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Eusébio Ramírez, penas e alegrias de um transformista

Autor: Mariano Moro


Tradutor: Lucas Feres

Lágrima, de Dulce Pontes: https://www.youtube.com/watch?v=v4_yhwJmYCU

Estava me ouvindo, Leonardo? Você fica com ciúmes de eu cantar nessa língua? Saiba
que não é uma música brasileira, é um fado português. Falo logo pra que você não faça
um escândalo. (Pausa) É uma música assim que eu devia cantar, pra que elas se
matassem de chorar, sozinhas e desesperadas como estão. Quero que fiquem todas
borradas, que se acabem, que sofram juntas as viadas, ao invés de ficarem forçando a
risada, cacarejando como umas galinhas virgens, fingindo que está tudo bem, segurando
a depressão pra se matarem de angustia em casa, como fazem todas. Sempre. Porque
todas e cada uma estão mais sozinhas do que a outra. No máximo pagam um gigolô.
Como o que eu faço com você. Porque é isso que você é, um gigolô. Não ache que eu
não sei. É só um mestiço descorado. Seu gigolô! Gigolô! Não se ofenda, falo porque é
verdade. E não faça cenas de ciúme pelo meu namorado brasileiro. Essa é uma história
antiga. Algo que terminou. Infelizmente.

Esse também era um vagabundo, mas, ao menos, me fazia sentir... internacional. Que
destino vai ter esse país, se aqui nem os negros são negros de verdade? Todos
problemáticos. Meu deus! Apesar de você – o que te importa, não está bom, Leonardo?
Você tem um macho que te mantém e até te dá o direito de fingir que dorme. Ou será que
dorme de verdade? Dorme tranquilo, satisfeito consigo mesmo? Porque é que está tão
cheio de si, tão satisfeito com essa merda que você é? O que quer me dizer? É por que
tem uma piroca? Se é por isso, eu também tenho, e bem maior que a sua, perdoe o que
eu falo, não é pra me exibir, e muito menos pra te ofender. Muito maior. Se você finge que
dorme, não fique aí dando sopa de bruços, porque o dia que eu te comer você vai
conhecer um mundo novo. Se não comi até hoje é pra não te dar o gosto. Só pode ser
isso o que você está esperando pra parar de me olhar com essa cara que me olha
sempre, essa cara que hora é de cu, hora é de nada. Você se faz de machinho, mas bem
sei que gostaria. Continua dormindo, que aqui está a Eusébia, rasgando a alma pra trazer
o pão pra casa. Não me responde, que bonito. O que tá acontecendo? Tá de ressaca,
filho da puta? Ontem à noite você caiu na manguaça! Também se drogou? Me roubou
dinheiro pra comprar uma emoção? Quer tomar uma aspirina? Quer que eu te prepare um
café, um chazinho? Quer que eu te faça uns carinhos? (Pausa).

Agora não posso, tenho que preparar o show. Quero fazer uma coisa bem diferente,
porque hoje vêm quase todas as travas, até vêm algumas famosas. Não te digo quais pra
que você não faça planos. Se algum dessas bruxas te roubasse, me faria um favor. Com
certeza seria pra me foder, não pelo seu valor intrínseco, pra que fique claro. Quero que
morram de inveja, essas cachorras, que só sabem fazer playback. E algumas nem isso.

Eu que canto, eu que danço, eu que atuo. Me impressiona meu próprio talento. Tenho
algo de Marilyn, um pouquinho da Rita... e muito de Sara Montiel! Sou muito espanhola,
caralho! (Procura concentrada por algum adereço de roupa, que não acha). Sou uma
Ramirez, e nós, as Ramirez, somos genuínas, não dessas de montão, como as Pérez, as
Fernandes ou as Gonzales! Madri, Praça Maior, Arco de Cuchilleros:

Rosa de Madrid, de Sara Montiel: https://www.youtube.com/watch?v=9aVPrCUjTUQ


Minha mãe morria pela Sara Montiel. Em compensação eu... também! Essa não era uma
mulher, era um travesti, não me enganam. E passou pela censura do Franco! Para que
não neguem seu talento. (Fala a um público imaginário, que, supostamente, não está
presente; como se ensaiando, permitindo-se coisas que não faria na situação real).

Distinto público, distinto por ser um bando de loucas, feias, gordas e desajustadas,
estamos aqui reunidas para desfrutar da minha arte, uma arte que vocês, brutas como
são, não saberão apreciar, e que, digo já, nem mesmo merecem. O que faremos pra
vocês? Nós estamos aqui belas, inteligentes e talentosas, mas aqui também têm vocês.

Deus fez o mundo diverso pra não se entediar.

Se alguma de vocês se sentir ofendida com o que eu digo, então chupa meu pau, que
segue firme, no lugar onde Deus quis e colocou, e que eu sei usar melhor do que vocês
imaginam, mesmo sendo um dos mais populares dos utensílios, ninguém nunca escreveu
um manual de como usar. E como todos bem sabem, é quem tem que fica metendo onde
não deve (A um imaginário).

Tranquilo, meu amor, não é de você que estou falando. Com Nelson, meu namorado
brasileiro, que era um cavalheiro, não como esse vigarista que finge dormir, aqui à minha
direita (sim, estou falando de você, gigolô... gigolô...).

Com Nelson, eu dizia, sonhávamos em viajar para Espanha e ficarmos por lá. Antes da
crise é óbvio. Porque todas nós às vezes pensamos que somos umas deusas e que tudo
de ruim que acontece com a gente é culpa desse país que sempre nos tratou como um
bando de leprosas e aleijadas, e que, então, tudo o que temos que fazer é nos mudar pra
um país glamoroso e que nos trate como merecemos. Eu pensava na Espanha porque ela
me encanta, porque falo espanhol desde muito tempo, e olha que não seria exagero dizer
que eu falo muitíssimo bem, apesar de certas analfabetas porá í já terem insistido em
falar o mesmo... O negro brasileiro não, não falava comigo em espanhol. O brasileiro era
um desastre, não aprendeu nem a falar puto, e esses ele conheceu e tratou em
quantidades industriais, talvez até muitos aqui presentes. Acho que era má vontade.
Depois vinha falar que não conseguia trabalho porque não falava bem a língua.

São coisas que fazem pensar que a gente deveria se conformar com o homem que leva
em si mesma, e deixar de procurar por um que nos complemente. Pra que buscar um
membro se já tem o seu? Pra que eu queria um Nelson Mendes, se já tinha a mim,
Eusébio Ramírez, nascido em Mechogue, com o signo de Capricórnio, numa manhã de
um dia que faz poucos anos? Poucos anos. Me contaram que a ditadura foi horrível, mas
eu não vivi.

Nelson! Se me tivesse saído um Nelson Mandela, um desses que acredita que ser negro
não impede de alcançar o mundo e começa a fazer tudo o que pode... Vocês sabem
quem é Nelson Mandela? Quem vai saber! Bichas burras! Mas o meu Nelson sim, esses
vocês bem sabiam quem era... Suas putas! Quem aqui foi que chupou ele? Confessem,
confessem tranquilas. Podem me azucrinar. Vamos, me mostrem a língua, divinas, que
agora mesmo eu desço do meu pedestal de diva e arranco essas suas línguas uma a
uma, com minhas próprias mãos.

Tenham cuidado com as mãos de Eusébia.


Se matavam pra tirar ele de mim! Em compensação esse não, esse vocês deixam
inteirinho só pra mim, tenho que cuidar dele e ainda pagar a pensão. Seu vendido!
Vendido! Você, seu inútil, tenha cuidado, porque a vida me tratou muito mal e alguém vai
ter que pagar por isso. Mesmo que você o verbo pagar tenham muito pouco a ver, não é
mesmo, Leonardo? Preguiçoso, vagabundo, imprestável...!...

Viado!

Bom, parece que o show vai bem encaminhado por aqui. Às vezes acabo ficando um
pouco agressiva, e não sei nem por quê. Não sei do que me queixo. Tenho casa, tenho
trabalho, tenho um namorado, tenho peito, tenho pinto, tenho talento...

Isso é o que mais me envaidece, o talento: cada vez tem mais gente e quase ninguém
serve pra nada. Se é verdade que Deus nos fez à sua imagem semelhança, Deus então é
alguém que bem sabe brincar com a própria cara. Como só as travestis sabemos fazer.
Confirmado:

Deus é um travesti.

As travestis sim, que sabem rir de si mesmas. Pelo menos as que a gente encontra no
transformismo. Eu fiz história e deixei um legado no transformismo, explico pra quem não
estudou. Não é mesmo, Leonardo? Não me responde, finge que dorme e pronto. Sonhe
com um burro superdotado que te faça feliz. Não digo que sonhe com Platero, porque
tenho certeza que não leu esse livro. Você na escola, se é que foi, ia vender drogas,
delinquente! Delinquente! Traficante! O seu sonho de infância foi um sobrinho do pato
Donald: Paco.

Eu me encantava pela escola. Claro que a educação é muito deficitária, deixa muitos
buracos...

A mim mesma, por exemplo, não me ensinaram nada de transformismo, tudo o que eu sei
tive que aprender sozinho e na rua. E um belo dia, quando implantei meus peitos,
descobri que não era mais um transformista, agora era “uma” travesti. Quer dizer que me
desvalorizei, porque um transformista é um artista, enquanto uma travesti é uma puta. E
como foram caros! Isso sim, ficaram divinos, disso eu não posso reclamar.

Virei uma deusa,

não como a Eduarda, que se injetou sozinha o silicone, os peitos foram parar nas costas,
um em cima e outro embaixo. Com essa boca enorme e dentuda que já tinha, acabou
virando um camelo quase perfeito. Dava vontade de montar nela pra ir dar uma voltinha
pela Terra Santa. Coitada da Eduarda! Era tão boa! E era muito fiel: foi caminhando até
Luján pra pedir pra Virgem que colocasse as próteses de novo no peito, mas a outra nem
a ouviu.

Eu acho que os peitos não são um assunto pra se negociar com a Virgem.

Mesmo os dela, não devem ser grande coisa, por algum motivo ela nunca mostra. Não
continuo falando disso porque vão me excomungar.

(Lapso de nostalgia pela morte de Eduarda, tema que a faz pensar que voltará a ele, caso
tenha força.)
Eu sou apaixonada pela Virgem, ela me encanta. Eu penso que me travesti pra me
parecer com a virgem. Não com qualquer virgem, com a Nossa Senhora da Medalha
Milagrosa, como essa. A primeira mulher que eu vi e achei mais bonita que a minha mãe,
quando nos mudamos de Mechongue para Buenos Aires, porque a família do meu pai nos
queria longe.

Minha mãe, minha mãe era linda; mas a virgem... Com essa carinha tão branca e tão
triste, como de açúcar, e esse manto azul azul, as mãos finas e puras e uma coroinha de
ouro... Além disso, a Milagrosa é gigante. Depois você vai em outras igrejas e as virgens
são umas misérias, pequenininhas, encolhidas... Que fé é que sobrevive com uma virgem
desse tamaninho e com a cara de uma cor de plástico que nunca quebra? (Faz um gesto
indicando pequeneza)

Não tem o que fazer, com a Milagrosa não há quem possa. Eu dizia que saía de casa e
eia ao parque jogar futebol, mas era mentira, eu me enviava na igreja com a bola na mão,
ainda mais se era verão. No parque você sufocava, enquanto a igreja estava tão fresca...
Eu pensava que essa era a ação direta de Deus, que soprava ar frio sobre os que
estavam rezando... Não sobre mim, porque eu não era de Deus, era da Virgem, mas
também aproveitava do benefício. O sopro frio de Deus, que às vezes te refresca e às
vezes te congela.

Futebol eu também gostava de jogar. Cuidado! E jogava bem! A bola não descarta os
maricas, e eu não vou nem comentar como é que os profissionais festejam os gols ou o
que se passa nos vestiários, porque tudo isso já está muito batido. A bola que usávamos
era minha. Meu pai havia me dado, num dia que o vi. (Pausa) O único dia da minha vida
que o vi, pelo que me lembro. A família dele não queria que ele nos visitasse. Acreditem
numa coisa que digo: o problema dos teleteatros não é que sejam maus. É que são muito
curtos.

(Pega uma velha bola – leve – de algum canto, a contempla emocionada, a acaricia. Num
rompante, a lança na direção do público; pede para que a devolvam, improvisa com o
público.)

O Julio Boca fazia isso quando cismou de fazer clown com Cláudio Gallardou, eu só
roubei, porque quando faço isso me sinto como a filha que Julio Boca teve com
Maradona. Quando eu era menina, como sabia que não veria meu pai, eu inventava
outros pais...

Então eu inventava, de dois em dois, ou seja, dois homens e minha mãe. Pra compensar,
porque minha mãe era muito mãezona.

Julio Boca, Maradona e minha mãe.

Charles Aznavour, Victor Hugo Morales e minha mãe.

Carlos Inglesias, Joan Manuel Serrat e minha mãe.

Eu, em minha fantasia, escolhia os que eu sabia mais ou menos que ela gostava, pra dar
uma alegria pra ela...

Pancho Ibañez, Cacho Castaña, German Graus, Borocotó Junior...


Pelo menos o sonho não se tornou realidade! Os homens são muito competitivos. Sempre
discordando, sempre brigando... A “pelada” da minha infância sempre terminava em
confusão.

Um dia fiquei bravo porque acertaram em cheio o Ovídeo, agarrei a bola, saí correndo,
nem pestanejei e dei ela de presente pras crianças pobres que ajudavam lá na igreja.
Quando os meninos do parque souberam o que eu tinha feito, quiseram acabar com a
minha raça, me xingaram, me encheram de porrada. Do lado da Fonte dos Sapinhos, que
já não está mais lá.

“Quem foi que te deu permissão pra dar sua bola pros outros, seu viado de merda?”

Como eram lindos esses sapinhos! Tão generosos, sempre dando a água que tinham em
suas bocas (os imita)... se eu tivesse pensado em dar um beijo neles, talvez tivessem se
transformado em príncipes. Nesse tempo, eu não pensava nessas coisas. Depois sim, fui
passando de sapo em sapo, mas depois os que encontrei já não eram mais sapos de
parque, eram de esgoto. Não é mesmo, Leonardo? Sapo de esgoto! Sapo de esgoto!

Leonardo é como o meu desodorante, não me responde.

(Verifica o suor das axilas.)

Acho que essa história da virgem e da bola eu não posso contar no show. Distinto público,
senhores, senhoras... vocês! Mil desculpas por ter mergulhado em nostalgias infantis, eu
sei que estou falando pra um bando de loucas deprimidas e deprimentes, não tenho
direito de compartilhar ainda minhas tristezas, tem que ter um limite com a redundância.

Alegria! Alegria! Sem deixar a peteca cair!

Que tenha de tudo, e caso não haja, que alguém traga!

Fiesta, de Rafaella Carrá: https://www.youtube.com/watch?v=JWs-4wX-KfM

Não vai me aplaudir? Acabei de dançar melhor que uma mistura de Plitseskaia, Shakira e
Olivia Newton John, e você não vai me aplaudir? Não me ajuda, nem assiste os ensaios,
não me dá idéias... (se exalta) Tá aí, de bruços, esperando que chegue o seu burro...

(Recita, como uma lembrança, e também para acompanhar o sonho de Leonardo,


suavemente.)

“Platero é pequeno, peludo, suave; tão brando por fora, que se diria ser todo de algodão,
que não tem nem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como os
escaravelhos de cristal negro... Eu deixo ele solto, e vai ao prado – como você, Leonardo
_ ... Eu chamo ele docemente ‘Platero, Platero’... Como quando eu o alimento – como
você, Leonardo. Ele gosta de laranjas, de tangerinas, de uva moscatel... É terno e
mimoso, igual a um menino...” (Fragmento de Platero y yo, de Juan Ramón Jiménez.)
Nisso não, Leonardo, nisso não se parece.

(Pode ter m burrinho de pelúcia para manusear.)


Minha mãe era pobre mas sempre que podia me comprava um presente. Ela comprou
Platero e eu e me deu, pra escola; e ele nem era obrigatório. Nessa noite nós não
comemos. Que presente lindo! Eu decorei ele todo, quase sem querer. Tudo, menos o
final. Do final eu não gosto. Por que merda é que o burro tinha que morrer no final? Eu
falei isso pra professora, e a coisinha veio me falar: “Isso é justamente o mais lindo do
livro”. Isso é o mais lindo do livro? Morra você, vagabunda! E deixa o burro correndo feliz,
com um “trotezinho alegre que parece que ri num certo tilintar estranho...” (repete como
se visse o burro, e corre, como ele.) “trotezinho alegre que parece que ri num certo tilintar
estranho...”... “trotezinho alegre que parece que ri num certo tilintar estranho...”. tilintar
estranho... tilintar estranho... A minha prima Azucena, que é professora de literatura,
concorda comigo: o burrinho não tinha que morrer. Tadinha da Azucena! Não que ela vá
mal na vida: é que a vida não vai pra ela. Não sei quem me falou que internaram ela num
hospital psiquiátrico. Espero que não seja verdade. Porque se tiverem internado ela num
sanatório, vou ter que ir visitar, e a Azucena, coitada, já era deprimente sã... Não quero
nem imaginar como deve ser com camisa de força. Sempre teve uns parafusos a menos
na cabeça. Mas o que piorou tudo foi o tal do Ovídeo, aquele que jogava bola comigo. Foi
o único namorado que teve, e ele virou gay. Isso não lembra nada? Quantas noivas vocês
deixaram plantadas no altar, seus maricas!

O Ovídeo era lindo! Ele eu sempre respeitei, porque era o namorado da minha prima.
(Falando baixo) Mentira. Azucena e eu éramos muito companheiras. Segundo mamãe,
éramos almas gêmeas. Até o dia em que o Ovídeo abandonou ela. Depois desse dia não
falou mais comigo. Como se eu fosse responsável por cada bicha que sai do armário.
(Aponta aleatoriamente para o público). Eu não tive nada a ver com você, muito menos
com você... com você... com você o melhor que eu fiz foi esquecer. Fico com o Leonardo,
olha só o que eu digo.

Eu já quis ter um trabalho, como ela, mesmo que o espanhol não faça a Azucena feliz.
Teve uma época em que quis ser astrólogo. Sou um astro, sou gay, teria que ser
astrólogo, por lógica! Eu acredito que a linguagem te determina. Nisso, sou como Lacan.
Quando trabalhei em “Penne Rigatti” – um pub renomado – me diziam “la perra”, por que
então não posso ser “la can”? Eu sei bastante de psicologia, porque fiz análise. Outro dia
conto pra vocês. Só me permitam um conselho: nunca saiam com um psicólogo. Por quê?
Te dão uma dor de cabeça infernal, e depois não dá pra fazer eles pararem.

(Parlamento lacaniano memorizado em automático e acelerando).

“Do lado do outro, desse lugar onde a palavra se verifica por encontrar o intercâmbio dos
significantes, os ideais que suportam, as estruturas elementares de parentesco, a
metáfora do pai como princípio da separação, a divisão sempre volta a abrir no sujeito em
sua alienação primeira desse lado somente por essa via que acabamos de dizer, a ordem
e a norma devem instaurar-se, as quais dizem ao sujeito o que deve fazer como homem
ou mulher.” Entenderam? Lacan, Escritos II. A bíblia do meu psicanalista. Eu roubei dele
numa tarde, porque ele dormiu enquanto me atendia. Tinha que ter um castigo. Fiquei
sabendo que um tempo depois ele se matou, mas acredito que não foi por isso, ele podia
comprar outro livro. Esse livro eu leio às vezes, pra chamar o sono: é infalível. Isso sim:
se esqueça do que tem pra fazer nas próximas setenta e duas horas. Melhor: pra que
tanto mastro se tem tão pouca bandeira?

O caso é que eu queria ser astrólogo. Do horóscopo assírio-caldaico, não do chinês, por
mais que me encante isso de poder escrever todos os anos o mesmo livro, como bem faz
uma das que conhecemos. Ludovica: que bobagem! Com essa de que os homens são
todos uns animais. Acham que descobriram a pólvora? Tudo bem que descobriram
mesmo a pólvora, mas venham me contar uma novidade, como por exemplo, me dizer
que Leonardo é uma ratazana! Pra vocês não parece? Não tem direito de ser tão obvio e
redundante! Não tem direito! Leonardo, me ouve? Ratazana! Ratazana! Nada. Continua
parecendo um desodorante.

Eu, por exemplo. Como sou capricorniana, meu metal é o chumbo. (Aponta na direção de
Leonardo.) Minhas pedras são o âmbar e o ônix, por isso nunca me deram uma
esmeralda, um rubi ou um brilhante. Não digo doze nem cinco. Não me deram nenhum.
Sigamos: meu elemento é a terra. Por isso vivo limpando a podridão que esse sujo vai me
deixando. Veja só esse piso: nunca sei se derrubou uma bebida... ou se passou distraído
como se fosse uma pá pela sujeira. (Limpa). Meu planeta regente é Saturno: como fica
longe não posso reclamar. Minha cor é o marrom: sem comentários.

(Segue limpando).

Sentimento de dever, de responsabilidade e autodisciplina. Natureza dura, rígida,


exigente, seletiva. Caráter introvertido, íntegro, sério, rigoroso, prudente, orgulhoso, com
tendência ao pessimismo, às vezes egocêntrico, misantropo ou insensível aos
sentimentos e necessidades dos outros, porém muito diplomático. Porque eu sou
diplomático, não é, filho da puta?

Necessidade de ter convicções e certezas adquiridas com experiências ou de ter


enfrentado princípios e valores comprovados. (Se coça). Me coçam as bolas.

Mente lógica, sagaz, lúcida, sintética, prudente, cética, estoica e racional. (Segura a
risada.) Psicologicamente esse signo corresponde a tomada de consciência de
independência do eu, revelada pela faculdade de discernimento. Essa faculdade inclina
os nativos desse signo a isolar-se para poder explorar todos os seus recursos interiores.
No amor, não é muito expansivo, mas é sincero e constante. (Se deprime).

Não tem o que fazer: a gente olha o horóscopo e vê o próprio retrato. Se você o souber
de cor, a vida nunca vai te pegar desprevenido.

Depois tem que entender como os outros signos funcionam. Comigo, por exemplo: os de
Gêmeos me enganam, os de Áries me pedem dinheiro, os de Touro me roubam a carteira,
os de Libram roubam minha gaveta, os de Escorpião se instalam na minha casa e me
deixam sem lugar, os de Leão me obrigam a trabalhar na rua e os de Câncer machucam
meus sentimentos. Com o resto dos signos... não me relaciono bem.

Leonardo é de Libra, mas tem a lua em Escorpião. Por isso me rouba, mas não vai
embora. Em compensação o brasileiro era Leão! Que fogo têm os de Leão. Me deixou
bem chamuscada. Onde será que foi parar esse cafajeste! Há quanto tempo já não sei
nada dele, se é que alguma vez soube algo.

(Vai a um espelho.)

Às vezes penso que mereço algo melhor. Não sempre. Sou Eusébio Ramírez, não sou
Pérez nem Gonzáles, eu não me rendo por nada. (Cantando uma música de Manuel
Alejandro.)

Soy Rebelde, de Manuel Alejandro: https://www.youtube.com/watch?v=7-J86gQxvMI


(Como se se descobrisse no espelho, vê algo em seu rosto que custa a distinguir, até que
exclama:)

Sou Alfonsina Storni!

(Recita Quejas, de Alfonsina Storni.)

Pobre de mí que habré de ver


Mil soles más amanhecer.

Mil soles más me alumbrarán,


Mil soles más se dormirán.

Y para qué se te perdí,


Yo que al amarte te mordí?...

Y para qué si no serás


El agua mía nunca más?

Y para qué si por ahí


Están las rosas que te dí?

Y para qué? Y para qué?


Si moriré...

(Se afasta do espelho. Começa a recitar Dolor, de Alfonsina Storni)

Quisiera esta tarde divina de octubre

Caminhar por la orilla lejana del mar


Y que se vayan todos a cagar.

Ser alta y soberbia, como uma romana...


Y que me chupen todos la banana.

Recita Ódio de Alfonsina Sorni

Conozco tu secreto, cuerpo mío: tuviste


Uma imagen latente em tu rojo ramaje:
Detrás de las pupilas, entra la carne triste,
La imagen realizaba su callado tatuaje.

Te penetro em el pecho com tan viva agudeza,


Que el corazón de cera, celoso de llevarla,
Para mejor ceñirla, para mejor guardala,
Llegó a tomar la forma de la amada cabeza.

Si ya el amor es ódio, y verguenza, y despecho,


A riesgo de morrirte la arrancarás del pecho,
como Sansón, um día, volteara los pilares.
Y si quedaran rastros de sus dos ojos belos
Te vaciarás los vasos sanguíneos y por ellos
harás correr el agua salada de los mares.

Hombre pequeñito,
Tú no me comprendes...

Hombre pequeñito,
Mezquino y boludito...
Me importas um pito...

Porque eu mergulho no mar e as enfermidades, as dores ficam na praia, o mar refresca


tudo, sobretudo esse mar de Mar del Plata que te congela as nádegas e te entope os
poros com algas pegajosas, aqui não tem sereiazinhas nem cavalinhos do mar, isso aqui
não é o Caribe, aqui vem as corvinas e te acertam com seus bigodes. Aqui você engole
um punhado de sal e já não sentirá o gosto de mais nada, aqui os caranguejos arrancam
as unhas dos seus pés, se você se descuida e te arrancam até o pinto, tanto que eu não
quis me operar e agora perco meus atributos na praia de La Perla, a pérola, essa é a
única joia que a vida me dá, a pérola, um lugar para perde-la, a vida, não há espaço pra
surpresa, todos sabemos que as pérolas trazem má sorte, minha tia Eduviges tinha um
colar de pérolas e um belo dia morreu, não que isso assustasse, ela já tinha noventa e
sete anos, e foi uma infeliz a sua vida, amarga, frígida e corna, porém orgulhosa do seu
colar de pérolas, ela achava que caía muito bem, que ficava linda com o colar.

Lindo era Alain Delon, mas ficou velho e ficou feio, as pessoas velhas ficam mais
parecidas consigo mesmas, as pessoas novas enganam, Alaim Delon era lindo como um
sonho impossível, te dava um orgasmo com os olhos e outro com as sobrancelhas, com a
pele sabe Deus o que ele faria, dizem que os franceses fedem, mas no cinema isso não
se nota. Em qualquer caso, passaria umas gotas de perfume, é pra isso que são os dois
da França, Delon e os perfumes. Garçom: me sirva um prato de Alain Delon temperado
com Farenheit, ou com Paco Rabanne, caso não tenha. Sei que existem perfumes novos,
mas me atenho aos clássicos. Hoje também vou querer um pouco de Depardieu, cochas
de Antonio Bandeiras, pinto de Robert Redford vinte anos atrás, se tiver ficado congelado,
a bunda do meu verdureiro, que paradoxo, ele é o verdureiro e tem a melhor bunda do
bairro; olhos de Brad Pitt, não são comestíveis, mas decoram o prato, costela de Denzel
Washington, se não me dão algo negro, a comida não cai bem, a pele dos negros torna
leve a digestão, e de sobremesa bananas tropicais, venham da árvore que vierem,
quando a gente vê o cacho carregado já não se pergunta pelo resto da planta. Que
bonitos são os homens! (Encara o público.) Bom, alguns homens. Narciso se apaixonou
por ele mesmo e morreu afogado. Eu me deveria ser proibida. Não sei se existe alguma
lei contra. Se bem que se essa lei já existisse, temos que admitir que a maioria das
pessoas já a cumpre e de pés juntos. Então alguém que vai pela vida como Chapeuzinho
Vermelho por um bosque perigoso descobre uma preciosidade entre as ervas daninhas e
fica encantada, como boba que é, e no fim das contas, pra que? Para uma tonta aparecer
e a levar. E você, se quiser uns carinhos, o que te resta é deitar-se na cama com a sua
avozinha, ou esperar que o lobo te deixe fazer um boquete.

Também não é que se tenha loucura por uma chupada. A essa altura isso já se faz de vez
em quando por vocação ao serviço. Está triste? É inseguro? Te falta dinheiro? Então vem
aqui que eu te faço um boquete, assim você se sente importante, por quatro minutos, ou
quatro minutos e meio, depende.
Quem era louco por boquete era o Avispito Sanzonardi. Nós fizemos shows juntas durante
vários anos. Alguma de vocês nos viu? Não? Mentem pra se fazer de jovens? Não fodam,
que aqui a mais jovem foi pra escola junto com Amelia Bence! Parece que lá atrás está
aquela que, por desafinar o hino, expulsaram da casa de Mariquita Sánchez de
Thompson.

Este país tem suas coisas, porém é da gente como a gente. Por algum motivo, o hino foi
estreado na casa da Mariquita Sánchez. Eu conheci um Mariquita Sánchez. Esse não
tinha piano, nem mesmo tinha casa, se bem que se você metesse nele os dedos com
força, arrancava um bocado de sons.

Me perdi nos detalhes ínfimos. Eu estava contando sobre Avispito Sanzonardi. Querem
que eu conte seus defeitos? Escolham cinco anos das suas vidas! Querem que eu
enumere suas virtudes? (Breve silêncio) Cá está.

O Avispito e eu começamos juntos a nos vestir de mulher. Meu primeiro sutiã foi o que
roubamos da mãe ele. Nosso show de estreia foi uma mistura das irmãs Legrand com o
retrato de Dorian Gray. Eu, qu8e sou linda, representei a Mirtha recém-operada, e ele,
que é horroroso, representava Silvia monstrificada pela velhice. Era quase uma obra de
argumento, muito boa. Fui eu quem escrevi! Tinha momentos poéticos como quando
Silvia dizia: “O problema com os anos, Mirtha, é que não passam, na verdade eles
pousam todos me cima de você”. E Mirtha respondia: “Fale por você, Silvia, porque eu,
graças à plástica, sigo maravilhosa, não me deteriorei nem um átimo”. Depois Silvia
descobria que Mirtha nunca tinha ido a um cirurgião, na verdade ela tinha feito um
trabalho pra que ela, Silvia, cumprisse os anos das duas e envelhecesse o dobro, então,
em vez de agarrá-la pelos cabelos e meter a porrada, Silvia em Mirtha como foi seu
primeiro impulso ao descobrir o feitiço, dissimulava e confabulava com Elvira e Juanita, as
empregadas de Mirtha, para mata-la, porém tudo o que tentavam dava errado, porque
Mirtha era imortal e até o Papa a canonizava em vida e todos os povos do mundo
terminavam cultuando ela como uma deusa, enquanto Silvia continuava ficando cada vez
mais enrugada até se tornar uma uva passa que Mirtha bebia dentro de uma taça de
champanhe.

Era uma obra quase perfeita. Faltavam Daniel e Danielito, porque não conseguíamos
ninguém que quisesse fazer um homem. Pusemos a Marcela, então. Era uma velha
amiga nossa que não parava de dizer bobagens. Não teve nem que compor o
personagem.

Tínhamos outra obra divina, nela Evita ressuscitava, procurava Isabelita, elas viravam
lésbicas e mantinham o Perón pra que ele limpasse a casa. Fizemos essa por pouco
tempo, recebemos muitas ameaças. Sutis, claro, como esta: “Viados, não se metam com
Evita, porque vamos arrombar seus cus”. Achavam que com isso, de nos arrombar o cu,
nos assustariam muito, mas bem, também não era nossa intenção ofender ninguém,
então paramos de apresentar essa e nos limitamos às duplas clássicas: Susana Giménez
e Alicia Moreau de Justo, Xuxa e Madame Curie, Lita de Lázari e Monserrat Caballé...

Éramos inseparáveis, eu e Avispito, até que um dia descobri que ele me roubava pra
comprar drogas. Então eu o encarei, começamos a discutir e parecia que não
acabaríamos nunca, foi então que ele me estapeou com a sua famosa frase metáfora:
“Eusébio, não sei por que eu me irrito aqui, discutindo com você, se a única coisa que me
interessa é chupar pau”. Me fudeu. Quando alguém tem objetivos claros na vida, a outra
sempre acaba perdendo. Outro dia cruzei com ele. Tenho que reconhecer que, apesar do
álcool, das drogas e dos seus outros excessos, os anos não têm passado pra ele. Está
sempre igual. Igual no seu descuido, igual de feio, de repugnante, igual de má pessoa que
é. Mas bom ator. Ninguém faz uma ameba como ele.

A vida não me deu bons amigos. Não sei o que acontece. A gente se distrai e quando se
dá conta, descobre que está mal acompanhada, ou sozinha, assim, simplesmente. Vale a
pena viver a vida, mesmo assim. É por isso que eu a celebro, proponho um brinde.
(Busca garrafa e taça)

Brindo pela gente boa, pela gente bela, pela gente inteligente, pela gente íntegra... e
também brindo por vocês. Que a vida lhes dê coisas muito lindas... ou o que
verdadeiramente merecerem.

Já contei pra vocês do meu primeiro porre? Eu adoraria contar algo divertido pra vocês,
mas seria mentir. A primeira vez que me embriaguei foi quando minha mãe morreu. Antes
eu também menti: não briguei com Avispito porque me roubava pra droga, isso ele
sempre fez, sempre soube e sempre perdoei. O que eu nunca perdoei foi ele não ter me
acompanhado quando minha mãe morreu, nem ao velório foi, pra me consolar. Até a
Eduarda veio, coitada! Pouco pôde me consolar. A AIDS já estava a levando aos poucos,
como também levava a tantas outras. A velha fria, no caixão, parecia mais saudável que
ela! O Avispito era o único amigo íntimo que eu tinha. Que acreditava ter. A gente por crer,
ou por querer crer, acredita em tantas coisas... Me disse que a morte deixava ele
impressionado. A mim, também me impressionava. Mas eu tinha desejado não me sentir
tão sozinho enfrentando o espanto de perder a única coisa boa que alguma vez tive no
mundo. Mamãe.

(Coloca-se na situação de estar ante o caixão e falando, como nesse momento,


repetindo.)

O que está fazendo aqui mamãe, tão quieta? Tão quieta você, que não parava um
segundo? Sempre tinha algo pra fazer. Se cansou? Era muito jovem pra morrer. Não tem
vergonha? Quem gosta de mim? Quem cuida de mim? Quem está sempre comigo? Eu te
dizia tantas coisas, e você ficava calada, ou começava a cantar e eu te escutava como se
estivessem cantando os anjos do céu, e quando você terminava a canção eu tinha mais
vontade de falar e de te dizer coisas lindas e de te prometer coisas. Quando eu for grande
vou trabalhar muito e vou te comprar tudo o que precisar e tudo o que quiser, e vou te dar
o maior e mais lindo presente do mundo pra compensar você, porque sei que a vida
nunca te deu nada. O que você quer de presente, mamãe? Um neto. Me pedia um neto.
Depois cresci e já não me pedia mais. Você nunca foi boba. E quem me tira da cabeça a
ideia de que se você tivesse um neto não teria morrido? Talvez apenas com a esperança
de ter um neto não tivesse morrido. Se eu tivesse te matado com as mãos não me sentiria
tão culpado como me sinto. Sobretudo, porque você não reclamava de nada. Se tivesse
jogado as coisas na minha cara, também não me sentiria tão culpada. “Pobre mi madre
querida/ quantos disgustos le he dado”. Que coisa o tango! Por algum motivo eu nunca o
incluo no meu repertório. Lindo melodrama mamãe, quando você morreu. Uma pena que
a fome não tenha deixado eu disfrutar. Com os seus trabalhinhos e meus shows nos
arrumávamos, mas você se foi, o Avispito me deixou na mão, e o que me sobrava? A rua.
Aí andei eu também chupando picas, por necessidade, não por vocação, pelas ruas de
Palermo, pescando pneumonias, colecionando insultos, competindo com outras mil e
quinhentas, dormindo em delegacias, regateando dinheiro que depois a polícia rouba...
De modo que continuava com fome, mas isso era bom porque fiquei muito magra e fraca
e assim conseguia ganhar mais. E os cafetões que consegui? Isso é melhor nem contar,
pra que não baixe o astral. Ainda por cima, acabei indo ao psicólogo.

Não quero ser mal agradecida. Esse psicólogo me cobrava pouco e ajudou muito. Apesar
de ficar dormindo. Ele me incentivou para que voltasse aos palcos. O primeiro número foi
ele quem me sugeriu. Nada de plumas nem de lantejoulas. (Vai até o armário.) A roupa de
mamãe.

(Comenta sobre a roupa enquanto a pega e veste.)

E então cantar, cantar, como mamãe, como Sarita. (Canta “Mujer de nadie.)

Mujer de Nadie, de Paz Martinez: https://www.youtube.com/watch?v=ksCCnHNZ7fc

Quem me viu e quem me vê. Não é verdade, mamãe? Aqui estou, triunfando. Uma rainha
da noite e dos palcos. O que mais posso pedir? A vida é arisca, se você pede muito, ela
não entrega nada. Eu também tenho meu lugar no mundo. Sou uma mescla de Cecilia
Roth com Federico Luppi. E como se não bastasse, tenho um homem que, para não
deixar escapar nenhuma oportunidade de me acariciar, quase não se move da cama.
Porque é isso que está acontecendo com você, não é, Leonardo? Está de guarda,
esperando o momento certo pra me envolver nos seus braços? Aí vou eu. (Desaparece
rumo ao quarto.)

Eu sabia que estava acordado! Você gosta de me escutar enquanto estou ensaiando,
confessa! Eu sei que, mesmo você não me dizendo, aprecia a minha arte. Que bruto que
você é! Você está de pau duro! É preciso aproveitar esse momento. Não, pra isso não,
não seja bobo. Você sabe que já já tenho que ir fazer o show. O que acontece é que
tenho um caprichinho. Não leve a mal, não é pra te fazer sentir mal, nem por nada, mas
tenho aqui a fita métrica.

Posso medi-lo? Deixa, não vai doer nada. Vamos ver... quietinho... Aí está. Ah, mas veja
você! Eu pensei que causava menos. Isso não está nada mal. Enfim, é o que eu digo: sou
uma mulher de sorte! Isso me faz lembrar de uns versos que vou incluir no show (volta):

Pinto baixo é um ultraje.


Pinto curto, frustração.
Pinto mole, maldição.
Duro e firme, homenagem.

Pinto feliz é um luxo.


Pinto triste, um flagelo.
Pinto tímido é bucho.
Pinto audaz, um caramelo.

Pinto em pé é festa certa.


Envergado, um desafio.
Se é torto, um desvario.
Se é gigante... estou aberta.

Pegajoso é relaxado.
Perfumado, imperador.
Rosadinho, tentador.
Moleirão só dá trabalho.

Pinto branco, tradição.


Pinto negro, fantasia.
Sem pinto, melancolia.
Sem pinto, sem diversão.

Um bom pinto, mesa farta.


Grande, durinho e atento.
É prazer e alimento.
Só quem é louco descarta!

Peguem e não larguem. Conselho


Que devem levar a cabo.
Não é só por ser diabo
Que o diabo manda, é por ser velho.

Eu imagino, Leonardo, que você sempre vai mantê-lo alerta. Acho que contei pra vocês
que quando era criança gostava de ir à Igreja. Sigo sendo o mesmo. Sigo esperando
milagres.

Fim

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