordagens psicossociais, vol III: implicações para o dinâmica. Pretende-se com o presente texto estar a criança, o adolescente e o idoso. Tal tendência terapêuticos, o preparo para o retorno à residência/
serviço social, publicado pela Editora Hucitec, de São sistematizando e trazendo à tona mais elementos inserção domiciliar e uma abordagem dirigida à
Paulo, em 2008, organizado por Eduardo Vasconcelos. Ele consolida avanços e ao mesmo tempo vários dilemas
para o enriquecimento dos debates. família no sentido de garantir orientação sobre
nos pareceu interessante como indicação das múltiplas a serem geridos sobretudo pelos genitores, ainda
dimensões da situação dos familiares no processo de Todo conteúdo do texto tem origem na vivência não preparados para os novos desafios postos. Por o diagnóstico, o programa de tratamento, a alta
cuidado e no sistema de saúde mental, temas que podem hospitalar e a continuidade do tratamento.
como pesquisadora, a partir das experiências com exemplo, é comum as escolas, ao abordarem com
ser aprofundados nos grupos de ajuda e suporte mútuos
de familiares. as crianças o Estatuto da Criança e do Adolescente, O legislador parece ter sido perspicaz ao exigir
enfatizarem os direitos dos mesmos. Por outro lado, e contornar uma abordagem mínima ao grupo
57 Lúcia Rosa é assistente social e professora da Escola com a família, particularmente com os pais, tendem familiar pelos hospitais psiquiátricos, num contexto
de Serviço Social da UFPI; doutora em Serviço Social
pela ESS-UFR e pesquisadora integrante do Projeto 58 Desinstitucionalização, para Amarante (1996), a realçar os deveres. Neste sentido, a relação de ampliação do cuidado comunitário e garantia
Transversões. É autora dos livros Transtorno mental e o constitui um processo de desconstrução de práticas e escola-família acaba por instituir uma tensão, até dos direitos, sobretudo civis, das pessoas com
cuidado na família (CORTEZ, 2003), Panorama da reforma saberes das instituições psiquiátricas convencionais, porque muitas vezes os pais, desconhecendo a transtorno mental. Neste cenário o grupo familiar
psiquiátrica no Piauí (EDUFPI, 2004) e O Nordeste na principalmente aquelas chamadas de totais, que fecham
extensão dos direitos da criança e do adolescente, passa a ser reconhecido também como provedor de
reforma psiquiátrica (EDUFPI, 2006), e é muita conhecida os indivíduos e realizam todas as atividades, na totalidade
por sua militância no campo da saúde mental e do serviço de suas esferas de vida, sob uma mesma direção e lógica sentem-se desautorizados a impor limites e a sua cuidado, e desse modo torna-se imprescindível sua
social, particularmente nos estados do Nordeste. organizacional. autoridade, dimensões inerentes ao processo incorporação nas ações dos serviços, requerendo-se

134 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 135
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

portanto um preparo mínimo para o desempenho único; 3) como provedora de cuidados; 4) como desassistência torna-se um forte atrativo para na pele” o peso do cuidado ou as mudanças na
desta função. avaliadora dos serviços e 5) como sujeito político. os familiares, pois, se o hospital psiquiátrico qualidade de vida, propiciadas pela inserção da
Tais dimensões não são excludentes, ao contrário, convencional é, real ou potencialmente, violador de ptm na comunidade. Assim, são atores estratégicos
A família, sobretudo na fase inicial da eclosão do
fundem-se em várias circunstâncias, sendo que em direitos, no senso comum e na exaustão do cuidador, também na formação de opinião pública, a favor ou
transtorno mental, tem um papel fundamental na
algumas situações uma ou outra dessas identidades “ruim com ele, pior sem ele”. Tal percepção deve- contra o modelo assistencial.
construção de uma nova trajetória para o seu ente
se sobressai mais. se à função que tal modalidade assistencial tem
enfermo, mas seus recursos emocionais, temporais, Um dos aspectos a serem repensados na abordagem
cumprido na divisão de encargo do cuidado com
econômicos e seus saberes têm que ser bem Por sua vez, o envolvimento significativo da família e inclusão dos cuidadores-familiares no novo modelo
a ptm, entre Estado e família (VASCONCELOS,
direcionados, e a contribuição dos trabalhadores e no processo de reforma psiquiátrica, como um assistencial, sobretudo nas rotinas dos centros de
1992). Ainda, como a política de saúde mental se
serviços psiquiátricos tornam-se fundamentais até ator, um protagonista, tem se constituído um atenção psicossocial, remete ao formato desejado
encontra em uma fase de transição de modelos,
para desconstruir o imaginário social de que “lugar desafio. Inicialmente alguns familiares, através pelos profissionais de nível superior acerca da forma
a coexistência do novo modelo com o anterior, bem
de louco é no hospício”. É importante destacar que de associações, inserem-se na luta em prol da de participação/integração da família nos projetos
como as contradições e crises, singulares e comuns
a família também partilha deste imaginário social, cidadania da pessoa com transtorno mental e de sua terapêuticos versus as possibilidades concretas das
a todo processo de mudança, aliada ao jogo político,
pois é membro da sociedade e, consequentemente, reinserção na comunidade. Isto é, originariamente famílias. Neste horizonte desenha-se um possível
em muitos momentos, repõe antigos fantasmas
participa de seus valores. Assim, é fundamental alguns grupos de familiares aparecem publicamente campo de tensão e de construção, pois alguns
– manicomiais – na arena de embate, exigindo
uma ação intensiva e de retaguarda dos serviços reivindicando algo para o ptm e não mostrando trabalhadores da saúde têm uma perspectiva de
reforços extras na garantia da direção do processo.
junto às famílias, para que se sintam potentes para sua realidade enquanto provedores de cuidado encontrar uma família “já pronta politicamente”,
continuar com sua função de cuidadora. ou requisitando algo para si. Outros, sobretudo Neste sentido, é identificada a resistência de alguns ou seja, crítica em relação ao modelo assistencial
através da Associação de Familiares de Doentes grupos de familiares, organizados politicamente ou e ação do Estado e ativa, isto é, conhecedora dos
Teoricamente, a família ganhou visibilidade como
Mentais (AFDM), com sede no Rio de Janeiro, têm não, por desconhecimento da proposta do movimento mecanismos de garantia de direitos. Ainda, tem
provedora de cuidado no Brasil através da produção
resistido a este processo em função do temor de de reforma psiquiátrica, até porque não parece claro uma representação de como a família poderia ser
do professor Eduardo Mourão Vasconcelos (1992).
desassistência, por entender o processo reformista à maioria dos familiares-cuidadores a extensão e os incluída, qual lugar poderia ocupar, que nem sempre
No seu livro, o autor apresenta os contornos da
como equivalente à desospitalização, tendo por benefícios das mudanças em curso; em função das corresponde ao desejo e às reais possibilidades das
crise do provimento de cuidado doméstico à pessoa
sobrecargas vivenciadas pelos mesmos no ambiente famílias.
com transtorno mental em função das mudanças premissa que “a desinstitucionalização significaria
doméstico e das próprias mudanças internas pelas
demográficas e sociais que impactam a família. abandonar os doentes à própria sorte, seja pela Atualmente, vislumbra-se o desenho de participação
quais vem passando o grupo familiar; por temor em
premissa crítica, correta, de que seu objetivo pode no cerne das políticas públicas no formato
Como um ator a ser cuidado pelos serviços, a terem que arcar sozinhos com o peso do cuidado ou
ser o de reduzir ou erradicar a responsabilidade do representativo. Em alguns contextos, materializados
família é trabalhada por vários autores, tais como por questões ideológicas e posicionamento político.
Estado para com estas pessoas e familiares, seja na forma de conselho gestor dos serviços, em
o psiquiatra Jonas Melman (2001) a partir da No III Fórum Social Mundial, no Seminário/Oficina:
por uma compreensão pouco correta do conteúdo outros na forma da participação em comissões de
experiência do Centro de Atenção Psicossocial Luiz “Clínica e Política e Capitalismo Contemporâneo:
teórico que está em jogo” (AMARANTE, 1996: 21). reforma psiquiátrica, em que a integração da família
Cerqueira, na cidade de São Paulo, primeiro do resistências no/do campo da reforma psiquiátrica
fica limitada a poucas pessoas. Isso não seria um
Brasil. É também vista como provedora de cuidados Para exemplificar tal receio, no mês de setembro brasileira”, na síntese das proposições, figura a
limite, caso houvesse dispositivos eficientes, de
no plano doméstico e prático, a partir dos impactos de 2002, a AFDM realizou no Rio de Janeiro seu II seguinte expressão: “deve-se admitir o fracasso da
massa e diversificados, para atingir principalmente
das demandas de cuidado impostas pela emergência Congresso Nacional, para “debater as consequências inclusão dos familiares na proposta da Reforma e
o público analfabeto, de divulgação e socialização
de uma pessoa com transtorno mental (ptm) em seu das Políticas de Saúde Mental”. No jornal AFDM propor novas formas de abordagem da questão”.
das informações. Da mesma maneira, no geral,
seio, dentre outros, por Rosa (2003). Informa a manchete destaca: “Congresso rejeita Parece uma visão um tanto quanto pessimista,
observa-se que quando um grupo de familiares toma
política de saúde mental imposta pelo MS”, por muito embora sinalize a necessidade da criação de
A família no interior dos debates reformistas a iniciativa de se reunir e deliberar pela criação de
considerá-la produtora de desassistência. novas formas de abordagem da questão.
ganha uma pluralidade de sentidos e dimensões, uma entidade representativa, ao ser nomeado um
preponderantemente como: 1) um grupo que Embora com uma conotação política O apoio da família e sobretudo dos cuidadores- presidente/coordenador, a pessoa que assume este
precisa de assistência e cuidados; 2) como um contrarreformista bastante evidenciada, tentar familiares à mudança no modelo assistencial é lugar tende a ficar solitário ou contar com reduzido
recurso ou lugar, como outro qualquer, mas não o organizar os familiares em função do temor de fundamental, haja vista que são eles que “sentem número de pessoas no trabalho cotidiano. Até

136 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 137
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

mesmo as pessoas dos demais cargos de diretoria as questões a eles atinentes, que impõe uma forma incluída nos projetos terapêuticos dos serviços. a sua existência reforçada por alguns segmentos.
tendem a apenas emprestar seu nome, sem sair peculiar de enfrentar as tensões políticas e sociais Evidentemente, estas visões não são excludentes Para exemplificar, as famílias homoparentais lutam
daquele lugar nomeado hierarquicamente, mas, ao através do “jeitinho brasileiro”. Neste sentido há entre si, ao contrário, fundem-se, e sobre a família/ contemporaneamente pelo casamento e pela
mesmo tempo, sem contribuir e participar de forma uma tendência de familiares/usuários dos serviços cuidador podem-se construir múltiplas imagens, adoção de filhos, isto é, certas minorias de quem
ativa na gestão do dia a dia das deliberações. Tal de saúde contornarem e rejeitarem a perspectiva de pois têm uma atuação multidimensional, sendo se esperava a construção de formas alternativas de
característica de participação é típica da formação um confronto direto com os trabalhadores de saúde sua identidade plural e manifesta a partir de sua se associar e viver em sociedade (ROUDINESCO,
política do brasileiro, que se sente ativo apenas no e com os dirigentes dos serviços. Por estratégia, condição de classe, de seu contexto assistencial, de 2003) passam a reforçar aquela organização que
momento de oferecer seu voto, e que, não raras pois, temem que qualquer represália recaia sobre o suas atitudes, de seu preparo político e instrumental aparentemente negavam, principalmente a família
vezes, é assediado por ofertas de compra de voto. “lado mais fraco da corda”, a pessoa com transtorno como cuidadora e ainda a partir da posição de quem edipiana.
mental, ou ficam receosos no caso de precisar voltar a examina.
Além disso, no campo da assistência psiquiátrica, Teórica e praticamente, a revitalização do tema
a necessitar do serviço e ficarem marcados e, da família pode ser atribuída a alguns processos
os familiares-cuidadores exaustos e estigmatizados
assim, serem negligenciados ou sofrer a desforra, históricos em curso. As mudanças decorrentes da
temem tornar pública sua condição ou se expor 3. De que família se fala na assistência
que pode se dar de forma bastante sutil, quase reestruturação produtiva, que lançou vários de seus
publicamente como representante da “saúde psiquiátrica?
imperceptível. Ainda desviam-se, e algumas vezes integrantes ao desemprego estrutural, mostram
mental”, pois, conviverão com o risco de rótulo de
são desviados intencionalmente de tal confronto, a importância da família na garantia de vínculos/
“familiar de doido”. Somando-se aos limites dados,
por desconhecimento dos mecanismos formais, do No presente estudo a família será conceituada referências sociais e como espaço de sobrevivência
observa-se que as associações de familiares-
tipo ativação do Ministério Público, do Conselho de a partir de uma concepção sociológica, e assim é e provimento de cuidado. As políticas neoliberais,
cuidadores preponderantemente são coordenadas
Saúde, ou de denúncia nos conselhos de profissões... apreendida como o “conjunto de pessoas ligadas direcionadas regressivamente para as políticas
e compostas por mães, no geral, com uma certa
Quando o usuário decide-se pelo confronto, por laços de sangue, parentesco ou dependência sociais, remetem várias funções, antes assumidas
idade, isto é, em uma fase da vida que podem
atualmente, é comum o recurso à imprensa, e até que estabelecem entre si relações de solidariedade em parte ou integralmente pelo Estado, para o grupo
estar precisando também ser cuidadas. Aí, pode-se
há pouco tempo era ao bispo/à igreja. A denúncia e tensão, conflito e afeto (...) e (se conforma) como familiar. Os processos de desinstitucionalização,
indagar, por que no âmbito familiar é a maternidade
de violação de direitos em veículo de formação de uma unidade de indivíduos de sexos, idades e que mostram a falência das instituições totais
que, mais intensamente, mobiliza a participação opinião pública, mais destacadamente a televisão, (manicômios, prisões, asilos, orfanatos etc.) e
posições diversificadas, que vivenciam um constante
política? tem-se mostrado bastante eficiente e eficaz. É buscam propostas alternativas que assegurem
jogo de poder que se cristaliza na distribuição de
Parece haver uma crise nas formas de participação, comum a resolução quase que imediata de certos direitos e deveres” (BRUSCHINI, 1989). direitos a grupos específicos da população e
até então construídas. Além disso, há uma problemas na área da saúde, assim que ganha valorizam os serviços abertos e comunitários,
Várias disciplinas definem o que é família, cada qual
subalternização59 histórica dos segmentos de baixa visibilidade pública, muito embora os mecanismos têm a família como uma das parceiras nos novos
destacando aspectos considerados importantes
renda que se soma ao desconhecimento e falta de de controle social e o Ministério público tenham processos, ao ser a mediadora entre seus membros e
para o conjunto de saberes e práticas de cada área.
exercício cotidiano dos direitos de cidadania e todas apresentado também certa eficácia. a sociedade. Neste contexto, parece que até mesmo
Muito embora haja diferenças entre os vários ramos
a cidadania sofre algumas injunções que alargam
Vale lembrar, mais uma vez, que o lugar atual do saber, consensualmente todos reconhecem que
seu espectro. Até então, a cidadania implicava uma
da família nos serviços de saúde mental sofre a família é um grupo histórico, que é determinado
59 Emprego este termo para informar o jeito relação direta do indivíduo-cidadão com o Estado,
aparentemente passivo e resignado com que os usuários a influência de toda a conformação definida no por instâncias macroeconômicas, mas também cria
por isso as políticas sociais serem fragmentadas
de baixa renda se comportam diante dos serviços e da arcabouço teórico das origens da psiquiatria. novas determinações que remetem à sociedade.
pessoa que estudou, do(a) doutor(a). Um jeito de ser e voltadas para certos indivíduos em situações
Historicamente, no campo psi, a família ganhou É assujeitada e é sujeito do processo histórico.
construído no processo histórico e na sabedoria popular peculiares no grupo familiar: a criança, a gestante,
visibilidade teórica (como vilã ou vítima do transtorno Alguns teóricos chegaram a decretar a sua morte,
que evita o confronto e a cobrança direta. Longe está de o idoso, a pessoa com deficiência. Atualmente, há
culpabilizar o usuário pelo seu próprio comportamento. mental); assistencial (como recurso, visita ou agente sobretudo da família moderna/burguesa/edipiana,
uma tendência das políticas públicas terem sua
Registra apenas a forma como se configurou a cidadania assistida através das terapias familiares) e mais por considerar que é um grupo patogênico, produtor
em uma sociedade com poucos letrados, que não teve matricialidade na família, para um grupo de pessoas,
recentemente como sujeito político, que se organiza de repressão e sofrimento. Contudo, atualmente, os
a cidadania plena/universal, e que se relaciona com os a exemplo do Programa Saúde da Família e do
e luta por direitos, promove ações na esfera pública; estudos têm mostrando o seu revigoramento, apesar
pobres de maneira autoritária e como recebedores de Sistema Único da Assistência Social. Dessa forma,
favor. ou como provedora de cuidados, que deve ser das intensas mudanças pelas quais atravessa, sendo

138 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 139
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

tende a haver uma “invasão” da família, ao ganhar Todavia, parte significativa dos hospitais um dos objetivos dos CAPS é incentivar que as serviços e capacidades. Para se transformar em
focalidade nos programas governamentais. Embora psiquiátricos se modernizou e é exigido, como famílias participem da melhor forma possível do práticas, as ações têm que se desconcentrar das
programas como o Saúde da Família não se limitem visto na portaria acima, a incluir a família nos cotidiano dos serviços. Os familiares são, muitas estruturas arquitetônicas tradicionais e dos lugares
à família de baixa renda, é, todavia, esta que tem se seus projetos terapêuticos. A portaria 251 parece vezes, o elo mais próximo que os usuários têm típicos dos técnicos e ir para os espaços onde a
tornado seu público principal, até porque tende a ser restringir o âmbito da abordagem da família/ com o mundo e por isso são pessoas muito gestão da vida cotidiana da pessoa com transtorno
mais receptiva, a criar vínculos com maior facilidade cuidador ao aspecto instrumental da enfermidade importantes para o trabalho de CAPS, não mental acontece, e por isso a lógica do CAPS estar
com os profissionais, e arrisca assim descortinar o e do tratamento. Estabeleceu padrões mínimos de somente incentivando o usuário a se envolver no centrada no território.
seu espaço de intimidade/privacidade, por ser mais qualidade assistencial, sobretudo para hospitais projeto terapêutico, mas também participando
porosa à intervenção de outrem. psiquiátricos, na abordagem da família. Isso não diretamente das atividades do serviço. Os
quer dizer que tais serviços devam se limitar a 4) Algumas limitações no trabalho com a
Um ponto importante é que a família que procura familiares são considerados pelos CAPS como
este mínimo, muito embora a tradição brasileira família
a assistência psiquiátrica, no geral, está em um parceiros no tratamento. (BRASIL, 2004, p. 29)
de gestão tenha comprovado que o mínimo tende
contexto de crise, e uma crise já instalada, com uma
a se transformar em máximo. De qualquer maneira,
história e várias tentativas, sem êxito, para debelá- Trabalhar com famílias apresenta várias limitações
é exigido que todos os serviços assistenciais em A parceria é conceituada no dicionário como
la. A observação e os estudos sistemáticos têm e possibilidades ao profissional, porém apenas se
psiquiatria passem a ter uma abordagem voltada à uma reunião de pessoas com um fim em comum,
mostrado que a família tenta resolver os problemas elencarão algumas questões.
unidade ou ao grupo familiar/cuidador. uma sociedade. Como CAPS e família são ambos
que emergem em seu seio, inicialmente, de maneira
provedores de cuidado, a inclusão dos familiares- Contemporaneamente, as unidades familiares vêm
privada, recorrendo a seus próprios conhecimentos A experiência tem mostrado que frequentemente,
cuidadores no projeto terapêutico tende a trazer passando por intensas mudanças, independente
e estratégias de atuação que se mostraram ao familiar-cuidador, os serviços oferecem um
uma série de benefícios para os dois lados, tendo da classe social. Algumas mudanças demográficas
anteriormente eficazes. atendimento com orientações individuais ou
em vista o objetivo maior que é a reabilitação têm um peso significativo no cuidado entre seus
grupais. É relativamente comum a prática regular de
Assim, se não consegue resolver um problema integrantes. A redução no tamanho das famílias faz
reuniões semanais com a família. Alguns serviços psicossocial. Tal conceito é empregado por Saraceno
internamente, o grupo familiar tende a recorrer com que um número cada vez menor de pessoas
promovem visitas domiciliares, mas são os centros como sinônimo de cidadania, circunscrita ao
em seguida à rede de parentesco e vizinhança e às esteja disponível para prover cuidados. De forma
de atenção psicossocial que a desenvolvem de
autoridades próximas ao local de residência (padre, associada, sendo a mulher historicamente a principal
maneira mais sistemática, como parte inerente
pastor, pai de santo, benzedeiras etc.). Esgotados os conjunto de estratégias orientadas a aumentar as cuidadora no ambiente doméstico, sua saída para
ao projeto terapêutico. As supracitadas reuniões,
recursos de maior proximidade, aí sim procura um oportunidades de troca de recursos e de afetos: é o mercado de trabalho e suas múltiplas jornadas e
mesmo que episódicas em alguns contextos,
serviço público. somente no interior de tal dinâmica das trocas que exigências de requalificação têm intensificado as
tornam-se importantes para o cuidador doméstico,
Normalmente, esta família chega a um serviço pois muitas vezes é a maneira mais efetiva/segura se cria um efeito “habilitador” (...) reabilitação é tensões entre os provedores de renda para o grupo
psiquiátrico com sentimentos de impotência, que tem institucionalmente de tirar suas dúvidas um processo que implica a abertura de espaços versus as pessoas que são dependentes de cuidados
exaustão, culpa, desespero. É uma das últimas sobre a enfermidade, o cuidado e de dialogar com os de negociação para o paciente, para sua família, de terceiros. O familiar-cuidador que trabalha fora
formas de publicizar uma questão que preferia, profissionais. Mas, no geral, são os novos serviços, para a comunidade circundante e para os serviços sofre com a necessidade de divisão entre os tempos
se tivesse outra opção, resolver no plano privado. abertos e comunitários, que são desafiados a que se ocupam do paciente: a dinâmica da de gerar renda e de prover cuidado, arriscando-se
Como é acolhida? Qual o seu lugar nos serviços de implementar práticas diferenciadas com este negociação é contínua e não pode ser codificada ao subemprego ou até mesmo ao desemprego. Com
assistência psiquiátrica? segmento, a criar novas tecnologias de abordagem de uma vez por todas, já que os atores (e os as separações conjugais/divórcio, e a diferença
com os familiares-cuidadores, e, sobretudo, a poderes) em jogo são muitos e reciprocamente no mercado matrimonial, desfavorável à mulher, o
Na pedagogia dos hospitais psiquiátricos, a
dar visibilidade e contribuir na sua condição de multiplicantes. (SARACENO, 1999: 112) número de famílias monoparentais chefiadas pelas
família tendeu a ser abordada como informante da
provedora de cuidados domésticos, tendo em vista mulheres, sobretudo por idosas, tem aumentado
enfermidade, da trajetória da pessoa com transtorno
que: significativamente. Dessa maneira, as mulheres
mental e como visita. Ou seja, figurou como ator
Para metamorfosear em práticas os pressupostos idosas, numa fase que necessitam de maiores
instrumental ao tratamento, e não como sujeito,
supramencionados, os trabalhadores em saúde têm cuidados com a própria saúde, continuam sendo
provedora de cuidado.
que ser potentes mediadores, articulares de pessoas, intensamente demandadas como provedoras de

140 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 141
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

renda, até porque, no geral, têm a renda segura de se isolar, se deprimir ou até mesmo entrar no média e alta. Em certos casos, estes processos têm adulta com transtorno mental e para enfrentar suas
da aposentadoria e como provedoras de cuidado, alcoolismo. Neste sentido, os centros de convivência estimulado a precocidade dos filhos: uso do celular é próprias questões, que são múltiplas e multifacetadas.
inclusive de netos. e as universidades da terceira idade têm sido um rotina entre as crianças; a vida sexual dos filhos em Mas não um preparo nos moldes convencionais, em
excelente antídoto para aqueles ainda capazes de muitos domicílios da própria família também não é que um detentor do saber competente vai ensinar,
As mudanças nos valores no interior do grupo
frequentar tais espaços, mas nem todos têm acesso raro; o estímulo à direção de veículos antes da idade mas sim trocar saberes e também aprender. Há que
familiar têm intensificado alguns conflitos,
ou condições físicas para tal e, assim, o sofrimento legal etc. As casas são cada vez mais muradas e se ter como pressuposto de qualquer processo de
sobretudo de caráter intergeracional. Entre as
e o transtorno mental rondam estas pessoas, que se projetadas com equipamentos de segurança que capacitação que a família traz um conhecimento
famílias dos segmentos de baixa renda, orientados
veem fragilizadas socialmente. isolam a família. Os pais não são mais a única construído com base no ensaio e erro e nas múltiplas
historicamente por valores mais holistas e
fonte de transmissão de conhecimento, junto com a experiências que troca com seus pares. Ainda, não
relacionais, em que a pessoa existe em função De uma outra forma, alguns filhos, sobretudo os
escola, pois tem-se hoje a internet. tem como haver uma receita ou uma fórmula-padrão
do todo e suas decisões consideram primeiro as mais jovens, não têm integrado em seus valores
para prover cuidado no ambiente doméstico, pois
necessidades do grupo, parametrado pelo “dar, pessoais de vida o princípio da retribuição do A partir deste conjunto de mudanças, os profissionais
vários aspectos singularizam tal espaço. Este saber
receber, retribuir” (SARTI, 1996), tem penetrado cuidado oferecido por pai/mãe. Tem sido frequente são demandados a dialogar com famílias cada vez
do senso comum tem uma sabedoria e precisa
com intensa rapidez o valor do individualismo o sofrimento de mães idosas que gostariam de ser mais no plural, mas com experiências e valores
ser valorizado, respeitado e integrado ao saber
moderno. As novas gerações, orientadas pelo cuidadas por seus filhos e, ou têm que continuar distintos e regras bastante singularizadas. Uma
científico. Ainda, não basta prescrever condutas,
valor do indivíduo moderno, que centra a pessoa provendo cuidado ou, ainda pior, percebem que os outra limitação é que poucos trabalhadores em
embora algumas famílias demandem “receitas
em si mesma, sustentando as relações com base filhos a rejeitam e não têm o desejo de dispensar saúde estão capacitados para o trabalho com
prontas”, pois, sobretudo, aquelas dos segmentos
prioritária em critérios de prazer e realização cuidado quando necessitam. famílias. Além disso, no geral, as modalidades
de baixa renda e com um transtorno mental em seu
pessoal, têm produzido mudanças relacionais, de capacitação disponíveis aos profissionais para
As famílias até há pouco tempo tinham papéis mais meio são imediatistas, querem que “o doutor, que
que impactam a qualidade dos relacionamentos se qualificarem em um trabalho com a família no
demarcados, mais definidos e estáveis, em que o estudou pra isso”, ofereçam algumas respostas
entre os idosos e os jovens do grupo familiar. Vale campo psi é dispendioso, tendo, no geral, que ser
idoso tinha, se não um papel de destaque, mas de que garantam segurança e alguma resolutividade
destacar que a terceira idade é vivida de maneira custeadas pelos próprios alunos, têm uma duração
autoridade, e era uma figura que merecia a priori o no enfrentamento do cotidiano do provimento de
plural, heterogênea. Vários valores permeiam a prolongada e exigem uma dedicação intensa, sendo
respeito e a consideração de todos. Todavia, algumas cuidado.
experiência dos idosos contemporaneamente. O frequentemente dirigidos para o atendimento aos
pessoas mais idosas, sobretudo de baixa renda,
mercado consumidor, sobretudo de turismo, tem segmentos de classe média, que fala a mesma
tendem a resistir à família contemporânea, mais
investido nos idosos dos segmentos de alta renda. linguagem dos trabalhadores, e, portanto, detêm o 5. Alguns riscos envolvidos no trabalho com
igualitária, dinâmica, flexível e plural (VAITSMAN,
Contudo, entre os segmentos de baixa renda, mesmo habitus (BOURDIEU, 1982), mas criando uma famílias
1994), em que o lugar da autoridade se dissolve,
vislumbram-se mudanças mais intensas em duas incompreensão dos fenômenos familiares e uma
ou perde vigor. É comum, mesmo entre os mais
direções. De um lado os filhos, orientados pelo adequação das abordagens operativas quando se
idosos, a perda no manejo da autoridade. Alguns
valor do indivíduo moderno, querendo poupar os trata de famílias oriundas das classes populares, no No dia a dia da abordagem e atuação com a família,
estudos vêm mostrando que não são os filhos que
avós, sobretudo a avó, para que possa usufruir a contexto de serviços públicos. vários riscos permeiam a relação do profissional
mudaram, foram os pais que perderam exatamente
terceira idade com o autocuidado, prazer e lazer, os seus lugares sociais, sobretudo como autoridade. Ainda carecemos no Brasil de uma proposta teórico- com a família, destacando-se alguns. O primeiro é
tem distanciado os netos das avós, que foram O crescente reconhecimento de direitos de cada um metodológica para abordar famílias em contexto constituído pelo profissional se dispor a fazer um
socializadas predominantemente em valores holistas dos indivíduos no interior da família tem imposto de crise e engajá-las de forma efetiva nos projetos trabalho com a família sem o devido preparo teórico,
e relacionais, de ter uma vida em função do cuidado uma mudança sem precedentes, que leva os pais terapêuticos dos serviços de saúde mental. Não metodológico e ético. Neste sentido, qualquer ser
do outro e não de si mesma. Neste sentido, observa- a perderem referências até então construídas por basta informá-la sobre o diagnóstico, o tratamento humano se sente “meio doutor” em família, pois
se que algumas idosas, ao se verem sozinhas, por transmissão oral. Ainda, as possibilidades colocadas e a alta. As experiências na assistência psiquiátrica viveu e sofreu a vida toda a influência das relações
separação, por divórcio ou morte do cônjuge, ao se pela informática, pelo mercado consumidor e pela com grupos de familiares são escassas, e ainda não familiares. Desse modo, “naturalmente”, pode
verem “sozinhas no mundo”, sem saber como gerir devidamente documentadas e divulgadas. A família acreditar que entende de família.
própria violência urbana, têm fascinado e ao mesmo
um tempo que era dedicado ao outro, sem conseguir tempo atemorizado muitos pais, ou feito com que demanda um preparo mínimo para o complexo A ação conjunta de dois ou mais profissionais pode
orientar o cuidado para si mesma, correm o risco mudem comportamentos, sobretudo nas classes provimento de cuidado doméstico a uma pessoa trazer algum risco para a família. Se os envolvidos na

142 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 143
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

questão não tiverem preparo mínimo e maturidade, renda. No geral, poucos profissionais foram que o grupo familiar mostra toda sua incapacidade, que ter uma resposta para tudo para se manter
podem reproduzir os conflitos que a própria família capacitados academicamente para trabalhar com a impotência, mas é também a ocasião onde estão neste lugar. Ou seja, trata-se de uma formação
vivencia. Podem entrar em um jogo de disputa por família, e, quando o foram, parte significativa das afloradas várias capacidades que o próprio grupo, e atitude elitistas e autoritárias que permeiam as
competência ou simpatia da família. qualificações se voltam para a família de classe geralmente, não consegue identificar. É o momento intervenções e que colocam o profissional como o
média, de consultório, próximo da experiência em que o profissional pode observar a dinâmica único solucionador de problemas. Daí também a
Ilustrativamente, é bastante comum em um serviço
pessoal do profissional. Neste sentido, quando o familiar de forma exponenciada, na solidariedade ou prática do “aconselhamento”61 ser generalizada.
de saúde, mesmo CAPS, a família, mesmo sendo
profissional olha a família dos segmentos de baixa ausência dela, nas tentativas de encontrar saída, nos Frequentemente, alguns profissionais acham que
atendida por todos os profissionais da equipe de
renda, muitas vezes só consegue ver desorganização, recursos ou falta deles, assim como se observa se a sabem o que é melhor para todas as famílias que
nível superior, sentir que não foi atendida se não chegam em seu consultório/serviço ou que se
desestruturação, pois quando a família está em crise família conta com uma rede social com limitações ou
falar ou passar por uma consulta com o psiquiatra, encontram sob sua responsabilidade.
é assim que ela aparece aos seus próprios olhos e com oportunidades de oferecer suporte.
dada a dominância desta profissão na cultura em
aos olhares dos demais. Contudo, é nesta ocasião As redes podem constituir um suporte no Neste horizonte, é importante registrar que qualquer
geral. Às vezes, a atuação dos demais profissionais
que ela busca um profissional ou um serviço de enfrentamento de situações adversas, como o profissional reage ao se deparar com o grupo
é mais intensa com os cuidadores domésticos, mas
assistência psiquiátrica. Os profissionais, no geral, transtorno mental, na situação de insegurança familiar e com seus problemas. Cecchin (2000:73)
é comum em reuniões ou assembleias os mesmos
estão pouco habituados com o olhar antropológico econômica e também frente à falência dos serviços aponta cinco respostas básicas dos profissionais em
elogiarem ou só reconhecerem publicamente
para entender outros códigos culturais e outros públicos, muito embora não os substitua. Pode relação à família:
apenas a ação médica.
arranjos, que não os de sua própria classe social. ainda ser um agravante da situação vivida pela
Em muitos serviços, além dos vínculos precários Além disso, confundem pobreza econômica, família, pela sua ausência, por falta de vínculos de
de trabalho e dos baixos salários, há um baixo material, com pobreza cultural, e assim, nem solidariedade ou pelo estigma associado. a) o profissional tem necessidade de tornar-se
nível de recompensa simbólica, por exemplo, de sempre se abrem para aprender com os segmentos útil para a família. Neste cenário, quanto mais o
Diante da família em crise e que quer transferir a profissional é útil, mais a família se sente inútil,
reconhecimento pelo trabalho realizado e este, de baixa renda, que têm códigos linguísticos e
resolução de seus problemas para os profissionais desamparada e impotente, pois não constrói novas
muitas vezes, é um dos quais os profissionais comportamentais particulares.
“que estudaram e entendem disso” (do cuidado soluções para seus problemas;
esperam ter, e muitas vezes não têm, da parte dos Os familiares-cuidadores, no geral, trazem para da pessoa com transtorno mental), é comum o
cuidadores-familiares. Neste contexto, não é rara a os profissionais e serviços de saúde, além da b) alguns se colocam como professores,
profissional se ver diante do dilema de ter que dar
decepção e a fala de indignação dos profissionais crise psiquiátrica, toda a sua crise existencial, prescrevendo comportamentos, “aconselhando”
uma resposta, seja ela qual for, até para aliviar sua
que não foram reconhecidos. É preciso maturidade, pelos abalos produzidos, sobretudo, pelas sem a família-cuidador ter solicitado. Neste sentido,
própria angústia, demonstrar certa competência
bom senso e acima de tudo ética para enfrentar privações socioeconômicas. Vale lembrar que quanto mais professoral é o profissional, menos a
ou dar a impressão de que deu alguma solução.
esta situação. As “guerrinhas” de vaidade ou família e o cuidador aprendem, e menor qualidade
um dos princípios do Sistema Único de Saúde é Para o médico parece ser mais tranquilo prescrever
interprofissionais podem ser reproduzidas na interacional existirá entre ambos;
a atenção integral. Neste horizonte, não basta uma medicação ou requisitar um exame. Para
intervenção com os familiares-cuidadores, pois escutar a “enfermidade” e sim também os seus os demais profissionais, às vezes há o apego ao c) o profissional deseja controlar o grupo, disciplinar
muitos profissionais querem mostrar serviço, condicionantes/determinantes e o contexto de vida encaminhamento para os recursos da comunidade,
mostrar-se úteis para a família. Muitas vezes estas das famílias. A crise psiquiátrica é apenas um dos muitas vezes numa postura de transferência de
disputas acabam reproduzindo os próprios conflitos resolve, sem diálogo, sem aprendizagem e interlocução
problemas a intensificar os dramas vividos pelas responsabilidade e não de compartilhamento de
com a família-cuidador.
vivenciados entre os membros no interior de cada famílias, vulnerabilizadas pelo contexto de pobreza soluções. O familiar-cuidador, frequentemente,
grupo familiar. A carência afetiva/simbólica do e exclusão/destituição social. tem a expectativa de que o profissional tenha uma 61 Muitos profissionais assumem, tacitamente ou não, que
profissional acaba, algumas vezes, se sobrepondo “varinha de condão”, e muitos profissionais assumem fazem aconselhamento sem definir tal conceito e sem ter
É um risco profissional só se ver pobreza, impotência um preparo específico para tanto, limitando-se a prescrever
às necessidades das pessoas e dos grupos tal encargo/fantasia. Aqueles que assumem o
e impossibilidade. Neste caso, o risco maior é do condutas, sem avaliar o impacto de sua atuação sobre a
vulnerabilizados. É necessário muita autovigilância exercício de sua profissão como “o” doutor60 têm família-cuidador. “Aconselhar” não deixa de ser uma das
profissional ficar tão paralisado quanto a família, e
nas práticas com a família. O espaço das supervisões estratégias para aliviar a angústia de muitos profissionais,
não vislumbrar outras possibilidades, nem mesmo
é fundamental neste sentido. que também acreditam que com isso mostraram sua
através da intersetorialidade com outras políticas 60 Não se trata da posição e sim da atitude hierárquica competência ou deram uma “resolutividade” à questão
Outro aspecto é a relação com famílias de baixa públicas. A circunstância de crise é a ocasião em e autoritária, daquele que sabe tudo e por isso tudo trazida pelos usuários de seus serviços.

144 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 145
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

o processo interativo, deixando os membros com a disponibilidade da família” (TRAD, 2005)62. profissionais dos serviços podem ser violentos com debate, sobretudo sobre a dialética da família, por um
dependentes ou apáticos; os familiares de pessoas com transtornos mentais lado como usuária de serviços e programas de saúde
Mesmo entre os mais pobres há um espírito de
severos. Informa que em mental, e, por outro, como sujeito político, parceira e
d) o profissional quer proteger as pessoas e a hospitalidade, há um desejo de oferecer um café, às
participante das ações da assistência psiquiátrica.
família percebida como desorganizadas, infelizes vezes impossível. É comum em visitas domiciliares às geral porque acabamos por naturalizar a gravidade
e desestruturadas, e toma para si a tarefa de famílias muito pobres o pedido de desculpas por não dos casos que nos chegam. Damos pouca A partir de nossa análise, constatamos a necessidade
reorganizar e cuidar do grupo. Neste sentido, não ter cadeira para oferecer ao profissional para que se relevância às queixas desses familiares, que vão da construção de uma nova pedagogia na relação
há um aprendizado do próprio grupo na resolução de sente. Em muitas ocasiões, a boa conversa se dá na desde queixas de estarem sofrendo psiquicamente entre os serviços de assistência psiquiátrica com as
situações limites; frente de casa, sentados no paralelepípedo da calçada com as situações graves que vivenciam até queixas famílias e, sobretudo, com os familiares-cuidadores,
ou no tronco de uma árvore no fundo do quintal. de perdas materiais decorrentes de episódios de reconhecendo e valorizando seus saberes e recursos
e) o profissional manifesta, consciente ou
agressividade do paciente ou mesmo de violência forjados na convivência diária com a pessoa com
inconscientemente, o desejo de punir a família, Ainda, os profissionais tendem no ambiente natural da
física. (...) essa naturalização do sofrimento das transtorno mental. Neste sentido, é fundamental:
dando uma lição no que considera ser o mau marido, família a obter segredos da família, a ter informações
privilegiadas que o familiar-cuidador não forneceria famílias, em prol da valorização e proteção do
má mãe, má filha, mau cuidador.
se não estivesse naquele espaço. As várias versões sofrimento dos pacientes graves (...) me parece
fruto de uma atitude nossa que é muito mais a) uma organização flexível dos serviços de saúde
e vivências de um mesmo fenômeno, a partir de uma
comum do que imaginamos (...) no afã de defender mental, de forma a atender às necessidades,
Nas formas acima esboçadas de oferecer resposta conversa conjunta, sobretudo com o usuário do serviço
os loucos fomos capturados por uma tendência de também, do familiar-cuidador;
ao grupo de familiares-cuidadores, o profissional e com o seu cuidador, tendem a se explicitar, exigindo
arrisca exercer a cruel compaixão (SZASZ, 1994), do profissional a escuta cuidadosa, preservadora vitimizá-los.(...) só resta ao serviço ser heroico e b) a ultrapassagem do provimento de cuidado
pois em nome de contribuir, auxiliar o grupo para sair da integridade de cada um, e o devido manejo ético salvar o paciente. Atitude que atribui à instituição da esfera meramente pessoal e doméstica, dos
de seu contexto de crise e impotência, substitui o para que o confronto de duas versões, algumas vezes de cuidado um poder muito totalizante e perigoso. espaços considerados naturais, politizando-o como
papel dos membros da família, subtrai competência contraditórias, não se explicite e produza maior dano Fica ressaltada, sob essa ótica, a história da uma questão de toda a sociedade, remetida às
própria da família, desconsidera recursos e a aos implicados. Há então, a necessidade de zelo pela relação do serviço com o “caso”, e não a história políticas públicas;
necessidade da própria família construir sua história privacidade, intimidade e, acima de tudo, o agir com de vida da pessoa e do meio no qual está inserida.
c) uma maior visibilidade sobre a questão do cuidado
ética com este grupo. (p. 147)
e se sentir potente para resolver suas próprias doméstico, objetivando reorientar a atenção dos
questões, em conjunto ou com a colaboração dos No ambiente doméstico, nos bairros pobres, órgãos formadores e gestores;
profissionais, e não exclusivamente por estes. o profissional sai dos espaços seguros dos A autora mostra a tendência de polarização e d) uma atenção especial para as mudanças
Um outro risco está inerente aos novos processos de consultórios, onde ele domina o meio, e vai para um redução das análises e experiências cotidianas, o sociodemográficas dos grupos familiares no país,
trabalho, que impõem a visita domiciliar. Primeiro, espaço incerto, com regras que desconhece, tendo que subtrai a complexidade inerente às situações sobretudo para a posição e a vulnerabilidade das
o profissional tem que fazer uma visita para a qual que lidar inclusive com a violência urbana. É comum mais comuns na assistência psiquiátrica. mulheres em seu interior;
não foi convidado. As famílias, no geral, nem foram os familiares-cuidadores alertarem os visitadores
Como visto, os riscos que permeiam o trabalho e) uma maior integração dos familiares-cuidadores
consultadas se desejam tal visita. A residência é que é melhor irem embora de certos bairros antes
com a família são densos, exigindo tanto da família na atenção, sem descuidar da pessoa com
um espaço da família, de sua intimidade. Cada casa das 18 horas, pois o pessoal do tráfico começa a se
quanto do profissional. Cabe ao bom cuidador zelar transtorno mental e sem polarizar olhares, mas
tem suas próprias regras, horários e cada família fazer presente depois deste horário.
então para que a dignidade e a integridade das sempre resgatando a complexidade das situações.
tem ainda seu senso de dignidade, que muitas Leal (2002), ao analisar a violência na rede de famílias sejam preservadas.
vezes é abalado em função da invasão de muitos assistência à saúde mental, mostra como os
profissionais que, além de impor sua presença no Para finalizar, é preciso reconhecer que trabalhar
ambiente doméstico, não consideram o horário que 6. Considerações finais com um tema complexo como o provimento de
seria mais conveniente para a família: “o horário, 62 Leny Trad, professora da UFBA em palestra no III cuidado doméstico à pessoa com transtorno mental
Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em
as rotinas não devem ser encarados como parte da lança qualquer profissional em um campo de maior
Saúde, promovido pela ABRASCO, de 9 a 13 de julho de
rotina burocrática dos serviços. Há que se definir 2003 em Florianópolis, SC. Como um texto introdutório, o objetivo foi mapear incerteza e complexidade, e exige o acionamento de
horários compatíveis com as rotinas domésticas e algumas questões relevantes para enriquecer o um olhar integral que implica a “intersetorialidade

146 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 147
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

e a diversificação. Se nos propusemos a lidar com portador de transtorno mental. In: VASCONCELOS,
problemas complexos, há que se diversificar ofertas, E. M. (org.) Saúde mental e Serviço Social – o
de maneira integrada, e buscar em outros setores desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade.
aquilo que a saúde não oferece, pois nem sempre São Paulo: Cortez, 2000, p. 263-288.
lhe é inerente” (ALVES, 2001). ROSA, L. C. S. Os saberes construídos sobre a
família na área da saúde mental. In: Revista Serviço
Social e Sociedade, p. 138-164, n. 71. Ano XXIII. São
Referências
Paulo: Cortez Ed., 2002.
L. C. S. Transtorno mental e o cuidado na família.
ALVES, Domingos S. Integralidade nas Políticas de São Paulo: Cortez Ed., 2003.
Saúde Mental.. In: Os sentidos da integralidade na ROSA, L. C. S. O cotidiano, as tensões e s
atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS- repercussões do provimento de cuidado doméstico
UERJ-ABRASCO, 2001, p. 167-176. ao portador de transtorno mental. In: Saúde em
AMARANTE, P. O homem e a serpente: outras Debate, Rio de Janeiro, v. 28, n. 66, p. 28-37. jan/ Texto 6 saúde mental fundado em 1997, e portanto já com
histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de abr. 2004. muitos anos de atividades, e que será descrito mais
Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 1996. SARACENO, B. Libertando identidades: da à frente; ou ainda na militância antimanicomial e
BIRMAN, J. A psiquiatria como discurso da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio A família e os grupos de ajuda em minha própria vivência pessoal e familiar. Nos
moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978. de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/TeCorá, 1999. e suporte mútuos em saúde últimos anos, com uma inserção mais orgânica deste
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. SARTI, C. A família como espelho: um estudo
mental trabalho junto ao Projeto Transversões, da Escola
São Paulo: Perspectiva, 1982. sobre a moral dos pobres. Campinas: Ed. Autores Rosaura Maria Braz63 de Serviço social da UFRJ, passei a atuar mais
BRASIL. Legislação em saúde mental: 1990-2004. Associados, 1996. ativamente como pesquisadora e fazer anotações
Brasília: Ministério da Saúde, 2004. SZASZ, T. Cruel compaixão. Campinas: Papirus, mais sistemáticas sobre ele, na forma de diário de
BRUSCHINI, C. Uma abordagem sociológica da 1) Apresentação campo.
1999.
família. ABEP. V. 6, nº 01 jan/jul., 1989. SCOTT, R. P. A etnografia da família de camadas Este texto é fruto de minha atuação, iniciada A pretensão deste texto introdutório é de levantar
CECCHIN, G. Sistemas terapêuticos e terapeutas. In: médias e de pobres urbanos: trabalho, poder e a em 1983, no Rio de Janeiro, como psicóloga em questões que nos ajudem a pensar sobre os
ELKAIM, Mony. Terapia familiar em transformação. inversão do público e do privado. (1996). In: SCOTT, consultório e como acompanhante terapêutica, estereótipos e estigmas vividos pelas famílias
São Paulo: Summus Editorial, 2000, p. 72-77. R. P. Pesquisando gênero e família. Revista de quando pude compartilhar o cotidiano de clientes que convivem com o sofrimento mental dentro de
LEAL, Erotildes Maria. A experiência da violência na antropologia, p. 142-160, v. 1, nº 2, Série Família e e demais moradores dentro de suas próprias casa, e convidá-los a saírem de seu isolamento
rede de assistência à saúde mental – notas, p. 141- Gênero. residências, inclusive nos momentos de crise aguda; e engajarem-se na troca com seus pares,
150. In: RAUTER, C.; PASSOS, E.; BENEVIDES, R. (org.). VAITSMAN, J. Flexíveis e plurais: identidade, trabalhando com grupos de familiares num grande particularmente em grupos de ajuda mútua e em
Clínica e Política: subjetividade e violação dos direitos casamento e família em circunstâncias pós- asilo, ou em associação de familiares e no Grupo associações de familiares e usuários. Além disso,
humanos. Rio de Janeiro: IFB/Te-Corá Editora, 2002. modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Alento, um grupo de familiares de usuários da visa também sensibilizar profissionais e a sociedade
MELMAN, J. Doença mental e família. São Paulo: civil, que fazem parte deste processo de recuperação
VASCONCELOS, E. M. Do hospício à comunidade:
Escrituras, 2001. do usuário e sua família.
mudança sim, negligência não. Belo Horizonte: 63 Psicóloga clínica, terapeuta de família, coordenadora
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Segrac, 1992. do Grupo Alento (de ajuda mútua com familiares do É fundamental afirmar que, em minha estimativa,
Relatório sobre a saúde no mundo 2001. Suíça: campo da saúde mental) e pesquisadora acerca de temas o número de familiares amorosos, solitários,
Organização Mundial da Saúde, 2001. sobre família, desinstitucionalização e saúde mental
impotentes e sem saber aonde recorrer para
(Projeto Transversões ESS / UFRJ). Contatos: rosaura.
ROSA, L. C. S. As condições da família brasileira braz@gmail.com e telefone cel. (21) 9129-072 melhorar os cuidados permanentes ao usuário e
de baixa renda no provimento de cuidados com o melhorar sua própria qualidade de vida é bastante

148 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 149
TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO TEMAS DE APROFUNDAMENTO OPERATIVO

significativo. Este texto será dedicado a estes obter informações detalhadas sobre sua história de Historicamente, no Brasil, a loucura passou a ser O nascimento de um(a) filho(a) aumenta estas
familiares, que merecem todo o nosso respeito e vida e de seus sintomas. Até o presente momento trancafiada a partir da chegada da corte portuguesa expectativas e é comum o desejo de que esta
apoio. não existem marcadores biológicos próprios dessa na cidade do Rio de Janeiro, em 1808. As melhorias criança seja saudável, inteligente, bonita e que
doença nem exames complementares específicos. urbanas, como calçamento e iluminação das tenha um futuro bem-sucedido. O olhar de parentes,
Gostaria de iniciar meus comentários tecendo
ruas, e a nova cultura requerida pelo status de amigos, vizinhos e conhecidos contribui com todos
algumas considerações mais amplas sobre os Alguns fatores podem contribuir para o
sede do império, exigiam a retirada das vias estes sonhos.
transtornos mentais. desencadeamento de um surto psicótico, como
públicas daquelas pessoas excluídas socialmente
o uso abusivo de bebidas alcoólicas ou outras
(prostitutas, epiléticos, devassos, ladrões,
drogas, mudanças no ciclo vital, fatos inesperados e 3.2) “Mas aí, um dia ... o que é isso?” O susto
alcoólatras e os loucos). Todos foram encaminhados
dramáticos na vida pessoal. Os transtornos mentais com a primeira crise e com o diagnóstico
para os porões da Santa Casa da Misericórdia,
2) Transtornos mentais: considerações mais maiores, ou psicóticos, manifestam-se através
sendo que os loucos, em 1852, foram enviados para
gerais de sintomas clássicos como alucinações, delírios,
o recém-inaugurado Hospital de Alienados Pedro II,
falta de pragmatismo, alterações do pensamento Tudo vai bem até que um dia aparece um convidado
na Praia Vermelha, na época distante da cidade e
e da afetividade, além de um número específico inesperado – uma doença ou condição crônica
Na Classificação de Transtornos Mentais e o primeiro de uma série de manicômios que foram
de variações profundas de comportamento, tais de dependência –, e neste momento aquelas
de Comportamento da CID – 10 (Classificação criados posteriormente no Brasil. Se inicia assim
como excitação e hiperatividade grosseiras, retardo expectativas e projetos de vida são brutalmente
Internacional de Doenças/1992), o termo transtorno no país o afastamento da pessoa com sofrimento
psicomotor marcante e comportamento catatônico. ameaçados, como se o chão de repente se abrisse
não é considerado um termo exato, porém é usado mental do convívio familiar e social, em um processo
Quando o surto é desencadeado somente pelo uso em nossos pés em um abismo sem fundo e a vida se
para indicar a existência de um conjunto de sintomas tardio mas similar ao que também ocorreu em outros
de drogas lícitas ou ilícitas, a interrupção do uso acabasse, em direção a um futuro sombrio e triste.
ou comportamentos clinicamente reconhecível, países europeus.
destas substâncias pode reverter o quadro, mas No caso dos transtornos mentais isso se agrava
na maioria dos casos associado a sofrimento e
muitas vezes o uso abusivo de drogas ilícitas está devido ao enorme estigma e discriminação difusos
interferência com funções pessoais. A ausência de
associado a algum transtorno mental. na sociedade, fruto de anos e anos de práticas
disfunção pessoal faz com que um desvio ou conflito
Do ponto de vista de um diagnóstico diferencial, os 3) O processo gradual de contato da família hegemônicas de segregação que se baseavam no
social não seja incluído nesta categoria.
com o transtorno mental, em suas diversas modelo hospitalocêntrico e de profissionais ocupados
transtornos mentais mais usualmente identificados
Existem diferentes tipos de transtornos mentais e em estudos e práticas para normatizar pessoas
com a loucura são os vários tipos de esquizofrenia etapas
com diversos níveis de gravidade, que normalmente e extirpar os sintomas. Esta cultura e as práticas
evolui para a cronicidade. A chamada loucura (como e as diversas manifestações do transtorno afetivo
psiquiátricas geraram o isolamento dos internados e
são conhecidos alguns transtornos mais profundos) bipolar, considerados transtornos mentais maiores e
3.1) “E que sejam felizes para sempre”: as o afastamento de seus familiares, isto é, a exclusão
é um sofrimento de origem biopsicossocial e pode “crônicos”, ou seja, para os quais não se pode esperar
expectativas no momento de constituição da do usuário do convívio familiar e de sua comunidade.
se manifestar através de um surto psicótico, definido uma cura definitiva. Seu tratamento exige recursos
família Neste contexto, os familiares, sem esperança de
como um episódio de dissociação da estrutura intensivos e permanentes, tornando-o caro se provido
recuperação, envergonhados e sem saber o porquê
psíquica do indivíduo, fazendo com que este apenas no mercado privado de ofertas terapêuticas,
deste agravo, tendem a se “proteger” transformando
mostre comportamentos socialmente estranhos e e requer uma assistência interdisciplinar e Quando duas pessoas resolvem se unir e formar esta situação em segredo de família, e o mandato
diferentes, devido à momentânea incapacidade de de parcerias entre diferentes setores: saúde, uma família, existe também a querência mútua e de aparente assistência difundido pela psiquiatria
pensar racionalmente. educação, moradia, trabalho, transporte, esporte, a expectativa futura de alegrias e sucessos, sejam convencional reforça a indiferença quanto ao futuro
lazer, cultura e justiça. Geralmente, o tratamento estas pessoas conservadoras ou não. Apesar de de seu familiar dentro de tais instituições totais,
O início pode ser insidioso ou abrupto, com um
dos transtornos mentais maiores deve ser contínuo, ser comum não se esquecer de alguma eventual ficando eles portanto abandonados e sem notícias de
caráter disruptivo e, muitas vezes, se apresentando
impondo acompanhamento permanente dos lembrança desagradável nestes momentos, elas seus parentes diretos. A rede familiar e social que
sob a forma de uma crise aguda ou surto. Costuma
usuários de serviços, apoio aos seus familiares e da geralmente não estão presentes e no máximo torceu com a chegada desta criança, agora endossa
manifestar-se entre os 13 e os 35 anos de vida de
generosidade da família extensa e amigos. pensamos que vão acontecer conflitos rotineiros e o preconceito e se afasta.
uma pessoa. O diagnóstico é realizado através de
que serão facilmente superados.
uma entrevista com o paciente e sua família, para

150 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 151
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

Entretanto, se formos além desta visão mais esta informação de sua rede familiar, social e de (pelo senso comum e pela cultura societária em que não se sabia muito sobre a dinâmica própria
macrossocial, sombria e sintética de todo o trabalho. O familiar que adota esta conduta vai, geral). dos transtornos mentais), em nome de uma busca
processo, poderemos constatar que até mesmo o sem perceber e lentamente, se castrando e abrindo do “sucesso da cura”. As formas de abordagem
Assim, estes adjetivos e imagens costumam
primeiro contato com uma crise mental não é tão mão de projetos para a sua vida. As justificativas eram agressivas e se difundia a crença de que o
fomentar sentimentos muito dolorosos nos
linear e simples assim, pois gera muitas situações encontradas para estas atitudes podem estar adestramento da conduta desta pessoa levaria
familiares. A culpa, por exemplo, pode se manifestar
ambíguas, complexas e carregadas de muita relacionadas, da forma como aparecem no cotidiano ao sucesso no tratamento. Esta família era então
de diversas formas, tais como:
ansiedade, tensão e angústia para seus familiares. dos atendimentos, tanto aos efeitos colaterais alijada, não recebia orientação, e, por não saber o
desagradáveis dos medicamentos (ganho de que fazer, seguia o curso que lhe era imposto pelas
Quando os primeiros sinais de um transtorno mental
peso, exigência de exames de sangue periódicos, a) acreditar que foi quem transmitiu o gene doente; instituições psiquiátricas.
surgem, as famílias frequentemente buscam ajuda
entre outros) quanto ao vilão maior da loucura,
de parentes, amigos, religiosos e de eventuais b) o de não ter cuidado direito da pessoa adoecida; O lugar de cuidador, ainda hoje, é geralmente
o estigma, que associa os transtornos mentais a
profissionais de acesso pessoal. Somente após centrado em uma ou duas pessoas, especialmente as
periculosidade, a incapacidade e a doença incurável. c) o de sentir raiva por ver seu ente querido adoecido,
findar este repertório inicial de procura, para mulheres da família: a mãe, a avó, a esposa, a filha, a
Por outro lado, o diagnóstico ajuda a compreender rejeitado e sem perspectiva de futuro.
entender e procurar sanar o que está acontecendo, irmã ou prima(s). Mais recentemente, começamos a
atitudes e condutas desta pessoa acometida pelo
é que aceitam consultar profissionais e serviços presenciar nos serviços uma participação ainda que
transtorno mental, o que às vezes facilita o convívio
formais, públicos, privados ou conveniados e, discreta de homens cuidadores: o pai, o filho, o tio
dentro e fora de casa e viabiliza buscas efetivas de Este sentimento (a culpa), mesmo em silêncio,
muitas vezes, procuram vários destes profissionais (geralmente materno) e irmão(s). De qualquer forma,
recuperação. costuma vir acompanhado de vergonha, de
simultaneamente. A confirmação do diagnóstico este cuidado costuma ficar centralizado nas mãos de
pode levar anos, e, como já foi citado, tanto o usuário isolamento e da crença de que o segredo seria “a”
poucas pessoas, o que aumenta o risco de estresse,
como a família relutam para aceitar este “veredito”, solução para o problema. Há diferentes estratégias
3.3) A evolução do transtorno mental e seu quando uma profunda tristeza vai se enraizando na
o que dificulta ainda mais a adesão de todos ao e mecanismos de defesa para lidar com isso. É
impacto na família vida destes familiares-cuidadores. Condutas como
tratamento, podendo com isso agravar e/ou retardar comum observarmos mães que necessitam estar
anulação pessoal e o esgotamento físico e mental
a melhora destes sintomas e, consequentemente, de olho neste usuário todo o tempo, diferente de
ajudam a fortalecer os sentimentos de impotência e
um melhor patamar de bem-estar para todos. irmãos e outros familiares que procuram evitar este
Durante anos a família foi “culpabilizada” de desamparo, junto a uma completa descrença em
Este diagnóstico costuma vir acompanhado de (responsabilizada) pelo aparecimento de algum olhar, isto é, evitar o contato com este sofrimento,
relação a qualquer possibilidade de conquistar uma
imaginários e preconceitos dramáticos. Entretanto, transtorno mental em um de seus membros, mesmo recorrendo a mecanismos de defesa como a
melhor qualidade de vida para todos.
a experiência com famílias que convivem melhor quando se atribui apenas uma predisposição denegação e a fuga, se desligando com o tempo
do familiar em sofrimento mental. As internações A dita “responsabilidade” da família faz parte do
com o transtorno mostra que aceitar o diagnóstico genética. Além disso, esta família muitas
de longo prazo também contribuem para isso. imaginário social, ratificada por algumas crenças e
não significa que a pessoa passa a ser apenas, a vezes é muito mais reconhecida por adjetivos
Entretanto, este texto não irá focar em familiares teorias recorrentes ao longo do tempo. Por exemplo,
partir de então, o transtorno. Isso quer dizer que, negativos (esquizofrenizante, omissa, indiferente,
que conscientemente abandonaram ou exploram esta família é acusada de não saber educar: por
de agora em diante, esta pessoa terá necessidades oportunista, entre outros) do que como um conjunto
seus parentes adoecidos. exemplo, por não colocar limites ou por ser muito
especiais, deverá ter um acompanhamento mais de de pessoas capaz de ajudar no tratamento da
permissiva. Já nos primeiros sinais deste sofrimento,
perto, e que as pessoas envolvidas precisarão de pessoa com sofrimento mental e que necessita de
é comum a pessoa com transtorno ser vista como
ajuda para aprenderem a administrar melhor o dia apoio e cuidados. Naquela primeira visão negativa,
a dia da família. Por exemplo, Maria vai continuar 3.4) O tratamento psiquiátrico convencional e preguiçosa ou rebelde, e marcada pela ausência
a família pode ser associada à imagem de um
a ser a Maria, só que agora também se apresenta a relação com o cuidado produzido na família de quem eduque este seu temperamento ou gênio
“cartão de crédito estourado”, isto é, que carrega
com uma determinada condição crônica que exigirá forte. Nesta representação, a família aparece como
uma enorme dívida simbólica, em termos de um
alguns cuidados regulares; contudo Maria sempre omissa, indiferente e passiva. Para a grande maioria
veredito de culpada (no próprio autojulgamento
Na ótica da psiquiatria que nasceu no início da população, marcada por estas representações
será mais do que um diagnóstico. dos familiares, que teriam falhado em sua tarefa
do século XIX e que perdurou dominante até a dominantes e pelo desconhecimento de outras
Após o diagnóstico, é comum as famílias ficarem de gerar, cuidar e educar), de responsável pelo
metade do século XX, a terapêutica utilizada era a visões alternativas acerca deste drama, aceitar o
envergonhadas, sentirem-se culpadas e esconderem transtorno (pelo saber profissional) e estigmatizada
internação, sem tempo determinado (inclusive por desconhecido ou o que é carregado de estigmas

152 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 153
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

é uma tarefa dolorosa e exige um grande esforço. O silêncio e o isolamento contribuem para - buscar substituir o hospital psiquiátrico por que convivia com conflitos aparentemente “sem
Assim, para as famílias que não têm contato com fabricar desilusões e a transformar a própria vida serviços abertos na comunidade, com equipes solução”. Ela era constituída de pai, mãe e três filhos.
o universo das novas formulações acerca do campo em um poço de lamentações (autopiedade e/ou multiprofissionais e práticas interdisciplinares; A filha mais velha é médica, generosa, coerente
da saúde mental, torna-se extremamente difícil vitimização), o que pode até mesmo gerar algum - desenvolver práticas multidimensionais em torno e insistia para que o restante da família nuclear e
reconhecer e aceitar o que está acontecendo. Neste ganho secundário no convívio com outros membros de um projeto terapêutico amplo, que vise reinventar extensa procurasse um atendimento psiquiátrico
caminho, o diagnóstico definido pelos serviços da família e amigos, mas esta conduta tende a a vida e a saúde das pessoas acometidas, bem como para a irmã caçula que, apesar de inteligente,
psiquiátricos tradicionais representa uma sentença retardar o investimento na recuperação do parente as condições de sua reprodução social; sensível e de aparência saudável, também era muito
dificilíssima de ser absorvida e aceita, pois é como que vive o sofrimento mental. arisca, “esquisita”, “sempre aprontando confusões”
se um sinal amarelo ficasse eternamente congelado, - estimular dispositivos de assistência e cuidado
e “fazendo gastos acima das condições econômicas
com a pessoa com qualquer limitação crônica sendo humanizados junto às pessoas com transtornos
da família”. Tudo o que a moça começava “não tinha
3.5) As transformações geradas pelo atual mentais, valorizando a sua condição de sujeito, a
vista como tendo seu selo de qualidade rompido, continuidade”, o que ela justificava como sendo a
processo de reforma psiquiátrica escuta e o fortalecimento dos vínculos afetivos e
enquanto a família ou o cuidador passa a conviver incompreensão de terceiros. Contudo, ela insistia
sociais na vida das pessoas;
com uma espada eternamente apontada sobre a sua exaustivamente para que todos contribuíssem
cabeça e principalmente para o seu coração. - desenvolver práticas terapêuticas baseadas com um novo projeto para a sua vida. Os parentes
Até meados do século XX, em casos de qualquer
na inclusão, participação, empoderamento, comprometidos com os cuidados diários por sua
Encontramos familiares que se anulam inteiramente doença e principalmente de transtornos mentais,
autonomização e organização crescente dos vez estavam desacreditados, exaustos, furiosos
para cuidar da doença e do contato com serviços a única referência era o binômio paciente-médico
usuários e seus familiares. e ao mesmo tempo aprisionados pela dúvida de,
de saúde, médicos e remédios. O trabalho fora como a única possibilidade legítima de tratamento.
de casa pode até ser possível, particularmente Apesar de não ter sido sempre assim (exemplo “quem sabe, desta vez pode ser que seja diferente”.
quando constitui o único meio de subsistência disso são os pajés, curandeiros e parteiras, e O segundo filho, único homem, estava sempre
Neste contexto, os grupos de ajuda e suporte
de todos, mas, no caso de haver outro provedor algumas práticas terapêuticas alternativas, como a ausente e distante dos conflitos familiares e nunca
mútuos têm se constituído um dispositivo
na família, é frequente cuidadores abandonarem homeopatia e aquelas baseadas na cultura oriental), compareceu nas sessões de terapia da família.
fundamental e eficiente para quebrar o ciclo
qualquer pretensão de ter atividades externas à no ocidente moderno a psiquiatria, seu modelo pré-moldado e inexorável para os familiares e Os atendimentos enfrentavam a resistência desta
casa. Estes, além de abrirem mão de seus projetos hospitalocêntrico e suas “terapêuticas” agressivas cuidadores descrito acima, possibilitando a seus família, que desconsiderava as intervenções
de vida, não acreditam que alguém diferente deles é que dominaram e eram reconhecidas e legitimadas participantes produzirem caminhos alternativos e terapêuticas. Na época, eu atuava também
consiga cuidar tão bem quanto eles. Uma eventual socialmente. outros destinos pessoais para si próprios, bem como como psicóloga voluntária de uma associação de
morte antecipada da pessoa com algum transtorno Entretanto, a partir da II Guerra Mundial, melhores oportunidades de vida para aqueles de familiares, e propus à equipe convidar uma mãe que
permanente é a única chance de descanso deste presenciamos várias iniciativas e movimentos que quem cuidam. A experiência do Grupo Alento, que convivia há mais longo tempo com o transtorno, e que
cuidador obstinado, mas também representa o vêm questionando profundamente a psiquiatria e descreverei a seguir, é um exemplo vivo disso. não só já aceitava e compreendia o sofrimento de
convívio eterno com a dúvida de que esta pessoa este modelo de assistência centrado em práticas sua filha como também investia na sua recuperação.
poderia ter chances de se curar um dia e conseguir manicomiais. Este processo tem sido genericamente O objetivo era ter uma conversa e trocas de
ter uma vida mais alegre e saudável. Outros tentam 4) A experiência bem-sucedida do Grupo
chamado de reforma psiquiátrica (AMARANTE,
escapar deste impasse procurando ficar o máximo Alento e algumas da vivências comuns nas
1995; VASCONCELOS, 2008), e a direção mais geral
de tempo fora de casa, o que na verdade é uma famílias com transtorno mental de campo), Miriam Benarroch e Rosaura Maria Braz
das mudanças inclui:
ilusão de bem-estar, dada a possibilidade sempre (atrás da sala de espelho onde era feito o atendimento,
observando e fazendo considerações durante o
presente de ser avisado e de ter que administrar atendimento). Anna e Rosaura são as idealizadoras do
No início de 1997, em meu trabalho em equipe como
uma nova crise ou incidente, ou dado o medo - questionar o objeto fictício e isolado do fenômeno Grupo Alento, nome escolhido pelo próprio grupo de
terapeuta de família64, atendíamos uma família familiares. Em 2007, Anna foi substituída por Maria Clara
aterrorizante de ser o próximo a sentir esgotamento “doença mental” para considerar um conjunto
Stockler e Rosaura Di Lorenzo.
ou adoecer, ou por que a angústia ou o medo de ter complexo e integrado de processos somáticos,
outro parente querido com transtorno mental está subjetivos, sociais, culturais e políticos envolvidos 64 A equipe era constituída por quatro psicólogas: Anna
sempre presente no seu inconsciente. na condição do sofrimento psíquico; Maria Hoette (coordenadora), Patrícia Rubim (psicóloga

154 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 155
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

experiências entre os familiares e a possibilidade Este afastamento pode se dar às vezes por medo a discriminar segredo de vida privada. Sem a esta experiência radical se consolam quando ouvem
de novas informações e encaminhamentos. Esta de um dia adoecer ou por não suportar ver o irmão exposição em locais adequados, dificulta-se muito os relatos dos familiares com mais experiência;
proposta era baseada na observação de que, adoecido recebendo mais atenção dos pais, em as conquistas por uma assistência mais humanizada outros vêm mais para pedir uma orientação do
quando familiares conversam entre eles sobre especial da mãe. É uma ilusão pensar que só uma e a aceitação social; que propriamente fazer; outros procuram com
determinadas experiências dolorosas, ressoava um pessoa seja a causadora de todos os problemas pedidos objetivos, como, por exemplo, o nome de
eco que era muito mais terapêutico do que quando familiares. O transtorno mental tende a cegar e um psiquiatra, psicólogo ou serviço; outros estão
esta conversa era apenas com um profissional, por paralisar o que acontece ao redor, e ajuda a encobrir f) é interessante a família se perguntar: curiosos para saber o que se faz nestes encontros;
mais acolhedor e competente que fosse. outras questões familiares; - quem mais fica protegido com o silêncio do outros chegam por indicação de algum profissional.
Voltando ao caso, este encontro acalmou a sofrimento mental em casa é o usuário ou a família? Geralmente, o familiar, para continuar no grupo,
família, conseguiram ouvir e se identificar com as precisa sentir nele um clima acolhedor e respeitoso.
b) os parentes e amigos próximos costumam - quem mais tem dificuldade de se expor é o usuário
histórias vividas por todos eles. Ao final do segundo “esquecer” de convidar e/ou incluir o usuário para ou sua família? Seja qual for o motivo desta procura, é unânime
encontro, o pai confessou que não suportava mais festas e confraternizações, talvez por acreditarem a busca por uma luz no fim do túnel, o brotar
aquilo tudo e que não voltaria mais. Como a mãe O modo de viver contemporâneo nas classes sociais
que assim vão evitar situações embaraçosas; da esperança de que dias melhores virão. E
concordou em dar continuidade, construímos em privilegiadas costuma só dar espaço para o bom, o por estarmos inseridos numa cultura em que é
conjunto o formato de novos encontros só com os bonito e não para as dificuldades e complicações. praticamente proibido falar do sofrimento e expor
familiares desejosos de obter mais informações, c) o grau de desamparo e desinformação das fragilidades, é importante que os vínculos afetivos e
trocar experiências e buscar encaminhamentos na famílias consolida uma postura de vítimas da vida e de confiança sejam cultivados e fortalecidos dentro
Esta constatação dos mecanismos comuns e da
rede social em que estavam inseridos. o sentimento de autopiedade. É recorrente falarem do grupo. Apesar da mesma busca, os familiares
importância da troca emocional e de experiências
Uma constatação imediata nos permitiu ratificar a compulsivamente de seus sofrimentos infinitos, com que acompanham o dia a dia de seus entes queridos
diretamente entre os familiares nos estimulou a
visão dos grupos de ajuda e suporte mútuos como dificuldade de escutar o sofrimento do outro, e só reagem de diferentes formas frente ao problema:
continuar com a experiência. Hoje, em 2011, o
um dispositivo eficiente: quando outro familiar se reconhecendo recursos e saídas possíveis para as
Grupo Alento já comemorou 14 anos de existência,
manifestava sobre o mesmo problema que estava outras pessoas, e não para elas;
constituindo um dispositivo de importância - alguns se comportam de forma maníaca, falando
sendo relatado, o olhar e a atenção de quem estava abertamente reconhecido por todos os familiares muito, mas sem agir em conformidade com o que
falando previamente se modificava, e ali surgia que dele têm participado.
d) mesmo o familiar que recupera sua vida pessoal pregam;
um brilho diferente. Neste momento brotava a
e reconhece as conquistas do usuário, costuma
solidariedade e a cumplicidade entre pessoas que - outros negam o diagnóstico e se ocupam em
ser descrente e medroso. Cada melhora o remete
viviam histórias parecidas e o consolo de não ser 5) As famílias nos grupos de ajuda mútua, suas adjetivar negativamente a conduta do usuário ou
a crises passadas e à desconfiança de que este
mais o único a viver tal situação. necessidades e temas mais recorrentes dos profissionais envolvidos;
avanço em seu familiar pode ser passageiro.
Em paralelo, como terapeutas de família, as Persiste o pensamento: O que será na próxima - existem os familiares narcisistas que competem
reuniões nos permitiram também perceber e vez? Esta melhora vai durar até quando? Em entre si em relação ao nível de atenção e cuidados
Em geral, os familiares que procuram os grupos
sistematizar alguns mecanismos típicos e comuns contrapartida, o usuário é crédulo e sedento de uma com os usuários;
de ajuda e suporte mútuos são pessoas sensíveis,
da dinâmica psicológica interna ao grupo familiar, vida considerada normal; - outros estão sempre muito ocupados, talvez como
sofridas e muitas vezes vivendo estados de
em sua relação com o transtorno mental: uma das estratégias para não entrar em contato
desespero, como se tivessem chegado ao “fundo
do poço”. Buscam um espaço para conversar sem com os próprios sentimentos e com a realidade que
e) a família alega que não fala do transtorno vivido
repressões e um ombro amigo que entenda o que lhes é imposta; outros se anulam e passam a viver
a) os demais membros da família considerados para não “expor” o usuário e para a proteção deste,
estão vivendo, e, se possível, que reconheçam os somente para os cuidados e se tornam reféns do
“saudáveis” tentam ficar ausentes e distantes e com isso usuário e família ficam “escondidos
seus sofrimentos. São familiares com uma longa transtorno;
dos conflitos familiares, como também existe uma ou protegidos” da vida social. Por outro lado, esta
crença de que a mudança de conduta da pessoa com alegação colabora com o segredo e empobrece história de frustrações, culpas e sem saber mais - outros estão raivosos e acusam o usuário por seu
transtorno resolverá todos os problemas familiares. as trocas sociais. É importante que aprendam o que fazer; os que estão iniciando o convívio com insucesso na vida;

156 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 157
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

- e, finalmente, temos os que vêm em busca de b) a procura por serviços e profissionais comprometidos que podem se constituir em possíveis detonadores tratamento. Também aqui a experiência de outros
mudança e, mesmo com recaídas, costumam ser com o cuidado ao longo do tempo, humanizados, de uma futura ou próxima crise. Este conhecimento, familiares é essencial;
participativos e afetivos, e estes facilitam o processo competentes, e capazes de um bom acolhimento quando é considerado pelos profissionais
com o seu próprio crescimento e o do grupo. e sensibilidade com os usuários e particularmente responsáveis pelo caso, pode contribuir para
com os próprios familiares: o familiar necessita se antecipar estratégias preventivas, para minimizar g) a necessidade de ter um arsenal de
sentir acreditado em seus relatos, bem como ter a intensidade do surto ou ainda para aumentar os estratégias de convivência diária, no lidar com as
Quando este tipo de familiar consegue refletir sobre intervalos entre eles; particularidades da relação com o usuário e com
sua experiência e saber (acerca dos sintomas, das
seus valores e preconceitos e investe numa mudança seus comportamentos mais desafiantes: muitas
dificuldades e das necessidades particulares do
em seu pensar e agir, lentamente seu parente com situações exigem estratégias especiais, como,
usuário) reconhecido pelos profissionais e serviços.
transtorno também melhora, buscando um novo lugar e) a definição e a decisão do melhor momento e da por exemplo, proteger-se e não ter medo, em caso
Ao mesmo tempo, quer ser apoiado e confiar que
no mundo. Pessoas que sofrem mentalmente são melhor forma de se internar (voluntária e involuntária) de agressividade e devaneios exagerados. Nos
este profissional vai estar presente nos momentos
sensíveis e inteligentes, e reagem negativamente o usuário, seus dilemas e consequências: às vezes, serviços de saúde mental, é comum se cobrar que
difíceis. É preciso lembrar que, infelizmente, é comum
em ambientes com estresse, tensões e cobranças a convivência fica tempestuosa, acima do limite o familiar coloque limites; entretanto, isso não é
se encontrar profissionais com posturas julgadoras
das quais não conseguem dar conta. Assim, temos de suportabilidade deste familiar, ou há risco de bem explicado a eles, nem é considerado o contexto
ou indiferentes, em relação ao sofrimento ou
constatado que, quando o cuidador melhora, o auto- e/ou heteroagressão, e não há saída senão particular deste grupo familiar, nem é perguntado
impossibilidades vividas pelos familiares-cuidadores.
usuário também avança em seu próprio processo. a internação. As formas de internação (voluntária com quem este familiar conta nos momentos
Os grupos podem oferecer boas indicações de serviços e involuntária) constituem uma decisão importante, difíceis. Existem pessoas que não contam com
E, quando ambos estão engajados em grupos de
e de profissionais com as características desejáveis, dependem da capacidade do usuário de perceber ninguém e nem têm recursos econômicos para tal
mútua ajuda, é notória a diferença nos objetivos de
a partir da própria experiência e de busca ativa de a piora de seu quadro, e cada uma delas tem gasto, e, neste caso, o que fazer? Neste campo, as
participação: enquanto o familiar vai em busca de
informação qualificada; consequências futuras. A internação involuntária trocas de experiências e as iniciativas de suporte
saber mais sobre este tema, os usuários buscam um
espaço para conversar e falar de suas dificuldades. sempre tem consequências mais negativas, mútuo têm um papel fundamental para as famílias;
Minha hipótese para esta diferença é que o familiar mas às vezes é a única alternativa viável para as
c) como conversar com os profissionais sem
não desiste da busca de encontrar uma razão para condições apresentadas. Independente do número
censuras e aprender mais sobre medicamentos, h) estratégias de lidar com o uso frequente e abusivo
o surgimento do transtorno, enquanto o usuário de internações já ocorridas, cada situação dessas
os efeitos colaterais, o que se pode e não se fazer, de álcool e outras drogas, com suas consequências
precisa “correr atrás do prejuízo”, isto é, ter com é vivenciada com muitas dúvidas se o momento é
incluindo a possibilidade de expressar dúvidas e o mais adequado, se é possível esperar mais, se e dilemas: hoje tem sido muito frequente nos
quem conversar de igual para igual. questionamentos: o familiar quer ser parceiro e ter não há outro jeito etc. Além disso, faz reviver o depararmos com familiares vivendo este drama e
Nos grupos de ajuda mútua com familiares, as respostas para as suas dúvidas. É muito comum o sentimento de fracasso e, por outro lado, representa sem saber para onde encaminhar e como convencer
reuniões abordam um conjunto variado de temas, familiar ter medo de que seus questionamentos um descanso no cotidiano, acompanhado da este usuário a aceitar e aderir a qualquer tipo de
entre os quais: feitos ao profissional vá provocar algum forma de esperança de que as crises não se repitam. Estes tratamento. Também têm sido regulares os relatos
negligência ou má vontade no atendimento de seu dilemas, ambiguidades e sentimentos constituem de serem submetidos a agressividades e extorsão
ente querido. Neste campo, a troca de experiências tema importante e frequente nos grupos; por parte deles. Por outro lado, há uma crença
a) o sofrimento, dúvidas e esperanças vividas quando nos grupos permite aos familiares conhecerem as generalizada na abstinência/reclusão com único
os serviços de saúde mental informam o diagnóstico: estratégias para lidar com estes desafios, para modelo de lidar com estes casos, por parte da
para o próprio familiar, é difícil de dizer o que é pior: ganharem mais confiança e mais assertividade na f) a fragilidade e as necessidades próprias dos sociedade em geral, dos familiares e mesmo de
as crises ou o diagnóstico. Num primeiro momento, relação com os profissionais; familiares durante o período da internação: os profissionais. Poucos conhecem as características
desacredita-se do profissional. Até à fase de aceitar familiares necessitam de profissionais que, nos dos programas de redução de danos implantados
o transtorno é percorrida uma longa estrada e mesmo momentos mais severos, se responsabilizem pela pelo Ministério da Saúde. Assim, estas famílias
assim acompanhada de muita dúvida, e mantendo d) como reconhecer os sinais de piora no quadro do internação e que garantam que ao longo deste chegam aos serviços e profissionais em busca
viva a torcida por uma cura mais definitiva. Os grupos usuário, e de um eventual próximo surto: na troca período o usuário tenha um acompanhamento de respostas efetivas e de resultados imediatos.
de ajuda mútua são fundamentais para acelerar e de experiências dentro dos grupos, os familiares vão humanizado, que o prepare para uma alta programada Lamentavelmente, muitas delas não aceitam
tornar mais compreensível este processo; construindo um repertório de sinais e de situações e com um contrato firme e claro de continuidade do refletir sobre suas próprias condutas e tendem a

158 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 159
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

abandonar ou ignorar qualquer abordagem. Muitas convivência com tais desafios é fundamental; n) como avaliar a melhor indicação e a dosagem, trabalho ou de desenvolvimento pessoal, momentos
vezes, confundem o esforço do grupo em ajudá- com o menor nível de efeitos colaterais; como regulares do dia para fazer atividades para si ou para
las e se acreditam julgadas. Todos estes temas conseguir a medicação e garantir a rotina que os demais membros da família etc.) não só garante a
podem ser objeto de conversa, no sentido de buscar k) as diversas estratégias de lidar com os garanta o uso regular e adequado de todos os “recarga das baterias”, mas também é fundamental
informações mais qualificadas, de conhecer os comportamentos ofensivos aos próprios cuidadores medicamentos: o ajuste da medicação e de seus para se construir uma relação menos pesada com
serviços e estratégias de tratamento, e de superar e familiares, ou como “cuidar bem de seu algoz”: efeitos colaterais é sempre um processo delicado, quem recebe o cuidado, com menor cobrança e
as visões do senso comum; a experiência com familiares aponta para a às vezes demorado, pois exige uma sensibilidade estresse. À medida que se conquista este espaço,
possibilidade de uma reelaboração acerca dos para identificar seus efeitos reais no cotidiano e é possível pensar na busca de projetos pessoais de
comportamentos disruptivos e ofensivos por parte do uma negociação sutil e regular com o psiquiatra. A vida para além do cuidado. Neste campo, os grupos
i) os enormes desafios de lidar com os usuário. Muitas vezes, o que é dito nos momentos de existência de medicamentos de segunda geração, às de ajuda mútua podem desenvolver iniciativas
comportamentos autoagressivos e suicidas: muitos ira e mal-estar não vem “do coração”, mas constitui vezes com níveis mais baixos de efeitos colaterais, concretas e variadas de suporte mútuo. Isso pode
familiares relatam com ira, menosprezo e melancolia mais uma expressão sintomática de seu transtorno. coloca novos problemas pelo seu alto custo e variar desde atividades mais simples como deixar
a conduta de vários profissionais que apregoam que Existe a possibilidade do cuidador aprender a se procedimentos extras para conquistá-la por vias seu parente com outra família por uma noite ou fim
“quem quer se matar, se mata e não tem jeito”. Em
discriminar do lugar imaginário criado por estas judiciais. De qualquer forma, mesmo a medicação de semana, até projetos coletivos mais complexos,
nossa experiência, observamos que os familiares
acusações e/ou ofensas, que são mais porta-vozes mais convencional nem sempre está disponível nos como esquemas de passeios, turismo, atividades
que atuaram energicamente e contaram com ajuda
dos conflitos internos do usuário. Conseguir realizar serviços públicos, e fora deles ela pode representar culturais e esportes; colônia de férias; residências
de outros profissionais, familiares e amigos, tiveram
este deslocamento e assim saber perdoar pode um custo muito elevado para vastos setores da terapêuticas; projetos de trabalho e renda etc.;
um desfecho mais feliz, muitas vezes tendo como
trazer mais leveza à relação diária. Dentro do grupos população brasileira. As farmácias populares
resultado o abandono destas práticas pelo usuário.
de ajuda mútua, os relatos de outros familiares que ainda não estão abastecidas com uma cesta
Contudo, mesmo nestes casos, para os familiares p) o dilema de geração na produção do cuidado, ou
conseguiram desenvolver estas estratégias são diversificada de psicofármacos e que aborde todas
ainda é muito difícil se esquecerem da experiência. seja, como os familiares lidam com o medo/pavor
fundamentais para os “novatos”; as necessidades no campo da saúde mental. E, além
Já aqueles que viveram a perda de um parente por de se confrontarem com a própria morte e com o
suicídio, tendem a viver angústias e culpas graves. disso tudo, pode haver resistência para se tomar a
medicação de forma regular e responsável, e os desafio de quem e como se proverá o cuidado para
Assim, a experiência do comportamento suicida,
l) como lidar com a tristeza em ver as expectativas familiares desenvolvem uma série de estratégias seu familiar com transtorno no futuro: uma situação
concretizada ou não, vem sempre associada a pecado
frustradas e os comprometimentos mais acentuados para tentar conseguir isso, representando nos familiar muito frequente é a existência de cuidadores
e culpa, e os grupos de ajuda mútua têm um papel
da vida afetiva, social e profissional de seu familiar grupos de ajuda mútua uma troca das experiências mais velhos (pais, tios, avós etc.) que a(s) pessoa(s)
importante de acolher e redefinir estas vivências;
com transtorno: muitas vezes, este é sensível e muito intensa. É também preciso muito cuidado para com transtorno mental. Nestes casos tão comuns,
inteligente, mas tende a projetos duvidosos ou se estabelecer a estratégia e a rotina de tomada dos há um tema muito difícil e que só é explicitado
j) os dilemas e as estratégias relacionados à sempre inacabados, à ociosidade e ao isolamento. remédios, para se evitar as confusões tão comuns claramente por estes cuidadores em ambientes
recusa de tratamento e a suas consequências na Este tema e as estratégias de como lidar com ele na hora de saber o horário de cada um, para se muito acolhedores e especiais: o confronto com sua
piora no quadro do usuário: o que fazer e a quem são muito comuns nos grupos de ajuda mútua; monitorar se a dose daquele dia já foi tomada própria morte e com o desafio da continuidade da
recorrer quando o usuário não aceita ser tratado? etc. Assim, a medicação e seus vários dilemas provisão do cuidado em condições adequadas. A
Existe um número enorme de familiares que constituem um tema recorrente nos grupos; possibilidade de uma internação em instituições
convivem isolados com usuários que não aceitam m) os desafios da busca e conquista de atividades totais desumanizadas e mortificadoras está sempre
qualquer forma de intervenção, particularmente que ampliem as possibilidades de vida e que presente. Assim, um enorme esforço é despendido
ir a psiquiatras ou a qualquer serviço de saúde respeitem as limitações e potencialidades de seu o) o reconhecimento e as estratégias de garantir o em tentar garantir renda e cuidado de boa qualidade
mental, ou que não querem tomar os medicamentos familiar, nas áreas de tarefas do cotidiano, cultura, direito ao descanso, ao cuidado de si e a um projeto a partir da falta futura dos cuidadores, e aqui se
psiquiátricos prescritos, e que inclusive podem ficar lazer, sociabilidade, esporte, vida comunitária, de vida por parte dos familiares e cuidadores: a vida encontra também um vetor muito comum de esforço
arredios, acusando todos à sua volta de estarem educação, trabalho etc.: este campo constitui tema não é só a pessoa com transtorno, e ser capaz de para a criação de associações de familiares: a
diagnosticando-o como louco. Nos grupos, a troca frequente nos grupos, e as iniciativas de suporte se distanciar em alguns momentos precisos (alguns tentativa de criar projetos coletivos duradouros de
de experiências com famílias com mais tempo de mútuo aqui têm um papel fundamental; fins de semana, férias, construir um projeto de moradia, renda, trabalho, sociabilidade e cuidados,

160 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 161
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

capazes de garantir uma boa qualidade de vida para no sentido de acreditar na reabilitação, em mobilizar novas ações por parte dos usuários, dos familiares uma tranquilidade para todos, incluindo os próprios
seus parentes no futuro. Este tema só emerge nos a instituição, seus profissionais e os recursos e da equipe interdisciplinar. A revisão dos valores profissionais.
grupos de ajuda mútua quando este desenvolve laços judiciais cabíveis, bem como se disponibilizar e criar da sociedade em relação às pessoas com transtorno
Como e onde cuidar de pessoas que acumulam o
mais profundos de solidariedade e cumplicidade; as condições ideais para as saídas programadas, mental, também é de suma importância.
transtorno mental com o uso abusivo de alguma
além de lidar com formas mais exacerbadas ainda
Como indicamos acima, um dos maiores dilemas droga? As equipes de profissionais precisam atentar
de estigma. Embora estes casos sejam mais raros que a família vive é o que fazer no período de crise para as particularidades deste sofrimento, para
q) os desafios adicionais de lidar com usuários idosos: nos grupos, o apoio concreto dos demais familiares aguda. Nestes momentos, é importante que a própria a falta de horizonte que é vivenciada por estes
os cuidados e os tratamentos de qualquer doença é essencial. equipe de profissionais assuma a responsabilidade familiares, e para o quanto estes pacientes ficam
crônica são caros, permanentes e precisam da ajuda
pela internação. O comum é a família ficar com este à deriva e conduzidos pela dupla vinculação. Estes
operacional de outras pessoas. Quando este usuário
ônus e ser acusada pelo usuário, que fica raivoso com casos exigem mais investimentos em pesquisas,
é idoso, estas dificuldades se multiplicam. Além da
este procedimento, muitas vezes realizado de forma novas tecnologias e principalmente a participação
dificuldade em se contratar auxiliares competentes, 6) O sistema de saúde mental, as necessidades involuntária. Também é comum a família ser olhada dos profissionais, dos usuários, das famílias e da
carinhosos e íntegros para o cuidado domiciliar, da família e os principais desafios a serem com desconfiança pela equipe de profissionais e ser sociedade. Este “milagre” é de responsabilidade
os serviços que assumam este tipo de tratamento enfrentados pouco acolhida. coletiva. Urge a criação de espaços que assumam
e acompanhamento terapêutico são raros. Estas
este cuidado e assim interrompam a cruzada da
pessoas requerem atendimento psiquiátrico, Certamente, seria um avanço se os profissionais
família que convive com o vaivém entre os serviços
neurológico, geriátrico, fisioterapêutico, e, às vezes, Naturalmente, a elaboração e as respostas possíveis que atendem nos ambulatórios e serviços de
para adictos e de saúde mental.
outros cuidados adicionais. Neste campo, todas a todas as questões levantadas acima vão depender atenção psicossocial trabalhassem também nos
estas formas de cuidado são dispendiosas, e cada muito das características da política, dos serviços leitos de crise, preferencialmente em enfermarias Outro grupo importante são as crianças, que
um deles é indispensável para que esta pessoa e dos profissionais de saúde mental disponíveis de hospital geral ou em emergências gerais. A normalmente são vistas como “o futuro do país”.
possa ter uma qualidade de vida digna e o máximo no país e particularmente no município onde se internação por si só é assustadora, e para suavizá- Isso é sempre apregoado em nossa sociedade,
possível saudável, do ponto de vista físico, mental, encontra a família. As transformações da assistência la seria bom ter profissionais conhecidos e com mas quando esta criança sofre mentalmente, nem
psíquico e social. Aqui, nos grupos, a vivência e o em saúde mental ainda são muito recentes, se uma boa relação a priori com a pessoa em crise. sempre se oferece as condições de tratamento
conhecimento das alternativas das famílias com comparadas aos mais de 200 anos de práticas e Em seguida, se for necessário, este usuário seria adequadas às possibilidades dela e de sua família.
maior tempo de experiência é fundamental; doutrinas tradicionais ensinadas nas escolas, que logo transferido para um CAPS III (24 horas por Outras vezes, esta criança é sentida socialmente
formam profissionais nas áreas de saúde e saúde dia e 7 dias na semana) ou uma casa de transição como “coitadinha” e inserida com pouca tolerância
mental direcionados quase que exclusivamente (de médio tempo de internação) inseridas na nos espaços sociais. Urge a necessidade de
r) as dificuldades próprias dos casos que envolvem à escuta dos sintomas da doença e à prescrição comunidade e parceiras das redes intersetoriais, em diferentes espaços de tratamento, abordagens e
infração penal e medidas de segurança: quando de tratamentos muitas vezes desrespeitosos que todos estariam comprometidos com um projeto serviços para a inclusão destas crianças.
adultos, a maioria das pessoas com transtorno que ou agressivos. A abordagem da Psiquiatria terapêutico individual criterioso. A internação deve
Quanto aos idosos, sabemos que sua população no
receberam sentenças por infrações penais tendem a Democrática, desenvolvida na Itália a partir da estar sempre comprometida com a alta programada
Brasil é cada vez mais numerosa e que gradualmente
ser abandonados nos hospitais de custódia, sem o década de 1960, e que constitui a principal fonte e com os acordos claros e sedimentados entre os
atingem maior longevidade. Entretanto, ainda
direito de recorrer e reivindicar penas alternativas, de inspiração para a reforma psiquiátrica brasileira, profissionais, o usuário e seus familiares, já com
não foram criados no campo da saúde mental os
o que pode significar uma pena de prisão perpétua. entende a importância do psicodiagnóstico e da uma orientação acertada para onde ir, que facilitasse
espaços adequados para acolher a crise e suas
No caso de adolescentes, as medidas são menos psicofarmacologia. Entretanto, tem como princípio a continuidade da vida e do tratamento, tentando
particularidades neste grupo social. Em caso de
draconianas, mas as condições dos abrigos atuais primordial acolher primeiramente o sofrimento deste evitar recaídas e conflitos maiores dentro da família.
necessidade de internação, geralmente por poucos
no Brasil são preocupantes. As alternativas usuário e de sua família e só em seguida ocupar- Para isso, é fundamental que os profissionais sejam
dias, estas pessoas acabam ficando entre jovens
dependerão de programas de desinstitucionalização se da avaliação, das possibilidades terapêuticas fixados e com plantões regulares na emergência,
e sem equipamentos de segurança adequados
progressiva e de profissionais engajados e sensíveis. múltiplas e da elaboração interdisciplinar de um nos ambulatórios, nas oficinas e nas internações,
para as suas características específicas (barras
Nestes casos, a família que investe em seu familiar projeto terapêutico individual. Este novo processo no sentido de diminuir o ônus que representa uma
de proteção, piso antiderrapante e outros). Esta
nestas condições tem enormes desafios adicionais, de assistência implica também, como vimos acima, internação. Uma equipe permanente promoveria

162 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 163
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

clientela necessita de espaços públicos dignos e que este estigma o influencie negativamente na ou no contato com terceiros; - ser capaz de verbalizar para o usuário, a equipe
com profissionais carinhosos e íntegros. aceitação da loucura como condição humana; de profissionais e suas redes familiar e social a
- encontrar profissionais que acolham o seu
Para vários destes grupos específicos, seria de angústia vivida no convívio diário com condutas, tais
- reatar os vínculos familiares rompidos, sofrimento e o tenham como parceiro importante no
grande valia a promoção de espaços múltiplos, como: ociosidade, vícios, monólogos e o medo de
especialmente os usuários com histórico de longo processo de recuperação do usuário;
entre eles os Centros de Convivência e Cultura, com novas crises do usuário;
tempo de institucionalização;
- superar o sentimento de decepção quanto às
atividades diferenciadas e acessíveis a todos os - aprender que alguns sentimentos são inevitáveis e
- ratificar o direito de ter uma moradia digna, segura suas próprias expectativas iniciais, que não se
moradores da comunidade, diferente dos CAPS e de que sentir raiva de uma pessoa não é sinônimo de
e que seja um espaço de criação de vida. Para os realizaram como haviam sonhado, em relação aos
outros serviços substitutivos. Não podemos correr falta de amor, mas que é o sentimento inevitável de
egressos de longo tempo de internação, incluindo seus parentes com transtorno;
o risco de transformar os serviços substitutivos em resposta a determinadas atitudes desta pessoa ou a
os que não têm recursos materiais ou humanos,
espaços de exclusão no futuro, pois ainda não nos - enfrentar os sentimentos de vergonha, culpa, situações desagradáveis;
mesmo os que não são contemplados pela portaria
libertamos do imaginário de detenção manicomial. medo, autopiedade, raiva, frustração, desamparo,
nº 106/2000 (Serviços Residenciais Terapêuticos); - ter tolerância em relação aos cuidados permanentes
entre outros;
Se pensarmos da perspectiva dos interesses que deverá dedicar à pessoa que tem o transtorno
- inserir-se em projetos de geração de renda
da família, incluindo o seu parente com transtorno - aprender a: mental, sem deixar de ter uma vida independente,
e trabalho que respeitem suas limitações e
mental, podemos listar alguns dos desafios que + conviver com os sintomas e as limitações de prazer, amorosa e social;
dignifiquem suas potencialidades;
envolvem diretamente os quatro atores (pacientes, consequentes dos transtornos mentais; - encontrar e se engajar em grupos de ajuda e
famílias, profissionais e gestores) e, também, - encontrar pessoas disponíveis a consolidar uma
+ discriminar sinais iniciais de um possível surto; suporte mútuos, mas que estejam localizados em
desafios gerais para o processo da reforma vida amorosa, com respeito mútuo;
espaços fora de instituições ligadas a saúde mental
psiquiátrica brasileira em si mesma: - conquistar e ter garantias de que se poderá ter + reconhecer os sintomas do transtorno e a
e que não sejam frequentados por seus parentes
uma vida futura segura e sem maiores estresses; diferenciar dos traços de personalidade do usuário;
que sofrem o transtorno mental;
- sair da “invisibilidade” e juntar-se aos seus pares + aceitar que terá uma vida de altos e baixos, mas
a) Desafios a serem enfrentados pelas próprias - estudar e procurar mais informações sobre os
para enfrentar dificuldades e estigmas, o que que é possível avançar para uma vida com maior
pessoas com transtorno mental: transtornos mentais e seus diferentes graus de
significa lutar por uma sociedade que respeite a qualidade do se tinha no passado.
comprometimento, pois nem todos conquistam
loucura. - conquistar recursos e ter sabedoria para um grau avançado de recuperação, mas todos
- aceitar o diagnóstico de ser um portador de administrar os altos custos que acompanham toda conseguem melhorar. Além disso, é necessário
transtorno mental; aceitar não significa ficar doença crônica; acompanhar as novas descobertas e possibilidades;
reduzido a um diagnóstico; b) Desafios a serem enfrentados pelos familiares:
- saber superar a expectativa de uma cura definitiva - reconhecer a necessidade de espaços na vida para
- aderir ao tratamento medicamentoso e ao da de seu parente e procurar construir novos projetos o cuidado de si próprios e para construir projetos
equipe interdisciplinar como um todo; - aceitar que seu ente querido tem um sofrimento para sua própria vida; pessoais próprios, para além da situação de
- aprender mais sobre as circunstâncias e o instante mental e também a clareza de que esta pessoa é cuidadores, e trabalhar ativamente para garanti-los
- promover, dentro do possível, um ambiente
em que cada usuário decide redefinir sua vida um ser com recursos que superam o diagnóstico e e vivenciá-los sem culpa. Para isso, devem elaborar
familiar amoroso, bem-humorado e que acredite na
pessoal e se decide por sua recuperação possível; que vale a pena apostar no processo de recuperação em si mesmos o direito a ter estes espaços, podendo
recuperação do usuário;
deste, como um processo de conquista de uma chegar a iniciativas coletivas de suporte mútuo com
- estabelecer vínculos com outros usuários, com - reconhecer e se alegrar com os pequenos sinais de
vida ativa e útil, mas necessariamente ainda com outros familiares e até mesmo projetos coletivos.
familiares de sua confiança, com profissionais recuperação do usuário;
algumas das limitações oriundas do transtorno;
responsáveis por seu tratamento e com diferentes
- ter o apoio da família extensa nestes cuidados; - tolerar a morosidade inerente de qualquer processo
e diversos grupos sociais (religiosos, culturais, e c) Desafios a serem enfrentados pelos profissionais:
de recuperação, pois a mudança real necessita de
outros); - confiar que terá a credibilidade dos outros
um tempo que não é propriamente cronológico para
- enfrentar o estigma vivido por ser uma pessoa quando relatar que o usuário dentro de casa tem
ser contínua e prolongada;
acometida de um transtorno mental, impedindo uma conduta diferente de quando está na consulta - ter uma postura de acolhida sincera com o usuário

164 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 165
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

e sua família e também disponibilidade para um destes “salários”; e trocas com as pessoas que frequentam os serviços - realizar a manutenção das instalações e aprimorar
fortalecer vínculos de confiança com estes; de saúde mental; cada vez mais os serviços, assim ajudando as
- usar de sensibilidade durante a atenção aos
- escutar o sofrimento do paciente e de seus usuários e familiares, e não ficar aprisionado pessoas a se libertarem da crença de que o serviço
- não se distanciar da base da assistência, se
familiares sem ter como referência somente os somente aos ensinamentos teóricos que são público é de má qualidade;
possível dando um plantão semanal, exercendo
sintomas clássicos; importantes mas se contextualizados; assim atividade que o mantenha informado - ajudar a população a se desvincular de
- entender que uma pessoa com transtorno mental - estar atento aos recursos da rede social do diretamente com as carências e necessidades dos atendimentos privados ou de seguros de saúde que
tem necessidades, competências e singularidades paciente e ter bom senso ao sugerir possíveis usuários, familiares, profissionais e dos serviços; representam um grande esforço econômico para as
como as pessoas consideradas normais; encaminhamentos; famílias, em espaços que não estão comprometidos
- ratificar a inclusão da saúde mental na atenção
com uma atenção interdisciplinar, intersetorial e na
- prover explicações adequadas, em linguagem - ser ousado, criativo e expandir seu repertório de primária como estratégia de prevenção;
comunidade.
compreensível para o usuário e familiar, sobre os ações profissionais, com ética, transparência e - investir na capacitação de acompanhantes
medicamentos, e indicar os mais apropriados e as atitude humanitária; terapêuticos para no momento da crise tentar evitar
dosagens mais eficazes para ajudar o paciente a a internação e oferecendo suporte nesses lares;
- conhecer e estreitar relações com as outras
equilibrar seu transtorno mental;
clínicas, especialidades e redes de serviços - estimular práticas alternativas, tais como os 7) Considerações finais
- ter humildade para reconhecer o saber do paciente diferentes do campo da saúde mental, para facilitar grupos de ajuda e suporte mútuos, acupuntura,
e do seu familiar e paciência no tempo da consulta; a ação intersetorial. entre outras;
A expectativa que tive ao construir este texto é de
- ter tolerância e disponibilidade para construir
- respeitar e desburocratizar os casos de pacientes ter contribuído para o conhecimento dos variados
vínculos fortes com o usuário, com seus familiares e
d) Desafios a serem enfrentados pelos gestores do que escolhem se tratar em serviços diferentes de e complexos aspectos, características e dilemas
com a equipe terapêutica;
campo da saúde mental: suas áreas programáticas; envolvidos no processo de cuidar de pessoas com
- desenvolver dispositivos individuais e de transtorno mental, no âmbito da família. Nesta
- empregar esforços na manutenção de equipes
coletivos de acolhimento, troca de experiências direção, busquei sistematizar os inúmeros temas
- buscar uma forma de sua indicação para o cargo interdisciplinares e fixas nos serviços;
e empoderamento com e entre os familiares nos e desafios que os próprios familiares e cuidadores
serviços, incluindo, estimulando e assessorando a que leve em conta os interesses e o ponto de vista - estabelecer um sistema de referência e expressam em sua participação nos grupos de
organização de associações de usuários e familiares; dos usuários, familiares e colegas de profissão, contrarreferência, e informar e treinar as diferentes ajuda mútua que acompanho. Para isso, assumi a
após experiência reconhecida em saúde mental; clínicas médicas sobre a especificidade e as
- compreender a importância do vínculo com os posição de aprendiz e de escuta, em que eles foram
- investir em iniciativas que levem ao empoderamento necessidades das pessoas com sofrimento mental; os principais mestres e professores, com suas
pacientes e familiares e procurar se fixar nos
serviços, evitando a rotatividade; dos usuários e familiares, tanto internamente aos - promover encontros intersetoriais periodicamente falas, vivências e emoções de enorme sensibilidade
serviços de atenção psicossocial como na atenção e fortalecer estas parcerias; e riqueza humana. Pretendi ainda revelar aqui
- discriminar a luta por melhores salários, que se
primária e nas ações na comunidade e na sociedade, que, neste cuidado diário e sem fim, há inúmeras
dá no campo sindical do exercício da profissão: é - implantar serviço telefônico gratuito (0800)
e particularmente estimulando a organização dimensões que muitas vezes passam despercebidas
comum profissionais trabalharem insatisfeitos e realizado por usuários e familiares, com
de associações de usuários e familiares e seu ou são completamente invisíveis para a sociedade e
devido aos baixos salários. Nossa profissão tem um remuneração, para orientar as pessoas com dúvidas
protagonismo no sistema de saúde e saúde mental; até mesmo para os próprios serviços e profissionais
caráter social e os usuários, familiares e a própria ou em momentos de aflição;
- estimular que os serviços de saúde mental de saúde mental.
equipe não são os responsáveis por isso;
contemplem os vários dispositivos de atenção e - treinar e equipar o serviço de remoção (192) para
Contudo, o objetivo mais fundamental deste texto
- aprender que existem diferentes formas de atender todos os casos de atenção em saúde mental
de suporte aos familiares e cuidadores como uma foi mostrar a existência de caminhos concretos para
compensação pelo trabalho: a financeira, a afetiva, a (em casa ou na rua);
das prioridades do programa e das iniciativas minorar o peso, o sofrimento e o estresse envolvido
aquisição de conhecimento, a conquista de prestígio
intersetoriais; - estreitar relações com os diferentes meios de neste processo de cuidar, gerando assim esperança
ou facilidades, entre outras. É curioso o profissional
conseguir refletir sobre os ganhos e perdas de cada - ser competente, sensível e acessível para reuniões comunicação para promover um diálogo constante de dias melhores e de uma vida mais leve e cheia de
com a sociedade sobre o transtorno mental; sentido, em que cabem o cuidado de si e os projetos

166 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 167
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

pessoais, bem como a troca de experiências e as GOFFMAN, ERVING. Manicômios, prisões e principais modelos contemporâneos de teorização,
iniciativas de solidariedade e empoderamento entre conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. intervenção e práxis através de pequenos grupos, no
cuidadores. É assim que vejo os grupos de ajuda e sentido de compreender a dialética interna e externa
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS).
suporte mútuos, cuja metodologia nós, integrantes que organiza a sua estrutura e suas vivências.
Classificação de Transtornos Mentais e de
do Projeto Transversões da UFRJ, estamos nos Dessa forma, o texto procura dar subsídios para
Comportamento da CID – 10: Descrições Clínicas
propondo a sistematizar e divulgar. a compreensão dos processos grupais que são
e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre: Artes
mobilizados na práxis dos movimentos sociais e
Encerro este texto com o depoimento de uma mãe Médicas, 1993.
comunitários, ou nas práticas profissionais na área
que frequenta o Grupo Alento, uma das iniciativas ROTELLI, FRANCO et al. Desinstitucionalização. São social, educacional, saúde e saúde mental. Em
que acompanho, e que expressou da seguinte forma Paulo: Hucitec, 1990. segundo lugar, este trabalho também visa colaborar
a sua experiência em um grupo deste tipo:
SARRACENO, BENEDETTO. Libertando identidades: na elucidação dos processos grupais mobilizados
da reabilitação psicossocial à cidadania possível. nos grupos de indivíduos que vivem problemas
Participar de um grupo de mútua ajuda é um Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Te Cora Editora / existenciais, de saúde e saúde mental comuns entre
procedimento enriquecedor. Pelas descobertas. Instituto Franco Basaglia, 2001. si, e que buscam se reunir para conhecer melhor o
Você descobre que outros sofrem da mesma dor que vivenciam e trocar experiências e estratégias
SLUZKI, CARLOS E. A rede social na prática
que a sua, talvez maior, e deixa de ser O Crucificado. Texto 7 de como lidar com eles. Este é exatamente o caso
sistêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
Você descobre a solidariedade dos seus pares e dos grupos de ajuda mútua, objeto deste manual
VASCONCELOS, EDUARDO M. O poder que brota de ajuda e suporte mútuos, para o qual este texto
deixa de ser O Sozinho. Você descobre que o eco
dos seus lamentos lhe é devolvido modificado pela
da dor e da opressão: empowerment, sua história, Modelos de intervenção e foi produzido. E, finalmente, o trabalho buscará
compreensão, pela aceitação, pelo afeto coletivo,
teorias e estratégias. São Paulo: Paulus, 2003. práxis grupal, grupos de sistematizar as características do processo grupal
e deixa de ser O Desconsolado. Você descobre que VASCONCELOS, EDUARDO M. Abordagens ajuda mútua e os desafios de em grupos de ajuda mútua com usuários de serviços
gente sofrendo continua sendo gente, que pode, psicossociais, vol. I: história, teoria e trabalho no sua utilização com usuários de saúde mental, portadores de transtorno mental
deve amar e ser O Amado. Por aí vai, ad infinitum... campo. São Paulo: Hucitec, 2008. do campo da saúde mental65 maior66. Embora possa constituir um texto para
Eduardo Mourão Vasconcelos leitura independente do citado manual, o leitor o
Beijos. Graças por me ter feito pensar. (mãe e WEINGARTEN, RICHARD. O movimento de usuários
compreenderá melhor, particularmente em suas
participante do Grupo Alento) em saúde mental nos Estados Unidos. Rio de
seções sobre a prática concreta nos grupos, se
Janeiro: Projeto Transversões (ESS / UFRJ)/Instituto
puder fazer sua leitura de forma concomitante
Franco Basaglia, 2001.
com as várias seções do referido manual. E se a
1) Introdução
preocupação é menos conceitual e histórica, e
Referências
sim mais voltada para os desafios concretos da
Sites da internet consultados ou recomendados
implantação e do acompanhamento destes grupos,
www.saude.gov.br/saudemental o leitor pode ir direto e iniciar sua leitura a partir
AMARANTE, PAULO (org.). Loucos pela vida: a O presente texto objetiva em primeiro lugar
www.ccs.saude.gov.br/biblioteca do tópico [5.3], intitulado “Principais características
trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de apresentar ao leitor, de forma muito panorâmica
www.sms.rio.rj.gov.br do processo grupal na ajuda mútua, seus riscos e
Janeiro: Panorama/ENSP, 1995. e introdutória, a história e uma tipologia dos
www.tcm.rj.gov.br desafios, e estratégias de como lidar com eles”,
BRAZ, ROSAURA M. Ressocialização de pacientes www.ifb.org.br/
de longa permanência em uma instituição 65 Alguns pequenos trechos deste texto foram publicados
psiquiátrica asilar, in Cadernos IPUB nº 7, Saúde previamente como seções de capítulos de livros de minha 66 Os transtornos mentais maiores constituem aqueles
autoria, (VASCONCELOS, 2008a e 2008b). Entretanto, o com maior comprometimento do conjunto do aparelho
mental e desinstitucionalização – reinventando
presente trabalho revisou e ampliou muito os trabalhos psíquico, ou seja, todos os quadros identificados como
serviços. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria da anteriores, como poderá notar o leitor com acesso psicóticos, em seu sentido mais amplo, o que inclui as
UFRJ, 1997. àqueles textos. esquizofrenias, o transtorno bipolar e a paranoia.

168 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 169
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

voltando apenas pontualmente às referências e aos nas várias utopias sociais que povoaram a literatura suas pesquisas, realizada em 1930, a ICA identificou principal da opressão que se abate sobre os seres
conceitos anteriores quando sentir a necessidade. e a história da filosofia e do pensamento político sete princípios fundamentais nos projetos do humanos, ideia que gerou uma oposição radical a
(CAREY, 1999). Entretanto, uma reflexão tentando movimento: todas as formas de poder centralizado que exercem
Assim, adentrar gradualmente neste panorama
compreender melhor os processos que ocorrem nos a coerção estatal e social. Entre elas, estavam
histórico e na literatura sobre os fenômenos grupais
pequenos grupos humanos para sustentar novas as versões de extremo individualismo, como a
constitui um caminho fundamental para todos aqueles “- quadro de membros aberto e voluntário;
propostas de organização social mais ampla é bem do niilista alemão Max Stirner (1805-1856); as
que abraçam os grupos como dispositivo importante - controle democrático;
mais recente. As primeiras tentativas neste sentido perspectivas mutualistas, como desenvolvida pelo
de sua atuação profissional ou de seu ativismo em - interesse limitado em capital;
podem ser localizadas a partir do final do século francês Proudhon (1809-1865); as linhas mais
movimentos sociais populares contemporâneos. - dividendos nos negócios realizados;
XVIII, na Europa ocidental, com a emergência do coletivistas, como a do russo Bakunin (1814-1876);
Entretanto, não compartilhamos da visão de que - neutralidade em política e religião;
capitalismo, realizadas pelos movimentos sociais e as perspectivas comunistas anarquistas, como
o conhecimento sistematizado neste texto possa - pagamento em dinheiro nas compras e vendas;
que lhe fizeram oposição. colocadas pelo italiano Malatesta (1853-1932) e
constituir um pré-requisito anterior e indispensável - promoção de educação” (SZELL, 1992: 188).
Uma das primeiras iniciativas concretas desta pelo russo Kropotkin (1842-1921), que pregavam
para o trabalho com grupos, pois isso negaria o
reação foi o movimento cooperativo, fortemente que essa nova sociedade poderia ser induzida pela
caráter prático que reconhecemos na formação
influenciado pelo romantismo, um movimento Ainda no século XIX, esta experiência também solidariedade humana organizada em associações
de muitas lideranças de movimentos sociais com
cultural de oposição nostálgica às significativas inspirou os pensadores socialistas utópicos, como voluntárias de trabalho e de comunidades locais
boa atuação em grupos, mas sem uma formação
perdas humanas provocadas pela ascensão do Owen na Inglaterra; e Fourier, Buchez e Blanc, na (SZELL, 1992). As ideias anarquistas tiveram
teórica e conceitual prévia no campo. Para essas
capitalismo (VASCONCELOS, 2010b). As primeiras França, que propuseram entre outros projetos a influência considerável na Comuna de Paris de 1871
pessoas, consideramos o presente texto como uma
cooperativas de moinhos de farinha começaram no ideia de pequenas comunidades de trabalhadores e em vários movimentos políticos ao longo do século
oportunidade de aprofundamento, como uma reflexão
Reino Unido em meados dos anos 1760, em uma produzindo e recebendo todo o fruto de seu trabalho XX, em vários países, tendo também uma constante
que deverá ser realizada gradualmente, e que irá sem
concretização do anseio popular de obter alimentos através da troca direta de suas mercadorias. Por presença na tradição socialista, apesar das fortes
dúvida alguma subsidiar a melhor compreensão e o
não adulterados a preço razoável, em um contexto de exemplo, Charles Fourier (1772-1837) propôs críticas feitas pelo próprio Karl Marx e por seus
planejamento do trabalho com grupos.
altos preços e monopólio do milho, desenvolvendo o modelo das falanges, pequenos grupos que seguidores (VASCONCELOS, 2010a).
mais tarde as conhecidas cooperativas de constituiriam a base de sustentação de sua De sua perspectiva própria, os marxistas tentaram
consumidores, incluindo entrepostos de vendas sociedade utópica e socialista mais ampla, e que conciliar a ideia de formas participativas de
(SZELL, 1992:186). A ideia avançou em outros países combinariam a “atração apaixonada” que se dá nos base e movimentos de massa, como na própria
2) Rápido panorama histórico das primeiras
europeus, por meio da criação de cooperativas de grupos, que promove a alegria e o prazer do viver experiência da Comuna de Paris de 1871 e também
propostas de práxis social e política com
trabalho, no sentido de proteger trabalhadores humano, com o trabalho produtivo, mas conservando nos soviets formados a partir de 1905 na Rússia,
pequenos grupos na modernidade
e artesãos do desemprego e da competição dos a liberdade, a igualdade entre os homens e o com um Estado forte e centralizado que garantiria
novos processos industriais e contra a exploração respeito às diferenças. Embora muito difundidas, a continuidade da experiência socialista durante o
As formas de apropriação de processos grupais do trabalho. estas ideias românticas visionárias acreditavam que período revolucionário. Entretanto, pensaram que a
com objetivos religiosos, culturais, educacionais, O movimento de cooperativas de consumo inglesas e teriam um apelo tal que seriam capazes de mobilizar participação social ampla poderia ser sustentável
políticos, militares e sociais têm longa trajetória as cooperativas de trabalhadores franceses, ambas o apoio das elites sociais e dos governos, podendo no longo prazo, ao projetarem uma suposta
na história humana. Para ilustrar isso, podemos desenvolvidas de forma mais madura no século XIX, chegar a mudar toda a sociedade da época. superação da luta de classes e a extinção gradual
citar variados modelos de organização de pequenos tornaram-se exemplos e modelos para experiências A mesma Europa dos meados do século XIX foi do Estado na sociedade pós-revolucionária (Marx,
grupos humanos para sustentar projetos religiosos similares através da Europa e outros países do testemunha de outra teoria e movimento social, o 1871/1970; Lenin, 1917/1970). Embora o tema
mais amplos, e que foram profusos na história das Ocidente, com uma forte difusão especialmente anarquismo, que foi mais radical em sua oposição seja extremamente complexo, podemos dizer com
religiões. Como exemplo, tivemos as comunidades na Alemanha, na Itália e na Espanha. Em 1895, e ataque ao capitalismo e suas formas políticas. certeza que as experiências de socialismo real
dos primeiros grupos cristãos, perseguidas pelo uma associação internacional de sociedades Constituiu um razoavelmente amplo espectro existentes até agora mostraram, ao contrário, e com
poder romano, mas que se difundiram rapidamente cooperativas de diferentes países, a International de diferentes perspectivas teóricas e práticas, raríssimas exceções mais locais, a preponderância
nas bases sociais do Império. Outro exemplo está Cooperative Alliance (ICA), foi formada. Em uma de centrados na ideia do poder como a dimensão absoluta da hipertrofia do Estado, do totalitarismo e

170 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 171
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

do desempoderamento das organizações populares uma interpelação constante de movimentos sociais e organização de pequenos grupos, de busca corpo morto do pai. Após, sentem remorso, temem
(VASCONCELOS, 2010c). e políticos populares de base, buscando alternativas da autogestão da vida social, como base para a sua mera substituição e a reprodução da velha
de maior liberdade e renovação da vida social, a luta mais ampla contra todas as formas de ordem por um dos filhos machos emergentes, e
Por sua vez, no Brasil recente, particularmente no
notadamente em contextos de maior opressão opressão entre os seres humanos, pelos direitos assim inventam uma nova ordem social, baseada na
contexto do final da ditadura militar, o processo
econômica, social, étnico-cultural, política, religiosa, civis, sociais, políticos e por melhores condições exogamia (renúncia às mulheres da horda, ou seja,
de democratização do país envolveu uma forte
de gênero etc. concretas e subjetivas de vida. Daí, a importância proibição do incesto), e no lugar vazio do antigo
mobilização política e social da sociedade civil e das
da compreensão dos processos grupais dentro desta poder absoluto do pai morto elevam a imagem de
massas populares. Entretanto, foi particularmente
dinâmica mais ampla entre ativismo/participação um totem. Nesta trajetória, o complexo de Édipo é
a capilaridade de muitos movimentos sociais,
- Muitas vezes, estes movimentos tiveram uma de base/renovação social, de um lado, e a colocado como uma estrutura universal e fundante
envolvidos em projetos criativos e participativos
perspectiva fortemente nostálgica, romântica, universalização/institucionalização/burocratização da ordem social e humana, sustentada pelos tabus
em suas bases, que possibilitou uma renovação
anarquista ou meramente local, sem serem capazes da gestão social, de outro, nas mais diversas colocados sobre os desejos agora recalcados, mas
mais significativa das relações e das políticas
de projetar alternativas mais realistas e capazes de esferas de vida. E no caso da discussão realizada revividos como conflitos inconscientes de base: o
sociais. Foi exatamente nas áreas em que eles
serem universalizadas para a sociedade mais ampla. aqui, no campo da assistência social e notadamente desejo do incesto e de matar o pai.
foram mais fortes e criativos, que mais pudemos
da saúde/saúde mental. O segundo texto importante para o tema é Psicologia
avançar. Muitas destas lutas setoriais desaguaram
na Constituição de 1988, permitindo mais tarde das massas e análise do eu, de 1921, a partir dos
- Outras vezes, estes movimentos buscaram esta
conquistas importantes na estrutura das políticas comentários acerca de um trabalho anterior do
universalização, mas foram sendo gradualmente
sociais, mesmo que a conjuntura neoliberal que francês Gustave Le Bon sobre o assunto, de 1895.
institucionalizados, burocratizados e cooptados por
se abriu a partir da década de 1990 tenha criado 3) As primeiras tentativas acadêmicas e Este texto de Freud é também significativo em
cima pela rigidez ideológica e política ou pelo poder
enormes obstáculos para sua implantação efetiva. científicas de compreensão dos processos vários aspectos, entre os quais por rejeitar qualquer
econômico, partidário e estatal, que lhes extraíram a
grupais oposição entre psicologia individual e psicologia
Se pudermos então tentar um primeiro esforço vitalidade e as forças instituintes e de renovação67.
social, na medida em que a vida psíquica dos
provisório de síntese a partir deste rápido panorama Além disso, as exigências técnicas e científicas
indivíduos é sempre marcada por um outro, o que os
histórico da modernidade, em nossa opinião necessárias para a gestão social, se não são Foi a partir da virada dos séculos XIX e XX que coloca diretamente no âmbito das relações sociais.
podemos concluir que: mediadas, transformadas e/ou atenuadas, acabam emergiram as primeiras tentativas de decifrar os Além disso, também neste livro o laço humano é
distanciando as esferas de saber e poder do controle mecanismos e as estruturas ocultas presentes operado pela libido, que tem sua fonte energética
das bases e dos grupos populares, acentuando ainda nos processos grupais. Pelo menos dois autores- na pulsão inconsciente, e que se expressa nas
- O tema dos pequenos grupos e da participação, mais a centralização e o aparelhamento por cima, chave não podem de forma alguma ser esquecidos relações amorosas e suas identificações. Isso se
autogestão e controle do poder pelas classes pelas instituições estatais, partidárias, técnico- nesta trajetória: o austríaco Sigmund Freud (1856- dá particularmente na relação da massa com seus
populares estão no centro de uma dialética científicas e pelos setores econômicos e políticos 1939), fundador da psicanálise, e o originalmente líderes mais significativos e amados, que são
permanente e estruturalmente insolúvel entre as dominantes da sociedade civil. prussiano Kurt Lewin (1890-1947), considerado o idealizados; nas relações amorosas e de filiação
esferas do universal e do particular de exercício do
pai da psicologia social experimental e da pesquisa- comum entre os membros dessa massa entre si, que
poder político. Os projetos políticos emancipatórios
ação com grupos, com seu principal trabalho nesta limitam o narcisismo de cada um; e nas relações de
e populares podem abrandá-la, mas não superá-la, Apesar destas tendências, podemos dizer que
temática desenvolvido após a sua imigração para os ódio com os indivíduos externos, que representam
com suas tentativas de mediar e transformar as os movimentos sociais populares autênticos
Estados Unidos, em 1932. um perigo para esta coesão. Estão aqui esboçadas
relações de poder colocadas pela divisão social e mobilizam uma dialética inexorável de interpelação
as ideias fundamentais, importantes para todos
pela divisão técnica do trabalho. A primeira obra de Freud mais consistente sobre o
aqueles que atuam com grupos, das fantasias e dos
assunto foi Totem e tabu, de 1913, em que examina
67 Este é o tema do livro Crítica da razão dialética, de vínculos transferenciais inconscientes68 que se dão
o comportamento dos seres humanos na horda
Sartre, publicado pela primeira vez em 1960, acerca
- Na história humana, as iniciativas e os modelos primitiva, submetida ao poder despótico de um
do processo revolucionário francês, principal evento
sociais baseados na organização de pequenos revolucionário que conformou a nossa ideia moderna de macho líder, que monopolizava as fêmeas do bando. 68 Nestes vínculos e fantasias, os indivíduos tendem a
grupos participativos e/ou autogeridos têm sido república (SARTRE, 1960). Os filhos machos se rebelam, matam e comem o reproduzir e projetar seus desejos, medos e resistências

172 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 173
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

no grupo, entre os membros do grupo com o líder ou o democrático, o autoritário e o laissez-faire) e buscando mudar o comportamento e estilos de vida sistema hierárquico recompensa o “bom paciente”
profissional coordenador, entre os membros entre si, de liderança. Suas concepções e práticas podem avaliados como pouco saudáveis, para aquisição pela maior proximidade com o terapeuta. O método
e com os indivíduos de fora do grupo. apresentar limitações e aspectos polêmicos, mas de hábitos considerados mais adequados, ou para é eficaz e prático, buscando influir de forma ativa
é indiscutível sua contribuição original para o que pacientes adotem com mais afinco um rol e econômica sobre grupos numerosos, mas sem se
Outra obra significativa posterior para o tema foi O
mal-estar na cultura, publicada pela primeira vez em desenvolvimento das ideias acadêmicas e científicas de medidas exigido pelo tratamento de doenças preocupar com a compreensão dos mecanismos
1930. Aqui, as relações do indivíduo com a sociedade sobre os grupos humanos e seus processos. físicas crônicas. Geralmente, esta modalidade de que mobiliza no grupo nem com as questões
são vistas no âmbito da dualidade estrutural e intervenção utiliza mecanismos grupais típicos, mas étnico-culturais, éticas e políticas da indução de
dialética permanente entre o princípio do prazer sem necessariamente teorizá-los. comportamentos.
(a busca do gozo e a evitação da dor) e o caráter O exemplo típico deste tipo grupal de intervenção Grinberg et al. chamam a atenção para o sucesso
coercitivo do princípio da realidade, que rege a 4) Os principais modelos de intervenção foi usado por J. H. Pratt, em 1905, com um sistema deste tipo de dispositivo grupal em doenças
relação com o mundo externo e a sociabilidade. Este e teorização sobre processos grupais no de classes coletivas com pessoas em tratamento orgânicas, para adesão a formas de tratamento
princípio impõe limitações, sofrimento, insatisfação, século XX de tuberculose, visando sua adesão ao tratamento pouco polêmicas, mas que apresentaria inúmeros
e portanto renúncia à felicidade, gerando mal- e acelerar a recuperação física deles. As classes problemas em caso de transtornos de origem
estar, sublimação, neurose, intoxicação e psicose, reuniam cerca de 50 usuários em uma conferência psíquica. É preciso ir além, alertando que este
Esta seção buscará sistematizar uma visão
bem como uma tendência imanente e pervasiva do terapeuta, que dissertava sobre as medidas de modelo gera uma relação de poder muito desigual,
panorâmica dos vários tipos de dispositivos e teorias
de agressividade para com os demais indivíduos higiene necessárias e os problemas do tratamento, um processo unidirecional de emanação de valores e
grupais sintetizados no percurso do século XX, bem
e para com a sociedade, dinâmica que determina ao final da qual os presentes podiam fazer perguntas
como das características da intervenção profissional uma enorme dependência em relação ao terapeuta,
outra dualidade estrutural, entre a pulsão de vida e e discutiam. Os usuários mais interessados nas
ou leiga nos grupos no campo da saúde e saúde bem como um nível muito baixo de troca, cooperação
a pulsão de morte. É claro, todos estes conflitos são atividades coletivas e aqueles que melhor cumpriam
mental. Esta síntese constitui uma ampliação e autonomização entre os participantes, com riscos
vividos de forma inconsciente por cada indivíduo, o regime de medidas ocupavam as primeiras
significativa de uma abordagem inicial proposta enormes de normatização social dos mesmos pelo
em sua vida particular, mas também nos grupos e cadeiras da sala, criando-se um quadro hierárquico
por Grinberg et al. (1976) para tentar compreender profissional e pelas instituições sociais e de saúde.
coletivos humanos. conhecido por todos. Os resultados práticos da
a evolução da psicoterapia de grupo, e se baseia na Como veremos mais adiante, um modelo com
Por sua vez, Lewin compreendeu as relações do tentativa de comparar: técnica no tratamento foram muito positivos, e Pratt
algumas características similares, por um lado, mas
grupo e particularmente dos indivíduos no grupo, passou a sistematizar e publicar69 sobre o assunto.
por outro razoavelmente diferenciado, é constituído
no contexto de um campo de forças e de fatores Segundo Grinberg et al., este modelo utiliza, pelos grupos de ajuda mútua, cuja matriz tem
psicológicos que agem em um certo momento - o tipo da intervenção (processos psicoeducativos, portanto, de forma deliberada, os processos antecedentes e é mais bem conhecida pelos grupos
no grupo e no espaço vital de cada indivíduo. terapias genéricas, psicoterapia, modelos mistos coletivos inerentes ao grupo, com uma finalidade
e de transição, modelos de mudança social e de Alcoólicos Anônimos (AA), que se iniciaram
Estes fatores podem ser por exemplo a fome, a terapêutica, mobilizando dois mecanismos grupais
fadiga, eventos externos gerados por situações institucional) e seus objetivos; em 1935, nos Estados Unidos, e que se difundiram
típicos: de um lado, o uso controlado de sentimentos por todo o mundo.
sociais específicas, recordações do passado etc. de rivalidade, competição e solidariedade entre os
- o tipo de teoria ou conhecimento mobilizado para a
Neste enquadramento, aproximou-se das noções Uma outra variante do modelo é o da comunidade
compreensão dos processos grupais; membros do grupo, e, por outro, a mobilização dos
de topologia e notadamente de forças vetoriais, terapêutica, particularmente na versão anglo-
afetos em relação a uma figura paterna idealizada,
como na física. Este tipo de análise foi aplicado - os processos grupais e as relações de poder
centralizada no terapeuta ou profissional, saxônica, em que se destacam Maxwell Jones (1972)
em experimentos e situações e conflitos sociais mobilizadas nos dispositivos propostos.
estimulando a identificação com ele, sendo que o na Inglaterra e Menninger nos Estados Unidos. No
concretos, em suas relações de aproximação e contexto da pressão pela reabilitação de soldados
evitação, de diferentes tipos de grupo (tais como recém-chegados do campo de batalha na II Guerra
4.1) Terapias exortativas que agem pelo grupo
69 O artigo é citado por Grinberg et al., mas de forma Mundial, buscou-se a dinamização da vida social
incompleta: Pratt, JH – The principles of class treatment
e do processo decisório dentro do hospital, com
inconscientes, fazendo interagir suas tendências and their applications to various chronic diseases.
individuais com os processos coletivos também Neste tipo de intervenção, usam-se técnicas Hospital Social Services, 1922, apud Grinberg et al. assembleias, grupos de trabalho, horizontalização
inconscientes induzidos pela própria situação grupal. psicoeducativas ou terapêuticas genéricas (1976: 30-1 e 260). da relação com os profissionais etc. É possível

174 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 175
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

indicar a similaridade com as terapias exortativas o dispositivo, coordena-o e interpreta o discurso indivíduos no grupo, mas sim o próprio grupo sim as relações que estabelecessem com a tarefa
que agem pelo grupo, inclusive pela ausência de ou o comportamento dos participantes, com o como o fenômeno central e principal objeto ou com os pressupostos básicos do grupo.
uma teorização sistemática dos processos grupais objetivo de realizar tratamentos psicoterápicos da interpretação. Considera-se o grupo e seus
Uma terceira abordagem que poderia ser incluída
mobilizados, mas apresenta as particularidades em cada indivíduo. Em suma, as relações de processos inconscientes como uma totalidade a
nesta categoria é o movimento de psicoterapia
próprias de seu forte componente de estrutura poder, a condução do processo e as relações ser compreendida, e, em alguns casos, também
institucional francesa, que se desenvolveu na
fraternal e de desinvestimento relativo do poder transferenciais a serem interpretadas estão todas como dispositivo clínico ou de trabalho. As obras
França no contexto da II Guerra Mundial, a partir
profissional vertical até então existente. centradas no analista. Do ponto de vista teórico, de Freud citadas anteriormente são fundamentais,
de experiências internas aos hospitais psiquiátricos
Um modelo de transição entre o modelo de terapia estas abordagens são principalmente de cunho e consideradas como ponto de partida deste tipo
convencionais. O movimento retrabalhou e ampliou
exortativa que age pelo grupo e a psicoterapia de psicanalítico (GRINBERG et al., 1976; PY et al., de teorização. De forma semelhante, a teorização
conceitos psicanalíticos para a compreensão
grupo é constituído pelo psicodrama, criado por 1987), mas existem também algumas contribuições indicada acima de Lewin também vai nesta linha e
das relações interpessoais que se estabelecem
Moreno a partir de 1911, em Viena. O psicodrama existencialistas e fenomenológicas de importância pode ser incluída neste modelo.
nas instituições, e utilizou-os em processos de
tem elementos comuns com o modelo da terapia (PAGÈS, 1982). Outro autor de relevo neste campo foi o inglês democratização e transformação das relações
pelo grupo, mas mais particularmente com os Do ponto de vista dos dispositivos hoje utilizados Wilfred Bion (1897-1979), que desenvolveu a institucionais nestas instituições psiquiátricas, por
grupos de ajuda mútua e com a comunidade no processo de reforma psiquiátrica no Brasil, este teoria dos pressupostos básicos dos grupos, meio de ações horizontalizadas de decisão coletiva,
terapêutica, especialmente pela sua forte estrutura modelo tem relevância apenas nos ambulatórios, baseada na teoria psicanalítica de Melanie Klein, divisão de trabalho e práticas grupais. Seus principais
fraternal e pelo fato de ser uma terapia pelo grupo, nos quais este modelo convencional ainda é um entendendo-os como disposições inconscientes que autores são os franceses Tosquelles e Oury, mas
pela dramatização dos conflitos existenciais e recurso clínico muito importante, além de propiciar presidem a vida emocional e operativa dos grupos, há autores brasileiros que vêm sistematizando e
psicológicos e pela catarse de seus participantes o aumento no número de usuários atendidos70. que podem desviar/dificultar ou apoiar a atividade divulgando seus conceitos e práticas (VERTZMAN et
no grupo. No entanto, apesar de uma razoável Do ponto de vista das abordagens de atenção racional do grupo (BION, 1970; BLÉANDONU, 1992). al., 1992; VERZTMAN e GUTMAN, 2001; MOURA,
faixa de liberdade de atuação dos participantes e psicossocial, as psicoterapias de grupo não Outra inovação importante de Bion foi a utilização 2003). No aspecto descritivo e prático, este modelo
de uma relativa diminuição da identificação com constituem um modelo operativo importante por desta teoria não só em grupos com objetivos é contemporâneo e se parece muito com o da
o psicodramatista, o papel deste último é central terapêuticos, mas também em grupos de trabalho, comunidade terapêutica anglo-saxã, indicada acima.
si mesmo, mas sim pelo forte impulso teórico que
como coordenador de toda a dinâmica. Além disso, com tarefas concretas a serem realizadas. A diferença principal está na forte sistematização
gerou, no sentido de colaborar na compreensão dos
há um razoável esforço de compreensão teórica teórica que realizou, de inspiração psicanalítica,
processos psicológicos individuais nos grupos, e, em Uma abordagem semelhante foi desenvolvida pelo
dos processos dramáticos e grupais operados nas para compreender os aspectos inconscientes dos
alguns casos, também dos processos inconscientes psicanalista de origem suíça e depois radicado
técnicas e de sistematização acadêmico-conceitual processos institucionais, o que não está presente
do grupo como um todo. na Argentina, Pichon-Rivière (1907-1977), com
do psicodrama. Estes dois aspectos o diferenciam no modelo inglês e norte-americano.
sua teoria de grupo operativo, tendo como base
do modelo descrito acima, colocando-o como um
também a teoria kleiniana e uma aproximação Neste modelo e suas variações indicadas acima,
modelo de transição a caminho da psicoterapia de 4.3) Terapia ou análise interpretativa do grupo com o marxismo de Lucien Goldman. O grupo há uma clara e profunda transição sendo operada,
grupo, tema da próxima seção. terapêutico ou de trabalho operativo está centrado na sua tarefa, que pode ser em que a compreensão clínica dos processos
terapêutica, educativa ou de trabalho, mas também inconscientes do grupo como totalidade podem
4.2) Psicoterapias interpretativas do indivíduo se pensa e se tenta revelar os processos grupais que ter objetivos ou efeitos psicoterapêuticos para os
Este outro modelo não foca propriamente os
no grupo estão sendo operados, e que implicam diferentes participantes dos grupos, mas também pode ir além
padrões de relação com a sua tarefa (PICHON- destes objetivos especificamente clínicos, para
70 Para uma discussão um pouco mais crítica e RIVIÈRE, 1971 e 1991; SAIDÓN, 1982). De forma colaborar na compreensão dos processos grupais
Este modelo na verdade constitui uma continuidade aprofundada sobre os dispositivos clínicos grupais em diferenciada, ambos os modelos (Bion e Pichon- em grupos de trabalho, voltados para objetivos
quase linear do modelo clínico convencional saúde mental, ver o capítulo sobre experiências populares Rivière) propõem uma relativa minimização do papel educacionais, profissionais ou mesmo para a
em saúde mental, de minha autoria (VASCONCELOS,
com indivíduos, só que o dispositivo agora e do poder do coordenador ou facilitador do grupo, militância social. Em outras palavras, a compreensão
2008b), bem como no texto específico sobre práticas
opera com grupos, ou seja, faz-se psicoterapia grupais no contexto de serviço social brasileiro já que as relações transferenciais para com ele não dos aspectos psicossociais do processo grupal pode
individual no grupo. O psicoterapeuta propõe (VASCONCELOS, 2009). constituem um objeto central de interpretação, mas responder sim a objetivos clínicos, de tratamento

176 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 177
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

de seus participantes, mas também à compreensão agora o objetivo da assessoria aos grupos ou da participativas e valores democráticos, podem estar movimentos da contracultura e do Maio de 1968.
dos mecanismos inconscientes mobilizados pela compreensão/interpretação analítica dos processos sendo montados de forma a articular e mobilizar Constitui uma abordagem mais sociológica, com
forma de se organizar para realizar tarefas objetivas grupais não tem mais objetivos especificamente inconscientemente formas de subjetividade que fortes aproximações ao marxismo e às obras de
na realidade, ou seja, para analisar os processos clínicos ou terapêuticos. Embora a ação possa ter implicam perda da autonomia, autoritarismo, ou até Sartre mais próximas do marxismo (SARTRE, 1960),
psíquicos envolvidos em seu trabalho concreto71. efeitos terapêuticos nos indivíduos e nos grupos, seu mesmo fanatismo e violência. Na psicossociologia, mas também se apropria de forma muito própria
Assim, estas abordagens podem operar, se chamadas objetivo central e principal é contribuir diretamente dada a forte influência psicanalítica, os analistas e de alguns conceitos psicanalíticos. Está centrada
para isso, uma ultrapassagem dos objetivos clínicos para que os grupos de trabalho, organizações sua competência têm um papel importante como na ideia-chave de que todos os fenômenos grupais
convencionais, para colaborar na compreensão dos ou movimentos sociais possam compreender os assessores/consultores e como o ator central na e organizacionais têm sua face de superfície
processos psicossociais envolvidos na organização processos grupais e institucionais envolvidos em sua explicitação e nas interpretações sobre os eventos visível, mas estão atravessados de ponta a ponta
e no trabalho de grupos sociais concretos. Por dinâmica interna e sua práxis. Além disso, possam ou processos em curso. por processos institucionais ocultos e reprimidos,
exemplo, em minha vida de cerca de 35 anos de também induzir processos de mudança quando que podemos chamar de inconsciente social.
prática profissional e de militância social, muitas identificam aspectos indesejáveis ou incongruentes Aqui há forte aproximação com Marx, na sua
4.5) Análise militante de grupos sociais e descrição das formas de ocultamento das relações
vezes fui chamado para assessorar grupos populares com seus objetivos institucionais e ético-políticos,
instituições sociais de dominação, mas a contribuição original
ou ligados a movimentos sociais, para ajudá-los particularmente de ação e transformação social e
a repensar e avaliar seus conflitos e impasses política. da socioanálise está em buscar identificar os
internos, ou suas dificuldades de organização. Em processos institucionais, grupais e subjetivos deste
O principal exemplo de abordagem neste modelo é Este modelo tem similaridades com o anterior,
todos os casos, posso assegurar que os impasses ocultamento e os conceitos e dispositivos que
a psicossociologia, que teve origem na França, mas sua práxis é menos interpretativa, no seu
combinavam aspectos econômicos, sociais, políticos podem induzir o seu processo de desvelamento. Por
nos anos 1970, com base nas obras culturais de sentido freudiano, para assumir mais a forma
e institucionais com dificuldades no processo outro lado, da mesma forma que no plano individual
Freud, mas integrando algumas contribuições da de uma militância micropolítica. Embora seus
interno de organização, de liderança, de dispositivos há o que Freud chamou de retorno do recalcado, há
filosofia de Castoriadis e da sociologia da ação representantes possam assumir uma posição de
participativos e de relações de poder, em que também processos de “retorno do reprimido social”
social de Touraine. Os autores mais conhecidos analistas institucionais semelhantes à intervenção
aspectos psicossociais inconscientes também estão nos eventos “analisadores”.
são Pagès, Kaës, Anzieu, Enriquez, Levy, Barus- psicossociológica, as correntes deste modelo
presentes. Nestes momentos, as buscas realizadas Michel e também o inglês Elliot Jacques, todos tendem a não acentuar o saber-poder dos analistas, Em termos muito sintéticos, no processo de
nas teorizações de Bion, de Pichon-Rivière e eles com trabalhos já publicados no Brasil72. Os para fazer emergir as competências difusas dos intervenção em coletivos, a socioanálise constitui
da psicoterapia institucional francesa também psicossociólogos realizam seu trabalho a partir da vários participantes do processo. Entretanto, o uma práxis que estimula a emergência ou produção
ofereceram contribuições significativas para este conhecimento de seus conceitos e estratégias dos chamados analisadores espontâneos ou
intervenção psicossociológica, na qual o profissional
trabalho de assessoria. interventivas pelos analistas e ativistas sociais construídos. Estes são uma espécie de “atos
é chamado a atuar em grupos, associações,
instituições e projetos sociais, no sentido de ainda é um pré-requisito para seu exercício, e há falhos” que ocorrem nos grupos e que revelam as
estimular que os participantes tenham acesso um esforço significativo de parte de alguns seus contradições que os atravessam, as várias formas
4.4) Análise ou intervenção interpretativa de
aos mecanismos conscientes e inconscientes que representantes e lideranças em democratizar o de vínculos e de implicação de seus membros
grupos de trabalho, movimentos sociais e
atuam nos processos grupais e institucionais. acesso a este conhecimento, apesar do jargão (sociais, políticos, étnicos, psíquicos, de gênero
instituições
Muitas vezes, mesmo projetos marcados pelas fortemente acentuado que alguns ainda utilizam etc.) e as relações de poder e as estruturas do
melhores intenções no plano consciente, no regularmente em suas discussões. inconsciente social, permitindo aos atores sociais
Este modelo se diferencia do anterior apenas porque sentido de buscar ideias críticas, estratégias identificarem com mais clareza as forças instituídas,
Uma das correntes mais importantes deste modelo
bem como as forças instituintes e renovadoras da
é a socioanálise, que nasceu na França, nos anos
1960, tendo como principais expoentes Lapassade
71 Afirmar isso não implica, porém, pretender eliminar 72 Considero que uma boa introdução a esta corrente
tensões, conflitos, contraposições e passagens entre os pode ser obtida pela leitura das seguintes obras, e Lourau73, na esteira da forte influência dos o livro mais recente de Lourau (2004), a coletânea
dois tipos de perspectivas e paradigmas – o clínico e o sugerindo-se respeitar a ordem de apresentação: Levy et organizada por Rodrigues e Altoé (2006), para depois
social –, mas mostrar que esta convivência contraditória al., 1994; Barus-Michel, 2004; Enriquez, 1997; Kaës et al., fazer uma incursão nos livros mais clássicos, como
é possível em dispositivos grupais e institucionais. 1991, e Fernández, 2006. 73 Para uma primeira introdução à socioanálise, sugiro Lapassade (1983) e Lourau (1995).

178 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 179
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

dinâmica institucional, que podem ser mobilizadas Uma outra ideia fundamental da esquizoanálise suas especificidades e são complexas, e merecem Feitas estas observações, podemos então passar
nos processos de mudança social e política. Assim, é a passagem de grupo assujeitado para grupo uma avaliação detalhada de suas contribuições e agora à análise mais detalhada do modelo grupal
as contribuições da socioanálise são fundamentais sujeito. Os grupos assujeitados recebem sua pauta limites. Essa análise é importante e necessária, mobilizado pelas estratégias de ajuda mútua.
e têm enorme relevância no trabalho com grupos, de trabalho e ideias de fora, sem assumir sua mas extrapolaria os objetivos e as dimensões do
em organizações, em projetos econômico-sociais e perspectiva de sujeitos do processo. Os grupos presente ensaio, centrado na revisão do processo
no trabalho comunitário. sujeito, como o próprio nome indica, assumem de construção histórica dos modelos grupais e
Outra corrente importante deste modelo mais ativamente esta condição, reelaborando suas regras, dos grupos de ajuda mútua. Entretanto, o mais 5) O modelo dos grupos de ajuda mútua,
abrangente é a esquizoanálise de Felix Guattari seu modo de trabalho, suas formas de lideranças, importante para os objetivos do presente suas características estruturais, desafios e
e Gilles Deleuze, que caminha em uma direção as várias formas de implicação de seus membros texto é reconhecer a importância da estratégias de lidar com eles
muito próxima à da socioanálise, apropriando- e os atravessamentos do grupo, em processo experimentação prática e do conhecimento
se e modificando de uma maneira muito própria autogestivo. Este último aspecto é importante, cada vez mais aprofundado destes vários
ou seja, a maior capacidade dos grupos sujeitos 5.1) Classificação do modelo
referenciais teóricos variados, mas principalmente modelos para a formação das lideranças
oriundos da psicanálise, do marxismo e do pensamento de identificarem e analisarem a transversalidade, sociais ou dos profissionais que adotam os
de Nietzsche. Seu principal representante operativo entendida como as diversas dimensões e relações dispositivos grupais como ferramenta de Dentro do conjunto de modelos que vimos
foi Guattari, autor francês com vários livros sobre o opressivas que atravessam o grupo, como as atuação e práxis social e profissional. Mesmo examinando até agora neste texto, os grupos de
tema e sobre experiências concretas de práticas e relações de sujeição e dominação de classe, de que não adotemos este ou aquele modelo específico, ajuda mútua podem ser classificados no primeiro
intervenções no campo social, da saúde e da saúde gênero, de etnia, de geração, de discriminação o conhecimento gradual dos vários modelos, suas tipo, ou seja, como terapias exortativas que agem
mental. Guattari propõe que: social e cultural, de identidades sexuais, ou teorizações e os conceitos são fundamentais para pelo grupo. Historicamente, o movimento que utiliza
associadas a condições existenciais específicas, se trabalhar com qualquer um dos demais modelos, este modelo que mais se difundiu espacialmente no
como deficiências, doenças crônicas, transtorno como o leitor poderá já visualizar ainda no decorrer mundo foi o dos Alcoólicos Anônimos, fundado em
“O inconsciente pode voltar-se para o passado mental etc. Outra característica dos grupos sujeito do presente texto. Um das razões para isso está em 1935 nos Estados Unidos e que hoje estão presentes
e retrair-se no imaginário, mas pode igualmente é buscar assumir a sua provisoriedade, aceitando a que os processos subjetivos e psicossociais são em cerca de 150 países, com pelo menos dois
abrir-se para o aqui e agora, ter escolha com angústia associada à possibilidade sempre presente multidimensionais e exigem formas de conhecimento milhões de membros diretos. A difusão também se
relação ao futuro (...) O que importa, agora (...) de sua morte e dissolução, já que uma formação interteóricas (VASCONCELOS, 2002), pois muitas deu no sentido de abarcar outros comportamentos
é o que denomino “devir”. (...) A única maneira reativa inconsciente a esta possibilidade sempre vezes a análise de um único fenômeno grupal pode compulsivos e problemáticos, o que levou a
de “percutir” o inconsciente, de fazê-lo sair da gera enrijecimento e apego ao estabelecido nos sua conhecida tradição dos doze passos a abrir
exigir a ajuda de conceitos e processos propostos
rotina, é dando ao desejo o meio de se exprimir grupos. outras organizações, tais como as dos Neuróticos
por outras correntes. Neste sentido, o aparelho
no campo social (...): construir sua própria vida, Anônimos e dos Psicóticos Anônimos.
A esquizoanálise tem vários representantes psíquico grupal parece ter as mesmas características
construir algo de vivo, não somente com os
argentinos e brasileiros importantes, tais como Suely polissêmicas do aparelho psíquico individual, como A diferença fundamental dos grupos de ajuda
próximos, com as crianças – seja numa escola
Rolnick, Gregório Baremblitt, Regina Benevides de nos indicou Freud. Não raramente, a explicação de mútua com o modelo preconizado por Pratt utilizado
ou não – com amigos, com militantes, mas
Barros, Antonio Lancetti, Peter Pál Pelbart e Heliana um fenômeno singular de um indivíduo ou de uma no tratamento de tuberculose, indicado acima
também consigo mesmo, para modificar, por
Rodrigues (esta última muito próxima também da estrutura psicopatológica particular exigia fazer uso neste texto, está em evitar a utilização do segundo
exemplo, sua própria relação como o corpo, com
socioanálise), entre vários outros. simultâneo de dois ou até mesmo dos três modelos mecanismo, o de identificação com o terapeuta,
a percepção das coisas (...).” (GUATTARI, 198574)
metapsicológicos que sintetizou, e que são baseados pois deliberadamente não há profissionais nestes
Antes de concluir esta seção descritiva sobre os
em diferentes filosofias do conhecimento. Essa grupos. Assim, este modelo visa estimular a
diversos modelos de intervenção e práxis grupal,
74 Esta inserção constitui na verdade uma montagem exigência é ainda maior quando tratamos de grupos identificação horizontal cruzada entre os membros
é importante reconhecer que todas as correntes
de vários trechos do livro, para tornar suas ideias mais com perfis particulares de membros, e inseridos do grupo, e particularmente com aqueles em estágio
compreensíveis e accessíveis ao leitor não acostumado resenhadas esquematicamente nesta seção têm
em diferentes contextos sociais e institucionais mais avançados de recuperação, que alcançaram
com seu estilo. Além desta obra, o leitor interessado pode
consultar Baremblitt (1992), outras obras individuais do na sociedade mais ampla, exigindo integrar mais maior tempo sem beber e conseguiram reconquistar
próprio Guattari (1988, 1992), de Guattari e Rolnik (1986) e de Guattari et al. (2003). dimensões em nossa análise. um melhor padrão de vida, depois de passar pelo

180 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 181
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

“fundo do poço”. Assim, podemos então chamar os descentralizadas e de base, sem mandato de a participação regular em grupos de AA constitui estratégias de recuperação;
grupos de ajuda mútua inspirado nos AA de terapias autoridade superior sobre a autonomia dos grupos o dispositivo mais efetivo e amigo do usuário, e
exortativas que agem pelo grupo, com estrutura locais ou membros individuais, e um processo de disponível para abordagem do abuso de álcool;
fraternal75, constituindo portanto uma outra variação decisão baseado no consenso obtido após longo i) nossa pesquisa no Rio de Janeiro constatou
interna dentro desta categoria mais ampla. processo de debate igualitário. Por outro lado, que o AA possibilitou o desenvolvimento da
e) entre os analistas citados, há também um figura do “conselheiro de álcool e drogas” (hoje
constatamos particularmente em nossa pesquisa
consenso positivo de que, nos grupos de AA, há denominado técnico em dependência química), ou
no Rio de Janeiro (REIS, 2007), na direção inversa
5.2) Ensaio avaliativo de um exemplo típico, os uma proibição explícita de acumulação de dinheiro, seja, de lideranças de seus grupos que, a partir de
desta estrutura organizacional horizontalizada e
Alcoólicos Anônimos propriedade e prestígio; sua experiência pessoal de recuperação, passam
descentralizada de sua dinâmica grupal na base,
a ter um papel fundamental nos programas de
que há em toda uma rede organizacional hierárquica
recuperação no campo como assalariados voltados
de gestão mais geral dos grupos, e um verticalismo f) outra avaliação positiva consensual, confirmada
A avaliação histórica, doutrinal, cultural e exclusivamente para a atenção a novos usuários
doutrinário extremo, já que todo o conjunto de em nossa pesquisa empírica no Rio de Janeiro, é
psicossocial do modelo do AA é extremamente nos serviços, valorizando-se e empoderando-se a
princípios, de instruções de funcionamento dos relativa ao fato de que em suas seções e em toda
complexa e já constituiu o tema de inúmeros figura dos usuários mais avançados no processo de
grupos, os textos doutrinais e o material de a organização, há uma preocupação ativa e regras
trabalhos já publicados, particularmente fora recuperação, em um contexto em que normalmente
divulgação geralmente parte da agência matriz fortemente estabelecidas para garantia de absoluto
do Brasil. Em nosso país, foi objeto de poucos apenas os profissionais eram chamados a atuar;
norte-americana. Qualquer sugestão de mudança anonimato para o mundo fora dos grupos de AA,
estudos sérios, entre os quais saliento revisões
doutrinal e na metodologia de funcionamento dos que oferece segurança e confidencialidade aos seus
de estudos significativos da literatura em inglês,
grupos tem que fazer um longo percurso nesta membros; j) sobre a concepção de alcoolismo:
de minha autoria (VASCONCELOS, 2003 e 2008b),
hierarquia organizacional até o topo, na Conferência
o trabalho de Mota (2004) e a extensa e sensível Reinarmar (1995) avalia que no AA, o alcoolismo
Internacional de Serviços Gerais;
tese de doutorado de Reis (2007). Não cabe é representado como uma “doença progressiva” e
g) essas mesmas fontes reconhecem positivamente
retomar aqui toda a complicada linha de avaliação incurável, tratável unicamente por meio da abstinência
a completa autonomia e independência que a
já desenvolvida nestes trabalhos, mas podemos absoluta, e associada à falta de controle sobre o ato
b) de forma também positiva, há o reconhecimento organização mantém em relação a profissionais e a
reproduzir um extrato da última síntese já publicada de beber. Assim, critica o seu enquadramento dos
de que o AA geralmente está disponível nos seus serviços em geral, particularmente aos da área
(VASCONCELOS, 2008b), para permitir uma visão problemas do álcool dentro de um modelo médico,
espaços mais variados, das grandes cidades às vilas “psi”, constituindo um fator real de empoderamento.
introdutória à complexidade dos mecanismos no seu sentido mais convencional e unidisciplinar,
rurais, na maioria dos países do mundo, e, portanto, É importante lembrar que a organização, através
acionados pelos grupos de ajuda mútua do AA: apesar de sua independência dos profissionais e
apresenta ampla difusão e acessibilidade; de seus membros, não descarta a ou mesmo pode
instituições médicas para desenvolver o processo
estimular um eventual uso pessoal e privado de
de recuperação. Em contraste com esta abordagem,
tratamentos profissionais;
a) há um relativo consenso positivo entre os analistas, as novas abordagens de abuso de drogas adotadas
c) além disso, toda a literatura constata que o
como indicam Reinarmar (1995) e Davis e Jansen pela atual política de saúde mental no Brasil, por
modelo de funcionamento e os princípios do AA
(1998), de que o AA apresenta uma organização h) da mesma forma, David e Jansen (1998) e nossa exemplo, colocam a abstinência absoluta apenas
também se difundiram mundialmente para e foram
e uma estrutura de filiação completamente pesquisa no Rio de Janeiro constatam que o AA como uma das possibilidades dentro de um rol mais
capazes de abraçar a abordagem de vários outros
promove uma forte valorização da história pessoal amplo de estratégias, enfatizando outras, na linha
problemas de abuso químico e de comportamento
de cada membro e da vivência grupal, construído da redução de danos (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
75 Muitos destes dispositivos de estrutura fraternal compulsivo;
por meio do colocar em comum as vivências de cada 2005).
não deixam de ter seus mitos fundadores, no sentido
antropológico desta expressão, particularmente em um e da construção e reconstrução das narrativas Em uma perspectiva inversa, mais simpatizante do
relação aos criadores concretos dos movimentos, como d) embora haja ainda alguma polêmica em relação de vida, em uma tradição oral muito próxima da AA, David e Jansen (1998) indicam que a linguagem
acontece também no AA. Porém, nas estruturas fraternais,
a detalhes sobre a avaliação dos resultados, cultura popular, e que permite a identificação do AA, inclusive do alcoolismo como doença,
estes mitos não são presentificados em lideranças
centralizadoras e estruturas de poder personalizadas, constatamos em nossa pesquisa que a maioria interpessoal imediata entre seus participantes, constitui na verdade uma linguagem metafórica,
com papel preponderante nas práticas grupais. dos especialistas e profissionais reconhece que o acolhimento e o intercâmbio de experiências e aberta a apropriações variadas e múltiplas,

182 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 183
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

denotando, entre outras coisas, isolamento, estruturais, políticos e culturais que possam ser m) este mesmo pesquisador, a partir de sua revisão acima, não estimulam formas mais avançadas de
desespero e vida caótica. aventados para explicar o ato de beber tendem a ser da literatura, critica o modelo do AA, como baseado empoderamento e de individuação psicológica;
definidos como questões “externas”, sendo excluídas em uma psicologia pragmática e racionalista
De nossa parte, a partir da pesquisa no Rio de
dos encontros ou interpretadas como evidência de inspirada nos primeiros psicólogos cognitivos
Janeiro e do estudo de Reis (2007), percebemos
desculpa, negação ou racionalização da situação tais como Willian James, remodelando conceitos o) nossa pesquisa constatou também que, ao
que, muito além desta impressão inicial de uma
pessoal, e, portanto, como clara manifestação religiosos como “pecado” e “retribuição” na forma enfatizarem a difusão em massa sem depender
visão estritamente médica, esta perspectiva
da doença. De nossa parte, no Rio de Janeiro, de “defeitos de caráter”, “correção”, que parecem de especialistas, e evitando qualquer forma de
constitui na verdade um dispositivo inicial
percebemos que a maioria das avaliações feitas em lembram a sensibilidade moderna norte-americana, risco e imprevisto, o AA optou por uma dinâmica
desculpabilizante, que visa absolver em um primeiro
nosso país por autores ligados à esquerda indicam anticlerical, pós-proibição do álcool; predominante de reunião estereotipada, baseada no
momento o alcoolista e sua família da culpa moral
neste tema os principais efeitos de alienação, modelo de auditório, marcado por relações unívocas
(o indivíduo é portador de uma doença incurável,
individualização e privatização de questões sociais com o palestrante, sem permitir variações temáticas
e não imoral, desviante ou psicologicamente
e políticas da abordagem do AA, não promovendo n) outra linha muito comum de avaliação do e criatividade. Por exemplo, modelos de reunião na
fraco). Em um segundo momento, porém, quando o
a consciência crítica sobre o estímulo ao consumo AA critica a representação do caminho para a forma de círculo possibilitariam diferentes tipos
indivíduo já está integrado ao grupo e assume o seu
do álcool pela sociedade atual, nem o engajamento recuperação e para se retomar o controle, como de relações cruzadas, mais horizontalizadas e
processo de recuperação, o dispositivo aciona uma
dos indivíduos em processos de defesa de direitos e requerendo a admissão da completa ausência de igualitárias, bem como poderiam ser mais flexíveis
radical mudança no sentido da individualização,
mudança cultural e social; poder e pela admissão do “Poder Superior”. Visões para diferentes temáticas. Estas alternativas
convertendo o alcoolismo em problema moral e
mais simpáticas ao AA, como as de David e Jansen poderiam ser fomentadas em fases mais avançadas
espiritual de inteira responsabilidade de cada
(1998), afirmam que esta é uma abordagem inicial de desenvolvimento dos grupos, bem como de seus
indivíduo. Assim, esta abordagem do AA envolve
l) ainda sobre os aspectos religiosos e espirituais necessária ao sentimento de onipotência típico dos
aspectos somáticos, mentais e principalmente membros, estimulando a individuação psicológica e
do AA, Reinarmar (1995) avalia que, embora não alcoolistas, como se capazes de pleno controle de
morais e espirituais em uma combinação complexa, a formação de identidades pessoais e sociais mais
confessional ou denominacional, o AA mantém uma si, em paralelo a uma denegação do caos de suas
com aspectos similares às representações sociais flexíveis e criativas, capazes de lidar com níveis
abordagem profundamente religiosa, por meio de vidas, e cuja saída passa pela conexão com os
dos fenômenos mentais das classes populares crescentes de desafios;
um sentido de recuperação inspirado na conversão colegas de grupo, e, gradativamente, pelo controle
brasileiras, na linha dos fenômenos do “nervoso”,
religiosa do tipo evangélica. Indica que algumas efetivo de suas próprias vidas. Apontam ainda
já bastante sistematizados pela antropologia social
feministas irão enfatizar que a representação do que há frequentes confusões na compreensão p) finalmente, penso que, apesar da importância
brasileira76, particularmente por pesquisadores
poder superior reproduz os modelos patriarcais deste aspecto por visões mecânicas, positivistas e histórica do AA como modelo matriz de ajuda mútua,
associados a Luís Fernando Duarte (1986; DUARTE
e masculinos. De nossa parte, no Rio de Janeiro, reducionistas de algumas ciências comportamentais, os movimentos sociais atuais mais engajados,
e LEAL, 1998), mas com particularidades de
constatamos que essa representação espiritualizada e que a recuperação só pode ser entendida como
individualização muito próprios; inclusive o próprio movimento de usuários em
da recuperação também encontra resistência entre processo dialético de várias fases, com algumas vários países, tendem a inserir os grupos de ajuda
os profissionais, dada a sua formação laica e semelhanças a certos tipos de psicoterapia ou mútua em um leque mais amplo de dispositivos
k) Reinarmar (1995) indica que esta perspectiva racionalista. estratégias espirituais de desenvolvimento pessoal, e estratégias de empoderamento, como grupos
individualizante do AA é coerente com suas raízes Outros avaliadores, como David e Jansen (1998), que resultam necessariamente em empoderamento de suporte mútuo, defesa dos direitos, ações de
protestantes, ao localizar a responsabilidade mais simpáticos ao AA, assinalam que a linguagem gradual da pessoa. De minha parte, a partir de transformação do estigma e representações sociais
exclusivamente em cada pessoa, através de um religiosa dos 12 passos é também metafórica, do tipo nossa pesquisa etnográfica no Rio de Janeiro, avalio na cultura e na sociedade, e militância social e
foco individualista e terapêutico. Nesta abordagem, koan (espécie de enigma usado pelos zen-budistas que o processo de saída do caos e a fase inicial de política.
qualquer consideração de aspectos sociais, para meditação e crescimento espiritual). Reinarmar recuperação tem um potencial de fazer o indivíduo
(1995), mesmo sendo mais crítico que os dois autores, retornar à vida social e ao trabalho, com claros
reconhece que, apesar desses componentes religiosos, efeitos de empoderamento, mas, no longo prazo, a Como se pode depreender desta síntese
76 Para maiores detalhes sobre o assunto, ver nesse
não há qualquer elemento prescritivo de tipo padronização da dinâmica grupal (tema do próximo esquemática, o processo doutrinário e associativo
volume da coletânea o texto de Liana Fonseca sobre
o modelo do nervoso, bem como meu trabalho sobre protestante ou vitoriano relativo ao campo da moral item), o leque repetitivo de dispositivos e o corpo do AA é bastante complexo, multifacetado e
experiências de projetos populares em saúde mental. sexual ou de uma perfeição moral antiquada; doutrinário, com as características já revisadas objeto de polêmicas em seu processo de avaliação,

184 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 185
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

impedindo a meu ver qualquer avaliação unívoca, separados para efeito didático e da organização e introjeção maciça das características pessoais do e sugestões, e a decisão de quais são as melhores
que tenderia a ser simplificadora e reducionista. da análise. Os tópicos partirão de questões mais líder ou coordenador; e as que devem ser tentadas cabe exclusivamente
Além disso, qualquer serviço sério dirigido a abuso internas, para ir gradualmente abordando as suas à avaliação e à decisão de cada participante. Em
- os membros do grupo são obrigados a aprender a
de álcool e outras drogas no Brasil conta com o ligações com temas e problemas externos aos caso de dúvida acerca de questões científicas ou
viver em constante “processo de luto” em relação
apoio do trabalho do AA e seus grupos análogos, grupos.77 profissionais, os grupos devem dispor de tipos de
à perda regular destas pessoas nos postos de
que têm um nível de eficácia no tratamento reuniões que permitam chamar profissionais ou
liderança.
mais alta do que qualquer dispositivo clínico e outras lideranças de confiança, externas ao grupo,
profissional formal isolado. Em minha opinião, isso 5.3.1) O poder e os processos transferenciais em para se tirar dúvidas. De forma similar, em caso
implica que devemos, em primeiro lugar, aprofundar relação ao líder, terapeuta ou analista, e/ou de de exposição de uma experiência, comportamento
b) o dispositivo e a fala dos coordenadores devem
nossa avaliação desta tradição no país. Em segundo sua análise (como nos modelos de psicoterapia de ou ideia que possa ter efeitos considerados sérios
estimular para que os processos transferenciais e
lugar, por mais que tenhamos elementos de críticas grupo), é deslocado para as relações horizontais
de identificação se deem prioritariamente com seus para os demais membros (e às vezes isso pode ser
a alguns ou vários aspectos desta tradição, ela está e diretas entre os membros. Esta característica
colegas de grupo, particularmente pela sua coragem feito de forma muito sedutora por participantes),
hoje difusa em todo o mundo, e é imprescindível e central dos grupos de ajuda mútua tem os seguintes
de expor seus problemas e pela capacidade de levar os facilitadores ou membros mais experientes não
até hoje insubstituível na abordagem e tratamento aspectos e razões:
adiante o processo de recuperação e superação devem fazer uma contraposição frontal com base
do abuso de drogas. Em terceiro, dada a sua hoje já gradual de problemas e desafios; em conhecimento a priori. Devem apenas relatar
relativa longa história, bem como sua centralização experiências que enfatizem outras formas de pensar
a) as relações de poder e os lugares de liderança,
e verticalização doutrinária em sua estrutura, não e agir, ou sugerir um convite a profissional ou líder
coordenação ou facilitação são enfraquecidos na
podemos ter nenhuma ilusão da possibilidade c) o dispositivo e a ação das lideranças não devem externo com experiência no assunto, para a próxima
dinâmica grupal pelos seguintes mecanismos:
de mudanças mais substantivas “por dentro” estimular a sensação de que a existência do grupo reunião.
do movimento, a não ser pela dissidência, como dependeria da presença de um ou mais líderes mais
ocorreu em alguns grupos na Europa e nos Estados - a atuação dos líderes e facilitadores está mais carismáticos, mas sim da presença, participação e
Unidos (REIS, 2007). centrada na garantia do dispositivo grupal proposto, dedicação regular de todos os seus membros; 5.3.2) Os efeitos terapêuticos e psicossociais
objetivado nas regras/normas de convivência e/ou centrados na ação ou interpretação do terapeuta
no contrato de participação; são deslocados para o efeito direto e concreto das
5.3) Principais características do processo d) o poder ainda mobilizado pelas lideranças relações estabelecidas entre os participantes no
grupal na ajuda mútua, seus riscos e desafios, - as pessoas que ocupam estes postos de poder ou facilitadores não enfatiza a posse de uma grupo, organizadas pelo dispositivo grupal proposto.
e estratégias de como lidar com eles são ou podem ser frequentemente trocadas, competência ou saber especializado ou profissional, Assim, os grupos de ajuda mútua constituem um
como regra estimulada pelo dispositivo grupal, o mas apenas é baseado na experiência vivida espaço de:
que desloca e despersonaliza a atuação nestes pessoalmente ou no contato com os demais
A partir da avaliação desenvolvida nas seções lugares, estimulando a consciência no grupo de que companheiros de jornada;
anteriores, temos todas as condições agora para constituem um lugar ou papel apenas institucional, a) reconhecimento e valorização do indivíduo
explicitar melhor as principais linhas de força que e que todos podem chegar a ocupá-lo um dia; como pessoa e de suas vivências, em contraste
marcam a dialética interna e externa dos grupos de e) os conflitos de ideias ou de sugestões prescritivas com a desvalorização social vigente na sociedade
- a provisoriedade da ocupação destes lugares por
ajuda mútua. Esta análise nos ajuda a compreender de comportamento geralmente são evitados, e, no mais ampla, dadas as relações de opressão a que
uma pessoa concreta não estimula a identificação
os conflitos estruturais e os desafios sempre caso de emergirem, as lideranças ou facilitadores geralmente os indivíduos estão submetidos;
presentes em suas reuniões e encontros, como são estimulados a não se colocarem na posição
também algumas de suas relações com o mundo 77 Nossa concepção de processo grupal, seguindo de quem tem a última palavra, pois isso estimula
social, possibilitando estabelecer estratégias de aqui a perspectiva desenvolvida pela socioanálise e da o recentramento do poder em suas mãos e o b) recolocação do indivíduo na posição de sujeito,
esquizoanálise, envolve temas e fenômenos que ocorrem
como melhor lidar com estes aspectos em projetos processo de normatização social. Em geral, nos não só pela ênfase na narrativa em primeira pessoa
tanto na dinâmica interna dos grupos como também os
que visam à sua expansão. Os diversos elementos principais processos e determinações mais amplas, que grupos de ajuda mútua, pode-se apenas expor e do singular, como também estimulando, valorizando
indicados abaixo são interligados, mas serão incidem e atravessam os grupos. contrapor o maior número possível de experiências e apoiando suas tentativas de ação prática para

186 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 187
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

a resolução de problemas, em contraste com as d) reconhecimento e aceitação de problemas e mobilizarem sentimentos de competição, inveja, sem depender de uma competência significativa ou
relações sociais dominantes de assujeitamento, dificuldades somáticas, subjetivas e existenciais narcisismo, desejo de dominação, agressividade, de profissionais para isso. Essa é uma das razões da
passividade e objetivação na sociedade mais ampla de longo prazo na vida, como doenças crônicas, relações sadomasoquistas etc. Nos grupos de ajuda enorme capacidade de crescimento e difusão do AA.
e nos serviços sociais e de saúde; transtorno mental, dependência de drogas, mútua, o poder de gerir conflitos não constitui uma

comportamentos compulsivos, dificuldades prerrogativa ou está centrado diretamente nas mãos
A avaliação deste dispositivo grupal do AA, como
duradouras de relacionamentos com os demais; dos líderes e coordenadores, mas é deslocado para
exemplificamos em seção prévia neste texto, deve
c) relativamente livre (o grau de liberdade depende o dispositivo grupal. Isso em geral não significa que
levar em conta se tratar de uma problemática
diretamente do dispositivo criado) expressão os estatutos cheguem a reconhecer explicitamente
e) geração de esperança, dada pelo exemplo complexa, o abuso de álcool e seus problemas
de experiências cotidianas e dos sentimentos este lado humano mais sombrio e inconsciente, ou
concreto do outro que já conseguiu avançar no associados, que mobiliza fortes mecanismos
associados, com níveis moderados de efeito os conflitos estruturais da sociedade que atingem os
processo de recuperação; somáticos (a dependência química), emocionais,
catártico78 da exposição aberta destas vivências. grupos, pois, ao contrário, eles tendem a enfatizar
comportamentais (a compulsividade) e psíquico-
Os grupos de ajuda mútua se diferenciam da mais os seus objetivos solidários, humanitários e/
cognitivos de resistência (como a racionalização e
psicoterapia grupal pela ausência de um profissional ou emancipatórios. Entretanto, a experiência prática
f) troca de experiências concretas de como lidar com a denegação). Em geral, os estudos desta tradição,
formado, que em tese é capaz de permitir e anterior e a cultura jurídica vai exigindo a criação de
os desafios colocados por estes problemas, não só como indicamos acima (VASCONCELOS, 2003 e
estimular a expressão de experiências profundas e regras de convivência entre os participantes e para
individuais e familiares, como também de iniciativas 2008b; REIS, 2007), apontam que os depoimentos
de alto conteúdo emocional e dramático, bem como o exercício do poder nos cargos de coordenação,
coletivas e de lutas na defesa dos direitos na gerados a partir deste dispositivo grupal são bastante
de elaborar junto com o grupo caminhos para uma que normalmente são formalizadas em um estatuto
sociedade; estereotipados (início do consumo, dependência,
relação menos despotencializada e desdramatizada ou contrato, e muitos destes grupos fazem inclusive
“fundo do poço”, contato com AA, experiências
dos participantes com estas vivências. Em outras a sua leitura regular ou frequente no início das
de abstinência e suas dificuldades, e reconquista
palavras, os grupos de ajuda mútua não podem g) apoio emocional e de construção de laços e redes reuniões.
gradual da vida social, familiar e de trabalho). No
ter a pretensão de realizar psicoterapia de de amizade e companheirismo, que se estendem curto prazo, isso oferece um ambiente fortemente
grupo, não só por que esta é uma atribuição para a vida externa ao grupo. Além destas normas mais gerais, nos grupos protegido e um aparelho psíquico compartilhado ou
privativa de profissionais específicos, como de ajuda mútua o arranjo grupal prevê também grupal79 importante para introjeção pelo membro
também seu dispositivo e seus facilitadores e detalhadamente a disposição dos membros, iniciante, normalmente com a vida pessoal e
têm limites claros no manejo deste tipo de 5.3.3) O poder de gerir conflitos e vivências caóticas,
as formas de relação possível, o tempo de fala, psiquismo desorganizado e em crise pelo abuso da
experiências. Este tema será retomado mais normalmente centrado no terapeuta ou coordenador
a estrutura e a pauta das reuniões etc. Um dos droga. Contudo, a médio e longo prazos, a oferta
adiante. nos demais modelos grupais, passa a ser deslocado
objetivos centrais deste dispositivo é, portanto, quase exclusiva deste tipo de reunião para a grande
para o dispositivo grupal, possibilitando a difusão
criar um ambiente protegido para os participantes
horizontal dos grupos de ajuda mútua na sociedade,
e controlar a emergência de conflitos e vivências
sem criar dependência em relação a profissionais, 79 De acordo com a psicossociologia (KAËS, 1991), um
caóticas que possam prejudicar os membros
especialistas e suas instituições. Isso requer dos modelos grupais e de teorização apontados acima, as
e colocar em risco a própria continuidade do instituições e os grupos sociais mais significativos não só
um dispositivo grupal com características muito
78 Do ponto de vista conceitual, a catarse ou ab- grupo. Por exemplo, a reunião padrão do AA é geram práxis e fornecem elementos sociais e simbólicos
reação constitui o efeito produzido quando um indivíduo próprias, com muitos efeitos psicossociais positivos, comuns a seus membros, mas também realizam funções
detalhadamente ritualizada, dá-se na forma de
consegue reviver ou relatar vivências difíceis ou mas também com alguns riscos que devem ser psíquicas. Eles mobilizam dinâmicas e mecanismos
auditório e não de um círculo, e cada participante
traumáticas, conflitos e dramas pessoais, possibilitando avaliados com cuidado. de defesa comuns para a economia psíquica de seus
que a energia psíquica associada àquela experiência pode ir à cabeceira da mesa e falar por no máximo membros, para lidar com os impulsos inconscientes e
possa ser liberada. Isso permite a sensação de alívio dez minutos, após os quais não há comentários por com as emoções decorrentes de situações semelhantes.
emocional (choro, por exemplo), diminuindo a intensidade Os grupos e suas relações interpessoais internas parte dos demais participantes. Este dispositivo não Isso significa na verdade a constituição de um aparelho
e a forma maciça com que aquela energia psíquica seria psíquico de ligação e de transmissão, que pode ser
estão perpassados pelas diferentes ideologias e permite de forma alguma a emergência de conflitos
deslocada para provocar sintomas psicossomáticos, chamado de aparelho psíquico compartilhado ou grupal
às vezes com deterioração significativa de sua saúde relações de poder e dominação vigentes na sociedade, abertos, e possibilita que qualquer liderança com (ou ainda de grupamento).
somática e psíquica. bem como pela possibilidade seus membros alguma experiência prévia possa abrir outro grupo,

188 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 189
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

maioria de seus membros pode também gerar uma necessariamente por posições intermediárias entre da base da pirâmide social, mas também pode inauguraram uma proposta imprescindível de
identidade social muito padronizada, que impede o dois polos, ora acentuando um ou outro: de um apresentar desafios e riscos sérios que precisam ser emancipação do gênero humano82, mas não acessível
crescimento e o processo de individuação80. lado, a proteção dos membros participantes, que cuidadosamente avaliados. para as grandes massas populacionais. Por um lado,
estimula a padronização, e de outro, a necessidade liberou o indivíduo comum dos laços tradicionais

de também estimular o processo de individuação. de servidão, de dependência interpessoal, de
Este é um risco muito comum nos grupos e Os grupos e movimentos de ajuda mútua são
Para valorizar este último lado, várias medidas são submissão ao mestre na corporação de ofício e à
movimentos de ajuda mútua, e todo o cuidado marcados pela independência e autonomia em
possíveis: autoridade ilimitada combinada da igreja cristã, da
deve ser tomado no momento de avaliar seu relação a profissionais e especialistas no seu dia
aristocracia e do poder de Estado, abrindo relações
processo grupal. Em tese, estes dispositivos optam a dia, em campos marcados pela ambiguidade
mercantis que ampliam cada vez mais o contato
- usar outros tipos de disposição das cadeiras nas e complexidade da vida, da subjetividade, das
com as potencialidades de todo o gênero humano.
reuniões, diferentes do auditório, como, por exemplo, especificidades dos fenômenos e problemas que
80 O processo de individuação constitui um conceito- Por outro lado, transforma cada trabalhador-cidadão
o círculo, bem como utilizar rituais e regras de abordam e das estratégias de lidar com ele. Isso
chave no pensamento do psiquiatra suíço Karl Gustav em mercadoria, força de trabalho “livre”, atomizada,
Jung, companheiro inicial de Freud, mas que depois se convivência que possibilitem trocas um pouco mais exige a interpelação de um campo de valores e
individualizada, a ser vendida em um mercado de
diferenciou para fundar a psicologia analítica. Apesar de livres, mas de forma combinada com mecanismos doutrinário laico, presente na cultura difusa da
apresentar características complexas e multifacetadas, trabalho competitivo regido por mecanismos
claros de controle contra comportamentos sociedade e razoavelmente acessível ao senso
pode ser entendido como um processo inexorável de impessoais e completamente desfavoráveis a seus
indesejáveis (como agressividade, discriminação, comum. Como indicado, temos aqui claros ganhos na
amadurecimento psicológico exigido de cada indivíduo interesses, em uma sociedade agora sem dispositivos
durante todo o seu ciclo de vida. A individuação violência etc.), de forma a garantir a proteção dos democratização do conhecimento, na acessibilidade
às formas de apoio social mobilizadas e na abertura accessíveis de formação e de subjetivação no
requer primeiramente uma diferenciação no campo participantes e assegurar um clima construtivo e de
intrapsíquico, de um encontro gradativo da consciência do diálogo inter e multicultural com largos extratos campo moral, ético e psicológico, capazes de gerar
bem-estar dos membros e a continuidade do grupo;
com os conteúdos do inconsciente, com as imagens e da base da pirâmide social, mas também temos a reflexividade e a autonomia necessária para a
energias vitais e coletivas de renovação psicológica, sua formação pessoal e para lidar com os desafios
no sentido de abarcar a totalidade da psique. No plano riscos que precisam ser considerados.
intersubjetivo, exige uma penosa diferenciação eu- - criar diferentes tipos de reuniões, com diferentes existenciais no novo contexto histórico e cultural.
Se colocarmos essa temática tendo como pano
mundo, de valorização da individualidade em relação possibilidades de enriquecimento pessoal e coletivo; Várias estratégias são colocadas à disposição da
às normas e identidades já estabelecidas, nas relações de fundo os desafios subjetivos colocados pela
população mais geral, mas aos setores populares
com os outros mais significativos, com os grupos sociais modernidade (VASCONCELOS, 2010c), temos
a cultura dominante no Ocidente vem ofertando
e a sociedade em geral, sem que se rompa os vínculos enormes desafios. A sociedade capitalista ocidental,
- prover material educativo e estimular o crescimento massivamente duas linhas principais de elaboração
indispensáveis à convivência e sobrevivência social, a modernidade e seu estímulo a processos de
apesar das diferenças que se vão constituindo. Mais além educacional, político e cultural, nos planos pessoal subjetiva e cultural:
ainda, a individuação, mesmo que requeira momentos e e coletivo nos grupos; subjetivação e individuação/individualização81
fases de interiorização, não implica cair no escapismo,
no individualismo cultural ou na aceitação passiva da
a) os movimentos de reinterpelação das
realidade social já dada, pois significa também o resgate 81 Precisamos diferenciar estes dois termos. Já falamos
- promover encontros e eventos de pesquisa e identidades religiosas tradicionais, abertamente
de valores universais preservados pela cultura num acima sobre o conceito de individuação em Jung, que
plano mais avançado, na descoberta de uma dimensão trocas de experiências entre os grupos de um tem características psicológicas mais universais, mas confessionais ou não, mas com nova roupagem
profundamente ética, mas diferenciada e mais autônoma, mesmo movimento e entre diferentes movimentos, que ocorre de formas diferenciadas nas várias culturas, mais individualista e liberal. Um dos melhores
já que estes valores deverão ser vividos de forma mais possibilitando a avaliação dos dispositivos inclusive nas sociedades mais tradicionais. A sociedade
singular e inconfundível. Assim, a individuação acaba capitalista vem gerando um processo acentuado de exemplos foi o movimento da temperança, que
utilizados, mudanças de rumo e o enriquecimento
representando, principalmente em suas etapas mais individualismo social e cultural, e, pelo menos para as elites
avançadas, uma razoável expansão psicológica e ética, mútuo. letradas, o processo de individuação é chamado a se dar
experimentada por um lado no aprofundamento das unilateralmente através da introjeção do individualismo 82 Do ponto de vista do conjunto dos interesses popular-
experiências subjetivas pessoais e, de outro, na vivência societário e por processos de psicologização. Esta não democráticos na história humana, este é um projeto
paradoxal da necessidade de uma certa dose de redução 5.3.4) A conformação de um campo doutrinário laico parece ser a trajetória típica e desejável de individuação emancipatório importante, mas parcial, que precisa
do ser individual, pela interação necessária com os da maioria das classes populares, particularmente no ser integrado a outros projetos de cunho econômico,
e acessível ao senso comum pode democratizar
outros e pela participação nas lutas por transformações Brasil, pois são ainda muito marcadas por uma cultura social e político, inclusive para que ele próprio possa
na sociedade e no ambiente (VASCONCELOS, 2006). o conhecimento, a acessibilidade nas formas de hierárquica e holista (VASCONCELOS, 2008b). ser expandido em toda a sua plenitude e acessível às
apoio social e o diálogo cultural com largos extratos grandes massas.

190 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 191
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

teve enorme difusão na Inglaterra, nos Estados vezes ter alguma abertura para uma exploração diversidade possível de estratégias levou à criação e se apropriar do conhecimento acadêmico e dos
Unidos e em outros países de maior penetração um pouco mais profunda da personalidade e da dos variados programas de redução de danos, novos dispositivos eletrônicos e de informação,
da cultura anglo-saxã e capitalista, a partir da vida espiritual, mas normalmente este componente que não invalida a primeira, mas a diversifica. No de estabelecer vínculos com seus intelectuais
segunda metade do século XIX (VASCONCELOS, instrumental é mais forte, centrado na ideia de um Brasil atual, adotamos esta perspectiva mais plural orgânicos e de formar seus quadros de lideranças
2003). Nas Sociedades da Temperança e na sua final de sucesso na vida social. nas políticas de assistência social, saúde e saúde e ativistas.
literatura83, as marcas evidentes do neodarwinismo, mental brasileira, não só no campo de abuso de
Nos movimentos típicos de ajuda mútua, esse
do protestantismo e da cultura vitoriana são drogas, mas também em várias outras áreas.
Assim, não é aleatório que nos trabalhos que processo mostra algumas destas características
mescladas ao individualismo liberal e empresarial, Como veremos mais abaixo, estes desafios só
venho publicando sobre movimentos sociais de inovadoras, mas também tem características
reforçando junto aos trabalhadores a importância podem ser elaborados a partir da aliança destes
empoderamento, faço a distinção inexistente no próprias e vem acontecendo de forma muito desigual
da autoeducação e do cuidado de si como motores movimentos com outros movimentos sociais
inglês entre esta cultura de self-help (autoajuda), e variada entre os vários movimentos. Entretanto,
do crescimento do indivíduo, rejeitando-se a ajuda populares e particularmente com intelectuais
fortemente marcando essa matriz individualista há alguns elementos comuns à maioria deles:
externa oriunda de programas sociais, filantrópicos orgânicos, capazes de ampliar o seu campo de
e públicos. Não há dúvidas de que há alguma e liberal, e os grupos de ajuda e suporte mútuos,
discussões e de politização.
continuidade cultural entre esta matriz e as práticas para diferenciar as suas possibilidades culturais
a) a base do conhecimento e da formação pessoal
que conformaram os Alcoólicos Anônimos (AA) e e seus diferentes sentidos políticos. E, nessa
é eminentemente existencial e prática, diretamente
suas organizações derivadas, como vimos acima. direção, as estratégias, os movimentos e grupos 5.3.5) Nos atuais grupos e movimentos de ajuda associada a uma condição biográfica particular,
Mais recentemente, no século XX, essa perspectiva de ajuda mútua devem ter suas origens históricas, mútua, assistimos à conformação de um processo geralmente com forte componente involuntário, de
de análise certamente pode oferecer bons subsídios culturais e ideológicas avaliadas com muito de geração/sistematização do conhecimento ser nascido ou ser acometido por uma deficiência,
na compreensão da rápida e crescente expansão cuidado. É necessário identificar não só seus ideais e de formação de lideranças e ativistas, com doença crônica, situação existencial traumática,
das igrejas cristãs evangélicas, com forte ligação ou e práticas com potencial humanitário, solidário características muito inovadoras e próprias, em desvalorizadora ou geradora de discriminação etc.,
inspiração nas matrizes norte-mericanas; e emancipatório, mas também e principalmente relação aos moldes convencionais de produção
ou de ser um familiar ou cuidador responsável
os seus riscos de reproduzir valores e ideologias de conhecimento, especialização e formação
por uma pessoa que a possui. Esta característica
polêmicos, de reduzir a flexibilidade normativa profissional.
gera componentes de empoderamento muito
b) a literatura e as práticas convencionais de necessária para lidar com os conflitos do problema
importantes, tais como a valorização da biografia
autoajuda, que muitas vezes são inspiradas em humano em foco e da área em que atua, e portanto
Os estudos sobre o desenvolvimento histórico da e da narrativa pessoal em primeira pessoa; do
matrizes religiosas e nas interpelações do movimento de ser usado como mais um dispositivo de
divisão social e técnica do trabalho e a sociologia relato/depoimento personalizado das dificuldades,
da temperança, e que combinam os objetivos normatização cultural e social.
das profissões descrevem os padrões típicos da obstáculos e das conquistas realizadas; da troca de
utilitaristas do individualismo possessivo tradicional Uma outra dimensão deste risco está na capacidade experiências e do apoio emocional entre pares; das
produção do conhecimento, da sistematização
com o ensino do desenvolvimento de capacidades deste corpo doutrinário reconhecer as variadas estratégias de como lidar com os desafios cotidianos
de competências fragmentadas e de habilidades
pessoais subjetivas e objetivas, com vistas a estratégias de recuperação em seu trabalho etc. No material de educação popular e de formação
privativas, dos mandatos sociais específicos para
atingir o sucesso pessoal no trabalho, nas relações prescritivo para seus membros e para a sociedade, de lideranças, bem como no dia a dia dos grupos
cada grupo profissional, de suas organizações
amorosas, na família e no convívio social, de forma a partir da diversidade dos indivíduos, das culturas e nos eventos dos movimentos, estes elementos
e interesses corporativos, bem como de suas
inteiramente instrumental e adaptativa. Podem às e do problema em foco. Um exemplo disso está no estão sempre presentes, têm grande importância e
instituições formadoras. Estes estudos mostram
próprio campo do alcoolismo, na medida em que que em vários aspectos este conjunto não está são claramente diferenciados das fontes, materiais
83 Nesta literatura se destaca o livro de Samuel Smiles, nem todos os indivíduos se adaptam à estratégia de voltado para os interesses históricos da maioria e depoimentos de autoria de profissionais e
intitulado Autoajuda – com ilustrações de conduta abstinência absoluta proposta pelo AA, que parece da população (VASCONCELOS, 2002). Por outro especialistas que não compartilham da condição
e perseverança, lançado inicialmente em 1859 na ser a única compatível com seu corpo de valores, e lado, muitos dos movimentos sociais populares existencial comum ao grupo, em termos de regras
Inglaterra, que foi traduzido em várias línguas e vendeu
que vem senso exportada e difundida nos serviços contemporâneos mais importantes vêm criando discursivas e de valor atribuído. Por outro lado,
milhões de exemplares em vários países do mundo,
inclusive japonês, hindi e albanês (VASCONCELOS, 2003: profissionais e públicos de atenção ao abuso de brechas significativas nessa divisão social e técnica muitas vezes falta a estes grupos e movimentos
84). drogas em todo o planeta. A consideração crítica da do trabalho atual, criando novos padrões de produzir uma atenção mais cuidadosa e um conhecimento

192 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 193
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

mais sistemático sobre a conjuntura econômica e Por sua vez, pelo menos no âmbito da dinâmica arte e cultura. No Brasil, apenas agora se busca para os grupos disponíveis na área e vice-versa;
política mais geral do país, das políticas sociais e interna das reuniões grupais e dos projetos criados, iniciar projetos de inclusão digital para usuários
- movimentos oferecem grupos de ajuda mútua e
dos demais movimentos sociais, e esta é uma função parece ser uma característica generalizada dos e familiares. Além disso, a articulação política,
outras atividades dentro dos serviços públicos;
importante dos intelectuais orgânicos inseridos nos vários movimentos e grupos de ajuda mútua, educativa e cultural com outros movimentos sociais,
grupos e movimentos de ajuda mútua; que esta diferenciação social e técnica seja tão importante para a geração de dispositivos - profissionais dos serviços passam a colaborar
completamente suspensa, e todos os participantes, formativos, ainda é ainda bastante restrita no país. com os grupos, podendo chegar a ser intelectuais
independente de sua história social e educacional, orgânicos ativos do movimento;
b) o patrimônio cultural e simbólico herdado da normalmente têm oportunidades iguais de acesso à - serviços e movimentos promovem juntos eventos,
família, o acesso à escolaridade formal e a cursos fala e aos dispositivos de suporte mútuo criados; 5.3.6) Os atuais movimentos e grupos de ajuda mútua,
atividades e projetos, com financiamento de ambos;
universitários são fundamentais para potencializar nos diferentes países, apresentam variadas formas de
a capacidade de liderança e de organização dos colaboração e integração de suas práticas voluntárias - programas e serviços passam a assalariar lideranças
movimentos, mas não parecem constituir condição c) muitos movimentos têm conseguido criar e leigas com programas públicos de assistência social do movimento para desenvolver atividades dentro
indispensável e restritiva aos indivíduos e grupos que estratégias importantes de atração e de criação de e de saúde, mas em muitos casos há uma ampla ou na rede de serviços e programas;
não os possuem originalmente. Por exemplo, o perfil vínculos orgânicos com intelectuais e instituições faixa de possibilidades e de ambiguidade acerca dos - programas passam a terceirizar atividades, projetos
das associações de usuários e familiares do campo do âmbito profissional, acadêmico, técnico- objetivos internos/externos ao grupo e do nível de e serviços, repassando fundos para o Terceiro Setor
da saúde mental no Brasil (VASCONCELOS, 2008b) científico e político-institucional. Como exemplo, responsabilização possível de suas práticas e dos e/ou organizações de movimentos sociais etc.
mostra que algumas associações independentes o movimento antimanicomial brasileiro e o ativistas nestas relações, com vários desafios e riscos
de serviços alcançam patamares organizacionais movimento de associações de usuários e familiares a serem avaliados de forma cuidadosa.
mais avançados por terem se originado em grupos têm aglutinado um conjunto significativo de apoio Estas múltiplas possibilidades e outras não citadas
sociais com acesso a estes elementos. Além e de lideranças entre psiquiatras, psicólogos, podem induzir avanços e conquistas em ambos
disso, entre seus ativistas, esta história pessoal assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, bem Os movimentos de ajuda mútua, no âmbito interno de os polos da parceria, mas podem também levar a
possibilita chegar muito mais facilmente a posições como de seus conselhos profissionais e de várias seus grupos, estimulam fortemente suas lideranças enormes desafios e riscos. Não temos condições
de liderança e projeção. Entretanto, o movimento instituições universitárias. Isso acaba polarizando e participantes a desenvolverem iniciativas de desenvolver aqui, de forma sistemática
antimanicomial e as associações ligadas a serviços suas práticas profissionais e acadêmicas, e gerando interpessoais e coletivas de apoio e suporte mútuo e responsável, toda a complexa discussão
de atenção psicossocial, cujos usuários são sistematizações de conhecimento fundamentais fora do grupo. Assim, a criação de vínculos, de redes necessária84, mas cabe apontar, de forma muito
majoritariamente oriundos das classes populares, para seus movimentos sociais e ampliando a visão de trocas e apoio social, de iniciativas culturais e resumida, pelos menos três tópicos que, a meu ver,
acabam também, embora mais lentamente, mais particularista que estes grupos tendem a ter; de lazer, de defesa dos direitos, faz parte integral não podemos deixar de debater e avaliar, em ambos
estimulando várias de suas lideranças a buscarem dos objetivos destes grupos, ao interpelarem suas os lados da parceria:
concluir sua escolarização e até mesmo a chegarem lideranças e participantes para a solidariedade e a
em cursos de nível universitário. E, talvez mais d) por outro lado, a produção de material de responsabilidade que também têm com o bem-estar
fundamentalmente, a experiência cotidiana de educação popular, de divulgação cultural e de de cada um de seus companheiros. a) no atual contexto de políticas neoliberais, com
lidar com os grupos e a militância política acaba difusão na internet, que tem mostrado uma forte desinvestimento nas políticas sociais, o Estado
Nos locais onde este tipo de trabalho se desenvolve,
gerando uma competência extraordinária, moldada importância fundamental na formação de lideranças capitalista vem sistematicamente terceirizando serviços
os serviços e programas públicos da área social,
diretamente na própria práxis social e política. e na ampliação dos movimentos e grupos de ajuda da saúde e educação acabam podendo contar,
Muitas destas lideranças hoje participam de mútua, é bastante desigual entre os diversos no momento de prover assistência para seus 84 Para a discussão das possibilidades de colaboração
conselhos de políticas sociais, particularmente na movimentos e países. Por exemplo, o movimento de usuários, com uma rede de suporte fundamental na entre movimentos de ajuda mútua e a política de
área da saúde, e já são chamados para participar usuários do campo da saúde mental na Inglaterra, comunidade. Há várias modalidades de interação saúde mental no Brasil, ver neste manual os textos de
de eventos de formação de profissionais de nível na Holanda e nos Estados Unidos mostra uma larga aprofundamento intitulados “Indicações para a inserção
possível, e entre elas podemos citar:
dos grupos de ajuda e suporte mútuos na atenção primária
superior, para apresentar a visão própria dos produção deste tipo de material, mas no Brasil este
em saúde”, e “Conceitos básicos para se entender as
usuários e dos familiares sobre os temas e serviços material é ainda muito rudimentar e escasso, embora propostas e estratégias de empoderamento no campo da
de saúde mental. apresente muito eventos e produções no campo da - serviços e profissionais encaminham seus usuários saúde mental”, ambos de minha autoria.

194 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 195
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

através do Terceiro Setor e de movimentos sociais, substituindo os serviços hospitalares convencionais, maior coloca inúmeros desafios particulares, e, recuperação e reinserção social, realizados nos
gerando desresponsabilização, privatização, perda fechados, de alto custo e com maiores efeitos portanto, as próximas seções do trabalho serão Estados Unidos e vários outros países, por autores
de direitos trabalhistas dos servidores e de direitos institucionais iatrogênicos, por serviços abertos dedicadas especificamente a eles. tais como Harding, John Strauss, Breier, Ashikaga,
sociais do cidadão, descontinuidade e focalização dos na comunidade. Assim, nestes novos serviços, há Brooks, Ciompi, Larry Davidson etc. (DAVIDSON et
programas públicos etc. Neste contexto, movimentos uma clara priorização dos portadores de transtorno al., 2005). Estes estudos fizeram uma avaliação do
sociais e ONGs vêm sendo cooptados e vários deles mental maior, que requerem cuidados contínuos e 5.4.1) Alguns traços da vivência de grupo com impacto do tempo nos sintomas, funcionamento
vêm sendo coniventes com este processo; mais complexos, e que constituem o maior desafio pessoas marcadas pela experiência psicótica social e qualidade de vida destes indivíduos. Eles
assistencial. perceberam que, em vez da esperada trajetória
Em paralelo, desde a década de 1970, em países do no sentido de cenários piores indicados pelos
b) a interpelação por iniciativas de suporte mútuo Para entrar neste tema, é importante esclarecer
centro e do norte da Europa, bem como de vários primeiro que não se trata de descrever aqui, de prognósticos da psiquiatria convencional, mais da
dos movimentos de ajuda mútua fora dos grupos
países de língua inglesa, em vários continentes, forma isolada e essencialista, as características e metade das coortes investigadas, independente
é genuína, mas não significa substituir os serviços
o movimento de usuários e de familiares vem os sintomas principais associados à psicose, por de ainda estarem em tratamento, mostraram
ou sobrecarregar suas lideranças com demandas
se desenvolvendo e se organizando de forma várias razões. Em primeiro lugar, por que este não uma melhora significativa ou o que chamaram
e responsabilidades que são dos próprios serviços
públicos. Assim, os participantes dos grupos de surpreendente, tendo como principal sustentação é o foco deste trabalho e os processos psicóticos de recovery (que temos traduzido no Brasil como
ajuda mútua devem ser estimulados a conhecer e em sua base os grupos de ajuda mútua, a partir constituem uma temática extremamente complexa recuperação). Aqueles indivíduos que foram
utilizar todos os recursos públicos existentes em sua dos quais vão se desdobrando outras atividades e pouco consensual entre os vários autores, mesmo inseridos em programas de reabilitação psicossocial,
comunidade e cidade, e, se precários ou inexistentes, e projetos de suporte mútuo, defesa dos direitos dentro de um mesmo campo teórico85. Entretanto, integração comunitária e autossuficiência
ser chamados a reivindicar sua melhoria ou provisão. etc. (HAAFKENS, 1986; WEINGARTEN, 2001; o principal argumento está em que a aproximação demonstraram um perfil mais avançado de
As lideranças dos movimentos devem avaliar e VASCONCELOS, 2003). à psicose que temos realizado no campo da recuperação. Nestes programas de reabilitação,
discutir claramente com os serviços os objetivos da No Brasil, o movimento de usuários e familiares do atenção psicossocial e da reforma psiquiátrica entre os principais fatores que induzem o processo
colaboração, definindo explicitamente as fronteiras campo da saúde mental vem se desenvolvendo desde tem demonstrado a necessidade de criticar e ir de recuperação, estão: moradia, capacitação e
de responsabilização de cada esfera junto aos o início da década de 1990 (VASCONCELOS, 2008b), além destas tentativas de objetivação isolada dos trabalho supervisionado, oportunidades educativas
usuários e à comunidade; realizando principalmente atividades de suporte quadros psicopatológicos e seus sintomas, para e de socialização, incluindo amizades e inserção em
mútuo, defesa de direitos e militância. Por sua vez, a uma abordagem que contemple estes sujeitos na grupos e movimentos de usuários.
equipe do Projeto Transversões vem acompanhando sua interação com a vida, com sua comunidade e Assim, nossa concepção requer que falemos
c) os grupos de ajuda mútua, quando inseridos em com os vários recursos e serviços de reabilitação
um grupo de familiares há cerca de 12 anos. dos traços da psicose de forma descritiva e
serviços e programas públicos, são atravessados psicossocial (SARACENO, 1999; BASAGLIA, 2005; e
Entretanto, em relação aos usuários, apenas em contextualizada em situações e dispositivos
por uma série de novas injunções e contradições,
2008 iniciamos o funcionamento sistemático de um LEAL, 2007). concretos de reabilitação, o que no nosso caso são
que afetam profundamente a sua dinâmica interna
grupo regular de ajuda mútua específico para eles, Para melhor exemplificar isso, pode ser importante os grupos de ajuda mútua86. Descrever estes traços
e o papel de suas lideranças. Estas transformações
buscando também anotar as suas particularidades lembrar os resultados de um conjunto de estudos desta forma pode ser relevante, particularmente
devem ser muito bem avaliadas previamente à
metodológicas. A avaliação deste grupo mais epidemiológicos longitudinais de longa duração tendo em vista que muitas pessoas e profissionais
realização das atividades.
recente nos mobilizou para resgatar também as (20 a 30 anos) de pessoas diagnosticadas como nunca passaram pela experiência de conviver
anotações de outras experiências realizadas no com estes grupos, e podem ficar assustadas ou
esquizofrênicas, investigando as perspectivas de
5.4) As particularidades dos grupos de ajuda passado, com grupos de usuários dentro dos novos
mútua com usuários de serviços de saúde serviços de atenção psicossocial. As observações a
mental portadores de transtorno mental maior seguir são uma primeira tentativa de sistematizar, 85 Apenas para efeito de ilustração, o leitor interessado 86 A literatura sobre processo grupal com portadores
ainda que de forma resumida, estas diversas fontes. na discussão feita no campo da psicanálise acerca da de transtorno mental maior no Brasil é restrita. Para
psicose poderá ver a dispersão de modelos explicativos os que se interessam pela ampliação da discussão,
Algumas destas reflexões podem ser aplicadas
sobre o fenômeno, tanto em Freud e em Lacan como em sugiro a publicação organizada por Lancetti (s/d [a]),
Nos processos recentes de reforma psiquiátrica em aos grupos de familiares, mas a especificidade da vários outros autores do campo (QUINET, 1990; SIMANKE, e particularmente o seu próprio texto dentro dela
curso nos diversos países, estamos gradualmente condição de ser um portador de transtorno mental 1994; BIRMAN, 1999; e TENENBAUM, 1999). (LANCETTI, s/d [b]).

196 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 197
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

não compreender o que se passa neles. Nossas memória daquela experiência ainda fica bastante temático, o que não só é infrutífero, como também, O grupo foi formado a partir de um convite para
observações cotidianas em nosso grupo mostraram, viva, ou a tendência mais frequente é haver e mais fundamental, é inadequado. participar de um curso rápido de dois dias sobre
entre as principais características da vivência destes resquícios ou traços delirantes persistentes na grupos de ajuda e suporte mútuos, em que
grupos, os seguintes traços: percepção de si mesmo, do próprio corpo e dos participaram profissionais, familiares e usuários,
outros. No grupo, particularmente quando se fala d) Enormes dificuldades com as tarefas: e que se desdobrou na formação de dois grupos
da própria experiência pessoal, isso se manifesta Pichon-Rivière, o autor argentino que sistematizou a separados, para os dois últimos. O convite foi
a) A dificuldade de conviver com as regras e a em uma fantasia permanente de ser invadido proposta de grupos operativos, percebeu que todos feito principalmente para lideranças do movimento
ordem no grupo, e/ou a literalização das normas novamente pelo conteúdo inconsciente, ou de se os grupos humanos têm dificuldades de se confrontar antimanicomial do Estado do Rio de Janeiro, bem
contratuais: perder o autocontrole na relação com os outros. e realizar de forma direta suas tarefas, dado que como de associações de usuários e familiares.
A teorização lacaniana a respeito da psicose mostra Essa fantasia também é projetada nos demais, como a relação com elas mobiliza as duas ansiedades Assim, os participantes deste grupo são usuários
a dificuldade das pessoas acometidas pela psicose se pudessem a qualquer momento também perder o inconscientes básicas, de natureza depressiva em estágio avançado de recuperação, e com
em conviver com a Lei Simbólica. Na nossa vivência controle e tomar o poder, ter “gozo” no seu exercício ou paranoide87. Por exemplo, uma das formas dos experiência anterior de participação em grupos e
concreta dos grupos de ajuda mútua, a relação com sobre os demais, ou invadir ou agredir os demais. grupos burlarem as suas tarefas é acionar um pacto movimentos sociais. Alguns deles concluíram curso
as regras grupais mostra duas tendências claras: Assim, nos grupos com pessoas marcadas pela mafioso que impõe ao líder ou coordenador o dever superior, outros têm apenas o colegial completo, mas
em vários momentos, a intensidade da vivência experiência psicótica, o espectro do caos constitui ou a “honra” de sua realização (uma das formas todos são de extratos sociais das classes médias
emocional ou do processo delirante faz com que o uma fantasia e uma ansiedade inconsciente é o grupo “seduzir” e elogiar o coordenador como empobrecidas ou da classe trabalhadora. Este perfil
indivíduo perca a noção das regras de convivência constante, e isso se manifesta de várias formas, e pessoa sempre responsável e boa, que nunca deixa do grupo teve em vista o objetivo prioritário de
e da reciprocidade do Outro. Por outro lado, como talvez a mais frequente é sem dúvida a exacerbação “furos”). Nos grupos com pessoas que passaram servir de experiência-piloto, mas principalmente de
formação reativa, os participantes tendem a dos conflitos interpessoais. pela experiência psicótica, estas dificuldades são formar facilitadores para atuar em eventuais futuros
tomar as normas contratuais do grupo de forma ainda mais exacerbadas, porque tais ansiedades projetos de grupos de ajuda e suporte mútuos
inteiramente literal, sem serem capazes de qualquer estão mais fortemente presentes. Em um grupo com integrados à política municipal de saúde mental.
flexibilização ou metaforização, processo requerido c) As linhas temáticas flutuantes nos relatos e pouco tempo de existência, uma atividade pode
Não houve neste grupo, e este é um princípio
pelas várias situações concretas diferenciadas e discussões grupais: ser proposta e aceita, mas seu encaminhamento
importante na proposta, de que no processo de
a necessidade de lidar com imprevistos, sempre concreto pode demorar bem mais tempo, com várias
formação dos grupos se evite qualquer preocupação
frequentes, e com novos desafios. Mesmo em grupos em que não há pessoas idas e vindas, avanços e recuos.
quanto ao diagnóstico dos potenciais participantes.
propriamente em situação de crise, e dadas as Todos são bem-vindos, embora não recomendemos a
razões indicadas acima, os relatos das experiências inclusão ou a participação de pessoas que estejam no
b) As fantasias permanentes da invasão de conteúdo 5.4.2) As decisões tomadas e as características do
têm forte centramento na própria história pessoal, momento em crise psicótica aguda, particularmente
inconsciente em cada um ou de ser invadido pelo grupo-piloto sob observação
tendendo fortemente a não seguir linhas temáticas quando a fala e o comportamento estão muito
outros, e o espectro do caos; a exacerbação dos definidas. Na verdade, cada participante tem exaltados, o que dificultaria muito a observância das
conflitos interpessoais: um amplo espectro de estímulos e elementos Antes de partir para a descrição de traços concretos regras básicas de convivência no grupo.
biográficos e simbólicos próprios que são acionados da experiência no grupo formado desde 2008,
Este grupo concreto é pequeno, com participação
Na experiência psicótica aguda, o ego e a percepção pela fala dos outros, ou acaba fazendo ligações com principal base da sistematização realizada aqui,
variando de 5 a 10 pessoas, dependendo da época
do mundo e dos outros é invadida pelo conteúdo elementos muito particulares dos relatos anteriores. é fundamental indicar algumas características do
do ano e das dificuldades para se vir à cidade do
inconsciente, provocando a alucinação e o delírio. Além disso, não é raro também o silêncio e a inércia grupo e de seu funcionamento.
Rio, pois alguns moram no interior do estado. O
Muitas vezes, este momento é vivido também com total por parte de alguns. Estas características
tamanho máximo recomendado para cada grupo é
autoagressão, ou com agressão ao outro, ou ainda em geral são sentidas como muito estranhas por
87 Para aqueles que quiserem ter acesso a uma visão de 15 membros, pois, além disso, o espaço de fala
sendo objeto da agressão ou tentativa violenta de aqueles que nunca conviveram com estas pessoas e
introdutória sobre a abordagem operativa de Pichon- individual fica muito reduzido.
contenção pelos outros. Superada a crise aguda, com estes grupos, podendo levá-los a ficar confusos Rivière em português, indico a interessante e já clássica
e desenvolvendo-se uma relativa estabilização, a ou a tentar colocar ordem neste aparente “caos” sistematização de suas ideias feita por Saidón (1982). O grupo se reúne mensalmente e vem aceitando

198 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 199
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

novos membros a partir da indicação e apresentação maior. Assim, foi possível levantar os seguintes para a presença no grupo, e ele deve ser lido no possível conviver, falar de si, fazer vínculos e
prévia oral por um dos membros ou coordenadores tópicos sobre o processo grupal com este público, início da reunião no período da formação do grupo amigos, e isso acontecer sem que cada pessoa e o
do projeto, sendo a decisão final de aceitação ou não seus vários desafios e sobre como lidar com eles: e sempre que haja novatos. Além disso, todos os grupo não sejam necessariamente tomados pelas
geralmente feita por consenso dos participantes. Este participantes devem receber a cartilha básica fantasias e ansiedades de caos. A existência do
não é um princípio que consideramos desejável para contendo este contrato, e são estimulados a lê-la. A contrato e do lugar de facilitador, particularmente
todos os grupos, e constituiu apenas uma decisão a) O deslocamento do poder para o dispositivo qualquer manifestação de julgamento, preconceito do guardião, e em rodízio, sem fixação definitiva a
particular dos integrantes do presente grupo. e a questão central do controle da ordem, da ou agressividade, os facilitadores, particularmente uma pessoa, funciona analogicamente como o totem
agressividade e da violência no grupo; a manutenção o guardião, interrompe o comportamento e diz que da horda primitiva de Freud, ou como a reiteração
A primeira reunião foi facilitada pelos coordenadores do dispositivo como o possibilitador do principal isso não é possível no grupo. Um dos facilitadores da existência de uma ordem social objetivada,
do Projeto Transversões, mas logo depois os usuários efeito terapêutico do grupo: pode inclusive se sentar ao lado da pessoa, independente das pessoas concretas, que deve ser
assumiram todas as duas posições de facilitadores,
Tendo em vista as características indicadas acima acompanhá-la, dar-lhe suporte ou indicar limites, preservada, e que ninguém pode destroná-la, ou
ficando os coordenadores na assessoria do grupo,
do processo grupal nos grupos de ajuda mútua, em caso de notar a tendência à repetição. No assumir o poder e subjugar os demais.
com o status de membro comum do grupo. Todos
o controle do processo grupal é deslocado para caso da ação continuar, a pessoa é convidada a se
os participantes receberam o manual de ajuda e Sabemos que temporariamente isso é assimilado
o dispositivo e para sua forma visível e literal, o retirar temporariamente até se recompor, devendo
suporte mútuos logo no primeiro encontro, e vários em sua literalidade, ou seja, na tendência de
contrato e suas regras de convivência. E, tendo em um dos facilitadores ou pessoa amiga presente ser
fizeram referência à importância de sua leitura e se “agarrar” ao corpo concreta das regras, sem
vista o fato de que os membros passaram de alguma convidada a acompanhá-la fora da sala por alguns
compreensão. As regras de participação são aquelas muita capacidade de simbolizá-la ou de tomá-la
forma pela experiência psicótica aguda, com alguma momentos para isso. Além disso, os facilitadores
constantes no manual. também como uma metáfora a ser interpretada.
experiência concreta de caos no passado e com podem reforçar a ideia de que as diferenças
Mas aqui o processo é sempre muito gradual, e,
traços dessas fantasias e ansiedades inconscientes de opiniões e de jeito de ser são importantes e
à medida que as situações limítrofes e ambíguas
no presente, como indicado acima, o controle devem coexistir, e que no grupo não se tem que
necessariamente ocorrem, o grupo será exigido a
da ordem e a evitação de conflitos abertos, com chegar a nenhuma conclusão comum. E mais, que
5.4.3) Apontamentos iniciais acerca dos grupos de fazer alguma flexibilização cuidadosa e consensual
agressividade ou violência explícita, torna-se uma os elos comuns do grupo são mais importantes:
ajuda mútua com portadores de transtorno mental de algumas das normas pelo coletivo, sem a
tarefa essencial. Este controle constitui, na opinião a experiência do transtorno; as vivências de
maior, seus desafios e estratégias de como lidar usurpação ou abrir mão deste poder preservador da
de nossa equipe, o desafio mais difícil e mais sofrimento, de desamparo, como também aquelas
com eles ordem no grupo. Esta vivência coletiva também tem
importante da proposta. Os facilitadores são apenas alegres e prazerosas; a possibilidade e a coragem
enorme importância terapêutica, por que possibilita
guardiões deste poder centrado no dispositivo, só de falar delas no grupo; o desejo de fazer amigos, de
aos participantes terem esta experiência gradual
podem exercê-lo pelo mandato provido pelo grupo sair da solidão e de buscar ser feliz; e o grupo como
de flexibilização e metaforização das normas, que é
ao aprovar o contrato, e, mesmo assim, este poder espaço especial criado para viver tudo isso, e daí a
A presente seção, portanto, é fruto da experiência difícil de ser realizada individualmente.
só pode ser exercido de forma discreta. E episódios importância de preservá-lo.
com este grupo de ajuda mútua com portadores de
transtorno mental maior, de algumas experiências de tensão ou conflito abertos, que reverberam as O dispositivo de condução das reuniões tem
pontuais realizadas em capacitações em outros experiências anteriores de caos e crise, são difíceis seu fundamento neste princípio estruturante do b) A importância do espaço livre de fala e expressão,
lugares do país, bem como de algumas experiências de serem revividos pela maioria, e tendem a afetar de dispositivo grupal proposto: é realizado por dois e da reunião “arroz com feijão”:
prévias em grupos de usuários inseridos em serviços forma mais acentuada as pessoas que se encontram facilitadores, sendo um deles (o guardião) dedicado
de atenção psicossocial. Estas observações foram em maior fragilidade no momento, fazendo-as se exclusivamente a garantir a ordem e as regras de A maioria das pessoas que passam ou passaram
cruzadas com a sistematização acima, de conceitos afastarem do grupo, o que pode ameaçar inclusive a convivência, devendo inclusive abrir mão de falar de pela experiência psicótica têm um senso muito
e processo grupal em geral e em grupos de ajuda sua própria continuidade e existência futura. si enquanto estiver nesta função, e o outro podendo agudo da desvalorização e do estigma social que
mútua no sentido amplo, e por isso alguns temas Daí a importância de evitar a todo custo a falar de suas experiências pessoais e coletivas. isso representa, e têm poucas oportunidades de
podem ser aparentemente repetidos, mas o objetivo emergência destes episódios abertos de vivência Assim, um dos principais efeitos terapêuticos serem ouvidas com atenção e serem valorizadas.
é exatamente abordar a especificidade destes caótica e sem controle. Para isso, o projeto inclui a do grupo está neste processo repetitivo, a cada Este é um dos objetivos centrais dos grupos de
processos com os portadores de transtorno mental regra de que a aceitação do contrato é pré-requisito reunião, de mostrar a seus participantes que é ajuda mútua com este tipo de pessoa.

200 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 201
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

Isso se manifesta na importância que ganha no é característica típica do processo grupal de ajuda que podem ser comuns para todos, os fatores que sociedade devem ser antes muito bem conversadas
grupo o tipo de reunião que chamamos de “arroz com mútua com portadores de transtorno mental maior. geram estresse; como lidar com eles; os principais no grupo e/ou com os demais companheiros. Este
feijão”, ou seja, aquela sem qualquer compromisso Portanto, este tipo de reunião de fala livre sobre as sinais de uma possível deterioração do estado da tipo de advertência pode ser feito na forma de uma
com a discussão de um tema específico ou com vivências não tem que chegar a quaisquer conclusões pessoa; o que fazer neste caso. A lista de possíveis experiência concreta, que pode ser pessoal e/ou de
a presença de alguém de fora. O grupo se torna ou decisões específicas, pois o próprio dispositivo temas comuns para o grupo é fornecida neste algum companheiro imaginário;
o espaço onde se pode falar das experiências e o funcionamento do grupo, por si, já induzem os manual e na cartilha (no apêndice “Plano pessoal de
cotidianas boas e más, das dificuldades, das seus principais efeitos terapêuticos. Para aqueles ação para o bem-estar e a recuperação”);
conquistas, do desabafo (com níveis moderados de participantes ou facilitadores oriundos da militância - realizar a síntese no final: nesta, os facilitadores
efeito catártico, como já indicamos acima) e da troca social, isso pode gerar uma certa estranheza, e indicam vivências e temas importantes falados
destas vivências, sem julgamento. Isso representa assim esta tendência precisa ser explicitada, para - identificar temas e sugestões de atividades que durante a reunião, e define com os demais
também um importante efeito terapêutico do grupo se compreender melhor qual é o papel preciso podem constituir objeto de outras reuniões no participantes o tipo de reunião que será adotado
de ajuda mútua. dos facilitadores. Estes apenas acompanham a futuro: isso pode ser feito durante as reuniões, com no próximo encontro. Esta síntese também tem o
sequência dos depoimentos, asseguram a ordem os facilitadores se inscrevendo também para falar, objetivo importante de mobilizar os participantes
com a função de não só “descarregar” a agenda para se fazerem presentes nele, garantindo a
e o dispositivo, mas têm um papel importante de
Avaliamos que esta “fissura” dos participantes temática do dia, quando um ou mais participantes continuidade do grupo. Esta tem também uma
realizar algumas tarefas e objetivos permanentes
para falar de suas vivências depende muito da querem insistir na discussão de um tema particular importância simbólica, de elaboração da expectativa
durante as reuniões:
regularidade e do tamanho do grupo. Reuniões sem a adesão dos demais, mas também de projetar de uma cura definitiva, tão comum nos estágios
quinzenais ou apenas mensais tendem a estimular a importância da continuidade do grupo. Além disso, iniciais do transtorno, na direção de uma aposta
esta tendência, bem como grupos maiores, nos esse procedimento pode estimular o grupo a discutir no devir, no investimento e no cuidado de si, e da
- manter a ordem e o dispositivo do grupo, e
quais diminuem as oportunidades de fala para no futuro temas importantes, que fazem parte da esperança, esta sim possível, de uma vida com uma
particularmente a inscrição dos falantes (em caso de
cada um. Além disso, os facilitadores devem plataforma de empoderamento e de luta no campo sintomatologia mais leve e controlada, e mais ativa
ter várias pessoas querendo falar) e o tempo de fala
compreender que, mesmo quando se programa uma da saúde mental, como também de estimular ações e participativa na sociedade.
de cada um: no manual, estão dadas as instruções
reunião temática ou com a presença de alguém de de suporte mútuo, defesa dos direitos etc.;
práticas de como realizar isso. O tempo regular
fora, a tendência a se voltar ao “arroz com feijão” é
de fala no grupo que observamos foi estipulado
muito grande, e faz parte da própria dinâmica grupal Além destas tarefas, cabe uma outra adicional, que
pelos próprios participantes em três minutos, para
com este tipo de pessoas. Assim, se o grupo já falou - prestar atenção e estabelecer algumas estratégias pela sua importância merece se constituir como
evitar o monopólio da palavra quando várias outras
um pouco sobre o tema proposto e a conversa já protetoras em caso do estímulo ao empoderamento item à parte, a seguir.
também desejam falar, e que sem dúvida refletiu
escapou para as vivências de cada um, não convém pessoal ser apropriado de forma distorcida por
também a “fissura” de todos falarem de suas
insistir muito para se voltar ao assunto. Um dos usuários marcados por traços maníacos e paranoides:
vivências, em um grupo de encontros mensais. No
facilitadores pode apenas perguntar ao grupo se os os grupos de ajuda mútua estimulam a capacidade d) As possibilidades e os limites na expressão
entanto, há situações que exigiram a flexibilização,
participantes já estão satisfeitos com a discussão dos usuários lidarem cada vez com maior autonomia de vivências dramáticas e/ou traumáticas e de
particularmente quando alguém está emocionado e
feita, e se se pode passar para os depoimentos de seus desafios diários, bem como a participar de processos catárticos nos grupos; o agenciamento
relatando uma vivência importante e difícil. Dada ao
abertos sobre as vivências de cada um. iniciativas de suporte mútuo, defesa dos direitos, de apoio àqueles que precisam de um suporte
apego à letra da norma, foi difícil o grupo estabelecer
militância social etc. Entretanto, é possível que este emocional imediato, e de evitar que o grupo fique
que a extensão do tempo pudesse ser avaliada em
estímulo possa ser interpretado de forma distorcida paralisado ou amedrontado pela intensidade das
cada caso, ficando a cargo dos facilitadores pedir
c) A temática flutuante, a desimportância de por usuários em fase marcadamente maníaca ou com vivências:
licença ao grupo para realizá-la;
conclusões nas reuniões livres sobre vivência, e o delírios de grandeza, como um incitamento a ações
papel multifacetado dos facilitadores: individuais impulsivas e/ou de maior visibilidade O relato de vivências difíceis pode gerar
- identificar e pontuar as estratégias de se lidar com o social. Nestes casos, os facilitadores podem naturalmente processos catárticos, podendo chegar
Nesta mesma direção, é importante reconhecer transtorno no dia a dia: a partir dos depoimentos, os chamar a atenção de que quaisquer iniciativas a estados emocionados e de alta dramaticidade. O
que a temática flutuante, como indicamos acima, facilitadores devem identificar neles as estratégias com maiores consequências na vida pessoal ou na manual já identifica sugestões práticas imediatas

202 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 203
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

de como os facilitadores podem lidar com tais a lidar com os desafios e dificuldades de sua de evitar a tarefa”. E os coordenadores, por sua isso deve ser discutido e negociado previamente no
situações. Cabe agora aprofundar um pouco mais vida, bem como descobrir suas potencialidades e parte, “ao entrarem em contato com intensa momento de se planejar a ação dos facilitadores na
nos desafios colocados por estas vivências. valores positivos, que lhe darão força e indicarão os ansiedade psicótica, têm a tendência a defender- área.
possíveis caminhos de encaminhamento; se interpretando ou respondendo uma a uma às
Em primeiro lugar, cabe lembrar, como já indicamos
acima, que os grupos de ajuda mútua se diferenciam - reconhecer a dificuldade e a dor da pessoa solicitações que lhe são formuladas. Estas respostas
favorecem a serialização88 do grupo, propiciam a f) A importância das identificações horizontais, da
da psicoterapia grupal pela ausência de um que viveu, bem como a coragem de falar destas
exacerbação da ansiedade e a desintegração do geração de esperança e dos vínculos que se criam,
profissional capacitado para permitir e estimular experiências;
bem como a indução de iniciativas interpessoais de
ativamente a expressão de experiências profundas grupo” (LANCETTI, s/d [b]: 163). Só com algum
- perguntar como a situação se desdobrou, como a ajuda mútua e suporte social fora do grupo:
e de alto conteúdo emocional e dramático, bem tempo de reunião é que os participantes poderão se
pessoa e as demais agiram etc.;
como para elaborar ativamente junto com o grupo referir mais claramente a tarefas e sugerir alguma Como salientamos acima a respeito do processo
- perguntar aos demais se tiveram ou têm vivências atividade, e isso chegar a ter algum eco no grupo, grupal em ajuda mútua em geral, as identificações
caminhos para uma relação menos despotencializada
semelhantes, e principalmente o que foi feito ou partindo para tentar fazer algo a respeito. O papel horizontais que se dão entre os membros do
e desdramatizada dos participantes com estas
é possível de ser feito para enfrentar situações dos facilitadores é estimular os participantes a grupo constituem um dos seus principais efeitos
vivências. Por sua vez, nos grupos de ajuda mútua,
similares já vividas; desenvolverem a atividade proposta, mas sem psicossociais. Entre os portadores de transtorno
os facilitadores não devem induzir ou estimular
- sugerir que as pessoas do grupo, se quiserem, qualquer ação sua independente do grupo, no mental maior há uma tendência a se acentuar o
este aprofundamento, centrando-se nas vivências
possam também manifestar concretamente, por máximo se juntando a eles e realizando-a junto com esgarçamento dos laços relacionais e familiares,
mais simples e cotidianas de lidar com o transtorno.
palavras, o seu encorajamento e desejo de muita os demais participantes. gerando o enfraquecimento do suporte social e
Entretanto, em várias ocasiões, o relato dos
força para a pessoa lidar com o desafio. comunitário no dia a dia, e portanto induzindo ao
participantes pode chegar a este nível, podendo A situação pode ficar mais complexa se o projeto
isolamento, solidão, desamparo etc. Assim, os
contagiar e aprisionar os demais participantes pela de grupos de ajuda mútua estiver inserido em
grupos de ajuda mútua com este público também
sua dramaticidade e gerando um clima de medo e/ um programa de saúde mental, e os facilitadores
Se estas estratégias não forem suficientes e a têm um papel fundamental de:
ou de paralisia em todo o grupo. assumirem a função de forma remunerada. Neste
pessoa ainda se encontrar emocionalmente ainda
Nestes momentos, em minha opinião, há várias caso, há atividades de suporte na comunidade
muito alterada e sem alternativa, sugerimos que um
possibilidades de ação para os facilitadores: que deverão ser realizadas pelos facilitadores, de - construção de laços e redes de amizade e
dos facilitadores a convide para sair um pouco do
forma independente ao grupo, e estas injunções companheirismo, como apoio emocional e
grupo com ele, para conversarem com mais calma.
institucionais dos facilitadores podem manter o solidariedade que se estendem para o dia a dia
- pedir ao grupo um tempo adicional para escutar Em caso de um quadro persistente, os facilitadores grupo na paralisia. A saída é estabelecer mais externo ao grupo: além do que acontece na própria
um pouco mais as vivências da pessoa, permitindo devem sugerir a procura de algum dos serviços claramente um conjunto particular de atividades reunião, os laços e vínculos tendem a se estender
que ela se expresse mais livremente e indicando profissionais disponíveis na área, para ofertar uma para as quais o grupo deverá necessariamente se para fora da reunião, com as pessoas buscando
que os demais participantes se interessam por ela; abordagem mais aprofundada da problemática. organizar para desenvolvê-las, e que não serão se contatar, falar do que está vivendo, pedir
- estimular a todos que escutem com atenção, realizadas de forma alguma pelos facilitadores, e sugestões etc. Assim, os grupos são uma estratégia
pois isso já tem forte significação para a pessoa. fundamental de reconstrução de redes sociais de
e) As dificuldades em relação às tarefas, e as
É importante evitar “pular” imediatamente dentro suporte na comunidade;
estratégias possíveis dos facilitadores: 88 Serialização é um dos importantes conceitos
da situação com perguntas ou sugestões de como propostos por Sartre (1960) para descrever a dinâmica
Como indicamos acima, todos os grupos humanos
se proceder, ou pedindo-a que se acalme ou deixe grupal. O conceito se refere particularmente ao estágio
mobilizam ansiedades básicas no momento de se inicial de grupos ainda em potência, em que as pessoas - geração de esperança, dada pelo exemplo
de chorar. Isso acabaria passando uma mensagem
confrontar com as tarefas, e isso é mais exacerbado estão individualizadas e recebem de fora a injunção de concreto de outros que já conseguiram avançar mais
implícita de que não se tem tempo ou disponibilidade estarem juntas em um mesmo espaço (como em uma fila
nos grupos com portadores de transtorno mental no processo de recuperação: a possibilidade de
emocional para ouvir a pessoa; de ônibus), e ainda não assumiram nenhuma atitude ou
maior. Uma das estratégias-sintomas disso é conhecer pessoas que passaram por experiências
ação coletiva (o que chamou de fusão), nem sabem bem
- se necessário, lembrar que não podemos suprimir fazer “uma espécie de pacto mafioso que consiste quem está ali com elas, o que constitui a base para a radicais e difíceis como a sua própria, e que, no
a dor das pessoas, e que cada um deve aprender em impor aos coordenadores a liderança a fim criação de vínculos. entanto, avançaram no processo de recuperação,

204 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 205
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

gera linhas de identificação muito fortes, geradoras sentimento coletivos ou condensar em si a projeção do grupo, carregando a culpa grupal. A fantasia do e contribui com novas ideias;
de esperança e estimuladoras do investimento no dos demais. grupo é de que, eliminando-a, os problemas estariam
cuidado de si e no tratamento; superados. Este fenômeno pode ser estendido a
minorias internas ou externas ao grupo, neste último - o líder democrático e de mudança: acredita na
Estes três fatores se interagem, e a experiência caso mobilizando a agressão para fora. Este processo força do grupo, dá coragem, é otimista e assume
- troca de experiências concretas de como lidar concreta de trabalho com grupos vai nos pode ocorrer também em grupos maiores, e até mesmo papéis de liderança, mas sempre estimulando a
com os desafios colocados por estes problemas no possibilitando gradualmente desenvolver nossa em países e regiões inteiras, em relação a minorias participação e o trabalho de todos e relativizando
dia a dia, não só no plano pessoal e familiar, como capacidade de identificá-los. Na literatura sobre étnicas, políticas, religiosas etc., podendo justificar os ganhos secundários do poder, como a glória e
também de iniciativas para a defesa dos direitos, grupos, é comum se apresentar listas com alguns até mesmo operações amplas de genocídio, como o prestígio. Assim, tende a assumir a lei do grupo,
o que pode inclusive levar a iniciativas coletivas: destes papéis ou “personagens típicos” e mais tivemos no século XX. Os julgamentos precipitados elaborada pelo trabalho coletivo dos integrantes;
o grupo oferece esta troca de experiências, que frequentes. Tendo como base o trabalho de Pereira podem gerar injustiça, perda de direitos, e significam
necessariamente implica um leque de estratégias (2001: 310), podemos listar, entre aqueles listados, um mecanismo de defesa do grupo em avaliar seus
muito concretas de lidar com o transtorno no - o líder despótico: geralmente apresenta
os seguintes: problemas e conflitos;
características pessoais que estimulam a assumir a
cotidiano, sem prescrever qual é melhor para cada
figura de “pai despótico”, marcado pelo desejo de
um, já que esta escolha é inteiramente pessoal.
- o porta-voz: tende a enunciar anseios ou denunciar - o sabotador: trata-se de indivíduos ou pares que não glória, prestígio, vaidade e narcisismo, e, portanto,
problemas ou conflitos no interior ou exterior do aceitam mudanças e inovações, e tendem a resistir ao mesmo tempo carismático e castrador, seduzindo
g) Os “personagens” mais frequentes vividos no grupo. Geralmente, como característica pessoal, e sabotar os processos de transformação no grupo, os demais com uma sensação de segurança,
processo grupal, dadas as características pessoais, pode ter maior grau de ansiedade, pode apresentar criando uma série de obstáculos e dificuldades; proteção e pequenos privilégios, e requerendo em
as implicações que cada um traz consigo para o traços persecutórios, ou apenas maior percepção troca dedicação e obediência.
grupo, e das várias possibilidades de vivência das crítica dos processos grupais e sociais. Este
angústias e sentimentos inconscientes no grupo: personagem pode ser muito útil ao grupo, mas - o rejeitado ou vítima: em geral, tem dificuldades
em aceitar a si mesmo, e tende a projetar sobre O uso destas categorias na avaliação concreta
Em tese, o comportamento de cada pessoa em também pode ser usado e estimulado pelos demais
o grupo a rejeição. Dá espaço aos outros, depois entre os participantes do grupo deve ser bastante
grupos de ajuda mútua depende de alguns fatores como um contestador ou como aquele que vai na
reclama de ter sido postergado. Busca a atenção criteriosa, pois pode na verdade simplificar os
básicos: frente, para o sacrifício, enquanto o resto do grupo
dos demais no papel de vítima, e tende à estratégia problemas e estimular a identificação de novos
mantém a sua boa imagem e a paralisia. Pode
do “quanto pior, melhor”; “bodes expiatórios” ou de outros processos
também abusar do grupo, aproveitando-se dessas
de discriminação dentro e fora do grupo. No
- suas características pessoais, particularmente características para se colocar em uma posição
entanto, elas podem ser bastante úteis para a
subjetivas, moduladas pelos traços dominantes da privilegiada. Nos grupos de usuários da saúde
- o narcisista: só pensa em si e em seus interesses, análise das situações grupais pelos facilitadores,
personalidade; mental, há sempre os “porta-vozes da loucura”,
fechando-se em si mesmo e naquilo que lhe pode particularmente nas supervisões.
ou seja, aqueles que têm seu comportamento
- as implicações pessoais que as pessoas trazem ao dar algum ganho, desinteressando-se pelo resto.
identificado como “mais difícil”. Eles, no entanto, Uma variação deste tipo é o infantil, que quer tudo
grupo, determinadas pela sua história, sua posição
são os melhores “porta-vozes da experiência “pronto e mastigado”; h) A gestão dos atravessamentos e temas mais
de classe social, visão política e ideológica, inserção
humana radical” induzida pelo transtorno mental, divisionistas no grupo, particularmente religião e
na divisão técnica do trabalho, gênero, etnia,
e é justamente para eles que os grupos têm a sua política:
geração, identidade sexual, condição existencial
razão de existir, e portanto devem ser acolhidos com - o silencioso: fala pouco ou nada, e, portanto,
específica (por exemplo, portador de deficiência ou
o máximo de carinho possível; tende a não participar, ficando olhando de longe e
de transtorno mental) etc.;
controlando o grupo com seu olhar; Alguns movimentos de ajuda mútua, no afã de
- injunções, processos e sentimentos vividos proteger seus membros, tendem a proibir temas que
coletivamente no processo grupal, nos quais um dos - o bode expiatório: é a pessoa escolhida para ser são mais divisionistas e conflituosos, e que podem
participantes pode, por exemplo, ser porta-voz de responsabilizada pelos fracassos e dificuldades - o atualizado: faz cursos, lê, interessa-se, participa gerar discussões exacerbadas e desintegradoras,

206 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 207
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

como a política e a religião. Nossa visão é de que destas práticas, o que deve ser feito de forma papel de dar suporte a um dos membros do grupo emergenciais; ou mesmo para visitas e contatos
o campo psicossocial está inteira e intimamente pluralista, ecumênica e com base no direito à em dificuldades. Estes são temas e estratégias pessoais e institucionais. No entanto, os demais
integrado a estes dois temas, e seria redutor e liberdade religiosa de cada cidadão. Para isso, os especialmente importantes de serem conhecidos e membros do grupo e particularmente os facilitadores
empobrecedor proibi-los nas reuniões, gerando facilitadores devem esclarecer que este direito deve planejados pelos facilitadores, de forma prévia ao são todos usuários, com as suas dificuldades e
despolitização e perda de oportunidades para a ser exercido apenas para falar de si mesmo. Para início das atividades. Não é incomum ter membros preocupações existenciais particulares, seu trabalho
recuperação, pelas seguintes razões: além disso, há algumas restrições importantes, dos grupos requerendo cuidado imediato, e que às e formas de manutenção, e não têm como arcar com
em relação a proselitismo e pregação religiosa, vezes pode ser apenas uma consulta de emergência uma demanda muito grande deste tipo de suporte,
a referência ou qualquer avaliação julgadora ou para efeitos colaterais de psicofármacos, ou um notadamente quando este trabalho é realizado de
- política: o processo de empoderamento e discriminatória de quaisquer religiões, bem como a estado de ansiedade maior que pode ser debelado forma voluntária.
recuperação tem dimensões políticas fundamentais, prática de rituais ou orações de religiões específicas com uma medicação mais simples.
como a defesa de direitos, a luta contra aspectos Outra área que merece especial atenção são
dentro do grupo, que acaba melindrando as pessoas
discriminadores e o estigma na cultura mais geral, as denúncias de violação de direitos humanos
ligadas a outras crenças e credos. Os grupos de
a participação e a luta por mudanças nas políticas j) Os limites de um grupo de ajuda mútua e de seus perpetradas no campo da assistência à saúde e
ajuda mútua são para todos, independentemente
sociais e particularmente na de saúde e saúde facilitadores, e a importância de “não carregar a dor saúde mental, envolvendo os usuários ou pessoas
de credo religioso, e esta característica laica e
mental, bem como nos serviços etc. O engajamento do mundo nas costas”: de seus vínculos. Os facilitadores têm um papel
secular dos grupos busca garantir que nada possa
nos movimentos sociais que as promovem são importante de avaliar as informações que lhes
criar constrangimentos para um bom acolhimento a
essenciais tanto para o processo de cada indivíduo chegam, examinar a gravidade da situação, dar um
qualquer pessoa em suas reuniões. Os grupos de ajuda mútua com usuários da
como para a conquista de avanços sociais e políticos primeiro suporte, encaminhar ou fazer junto com
saúde mental e a atuação de seus facilitadores as pessoas envolvidas a denúncia necessária, se
em todos esses aspectos. Assim, o engajamento dos
têm objetivos bastante definidos, e não visam for o caso, bem como angariar outras formas de
membros dos grupos deve ser estimulado, e o tema i) A importância de se conhecer os recursos e
substituir o papel dos serviços públicos de saúde divulgação e suporte social e político necessário.
deve necessariamente fazer parte do cotidiano das serviços sociais, educacionais, de defesa dos
mental. Entretanto, este é um campo muito fértil
reuniões. No entanto, há algumas restrições que direitos humanos e particularmente de saúde e No entanto, esta carga de trabalho e suporte pode
para ambiguidades e mal-entendidos, e que está
devem ser observadas nos grupos, como política saúde mental na região do grupo: ficar enorme e ultrapassar os limites do dispositivo
intrinsecamente ligado ao processo grupal interno,
partidária e propaganda eleitoral, e para isso os e das pessoas. Na experiência deste grupo
às características da atenção em saúde mental
facilitadores devem deixar claro aos participantes particular que criamos, várias vezes esta discussão
Os facilitadores, e também gradualmente os disponível na área do grupo e às relações dos
as regras para isso; emergiu nas reuniões, e acabamos forjando a
membros de grupos, devem conhecer bem os grupos com esta assistência.
expressão de que ser membro de grupo de ajuda
serviços e recursos da área social, educacional, Em primeiro lugar, os grupos têm como objetivo gerar
mútua e particularmente ser facilitador não significa
- religião e espiritualidade: a participação em de denúncias e de defesa dos direitos humanos estratégias de ajuda e suporte mútuos, e a própria
“carregar a dor do mundo nas costas”. Isso significa
agremiações religiosas, suas práticas devocionais do cidadão, e notadamente os serviços de saúde e dinâmica grupal tende a enfatizar a potência do grupo
que podemos escutar de vez em quando o outro, trocar
e espirituais, bem como a criação de vínculos de saúde mental. Cada pessoa com transtorno mental e o heroísmo de seus membros em oferecer isso aos
ideias, orientá-los dentro de nossas possibilidades,
solidariedade e suporte social entre seus membros, deve ser estimulada a se inserir nestes últimos, demais participantes do grupo. Assim, no intervalo
ajudá-los em algumas de suas dificuldades de vida,
fazem parte integral do processo de expressão com presença ou consulta regulares, e ter vínculo das reuniões, as pessoas se ligam, “fazem ajuda
mas temos de aprender a respeitar nossos próprios
da subjetividade, de crescimento pessoal e sólido com o profissional que atua como seu técnico mútua” e desenvolvem atividades de suporte social.
limites. Para além disso, cada usuário com seus
recuperação em saúde mental. Na cultura brasileira, de referência. Os facilitadores devem conhecer No entanto, a expectativa é particularmente maior
problemas deve ser referenciado a seu serviço de
as instituições religiosas e suas práticas oferecem muito bem os serviços de emergência em saúde e em relação aos facilitadores, que têm mais tempo e
saúde mental ou buscar os recursos existentes da
variados caminhos para se lidar com a solidão, o de emergências psiquiátricas da área programática experiência, e são os responsáveis pela existência
área social, educacional, de direitos humanos, de
desamparo, o sentido da vida, e para a reconstrução onde o grupo e a maior parte de seus membros estão e a continuidade do grupo. Muitas vezes esta ajuda
saúde etc.
de vidas ameaçadas pela violência, miséria, abuso lotados, suas condições de atendimento, a forma de é demandada na forma de chamadas telefônicas,
de drogas e transtorno mental. Assim, nos grupos, como chegar até eles e a estratégia a ser adotada a qualquer hora; de pedidos de informação e de É claro que isso depende fortemente da provisão e da
seus participantes necessariamente irão falar em caso de um dos facilitadores ter que assumir este suporte para dificuldades existenciais e situações qualidade dos serviços e recursos disponíveis nestes

208 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 209
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

vários campos de política social, e particularmente familiares, que estão se difundindo no país, com transporte para os serviços etc.) e sociais do firmes e radicais, enquanto os familiares às vezes se
da saúde e da saúde mental. E em caso de suas práticas de suporte mútuo, defesa dos direitos processo de cuidar; aliam a abordagens mais médicas e conservadoras,
desassistência ou problemas na provisão, os grupos e militância (VASCONCELOS, 2008b). podem defender os serviços tradicionais de
+ a ansiedade dos períodos de “sumiço”;
de ajuda mútua devem abordar o assunto, sugerir internação, além de cobrarem dos serviços pela
No entanto, especificamente nos grupos de ajuda + o medo da emergência das crises e da violência;
reuniões próprias para discutir o que fazer, buscar falta de suporte e por estes muitas vezes jogarem
mútua, nossa opinião é de que a separação é
aliados, e uma das possibilidades é estimular que + a agonia no caso de dependência a drogas, que em seus ombros o peso do cuidado.
necessária pelos seguintes motivos:
seus membros participem dos movimentos sociais gera a “fissura” por arranjar dinheiro a qualquer
e das lutas que visem reivindicar e conquistar novos custo, podendo incluir a venda de eletrodomésticos
patamares de qualidade e acesso nestas políticas. Assim, pelo menos para os grupos de ajuda mútua,
- a experiência da clínica psicossocial e da atenção da família, pequenos furtos, endividamento e/ou
a diferenciação entre usuários e familiares é
Uma outra possibilidade é os próprios grupos básica nos ensina que na abordagem de casos o realização de pequenos trabalhos para o tráfico,
extremamente necessária.
de ajuda mútua serem promovidos e estarem levantamento da história do transtorno e de seus gerando muitos riscos para o usuário e para toda a
inteiramente inseridos na política local de saúde desafios na família geralmente leva a duas versões família, e tendo sérias implicações penais;
mental ou de atenção básica em saúde, com seus diferenciadas e muitas vezes conflitivas, com um Esta postura não significa, porém, desconhecer a
+ a angústia surda dos pais associada ao dilema
facilitadores realizando trabalho remunerado. número enorme de queixas de parte a parte: o possibilidade de diversas formas de colaboração,
geracional do cuidado, ou seja, ao bem-estar futuro
Neste caso, ainda assim, a agenda e a pauta de portador de transtorno mental, de um lado, e seus integração e ação conjunta, iniciando-se ainda na
de um filho usuário, quando eles estiverem mais
responsabilidades dos facilitadores devem ser familiares e cuidadores, do outro. Muitas vezes, até própria esfera dos grupos de ajuda mútua, mas com
velhos, incapazes de cuidar, e particularmente
muito bem avaliada, definida e ter sua execução mesmo este ato de fazer o levantamento inicial do maior ênfase nas demais estratégias de recuperação
quando falecerem etc.
muito bem planejada, pois continuam a ser usuários, caso pede contatos separados, inclusive para não e empoderamento, como, por exemplo:
têm seus limites pessoais, e sua atuação não visa exacerbar ainda mais os conflitos já existentes;
substituir a atuação dos profissionais e dos serviços Assim, a presença dos usuários no mesmo ambiente
- convites dos grupos de familiares para que uma
de saúde mental, nem da rede de atenção básica no de acolhimento dos familiares acaba por bloquear
- em encontros apenas com familiares, há temas liderança dos usuários mais conhecida possa
campo da saúde mental. integralmente a possibilidade destes temas
extremamente sensíveis, alguns deles guardados participar de uma reunião dos primeiros, através
emergirem e dos cuidadores poderem falar mais
“a sete chaves” por mecanismos de defesa muito do tipo de reunião em que se tem convidados,
abertamente sobre estes e outros temas similares.
k) A separação necessária entre grupos de ajuda fortes, que só são tocados com muita dificuldade, permitindo aos familiares conhecerem os pontos
mútua de usuários e de familiares, e as suas gradualmente e em ambientes que despertam muita de vista e a vivência própria de usuários com uma
possíveis formas de integração: reciprocidade e confiança, tais como: - na perspectiva inversa, os usuários têm também visão mais crítica e em um estágio mais avançado
suas reclamações, que podem variar de queixas do processo de recuperação;
simples de invalidação e discriminação, falta de - o contrário, em reuniões de ajuda mútua dos
A partir da experiência internacional e de nossa + o tempo necessário e o peso global do cuidado, às assistência e cuidado, internações involuntárias usuários;
vivência, adotamos a perspectiva de que os grupos vezes atingindo o sacrifício de todo um projeto de consideradas indesejáveis e desnecessárias, alguma
de ajuda mútua de usuários e de familiares no vida pessoal do cuidador principal para se dedicar - eventos de confraternização dos grupos em datas
forma de violência nestes procedimentos podendo
campo da saúde mental devem ser organizados a ele, e que tem um caráter invisível e muitas ou eventos festivos;
até chegar a casos mais sérios de tentativas de
separadamente. Sabemos que outros dispositivos vezes naturalizado, particularmente porque são invalidação e de perda dos direitos por processo de - organização conjunta e promoção de eventos
políticos, sociais, terapêuticos e comunitários optam principalmente as mulheres que o exercem; tutela indevida, que podem, em casos mais graves, de formação, tais como seminários, encontros,
por reunir os dois grupos de forma indiferenciada, o ser acompanhados por eventuais apropriações debates etc., podendo incluir os gestores e outros
+ o estresse vivido pelos cuidadores no dia a dia,
que a nosso ver é uma opção acertada e adequada indébitas de seus benefícios e bens etc. movimentos sociais;
para atendimento das várias demandas e das
para os contextos e objetivos com que atuam.
dificuldades no funcionamento social; - desenvolvimento de projetos de suporte mútuo,
Exemplos deste trabalho integrado estão na Terapia
mudança na cultura, defesa de direitos etc.;
Comunitária (BARRETO, 2005), no movimento + as várias outras dimensões econômicas (as - nos processos de desinstitucionalização
antimanicomial e nas associações de usuários e inúmeras despesas extras com fármacos, com psiquiátrica, os usuários tendem a ter posições mais - contatos e militância comum no movimento

210 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 211
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

antimanicomial e em outros movimentos sociais particularmente em conselhos de controle social, para um indivíduo desenvolver habilidades analisar a realidade da perspectiva ético-política e
populares, bem como nas instâncias de controle possibilita aos seus integrantes ter experiência organizacionais, cognitivas, computacionais etc. popular-democrática que adotamos, acompanhar as
social no SUS e em outras políticas sociais. prévia na coordenação de grupos e assembleias, na Assim, é importante levantar a experiência prática do experiências e os projetos no presente, por meio da
organização de reuniões, encontros e eventos etc.; candidato nestes diversos campos; militância e da pesquisa, e tentar ler na realidade
seus traços estruturais, suas tendências, os desafios
Assim, mesmo que as duas linhas de grupos de ajuda e as estratégias de lidar com eles. Escrever textos
mútua devam ser operacionalmente separadas, há - experiência e participação anterior em associações - capacidade prática de lidar com grupos: em caso como este, mesmo que temporários e situados em
várias formas de manter a integração, a colaboração e movimentos sociais do campo da saúde mental: a de desempate entre fortes candidatos, no final do uma determinada conjuntura, ajuda-nos a estruturar
mútua e a militância social. Esta interação, inclusive, participação em associações de usuários e familiares processo seletivo, pode-se incluir a observação de nossa compreensão, a levantar mais perguntas e
é fundamental para a perspectiva do movimento do campo da saúde mental, bem como no movimento cada um em dinâmicas de grupo; dúvidas, e particularmente a qualificar melhor nossa
antimanicomial, para acompanhar e se garantir um antimanicomial, possibilita não só ter experiência intervenção na área. Mais à frente, com a ampliação
posicionamento político mais claro e firme por parte de ativismo social, mas agora diretamente com das experiências e da discussão, com o alongamento
- prova objetiva de conhecimento do campo da saúde
dos familiares. usuários e familiares do campo, com todas as do tempo e a abertura de mais horizonte no olhar,
mental e da abordagem do empoderamento: apenas
particularidades do campo: sensibilidade para lidar certamente poderemos corrigi-lo e complementá-lo.
em caso de se prever muitos candidatos, é possível a
com sintomas e com as ambiguidades e desafios do Talvez outros colegas e companheiros prefiram esperar
indicação prévia de uma bibliografia de referência e
l) A importância de uma seleção criteriosa dos transtorno, capacidade de acolhimento etc.;
de se ter uma primeira fase eliminatória com base em estágios mais avançados do processo para expor e
facilitadores de grupos de ajuda mútua: publicar a sua produção, de forma mais protegida.
prova objetiva.
Entretanto, para nós, esta postura de explicitar as
- avanço no processo pessoal de recuperação e de
dificuldades e os desafios e de “refletir em voz alta”
estabilização de sintomas (no caso de usuários): Tendo listado estes tantos temas e desafios, penso
sobre as estratégias de lidar com eles constitui um
Em nossa experiência, a escolha de lideranças gradualmente, a experiência de tratamento e com que podemos concluir este trabalho, passando agora
princípio de uma filosofia do conhecimento voltada
de usuários ou familiares para atuarem como as estratégias de lidar com os sintomas no dia a para as considerações finais.
para a práxis coletiva popular-democrática, mesmo
facilitadores de grupos de ajuda mútua deve ser dia geram uma relativa estabilização do transtorno,
com todos os riscos de oferecer munição para os que
muito cuidadosa e criteriosa, tendo em vista os que permite maior segurança para assumir trabalho
não apoiam nossas propostas. Adicionalmente, esta
vários desafios indicados acima, e particularmente e responsabilidades. Isso não significa descartar
opção se baseia em um compromisso ético e solidário
quando o projeto deixa de ser apenas informal e quem tenha tido uma crise recente, mas é preciso 6) Considerações finais com cada um dos usuários e familiares com quem
voluntário, para assumir o caráter de um trabalho avaliar toda a trajetória clínica e a história de
trabalhamos, com os movimentos sociais da área e
sistemático junto à rede de saúde mental e/ou de tratamento nos últimos anos; com a renovação das políticas de saúde mental, na
O presente texto constitui uma primeira tentativa de
atenção básica em saúde. forma de projetos inovadores e participacionistas,
reunir e sistematizar temas tão complexos e delicados
A nosso ver, há vários parâmetros que podem ser cujas balizas ainda estão sendo construídas no próprio
- escolaridade formal: embora não deva significar como os grupos de ajuda mútua e sua relação com os
avaliados no processo seletivo, que pode requerer processo. Assim, a publicação de trabalhos como este
um critério de exclusão, a escolaridade formal processos grupais, a partir de algumas experiências
curriculum vitae, entrevista pessoal, capacidade de é também um convite para que nos enviem sugestões,
mais avançada geralmente significa uma maior iniciais que estamos acompanhando, como forma
para que nos proponham discussões e debates, como
lidar com grupos em dinâmicas simuladas, e, em capacidade de lidar com desafios cognitivos, com de oferecer subsídios para o desenvolvimento de
parte de uma produção eminentemente coletiva
caso de muitos candidatos, também prova objetiva sistematização escrita, com maior capacidade de grupos de ajuda e suporte mútuos no campo da
de conhecimento e de novos projetos de ação, no
de conhecimento. Entre os possíveis parâmetros de comunicação oral, maior nível de conhecimento saúde mental no Brasil. Constitui um texto “em
momento mesmo da práxis.
avaliação, podemos citar: geral etc.; situação”, no burburinho da prática, e portanto
assume seu componente de provisoriedade. Nossa Esperamos que o leitor entenda esta proposta, e que
maneira de trabalhar com estes temas, no contexto participe conosco deste processo, pois, a despeito de
- experiência anterior de ativismo social e - capacidade cognitiva e prática de lidar com tarefas de um projeto em andamento, inclui conhecer e todos os desafios, ele é muito instigante, criativo e
comunitário: a vivência de projetos de suporte organizativas e com computadores: muitas vezes, a sistematizar o processo histórico anterior, mapear as gerador de muitas alegrias a cada pequena vitória e
mútuo, atuação comunitária ou militância social, e ausência de escolaridade formal não é impedimento contribuições teóricas e conceituais que nos permitem conquista.

212 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 213
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

Referências GUATTARI, F. A revolução molecular. São Paulo: LOURAU, R. A análise institucional. Petrópolis: RODRIGUES, H. C. R.; ALTOÉ, S. Saúde e loucura 8:
Brasiliense,1985. Vozes, 1995. análise institucional. São Paulo: Hucitec, 2006.
GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma MARX, K. Guerra civil na França. In: Obras Escogidas SAIDÓN, O. I. O grupo operativo de Pichon-Rivière:
BAREMBLITT, G. (org.). Grupos: teoria e técnica. Rio
estético. Rio de Janeiro: Ed 34, 1992. de Marx y Engels, Tomo I. Madrid: Fundamentos, guia terminológico para a construção de uma teoria
de Janeiro: Graal, 1982.
1871/1975. crítica dos grupos operativos. In: BAREMBLITT,
BARRETO, A. P. Terapia comunitária passo a passo. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias
G. (org.). Grupos: teoria e técnica. Rio de Janeiro:
do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Reforma psiquiátrica
Fortaleza: Gráfica LCR, 2005. Graal, 1982.
e política de saúde mental no Brasil. Brasília:
BARUS-MICHEL, J. O sujeito social. Belo Horizonte: GUATTARI, F. et al. O reencantamento do concreto.
Ministério da Saúde, 2005. SARACENO, B. Libertando identidades: da
PUC-Minas, 2004. São Paulo: Hucitec, 2003.
reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio
MOTA, L. A. A dádiva da sobriedade: a ajuda mútua
bASAGLIA, F. Escritos selecionados. Rio de Janeiro: HAAFKENS, J. et al. Mental health care and the de Janeiro: Instituto Franco Basaglia e Ed. TeCorá,
nos grupos de Alcoólicos Anônimos. São Paulo:
Garamond, 2005. oposition movement in the Nederlands. In: Social 1999.
Paulus, 2004.
Science and Medicine 2, p. 185-192, 1986.
BION, W. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: SARTRE, J. P. Critique de la raison dialectique. Paris:
MOURA, A. H. A psicoterapia institucional: o clube
Imago, 1970. JONES, M. A comunidade terapêutica. Petrópolis: Gallimard, 1960.
dos saberes. São Paulo: Hucitec, 2003.
Vozes, 1972. SIMANKE, R. T. A formação da teoria freudiana das
BLÉANDONU, G. Wilfred R. Bion: a vida e a obra – PAGÈS, M – A vida afetiva dos grupos. Petrópolis,
1897-1979. Rio de Janeiro: Imago, 1993. KAËS, R. Realidade psíquica e sofrimento nas psicoses. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
Vozes, 1982.
instituições. In: KAËS, R. et al. A instituição e as SZELL, G. (ed.). Concise encyclopaedia of
Davidson, L. et al. Recovery from severe mental PEREIRA, W. C. C. Nas trilhas do trabalho comunitário
instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa participation and co-management. New York:
illness: research evidence and implications e social: teoria, método e prática. Petrópolis: Vozes,
do Psicólogo, 1991. Walter de Gruyter, 1992.
for practice. Boston: Center for Psychiatric 2001.
Rehabilitation, 2005. KAËS, R. et al. A instituição e as instituições. São TENENBAUM, D. Investigando psicanaliticamente
PICHON-RIVIÈRE, E. Del psicoanálisis a la psicología
Paulo: Casa do Psicólogo, 1991. as psicoses. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
Davis, D. R.; Jansen, G. G. Making meaning of social. Tomo I e II. Buenos Aires: Galerna, 1971.
Alcoholics Anonymous for social workers: myths, LANCETTI, A. (org.). Saúdeloucura 4. São Paulo: VASCONCELOS, E. M. Complexidade e pesquisa
PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo:
metaphors and realities. Social Work 43 (2), p. 169 Hucitec, s/d [a]. interdisciplinar. Petrópolis: Vozes, 2002.
Martins Fontes, 1991.
+, March 1998. LANCETTI, A. Clínica grupal com psicóticos. In: VASCONCELOS, E. M. O poder que brota da dor e
PY, L. A. et al. Grupo sobre grupo. Rio de Janeiro:
DUARTE, L. F. D. Da vida “nervosa” da classe LANCETTI, A. (org.). Saúdeloucura 4. São Paulo: da opressão: empowerment, sua história, teorias e
Rocco, 1987.
trabalhadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. Hucitec, s/d [b]. estratégias. São Paulo: Paulus, 2003.
QUINET, A. Clínica da psicose. Salvador: Fator, 1990.
DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (orgs.). Doença, LAPASSADE, G. Grupos, organizações e instituições. VASCONCELOS, E. M. Podemos ser curadores, mas
sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. Reinarmar, C. The twelve-step movement and sempre … também feridos! Dor, envelhecimento
Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. advanced capitalist culture: the politics of self- e morte e suas implicações pessoais, políticas e
LEAL, E. M. Psicopatologia do senso comum: uma
control in postmodernity. In: DARNOVSKY, M.; sociais. In: VASCONCELOS, Eymard M. (org.). A
ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado: psicanálise do psicopatologia do ser social. In: SILVA FILHO, J. F.
EPSTEIN, B.; FLACKS, R. (eds.). Cultural politics and espiritualidade no trabalho em saúde. São Paulo:
vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. (org.). Psicopatologia hoje. Rio de Janeiro: Instituto
social movements. Philadelphia: Temple University Hucitec, 2006.
de Psiquiatria da UFRJ, 2007. Press, 1995.
ENRIQUEZ, E. A organização em análise. Petrópolis:
VASCONCELOS, E. M. Abordagens psicossociais,
Vozes, 1997. LENIN, V. I. O estado e a revolução. Porto: Manuf, REIS, T. R. “Fazer em grupo o que não posso fazer vol. 1: história, teoria e trabalho no campo. São
1917/1970. sozinho”: indivíduo, grupo e identidade social em
FERNÁNDEZ, A. M. O campo grupal: notas para uma Paulo: Ed. Hucitec, 2008a.
genealogia. São Paulo: Martins Fontes, 2006. LEVY, A. et al. Psicossociologia: análise social e Alcoólicos Anônimos. Tese de doutoramento em
VASCONCELOS, E. M. (org.) Abordagens
intervenção. Petrópolis: Vozes, 1994. Serviço Social, Escola de Serviço Social da UFRJ.
GRINBERG, L et al. – Psicoterapia de grupo. Rio de psicossociais, vol. II: reforma psiquiátrica e saúde
Rio de Janeiro, 2007.
Janeiro, Forense Universitária, 1976.

214 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 215
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

mental na ótica da cultura e das lutas populares. melhor como funciona a mente humana e em ajudar
São Paulo: Ed. Hucitec, 2008b. aqueles que sofrem psicologicamente. No fim
do século XIX, no momento em que Jung deveria
VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens
escolher qual especialização médica seguiria,
psicossociais, vol. III: perspectivas para o Serviço
encontrou no Manual de Psiquiatria de Krafft-
Social. São Paulo: Ed. Hucitec, 2009.
Ebing uma expressão que o deixou inteiramente
VASCONCELOS, E. M. Karl Marx e a subjetividade emocionado, quando aquele autor denominou as
humana, vol. I: a trajetória conceitual a partir dos psicoses como “doenças da personalidade”. A partir
textos teóricos. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010a, no disso, ele chegou à conclusão de que finalmente
prelo. havia encontrado um lugar de confluência de seus
VASCONCELOS, E. M. Karl Marx e a subjetividade maiores interesses, natureza e espírito, em um
humana, vol. II: uma história de ideias psicológicas contexto de uma medicina fortemente voltada
na Europa até 1850. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010b, apenas para a descrição objetiva dos fenômenos,
no prelo. e viu então na psiquiatria um campo comum dos
dados biológicos e espirituais, e a elegeu como sua
VERTZMAN, J. S. et al. Psicoterapia institucional: especialidade.
uma revisão. In: BECERRA JR, B.; AMARANTE, P.
Em 1900, assumiu o lugar de médico assistente no
(org.). Psiquiatria sem hospício. Rio de Janeiro:
hospital de Burgholzli, em Zurique, e na convivência
Relume-Dumará, 1992. Texto 8 com pessoas com transtorno mental, Jung foi
VERZTMAN, J. S.; GUTMAN, G. A clínica dos intuindo e experienciando sua teoria dos Arquétipos
espaços coletivos e as psicoses. In: VENÂNCIO, A. T. e do Inconsciente Coletivo, que explicaremos a
A.; CAVALCANTI, M. T. (org.). Saúde Mental: campo, seguir. Sua obra inspirou teoricamente os trabalhos
saberes e discursos. Rio de Janeiro: Edições IPUB/ Uma contribuição da de Nise da Silveira no Brasil, reconhecida como a
CUCA, 2001. psicologia analítica para a primeira psiquiatra brasileira a desenvolver um
WEINGARTEN, R. O movimento de usuários compreensão da ajuda mútua trabalho inteiramente humanizado e respeitoso
em saúde mental nos Estados Unidos: história, em saúde mental: o arquétipo no atendimento à pessoa com transtorno mental,
processos de ajuda e suporte mútuos e militância. do Curador Ferido acompanhando-a em seu caminho interno de busca
Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia e Projeto de superação. Da mesma forma, as instituições
Glória Lotfi89
ditas “junguianas”, criadas em todo o planeta,
Transversões, 2001.
buscam ensinar uma maneira mais holística de
compreensão do psiquismo.
Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um importante
pesquisador do psiquismo e até hoje suas Em seus estudos, Jung foi aos poucos percebendo
descobertas são acatadas no mundo inteiro por a importância dos mitos, histórias que os homens
muitas pessoas interessadas em compreender escreveram desde seu início de vida na Terra,
criadas para expressar e facilitar a compreensão
dos mistérios que rodeiam nossas vidas. Os mitos
89 Psicóloga, especialista em clínica e supervisora clínica estão presentes nos relatos contados de geração
pelo CRP/05, membro analista e fundador da Sociedade em geração, na tradição oral e escrita, na literatura
Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA-RJ), e membro
analista da International Association for Analytical
e nas religiões. Nessas histórias semelhantes em
Psychology (IAAP), com sede em Zurique, Suíça. culturas diferentes e distantes, podemos perceber a
existência de padrões típicos de comportamento em

216 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 217
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

cada desafio humano específico. Há um Arquétipo estudo dos mitos, como vimos acima, Jung nos também um portador de transtorno mental, mas o lado do curador. É o curador que existe em cada
para cada um dos nossos desafios, por exemplo, a ensinou que Arquétipos são estruturas básicas inteiramente genial e capaz de exercer a medicina. pessoa que está sofrendo que deve ser despertado.
relação mãe-filho; a importância do pai na relação do psiquismo inconsciente que todos nós seres Nos grupos de ajuda e suporte mútuos, esse curador
Vou neste texto privilegiar a figura de Quíron,
com seu filho e do filho em relação ao pai; o papel do humanos compartilhamos, e que constituem interno será despertado pela presença dos outros
encontrado na mitologia grega. Quíron era um
educador e sua relação com o aluno e a relação do recursos que temos para lidar com os desafios participantes do grupo, pois a dor do outro desperta
Centauro, da cintura para cima um homem, e da
aluno com o educador, além daquele que estamos psicológicos mais fundamentais de nossas vidas. o curador e mobiliza a compreensão do que cada
cintura para baixo um cavalo. Nasceu assim porque
agora interessados em compreender melhor, que é um pode dizer e fazer para melhorar seu estado. Os
Toda vez em que alguma pessoa que está sofrendo, seu pai, o deus Cronos, transformou-se em cavalo
o Arquétipo do Curador Ferido. facilitadores de grupo, aceitando sua própria ferida,
pede ajuda, e outra pessoa se põe à disposição para conquistar Irina, uma ninfa, que não era deusa
Para Jung, portanto, o ser humano, ao nascer, traz e portanto, era mortal. Logo que nasceu, Quíron como pessoas com transtorno ou como familiares, e
para ajudar, é ativado o Arquétipo do Curador
consigo uma herança, não só genética, como também foi rejeitado por seus pais porque era estranho e tendo alguma experiência em condução de grupos,
Ferido, expresso em mitos de várias culturas. Todo
cultural e psíquica: não é uma tabula rasa (ou seja, diferente. Essa foi a primeira ferida de Quíron, a estarão aptos não só para avançar em seu processo
Arquétipo é bipolar, quer dizer, temos em nós as
um quadro branco que será escrito apenas com a rejeição. Apolo e Ártemis, um casal de irmãos, dois de recuperação de uma vida mais ativa e útil,
duas polaridades, a do curador e a do ferido, pois
experiência de vida), seu psiquismo não é novo, é outros deuses, resolveram cuidar de Quíron e lhe como também para ajudar, com sua experiência,
podemos ser quem sofre e por vezes somos quem
tão antigo como a raça humana, e é coletivo. O Ego deram uma educação excelente. Assim, Apolo, deus os participantes dos grupos que facilitam. Nesta
auxilia.
individual se desenvolve em meio às experiências da razão, das artes e do intelecto, e Ártemis, deusa caminhada, eles vão adquirindo sabedoria, sendo
Um outro Arquétipo, fundamental em nossas vidas, é cada vez mais capazes de ouvir a dor e de facilitar o
de vida e às energias psíquicas oriundas deste da natureza, contribuíram para a imensa cultura que
psiquismo comum a todos nós humanos, que ele o da Grande Mãe, e nele convivem a energia da mãe aparecimento do curador em si mesmo e nos demais
Quíron possuía. Apolo, como conhecedor de todas
chamou então de Inconsciente Coletivo. Cabe a que maternaliza e a da criança que é maternalizada. participantes do grupo.
as ciências da época, ensinou também medicina, e
cada indivíduo a tarefa de, no confronto com as As duas polaridades do arquétipo estão presentes
Ártemis contribuiu com o estudo das plantas e suas
experiências de vida e com as energias vindas e são ativadas nos momentos em que precisamos
propriedades medicinais e das leis da natureza que
deste Inconsciente Coletivo, desenvolver uma lidar com essas energias, na maternidade ou apenas
regem o ser humano. Logo Quíron ficou conhecido
maneira única de ser em interação com o meio, e observando um bebê, ou mesmo em momentos em Sugestões para leitura complementar e
por seu saber e era procurado por todos que
Jung chamou a isso de Processo de Individuação. que gostaríamos de uma cama com lençóis limpos aprofundamento
precisavam de alívio para suas dores, chegando a
Dessa maneira, o homem, dedicado à tarefa de se e perfumados para deitar e dormir. Somos maternos
ter vários discípulos, que aprendiam medicina com
conhecer, vai aos poucos se percebendo integrado a sempre que, cuidadosa e amorosamente, cuidamos de
ele, sobretudo heróis que iam lutar nas guerras e
um todo que o transcende, ao mesmo tempo em que nós mesmos ou do outro. GRINBERG, L. P. Jung: o homem criativo. São Paulo:
precisavam aprender como curar suas próprias
lida com os desafios concretos do mundo de forma A bipolaridade está presente em cada um dos feridas, como também as de seus companheiros FTD, 1997.
cada vez mais singular e criativa. próprios polos individuais, e assim um educador de luta. Foi um desses alunos, Hércules, quem JUNG, C. G. (org.). O homem e seus símbolos. Rio de
Jung viu no transtorno mental a dificuldade do ego também aprenderá com seu aluno, embora esteja feriu Quíron por engano, pois as suas flechas Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
em se estruturar em meio a forças internas muito no lugar de quem ensina. Da mesma forma, no continham um veneno mortal. Mas como Quíron
MARONI, A. Jung: individuação e coletividade. São
superiores e às vezes em condições de vida difíceis, processo de cura, o curador será curado de sua era um semideus, herdando a divindade de seu
Paulo: Moderna, 1998.
precárias em amor e cuidado, o que em nada ferida enquanto se dedica à cura da ferida do seu pai, era imortal e não morreu. Sua vida, a partir
auxiliavam a pessoa no seu desenvolvimento. Essa paciente, entendendo cura por um processo de busca desse momento, passou a ser um suplício de dor PIERI, P. F. (dir.). Dicionário junguiano. São Paulo:
compreensão do transtorno mental parte de um de superação das dificuldades e de harmonização. e sofrimento, mas ele continuou exercendo a Paulus/Vozes, 2002.
ponto de vista dinâmico, para além da compreensão São inúmeros os exemplos desse Arquétipo, pois medicina, pois a experiência pessoal de lidar com ROUTHGEB, C. L. (coord.). Chaves-resumo das obras
psiquiátrica convencional, mais preocupada em o Curador Ferido está presente na mitologia e na sua própria ferida o fazia compreender melhor os completas: CG Jung. São Paulo: Atheneu, 1998.
descrever sintomas e classificar as doenças. literatura mundial. No Candomblé, por exemplo, caminhos da recuperação, bem como poder aliviar
SILVEIRA, N. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: José
temos a figura de Obaluaê (jovem) e Omulu (velho), a dor alheia o ajudava a suportar a sua própria dor e
Uma das contribuições de Jung que pode nos Álvaro, 1968.
orixás portadores da peste que a espalham e a dava um sentido maior à sua vida.
ajudar a compreender melhor o que ocorre nos
grupos de ajuda e suporte mútuos é sua noção curam. Em um seriado contemporâneo na televisão, Segundo Jung, este Arquétipo está presente em
de Arquétipo do Curador Ferido. A partir do tivemos o médico House, dependente químico e todos nós, em seus dois lados: o lado do ferido e

218 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 219
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

a) na Atenção Primária (AP) em saúde, junto ao 2) A Estratégia de Saúde da Família omo linha d) proporcionar o estabelecimento de parcerias
Estratégia de Saúde da Família (ESF): esta é a prioritária e global de atuação dentro do SUS através do desenvolvimento de ações intersetoriais;
inserção que achamos prioritária, pois nosso projeto e) contribuir para a democratização do conhecimento
coincide inteiramente com os objetivos e estratégias do processo saúde/doença, da organização dos
estabelecidos neste campo tão importante de A saúde da família foi a estratégia escolhida pela
política de saúde brasileira, em conformidade serviços e da produção social da saúde;
atenção pública à saúde para todos. Este é tema do
presente anexo; com avanços internacionais e com as diretrizes f) fazer com que a saúde seja reconhecida como
da Organização Mundial de Saúde (OMS), sendo um direito de cidadania e, portanto, expressão da
discutida e aprovada nas diversas instâncias de qualidade de vida;
b) pelas gerências e coordenações municipais planejamento, participação e controle social do
g) estimular a organização da comunidade para o
do programa de saúde mental: se a integração SUS, para reorientar a assistência no país, dando
efetivo exercício do controle social (apud Costa e
dos grupos de ajuda e suporte mútuos com a prioridade para a atenção básica e promoção em
CARBONE, 2004: 9).
atenção primária não for possível inicialmente, os saúde90. Esta estratégia foi iniciada no país ainda em
grupos podem ser temporariamente iniciados de 1991, com a implantação do Programa de Agentes
Texto 9 forma independente, mas buscando a integração Comunitários em Saúde (PACS). Mais tarde, ganhou Do ponto de vista das estratégias de empoderamento
tão logo seja possível. Além disso, várias outras o nome de Programa de Saúde da Família (PSF), e da presente proposta de grupos de ajuda e suporte
propostas e iniciativas de empoderamento dos e mais recentemente, passou a ser chamado de mútuos, a ESF apresenta inúmeros avanços:
Indicações para a inserção Estratégia de Saúde da Família (ESF), para ganhar o
usuários e familiares, particularmente de suas
dos grupos de ajuda e suporte status de uma estratégia prioritária e global dentro
associações e organizações, devem ser estimuladas
mútuos na atenção primária do SUS, e não apenas como mais um de seus vários a) atua prioritariamente no território, nas casas das
e/ou adotadas pelas gerências de forma associada
em saúde programas já existentes e concorrendo com eles no pessoas, conhecendo de perto a sua realidade e
ou não à atenção básica, como indicado no Anexo 8;
Eduardo Mourão Vasconcelos mesmo nível e status. suas condições reais de vida, visando transformar
junto com a população os fatores e processos que
De acordo com o Ministério da Saúde (1998), os
c) por ONGs e por associações de usuários e aumentam o risco e a vulnerabilidade social e em
objetivos da estratégia são:
1) Introdução familiares: os grupos de ajuda e suporte mútuos saúde, na linha da prevenção e da promoção;
podem ser assumidos por estas organizações e b) valoriza e requer um trabalho baseado nos
associações, até mesmo dentro de um conjunto a) prestar assistência integral, contínua, com princípios da integralidade e da intersetorialidade
Neste texto, gostaríamos de defender a ideia de que
de iniciativas de caráter voluntário e realizadas resolutibilidade e boa qualidade às necessidades de com outros programas e políticas sociais91;
a presente proposta de criação de grupos de ajuda
em rodízio por suas lideranças. Entretanto, devem saúde da população adscrita;
e suporte mútuos em saúde mental pode significar c) permite conhecer a realidade de cada pessoa
buscar sua estabilidade e difusão ampla por meio b) intervir sobre os fatores de risco aos quais a
mais uma proposta importante para a integração ou família, em suas particularidades, construindo
de trabalho remunerado, através de convênios ou população está exposta;
da saúde mental na Estratégia de Saúde da Família estratégias de cuidado mais personalizadas;
recursos oriundos de projetos próprios de renda e
(ESF), não se superpondo e sim complementando c) humanizar as práticas de saúde através do d) possibilita a integração com ou utilização direta
trabalho, de forma a prover bolsas ou salários para
organicamente todas as propostas, sendo estabelecimento de um vínculo entre os profissionais de dispositivos grupais e de educação popular em
os facilitadores. No entanto, esta iniciativa não
implementadas no SUS nesta direção. de saúde e a população;
deve substituir a difusão mais ampla dos grupos via
Como já tínhamos indicado na carta de apresentação a atenção básica e gerência do programa de saúde
91 Conhecer a discussão sobre princípios da integralidade
deste manual, a inserção dos grupos de ajuda e mental, como política pública para todos. 90 Para uma revisão inicial da literatura disponível sobre e da intersetorialidade em saúde e assistência social é
suporte mútuos no campo da saúde e saúde mental o tema, indico os seguintes trabalhos: Morosini e Corbo fundamental para a discussão da promoção da saúde, da
Neste anexo, faremos então uma série de indicações
pode se dar de diferentes formas: (2007); Teixeira e Solla (2006); Castro e Malo (2006); saúde mental e da assistência social. Para isso, sugiro os
para o primeiro tópico, ou seja, a inserção dos Costa e Carbone (2004); Czeresnia e Freitas (2003); Sousa trabalhos de Pinheiro e Mattos (2001, 2003, 2004, 2006,
grupos na Estratégia de Saúde da Família. (2001 e 2002) e Vasconcelos, Eymard (1989 e 1999). 2007a e 2007b), Andrade (2006) e Vasconcelos (2008).

220 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 221
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

saúde e saúde mental, bem como um trabalho usuário (que geralmente inclui a medicação), a sua b) as gestões do então ministro da Saúde José Os grupos de ajuda e suporte mútuos, facilitados
conjunto com as organizações populares locais, família, e com intervenções no ambiente das casas Gomes Temporão no sentido de promover a por lideranças de usuários e familiares, constituem
possibilitando um controle social mais orgânico por e no bairro; difusão da Terapia Comunitária (TC), uma uma estratégia que não se superpõe aos grupos de
parte destas e da população em geral; abordagem criada pelo Prof. Dr. Adalberto Barreto TC, mas os complementam, exatamente naquilo que
e) valoriza o saber local e insere agentes da no Ceará e já em processo de disseminação pelo a abordagem da TC, pelas características de sua
c) o chamado apoio matricial mais global, que país (BARRETO, 2005; www.abratecom.org.br),
população local no trabalho profissionalizado em metodologia e dispositivo grupal, bem como pelo
significa um sistema de integração, capacitação, junto à rede de atenção básica. Trata-se de uma
saúde e na carreira pública, como no caso dos seu público-alvo típico, não é capaz de prover de
supervisão e encaminhamentos responsáveis com abordagem comunitária, inspirada na cultura
Agentes Comunitários de Saúde (ACS). forma integral, intensiva e com real efetividade.
serviços mais complexos de saúde e saúde mental, popular, com reuniões com até 50 pessoas, e que
bem como a ação intersetorial com outras políticas vem demonstrando uma enorme importância como
e programas sociais. As equipes e os serviços de dispositivo de acolhimento imediato do sofrimento Para desenvolver esta tese, gostaríamos de
3. A Estratégia de Saúde da Família (ESF) e a
atenção psicossocial em saúde mental do território difuso na população, particularmente os chamados apresentar os seguintes temas e argumentos:
atenção em saúde mental
têm um papel fundamental neste apoio matricial;
transtornos mentais comuns (FONSECA, 2008).

Vários municípios brasileiros, particularmente a) O alvo e o público diferenciado da TC e dos


d) dentro desta proposta de apoio matricial, em GASMs: as pessoas com transtornos mentais
aqueles que mais avançaram na implantação da ESF Em nossa opinião, ambas as iniciativas são importantes
casos graves ou de crise aguda com riscos, busca-se
e no processo de reforma psiquiátrica, construindo e fundamentais para esta consolidação dos cuidados comuns (PTMC) e as pessoas com transtornos
a internação em serviço de emergência de referência
a sua rede de serviços de atenção psicossocial em à saúde mental na rede de atenção básica no país. mentais severos (PTMS):
na área, se possível em serviço aberto, como nos
saúde mental, também promoveram experiências Entretanto, consideramos que nossa abordagem
CAPS, e em hospitais gerais, e somente quando
muito inovadoras de inserir o cuidado em saúde de grupos de ajuda e suporte mútuos em saúde
isso não for possível, em hospitais psiquiátricos A TC tem o grande mérito de acolher um público e
mental na rede de atenção primária. Embora ainda mental pode significar mais uma proposta
convencionais. A internação, sempre que possível, um tipo de transtorno mental que até agora não era
não tenhamos muitas publicações sistemáticas importante e imprescindível nesta direção,
deverá ser acompanhada pela equipe local da ESF. prioridade da política de saúde mental e do sistema
e abrangentes a respeito, destacam-se hoje as e que não se superpõe e sim complementa
diretrizes emanadas pelo Ministério da Saúde organicamente todas estas propostas de de saúde em geral: o sofrimento difuso e/ou os
(BRASIL, 2003 e 2006) e as coletâneas organizadas integração da saúde mental na ESF. transtornos mentais comuns (TMC).
Mais recentemente, o Ministério da Saúde vem
por Lancetti (s/d) e Loyola (2007). reconhecendo a importância de fortalecer o suporte Nesta direção, nas discussões que temos hoje O sofrimento difuso é entendido pela literatura
Nestas experiências já consolidadas, descritas direto para as equipes da ESF nas áreas mais com nossos companheiros inseridos na gestão dos especializada como aquele que se expressa por
nesta literatura, foram sistematizadas algumas particularizadas de saúde, e tomou duas iniciativas programas de saúde mental e na rede de atenção meio de
formas de intervenção clássicas nesta integração importantes para a atenção básica de modo geral básica, as dúvidas mais imediatas surgiram acerca “queixas somáticas inespecíficas, estados de
da saúde mental na ESF: e particularmente para a sua atuação em saúde da possível superposição de objetivos e de público- mal-estar generalizado, problemas gástricos,
mental: alvo entre a nossa proposta e a da TC. Este é o tema insônia, nervosismo e dores pelo corpo”, e que
da próxima seção deste anexo. representam uma “enorme fatia de usuários da
a) a capacitação e a supervisão continuada dos ACS
a) a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da rede básica que demandam cuidados (...) Tais
e dos profissionais de saúde inseridos nas equipes
Família (NAFS) (Portaria GM nº 154, de 24/1/2008), 4. Uma avaliação comparativa entre a Terapia queixas, por sua vez, apesar de constituírem
(geralmente médicos e enfermeiros) para lidar com
as especificidades do campo; integrado por uma equipe que atua na supervisão e Comunitária (TC) e a proposta dos grupos de problemas de saúde mental considerados de
no suporte das equipes do ESF, com vários tipos de ajuda e suporte mútuos (GASMs) menor gravidade, causam prejuízos e sofrimento
profissionais, mas sempre com um deles do campo significativos tanto para ao sujeitos envolvidos
b) a realização de visitas nas residências de da saúde mental, como uma forma de promover como para os profissionais que os acolhem e que
portadores de transtorno mental grave, com a uma inserção mais incisiva deste campo na atenção Neste terreno, consideramos importante explicitar ainda não recebem capacitação adequada para
provisão de estratégias de cuidado direto junto ao básica; de saída nossa tese central: tanto”. (FONSECA, 2008: 173)

222 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 223
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

Uma categoria similar a esta vem sendo e longo prazos. Por exemplo, dentro das reuniões A experiência internacional de grupos de ajuda e esportivos, religiosos, comunitários e de lazer
sistematizada por estudos epidemiológicos comunitárias da TC, a possibilidade de apenas uma suporte mútuos revela que há uma ampla lista de disponíveis na região e a experiência de conviver
psiquiátricos, a de transtornos mentais comuns pessoa falar por um pouco mais tempo de seus temas e questões que são muito importantes para com eles;
(TMC), que problemas pessoais em cada reunião requer uma se lidar melhor com o cotidiano das PTMS e seus
- como lidar com e avaliar os diferentes tipos de
se manifestam através de queixas somáticas capacidade simbólica e emocional de suportar a familiares. Os grupos dirigidos especificamente
tratamento em saúde mental;
inespecíficas, problemas gástricos, insônia, frustração e de atenção concentrada para a escuta para eles é que possibilitam a ambos desenvolver
do outro que é impossível de ser esperada de uma uma melhor capacidade de trocar suas experiências, - como lidar com a medicação psiquiátrica: ajuste
mal-estar, irritabilidade, sem necessariamente
pessoa acometida pela psicose. Além disso, nas discutir as estratégias de lidar com os desafios no dos remédios, da dosagem, dos efeitos colaterais
preencher os critérios diagnósticos para os
PTMS, a intensidade e a estranheza dos sintomas, dia a dia e sistematizá-los gradualmente. Esta lista etc.;
grandes transtornos mentais (...) e se relacionam
diretamente com variáveis sociodemográficas as limitações no funcionamento social e a gravidade de temas típicos dos grupos para PTMS foi incluída - como lidar com os serviços de saúde mental, com
como baixa renda, baixa escolaridade, precária dos desafios existenciais cotidianos, com sua enorme em outro local deste manual, mas, para efeito seus psiquiatras e demais profissionais, bem como
inserção no mercado de trabalho, precárias redes carga associada de discriminação e segregação, de facilitar sua avaliação na ótica da presente com os serviços de saúde em geral; como avaliar
de apoio social e gênero feminino. (Idem: 174-5) têm muita dificuldade de um acolhimento adequado discussão, vale a pena recolocá-la aqui: o momento de tomar decisões mais difíceis, como
em grupos tão heterogêneos e grandes. mudar de profissional ou de serviço;
Isso pode ser comprovado pela experiência - relatos abertos dos membros do grupo sobre a - bons cuidados com a saúde física: alimentação,
Até recentemente, a prioridade do processo de
que se teve no plano internacional e no Brasil, experiência pessoal de convivência com o transtorno atividades físicas e terapêuticas, sono, prevenção e
reforma psiquiátrica no Brasil tem sido as pessoas
particularmente na primeira fase da reforma mental, sobre seus desafios e as estratégias de acompanhamento de doenças crônicas etc.;
com transtornos mentais severos (PTMS), dado que
psiquiátrica brasileira, na década de 1980, em que o como lidar com eles;
ela é que constituiu historicamente a demanda - a experiência de buscar uma atividade laborativa
modelo inspirador era o da psiquiatria preventiva de
dos hospitais psiquiátricos convencionais, e que - coisas e eventos da vida mais comuns que causam e de trabalho, capacitação e treinamento para o
inspiração norte-americana. A prioridade foi dada
no início da década de 1990 consumiam cerca ansiedade e estresse, e que podem ser evitados, ou trabalho;
a equipes e serviços ambulatoriais lotados na rede
de 96% dos recursos da área de saúde mental. como criar estratégias para lidar com eles; - os vários tipos de família e formas de viver sozinho,
da atenção básica, acreditando-se que ela iria ser
Assim, o descongelamento destes recursos e seu e a experiência de moradia; alternativas e serviços
capaz de acolher a pessoa com de TMS, diminuindo - sentimentos, sintomas e sinais mais comuns que
redirecionamento para serviços extra-hospitalares
a demanda para o cuidado hospitalar especializado. indicam a proximidade de uma crise ou que a pessoa de moradia na região;
exigiram priorizar a substituição da atenção
O que aconteceu foi que estas equipes acabaram deve procurar ajuda imediata; - a experiência de lidar com drogas lícitas (bebidas
hospitalar, através de serviços abertos de atenção
acolhendo a demanda de pessoas com TMS, e - formas de lidar com os sintomas no dia a dia, alcoólicas, café, cigarro etc.) e ilícitas;
psicossocial intensiva voltados para esta clientela.
a clientela com TMG acabou seguindo o mesmo ao alcance das pessoas (exemplo: deixar de fazer
Só recentemente, após ultrapassarmos a barreira - como lidar com o preconceito e a discriminação
circuito direto até a internação hospitalar. Em coisas que causam ansiedade e fazer mais coisas
simbólica de mais de 50% dos recursos da saúde contra o portador de transtorno mental;
outras palavras, precisamos também de uma que dão paz, como caminhadas, pescar, soltar pipa,
mental estarem sendo dirigidos para serviços
metodologia mais diretamente dirigida e capaz de ir dançar, ir ao cinema, visitar amigos etc.); - direitos dos portadores de transtorno mental na
extra-hospitalares, o que aconteceu em 2007, é
um acolhimento mais intensivo, que ofereça uma sociedade e junto a serviços e órgãos públicos;
que o Ministério da Saúde vem ampliando a sua - Plano de Crise;
continência de médio e longo prazos às PTMS na
agenda, e incluindo também a clientela de PTMC - os direitos civis do portador de transtorno mental:
comunidade, como uma estratégia de continuidade - os cuidados necessários durante e após a
na comunidade. A TC é uma abordagem tipicamente o que é e como lidar com a incapacidade civil,
do processo de reforma psiquiátrica no país. internação psiquiátrica, por parte da própria pessoa,
voltada para este público. tutela, imputabilidade (não responsabilidade por
seus familiares, amigos e companheiros de grupo; crimes) etc.;
Contudo, embora os grupos de TC possam também
b) O processo de recuperação para as PTMS é - boas formas de suporte e de tratamento, em - a luta política por serviços e por uma política de
acolher de forma imediata os PTMS, sua metodologia
extremamente complexo e multidimensional, envolvendo serviços sociais, de saúde e saúde mental de
é incapaz de abordar toda a complexidade, a saúde mental na sociedade; a reforma psiquiátrica e
uma variedade de temas e desafios e um processo longo qualidade disponíveis na região;
intensidade emocional e a estranheza gerada a luta antimanicomial; a participação nos conselhos
pelos sintomas e manifestações do TMS a médio de experimentação cotidiana e de troca de experiências: - recursos culturais, musicais, artísticos, sociais, de política social e de saúde;

224 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 225
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

- como difundir a luta pelos direitos dos portadores os familiares e cuidadores mais diretos se sentem um setting muito protegido que garanta a plena a capacitação adequada dos facilitadores. Contudo,
de transtorno mental: educação política, materiais impossibilitados de falarem de seus sentimentos e expressão dos participantes. Assim, a experiência as atuais dificuldades para se gerar novas linhas
e formas de educação popular em saúde e saúde temores mais profundos: o medo da agressividade internacional demonstra que qualquer abordagem de pagamento de pessoal nos governos municipais
mental etc.; da PTMS; o peso do cuidado em termos financeiros, comunitária e leiga exige necessariamente, tem demonstrado que, no Brasil, a expansão de um
de tempo de cuidar, de renúncia a projetos de vida pelo menos nos grupos de ajuda mútua, uma projeto deste tipo dependerá da montagem de um
- a luta pelos direitos civis, políticos e sociais e a
pelo cuidador principal; os sintomas e estresses grupalização separada de usuários e de familiares. programa especial do Ministério da Saúde, com
aliança com outros movimentos sociais populares,
gerados pelo cuidado contínuo; o desejo eventual Isso entretanto não significa negar a possibilidade editais específicos, para se repassar aos municípios
partidos políticos, ONGs, intelectuais e profissionais
de que a PTMS morra e pudesse dar um alívio ou mesmo a necessidade de reuniões eventuais de interessados os recursos necessários para a
engajados etc.
na responsabilidade interminável de cuidado; os ajuda mútua de um segmento em que se convida implantação deste programa a nível local.
temores de que após a morte do cuidador a única uma liderança mais avançada do outro segmento,
Como se pode depreender a partir desta lista, as alternativa será a internação da PTMS etc. Estes para troca de experiências, bem como desconhecer
sentimentos e receios precisam ser reconhecidos, que os grupos e projetos de suporte mútuo devem b) A importância de se avaliar a rede de atenção em
PTMS e os seus familiares requerem um espaço
expressos e eventualmente despotencializados ser predominantemente conjuntos. saúde mental e as suas demandas mais prioritárias
próprio e específico de troca de experiências e de
de sua enorme energia psíquica original, para a em cada município, para decidir sobre o exato
sistematização de suas estratégias de lidar com o
diminuição da angústia e do estresse gerado pelo momento de induzir o presente projeto:
transtorno no cotidiano.
cuidado contínuo e para a construção de alternativas 5. Desafios adicionais e algumas indicações
Além disso, hoje, a maioria dos CAPS já instalados para o processo de inserção dos grupos de
mais leves e socializadas de cuidado. Assim, os
está com sua capacidade de acolhimento ajuda e suporte mútuos na rede de atenção Há vários municípios no país cuja rede de saúde
grupos de TC, pelo fato de reunirem usuários e
praticamente esgotada, ao mesmo tempo em básica em saúde mental é ainda muito precária, com falta ou
familiares em uma mesma reunião, impossibilitam
que mostra uma tendência para a cristalização precariedade em termos de número adequado de
inteiramente este processo.
e a continuidade da dependência da clientela profissionais, serviços, instalações físicas, itens
em relação aos serviços, sem demonstrar uma De forma similar, os usuários têm uma gama enorme Nas discussões sobre este manual com profissionais de custeio e alimentação, transporte etc. Em geral,
boa capacidade de reinserir sua clientela mais de reclamações e uma visão muito própria de suas e gestores de programas de saúde mental e da nestes municípios, as prioridades serão outras, e
efetivamente na comunidade. Neste sentido, os dificuldades familiares. Os agentes comunitários atenção básica, vários temas e desafios adicionais não propriamente a implementação imediata do
grupos de ajuda e suporte mútuos significam uma de saúde (ACS) conhecem muito bem isso em suas vêm emergindo e merecendo nossa atenção. Seria presente projeto. Entretanto, há outros em que
alternativa de acolhimento fora dos serviços, visitas domiciliares, quando o ambiente não permite impossível abordar todos eles neste espaço, mas a rede foi implantada há mais tempo e está hoje
em locais de reuniões na própria comunidade, escutar cada uma das partes em separado, o que gostaríamos de nos deter rapidamente pelos menos mais bem aparelhada, com equipes e lideranças de
estimulando a autonomização e a independência geralmente provoca um conflito de visões muito naquelas questões que consideramos como as usuários e familiares mais motivadas e estimuladas
dos usuários e familiares em relação aos serviços, diferenciadas, entre a que é apresentada pelo principais e mais desafiadoras: pela militância antimanicomial. Nestes municípios,
desafogando-os e aumentando sua capacidade de familiar e a que é expressa pela PTMS, às vezes sem dúvida alguma, este projeto pode representar
assistência para novos usuários. gerando acusações recíprocas e aumento de tensão uma prioridade fundamental.
entre eles. a) A importância central de se identificar fontes de
financiamento e recursos apropriados para a criação
c) Uma abordagem inteiramente capaz de acolher Assim, o enfrentamento das diferenças e conflitos, da bolsas, bem como para a seleção, a capacitação c) A importância do profissional de saúde mental do
e dar continência a todas as especificidades e com toda a sua intensidade, pode até ser feito em e a supervisão permanente dos facilitadores, nos NASF para a implementação do projeto:
desafios próprios das PTMS e dos familiares requer conjunto, em processos similares ao que acontece três níveis de governo:
grupos diferenciados de ajuda mútua de usuários e nas terapias familiares, mas isso requer a presença
de familiares, o que não ocorre na TC. de um profissional muito bem capacitado e em No atual momento, as equipes do NASF estão
posição de destaque e poder para lidar com este Este nos parece o maior desafio imediato para o sendo montadas em todo o país, necessariamente
nível mais elevado de tensão e conflito e com presente projeto, e exigirá dos gestores um enorme com pelo menos um profissional de saúde mental.
Nossa experiência em grupos de ajuda mútua de uma enorme carga de material desconhecido e investimento em discussão e negociação para se Este deverá ser plenamente capacitado para atuar
familiares demonstra que, na presença da PTMS, inconsciente geralmente mobilizado, bem como de identificar os recursos, para processar a seleção e no presente projeto, como apoiador permanente,

226 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 227
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

podendo assumir as posições de facilitador dificuldades estruturais, pois precisam continuar - formas adicionais de convite podem ser feitas de racionalização (justificativas bem montadas do
temporário onde não haja a dupla de lideranças já eles mesmos seu tratamento, e têm limitações nas visitas domiciliares, nas demais atividades e ponto de vista lógico e racional) e de denegação
prontas para assumir o trabalho; como supervisor geradas pelo próprio transtorno, que os impossibilita particularmente no atendimento ambulatorial na (desconhecimento ou completa negação de eventos
dos facilitadores; e como gerenciador mais geral do de terem uma carga horária e de trabalho no mesmo rede básica de saúde; ocorridos durante o uso mais intenso da droga)
projeto no seu território. nível que os ACS. Da mesma forma, os familiares utilizados não podem ser confrontados nos grupos
- nos convites, chamar a atenção para a solidão e o
facilitadores mantêm suas responsabilidades de isolamento das PTMS e de seus cuidadores, e daí a que estamos propondo. Assim, estas pessoas, neste
cuidar da PTMS em sua própria família. importância da busca de apoio, de conhecimento e estágio do enfrentamento do abuso, bem como
d) O cuidado necessário para não desestimular os seus familiares, devem ser encaminhadas para os
Até o presente momento, com apenas uma da troca de experiências proprcionada pelos grupos
agentes comunitários de saúde (ACS) em relação serviços especializados para abuso de drogas, ou
experiência recente de implementação de bolsas de de ajuda mútua;
ao trabalho em saúde mental, descarregando seus
trabalho realizada na cidade do Rio de Janeiro, é para os grupos de Alcoólicos ou Narcótico Anônimos.
encargos para o facilitador inserido no território: - enfatizar o fato dos grupos garantirem o segredo
impossível fazer qualquer recomendação definitiva Nos estágios mais avançados da recuperação,
sobre os assuntos e sobre as pessoas que
sobre o limite máximo de carga horária ou sobre estas pessoas podem ter superado esta fase de
frequentam as reuniões;
Atualmente, em boa parte da rede de atenção o número ideal de grupos a serem facilitados por enfrentamento agudo com a droga, ou conseguido
- em algumas áreas, o projeto pode ser iniciado fazer um uso mais funcional, menos impulsivo e
básica no Brasil, a agenda de trabalho dos ACS semana por cada dupla de usuários ou familiares.
junto ou com a clientela dos CAPS, que estão prejudicial dela, e podem então querer investir no
cobre uma vasta lista de questões de saúde, e estes Contudo, nossa intuição hoje vai no sentido de que
mais acostumados com reuniões, e geralmente tratamento de seus problemas pessoais de saúde
estão acumulados de trabalho e muito cansados. se deve iniciar o projeto com apenas um grupo
sem problemas graves com a discriminação ou mental. Nesta etapa, se for o caso de transtornos
Além disso, geralmente ganham salário mínimo ou semanal, para que os novos facilitadores ganhem
segregação pela comunidade. severos, que constituem a prioridade para os nossos
apenas um pouco mais, com uma carga semanal de confiança e segurança, e que a expansão gradual
trabalho de 40 horas. Neste contexto, a inserção de da carga de trabalho não deva exceder a marca de 3 grupos, a participação nos grupos de ajuda mútua
facilitadores usuários e familiares no território pode grupos semanais. é possível e pode ser efetivamente útil para estas
f) As previsíveis dificuldades geradas pela
induzir a falsa impressão aos ACS de que poderiam pessoas, e geralmente não apresenta riscos para os
associação dos problemas de saúde mental com o
deixar suas tarefas e atribuições no campo da saúde demais participantes.
abuso de drogas e com a violência social:
mental nas mãos dos facilitadores recém chegados. e) Estratégias para lidar com a segregação e a Já em relação aos problemas gerados pela
Para prevenir isso, pensamos que alguns medidas vergonha em relação ao transtorno mental severo convivência ou presença próxima da violência, é
serão extremamente necessárias: e à participação nas reuniões no processo de Nos bairros populares e nas favelas, sabemos preciso tomar alguns cuidados importantes, e neste
mobilização e de formação dos grupos: que os problemas de saúde mental emergem hoje sentido podemos fazer as seguintes recomendações
cada vez mais associados ao abuso de drogas, à iniciais para se lidar com eles nos grupos:
- estabelecer tarefas muito bem definidas e
convivência com a violência diária na vida urbana
diferenciadas para os ACS e os facilitadores, sendo Os PTMG e seus familiares em geral têm
ou comunitária local, ou mesmo na própria família.
que estes últimos devem se centrar na oferta constrangimentos em se apresentar como tais, - em primeiro lugar, os facilitadores devem ter claro
A atual difusão do crack em praticamente todo o
dos grupos de ajuda mútua e, mais tarde, nas além de serem objeto de discriminação por parte que não são heróis salvadores das pessoas ou da
território brasileiro vem deteriorando esta situação.
iniciativas de suporte mútuo e outras estratégias de da comunidade. Além disso, em algumas favelas, a comunidade, e que se trata de problemas complexos
empoderamento deles resultantes; violência e o silêncio induzidos pelo tráfico de drogas Em relação ao abuso de drogas, é preciso ter
que devem ser abordados com muito cuidado;
pode dificultar a mobilização de interessados. Para claro que a metodologia aqui apresentada para
- discutir a possibilidade de que, pelo menos - o registro de queixa nas delegacias ou a denúncia
isso, é possível pensar nas seguintes alternativas: grupos de ajuda mútua não tem como lidar com
inicialmente, a bolsa dos facilitadores tenham aberta à polícia devem ser realizados apenas em
os inúmeros desafios trazidos por aquelas pessoas
um diferencial financeiro a menos em relação ao casos muito graves e urgentes, em que há riscos
em que o abuso de drogas ou a abstinência
ganho dos ACS, para reiterar-lhes de que têm - o início das atividades pode se dar através de convite sérios para a segurança das pessoas e em que os
gerada pela falta delas constitui o problema mais
responsabilidades muito mais amplas na atenção à nas igrejas e reuniões comunitárias para palestras de demais recursos de mediação foram esgotados, e
urgente. Elas apresentam processos e sintomas
saúde mental no território em foco; sempre após um cuidadoso exame da situação com
esclarecimento sobre temas da saúde mental em geral, somáticos agudos que exigem cuidados médicos
- enfatizar que os usuários facilitadores têm suas nas quais se convida a todos, de forma indiscriminada; imediatos, bem como os constantes mecanismos ajuda dos profissionais apoiadores de saúde mental,

228 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 229
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL TEXTOS DE APROFUNDAMENTO TEÓRICO-CONCEITUAL

ou da assistência social e de saúde. Estes cuidados 6. Considerações finais Referências de Janeiro: IMS/UERJ/ABRASCO, 2001.
são imprescindíveis particularmente quando há riscos PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (orgs.). Construção
de retaliação ou de se fomentar a ação de traficantes, da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em
milícias ou de outros grupos de marginais locais, que No momento de concluir este texto, é importante ANDRADE, L. O. M. A saúde e o dilema da
intersetorialidade. São Paulo: Hucitec, 2006. saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/ABRASCO, 2003.
muitas vezes detêm o controle do território; lembrar que nesta fase de implantação de uma nova
abordagem, o importante não é a quantidade de BARRETO, A. P. Terapia comunitária passo a passo. PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (orgs.). Cuidado:
- nas reuniões, os facilitadores devem buscar as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro:
grupos criados, mas a qualidade de um número Fortaleza: Gráfica LCR, 2005.
esclarecer e estimular a avaliação de todos os HUCITEC/IMS/UERJ/ABRASCO, 2004.
mais reduzido de experiências piloto, que
aspectos e detalhes da situação, antes de qualquer BRASIL – MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde mental e
devem ser acompanhadas e supervisionadas PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (orgs.). Gestão em
recomendação de ação; atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários
com todo cuidado. Neste etapa, é importante redes: práticas de avaliação, formação e participação
– inclusão das ações de saúde mental na atenção
- nos casos menos graves e urgentes, é sempre assegurar a nossa capacidade de monitorá-las, de na saúde. Rio de Janeiro: CEPESC/ABRASCO/IMS-
básica. Brasília, 2003.
necessário valorizar as experiências prévias e os fazer correções de rumo, de realizar as adaptações UERJ, 2006.
recursos que a própria pessoa já possui para lidar locais e as mudanças mais gerais que forem BRASIL – MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política nacional
com tais situações ou para buscar orientação de atenção básica. Brasília, 2006. PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (orgs.). Razões
necessárias em sua metodologia, para assegurar
(por exemplo, através de vínculos e contatos públicas para a integralidade em saúde: o cuidado
bons resultados e a possibilidade de se ter um CASTRO, A.; MALO, M. SUS: ressignificando a
com familiares e pessoas mais experientes e de como valor. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/CEPESC/
bom efeito demonstrativo e persuasivo de promoção da saúde. São Paulo: Hucitec, 2006.
referência na comunidade); ABRASCO, 2007b.
experiências bem sucedidas. COSTA, E. M. A.; CARBONE, M. H. Saúde da família:
PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A.; BARROS, M. E.
- é também importante valorizar a experiência Neste processo, temos certeza de que novos uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro:
B. (orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da
anterior dos demais participantes, perguntando se desafios irão imergir na implementação dos grupos Rubio, 2004.
integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de
já viveram situações similares, como enfrentaram a em qualquer um dos ambientes de inserção na CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M (orgs.). Promoção Janeiro: IMS/UERJ/CEPESC/ABRASCO, 2007a.
situação ou que sugestões fariam para a pessoa em rede de saúde e saúde mental, mas acreditamos da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de
foco; em caso de não haver experiência prévia, pode que na atenção básica em saúde podemos ter um SOUSA, M. F. Agentes comunitários de saúde:
Janeiro: FIOCRUZ, 2003.
se propor a discussão e a pesquisa de todos até a número maior de perguntas e problemas, dado lidar choque de povo. São Paulo: Hucitec, 2001.
próxima reunião, quando o tema pode ser retomado FONSECA, M. L. Sofrimento difuso nas classes
com uma dinâmica social muito mais variada e SOUSA, M. F. Os sinais vermelhos do PSF. São
com mais subsídios, desde que resguardando o populares no Brasil: uma revisão da perspectiva do
complexa, e com um leque de responsabilidades já Paulo: Hucitec, 2002.
sigilo e os dados que possam gerar a identificação nervoso. In: VASCONCELOS, E. M. (org.). Abordagens
bastante amplo. Por outro lado, em nossos contatos
das pessoas envolvidas ou a ação indesejada de Psicossociais, vol. II: reforma psiquiátrica e saúde TEIXEIRA, C. F.; SOLLA, J. P. Modelo de atenção à
iniciais com os ACS, o projeto têm mobilizado um mental na óptica da cultura e das lutas populares.
outros membros e grupos da comunidade; saúde: promoção, vigilância e saúde da família.
forte interesse, na medida em que eles pressentem São Paulo: Hucitec, 2008 Salvador: EDUFBA, 2006.
- ainda é possível sugerir uma próxima reunião o enorme potencial de cuidado e suporte que ele
LANCETTI, A. Saúde mental e saúde da família. VASCONCELOS, E. M. A nova assistência social: a
temática, para melhor discutir o assunto, podendo poderá proporcionar para os usuários e familiares,
Saúdeloucura nº 7. São Paulo: Hucitec, s/d. construção do SUAS no Brasil e no Rio de Janeiro.
ou não convidar pessoas ou profissionais mais sem necessariamente aumentar significativamente
capazes de orientar o grupo sobre o problema. a sua carga direta de trabalho. LOYOLA, C. M. D. Saúde mental na atenção básica. São Paulo: Hucitec, 2008 (no prelo).
Cadernos IPUB nº 24. Rio de Janeiro: Instituto de VASCONCELOS, Eymard M. Educação popular em
Esta são apenas algumas recomendações De qualquer modo, esperamos, por parte de
Psiquiatria da UFRJ, 2007. saúde. São Paulo: Hucitec, 1988.
mais gerais, pois é impossível indicar os todos os leitores interessados, novas e variadas
encaminhamentos mais adequados sem conhecer contribuições e sugestões para vencer os desafios MOROSINI, M. V. G. C.; CORBO, A. D’A. Modelos VASCONCELOS, Eymard M. Educação popular e a
os detalhes e particularidades de cada situação. e promover o aperfeiçoamento desta metodologia. de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: atenção à saúde da família. São Paulo: Hucitec, 1999.
As questões podem ser enviadas através de nosso FIOCRUZ/Escola Politécnica de Saúde Joaquim
contato indicado no final da carta de apresentação Venâncio, 2007.
deste manual, e desde já agradecemos todas as Site da internet
PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (orgs.). Os sentidos da
iniciativas neste sentido. integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio www.abratecom.org.br

230 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 231
apêndice

Apêndices

Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 233


apêndice apêndice

Apêndice 1 TABELA 2

TABELAS DE FASES DOS VÁRIOS TIPOS DE REUNIÃO REUNIÃO AJUDA MÚTUA TIPO “TEMA ESPECÍFICO SEM CONVIDADOS”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE


TABELA 1 A1 – Recepção - Acolhimento geral, em
REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA TIPO “ARROZ COM FEIJÃO” especial dos novos membros
A2 - Apresentação - Apresentação de todos com
FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE
ou sem dinâmica de grupo
A1 – Recepção - Acolhimento geral, em especial A- Acolhimento A3 – Dinâmica simples de quebra- - Estratégia para a
dos novos membros - Regras da reunião gelo (opcional) descontração do grupo,
A2 – Apresentação - Apresentação de todos com ou (10 a 15 minutos) através de uma dinâmica
sem dinâmica de grupo A4 – Exposição das regras básicas - Contrato para o
A) Acolhimento A3 – Dinâmica simples de quebra- - Estratégia para a descontração da reunião (obrigatório em casos de funcionamento da reunião
- Regras da reunião gelo (opcional) do grupo, através de uma pessoas novas na reunião)
(10 a 15 minutos) dinâmica B) Relato e troca Nesta fase, acontece o relato e - “Tema específico sem
A4 – Exposição das regras básicas - Contrato para o funcionamento de experiências troca de experiências pessoais e convidados”
da Reunião (obrigatório em casos da reunião a partir de um de apoio emocional, mas a partir
de pessoas novas na reunião) tema previamente do debate de um tema específico
escolhido, estimulados escolhido previamente pelos
B) Relatos e trocas - Os participantes são livres - Relato livre de
por uma apresentação participantes.
de experiências para fazer perguntas, relatar experiências
rápida por um
(cerca de 1 hora) episódios de sua história
participante do grupo
pessoal, suas vivências e
definido anteriormente
emoções, vitórias e conquistas
(cerca de 1 hora)
alcançadas, estratégias bem
e/ou malsucedidas C) Síntese reflexiva da - Término do momento da - Fixar os principais ganhos da
exposição e do debate apresentação do tema e do debate, reunião, mostrando a importância
C) Síntese reflexiva - Término do momento dos - Fixar os principais ganhos da
ocorrido (15 minutos) com o resumo das principais lições do grupo, estimulando no grupo
e emocional dos depoimentos e resumo das reunião, mostrando a importância
aprendidas, as conclusões, as sua continuidade e mobilização
depoimentos (15 principais lições aprendidas, do grupo, estimulando no grupo
sugestões e propostas tiradas no emocional para garantir a
minutos) as conclusões, as sugestões e sua continuidade e mobilização
decorrer da discussão presença na reunião seguinte
propostas tiradas no decorrer da emocional para garantir a
discussão presença na reunião seguinte D) Encaminhamentos - Espaço para notícias de interesse - Datas comemorativas,
sociais, encerramento geral, encaminhamentos sociais aniversários e eventos comuns
D) Encaminhamentos - Espaço para notícias de interesse - Datas comemorativas, e confraternização (15 e administrativos do grupo e - Planejamentos da próxima
sociais, geral, encaminhamentos sociais aniversários e eventos comuns; min.) elaboração do planejamento das reunião e das tarefas do grupo
encerramento e e administrativos do grupo e - Planejamentos da próxima atividades futuras - Confraternização com lanche,
confraternização elaboração do planejamento das reunião e das tarefas do grupo; musicas e poesias
(15 min.) atividades futuras - Confraternização com lanche,
musicas e poesias

234 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 235
apêndice apêndice

TABELA 3 TABELA 4

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA TIPO “ARROZ COM FEIJÃO COM CONVIDADO” REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA DO TIPO “TROCA DE EXPERIÊNCIAS GRUPAIS A PARTIR DE RELATO
DE LIDERANÇA CONVIDADA”
FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE
A1 – Recepção - Acolhimento geral, em FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE
especial dos novos membros A1 – Recepção - Acolhimento geral, em
A2 – Apresentação - Apresentação de todos com especial dos novos membros
ou sem dinâmica de grupo A2 – Apresentação - Apresentação de todos com
A) Acolhimento A3 – Dinâmica simples de - Estratégia para a ou sem dinâmica de grupo
- Regras da reunião (10 a quebra-gelo (opcional) descontração do grupo, através A) Acolhimento A3 – Dinâmica simples de - Estratégia para a
15 minutos) de uma dinâmica - Regras da reunião (10 a 15 quebra-gelo (opcional) descontração do grupo,
A4 – Exposição das regras - Contrato para o minutos) através de uma dinâmica
básicas da reunião (obrigatório funcionamento da reunião A4 – Exposição das - Contrato para o
em casos de pessoas novas na regras básicas da reunião funcionamento da reunião
reunião) (obrigatório em casos de
B) Relatos e trocas de - Nesta fase, acontece a - “Arroz com feijão com pessoas novas na reunião)
experiências a partir exposição da experiência convidado” B) Trocas de experiências - Relato e troca de - “Troca de experiências
do relato de usuário ou de vida por um usuário a partir do relato de uma experiências grupais, grupais a partir de relato
liderança externa (cerca convidado com nível mais liderança de outro grupo de a partir do convite e do de liderança convidada”
de 1 hora) avançado de recuperação, ajuda ou suporte mútuos relato de uma liderança
seguida de debate pelos (cerca de 1 hora) externa de grupo de mútua
demais membros do grupo, ajuda e/ou suporte mútuo
com trocas de experiências
e apoio emocional. C) Síntese reflexiva da - Término do momento da - Fixar os principais ganhos
apresentação e do debate apresentação e do debate da reunião, mostrando
C) Síntese reflexiva e - Término do momento da - Fixar os principais ganhos ocorrido (15 minutos) com as principais lições a importância do grupo,
emocional do debate e exposição e do debate entre os da reunião, mostrando aprendidas, as conclusões, as estimulando no grupo sua
dos depoimentos membros, com o resumo das a importância do grupo, sugestões e propostas tiradas continuidade e mobilização
(15 minutos) principais lições aprendidas, estimulando no grupo sua no decorrer da discussão emocional para garantir a
as conclusões, as sugestões e continuidade e mobilização presença na reunião seguinte
propostas tiradas no decorrer emocional para garantir a
da discussão presença na reunião seguinte D) Encaminhamentos - Espaço para notícias - Datas comemorativas,
sociais, encerramento e de interesse geral, aniversários e eventos
D) Encaminhamentos - Espaço para notícias - Datas comemorativas, confraternização (15 min.) encaminhamentos sociais e comuns
sociais, encerramento e de interesse geral, aniversários e eventos comuns administrativos do grupo e - Planejamentos da próxima
confraternização (15 min.) encaminhamentos sociais e - Planejamentos da próxima elaboração do planejamento reunião e das tarefas do
administrativos do grupo e reunião e das tarefas do grupo das atividades futuras grupo
elaboração do planejamento - Confraternização com lanche, - Confraternização com
das atividades futuras musicas e poesias lanche, musicas e poesias

236 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 237
apêndice apêndice

TABELA 5 TABELA 6

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA TIPO “TROCA DE EXPERIÊNCIAS DE VIDA A PARTIR DO RELATO/ REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA DO TIPO “ESPAÇO PARA ESTUDO E DEBATE SEM CONVIDADOS”
REPASSE DE INFORMAÇÕES PROFISSIONAIS DE PROFISSIONAIS OU OUTRAS LIDERANÇAS
SOCIAIS CONVIDADAS” FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE
A1 – Recepção - Acolhimento geral, em
FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE
especial dos novos membros
A) Acolhimento A1 – Recepção - Acolhimento geral, em
A2 – Apresentação - Apresentação de todos com
- Regras da reunião (10 a especial dos novos membros
ou sem dinâmica de grupo
15 minutos)
A2 – Apresentação - Apresentação de todos com
ou sem dinâmica de grupo A) Acolhimento A3 – Dinâmica simples de - Estratégia para a
A3 – Dinâmica simples de - Estratégia para a - Regras da reunião (10 a 15 quebra-gelo (opcional) descontração do grupo, através
quebra-gelo (opcional) descontração do grupo, através minutos) de uma dinâmica
de uma dinâmica A4 – Exposição das - Contrato para o
A4 – Exposição das - Contrato para o regras básicas da reunião funcionamento da reunião
regras básicas da reunião funcionamento da reunião (obrigatório em casos de
(obrigatório em casos de pessoas novas na reunião)
pessoas novas na reunião)
B) Debate e troca de - Reunião para estudo - Espaço para estudo e
B) Trocas de experiências - Relato/explanação e - Troca de experiências de experiências a partir de e discussão de texto ou debate sem convidados
a partir do relato de um troca de experiências de vida a partir da exposição estudo de textos escolhidos publicação específica
profissional ou liderança vida, a partir da exposição de um convidado “amigo” previamente (cerca de 1
de não usuário convidados de um convidado sobre do grupo de ajuda mútua hora)
(cerca de 1 hora) tema relevante - Espaço de informação
C) Síntese reflexiva do - Término do momento - Resumo do novo saber
C) Síntese reflexiva da Término do momento - Resumo do novo saber debate suscitado pelo do debate suscitado pelo - Fixar os principais ganhos
apresentação e do debate da apresentação e do - Fixar os principais ganhos estudo dos textos ( 15 estudo de texto específico da reunião, mostrando
ocorrido (15 minutos) debate com as principais da reunião, mostrando minutos) entre os membros do grupo, a importância do grupo,
informações aprendidas, as a importância do grupo, depoimentos e resumo estimulando no grupo sua
conclusões, as sugestões e estimulando no grupo sua das principais aspectos continuidade e mobilização
propostas tiradas no decorrer continuidade e mobilização aprendidos, as conclusões, as emocional para garantir a
da discussão emocional para garantir a sugestões e propostas tiradas presença na reunião seguinte
presença na reunião seguinte no decorrer da discussão.

D) Encaminhamentos - Espaço para notícias - Datas comemorativas, D) Encaminhamentos - Espaço para notícias - Datas comemorativas,
sociais, encerramento e de interesse geral, aniversários e eventos comuns sociais, encerramento e de interesse geral, aniversários e eventos comuns
confraternização (15 min.) encaminhamentos sociais e - Planejamentos da próxima confraternização (15 min.) encaminhamentos sociais e - Planejamentos da próxima
administrativos do grupo e reunião e das tarefas do grupo administrativos do grupo e reunião e das tarefas do grupo
elaboração do planejamento - Confraternização com lanche, elaboração do planejamento - Confraternização com lanche,
das atividades futuras musicas e poesias das atividades futuras musicas e poesias

238 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 239
apêndice apêndice

TABELA 7 TABELA 8

REUNIÃO DE AJUDA MÚTUA DO TIPO: “ENCONTRO COM MATERIAL DE AUDIOVISUAL COM OU REUNIÃO DE DISCUSSÃO TEMÁTICA E PROPOSIÇÃO DE OUTRAS INICIATIVAS DE AJUDA E
SEM CONVIDADOS” SUPORTE MÚTUOS

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS PALAVRAS-CHAVE
A1 – Recepção - Acolhimento geral, em especial dos A1 – Recepção - Acolhimento geral, em especial
novos membros dos novos membros
A2 – Apresentação - Apresentação de todos com ou sem A2 – Apresentação - Apresentação de todos com ou
dinâmica de grupo sem dinâmica de grupo
A)Acolhimento A3 – Dinâmica simples de - Estratégia para a descontração do A) Acolhimento A3 – Dinâmica simples de quebra- - Estratégia para a descontração
- Regras da reunião quebra-gelo (opcional) grupo, através de uma dinâmica - Regras da reunião gelo (opcional) do grupo, através de uma
(10 a 15 minutos) (10 a 15 minutos) dinâmica

A4 – Exposição das - Contrato para o funcionamento da A4 – Exposição das regras básicas - Contrato para o funcionamento
regras básicas da reunião reunião da reunião (obrigatório em casos da reunião
(obrigatório em casos de de pessoas novas na reunião)
pessoas novas na reunião) B) Debate em torno - Reuniões para discussão - Transição entre ajuda
B) Debate e troca de - Reunião para assistir - Encontro com material de de perspectivas de de temas que levem a mútua e suporte mútuo (com
experiências após a filmes relevantes para audiovisual com ou sem suporte mútuo (cerca iniciativas em direções iniciativas em horários
apresentação de o grupo, previamente convidados de 1 hora) como: necessidades comuns diferentes das reuniões de
filmes (cerca de 1 escolhidos, seguido de dos participantes, direitos, ajuda mútua)
hora) debate iniciativas de luta, projetos
de trabalho e moradia, entre
C) Síntese reflexiva - Término do momento do - Resumo do novo saber outros
do debate suscitado debate após a exibição do - Fixar os principais ganhos da
C) Síntese reflexiva - Término do momento do debate - Fixar os principais ganhos da
pelo filme (15 filme reunião, mostrando a importância
das principais em torno das propostas de reunião, mostrando a importância
minutos) do grupo, estimulando no grupo sua
propostas de suporte mútuo levantadas, com do grupo, estimulando no grupo
continuidade e mobilização emocional
suporte-mútuo o convite para outras reuniões sua continuidade e mobilização
para garantir a presença na reunião
veiculadas na de organização das atividades ou para garantir a presença na
seguinte
reunião (15 minutos) projetos. reunião seguinte
D) Encaminhamentos - Espaço para notícias de - Datas comemorativas,
D) Encaminhamentos - Espaço para notícias - Datas comemorativas, aniversários e sociais, interesse geral, encaminhamentos aniversários e eventos comuns
sociais, de interesse geral, eventos comuns encerramento sociais e administrativos do grupo - Planejamentos da próxima
encerramento e encaminhamentos sociais e - Planejamentos da próxima reunião e e confraternização e elaboração do planejamento das reunião e das tarefas do grupo
confraternização (15 administrativos do grupo e das tarefas do grupo (15 min.) atividades futuras - Confraternização com lanche,
min.) elaboração do planejamento - Confraternização com lanche, musicas e poesias
das atividades futuras musicas e poesias

240 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 241
apêndice apêndice

TABELA 9

REUNIÃO DE SUPORTE MÚTUO DO TIPO: “ATIVIDADE CONJUNTA DE LAZER, TURISMO E


ESPORTE”

FASES DA REUNIÃO DESCRIÇÃO / ETAPAS


A1 – Recepção
PALAVRAS-CHAVE
- Acolhimento geral, em especial Plano e cartão
de crise
dos novos membros
A2 – Apresentação - Apresentação de todos com ou
sem dinâmica de grupo
A) Acolhimento A3 – Dinâmica simples de quebra- - Estratégia para a descontração
- Regras da reunião gelo (opcional) do grupo, através de uma
(10 a 15 minutos) dinâmica
A4 – Exposição das regras básicas - Contrato para o funcionamento
da Reunião (obrigatório em casos de da reunião
pessoas novas na reunião)
B) Conversa - Organização entre os - Encontro do grupo para
entre os membros membros do grupo de atividades combinar atividades
do grupo para a conjuntas, como: irem juntos a culturais e de lazer
organização de uma cinema, jogos esportivos, festas,
atividade conjunta eventos públicos, viagens de
(cerca de férias, entre outras, se preciso,
1 hora) buscando apoio de serviços e
programas de saúde mental ou
outras organizações sociais
- Aberta para a participação
de pessoas portadoras ou não de
transtorno mental.
C) Síntese reflexiva - Término do momento da - Fixar os principais ganhos da
das principais conversa em torno das propostas de reunião, mostrando a importância
propostas de suporte mútuo levantadas, com a do grupo, estimulando no grupo
suporte-mútuo opção por uma das atividades sua continuidade e mobilização
veiculadas na - Divisão de tarefas para garantir a presença na
reunião (15 minutos) reunião seguinte
D) Encaminhamentos - Espaço para notícias de interesse - Datas comemorativas,
sociais, geral, encaminhamentos sociais aniversários e eventos comuns
encerramento e e administrativos do grupo e - Planejamentos da próxima
confraternização (15 elaboração do planejamento das reunião e das tarefas do grupo
min.) atividades futuras - Confraternização com lanche,
musicas e poesias

242 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 243
apêndice apêndice

Apêndice 2 pela pessoa, junto aos documentos pessoais. Em I) Plano de Crise holandês
caso de se estar em um município que já implantou
o Cartão SUS, o cartão de crise pode ser inserido
PLANO E CARTÃO DE CRISE nele, devendo informar em código reconhecível A declaração neste cartão foi por mim executada de livre vontade. Queira proceder com discrição e
pelo sistema a condição de pessoa com transtorno confidencialidade quando fizer uso dos dados aqui apresentados.
mental e a existência do Plano de Crise. Área de residência:
A melhor forma de discutir e implementar o O meu nome:
Plano e o Cartão de Crise é fazer ao mesmo
Endereço (não incluído na proposta brasileira):
tempo a discussão do “Plano pessoal de ação
para o bem-estar e a recuperação”, que está Telefone:
no Apêndice 1 da cartilha. Na verdade, o plano e o Data de nascimento:
cartão são medidas para situações mais extremas,
Plano de saúde:
mas antes de chegar até elas é possível tomar
muitas iniciativas para prevenir e atenuar uma Número do plano de saúde:
eventual piora da qualidade de nossas vidas, que
pode levar mais tarde a uma crise.
O primeiro exemplo de Plano de Crise inserido
1. De que forma ocorre uma crise no meu caso?
em cartão de identificação apresentado abaixo é
utilizado na Holanda, e está disponível no site da - acontece algo que me faz sentir confuso ou que me faz sentir pressionado.
Basisberaad Rijnmond (www.crisiskaart-rijnmond. - durmo mal: troco o dia pela noite.
nl), uma importante organização de defesa dos
direitos dos usuários do campo da saúde mental. A - alimento-me menos.

O “Plano de Crise” constitui um conjunto de tradução para o português foi realizada por Claudia - ouço vozes que me abordam.
informações importantes para auxiliar profissionais de Freitas, doutoranda da Universidade de Utrecht
- isolo-me, não atendo o telefone nem abro a porta de casa.
e amigos a tomarem as iniciativas necessárias para de origem portuguesa e que em 2007 realizou
pesquisa para sua tese no Rio de Janeiro, sob a - causo ferimentos a mim próprio.
o bem-estar da pessoa, em caso de surgimento
de uma crise mental. Além disso, estabelece as orientação do Prof. Eduardo Vasconcelos. - sou verbalmente agressivo.
providências que a pessoa avalia como importantes A segunda versão que expomos a seguir é a mesma
e necessárias para que sua vida não se desorganize, que consta da cartilha dos participantes integrada
identificando a(s) pessoa(s) de confiança que a este manual. Constitui uma primeira adaptação
poderão tomá-las. Ele é preenchido quando a para o contexto brasileiro, sem qualquer pretensão 2. Como devo ser tratado numa situação de crise?
pessoa está bem e lúcida, e deve ser discutido junto de ser definitiva, sistematizada pela equipe que - não me toquem. Se isso for necessário, avisem-me antes de o fazerem.
com o(s) profissional(is) mais próximo(s) e com a(s) está desenvolvendo este projeto de forma pioneira
pessoa(s) de confiança, e deverá ficar guardado no - prefiro ter uma pessoa de contato fixa.
no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, na cidade
serviço no qual a pessoa frequenta regularmente. do mesmo nome. Recomendamos fortemente que - telefonem à minha pessoa de contato e peçam que venha ter comigo: a sua presença faz-
Por sua vez, o “Cartão de Crise”, apresentado cada projeto de implantação deva avaliar as suas me sentir mais calmo.
abaixo, tem apenas poucos dados, mas anuncia onde necessidades e fazer as modificações consideradas
- sou grande, (e por isso) pareço forte e perigoso, mas nunca fui violento; não é necessário
se encontra o plano de crise, para informações mais necessárias, para sintetizar o modelo mais adequado
detalhadas. O cartão deve ser levado o tempo todo para sua realidade. que me tentem dominar, uma abordagem baseada na cooperação funciona melhor comigo.

244 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 245
apêndice apêndice

3. Problemas de saúde: 7. Dados do médico de família:


- dores de cabeça. (nome e endereço/telefone).
Medicação usada: Dados dos cuidadores/técnicos:
- Fevarin: 2 x 1 comprimidos de 100mg às 10h e 17h. (nome e endereço/telefone).
- Seresta: 1 comprimido de 10mg quando necessário.
Medicação a usar no caso de internação:
- tenho experiências negativas com Aldol e por isso prefiro outro tipo de medicação. Gostaria que me fosse 8. Todas as pessoas aqui mencionadas estão informadas sobre o meu Plano de Crise.
dada informação relativa aos efeitos colaterais e qualquer outro tipo de informação relevante. Se eu ficar
Em caso de crise, permito através deste cartão que requisitem e consultem o meu Plano de Crise através de:
confuso, poderão consultar a minha pessoa de contato.
(contato do serviço/entidade onde este se encontra disponível).

Localidade, data
4. Entrego-lhe este cartão porque posso passar por uma situação de crise. Se desdobrar este
Assinatura:
cartão, poderá encontrar mais dados sobre as providências a tomar.
Os dados, desejos e acordos não poderão ser alterados por apenas uma das partes. Este cartão está
associado a um Plano de Crise que pode ser consultado através do: [contato da(s) pessoa(s)]. II) Primeira versão de um Plano de Crise brasileiro (Rio de Janeiro)

5. Em caso de necessidade de internação: A) Plano de Crise

- gostaria de ser internado em: (contato do serviço).


Serviço em que o plano está registrado:

Na eventualidade de uma crise psiquiátrica, queira contatar a seguinte pessoa de contato: Área de residência: Área programática de saúde (AP):

(nome e endereço/telefone da pessoa).


1) Dados pessoais:
Nome:

6. Tarefas da pessoa de contato: Endereço:

- verificar se a minha casa ficou bem fechada, porque, por vezes, quando estou confuso,
esqueço-me de a fechar. Telefone:

- telefonar para o meu trabalho e informar sobre a minha ausência. Celular:

- tomar as providências necessárias para que eu não perca o meu subsídio por motivo de doença. E-mail:

- receber o correio e regar as plantas. Data de nascimento :


Carteira de identidade: nº: Órgão expedidor:

246 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 247
apêndice apêndice

Plano de saúde: ( ) hipertensão.


( ) epilepsia.
2) Dados sobre saúde, saúde mental e crise: ( ) asma (lembrar que pode ser confundido com ataque de ansiedade).
2.1) No meu caso, a crise costuma ocorrer: ( ) lúpus.
( ) quando algo me faz sentir confuso. ( ) intoxicação por álcool e/ou droga.
( ) quando sou pressionado ou tensionado. ( ) OU:
( ) quando durmo mal ou quando troco o dia pela noite.
( ) quando estou me alimentando menos. - Tipo sanguíneo:
( ) quando estou ouvindo vozes que me abordam. - Alergias:
( ) quando me isolo dos ambientes, ou deixo de atender ao telefone, ou nem abro a porta de casa. - Doenças existentes:
( ) quando faço ferimentos em mim mesmo. - Limitações e deficiências:
( ) quando fico agressivo verbalmente por coisas simples ou sem motivo real. - Medicações clínicas diárias e doses:
( ) quando fico agitado, angustiado. - Medicamentos e substâncias que não posso tomar: (ex.: anti-histamínico, remédios para enjoos, tipos
específicos de analgésicos).
( ) quando falo compulsivamente.
( ) quando perco a memória.
( ) quando gasto além da conta.
2.4) Medicação psiquiátrica que costumo usar atualmente e dosagem (data de registro: ___/___/____):
( ) quando gritam muito comigo.
( ) quando sofro violência ou segregação.
( ) OU:
2.5) Medicações psiquiátricas que não posso usar e seus efeitos danosos:

2.2) Como gosto de ser tratado em situação de crise :


( ) não me toque, converse comigo.
2.6) Em caso de necessidade de internação:
( ) avise ________________________________ (nome e tel.) , ele(a) me faz sentir mais calmo(a).
( ) não sou violento, uma conduta baseada na cooperação funciona melhor comigo.
a) Serviço de referência e contatos:
( ) me deixe quieto(a).
( ) OU :
b) Profissionais de referência e contatos:

2.3) Problemas de saúde e medicações que costumo usar :


c) Nos casos de não internação, gostaria de ficar com: (nome e local da pessoa de contato).
( ) dor de cabeça.
( ) diabetes.

248 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 249
apêndice apêndice

d) Em caso de uma eventual crise psiquiátrica, queira entrar em contato com: Todas as pessoas aqui mencionadas foram informadas e autorizaram que seus nomes e forma de contato
fossem citadas no meu Plano de Crise. E, em caso de crise, permito que consultem o meu Plano de Crise.
Nome:
Endereço:
Data:
Telefones:
Assinatura:

Nome:
Endereço:
Telefones:
1.7.2) Cartão de Crise:

Nome:
O Cartão de Crise tem como objetivo ajudar ao seu portador em situação de crise, facilitando aqueles que o
Endereço:
acolhem a fazer o melhor encaminhamento, com mais rapidez e eficiência, e para isto é fundamental estar
Telefones: guardado junto ao documento de identidade do usuário, no dia a dia. O cartão está associado ao Plano de
Crise que está disponível no serviço de saúde mental de referência do portador.

e) Tarefas da pessoa de contato (marcar e, ou acrescentar):


( ) avisar a minha família e apoiá-la. Nome: AP:

( ) avisar as demais pessoas mais íntimas (amigos, colegas, vizinhos, outros parentes), sugerindo que venham Telefones:
me visitar. Profissionais de referência e contato:
( ) verificar se a minha casa ficou bem fechada, pois quando não estou bem, às vezes, esqueço dessa tarefa.
( ) telefonar para o meu trabalho e informar sobre a minha ausência: (nome e telefone). Serviço de referência: (endereço e telefone).
( ) tomar as providências necessárias para que eu não perca os meus direitos sociais e previdenciários por
motivo de doença.
Pessoa(s) de contato no serviço: (nome e telefone).
( ) pagar minhas contas e depois combinamos como irei pagá-las.
( ) receber minha correspondência, regar minhas plantas e cuidar de meu animal de estimação.
Medicação psiquiátrica de uso regular:
( ) outra:

Medicação psiquiátrica contraindicada no meu caso:


f) Informações clínicas:
- Tipo sanguíneo:
Para maiores informações, recorrer ao Plano de Crise disponível no serviço de referência acima.
- Alergias:
- Doenças existentes:
- Medicações clínicas diárias e doses:

250 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 251
apêndice apêndice

Apêndice 3 Apêndice
Apêndice 44

RELATÓRIO MENSAL DE ATIVIDADE DE GRUPO DE AJUDA MÚTUA COMUNICADO PARA TOMADA DE PROVIDÊNCIAS

Instruções: Instruções:
Instruções:
1) Preencher um relatório mensal para cada grupo regular de ajuda mútua. 1) Em caso de qualquer evento ou fenômeno que exija providência imediata do apoiador local, do supervisor ou do gestor , preencha
2) A tabela abaixo, com espaços reduzidos, é apenas uma base para indicar o tipo de informação requerida. Assim, use o verso da este comunicado e o entregue imediatamente ao apoiador local, avaliando o ocorrido e discutindo as providências cabíveis.
folha para complementar registros, numerando-os de acordo. 1)Emita
2) Em caso
3 viasde
ouqualquer evento
cópias: uma ou facilitador,
para cada fenômenoe aque exijapara
terceira providência imediata do apoiador local, do supervisor
o apoiador local.
3) Emita 5 vias ou cópias: uma para cada facilitador; uma para o apoiador local, outra para o supervisor, e uma para o gestor do 3) Anexe a este comunicado o Relatório Mensal de Atividades do respectivo grupo, mesmo que o mês não tenha finalizado.
programa.
4)
ouAcompanhe
do gestoro, desenvolvimento
preencha este das providênciase ao serem
comunicado tomadas
entregue com as pessoasao
imediatamente envolvidas.
apoiador local, avaliando o ocorrido
4) Em caso de comunicado para tomada de providências, anexe este relatório, mesmo que incompleto, e preencha um outro completo
no final do mês.
À
e discutindo as providências cabíveis.

Dupla:
(Nome
2) Emitado3 profissional)
vias ou cópias: uma para cada facilitador, e a terceira para o apoiador local.
Local de reunião:
Dia da semana e horário:
(Nome doaServiço
3) Anexe Local de Referência)
este comunicado o Relatório Mensal de Atividades do respectivo grupo, mesmo que o mês não
Apoiador e serviço de base:
N.o
Data reunião
partic.
Eventos especiais? Observações e providências a tomar tenha finalizado.
Vimos informar e pedir providências acerca do grupo de ajuda mútua ............... ..................... ...................
............................................................................................................................, realizado no local ..............
1a) 1b)
..............................................................................................., nas (dia de semana) ................................., de
4) Acompanhe
(horário) o desenvolvimento
................... às ................. h. das providências a serem tomadas com as pessoas envolvidas.

À ____________________________________ (Nome do profissional)


Constatamos que neste grupo está acontecendo:
2a) 2b)
( ) não preenchimento do número ideal mínimode participantes;
____________________________________ (Nome do Serviço Local de Referência)
( ) diminuição significativa e crescente do número de participantes;

(Vimos
) variação muito eintensa
informar do número de participantes,
pedir providências acerca do grupocomde
idas e vindas
ajuda dos...............
mútua membros;..................... ........................
3a) 3b)
( ) outro(s) fenômeno(s). Explicar:
......................................................................................................................., realizado no local ........................

Nossa(s) hipótese(s) para o que está ocorrendo é (são) a(s) seguinte(s):


....................................................................................., nas (dia de semana) ................................., de (horário)
4a) 4b)
Solicitamos um contato imediato para discutirmos o ocorrido e temarmos providências cabíveis para a superação dos
problemas indicados.
................... às ................. h.
(município) / / (data).

Assinatura e nome dos bolsistas:

252 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 253
anotações anotações

Constatamos que neste grupo está acontecendo:

( ) não preenchimento do número ideal mínimo de participantes;

( ) diminuição significativa e crescente do numero de participantes;

( ) variação muito intensa no número de participantes, com idas e vindas dos membros;

( ) outro(s) fenômeno(s). Explicar:

Nossa(s) hipótese(s) para o que está ocorrendo é(são) a(s) seguinte(s):

Solicitamos um contato imediato para discutirmos o ocorrido e tomarmos providências cabíveis para a superação dos

problemas indicados.

........................................., / / .

(município) (data)

Assinatura e nome dos bolsistas:

254 Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental Manual de ajuda e suporte mútuos em saúde mental 255

Você também pode gostar