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A RESPONSABILIDADE DO LEGISLADOR NO ÂMBITO

A responsabilidade do Legilslador no âmbito do rtigo 15.° do novo regime introduzido


pela lei n.° 67/2007, de 31 de dezembro
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA

1. RESPONSABILIDADE POR ACTO COMETIDO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA

Cumpre, antes de mais, ter presente que um acto (formalmente) legislativo pode conter
uma ou mais determinações de natureza administrativa, passíveis de serem qualificadas como
actos administrativos. Por esse motivo, a Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu
artigo 268.°, n.° 4, e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no seu artigo 52.°, n.°
1, consagram o princípio de que a impugnabilidade dos actos administrativos não depende da
forma segundo a qual esses actos foram praticados1.

A doutrina distingue, portanto, dentro do universo dos actos jurídicos que são
adoptados sob a forma legislativa, aqueles que são apenas formalmente legislativos, mas, na
realidade, contêm decisões materialmente administrativas, daqueles que podem e dever ser
qualificados como legislativos, não apenas do ponto de vista formal, mas também do ponto de
vista material.
No primeiro tipo de situação, a decisão, embora contida num acto formalmente
legislativo, é meramente administrativa porque é, na realidade, adoptada ao abrigo de lei
anterior, em cujos pressupostos já se encontram assumidas as opções políticas primárias que
competiam ao legislador: trata-se, pois, de uma decisão que é produzida no exercício de uma
competência tipificada numa lei e que, portanto, apenas pode envolver a eventual realização de
opções circunscritas a aspectos secundários, menores ou instrumentais em relação às opções já
contidas nessa lei.
Pelo contrário, no segundo tipo de situação, a decisão pode e deve ser qualificada, do
ponto de vista material, como legislativa na medida em que exprime a realização de opções
primárias, inconstituídas, com um conteúdo inovador - expressão da intencionalidade
específica, consubstanciada na formulação de opções políticas primárias da comunidade
política, que é característica do exercício da função legislativa2.
Com efeito, como a função legislativa exprime a vontade politica primária da
comunidade, definindo o que esta assume ser o interesse geral, para que uma norma seja
materialmente legislativa, ela tem de ser uma fonte de direito inicial e, portanto, de ter um
conteúdo inovador, determinado por directo apelo à consciência ético-social vigente. Pelo
contrário, como à função administrativa corresponde um papel condicionado e subordinado de
concretização, de realização prática do interesse geral superiormente definido pelo legislador,
o contributo inovador dos comandos ditados a esse nível não pode deixar de circunscrever-se a

1 - Cfr., por todos, DIODO FREITAS Do AMARAL, Direito Administrativo, vol. IV, Lisboa, 1988, pp. 153 segs.;
MARIO AROSO DE ALMEIDA, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., Coimbra, 2005,
p. 162.
2 - Para o quadro terminológico subjacente à contraposição traçada no texto, cfr. MANUEL AFONSO VAZ, Lei e
causa da lei. A causa da lei na Constituição Portuguesa de 76, Porto, 1995, designadamente a pp. 57-58, 406-408,
421-423, 494-504, 507 e 512. Em geral sobre a questão da materialidade do conceito de lei, cfr., por todos, CARLOS
BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas, Coimbra, 1998, pp. 83 segs.
aspectos secundários, menores ou instrumentais, como o desenvolvimento ou a adaptação das
normas legais, por razões de eficiência, de flexibilidade e de proximidade em relação aos factos3.
Repare-se, entretanto, que a materialidade do acto legislativo não se confunde com o
carácter geral e abstracto das determinações nele contidas. Embora, por regra, a
intencionalidade própria da função legislativa se tenda a exprimir na emissão de regras de
carácter geral e abstracto, a verdade é que é frequente o fenómeno da aprovação de actos
legislativos que, embora exprimam uma opção política primária, inovadora, introduzem uma ou
mais determinações de conteúdo concreto, correspondendo, assim, ao que, na doutrina, tem
sido qualificado como leis-medida (Massnahmengesetz)4.
Pode, pois, dizer-se que o exercício da função legislativa só tendencialmente se
concretiza na emanação de normas gerais e abstractas. Decisiva é a intencionalidade do acto, o
facto de introduzir opções políticas primárias, por apelo directo à consciência ético-social
vigente na comunidade. Desde que isto suceda, temos um acto materialmente legislativo, ainda
que as opções nele contidas tenham conteúdo concreto5.
È, pois, neste domínio que se coloca a questão da eventual responsabilidade do Estado
pelo exercício da função legislativa.
2. ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DO ESTADO POR DANOS DECORRENTES DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA

Já em momento anterior ao da sua regulação no artigo 15.° do novo regime da


responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, era reconhecida
na nossa ordem jurídico-constitucional, à face do disposto no artigo 22.° da CRP, a existência do
instituto da responsabilidade do Estado por danos ilicitamente causados no exercício da função
legislativa.
Por estritas razões de economia de exposição, permitimo-nos, a este propósito, remeter
para a conseguida síntese de Rui Medeiros6, que se passa a enunciar.

"Aparentemente, dir-se-á que as diversas opiniões que têm sido manifestadas nos anos
mais recentes [sobre a matéria da responsabilidade do Estado pelo exercício da função
legislativa] são muito diversas, impedindo por isso que, mesmo em pontos essenciais, se possa
falar numa communis opinio.
"Todavia, e em rigor, não é isso o que se passa. Com efeito, não obstante as dificuldades
interpretativas que o art. 22.° [da CRP] suscita e as controvérsias doutrinais que em torno dele
têm surgido, existe actualmente um consenso muito alargado - que não é sinonimo de
unanimidade - sobre as questões fundamentais em que se joga o tudo ou nada de uma acção
de indemnização proposta, mesmo na ausência de lei concretizadora do art. 22.°, contra o

3 - Cfr. MANUEL AFONSO VAZ, op. loc. cits.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, op. cit., pp. 130 segs.
4 - 4 Sobre o conceito, cfr. JORGE MIRANDA. "Sentido e conteúdo da lei como acto da função legislativa", in Nos

Dez Anos da Constituição, Lisboa, 1987, pp. 188-190; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7.• ed., Coimbra, 2003, pp. 717 segs., com outras referências. Para uma apreciação critica, entretanto, das
complexas questões que, entre nós, se colocam a propósito do conceito de lei-medida, cfr. MARIA LÚCIA AMARAL
PINTO CORREIA, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar da Legislador, Coimbra, 1998,
designadamente a pp. 260 segs.
5 - Cfr., a propósito, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 3.ª ed., Coimbra, 2004, pp. 137-

139 e 150.
6 - Cfr. RUI MEDEIROS, "A responsabilidade civil pelo ilícito legislativo no quadro da reforma do Decreto-Lei n.° 48

051", Cadernos de Justiça Administrativa n.° 27, pp. 20 segs.


Estado por acções ou omissões ilícitas do Legislador. Isto é bem visível na resposta
substancialmente comum que a doutrina largamente dominante dá a três aspectos centrais da
teoria da responsabilidade por facto ilícito do Legislador.

"1º) O art. 22.° estabelece um princípio geral de responsabilidade por facto das leis7.

“2º) Não obstante ser controverso se este preceito vale apenas para a responsabilidade
por factos ilícitos ou, pelo contrário, abrange também a reparação pelo sacrifício ou pelo risco,
cabe claramente no âmbito do art. 22.° a responsabilidade por ilícito legislativo8.
"Convém referir antes de mais que são já em número significativo os autores que
sustentam que o art. 22.° da Constituição está justamente pensado para a responsabilidade por
factos ilícitos, cobrindo assim também os danos causados pelo ilícito legislativos.
"Todavia, mesmo os autores que recusam uma leitura mais restritiva do art. 22.° da
Constituição não hesitam em vislumbrar nesse preceito constitucional o fundamento para uma
responsabilidade civil do Estado pelo exercício ilícito da função legislativa9.

"3.°) Em face da omissão do Legislador, que tarda em concretizar a referida disposição


constitucional, o art. 22.° pode ser directamente invocado [...] actualmente, a esmagadora
maioria da doutrina [...] não hesita em reconhecer que este preceito constitucional pode já hoje,
mesmo na ausência de lei, ser aplicado directamente pelos tribunais numa acção de
responsabilidade"10.
Como, entretanto, também refere o mesmo Autor, com indicação de referências, "este
entendimento - adoptado pela doutrina largamente maioritária - obteve inequívoco
acolhimento na jurisprudência". E por isso concluía o Autor que o art. 22.° da CRP era "uma

7 - Cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 2000, p. 289; GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1999, pp. 474-475; GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 168;
JOÃO CAUPERS, "Responsabilidade do Estado por actos legislativos e judiciais", in La responsabilidade patrimonial
de los poderes públicos, Madrid, 1999, pp. 79 segs.; MARIA DA GLORIA GARCIA, A responsabilidade civil do
Estado e demais pessoas colectivas públicas, Lisboa, 1997, p. 62; MARIA LUISA DUARTE, "A responsabilidade dos
Estados-membros por actos normativos e o dever de indemnizar os prejuízos resultantes da violação do Direito
Comunitário - em especial, o caso português", in A cidadania da União e a responsabilidade dos Estados por violação
do Direito Comunitário, Lisboa, 1994, pp. 83-84; MARIA Jota RANGEL DE MESQUITA, "Responsabilidade do
Estado e demais entidades públicas: o Decreto-Lei n.° 48 051, de 21 de Novembro de 1967, e o artigo 22.° da
Constituição", in Perspectivas Constitucionais, vol. II, Coimbra, 1997, pp. 380 segs.; LUÍS CATARINO, A
responsabilidade do Estado pela administração da justiça, Coimbra, 1999, p. 152.
8 - Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, "Responsabilidade dos estabelecimentos públicos de saúde: culpa do agente

ou culpa da organização?", in Direito da saúde e da bioética, Lisboa, 1996, pp. 162-163; M. REBELO DE
SOUSA/MELO ALEXANDRINO, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lisboa, 2000, p. 105;
MANUEL AFONSO VAZ, A responsabilidade civil do Estado - considerações breves sobre o seu estatuto
constitucional, Porto, 1995, pp. 8-9 e 12-13; MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., pp. 58-59 e 66. V. ainda, embora
em termos menos incisivos, J. CAUPERS, op. cit., p. 83.
9 - Cfr. JORGE MIRANDA, Manual… cit., tomo IV, pág. 289/290 e 293; GOMES CANOTILHO, Direito

Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1999, p. 476; MARIA LUÍSA DUARTE, op. Cit., pp 85/86.
10 - Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1999, p. 476; GOMES

CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Op. cit., p. 170; M. REBELO DE SOUSA/MELO ALEXANDRINO, op. cit., cít.,
p. 105; MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., p. 61; MARIA LUISA DUARTE, op. cit., pp. 87-89, e "O artigo 22.°
da Constituição Portuguesa e a necessária concretização dos pressupostos da responsabilidade extracontratual do
legislador - ecos da jurisprudência comunitária recente", in Legislação n.° 17 (1996), pp. 17-18 e 33, em nota. V. ainda
JORGE MIRANDA, Manual..., cit., tomo IV, p. 269; ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO/MARIO JOAO
FERNANDES, Comentário à IV Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, p. 107. V., enfim, PAULO OTERO,
"Responsabilidade civil pessoal dos titulares de órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado", in La
responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, Madrid, 1999, p. 492; MARIA JOSÊ RANGEL DE MESQUITA,
op. cit., p. 392; LUIS CATARINO, op. cit., pp. 171 segs.
norma directamente aplicável mesmo na falta de lei concretizadora, cabendo aos juízes e aos
tribunais criar a norma de decisão respectiva".
Cumpre ter, pois, presente que, já antes da entrada em vigor do novo regime agora
introduzido, era entendimento generalizado, tanto na doutrina, como na jurisprudência, que do
artigo 22.° da CRP decorria o fundamento directo da responsabilidade do Estado pelo facto das
leis, competindo, por isso, aos juízes, na falta de lei concretizadora, proceder à densificação dos
correspondentes pressu-postos, a partir do referido artigo 22.° e/ou dos princípios gerais da
responsabilidade civil. A responsabilidade do legislador não constitui, portanto, uma
excentricidade que o legislador, com a Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro, se tenha agora
lembrado de inventar. Pelo contrário, do que se trata é de procurar preencher o vazio normativo
dentro do qual os tribunais se vinham, até agora, movendo, em matéria tão sensível e delicada,
densificando os pressupostos de que, de harmonia com o que tem defendido a doutrina
maioritária, deve depender a responsabilidade do Estado pelo facto das leis.

3. PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO POR FACTO


ILÍCITO COMETIDO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA

Como é sabido, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual subjectiva são


quatro: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

3.1. O pressuposto da ilicitude

Existe uma conduta ilícita por parte do legislador, passível de constituir o Estado em
responsabilidade por facto ilícito, quando o legislador produza urna lei que viole parâmetros
objectivos de validade que se lhe imponham e da qual resulte a ofensa de direitos ou interesses
juridicamente protegidos. Para que a conduta do legislador seja ilícita, é, pois, necessário que
ela configure a violação de normas cuja observância se lhe imponha e que daí advenha a lesão
de direitos ou interesses juridicamente protegidos11.
Neste sentido, o n.° 1 do artigo 15.° do novo regime procura densificar este critério,
prevendo que a ilicitude pode advir da "desconformidade com a Constituição, o direito
internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado"12.

3.2. O pressuposto da culpa

11- Cfr. RUI MEDEIROS, "A responsabilidade civil...", cit., p. 26.


12 - Como é sabido, as leis de valor reforçado têm em comum o facto de serem actos legislativos com um valor
paramétrico em relação a outros actos legislativos, que lhes devem obediência e para os quais eles funcionam como um
marco de aferição da respectiva validade material. Entre as leis de valor reforçado e as leis que venham a ser emanadas
dentro do respectivo âmbito de aplicação existe, com efeito, uma relação de prevalência funcional, por força da qual
serão inválidas as disposições contidas nas leis que, devendo fazê-lo por se reportarem a matéria por ela regulada, não
se conformem com os parâmetros de validade decorrentes de uma lei de valor reforçado. Em geral sobre as leis de valor
reforçado, cfr., por todos, JORGE MIRANDA, Manual..., cit., tomo V, pp. 353 segs.; GOMES CANOTILHD, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7.° ed., pp. 781 segs.; BLANCO DE MORAIS, op. cit., designadamente a pp.
157 segs., que, no sentido do texto, utiliza o conceito de parametricidade directiva para explicar a capacidade da lei de
valor reforçado de "fixar vínculos de direcção material sobre outras leis".
Não se pode deixar de entender, à face do disposto no n.° 4 do artigo 15.° do novo
regime, que a responsabilidade civil do Estado pelos danos resultantes do exercício da função
legislativa pressupõe a existência de culpa13.
Tem sido reconhecido, é certo, que o conceito civilístico de culpa se conjuga mal com a
liberdade de conformação inerente à função política e com o contraditório inerente ao
pluralismo parlamentar, pelo que só se pode falar neste domínio em culpa numa acepção
objectivizada e imbricada com o princípio da responsabilidade política14. Mas isso explica,
precisamente, a previsão do n.° 4 do artigo 15.° do novo regime.
Nas palavras de Antunes Varela, pode, com efeito, dizer-se, em termos gerais, que "agir
com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura
do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das
circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outra
forma"15. Por esse motivo, o referido artigo 15.° adopta, no seu n.° 4, o critério de saber se,
atendendo às circunstâncias concretas do caso, o legislador podia e devia ter evitado a conduta
ilícita, inspirando-se para o efeito, no modo como o Tribunal de Justiça da União Europeia vem
exigindo uma violação suficientemente caracterizada do Direito Comunitário para reconhecer a
existência de responsabilidade dos Estados membros da União por violação grave e manifesta
de obrigações impostas pelo Direito Comunitário, "de tal modo que o conteúdo do acto
demonstre que o seu autor agiu de modo arbitrário e em flagrante violação das regras
conformadoras da sua competência"16.
Afigura-se, em todo o caso, válido, no domínio em análise, o critério geral — que, no
domínio da responsabilidade pelo exercício da função administrativa, veio, de resto, a encontrar
consagração expressa no artigo 10.°, n.° 2, do novo regime — de que, quando a responsabilidade
dos poderes públicos decorre da prática de um acto jurídico ilícito, é, por regra, de entender que
existe uma presunção de culpa, que "resulta do princípio segundo o qual a ilegalidade dos actos
jurídicos contém em si culpa suficiente, à luz da referência geral do Estado de Direito, para a
imputação ao Estado dos danos que tais actos produzem"17.

3.3. O pressuposto dos danos

De acordo com o disposto no artigo 15.°, n.° 1, o Estado só responde pelos danos
anormais que cause no exercício da função legislativa. O preceito faz, desse modo, apelo a um
conceito que, no domínio da responsabilidade pelo exercício da função administrativa, o
Decreto-Lei n.° 48 051 já utilizava e que, por conseguinte, foi sendo objecto, ao longo do tempo,
de aturada elaboração jurisprudencial e doutrinal. Como agora expressamente dispõe o artigo
2.° do novo regime introduzido pela Lei n.° 67/2007, a referência tem o alcance de limitar a

13 - Cfr. Rui MEDEIROS, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, Coimbra, 1992, p.
175.
14 - Cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., cit., tomo IV, pp. 294-295. Cfr. também Rui MEDEIROS, "A
responsabilidade civil..." cit., p. 27.
15 - Cfr. RUI MEDEIROS, Ensaio..., cit., p. 177.
16 - Cfr., a propósito, a intervenção de RUI MEDEIROS, Responsabilidade civil extra-contratual do Estado - Trabalhos
preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, p. 206.
17 - Para a afirmação, no domínio da responsabilidade pelo exercício da função administrativa, do critério em referência
no texto, cfr. BARBOSA DE MELO, "Responsabilidade civil extra-contratual - não cobrança de derrama pelo Estado",
in Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, tomo 4, pp. 37-38.
responsabilidade do Estado, no domínio em análise, à reparação dos danos "que, ultrapassando
os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito".
Note-se, porém, que o legislador não circunscreve a reparação aos danos especiais, tal
como definidos também no artigo 2.°: por conseguinte, a especialidade do dano constitui, nos
termos do artigo 16.°, pressuposto da obrigação de indemnizar pelo sacrifício - que, a nosso ver,
também se impõe ao legislador, quando em relação a determinada lei se preencham os
pressupostos do artigo 16°, sem que a lei em causa se refira à indemnização devida pelo
sacrifício por si imposto -, mas não da obrigação de reparar por facto ilícito. No propósito, ainda
assim de prevenir encargos demasiado pesados com o pagamento de indemnizações, o n.° 6 do
artigo 15° admite, no entanto, que o montante da indemnização a atribuir possa ser limitado,
quando seja muito elevado o número dos lesados18.

3.4. O pressuposto do nexo de causalidade entre os danos e o facto ilícito

Embora o artigo 15.° a tal não se refira, na apreciação do preenchimento deste último
pressuposto, cumpre distinguir os danos que devem ser efectivamente imputados à ilicitude da
lei, de outros eventuais danos, não imputáveis à lei, em si mesma considerada, mas a
circunstâncias exógenas entretanto verificadas, designadamente em virtude da deficiente
aplicação da lei.
Cumpre, em todo o caso, recordar que, para se poder dar por quebrado o nexo de
causalidade entre os danos e a conduta do legislador, é necessário que se possa afirmar que a
actuação que foi desenvolvida pelos órgãos incumbidos da execução da lei não foi uma
consequência provável da conduta do legislador, mas antes se apresentou como uma
consequência excepcional do quadro normativo resultante da lei19.
Acrescente-se, em todo o caso, que, ainda que, no plano dos factos, seja de concluir que
também houve lugar a uma execução negligente, por parte da Administração Pública, de uma
lei que já era, em si mesma, lesiva, essa eventual circunstância não tem o alcance de extinguir a
responsabilidade do legislador. Com efeito, se for de admitir que não só o legislador, ab initio,
mas também, mais tarde, certos órgãos administrativos concorreram, cada um à sua maneira e
na medida das suas funções, para a produção (e continuação) da situação danosa, apenas
restará concluir que existe um concurso de responsabilidades pelo exercício ilícito, tanto da
função legislativa, como, depois, da função administrativa. Nem por isso, deixará, pois, de existir
responsabilidade pelo exercício da função legislativa.

4. A RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DO LEGISLADOR

O artigo 15.º do novo regime em análise refere-se à responsabilidade pela omissão de


providências legislativas nos seus n.ºs 3 e 5.
No n.º 3, estabelece que essa responsabilidade só existe quando a omissão diga respeito
à adopção de "providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas
constitucionais": ou seja, quando exista uma situação de inconstitucionalidade por omissão, tal
como ela surge configurada no artigo 283.° da CRP. E, por isso mesmo, acrescenta, no n.° 5, que
a constituição nessa modalidade de responsabilidade depende da prévia verificação pelo

18 - Cfr., a propósito, Rui MEDEIROS, "A responsabilidade civil..." cit., p. 28.


19 - Cfr., com as devidas adaptações, RUI MEDEIROS, Ensaio..., cit., pp. 202-203.
Tribunal Constitucional, nos termos do referido artigo 283.° da CRP, da existência da situação de
inconstituciona-lidade por omissão.
Não podemos deixar de assinalar a infelicidade das soluções deste modo consagradas,
que, na prática, esvaziam o instituto da responsabilidade do Estado por omissão do dever de
legislar, em termos cuja conformidade ao disposto no artigo 22.° da CRP se afigura questionável.
Com efeito, afigura-se desde logo inaceitável que a constituição do Estado em
responsabilidade perante os lesados dependa, nas situações de inconstitucio-nalidade por
omissão, de uma prévia verificação, pelo Tribunal Constitucional, que, nos termos do artigo
283.° da CRP, os lesados não têm legitimidade para pedir, pois que, em termos gerais, só pode
ser requerida pelo Presidente da República ou pelo Provedor de Justiça20.
Mas, ainda mais grave, ao circunscrever a possibilidade da existência de
responsabilidade por omissão do legislador às situações previstas no n.° 3, de omissão de
providências necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais, o legislador deixa de
fora todo o universo das situações de incumprimento dos deveres de protecção de direitos
fundamentais que, nos modernos Estados de Direito democráticos, se tende a reconhecer que
se impõem ao legislador e que, pelo menos em situações de violação evidente, não se devem
deixar de considerar ressarcíveis à face do artigo 22.° da CRP, mesmo na ausência de previsão
no artigo 15.° em análise21.
Talvez se possa dizer que temos, finalmente, aqui a resposta ao caso Aquaparque.
Resposta, contudo, desproporcionada em nossa opinião, na medida em que -
independentemente do juízo crítico que, a nosso ver, merecem as decisões que foram proferidas
no caso Aquaparque (sem que, no entanto, o Estado tenha esgotado as vias de recurso de que
dispunha para reagir contra elas) - opções legislativas de fundo não devem ser influenciadas pela
eventual incorrecção de decisões jurisdicionais concretas.

5. O NOVO REGIME DE RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

A adequada compreensão do sentido da previsão introduzida pelo n.° 2 do artigo 15° do


novo regime em análise supõe um breve enquadramento, do ponto de vista da caracterização
do sistema dos recursos para o Tribunal Constitucional que se encontram previstos na CRP.

Como é sabido, o artigo 280.° da CRP prevê que cabe recurso para o Tribunal
Constitucional - em determinados casos, obrigatório para o Ministério Público - de todo um
conjunto de decisões dos tribunais que apliquem ou recusem a aplicação de normas com

20 - Veja-se, a propósito, o Acórdão n.° 238/97 do Tribunal Constitucional.


21 - Não se pode, pois, deixar de notar que vai (infelizmente) longe o tempo em que RUI MEDEIROS, "A
responsabilidade civil...", cit., pp. 28 segs., lançava a sua (desproporcionada) ira contra a (inocente) proposta de lei por
cuja elaboração fomos responsáveis, no âmbito do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da
Justiça, e que, no já longínquo ano de 2001, desencadeou o longo procedimento legislativo de mais de seis anos (I) que
conduziu à aprovação do novo regime aqui em análise — proposta à qual o referido Autor imputava "importantes
restrições juridicamente inaceitáveis", mas que, em todo o caso, nem circunscrevia a responsabilidade do legislador por
omissão às situações de inconstitucionalidade por omissão, nem fazia depender a constituição nessa modalidade de
responsabilidade da prévia verificação pelo Tribunal Constitucional da existência da situação de inconstitucionalidade
por omissão... Na verdade, o longo procedimento de elaboração do regime em análise foi marcado por uma evolução
marcada pela crescente limitação do âmbito da responsabilidade por omissões cometidas no exercício da função
legislativa. Veja-se, a propósito, a apreciação critica de Rui MEDEIROS, "Apreciação geral dos projectos", in Cadernos
de Justiça Administrativa n.° 40, pp. 16-17, embora ainda reportada aos projectos existentes em 2003.
fundamento na respectiva inconstitucionalidade ou ilegalidade por violação de leis de valor
reforçado.

Ora, para que um tribunal recuse, num determinado processo, a aplicação de uma
norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, é necessário que, nesse processo, ele
tenha sido chamado a aplicar essa norma ao caso concreto e, portanto, que a referida norma
constitua o padrão de decisão que ao tribunal cumpriria aplicar para a resolução do caso sub
iudice. Por este motivo se assume que o poder-dever de recusar a aplicação de normas
inconstitucionais é um poder de que, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, os tribunais
são investidos pelo artigo 204.° da CRP, que os impede de aplicar normas inconstitucionais aos
feitos submetidos ao seu julgamento, exigindo-lhes que os julguem como se não existissem as
normas julgadas inconstitucionais, aplicando, se for caso disso, e em vez delas, as normas
anteriores, que elas tinham vindo revogar ou substituir22/23. Sucede, porém, que, numa acção
de responsabilidade civil extracontratual do Estado fundada na prática de um ilícito legislativo
consubstanciado na emissão de uma lei inconstitucional - ou ilegal, por violação de lei com valor
reforçado -, o tribunal não é chamado a aplicar as normas da lei que no processo vem qualificada
como ilícita. Tais normas não constituem, na verdade, o padrão de decisão que o tribunal é
chamado a aplicar. Por conseguinte, o tribunal, no âmbito dessa acção, não pode, por definição,
recusar a aplicação das referidas normas (tal como também não pode, por definição, proceder
à respectiva aplicação...): na verdade, a lei alegadamente inconstitucional - ou ilegal - apenas
releva, no âmbito da acção, como um facto, que ao tribunal cumpre qualificar juridicamente.

As decisões que atribuem indemnizações por danos decorrentes da emissão de actos


legislativos ilícitos não põem, na verdade, em causa a capacidade de tais actos para produzir os
efeitos a que se dirigem: limitam-se a qualificar esses efeitos como ilícitos, para daí extraírem as
devidas consequências no plano da responsabilidade, sem porem em causa a subsistência na
ordem jurídica de tais efeitos, cuja produção assumem como um facto. É, aliás, porque esses
efeitos se produziram e subsistem na ordem jurídica que existem danos e cumpre repará-los.

Para melhor ilustrar a distinção, pense-se no exemplo da pessoa que, no âmbito de uma
acção de despejo, suscita o incidente da inconstitucionalidade da norma legal em que essa acção
se sustenta e que, portanto, o tribunal é chamado a aplicar no âmbito dessa acção. Se o tribunal
julgar a norma inconstitucional, recusará a sua aplicação e decidirá o caso como se a norma em
causa não existisse, fazendo com que os seus efeitos não se projectem sobre a esfera do
interessado, que não sofrerá, por isso, qualquer dano causado pela norma inconstitucional: a

22 - Cfr., por todos, CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, tomo II, Coimbra, 2005, p. 550;
GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., p. 1028.

23 Como explica GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., pp. 901 e 983, no
controlo concreto (difuso) de constitucionalídade, a cargo dos tribunais ordinários, trata-se de "dar operatividade prática
à ideia da judicial review americana: qualquer tribunal que tem de decidir um caso concreto está obrigado, em virtude
da sua vinculação pela constituição, a fiscalizar se as normas jurídicas aplicáveis ao caso são ou não válidas". Como
"uma norma em desconformidade material, formal ou procedimental com a constitucionalidade é nula", deve o juiz,
“antes de decidir qualquer caso concreto de acordo com esta norma, examinar ('direito de exame', 'direito de
fiscalização') se ela viola as normas e princípios da constituição. Desta forma, os juízes têm acesso directo á
constituição, aplicando ou desaplicando normas cuja inconstitucionalidade foi impugnada".
recusa de aplicação afasta a produção de efeitos lesivos no caso concreto e, portanto, a
ocorrência de danos.

A nosso ver, isto é precisamente o contrário do que sucede numa acção de


responsabilidade civil extracontratual fundada na inconstitucionalidade - ou na ilegalidade, por
violação de lei de valor reforçado - de uma norma legal, em que o tribunal que julga a norma
inconstitucional (ou ilegal) não procede, por definição, à recusa de aplicação dessa norma,
decidindo o caso como se ela não existisse, mas, pelo contrário, assume como um facto a
existência da norma, para o efeito de extrair consequências da sua ilicitude, no plano da
responsabilidade pelos danos que dela possam resultar.
Daqui se retira que a modalidade de juízo de inconstitucionalidade que os tribunais são
chamados a formular nas acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado emergente
da emissão de actos legislativos inconstitucionais (ou ilegais por violação de lei de valor
reforçado) não corresponde ao paradigma que se encontra subjacente ao sistema previsto na
CRP de fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade das normas e da legalidade das
leis. Como, na verdade, assinala Rui Medeiros, "a desvalorização da conduta inconstitucional
não é, em rigor, o único efeito da inconstitucionalidade. Sendo o efeito porventura mais
relevante e um efeito prototípico, outros podem existir. A obrigação de indemnizar por ilícito
legislativo é, precisamente, um dos outros efeitos da inconstitucionalidade: não se trata já de
impedir que a norma inconstitucional produza os efeitos jurídicos que lhe corresponderiam, mas
de eliminar todos os danos que resultaram da vigência da lei na ordem jurídica"24.

As decisões que, nas acções de responsabilidade pelo exercício da função legislativa, os


tribunais são chamados a proferir não se enquadram, por isso, no sistema de recursos para o
Tribunal Constitucional que se encontra previsto no artigo 280.° da CRP. Quando concebeu o
sistema de recursos das decisões jurisdicionais para o Tribunal Constitucional, reportando-o
exclusivamente às situações (paradigmáticas) de aplicação ou recusa de aplicação de normas, a
CRP não teve em vista a modalidade de juízo de constitucionalidade a que, no âmbito destas
acções, os tribunais são chamados a realizar.

É esta circunstância que o novo regime em análise procura dar resposta, no n.° 2 do
artigo 15.°, assegurando a existência, também nestes casos, de recurso para o Tribunal
Constitucional25.
A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DA ADMINISTRAÇÃO POR FACTO ILÍCITO:
REFLEXÕES AVULSAS SOBRE O NOVO REGIME
DA LEI 67/2007, DE 31 DE DEZEMBRO

CARLA AMADO GOMES

Elegendo como objecto de análise o novo regime da responsabilidade civil extracontratual da


administração por facto ilícito instituído pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, a autora principia a sua
exposição realçando a prevalência daquele regime sobre regimes especiais aplicáveis a entidades de
direito público, quando estes operem remissões para normas de imputação de matriz privada, bem como

24 - Cfr. RUI MEDEIROS, Ensaio..,, clt., p. 13.


25
sobre regimes especiais de responsabilidade aplicáveis a entidades privadas ancorados no Direito privado,
sempre que aquelas prossigam funções materialmente administrativas.
A autora concentra-se na definição do “âmbito objectivo da lei", o que a leva, por um lado, a colocar
em evidência a circunstância de esta contemplar qualquer forma de actividade administrativa e a
reconhecer que a LRCEE confere plena efectividade ao artigo 22.° da CRP na medida em que contempla
todas as situações potencialmente geradoras de responsabilidade.
No plano da "solidariedade entre pessoa colectiva e titular do órgão/funcionário agente do dano",
a autora conclui no sentido de que a consagração da solidariedade entre titular de órgão, agente ou
funcionário e pessoa colectiva, nos termos do artigo 8.°/2 da LRCEE e sob o impulso do artigo 22.° da
CRP, constitui uma mais-valia para as vítimas de acções ou omissões ilícitas, porque lhes permite optar na
escolha do réu da acção de efectivação da responsabilidade.
No que respeita á "responsabilidade pelo risco", autora faz notar que o instituto, presente no artigo
11.° da LRCEE, exprime um aligeiramento do limiar de imputação dos danos relativamente ao anterior
regime, na medida em que abandona a qualificação da excepcionalidade da actividade, substituindo-a pela
especialidade.
No que respeita á "indemnização por danos infligidos a bens de fruição colectiva" que afirma
derivar fundamentalmente do n.° 3 do artigo 52.° da CRP, a autora lamenta o facto de o legislador não ter
concretizado esta dimensão protectiva na Lei 83/95, de 31 de Agosto, fazendo simultaneamente notar que
tal inércia legislativa — configuradora de uma autêntica inconstitucionalidade por omissão — poderia ter
sido atalhada com a LRCEE caso esta contivesse uma alteração/aditamento á Lei 83/95, de 31 de Agosto.

SUMÁRIO: 0. Considerações gerais; 1. Âmbito objectivo da Lei; 1.1. Responsabilidade por


violação de normas de Direito Comunitário; 2. Solidariedade entre pessoa colectiva e agente do
dano; 3. Responsabilidade por défice de ponderação de circunstâncias de risco; 4. Indemnização
por danos infligidas a bens de fruição colectiva

O texto suportou a intervenção oral da autora nas Jornadas sobre A nova lei da responsabilidade
civil extracontratual do Estado, promovidas pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, nos dias 13 e 14 de Março de 2008. Agradece-se ao Doutor Jorge
Miranda a lembrança do convite.

O. A Lei 67/2007, de 31 de Dezembro (Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado


e demais entidades públicas = LRCEE), foi fruto de uma longa espera26. Não tanto no plano da
responsabilidade da Administração, domínio coberto pelo DL 48.051, de 27 de Novembro de 196727, mas
sobretudo no tocante à responsabilidade dos órgãos e seus titulares das outras duas funções do Estado:
legislativa e jurisdicional. Este silêncio tornava-se crescentemente ruidoso em razão de dois factores
convergentes: em primeiro lugar, e logo desde 1976, a coincidência entre realização do Estado de Direito
e responsabilização das entidades públicas por quaisquer acções e omissões que violem direitos dos
particulares, traduzida no artigo 22.° da CRP; em segundo lugar, a pressão da jurisprudência internacional,
maxime comunitária, no sentido do ressarcimento de danos provocados aos particulares, quer por facto da
função jurisdicional (atraso na administração de justiça, pelo qual Portugal já foi diversas vezes condenado
pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem28; erro grosseiro na aplicação do Direito Comunitário, na
sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2003 — caso Köbler29), quer por facto
da função legislativa (não transposição ou transposição incorrecta de directivas comunitárias; não

26 - E de um tortuoso processo pois, como é do conhecimento geral, foi objecto de um veto político por parte do
Presidente da República, que obrigou a confirmação pela Assembleia da República, nos termos do artigo 136.°/2 da
CRP.
27 - Sobre este regime, veja-se Maria da Glória DIAS GARCIA, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas

colectivas, Lisboa, 1997, pp. 29 segs.


28 - Lembrem-se os casos Guincho (Acórdão de 10 de Julho de 1984), Barahona (Acórdão de 8 de Julho de 1987) e

Martins Moreira (Acórdão de 26 de Outubro de 1987) - e também, em geral, os casos identificados por Ireneu CABRAL
BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Anotada, 2.• ed., Coimbra, 1999, pp. 144 segs. (e notas).
29 - Caso C-224/01.
revogação de legislação nacional incompatível com normas comunitárias — na sequência da jurisprudência
Francovich e Brasserie du Pêcheur30).
Nestas breves linhas, vamos concentrar-nos na responsabilidade do Estado-Administrador, por
facto ilícito31, embora proponhamos uma passagem fugaz, em razão da contiguidade, pelos terrenos da
responsabilidade pelo risco. Dada a fertilidade da doutrina jus-administrativista e constitucionalista neste
domínio, vamos eximir-nos de grandes desenvolvimentos e resumir as nossas observações a alguns
pontos, que passaremos a identificar:

1. Âmbito objectivo da Lei;


2. Solidariedade entre pessoa colectiva e titular do órgão/funcionário agente do dano;
3. Pressupostos de fixação da indemnização em caso de responsabilidade pelo risco;
4. Responsabilidade por riscos imprevisíveis;
5. Indemnização por danos infligidos a bens de fruição colectiva.

Antes de entrar na apreciação destes aspectos, gostaríamos, telegraficamente, de deixar quatro


apontamentos, em sede geral:
i) Depois de estabelecer, no artigo 2.°/1, a preferência de regimes especiais de responsabilidade
civil extracontratual da Administração (v. g., Código das Expropriações) sobre o disposto na presente lei, o
artigo 2.°/2 da LRCEE assume o regime da responsabilidade civil por facto da função administrativa aí
contido como geral e subsidiário relativamente a qualquer situação de responsabilização de entidades
públicas, nomeadamente para efeitos de prevalência sobre qualquer remissão para regimes especiais de
direito privado. A pretensão do legislador é, claramente, a de gerar uniformidade, principiológica e
normativa, em sede de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos que desenvolvem a função
administrativa – sendo certo que o regime continua a ser tributário da legislação civilística, onde se encontra
sedeado o instituto transversal da responsabilidade civil, mal se compreendendo a opção envergonhada
do legislador em ter retraído a consagração expressa da aplicação subsidiária do Código Civil32.
Daí que a articulação entre os n.°s 1 e 2 deste preceito, bem como com o n.° 5 do artigo 1.° do
Decreto Preambular, nos leve a crer, por um lado, na prevalência da LRCEE sobre regimes especiais
aplicáveis a entidades de direito público quando estes operem remissões para normas de imputação de
matriz privada e, por outro lado, na prevalência da LRCEE sobre regimes especiais de responsabilidade
aplicáveis a entidades privadas ancorados no Direito privado, sempre que aquelas prossigam funções
materialmente administrativas, identificadas através da concessão de prerrogativas de autoridade ou da
conformação por normas de Direito Administrativo;

ii) Na lógica da uniformização do regime de responsabilidade civil extracontratual por actos da


função administrativa, a LRCEE aplica-se, como se viu, a entidades privadas investidas em tarefas
materialmente administrativas ou submetidas ao Direito Administrativo33 — artigo 1.°/5 do Decreto
Preambular — bem assim como, evidentemente, a entidades públicas integradas na função administrativa.
No entanto, e contrariando algumas vozes34, o legislador não prescindiu da distinção entre "gestão pública"
e "gestão privada", embora tenha abandonado esta terminologia, na qual ecoava o seminal Acórdão Blanco,
do Tribunal de Conflitos francês35. Com efeito, o n.° 2 do artigo 1.° do Decreto Preambular à LRCEE

30 - Acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Casos c-6/90 e 9/90, e de 5 de Março de 1993, Casos C-46/93 e 48/93,
respectivamente.
31 - Sobre o regime da nova lei, veja-se Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS,

Responsabilidade civil administrativa, Lisboa, 2008, pp. 18 segs.


32 - O Código Civil não só contém a chave de decifração de um conjunto de conceitos utilizados pela LRCEE — danos

patrimoniais e não patrimoniais; danos futuros (artigo 3.°/3) —, como é destinatário de remissões expressas daquela
Lei (cfr. os artigos 5.° e 10.°14).
33 - Numa extensão plenamente justificada pela despublicização formal e que vai ao encontro, quer de disposições de

natureza substantiva como os n °s 3 e 4 do artigo 2.° do CPA, quer de normas adjectivas como a da alínea i) do n.° 1
do artigo 4.° do ETAF.
34 - Vasco PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo perdido, Coimbra, 1996, pp. 108 (nota 2) e 109;

do mesmo Autor, ver também Responsabilidade Administrativa em matéria de Ambiente, Lisboa, 1997, pp. 19-20. Para
uma defesa da dualidade de regimes, Diogo FREITAS DO AMARAL, A responsabilidade da Administração no Direito
Português, Lisboa, 1973, pp. 19-20.
35 - Sobre o significado desta jurisprudência, veja-se o nosso Contributo para o estudo das operações materiais da

Administração Pública e do seu controlo jurisdicional, Coimbra, 1999, pp. 273 segs. e doutrina citada.
estabelece que "... correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas
no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito
administrativo", delimitação que afasta do regime da LRCEE as acções e omissões de entidades públicas
e privadas investidas na função administrativa que não se traduzam na actuação de poderes de autoridade.
Nestas hipóteses, continuam a aplicar-se os artigos 501.° e 500.° do Código Civil — responsabilidade dos
comitentes e comissários —, desvirtuando-se assim, sem razão bastante (uma vez que, mesmo destituída
de poderes de autoridade, a entidade administrativa prossegue um interesse público), o propósito de
harmonização de regimes (só parcialmente) subjacente à LRCEE36;

iii) Correspondendo à pressão doutrinal37, a LRCEE esclarece que o concurso de culpa do lesado
não é facto impeditivo de imputação da responsabilidade à entidade directamente responsável pelo dano,
mas apenas causa de redução (ou, no limite, exclusão) do montante indemnizatório. Como se sabe, este
esclarecimento tomava-se necessário em virtude da ambígua fórmula utilizada pelo artigo 7.°, 2.ª parte, do
DL 48.051, susceptível de ser aproveitada de molde a excluir a imputação sempre que se verificasse
concurso de culpa do lesado, nomeadamente devido à falta de propositura atempada do meio processual
tendente à minimização dos danos38 (na época, reduzido à providência cautelar da suspensão de eficácia
do acto, cuja concessão se pautava por critérios altamente restritivos). A LRCEE continua a investir o lesado
no ónus de utilização atempada da via processual adequada, mas deixa claro que "cabe ao tribunal
determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham
resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída" (artigo 4.° do
Decreto Preambular). Só é pena que, surgindo após a reforma da legislação processual administrativa, o
artigo 4.° da LRCEE ainda circunscreva (mesmo que exemplificativamente) "a via processual adequada" à
"eliminação do acto lesivo"39 e não tenha enveredado por uma terminologia mais abrangente — como, por
exemplo, a cessação de efeitos da conduta lesiva (que cobriria, quer actuações materiais e jurídicas, quer
acções e omissões);

iv) A epígrafe do artigo 6.° do Decreto Preambular da LRCEE é enganadora, uma vez que esta
norma impõe, mais do que um direito de regresso, um verdadeiro dever de regresso da entidade pública
contra o funcionário que, nos termos do artigo 8.°/1 do Decreto Preambular da LRCEE, agir com dolo ou
culpa grave no exercício das suas funções e, por causa desse exercício, tenha provocado danos40. Este

36 - Entrelaçando-se com as cláusulas de jurisdição definidas no artigo 4 °/1/g) e i) do ETAF — os tribunais


administrativos ocupam-se dos litígios emergentes de actuações ou omissões que, configurando relações jurídicas
administrativas, causem lesão aos particulares, quer sejam desenvolvidas por entidades públicas, quer por entidades
privadas. Assim, traduzindo o exercício de funções materialmente administrativas, ainda que não traduzindo o exercício
de poderes de autoridade e envolvendo sujeição a normas de Direito privado, as acções e omissões danosas imputáveis
a estas entidades, no âmbito destas situações, deverão ser sindicáveis junto dos tribunais administrativos.
Esta é a postura do Tribunal dos Conflitos, reportada ainda a uma situação resolvida à luz do DL 48.051, expressa no
Acórdão de 26 de Setembro de 2007 (proc. 13/07). O Tribunal obtemperou que "mesmo os actos de gestão privada
praticados no quadro de actividades funcionalmente administrativas pelas pessoas colectivas de direito público ou pelos
titulares dos seus respectivos órgãos (...) dão lugar à existência de uma relação jurídico-administrativa regulada pelo
direito público". Pronunciando-se no sentido da valência desta posição no contexto do entrelaçamento entre o artigo
4.°/1/g) do ETAF e a LRCEE, Rosendo DIAS José, Súmula de jurisprudência constitucional, in CJA, n.° 66, 2007, p.
70 (apelando à promoção da tutela efectiva que esta opção acarreta).
37 - Nomeadamente, de Rui MEDEIROS, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos,

Coimbra, 1992, pp. 217 segs., max. 223. Leiam-se também as extensas considerações de Carlos CADILHA,
Responsabilidade da Administração Pública, in Responsabilidade civil extra-contratual do Estado. Trabalhos
preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, pp. 235 segs., 243 segs.
38 - Era a posição sustentada por A. Queiró (conforme esclarece Rui MEDEIROS), que influenciou alguma

jurisprudência, já ultrapassada. Cfr., por exemplo, o Acórdão do STA de 3 de Novembro de 2005 (Proc. 01028/04), no
qual se entendeu que o art. 7º,/2, 2ª parte, do DL 48.051 não continha uma excepção peremptória preclusiva do direito
de indemnização por concurso de culpa do lesado.
39 - Recorde-se que, nos termos do artigo 58.°/4 do CPTA, o prazo de impugnação dos actos administrativos anuláveis

estabelecido no n.° 2/b) do mesmo preceito, não é peremptório, dada a possibilidade de, invocando ter sido induzido
em erro, ter laborado em erro desculpável ou ter sido confrontado com um justo impedimento, o interessado propor a
acção de anulação até ao prazo-limite de um ano, contado nos termos do artigo 59°/1, 2 e 3 do CPTA.
40 - A mensagem do Presidente da República à Assembleia da República, explicativa do veto político quanto ao primeiro

decreto aprovado por esta contém, no ponto 6., uma advertência relativa ao exercício do dever de regresso pelas
entidades públicas, o qual implicará custos de sobrecarga da máquina judicial (administrativa), e custos de
operacionalidade do serviço (directos, em virtude da ausência do funcionário do serviço para cumprir as obrigações
dever, ancorado no princípio da culpa, tende a incrementar a diligência e cuidado dos titulares dos órgãos
e dos agentes e garante que o erário público só responde subsidiariamente por danos causados por incúria
dos funcionários em face dos seus deveres funcionais41. A dúvida que desponta é a de saber se também
no caso da extensão do regime da LRCEE a entidades privadas investidas em funções materialmente
administrativas este dever se impõe. Tenderíamos a considerar que sim, em razão da idêntica valência do
primeiro argumento, ainda que não do segundo (o erário público não sai beliscado com a não actuação do
dever de regresso pelas pessoas colectivas privadas).

1. O âmbito da LRCEE42 contempla qualquer forma de actividade administrativa, traduzida no


exercício de poderes de autoridade ou na sujeição a princípios e normas de Direito Administrativo, cuja
actuação ou omissão cause lesão aos particulares. No plano da responsabilidade por factos ilícitos, e em
virtude da indistinção do grau de ilicitude de acções e omissões capaz de gerar responsabilidade das
entidades públicas decorrente do artigo 22.° da CRP, os artigos 7.° e 8.° contemplam uma ampla paleta
de situações, desde a falta leve, passando pela falta grave e culminando na falta dolosa. O que varia é o
sujeito da imputação, no plano das relações externas. De fora ficam as chamadas faltas pessoais,
cometidas pelos titulares de órgãos e agentes no exercício das funções mas não por causa desse
exercício43.
Aferindo a compatibilidade destas normas com a matriz constitucional do artigo 22.° conclui-se
que o legislador ordinário cobriu todas as hipóteses de responsabilização das entidades que exercem a
função administrativa, desde a falta leve à falta dolosa (todas as acções e omissões ilícitas)44. No caso da
falta do serviço, a LRCEE associou a ilicitude às situações em que o funcionamento da estrutura
administrativa não corresponde aos padrões médios que seriam razoavelmente exigíveis com vista à
satisfação atempada das solicitações dos utentes (v. g., repartição pública que funciona, durante um certo
período, apenas com um funcionário, devido à requisição de um segundo e a baixa por doença de um
terceiro; empresa transportadora que tem 10 veículos a operar, quando seriam necessários 15) - artigos
9.°/2 e 7.°/4.
Note-se, por um lado, que esta despersonalização da ilicitude – ou a acentuação da vinculação à
legalidade – não significa que a "má administração"45 possa ser sindicada por quem quer que seja,
desconectada de um prejuízo singular. O mau funcionamento dos serviços, para relevar em termos de
responsabilidade civil por facto ilícito, deve ser causa adequada de um dano individualizado, não bastando
a sua configuração como uma violação da legalidade objectiva ou um incómodo para a colectividade em
geral46. Não são concebíveis as figuras da acção pública, ou das acções intentadas por autores populares
para fazer cessar uma situação de funcionamento anormal do serviço, muito menos para requerer

inerentes ao processo judicial, e indirectos, uma vez que terá que suportar os custas da defesa). Além da eventual inércia
gerada pela responsabilização directa, que poderá conduzir os funcionários a não agir.
41 - Trata-se de um dever imperfeito, uma vez que a LRCEE não associa à ausência da sua efectivação qualquer reacção.

Tenderíamos a defender a utilização da acção pública, pela via da acção administrativa comum (artigo 37.°/1/d) do
CPTA), para forçar a condenação da entidade à propositura da acção - ou, como alvitrou J. M. SERVULO CORREIA
em intervenção oral nas Jornadas, a acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido (por relação
com o n.° 2 do artigo 14°, que refere uma "decisão"), promovida pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 68.°/1/c)
do OPTA.
De todo o modo, as consequências financeiras da omissão do dever de regresso sempre serão controláveis através da
intervenção do Tribunal de Contas (esta sugestão foi deixada por Luís Fábrica nas Jornaads sobre a LRCEE promovidas
pelo IGAP no dia 5 de Maio de 2008, na Faculdade de Direito da Universidade Católica (Porto) nas quais interviemos).
42 - Doravante, os artigos citados sem referência constam do Decreto Preambular da LRCEE.
43 - Cfr. um caso de fronteira que atesta bem as dificuldades de delimitação deste segmento no Acórdão do STA, I, de

12 de Julho de 1990, in Apêndice ao DR, de 31 de Janeiro de 1995, pp. 4275 segs. (espancamento de um técnico de
Informática em visita de serviço á Base do Alfeite por um oficial na sequência de uma interpelação, não acatada, para
mover a viatura em que se deslocava para outro local — o Tribunal considerou que havia falta funcional, cometida em
"progressão emocional").
44 - Inclusive, no âmbito pré-contratual (artigo 7.°/2), numa referência quiçá redundante em face da abertura do artigo

4 °/1/g) do ETAF, só compreensível em razão de exigências da Comissão Europeia relativamente ao cabal cumprimento
das Directivas Contratos. Sobre este especifico regime de responsabilidade, veja-se o artigo de Esperança MEALHA,
também inserido neste número.
45 - Cfr., sobre o conceito de "boa administração", Mário Aroso DE ALMEIDA, O Provedor de Justiça como garante

da boa administração, in O Provedor de Justiça. Estudos. Volume comemorativo do 30.° Aniversário da Instituição,
s/local, 2006, pp. 13 segs.
46 - Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por facto lícito, Coimbra, 1974, pp.

74-75.
indemnizações com esse fundamento. O risco do mau funcionamento da estrutura administrativa da
Administração de prestação, suportada por um Estado crescentemente deficitário em virtude do aumento
de despesas com prestações sociais, deve ser suportado por todos como um risco de civilização — embora
sujeito a gerar responsabilidades específicas em caso de dano localizado.
Por outro lado, a irrelevância da ilegalidade de certas actuações (ou omissões) administrativas,
seja ou não identificável o seu autor, não pode ser arbitrariamente sustentada, sob pena de constituir uma
compressão intolerável do princípio da responsabilidade (ou mesmo um esvaziamento deste). Exemplo
paradigmático é o dos vícios formais, cujo branqueamento por renovação do acto inviabilizaria qualquer
pedido ressarcitório — embora a sua verificação abra caminho à anulação (ou declaração de nulidade) do
acto. Assim já o entendeu o Tribunal Constitucional, no Acórdão 154/2007, no qual estava em causa a
conformidade da interpretação do artigo 2.°/1 do DL 48.051 com o artigo 22.° da CRP, disposição em que
o juiz a quo se baseou para rejeitar uma pretensão indemnizatória de um particular que pretendia ver-se
ressarcido pelos danos sofridos na sequência da prolação de um despacho de suspensão, não
fundamentado, dos efeitos de um acto favorável, que veio, aliás, a ser judicialmente anulado.
Apesar de ter dado procedência ao pedido anulatório, o tribunal administrativo considerou
improcedente o pedido de ressarcimento de danos provocados pela paralisação da obra (uma instalação
de cultura de rodovalho), alegadamente com causa na falta de fundamentação do despacho que decretou
o embargo. As normas impositivas do dever de fundamentação teriam por âmbito de protecção, segundo o
tribunal, a transparência administrativa e não qualquer "direito à fundamentação", muito menos com
expressão económica47.
O Tribunal Constitucional, perante a tentativa de neutralizar o vício de forma como representação
de ilicitude relevante no contexto do artigo 22.° da CRP (numa visão optimizadora da norma fortemente
caracterizada pelo sistema de fiscalização, concreta, ao abrigo do qual actuou), afirmou que:

“... a verdade é que não é compatível com o artigo 22.° da Constituição uma interpretação do
artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 48.051 que exclua sempre e em qualquer caso a responsabilidade
do Estado por danos verificados na sequência de um acto administrativo anulado por falta de
fundamentação quando a sentença anulatória não for executada e não for praticado novo acto,
sem o vício que determinou a anulação, com o fundamento de que se não verifica nunca o
pressuposto da ilicitude do acto.
E isto se diz sem embargo de se não excluir a possibilidade de o pedido de indemnização vir a ser
julgado improcedente por não verificação de qualquer dos pressupostos da responsabilidade civil."

Por último, cumpre sublinhar que a ilicitude se basta com a falta leve - ainda que só a entidade
responda por dano eventualmente provocado. O artigo 10.°/2 estabelece que se presume "a existência de
culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos", sem prejuízo da possibilidade de demonstração de graus
mais elevados de culpa48. A culpa in vigilando é uma expressão da culpa leve (se não mais grave), nos
termos gerais da responsabilidade civil, uma vez que configura uma omissão de deveres de vigilância
impostos por lei, regulamento, norma técnica ou dados da experiência (artigo 10.º/3)49. A falta de serviço -
espantosamente - constitui outro campo onde a presunção de culpa leve decorre da ilicitude (artigos 9.°/2
e 10.°/2) -, ainda que sem possibilidade de identificação do "culpado"...

47 - Realce-se que o tribunal administrativo, tendo detectado o vicio de falta de fundamentação, não prosseguiu na
análise de outros vícios de que o acto alegadamente padecia. O que torna o vicio de forma um fundamento "solitário"
de sustentação da ilegalidade que, em virtude da não execução da sentença anulatória, acaba por carregar sobre os seus
ombros todo o peso da paralisação da obra e do dano do autor.
48 - Carlos CADILHA (Regime geral da responsabilidade civil da Administração Pública, in CJA, n° 40, 2003, pp. 18

segs., 29) sublinha que "a presunção de culpa não equivale, sem mais, a um dever objectivo de indemnizar, mas tão-
somente determina um agravamento da posição processual da Administração, que terá de comprovar que se empenhou
na procura da solução legal".
49 - A remissão da LRCEE para o Código Civil - nomeadamente, para o artigo 493.° - estabelece uma conexão entre a

responsabilidade por omissão ilícita e a responsabilidade pelo risco (artigo 11° da LRCEE), na medida em que o n.° 2
do artigo 493.° dispõe que "Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria
natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as
providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir". Ora, ainda que a Administração consiga ilidir a
presunção de culpa por omissão ilícita, pode vir ainda a confrontar-se com um pedido ressarcitório baseado na especial
perigosidade da actividade desenvolvida.
A imputação às entidades (e só às pessoas colectivas) com funções administrativas dos danos
gerados na sequência da prática de faltas leves é um imperativo constitucional (uma vez que o artigo 22.°
da CRP não distingue graus de ilicitude) e uma decorrência lógica dos princípios do Estado de Direito, da
dignidade da pessoa humana, da protecção dos direitos fundamentais pessoais e patrimoniais. E faz para
nós sentido que o funcionário seja eximido de responder (civilmente, pelo menos) por danos ocorridos por
efeito da prática de faltas cometidas com culpa leve, por força da concorrência de dois argumentos: em
primeiro lugar, em nome de uma ideia de proporcionalidade — só faltas com um determinado grau de culpa
devem penalizar o funcionário porque ele é humano, sujeito ao erro, desde que desculpável e não reiterado,
e o serviço tem que contar com esse dado objectivo; em segundo lugar, em nome dos princípios da
prossecução do interesse público e da eficiência administrativa (artigos 266.°/1 e 267.°/2 da CRP) — a
responsabilização directa do funcionário por qualquer falta poderia conduzir à paralisação da actividade
administrativa, devido ao espectro do ressarcimento de danos.
Se isto é verdade, não podemos, todavia, deixar de expressar, de iure condendo, uma dúvida
quanto à imputabilidade genérica por faltas leves. Sem negar a imperatividade do principio da
responsabilização das entidades com funções administrativas por quaisquer acções e omissões ilícitas —
porque ele decorre incontornavelmente do artigo 22.° da CRP —, hesitamos em admitir um princípio de
responsabilização plena, por qualquer dano verificado nestas circunstâncias. Isto porque nos parece
inquestionável a constatação de uma margem de risco de erro inerente à actuação da Administração
prestadora, com múltiplas solicitações, crescentemente complexas. Quer devido a falhas humanas, quer
em virtude de problemas de implementação de novas tecnologias de atendimento e processamento de
pedidos, gera-se um risco de civilização neste contexto que deve ser suportado por todos, salvo em
situações de danos anormais.
A contraposição do argumento de que o particular lesado é também contribuinte e com os seus
impostos paga para que a máquina administrativa funcione sem falhas — essa seria a via de repartição do
risco da exponencialidade performativa da Administração de prestação — é falaciosa, porque a
generalidade dos contribuintes acaba por ser duplamente prejudicada: não só paga os custos de (mau)
funcionamento; como tem que suportar indemnizações por qualquer dano decorrente de falta leve ou desse
mau funcionamento50. E nem se diga que o dano relevante é resultado de faltas grosseiras ou dolosas, e
que a falta leve tende a gerar danos insignificantes, porque tal correspondência está longe de ser
automática (um dano gravíssimo pode ter origem numa falta leve e um dano despiciendo pode resultar de
uma falta grave). Parece-nos que o princípio da justa repartição dos encargos públicos haveria de ter,
também nesta sede, uma aplicação, circunscrevendo o dever de indemnizar por falta leve (e, dada a
presunção de culpa leve que lhe vai (mal) associada, por falta de serviço) a casos de comprovada eclosão
de danos anormais na esfera jurídica dos particulares. Não foi esta, no entanto, a opção do legislador.
Suportaria esta hipótese argumentativa o confronto com o artigo 22.° da CRP? A primeira vista,
não, uma vez que, ao restringir o direito de indemnização por facto ilícito às vítimas de danos anormais,
estar-se-ia a pôr em causa o princípio de que o poder público deve responder por todas as condutas que
lesem, ilicitamente, os direitos dos particulares. Aceitando teoricamente a responsabilização a montante,
esvaziar-se-ia de sentido a jusante, aquando da aferição da anormalidade do prejuízo. Porém, não
podemos olvidar que, ainda que se possa retirar da previsão do artigo 22.° uma norma suficientemente
densa para sustentar um direito subjectivo (um direito fundamental de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias)51, ele deve ser submetido a um teste de compatibilidade com outras posições
jurídicas, nomeadamente com valores constitucionalmente protegidos que possam provocar compressões
do seu conteúdo. Haverá necessidade e equilíbrio na imposição do ressarcimento de danos cuja origem
são falhas inevitáveis e menores na engrenagem da complexa máquina administrativa da Administração
de prestação, de cujo funcionamento toda a comunidade aproveita e sem o qual a sociedade não

50 - Em sentido idêntico, reportando-se ao sistema francês, G. CHAVRIER, Essai de justification et de


conceptualisation de la faute toureie, in AJDA, 2003120, pp. 1026 segs.: "II faut dono juger que les interêts de
l'administration sont tout aussi défendables et dignes de respect que ceux das particuliers: répêter que la faute lourde
est'Ilegítima, c'est nier la spécificité des missions de service public mise en évidence par l'arrêt Blanco. Surtout, é force
de victimiser le particulier, on tinira par renforcer son hostilité naturelle é I'égard d'une administration qu'il faut financer
par l'impôt et qui, en plus, commet des Pautes alors que ses missiona ne sont pas reconnues comme difficiles par la
justice" (pp. 1027, 1028).
51 - Contra, Maria Lúcia AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998,

pp. 439 segs.; Manuel AFONSO VAZ, A responsabilidade civil do Estado. Considerações breves sobre o seu estatuto
constitucional, Porto, 1995, pp. 9-10.
auferiria do nível de conforto que actualmente se verifica? Tendemos a afirmar que não, e que se trataria,
portanto, de uma restrição admissível ao conteúdo de tal direito fundamental.

1.1. O facto de o artigo 9.°/1 não incluir a referência a disposições de Direito Comunitário (algo
surpreendentemente, dado que o menciona expressamente no campo da responsabilidade por facto da
função legislativa52) não inibe a Administração de atender ao conteúdo regulatório de regulamentos
comunitários em vigor, quer promovendo a necessária concretização através da emissão de regulamentos
de execução (quando devidos), quer extraindo do seu conteúdo a normação de conformação de direitos
dos particulares53.
Como se sabe, o Direito Comunitário tem uma vocação de aplicação uniforme em todos os
Estados-membros, por força do principio da solidariedade (artigo 10.° do TCE), a que Portugal está adstrito
(cfr. os artigos 7.°/6 e 8.°/3 e 4 da CRP e artigo 249.°, § 2.°, do TCE). Sendo as suas normas dotadas de
clareza, precisão e incondicionalidade — como é a regra, no domínio dos regulamentos —, os particulares
podem invocar este efeito directo com vista à definição de situações jurídicas de vantagem. A
Administração, por seu turno, deve conferir-lhes plena aplicação, mesmo que para isso tenha que afastar
normas internas de conteúdo contrário.
Menos simples se afigura a questão relativamente às directivas cujo prazo de transposição tenha
expirado e não tenham sido transpostas pelo legislador. Estes actos, caso contenham disposições claras,
precisas e incondicionais, podem ser invocados pelos particulares para derrogar direito interno contrário e
para fundamentar posições jurídicas de vantagem, como é entendimento pacífico desde a prolação do
Acórdão Van Duyn54. Ora, a questão que se coloca é a de saber se a Administração nacional, através dos
seus serviços e respectivos funcionários, pode (ou mesmo deve) dar aplicação directa a estas normas (ou,
pelo menos, interpretar o direito nacional de acordo com elas, se possível), uma vez que, não o fazendo,
viola o princípio da vinculação do bloco legal comunitário, compromete o Estado português perante a
Comunidade, arriscando a propositura de acção por incumprimento (nos termos dos artigos 226 e segs. do
TCE) e lesa ilicitamente direitos dos particulares (que estes, mais tarde, poderão vir a fazer valer em
tribunal, através de acções, impugnatórias ou condenatórias, nas quais o juiz constate o efeito directo da
norma da directiva, com ou sem apoio no processo de reenvio prejudicial55)
Do ponto de vista meramente interno, dir-se-ia que a Administração não tem esta obrigação,
impendendo ela apenas sobre o legislador (cfr. o artigo 112.°/8 da CRP). Aliás, a desaplicação de direito
interno por preferência de norma comunitária pode, numa certa perspectiva, ser visto como uma violação
do princípio da separação de poderes, em termos formais. E levanta problemas idênticos — na
complexidade — à possibilidade de desaplicação de norma legal ou regulamentar por alegada
inconstitucionalidade56. Contudo, a jurisprudência comunitária é clara na sujeição de todas as funções do
Estado — legislativa, administrativa e jurisdicional — ao princípio da solidariedade, o que nos leva a crer
que as administrações nacionais crescentemente se virão a confrontar com este desafio. Mormente quando

52- Sobre a responsabilidade do legislador por emissão (ou manutenção em vigor) de norma interna contrária ao Direito
Comunitário, Maria Luísa DUARTE, A responsabilidade dos Estados-membros por actos normativos e o dever de
indemnizar os prejuízos resultantes da violação do Direito Comunitário — Em especial, o caso português, in A
cidadania da União e a responsabilidade dos Estados por violação do Direito Comunitário, Lisboa, 1994, pp. 53 segs.
53 - Cfr. Paulo OTERO, A Administração Pública nacional como Administração comunitária: os efeitos internos da
execução administrativa pelos Estados-membros da União europeia, in Estudos em homenagem à Professora Doutora
Isabel Magalhães Collaço, I, Coimbra, 2002, pp. 817 segs.
54 - Cfr. o Acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 1974, Caso 41/74.
55 - Frisando este aspecto por referência é decisão Brasserie du Pêcheur, Luisa VERDELHO ALVES, Tutela

ressarcitóda e outras respostas do sistema de justiça da Comunidade Europeia perante o incumprimento dos Estados,
in RCEJ, n.° 12, 2007, pp. 137 segs., 142-143. Note-se que a acção indemnizatória tem plena autonomia relativamente
à acção por incumprimento, não dependendo de uma prévia pronúncia nesta última sede. No entanto, como sublinha
Denys SIMON, a constatação prévia do incumprimento contribui para estabelecer o grau de ilicitude da acção ou
omissão das autoridades nacionais — La responsabilité de l'État saisie parle droit communautaire, in AJDA, 1996/7-8,
pp. 489 segs., 493 (v. também pp. 496-497).
56 - Sobre este problema, no sentido afirmativo, Rui MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, 1999,

pp. 167 segs., e André SALGADO DE MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade, Coimbra, 2004,
max. pp. 217 segs. Contra, Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, VI, Coimbra, 2001, pp. 176 segs. (mas
admitindo excepções — pp. 181-182); J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 2.ª ed., Coimbra, 2001, pp. 206 segs., max. 210-211 (mais generoso do que Jorge Miranda na
admissão de excepções).
(e se) o Tratado de Lisboa entrar em vigor, a aplicação de normas de directivas atributivas de direitos aos
particulares na ausência da sua transposição poderá constituir uma cláusula, se não excludente, pelo
menos desagravante, da responsabilidade estadual por incumprimento do Direito Comunitário57, que
passará a poder ser sujeito a sanções pecuniárias compulsórias na acção de incumprimento por não
transposição logo no primeiro processo (e não, como presentemente acontece, apenas na segunda fase,
na qual se constata o não acatamento da sentença condenatória)58.
Com efeito, no Acórdão Fratelli Costanzo59, o Tribunal de Justiça, depois de ter concluído no
sentido do dever de desaplicação do direito nacional contrário à directiva sobre contratos públicos,
sublinhou que:

"II serait par ailleurs contradictoire de juger que les particuliers sont fondés à invoquer les
dispositions d'une directive remplissant les conditions dégagées ci-dessus, devant les juridictions
nationales, en vue de faire censurer l'administration, et d'estimer néanmoins que celle-ci n'a pas
l'obligation d'appliquer les dispositions de la directive en écartant celles du droit national qui n'y
sont pas conformes. II en resulte que, lorsque sont remplies les conditions requises par la
jurisprudente de la Cour pour que les dispositions d'une directive puissent être invoquées par les
particuliers devant les juridictions nationales, tous les organes de l'administration, y compris les
autorités décentralisées, telles les communes, sont tenues d'en faire application" (consid. 31)
(realçado nosso).

Reconhecemos que dificilmente tal obrigação se sedimentará na consciência das Administrações


nacionais, desde logo pela complexidade inerente à interpretação das normas do Direito Comunitário, pela
ausência de um mecanismo de reenvio prejudicial no seio da estrutura administrativa, pelas consequências
financeiras eventualmente subjacentes à aplicação das normas das directivas... Mais a mais, tendo em
conta que o Tribunal de Justiça, no que respeita à responsabilidade por facto da função jurisdicional, exige
erro grosseiro — patamar que terá que ser, por maioria de razão, aplicado em sede de função
administrativa. Mas não deixa de ser verdade que a violação do Direito Comunitário (normas dotadas de
efeito directo, bem entendido), quando cause lesão ao particular, constitui uma ilicitude equiparável à
violação de norma do bloco legal interno e, verificada a sua prevalência sobre direito nacional — ou
invocabilidade imediata na ausência deste — em acção judicial, o particular poderá accionar a entidade
administrativa no sentido da efectivação da responsabilidade pelos danos causados pela dilação temporal
no reconhecimento do seu direito. A jurisprudência Francovich e Brasserie du Pêcheur milita nesse sentido.

2. Como já ficou dito, a LRCEE confere plena efectividade ao artigo 22.° da CRP na medida em
que contempla todas as situações potencialmente geradoras de responsabilidade, desde a falta leve à falta
dolosa. Mas o preceito constitucional não se basta com a afirmação do princípio da responsabilidade por
acção ou omissão ilícita, determinando além disso a regra da solidariedade entre a pessoa colectiva e o
autor material do facto ìlicito60.
57 - Temos consciência da diversidade de planos entre a acção por incumprimento (predominantemente objectiva e
relacionando Estado e Comunidade) e da acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual da
Administração (predominantemente subjectiva e relacionando particulares e Administração nacional). O que
pretendemos dizer é que, não se eximindo a uma pronúncia condenatória, o Estado-membro pode sensibilizar ou mesmo
inibir a Comissão de solicitar a aplicação de sanções pecuniárias em situações como esta, uma vez que consegue
demonstrar que a execução do Direito Comunitário está a ser realizada, ainda que na ausência de diploma nacional de
transposição.
58 - Cfr. o novo n.° 3 do futuro artigo 260 do TFUE.
59 - Acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 1989, Caso 103/88.
60 - É a tese que faz vencimento na doutrina portuguesa: entre outros, vejam-se Maria José RANGEL DE MESQUITA,

Da responsabilidade civil extracontratual da Administração no ordenamento jurídico-constitucional vigente, in


Responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, coord. de Fausto de Quadros, Coimbra, 1995, pp.
39 segs., 118 segs.; Diogo FREITAs oo AMARAL, Intervenção no Colóquio Responsabilidade civil extra-contratual
do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, pp. 43 segs., 47, FAUSTO DE QUADROS, Intervenção
no mesmo Colóquio, loc. cit., pp. 53 segs., 59, Jorge MIRANDA, A Constituição e a responsabilidade civil do Estado,
in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, 2001, pp. 927 segs., 932; Rui MEDEIROS,
Anotação ao artigo 22°, in Jorge MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005,
pp. 209 segs., 214 (exigindo a solidariedade para danos praticados com culpa grave e dolo).
Contra: João CAUPERS, Os malefícios do tabaco. Anotação ao Acórdão 236/04 do Tribunal Constitucional, In CJA,
n,° 46, 2004, pp. 16 segs., 20.
A LRCEE hipotiza quatro situações:
a) Danos provocados por faltas leves: a entidade responde exclusivamente (artigo 7.°/1);
b) Danos provocados por falta grave ("diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que
se encontravam obrigados em razão do cargo" — artigo 8.°/1): há responsabilidade solidária e, caso seja
a entidade a satisfazer o pedido indemnizatório, tem dever de regresso contra o funcionário faltoso;
c) Danos provocados por faltas dolosas (artigo 8.°/1): há responsabilidade solidária e, caso a
entidade satisfaça o pedido indemnizatório, tem dever de regresso contra o funcionário faltoso;
d) Danos provocados por qualquer tipo de falta, mas cujo autor seja inidentificável ou seja
impossível provar a autoria pessoal (artigo 7.°/3 e 4) e devam ser atribuídos a um funcionamento anormal
do serviço: responde exclusivamente a entidade.

Rapidamente se conclui que a LRCEE ficou aquém da previsão do artigo 22.° em a) — pois, ao
designar, em exclusivo, a pessoa colectiva como responsável (quer nas relações externas, quer nas
internas, uma vez que exclui o direito de regresso contra o funcionário que tenha praticado falta leve),
dispensou a solidariedade no caso de danos cometidos com falta leve. Já em d), a técnica objectiva de
imputação subjacente à figura da "falta do serviço" provoca idêntico resultado, gerando a imputação
exclusiva à pessoa colectiva. É nas hipóteses b) e c) que a solidariedade se afirma — e de forma mais
intensa do que no DL 48.051.
Na verdade, a lei anterior, não isentando de responsabilidade os funcionários autores de faltas
cometidas por infracção de deveres de zelo, imunizava-os do confronto directo com as vítimas, remetendo
o acerto de contas para o plano das relações internas, através do direito de regresso exercido pela pessoa
colectiva (cfr. o artigos 2.°/2 e 3.°/1 do DL 48.051). O mesmo é dizer que, quanto à falta grave não existia
solidariedade — uma vez que à vítima era negada a possibilidade de exigir a totalidade da quantia
ressarcitória desejada aos seus autores materiais. Já quanto ao dolo, o particular podia escolher entre
demandar a pessoa colectiva, os titulares dos órgãos/agentes, ou mesmo ambos, em litisconsórcio passivo
voluntário.
Este sistema assentava no que nos parece constituir um equívoco. Os motivos porque os
funcionários eram poupados às acções indemnizatórias prendiam-se, alegadamente, com o facto de os não
inibir no exercício das suas funções, por um lado e, por outro lado, por o princípio da responsabilidade se
bastar, na sua operatividade, com a presença da pessoa colectiva em juízo, cujo património, mais avultado
do que o do funcionário, permitiria ressarcir a vítima do seu prejuízo de forma plena e efectiva. No entanto,
de uma banda, os funcionários sujeitavam-se de imediato à responsabilização disciplinar, e adiava-se a
sua responsabilização civil até à prolação da decisão condenatória da pessoa colectiva, mas não se excluía
o regresso. E, de outra banda, o incremento de garantia da dívida por força da afectação do património da
pessoa colectiva revelava-se muitas vezes fictício, perante o incumprimento da obrigação de solver a dívida
indemnizatória pela pessoa colectiva, perante a inexistência de verba inscrita no seu orçamento para esse
fim, perante a necessidade de recorrer, em última instância, ao processo executivo do processo civil para
pagamento de quantia certa, deparando com a impenhorabilidade dos bens da pessoa colectiva por força
da sua adstrição à prossecução de fins de utilidade pública (cfr. os artigos 822.°/b) e 823.°/1 do CPC)61...
Acresce a inconstitucionalidade da supressão de legitimidade passiva dos funcionários praticantes
de faltas graves lesivas de posições jurídicas particulares, no confronto com o artigo 22.° da CRP. Se a
opção pela responsabilidade exclusiva da pessoa colectiva no caso de falta leve se admite à luz do princípio
da eficiência administrativa (artigo 267.°/2 da CRP), já no caso de falta grave a balança da ponderação de
interesses se desequilibra com esta solução — ainda que colmatada pelo direito de regresso. Não basta a
presença da pessoa colectiva em juízo para garantir o direito do particular ao ressarcimento: a Constituição
exige que a vítima possa designar os réus na acção de efectivação da responsabilidade por facto ilícito, ao
empregar o termo "solidariamente", de entre dois pólos distintos (a pessoa colectiva e o funcionário faltoso).
O artigo 271.°/1 da CRP nada mais faz do que confirmar este princípio de responsabilização directa,
especialmente justificado em hipótese de falta grave e falta dolosa62.

61 - No Acórdão 236/04 (que será referido infra), o Tribunal Constitucional descartou a procedência deste argumento,
atribuindo ao legislador ordinário a responsabilidade pela remoção destas "dificuldades burocráticas na execução das
decisões condenatórias" das entidades públicas...
62 - O facto de o n.° 4 do artigo 271.° falar em direito de regresso do Estado contra o funcionário não pode ser lido

como excludente da possibilidade de responsabilização directa (que dispensaria o regresso). Este preceito obriga a uma
Apesar da pressão doutrinal no sentido (mínimo) da necessidade de interpretação conforme à
Constituição dos artigos 2.° e 3.° do DL 48.051, ou (máximo) da sua caducidade por inconstitucionalidade
superveniente, os tribunais insistiram (salvo dois casos pontuais63) em negar legitimidade passiva aos
funcionários nas acções de efectivação da responsabilidade por facto ilícito cometido com negligência
grosseira, recusando mesmo o seu chamamento à demanda na qual a pessoa colectiva figurasse como ré
principal. O Supremo Tribunal Administrativo, entre outras fórmulas, obtemperou que:

"O artigo 22° da Constituição da República Portuguesa apenas consigna, no “tocante ao regime
de solidariedade, que a responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas acompanha
necessariamente a dos seus órgãos, funcionários ou agentes. Mas não a inversa, ou seja, não
pretendeu estender a estes a responsabilidade ressarcitória fundada na sua conduta funcional
que, por qualquer razão atendível (designadamente a forma de imputação subjectiva, a natureza
do ilícito ou o grau do dano, o legislador ordinário entende dever lançar exclusivamente sobre o
Estado64".

Esta posição ganhou força a partir do momento em que o Tribunal Constitucional considerou a
exclusão da regra da solidariedade em caso de culpa grave conforme à Constituição. No Acórdão 236/0465,
os juízes do Palácio Ratton consideraram os artigos 2.° e 3.°/1 e 2 do DL 48.051, não supervenientemente
inconstitucionais, na medida em que eximiam de responsabilidade, no plano das relações externas, os
titulares de órgãos e agentes que, com culpa (leve ou grave), provocassem danos na esfera jurídica dos
particulares, no exercício das suas funções e por causa delas. O Tribunal Constitucional (em secção), não
considerou decorrer do artigo 22.° da CRP um imperativo de estabelecimento do regime de solidariedade,
ainda que tal pudesse decorrer da função preventiva do instituto da responsabilidade e da garantia dos
princípios da legalidade e da eficiência administrativa:

"Certo é, porém, que, e em primeiro lugar, não resulta necessariamente da responsabilidade


exclusiva da Administração, no plano das relações externas, a irresponsabilização dos titulares de órgãos,
funcionários e agentes; a responsabilidade destes pode ser accionada por via do direito de regresso, como
desde logo o demonstra o disposto no artigo 2.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 48.051, abrindo-se ainda ao
legislador, a coberto do disposto no artigo 271.°, n.° 4, da Constituição, a possibilidade de regular esse
direito nos termos de abranger outras situações.
Por outro lado, se ainda for rigorosamente efectivada a responsabilidade penal e disciplinar a que
se refere o disposto no artigo 271.°, n.° 1, da Constituição, não deixa de se assegurar o sancionamento de
condutas ilegais e culposas, com o inerente efeito de compelir os titulares dos órgãos, funcionários e
agentes à observância do principio da legalidade e que estão constitucional-mente sujeitos na sua actuação
funcional.
Por último, não deixa de se assinalar que o acolhimento da tese segundo a qual o artigo 22.° da
Constituição impõe, em todos os casos, a responsabilidade directa dos titulares dos órgãos, funcionários e
agentes, por actos ilícitos e culposos praticados no exercício das suas funções, gera problemas graves na
regulação de situações de culpa leve, onde, para a generalidade da doutrina, se reconhece a
inconveniência de tal responsabilidade."

Apesar de o Tribunal Constitucional ter reiterado esta posição posteriormente (veja-se o Acórdão
5/05), o legislador ordinário acabou por ceder às pressões da doutrina, alargando a solidariedade aos casos
de negligência grosseira. A nosso ver, bem, porque a manutenção da situação anterior traduzir-se-ia em
perpetuar uma interpretação da Constituição de acordo com a lei e não o inverso66. O sistema actual

articulação necessária com o artigo 22°, que estabelece a solidariedade: logo, a concessão à vitima da escolha de
chamamento a juízo da pessoa colectiva, do funcionário ou de ambos, resolvendo estes, entre si, posteriormente e se
for caso disso, a questão do direito de regresso.
63 - Acórdãos: do STJ, de 6 de Maio de 1996 (in BMJ 357, pp. 392 segs.); do STA, de 3 de Maio de 2001 (in Ap DR

de 8 de Agosto de 2003, pp. 3249 segs.).


64 - Acórdão do STA, de 29 de Outubro de 1992, in Ap DR de 17 de Maio de 1996, pp. 5957 segs Para uma resenha

deste linha jurisprudencial, veja-se o Acórdão do Pleno do STA de 29 de Setembro de 2006, proc. 0855/04 (que decidiu
uma oposição de acórdãos em que o acórdãos fundamento era o acórdão de 5 de Maio de 2001, citado).
65 - Cfr. A anotação de João Caupers, cit.
66 - Como reconhece João CAUPERS, Os malefícios..., cit., p. 18.
permite, desta feita, a escolha, por parte da vítima, entre demandar pessoa colectiva, autor material ou
ambos. Vejamos algumas hipóteses (e sub hipóteses):

i) A vítima demanda o funcionário em virtude de acção ou omissão lesiva cometida com culpa
grave. Se se provar a culpa grave, o assunto fica resolvido: a vítima obtém ressarcimento e a pessoa
colectiva fica dispensada de efectivar qualquer regresso. Se o funcionário conseguir inverter a prova de
culpa grave, demonstrando que agiu com (mera) culpa leve, então o juiz deve absolvê-lo do pedido,
restando ao particular intentar nova acção contra a pessoa colectiva. Olhando para a solução prevista no
artigo 8º/4, parece-nos que ela faria sentido nesta situação, de absolvição do funcionário: a economia
processual e a tutela jurisdicional efectiva sustentariam esta alteração subjectiva da instância - embora num
momento processual anómalo, ou seja, após a prolação de uma decisão de fundo (ainda que absolutória);
ii) A vítima demanda a pessoa colectiva em virtude de acção ou omissão lesiva cometida com
culpa grave (ou dolo) por um funcionário. A pessoa colectiva tem todo o interesse em chamar à demanda
o funcionário pois, uma vez provada a culpa grave, caso a vitima decida prosseguir a execução contra este,
já não haverá necessidade de efectivar o direito/dever de regresso - e caso decida perseguir a entidade,
esta ficará a dispor de um título executivo que lhe facilitará o exercício do dever de regresso67.

Caso se mantenha sozinha em juízo convém desdobrar esta hipótese em duas sub hipóteses:

a) Há condenação — das duas, uma:


- ou ficou provada a culpa grave do funcionário, e a entidade, liquidando a quantia indemnizatória
junto da vítima por efeito da sentença condenatória, deverá exercer o regresso contra o funcionário numa
nova acção68;
- ou não ficou provada a culpa grave, sendo certo que, apurada a ilicitude, se presume a culpa
leve (artigo 10°/2) - o ressarcimento é da exclusiva responsabilidade da entidade69. Aqui chegados,
estabelece o artigo 8.°/4 que "a respectiva acção judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa
colectiva de direito público [ou de direito privado, por força da extensão operada pelo artigo 1.°/5] e o titular
de órgão, funcionário ou agente, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual
exercício do direito de regresso por parte daquela".

A LRCEE inspirou-se no mecanismo previsto no artigo 329.° do CPC, que estabelece que, caso o
devedor principal chame à demanda o devedor solidário (devendo fazê-lo obrigatoriamente na contestação)
e se, tendo apenas sido impugnada a solidariedade da dívida (não a sua existência ou pressupostos),
houver condenação do devedor principal no saneador, a causa pode prosseguir entre autor do chamamento
e chamado, circunscrita à questão do direito de regresso. Trata-se de uma especialidade processual que
promove a economia de meios e a celeridade na resolução da causa na sua globalidade (relações externas
e internas), que só procede com base em dois requisitos: haver chamamento à demanda do codevedor no
momento processualmente adequado; e estar em causa apenas a impugnação, por parte do réu, do regime
de solidariedade.
Ora, o artigo 8.°14 fica aquém destes pressupostos e, em consequência, vai muito além dos
resultados processualmente admissíveis. Note-se que, por um lado, nada nos é dito quanto à

67 - Carlos CADILHA sumaria as vantagens desta faculdade: "O chamamento à demanda faculta não só uma defesa
conjunta dos responsáveis solidários, como também acautela o direito de regresso do réu principal, permitindo enxertar
no processo o conflito de interesses entre o devedor e o chamado quanto ao direito de regresso e aos respectivos
pressupostos. A Administração poderá, desta forma, obter o reconhecimento judicial do seu direito de regresso contra
o funcionário, munindo-se de um titulo executivo, e obviando à necessidade de, no futuro, ter de propor uma acção
autónoma para obter o reembolso do montante indemnizatório em que tenha sido condenada.
A intervenção provocada abre ainda caminho a que o Estado possa transaccionar ou confessar o pedido, por razões de
justiça ou de equidade, dando assim satisfação à pretensão do demandante, sem pôr em risco o seu direito de regresso,
visto que a acção poderá prosseguir entre o autor do chamamento e o chamado para resolver os aspectos atinentes à
existência do regime de solidariedade (cfr. art. 329º, n.° 3, do CPC)" — Regime geral..., cit., p. 23.
68 - Acção administrativa comum essa na qual o funcionário poderá controverter o juízo sobre o grau de culpa aferido

na acção indemnizatória, ilibando-se assim de responsabilidade? Hesitamos na resposta positiva, na medida em que tal
hipótese corresponderia a admitir uma dupla pronúncia, díspar, sobre factos já debatidos na primeira acção. No entanto,
o artigo 522.° do Código Civil (solidariedade entre devedores) parece admitir a oponibilidade deste caso julgado entre
devedores.
69 - Caso o funcionário tenha sido chamado à demanda, nesta hipótese deverá ser absolvido do pedido.
essencialidade do chamamento do funcionário à demanda como pressuposto de accionamento desta
solução. Por outro lado, o facto de, no artigo 10°/2 (para o qual expressamente remete), se prever uma
presunção de culpa, a qual não foi invertida — pois, caso contrário, como poderia haver condenação, ainda
que sem apuramento do grau de culpa? —, tem implicações inibitórias para o (eventual) co-devedor,
ausentes da previsão do preceito do CPC... Finalmente, a não articulação expressa com a especialidade
processual consignada no CPC — por remissão —, provoca perplexidade.
Com efeito, a disposição suscita-nos as maiores dúvidas quanto à sua exequibilidade, na medida
em que, não só implica uma modificação subjectiva e objectiva da instância — o autor é substituído pelo
réu e entra um novo réu; o pedido perde a natureza indemnizatória e ganha natureza restitutiva —, como,
e gerador de maior incomodidade, pressupõe uma decisão condenatória, ou seja, o trânsito em julgado,
com o consequente esgotamento da competência jurisdicional. Mais: pressupõe a fixação dos pressupostos
da responsabilidade exclusiva da entidade, ilibando o funcionário identificável como autor material do facto
gerador do dano.
Parece-nos, salvo melhor opinião e reflexão, que a LRCEE vem criar uma espécie de semi-caso
julgado, ou um caso julgado parcial com uma dimensão predominantemente garantística: para efeitos de
ressarcimento do particular, vale a presunção de culpa leve; para efeitos de regresso, fica em aberto a
possibilidade de apuramento de um grau superior de responsabilidade do agente... Esta solução é
inexequível e redunda na responsabilização exclusiva da pessoa colectiva, de forma intoleravelmente
penalizadora do interesse público (pois, de jure condito, não há qualquer restrição do dever de indemnizar
por falta leve aos casos de dano especial e anormal). Não se prevendo expressamente o chamamento à
demanda e perante a presunção de culpa leve ínsita no artigo 10.°/2, o grau de culpa (grave ou dolo) deve
ficar definitivamente apurado na acção movida pela vítima contra qualquer um dos devedores, sob pena de
a inexequibilidade da solução prevista no n.° 4 do artigo 8.° redundar na inevitável condenação da entidade,
a título exclusivo e esvaziar concomitantemente, o dever de regresso.
Aparentando impraticável este mecanismo de aproveitamento da instância para exercício do dever
de regresso — é, ao cabo e ao resto, disso que se trata —, sempre deverá ser deduzida uma acção
autónoma para o efeito. Porém, havendo presunção de culpa leve e esgotado o poder jurisdicional naqueles
autos, é duvidoso que haja base para o regresso, uma vez que já a entidade pública foi condenada,
definitivamente, por dano causado com culpa leve. Ou seja, o não apuramento do grau de culpa beneficia
o funcionário, tendo esta decisão efeitos reflexos sobre a sua posição no sentido de o eximir de responder
em acção de regresso.

b) Há absolvição:
Ficando a pessoa colectiva absolvida, a questão que se coloca é a de saber que efeito tem esta
decisão no que concerne à responsabilidade do funcionário. Em bom rigor, a constatação da inexistência
de culpa (sequer leve) deve conduzir à extensão ao funcionário dos efeitos deste caso julgado, mesmo
estando ele ausente dos autos. Note-se que o artigo 498.°/2 do CPC estabelece haver identidade de
sujeitos quando as partes se equiparam do ponto de vista da sua "qualidade jurídica"; o efeito jurídico
pretendido pelo autor/vítima é o mesmo; e a causa de pedir assenta na apreciação dos mesmos factos.
Acresce que, como dispõe o n.° 2 do artigo 497.° do CPC, a excepção dilatória do caso julgado tem por
objectivo evitar que o tribunal "seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão
anterior" — o que seria o caso. Em conclusão: se a entidade for absolvida, mesmo não tendo estado em
juízo, o funcionário pode invocar a excepção de caso julgado para se eximir a acção de efectivação de
responsabilidade proposta contra si pela vítima, por alegada falta grave ou dolosa70;

iii) A vítima demanda a pessoa colectiva e o funcionário em virtude de acção ou omissão lesiva
cometida com culpa grave (ou dolo). Obtendo sentença condenatória, ainda poderá optar por executar cada
um de per se, ou ambos71. Executando o funcionário, fica extinta a cadeia ressarcitória externa e interna.

70 - Cfr. o artigo 522.° do Código Civil. Como explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Se o caso julgado
é absolutório, já os condevedores se podem aproveitar dele em relação ao credor, considerando-se a dívida extinta em
relação a todos eles", exceptuando-se situações de absolvição em que o fundamento se prenda estritamente com
circunstância pessoal do devedor.
71 - Sendo certo que, correndo estas acções nos tribunais administrativos, a execução seguirá os termos do CPTA

relativamente à pessoa colectiva (pública) — artigo 157.°/1 do CPTA — e os termos do CPC relativamente aos
funcionários — artigo 157.°/2 do CPTA. No que concerne às pessoas colectivas privadas investidas em missões de
Executando a pessoa colectiva, deve esta pedir regresso ao funcionário, numa acção posterior e autónoma.
Caso execute ambos, o sucesso da primeira execução determinará a inutilidade superveniente da outra
lide. Apesar da duplicação de custos, parece-nos que a vítima ganhará mais em executar ambos, na medida
em que os tempos das acções executivas poderão variar. Note-se que a execução contra a pessoa
colectiva pode enfrentar a insuficiência da dotação inscrita no Orçamento à ordem do Conselho Superior
dos Tribunais Administrativos e Fiscais (cfr. o artigo 172.°/7 do CPTA)72, transitando então para um novo
regime de processo, enquanto o funcionário terá sempre o seu salário (pelo menos) como garantia de
pagamento...

Em resumo: a consagração da solidariedade entre titular de órgão, agente ou funcionário e pessoa


colectiva, nos termos do artigo 8.°/2 da LRCEE e sob o impulso do artigo 22.° da CRP, constitui uma mais
valia para as vítimas de acções ou omissões ilícitas, porque lhes permite optar na escolha do réu da acção
de efectivação da responsabilidade. Não só se trata de uma opção mais culpabilizante — e tendencialmente
moralizante — dos autores materiais, como incrementa a tutela jurisdicional efectiva dos particulares
porque, sem embargo de a pessoa colectiva ser, em grande parte das situações, uma aposta mais segura
do ponto de vista do pleno ressarcimento do dano sofrido (sobretudo se vultuoso), não é menos verdade
que a execução contra o agente do dano poderá propiciar uma aceleração do processo de ressarcimento
(embora ele possa prolongar-se no tempo, mormente se o funcionário só tiver como património a sua
retribuição, que não pode ser penhorada em proporção superior a um terço — artigo 824.°/1/a) do CPC).
Estas hipóteses e sub hipóteses foram delineadas tendo em consideração acções comuns
exclusivamente destinadas a obter ressarcimento por danos, propostas pelos particulares contra a pessoa
colectiva, funcionário ou ambos. Saliente-se que, tendencialmente e dadas as amplas possibilidades de
cumulação de pedidos hoje contempladas no CPTA (cfr. os artigos 4.° e 47.°), o pedido indemnizatório
surgirá subsidiariamente em acções especiais de impugnação da validade de actos/normas ou de
condenação à prática/emissão de actos/normas — ou mesmo em acções comuns (v. g. pedido de
rectificação de uma informação alegadamente errónea, veiculada por um serviço da Administração
sanitária, que lesa o interesse económico de uma empresa, acompanhado de pedido de ressarcimento de
danos). Donde, o normal será a propositura da acção contra a pessoa colectiva (como determina o artigo
10°/2, em regra), chamando-se eventualmente à demanda o funcionário posteriormente — quando o
julgador estiver em condições de avançar para a análise do pedido indemnizatório.

Note-se que, na lógica do CPTA e também nos termos do artigo 3.°/1 da LRCEE (à semelhança
do disposto no artigo 566.°/1 do CC), a forma de ressarcimento ideal será a reconstituição natural — ou
seja, a anulação do acto e a reconstituição da situação actual hipotética, ou a condenação da emissão do
acto/norma devido. Estes efeitos decorrerão da sentença condenatória na acção especial, e não do pedido
indemnizatório. Daí que, em princípio, não se coloque a questão de saber se o funcionário pode ser
condenado na reconstituição natural sob a forma de prática de actos administrativos (prestação infungível),
porque desacompanhado da pessoa colectiva cujas competências operacionaliza73. Aliás, em razão da
norma do n.° 2 do artigo 38.° do CPTA, a acção comum (de efectivação da responsabilidade civil
extracontratual) não poderá ser utilizada para obter um efeito que se deveria ter tentado alcançar através
de um outro meio processual — nomeadamente, da acção especial (de impugnação da validade de
acto/norma).

natureza administrativa, parece-nos ter a execução (para pagamento de quantia certa) que correr nos termos do CPC,
não só atendendo à natureza (formal) da entidade, como porque o mecanismo de satisfação de créditos previsto no
artigo 172.° do CPTA não parece ter aplicação fora da Administração em sentido orgânico.
72 - Os obstáculos à efectivação do direito ao ressarcimento do particular complicam-se extraordinariamente por força

da previsão (deslocada) do artigo 3°, que atira para os termos da acção executiva para pagamento de quantia certa
regulada no CPC os processos indemnizatórios movidos contra pessoas colectivas inseridas na Administração indirecta
e autónoma, salvo quando possa haver compensação de créditos (n.° 2). Esta acção, que deverá correr junto dos
tribunais administrativos, enfrentará, no limite, as cláusulas de impenhorabilidade decorrentes dos artigos 822.° e 823.°
do CPC, que levará, muito provavelmente, à aplicação subsidiária do CPTA, de acordo com o n.° 3 — longo tempo
depois da propositura da acção executiva inicial...
73 - Fomos alertados para esta questão por Luís FABRICA, na sua intervenção sobre Direito de regresso nas Jornadas

sobre a Lei da Responsabilidade Civil extracontratual promovidas pelo IGAP no dia 5 de Maio de 2008, na Faculdade
de Direito da Universidade Católica (Porto).
Arriscaríamos, pois, afirmar que a valência autónoma do artigo 3.° da LRCEE só avulta nos casos
de efectivação da responsabilidade civil extracontratual da Administração por acção/omissão material, uma
vez que, em hipóteses cobertas pela acção especial, o efeito reconstitutivo da situação actual hipotética
resultará da sentença condenatória — ou, caso o pedido (impugnatório) seja apenas formulado no momento
executivo, da sentença prolatada em processo executivo de sentença de anulação de acto/norma. Por
outras palavras, o artigo 3.° da LRCEE só induz um efeito reconstitutivo de per se quando do julgamento
do pedido principal tal efeito não resultar, desde logo. Sendo certo que a acção de indemnização não
poderá redundar no reconhecimento de uma pretensão que o autor deveria ter obtido, atempadamente, por
outro meio.

3. Numa sociedade altamente complexa e tecnicizada como é a actual, seria de estranhar a


ausência, na LRCEE, do instituto da responsabilidade pelo risco. O artigo 11.° dá-lhe guarida, aligeirando
o limiar de imputação dos danos relativamente ao anterior regime, na medida em que abandona a
qualificação da excepcionalidade da actividade, substituindo-a pela especialidade ("actividades, coisas ou
serviços administrativos especialmente perigosos"). Gerador de alguma surpresa é o facto de não se
restringir esta modalidade de imputação aos danos especiais e anormais, como no caso da
responsabilidade por facto lícito (artigo 16.°), ou pelo menos aos danos anormais, à semelhança da
responsabilidade por facto da função legislativa (cfr. o artigo 15.°/1). É certo que o DL 48.051 era omisso
quanto a estes qualificativos, mas com a sua revogação esperar-se-ia do legislador o aditamento,
pacificamente entendido desde a tomada de posição de GOMES CANOTILHO nesse sentido, na obra O
problema da responsabilidade do Estado por facto lícito74.
MARGARIDA CORTEZ, a propósito do projecto de alteração do DL 48.051, manifestava dúvidas
quanto a esta subordinação. Em discurso directo: "Por um lado, cremos que a circunstância de o serviço,
a coisa ou a actividade ser especialmente perigoso constitui condição suficiente para a reparação do dano.
Afinal, não constituirá o carácter perigoso do serviço, da actividade ou da coisa um índice semiótico da
anormalidade do dano? Por outro lado, acreditamos que, por razões de justiça material, o carácter especial
do dano deve dar lugar à possibilidade de fixar equitativamente a indemnização em montante inferior ao
que corresponderia à reparação integral dos danos quando for significativamente elevado o número de
lesados"75.
A LRCEE parece ter seguido esta posição. Mas, se assim é, fá-lo sem acautelar a transição —
isto é, sem fornecer uma lista indicativa do que considera serem actividades especialmente perigosas, sem
fixar tectos de atribuição dos montantes indemnizatórios, sem estabelecer regras de repartição da
responsabilidade no caso de actividades privadas autorizadas (no âmbito das quais a Administração
deverá, cremos, responder a título subsidiário) — e corre o risco de gerar, da parte da jurisprudência
(bastante tradicional, nesse campo), resistências que se poderão traduzir na minimização dos montantes
indemnizatórios... E, no caso de danos provocados a um conjunto alargado de pessoas (v. g. carga policial
sobre manifestantes; contaminação por vírus hospitalar; ofensas sucessivamente praticadas por um
evadido da prisão), ainda que as acções de efectivação de responsabilidade tenham tendência a
concentrar-se num mesmo tribunal (cfr. o artigo 18.° do CPTA), facto é que dificilmente se reunirão os
pressupostos de apensação de processos (cfr. o artigo 28.° do CPTA), a qual veicularia a ponderação
equitativa dos montantes indemnizatórios. Além de que é duvidoso que, sem consagração legal específica,
o julgador possa socorrer-se da equidade como factor modulador (cfr. o artigo 4.° do CC).
Em suma: temos as maiores dúvidas sobre a forma voluntariosa, como a LRCEE abraçou esta
solução. Não pode olvidar-se estarmos aqui num domínio em que a culpa é dispensada, actuando este
instituto como um mecanismo de redistribuição social do risco e não como uma forma de penalizar, ética e
pecuniariamente, uma determinada pessoa ou entidade. Logo, os pressupostos de atribuição dos
montantes indemnizatórios deverão constituir travões — embora não bloqueios — a formas de constituição
das entidades públicas (e privadas) em seguradoras universais. O rebaixamento do limiar de atribuição da
eventual indemnização em função da "especialidade" (e já não excepcional perigosidade) da actividade,

74 - J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade..., cit., pp. 122 e 271 segs. Veja-se também J.
MOREAU, La responsabilité administrative, 2.ª ed., Paris, 1995, pp. 98 segs.
75 - Margarida CORTEZ, Contributo para uma reforma da lei da responsabilidade civil da Administração, in

Responsabilidade civil extra-contratual do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, pp. 257 segs.,
262, 263.
acompanhado da exigência da "anormalidade do prejuízo", teria constituído um primeiro passo mais
adequado no sentido da liberalização — controlada — desta forma de responsabilização76.

A razão porque incluímos a referência à responsabilidade pelo risco não é, porém, a necessidade
de fazer esta advertência, mas antes o querer sublinhar a estreita vizinhança entre o risco e o perigo, o
evento previsível através das melhores técnicas e conhecimentos disponíveis e o facto imprevisível por
apelo ao quadro mais completo que a técnica e o conhecimento podem propiciar — ou seja, a contiguidade
entre a responsabilidade por facto ilícito e a responsabilidade pelo risco. Tudo se joga, do lado da
Administração, na capacidade de antecipação de riscos previsíveis ou na incapacidade de formular juízos
de prognose que permitam conformar a sua actividade de molde a evitar riscos que poderia ter evitado. No
âmbito dos riscos tecnológicos, esta é uma fronteira extremamente difícil de traçar, dada a dose de
incerteza inerente à sua caracterização e gestão.
O critério de aferição da eventual responsabilidade da Administração por défice de ponderação
dos factores de risco parece residir na possibilidade prática de exclusão da sua eclosão, à luz das melhores
técnicas disponíveis. Ainda que se aceite a eventualidade de eclosão do risco — em virtude da especial
perigosidade da actividade —, este só será imputável à entidade que desenvolve a actuação ou que a
autoriza relativamente a terceiros a titulo de facto ilícito caso se demonstre que esta não usou de toda a
diligência, pautada pelo recurso à melhor informação disponível (ainda que não unânime) e ao melhor
apetrechamento técnico, científica e economicamente possível, com vista à sua evitação ou minimização.
Não se provando negligência na aferição da existência do factor de risco e do seu grau de lesividade
(porque pode tratar-se de um risco despiciendo ou socialmente tolerável), e ficando atestada a causalidade
adequada entre facto e dano, a responsabilidade, a despontar, será forçosamente objectiva77.
Transplantando para este domínio o critério estabelecido na decisão Whyl, do Tribunal
Constitucional alemão78, no domínio da gestão do risco, a Administração deve ter em consideração, não
apenas os dados científicos objecto de consenso na comunidade científica, mas também todas as opiniões
que revistam um mínimo de solidez e credibilidade (alie vertretbaren wissenchaftlichen Erkenntnisse in
Erwãgung ziehen)79. A responsabilidade pela apreciação e gestão do risco só se detém perante a
probabilidade puramente teórica, um "fantasma de risco, numa construção puramente intelectual"80,
inconcebível à luz de qualquer hipótese científica credível81. Esse é o espaço onde fica acantonado o risco
residual, inerente à vida em sociedade. Todo o risco praticamente possível deve ser ponderado.
Problemática pode ser a valoração, para efeitos de imputação de responsabilidade por facto ilícito,
a dar a opiniões minoritárias — não seguidas pela Administração. Ao julgador deparar-se-ão dificuldades
de duas ordens: por um lado, inteligir adequada e conscienciosamente, a base das ponderações efectuadas
pela Administração; por outro lado, avaliar o equilíbrio, traduzido na acção ou omissão (lesiva), presente
nessa ponderação, equacionando probabilidade de eclosão do risco, magnitude e objecto dos seus efeitos
e natureza dos bens jurídicos envolvidos. O primeiro obstáculo é superável pelo auxílio de peritos. Quanto
ao segundo, mesmo perante a hipótese dramática da consumação do dano, deve merecer do juiz uma
cuidadosa atitude de auto-contenção, uma vez que existe uma dose de discricionaridade na gestão de
riscos, que aumenta na proporção da incerteza dos dados de facto e da importância dos bens jurídicos
potencialmente afectados. Só perante uma violação manifesta dos parâmetros da proporcionalidade
enquanto método de gestão do risco deve o juiz considerar a existência de responsabilidade da
Administração (por facto ilícito).

4. O último apontamento que queremos deixar prende-se com o problema do ressarcimento da


colectividade por danos causados a bens de que os seus membros desfrutam e dos quais retiram utilidades

76 - Para mais desenvolvimentos, v. o nosso A responsabilidade administrativa pelo risco na Lei 67/2007, de 31 de
Dezembro: uma solução arriscada?, ainda inédito.
77 - Para mais desenvolvimentos sobre este ponto, ver o nosso Risco e modificação do acto autorizativo concretizador

de deveres de protecção do ambiente, Coimbra, 2007, esp. pp. 399 segs.


78 - Decisão de 19 de Dezembro de 1985 (Wyhl), in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, Band 72, pp. 300

segs.
79 - Decisão Wyhl, cit., p. 315.
80 - C. NOIVILLE, Príncipe de précaution et Organisation mondiale du commerce. Le cas du commerce alimentaire,

in JDI, 2000/2, pp. 263 segs., 276.


81 - Ou, no limite, extraordinariamente remota, como a queda de asteróides — J.-Bernard AUBY, L'évolution du

traitement des risques dans et par le Droit Public, in REDP, 2003/1, pp. 169 segs., 172.
indivisíveis. Esta questão, cujo enxerto nestas reflexões avulsas pode surpreender, já foi pontualmente
objecto da nossa atenção noutros locais82, pelo que nos limitaremos ao essencial.
No que toca à ressarcibilidade de danos provocados em bens de fruição colectiva, ela deriva
fundamentalmente do n.° 3 do artigo 52.° da CRP, quando se refere à possibilidade, para o lesado ou
lesados, de requerer indemnização por danos causados em interesses de fruição dos bens elencados
(exemplificativamente) nas alíneas a) e b). O nosso legislador constitucional — consciente ou
inconscientemente — alargou a protecção destes interesses de facto ao ressarcimento de danos, quando
podia ter optado por excluir essa dimensão, bastando-se com a atribuição de legitimidade popular com vista
à cessação de ofensas, actuais ou iminentes. Lamentavelmente, não concretizou esta dimensão protectiva
na Lei 83/95, de 31 de Agosto (Lei da acção popular), uma vez que esta, no artigo 22.°/2, só prevê as
situações de danos de interesses individuais homogéneos.
Esta ausência é apenas colmatável através de uma alteração legislativa que, em primeira linha,
determinasse precisamente a condenação do lesante de bens de fruição colectiva (maxime, o proprietário,
se for o caso) em reconstituição natural do estado do bem e, em segunda linha, e na total impossibilidade
de reconstitutio in natura, instituísse uma solução similar à do Direito brasileiro (afectação das quantias
indemnizatórias a fundos destinados à promoção e preservação de interesses de fruição de bens
colectivos), ou outra (afectação a ONGAs; a entidades públicas com atribuições específicas de protecção
e promoção do ambiente, património, ordenamento do território; ao financiamento de programas de
educação ambiental integrados nos currículos escolares). A inércia do legislador traduz uma autêntica
inconstitucionalidade por omissão, que poderia ter sido atalhada com a LRCEE, caso contivesse uma
alteração/aditamento à Lei 83/95, de 31 de Agosto.

A falta de identificação precisa da categoria de danos em bens de fruição colectiva não só constitui
uma amputação do nível de protecção determinado na norma constitucional, como, no caso do ambiente
pelo menos, tenderá a agudizar-se quando da transposição — já atrasada — da Directiva 2004/35/CE, de
21 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, sobre responsabilidade por danos ambientais, que
claramente individualiza situações de dano ecológico83. Saliente-se que esta Directiva (que traça um elenco
amplíssimo de danos ecológicos considerados ressarcíveis sob a sua égide — cfr. os artigos 2.°/1 e 3.°),
exclui expressamente o arbitramento de reparação pecuniária aos particulares que tiverem desencadeado
o pedido ressarcitório (e que podem ser organizações não governamentais — cfr. o artigo 11.º/1, § 3º84.
Isto porque se traduz sempre em formas de reparação: primária, complementar ou compensatória, como
descreve o Anexo III, as quais consubstanciam acções concretas.
Esta solução, que deixa sem suporte a existência de um qualquer dano não patrimonial da
comunidade por afectação de um bem ecológico, aposta numa certa neutralização pecuniária deste tipo de
dano — mas só como forma de evitar enriquecimentos ilegítimos de autores populares, institucionais ou
particulares. As acções de reparação têm um custo económico não negligenciável, que deverá ser
suportado pelo lesante (se tiver tido culpa) ou pelo Estado, caso desafecte estes danos do plano da
responsabilidade objectiva do operador (cfr. o artigo 8.°/4). Ponto é que o imperativo constitucional — e
comunitário — seja cumprido, tomando-se a sério o dano ecológico e a sua reparação. Bem assim como,
aproveitando o balanço, se providencie idêntica solução relativamente a outros danos em bens de fruição
colectiva (maxime, de bens culturais).

Lisboa, Maio de 2008

A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS DECORRENTES


DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL

82 - No que toca à indemnização da colectividade por dano ecológico, vejam-se os nossos Princípios jurídicos
ambientais e protecção da floresta: considerações assumidamente vagas, in RCEJ, n.° 9, 2006, pp. 141 segs., 160; e
O Provedor de Justiça e a tutela de interesses difusos, in Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matérias
relacionadas), lI, Lisboa, 2008, pp. 235 segs., 253.
83 - Sobre a questão da reparação do dano ecológico ã luz da Directiva, v. C. HARMON, La réparation du dommage

écologique, in AJDA, 2004/33, pp. 1792 segs.


84 - Mas não veda, parece-nos, a afectação de quantias a fundos geridos por entidades com competências em sede

ambiental, pelo menos a titulo complementar das destinações primárias que a directiva elenca (quando se justifique).
(EM ESPECIAL, O ERRO JUDICIÁRIO)

GUILHERME DA FONSECA

1. A recente publicação da Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime da


Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, e em vigor desde 30 de
Janeiro do corrente ano (art. 6.° da Lei), veio pôr a nu e a claro a responsabilidade civil por danos
decorrentes do exercício da função jurisdicional (o Capítulo III da Lei), ou, de forma mais simples, a
responsabilidade do Estado-Juiz.
Ainda que se possam levantar dificuldades e suscitar complexidades, a propósito daquele Capítulo
III da Lei, sobretudo, a nível da classe dos magistrados, os presumíveis causadores dos danos, é facto que
não se pode iludir uma realidade intensa da nossa vivência quotidiana, e que é a de um dever de
indemnizar, desde logo, por parte do Estado, havendo danos para os cidadãos decorrentes do exercício da
função jurisdicional85. Um dever de indemnizar, a que corresponde um direito dos cidadãos lesados a uma
indemnização, com cobertura constitucional, de tal modo que se não possa dizer que se reconhece o direito
por danos causados, por exemplo, à propriedade, ao comércio, e à indústria, mas não se reconhece o
mesmo direito por danos emergentes da violação de direitos tão ou mais fundamentais, como o direito à
liberdade individual ou o direito a uma sentença de um tribunal justa e célere.

O Estado não pode escolher entre prestar e indemnizar: ele tem o dever de prestar — e a justiça
é também uma prestação — e deve indemnizar, se a prestação for omitida ou irregularmente realizada.
Já lá vai longe o tempo do princípio da irresponsabilidade do Estado e hoje a afirmação vai no
sentido cada vez mais amplo do favorecimento da protecção dos cidadãos, aí se incluindo o direito geral e
universal dos cidadãos à reparação dos danos que lhes sejam causados, qualquer que seja a sua origem,
em função do poder estadual em causa.
E é bom não esquecer a ideia que se colhia do Código Civil de Seabra, do século XIX, constante
do Título dedicado à responsabilidade por perdas e danos causados por empregados públicos, no exercício
das suas funções, sem excluir a responsabilidade dos juízes pelos seus julgamentos, as acções por crimes,
abusos e erros de oficio dos juízes e a reparação devida ao réu absolvido em revisão de sentença criminal
executada (são os epígrafes dos arts. 2401.°, 2402.° e 2403º.

2. Antes de avançar, importa chamar a atenção para alguns aspectos clarificadores do nosso tema.
Em primeiro lugar, a responsabilidade civil que vamos abordar é a responsabilidade civil
extracontratual, tout court, não havendo que tratar da responsabilidade contratual ou pré-contratual.
Em segundo lugar, os pressupostos da responsabilidade civil são os que se conhecem no âmbito
do direito das obrigações e a mesma responsabilidade é sempre uma responsabilidade por actos de gestão
pública estadual (mesmo que haja traços privatísticos, como acontece actualmente com certos modelos
processuais, tais como, o processo executivo, o processo de mediação ou o processo arbitrai).
Por último, há que salvaguardar regimes especiais, que não vão ser aqui tratados: o regime
especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da
liberdade, que foi ressalvado no n.° 1 do art. 13.° da Lei (é o regime constante do art. 225.°, relativamente
à indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada, e dos arts. 461.° e 462.°, no âmbito da
sentença absolutória no juízo de revisão, preceitos esses do Código de Processo Penal); e o regime
especial da acção de indemnização contra magistrados, prevista e regulada nos arts. 1083.° a 1093.°, do
Código de Processo Civil, envolvendo uma responsabilidade pessoal e subjectiva dos magistrados, de que
o Estado se demarca (responsabilidades pelos danos causados, em especial, quando haja condenação
por crime de suspeita, suborno, concussão ou prevaricação, e nos casos de dolo e denegação da justiça).

3. É o Capitulo III da Lei a regular a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da
função jurisdicional, ocupando-se os arts. 12.° a 14.°, respectivamente, do regime geral — e é "o regime
da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa" —, da

85 - E a Constituição, entre as garantias dos juízes, a independência e a irresponsabilidade pelas suas decisões, não
constitui nenhum obstáculo, pois a norma do n,º 2 do art. 216º ressalva “as excepções consignadas na lei”, aqui a Lei
n.º 67/2007.
responsabilidade por erro judiciário e da responsabilidade dos magistrados, a nível do direito de regresso
que o Estado goza contra eles.
O legislador, todavia, não esteve em branco ao longo de um processo legislativo que,
estranhamente, foi demorado nesta década de 2000, porque, por um lado, o texto constitucional obrigou-o
a agir, por força do disposto nos arts. 22.° e 271.°, e, por outro lado, as reformas no domínio do Direito
Público, nestes últimos vinte anos, com o impulso da Constituição, em especial, a Constituição
administrativa, não podiam deixar de o influenciar (a constitucionalização da justiça administrativa e os
direitos e garantias dos administrados, sobretudo a nível do art. 267.°, são os aspectos mais significativos
a registar).
Na verdade, é facto que o legislador foi adiantando alguma coisa sobre a responsabilidade, nos
pontos relativos ao âmbito da jurisdição administrativa, à competência material e territorial dos tribunais
administrativas, ao modelo das acções administrativas, com soluções inovatórias, e aos tribunais arbitrais.
É o que pode colher-se de uma leitura dos arts. 3.°, n.° 2, 4.°, n.°s 1, als. g) e h), e 3, al. a), 24.°,
n.° 1, al. f), e 37.°, al. c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e também de uma
leitura dos arts. 18.°, 37.°, n.° 2, al. f), e 185.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA),
aí se encontrando referências à responsabilidade dos juízes pelas suas decisões, à responsabilidade pelo
exercício da função jurisdicional, e às acções correspondentes (acções de responsabilidade e acções de
regresso contra os juízes e os magistrados do Ministério Público em serviço nos tribunais administrativos e
nos tribunais do contencioso tributário).
O legislador esteve, pois, a par de toda esta matéria desde 2001, quando se iniciou o processo
legislativo, com a apresentação de sucessivas propostas de lei, e bebeu, em parte, no articulado do anterior
Decreto-Lei n.° 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que vigorou durante quarenta anos e foi um marco
importante nesta matéria da responsabilidade Civil do Estado e demais entidades públicas.

4. Um percurso pelos arts. 12.°, 13° e 14.° revela-nos, numa primeira abordagem simplificada,
que são três ou quatro os centros decisores da Lei.

4.1. O primeiro relaciona-se com o regime geral aplicável "aos danos ilicitamente causados pela
administração da justiça", e que é "o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício
da função administrativa", de que se ocupa o Capítulo II da Lei, responsabilidade que, aliás, é proclamada
no art. 1.°, n.° 1, e alargada à "responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes
públicos, por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa
e jurisdicional e por causa desse exercício" (n.° 3 do mesmo art. 1.°).
É uma clausula geral de remissão, no domínio da responsabilidade por factos ilícitos, que se extrai
do art. 12.° e a que, desde logo, se pode apontar a crítica de uma demasiada amplitude, cabendo no ilícito
um sem número de situações, ligadas à administração da justiça, com intervenientes vários: juízes,
magistrados do Ministério Público e funcionários de justiça.
E a cláusula de remissão implica que se deva atender às acções ou omissões ilícitas, cometidas
com culpa leve, envolvendo só a responsabilidade exclusiva do Estado, por força do regime do art. 7.°, n.°
1, e aqueles que são cometidos "com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que
se encontram obrigados em razão do cargo", envolvendo a responsabilidade solidária do Estado com os
autores dessas acções ou omissões, sendo que se presume "a existência de culpa leve na prática de actos
jurídicos ilícitos", por aplicação dos arts. 8.°, n.°s 1 e 2, e 10.°, n.° 286.
Uma exemplificação consta logo do art. 12°, quando se reporta à "violação do direito a uma
decisão judicial em prazo razoável”, mas pode estender-se "violação do direito a um processo equitativo",
que é a fórmula do n.° 4 do art. 20.° da Constituição, a que tudo corresponde a uma verdadeira denegação
de justiça.
Então, cabe aqui todo o tipo de actos processuais do juiz de que resulte o arrastamento no tempo
de um processo sem decisão, seja por omissão, ou o desrespeito da disciplina dos processos urgentes. E
também todo o tipo de actos processuais do juiz de que resulte a violação do princípio do contraditório ou
do princípio da igualdade, por exemplo, de que resulte o desfavorecimento de uma das partes no processo

86 - A distinção da responsabilidade suscita a questão da conformidade com a Constituição do regime da


responsabilidade exclusiva do Estado, quando há acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve. É que o art.
22.° assenta na responsabilidade em forma solidária do Estado "com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou
agentes", sem distinguir as situações danosas. É questão jurídico-constitucional que se deixa em aberto.
(o que, na prática, será sempre o caso de desrespeito daqueles princípios, quando a lei manda observá-
los).
É um mundo de hipóteses que se podem imaginar, umas vulgares e outras menos vulgares, como
seja, por exemplo, a violação, pelo juiz, de dever especial de urbanidade — o caso de maltratar o advogado
de uma das partes num julgamento —, com influência negativa no decorrer do processo, porque o
advogado ficou perturbado.
Por último, neste mesmo âmbito do art. 12°, há ainda a considerar as acções ou omissões ilícitas
que sejam atribuídas aos magistrados do Ministério Público e, de modo geral, às secretarias dos tribunais,
de que decorram danos ilicitamente causados aos cidadãos87.

4.2. O segundo tem a ver com o art. 13.°, que condensa a responsabilidade Civil por erro judiciário
derivado de decisões jurisdicionais causadoras de danos e que a lei tipifica com decisões "manifestamente
inconstitucionais ou ilegais" ou como decisões "injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos
respectivos pressupostos de facto" (n.° 1).
O mesmo n.° 1 ressalva o "regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória
injusta e de privação injustificada da liberdade", campo em que releva o erro judiciário, mas deveria incluir
na ressalva o regime especial da acção de indemnização contra magistrados, regulada no Código de
Processo Civil, e atrás referida. Também o n.° 1 deixa a dúvida sobre se o advérbio "manifestamente" se
liga só às decisões "inconstitucionais ou ilegais" ou se estende às decisões "injustificadas por erro grosseiro
na apreciação dos respectivos pressupostos de facto", devendo entender-se que abrange todas as
situações tipificadas no n.° 1.
Também aqui tem de fazer-se a distinção entre as acções ou omissões ilícitas cometidas com
culpa leve e as que são cometidas com culpa grave ou dolo, presumindo-se sempre aquela culpa. Ao erro
grosseiro, todavia, parece ligar-se a ideia de culpa grave, na medida em que a decisão jurisdicional em
causa reflecte uma diligência e zelo manifestamente inferiores aqueles a que se encontram obrigados os
juízes em razão do cargo, na óptica do art. 8.°, n.° 1.
São múltiplas as hipóteses que se podem conjecturar a propósito de decisões jurisdicionais
manifestamente ilegais:
- as mais simples, como sejam, a aplicação de uma lei expressamente revogada, sem que haja
qualquer questão de sucessão de leis no tempo, ou a aplicação da lei penal mais desfavorável para o
arguido, ou ainda o desrespeito do n.° 2 do art. 95.° do CPTA, quando o juiz administrativo julga processos
impugnatórios;
- os menos simples, com sejam, a aplicação de uma norma ou de um regime jurídico com um
determinado sentido interpretativo, mas ao arrepio de uma corrente doutrinal e jurisdicional unanimemente
seguida e consolidada e que todos esperariam ver acolhida; o conhecimento, na decisão, de questões não
suscitadas pela partes e que não são de conhecimento oficioso.

Já quanto às decisões jurisdicionais "manifestamente inconstitucionais", a dúvida está em saber


se aí se incluem as decisões que aplicam normas feridas de inconstitucionalidade (inconstitucionalidade
orgânica, formal ou material), nomeadamente, se elas foram já julgadas inconstitucionais pelo Tribunal
Constitucional ou até declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral.
Parece que não é isso que se quer com as decisões jurisdicionais "manifestamente
inconstitucionais", antes, e só, as decisões que directamente afrontam a Lei Fundamental, nomeadamente,
em matéria de direitos fundamentais. Será a hipótese de uma decisão que aceite meios de prova, como
seja, a tortura, em processo penal, ou uma decisão que defira o pedido de extradição, quando o crime é
punido com pena de morte, segundo o direito do Estado requisitante.
Mais fácil de ponderação, na prática, é a hipótese do erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto, que se reconduz a um erro sobre a matéria de facto. Ou há erro ou não, a dificuldade
estará na produção de prova na acção indemnizatória a intentar pelo cidadão prejudicado e vitima dos
danos decorrentes da decisão jurisdicional ferida do tal erro grosseiro.

87 - Há ainda a questão que pode levantar-se, face à referida cláusula geral de remissão para o regime do art. 7.°, de
danos decorrentes do funcionamento anormal do serviço, nos termos e condições fixadas nos n.°s 3 e 4 daquele preceito
legal, como seja, por exemplo, uma situação de denegação de justiça, porque o tribunal não tem salas ou gabinetes a
funcionar em condições normais, e o juiz não pode realizar os julgamentos. É que o funcionamento anormal é também
ilicitude (art. 9.°, n.° 2).
Por último, o n.° 2 levanta dificuldades, com a exigência, como pressuposto processual da acção
indemnizatória, da "prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente", naturalmente, em
processo de recurso jurisdicional, o que não se compadece com todos os casos em que não é legalmente
possível interpor esse recurso (desde logo, os casos que se relacionam com a alçada dos tribunais).
O melhor teria sido prever, como pressuposto processual, a exigência de uma séria probabilidade
da existência de erro judiciário, pois, a ser como está, pode a norma do n.° 2 brigar com o princípio da
judicialidade consagrado no art. 20.°, da Constituição, conjugado com o direito á reparação dos danos que
assiste a todos os cidadãos, nas situações em que se limita o direito de acção ou até se priva esse direito.
A menos que se avance pela eliminação das alçadas em todas as jurisdições, o que parece ser impensável.

4.3. Finalmente, resta o art. 14.°, sobre a responsabilidade dos magistrados (é a epígrafe do
preceito), mas o que importa aqui é o direito de regresso de que o Estado goza "contra eles", os magistrados
judiciais e do Ministério Público (n.° 1).
Esta norma suscita perplexidades, sobretudo, em conjugação com o art. 6.°, que estatui ser
obrigatório o exercício do direito de regresso, e determinando o n.° 2 que "a secretaria do tribunal que tenha
condenado a pessoa colectiva remete certidão de sentença, logo após o trânsito em julgado, à entidade ou
às entidades competentes para o exercício do direito de regresso", o que só pode significar que o legislador
não quer que fique esquecido "o exercício do direito de regresso".
E a perplexidade está em que o n.° 2 do art. 14.° faz caber a decisão de exercer o direito de
regresso sobre os magistrados "ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a titulo oficioso
ou por iniciativa do Ministro da Justiça". Como conciliar a obrigatoriedade do exercício do direito de regresso
com uma, pelo menos aparente, discricionariedade do "órgão competente para o exercício do poder
disciplinar'', para decidir sobre o exercício do direito sobre os magistrados? Será que aquele órgão pode
obstar ao exercício do direito de regresso, ou, então, nada decidir?
É, no mínimo, uma solução legal incompreensível e ainda mais incompreensível é a previsão do
Ministro da Justiça tomar alguma iniciativa, para provocar a decisão daquele órgão - qualquer que ele seja
-, pois isso significa que o Ministro pode intrometer-se nas competências do órgão, que se caracteriza pela
autonomia e independência face ao Governo.
E, depois, qual o sentido útil de tal iniciativa ministerial: para não ser esquecido o direito de
regresso? Ou para influenciar o órgão competente na tomada de decisão?
Como quer que seja, tudo aponta no sentido de que, na prática, havendo lugar ao direito de regresso, a
norma entre no esquecimento, funcionando só a disposição geral do art. 6.°, sendo, portanto, incumbência
do Estado o exercício desse direito "contra eles", os magistrados, quando é caso disso, em todos os casos,
em obediência ao princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no art. 13.°88

Sobre responsabilidade civil emergente de acto médico pode ver-se os Ac. do STA, de 23.4.96
e 17.12.96, referidos em nota no BMJ 485-155, cópia das notas da conferência do Prof.
Costa Andrade, na Universidade Portucalense, em 15.1.2003, e o Ac. do STJ (Cons.º
Fonseca Ramos) de 4.3.2008, P.º 08A183:

«Os autos versam a questão da responsabilidade civil pela prática de acto médico, entendido o conceito como
acto executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de
prescrição e execução de medidas terapêuticas, estando o recorrente de acordo que sobre si impende
responsabilidade civil, em virtude do exame a que procedeu, para averiguar se o Autor padecia de cancro na
próstata, ter concluído pela existência de tal maligna doença que, foi determinante para a intervenção cirúrgica
para extirpação total de tal órgão – prostatectomia total – quando, afinal, o Autor apenas padecia de prostatite
(inflamação da próstata e não de cancro).

88- Uma nota final para registar uma sugestão: a de que, obrigando o exercício do direito de regresso á utilização de
uma acção de regresso, podia estar previsto na Lei que fosse enxertado na acção indemnizatória respectiva um incidente
de dedução de um pedido de intervenção provocada dos titulares de órgão, funcionários e agentes solidariamente
responsáveis, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 329.° do Código de Processo Civil.
As partes não dissentem que celebraram um contrato de prestação de serviços – art. 1154º do Código Civil – e
assim considerou a decisão recorrida.

Com efeito, o facto do Autor, mediante pagamento de um preço, ter solicitado ao Réu, enquanto médico
anatomopatologista, a realização de um exame médico da sua especialidade, exprime vinculação contratual.

Estamos perante um contrato de prestação de serviços médicos.

A violação do contrato acarreta responsabilidade civil – obrigação de indemnizar desde que o devedor da
prestação – no caso o Réu – tenha agido voluntariamente, com culpa (dolo ou negligência), tenha havido dano e
exista nexo de causalidade entre o facto ilícito culposo e do dano – art. 483º, nº 1, do Código Civil.
“O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” — artigo 762.°, nº1, do Código
Civil, devendo actuar de boa-fé — nº 2 do falado normativo.
“O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa
ao credor” — artigo 798° do mesmo diploma.
“Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede
de culpa sua” — nº 1 do artigo 799° do Código Civil.
O nº 2 deste normativo estatui que “a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil”.
Importa, então, apurar se o apelante agiu com culpa e, se assim se considerar, se ilidiu a presunção que sobre si
impende.

“Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável.
E o juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do
caso, de que o obrigado não só devia como podia ter agido de outro modo” — “Das Obrigações em Geral”, vol. II,
pág. 95, 6ª edição – Professor Antunes Varela.
O mesmo tratadista define-a como “o nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ilícito ao agente” — RLJ
102-59.
Por imposição do artigo 799°, nº 2 do Código Civil é aplicável a regra do artigo 488.° segundo a qual a culpa se
afere por um padrão abstracto, tendo como paradigma a diligência própria de um bom pai de família que actuasse
nas concretas circunstâncias que se depararam ao obrigado.

As normas citadas são inquestionavelmente aplicáveis à responsabilidade civil contratual, onde vigora a
presunção de culpa do devedor, incumbindo-lhe ilidir a presunção de que o incumprimento da prestação não
procede de culpa sua, entendido o conceito de incumprimento em sentido lato, abrangendo o cumprimento
defeituoso.

Baptista Machado, in “Resolução por Incumprimento”, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor J.J. Teixeira
Ribeiro, 2º, 386, define deste modo, o conceito de “cumprimento defeituoso ou inexacto”:

a) É aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do
programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correc-ção e boa fé.
b) A inexactidão pode ser quantitativa e qualitativa.
c) O primeiro caso coincide com a prestação parcial em relação ao cumprimento da obriga-ção.
d) A inexactidão qualitativa do cumprimento em sentido amplo pode traduzir-se tanto numa diversidade da
prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de
terceiro sobre o seu objecto”.
A responsabilidade civil é extracontratual se a obrigação incumprida tem origem em fonte diversa de contrato.

Tal responsabilidade resulta da violação de deveres de conduta, vínculos jurídicos gerais impostos a todas as
pessoas e que correspondem aos direitos absolutos – Almeida Costa, in “ Direito das Obrigações”, 5ª edição, pág.
431.

O cumprimento da obrigação pode implicar para o devedor a assunção de uma obrigação de meios ou de uma
obrigação de resultado.

Segundo aquele civilista a “obrigação de meios” existe quando o devedor apenas se compromete a desenvolver,
prudente e diligentemente, certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o
mesmo se produza – “Direito das Obrigações”-733.

O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 5ª edição, 2º, define obrigação de resultado “como
aquela em que o devedor, ao contrair a obrigação, se compromete a garantir a produção de certo resultado em
benefício do credor ou de terceiro”.

O Professor Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, 1980, 1º-358 define-a:

“Como aquela em que o devedor está adstrito à efectiva obtenção do fim pretendido”.

Como refere o Professor Antunes Varela, no 2º volume da obra citada, 5ª edição, pág.10:

“Nas obrigações de resultado, o cumprimento envolve já a produção do efeito a que tende a prestação ou do seu
sucedâneo, havendo, assim, perfeita coincidência entre a realização da prestação debitória e a plena satisfação
do interesse do credor ”.

A execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de
meios ou uma obrigação de resultado.

É comum considerar-se que a prática de acto médico coenvolve da parte do médico, enquanto prestador de
serviços que apelam à sua diligência e saber profissionais, a assunção de obrigação de meios.

Existe incumprimento se é cometida uma falta técnica, por acção ou omissão dos deveres de cuidado, conformes
aos dados adquiridos da ciência, implicando o uso de meios humanos ou técnicos necessários à obtenção do
melhor tratamento.

Casos há em que o médico está vinculado a obter um resultado concreto, sendo exemplo mais frequente a cirurgia
estética de embelezamento, [como afirmam os civilistas brasileiros], mas já não a cirurgia estética reconstrutiva,
sendo esta geralmente considerada com exemplo cirúrgico de obrigação de meios.

Os actos cirúrgicos comportam alguma margem aleatória que pode contender com o resultado; nestes casos o
erro médico é mais dificilmente descortinável.
Mas é aí que o médico deve agir, com redobrada cautela, observando os dados adquiridos pela ciência, ou seja,
adoptando os procedimentos mais evoluídos da técnica.
Assim, se considerarmos que a prestação do Réu envolvia uma obrigação de meios, provado no caso da análise
que lhe competia fazer actuou com os deveres de prudência e a técnica sugerida pelas legis artis – não estaria
ele vinculado a determinar, com rigor, se o material biológico que se comprometeu analisar tinha ou não células
cancerígenas.

Com o devido respeito, entendemos que face ao avançado grau de especialização técnica dos exames
laboratoriais, estando em causa a realização de um exame, de uma análise, a obrigação assumida pelo analista
é uma obrigação de resultado, isto porque a margem de incerteza é praticamente nenhuma.

Mal estariam os pacientes se os resultados de análises, ou exames laboratoriais, obrigassem, apenas, os


profissionais dessa especialidade a actuar com prudência, mas sem assegurarem um resultado; dito
prosaicamente, concluiriam o exame e a sua obrigação estava cumprida se afirmassem ao doente – eis o resultado
mas não sabemos se em função do que foi analisado padece ou não de doença.

Importa, pois, ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o catalogar a prioristicamente na
dicotómica perspectiva obrigação de meios/obrigação de resultado, devendo antes atentar-se, casuisticamente,
ao objecto da prestação solicitada ao médico ou ao laboratório, para saber se, neste ou naqueloutro caso, estamos
perante uma obrigação de meios – a demandar apenas uma actuação prudente e diligente segundo as regras da
arte – ou perante uma obrigação de resultado com o que implica de afirmação de uma resposta peremptória,
indúbia.

De outro modo, a prestação devida pelo médico cirurgião que tem a seu cargo uma melindrosa intervenção
cirúrgica, comportando elevado grau de risco, seja em função do estado do paciente, seja em função da gravidade
da doença, seria tratada no mesmo plano que a simples realização de uma cirurgia rotineira, ou de exame
laboratorial, mais a mais, se a interpretação dos resultados, no estado actual da ciência não comporta qualquer
incerteza.

No caso em apreço, provou-se que o tipo de biópsia a que o Autor foi submetido e o sequente exame histológico,
pode estabelecer um prognóstico em conformidade com a maior ou menor diferenciação celular, sendo este o
único método que garante a certeza do diagnóstico, isto é, que garante se se trata de cancro.

No caso de intervenções cirúrgicas, em que o estado da ciência não permite, sequer, a cura mas atenuar o
sofrimento do doente, é evidente que ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto
médico não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima margem de risco, não podemos considerar
que apenas está vinculado a actuar segundo as legis artes; aí, até por razões de justiça distributiva, haveremos
de considerar que assumiu um compromisso que implica a obtenção de um resultado, aquele resultado que foi
prometido ao paciente.

É de considerar que em especialidades como medicina interna, cirurgia geral, cardiologia, gastroenterologia, o
especialista compromete-se com uma obrigação de meios – o contrato que o vincula ao paciente respeita apenas
às legis artis na execução do acto médico; a um comportamento de acordo com a prudência, o cuidado, a perícia
e actuação diligentes, não estando obrigado a curar o doente.

Mas especialidades há que visam não uma actuação directa sobre o corpo do doente, mas antes auxiliar na cura
ou tentativa dela, como sejam os exames médicos realizados, por exemplo, nas áreas da bioquímica, radiologia
e, sobretudo, nas análises clínicas.

Neste domínio é dificilmente aceitável que estejamos perante obrigações de meios, consideramos que se trata de
obrigações de resultado.
Se se vier a confirmar a posteriori que o médico analista forneceu ao seu cliente um resultado cientificamente
errado, então, temos de concluir que actuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a
erro na análise.

Na decisão recorrida considerou-se que, em casos como o dos autos, podem coexistir a responsabilidade
contratual e a responsabilidade extracontratual, entendimento amparado no Estudo publicado, in BMJ 322-21 e
segs., da autoria de Figueiredo Dias e Sinde Monteiro (que aí se cita) – “O mesmo facto pode constituir uma
violação do contrato e um facto ilícito…”.

O Professor Pinto Monteiro, abordando a problemática da coexistência da responsabilidade civil contratual e


extracontratual, na sua obra “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil” – Almedina 2003 –
depois de afirmar que a questão é “delicada e controversa não tendo sido objecto entre nós (tal como de resto, na
generalidade dos sistemas) de regulamentação específica” e depois de aludir à existência de lacuna voluntária,
citando Rui Alarcão, escreve – págs. 430 /431:

“… A esta luz, parece que a solução mais razoável, dentro do espírito que enforma a ordem jurídica portuguesa,
é a que Vaz Serra propunha, devendo permitir-se ao lesado, em princípio, a faculdade de optar por uma ou outra
espécie de responsabilidade, de cumular, na mesma acção, regras de uma e outra, à sua escolha) (1)
…Neste sentido deporá o facto, por um lado, de não poder afirmar-se uma distinção essencial ou de natureza
última entre as duas formas de responsabilidade… parecendo subjacente à lei a ideia de uma unidade substancial
entre ambas, que não será prejudicada pelos aspectos específicos que a responsabilidade contratual apresenta.
Por outro lado, facultar ao lesado a escolha entre os regimes que melhor o protejam, no caso concreto, é a solução
que melhor se ajusta ao princípio do favorecimento da vítima, princípio esse que enforma o quadro legal […].
Parece, assim, que deverá ter-se por consagrada, de iure condito, a tese da admissibilidade do concurso de
responsabilidades, gozando o lesado, em princípio, da faculdade de optar por delas […].
A inclusão dos deveres de protecção no quadro contratual (Vertragsrahmen) não pode acarretar, para o lesado,
a perda da protecção que lhe seria conferida pela responsabilidade extracontratual…”.

Segundo João Álvaro Dias, in “Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Coimbra, 1996, pp. 221-222:

“É hoje praticamente indiscutível que a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e
doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e,
por via de regra, sinalagmático e oneroso.
Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se
numa situação de proponente contratual.
Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a
tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos
aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene
para a celebração de tal acordo de vontades”.

No mesmo sentido António Henriques Gaspar, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, in CJ, Ano III, 1978, p.
341, quando afirma:
“…Dúvidas não restam que juridicamente a relação médico-doente haverá de enquadrar-se na figura conceitual
de contrato – negócio jurídico constituído por duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas
convergente, ajustando-se na comum pretensão de produzir resultado unitário, embora com um significado para
cada parte”.

Abordando a questão na perspectiva da responsabilidade extracontratual, afirma:


“Também, e em relação ao próprio doente, o médico apenas pode ser responsabilizado extracontratualmente, se
a sua actuação, violadora dos direitos do doente é culposa, se processou à margem de qualquer acordo existente
entre ambos, o que acontecerá em todos os casos em que o médico actue em situações de urgência que não
permitem qualquer hipótese de obter o consentimento, o acordo do doente”.

Carlos Ferreira de Almeida, in “Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico”, comunicação apresentada ao II
Curso de Direito de Saúde e Bioética”, publicada in “Direito da Saúde e Bioética” 1996, págs.81e 82: afirma:
“ A responsabilidade delitual constitui meio exclusivo, quando contrato não haja, e concorre com a
responsabilidade contratual, quando o médico viola um direito subjectivo absoluto incidente sobre a vida ou a
saúde do paciente.
“A violação de outros direitos, designadamente de natureza patrimonial, só é ressarcível em sede contratual”.
(sublinhámos)

Na mesma linha, Miguel Teixeira de Sousa, in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”,
comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”,
Lisboa, 1996, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, p. 127, sustenta que a
responsabilidade civil médica:
“É contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial,
entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos
gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela
responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso,
quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483º, nº1,
do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.

Voltando à lição de João Álvaro Dias, obra citada:


“A natureza da responsabilidade médica não é unitária e (...), ao lado de um quadro contratual que constitui a
regra, deparamos com situações múltiplas, em que a natureza delitual da responsabilidade é absolutamente
indiscutível”.

Na actividade médica, na prática do acto médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, um
denominador comum é insofismável – a exigência [quer a prestação tenha natureza contratual ou não] de actuação
que observe os deveres gerais de cuidado.
Tais deveres são comuns, em ambos os tipos de responsabilidade.
Com efeito, o devedor deve actuar segundo as regras da boa prática profissional, pelo que a existência de culpa
deve ser afirmada se houver omissão da diligência devida, que a natureza do acto postulava em função dos dados
científicos disponíveis.

Na responsabilidade contratual, o devedor arca com a presunção de culpa que lhe incumbe ilidir – art. 799º, nº 1,
do Código Civil – e na responsabilidade extracontratual cabe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão – art.
483º, nº 1, do Código Civil.

No caso dos autos é manifesto que se acha feita a prova de um erro médico por parte do Réu, sendo de certo
modo irrelevante, ao nível do grau de censurabilidade, encarar o ilícito na perspectiva da responsabilidade
contratual ou extracontratual, para além de ambas os tipos de responsabilidade poderem coexistir na mesma
situação, como no caso ocorre.

No recurso, a questão do ónus da prova não se discute, mas sempre se dirá, sufragando o entendimento de
Manuel Rosário Nunes, in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos”, págs. 41-
42:
“A doutrina e a jurisprudência italianas consideram que a ideia fundamental em matéria de ónus da prova nas
acções de responsabilidade civil por actos médicos consiste em separar os tipos de intervenção cirúrgica,
repartindo o ónus da prova de acordo com a natureza mais ou menos complexa da intervenção médica».
“Assim, enquanto nos casos de difícil execução o médico terá apenas alegar e provar a natureza complexa da
intervenção, incumbindo ao paciente alegar e provar não só que a execução da prestação médica foi realizada
com violação das leges artis, mas que também foi causa adequada à produção da lesão, nos casos de intervenção
“rotineira” ou de fácil execução, ao invés, caberá ao paciente o ónus de provar a natureza “rotineira” da
intervenção, enquanto que o médico suportará o ónus de demonstrar que o resultado negativo se não deveu a
imperícia ou negligência por parte deste”.

Podemos, assim, considerar que a realização da análise e a elaboração do pertinente relatório não postulava risco
técnico, pelo que o apontar de resultado desconforme com o real estado de saúde do doente se deveu a um erro
do Réu, pese embora, o seu prestígio e reputação profissionais que os autos espelham.

Concluímos, que encarada a actuação do Réu, seja à luz da responsabilidade civil contratual ou extracontratual,
está demonstrada a sua culpa e, porque se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar, terá que
ressarcir o Autor dos danos sofridos em consequência do erro cometido».

Nos termos do art. 4º do ETAF – alterado e republicado pela Lei nº 107-D/2003, de 31


de Dezembro,

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham
nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos
jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas
colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a
verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto
administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer
órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados,
designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução
de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos,
a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de
acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público
que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos
uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que
as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das
pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função
legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais
servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime
específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no
âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente
protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de
vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não
constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não
seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.

2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de


litígios que tenham por objecto a impugnação de:

a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;


b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e
fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução
das respectivas decisões.

3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais
pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da
Magistratura e pelo seu presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a
qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público.

Nos termos do art. artigo 4º da referida Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro,

1 - O artigo 9º e o artigo 31º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com a redacção
que lhes é dada pela presente lei, entram em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
2 - As demais disposições contidas na presente lei entram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004.

Sobre a competência material dos T. Administrativos ou T. Judiciais para conhecer de


acção por danos por responsabilidade extracontratual do Estado, decidiu o STJ, em 7 de
Outubro de 2004, no Proc. 3003/04 – 2ª Secção, Ac. relatado pelo Ex.mo Conselheiro Ferreira
de Almeida:

I. Para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos, é decisivo


o critério constitucional plasmado no art.º 212°, n° 389 da lei fundamental, nos termos do qual compete aos
tribunais dessa jurisdição especial o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas.
II. Estão excluídos da jurisdição administrativa as questões de direito privado, ainda que qualquer
das partes seja pessoa de direito público.
III. Para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a
terceiros (particulares) numa ou noutra das categorias (gestão privada/gestão pública) reside em saber se
as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por
normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de
direito público administrativo.
IV. Os tribunais comuns são os competentes para o julgamento de uma acção para efectivação da
responsabilidade civil extracontratual de uma empreitada de construção de uma estrada nacional - obra

89- … 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham
por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
essa adjudicada pelo ICOR (hoje IEP) - cuja causa de pedir se traduz numa conduta alegadamente ilícita
e produtora de danos para um terceiro particular directamente lesado.
V. Se um dos segmentos do pedido reclamar em abstracto a intervenção dos tribunais
administrativos - tal controvérsia - se meramente “consequente" ou "dependente" da reclamada (e eventual)
responsabilidade (directa) da entidade privada adjudicatária/concessionária, perderá a sua autonomia para
efeitos de apreciação jurisdicional, assim se perfilando uma hipótese em tudo semelhante à da "extensão
da competência” ou de “competência por conexão” do tribunal comum, nos termos e para os efeitos do n°
1 do art.º 96° do CPC .

Já de acordo com o novo ETAF, o STJ (Cons.º Sebastião Povoas), em Acórdão de 8 de


Maio de 2007 (P.º 07A1004) decidiu assim:

Sumário:
1) - Na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela
Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, os tribunais
administrativos são os competentes para as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil
extra contratual de uma Freguesia, “ex vi” da alínea g) do nº 1 do artigo 4º.
2) - Irreleva para a determinação de competência que os actos praticados sejam
qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença
de uma relação jurídico administrativa.
3) - A relação jurídico-administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a
Administração, estando em causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Dr. AA intentou no 2º Juízo no Tribunal Judicial da Covilhã, acção popular (com processo
ordinário) contra a Freguesia de BB, representada pela respectiva Junta, pedindo a sua condenação a:
- retirar o muro e o passeio que edificou junto à Estrada Nacional 506 A, deixando uma margem
de 6 metros a partir do eixo da via, como estatui o Regime Municipal das Edificações Urbanas;
- efectuar o tratamento dos esgotos vindos do parque e do restaurante, não os derivando
directamente para o rio Zêzere;
- retirar todas as placas identificadoras do local com alusão à freguesia de BB, colocando placas
identificando o local como da freguesia de CC;
- abster-se de construir qualquer edifício numa margem não inferior a 100 metros paralela ao rio
Zêzere e a proceder a obras de protecção do rio de acordo com serviços do Estado;
- pagar à freguesia de CC uma indemnização não inferior a 50000,00 euros pelos danos causados
ao meio ambiente e aos utilizadores da EN 506-A.
A 1ª instância julgou procedente a excepção de incompetência absoluta, por entender
competentes os tribunais administrativos.
Recorreu o Autor tendo a Relação de Coimbra dado provimento ao agravo e julgado competente
o tribunal escolhido “ab initio”.

1 - Competência dos Tribunais Administrativos.
1.1 - É “thema decidendum” a fixação do tribunal competente em razão de matéria, nos termos
do nº 1 do artigo 107º do CPC.
Há que ponderar, a montante, o pedido e a causa de pedir da acção onde foi excepcionada a
incompetência absoluta.
Tendo a lide sido intentada em 12 de Janeiro de 2005 é aplicável o actual ETAF aprovado pela Lei
nº 13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003 de 31 de Dezembro.
A regra é a competência em razão da matéria ser distribuída por várias categorias de tribunais
“que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou
dependência) entre eles”, usando a noção do Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed,
207).
A regra é ser competente o tribunal judicial (ou jurisdição comum), de acordo com o artigo 66º do
CPC, que fixa o princípio da competência residual.
Aos tribunais administrativos – que são os que relevam na economia desta decisão – compete o
julgamento dos litígios com origem na administração pública, “latu sensu”, ressalvadas excepções legais –
cf. o artigo 1º do ETAF.
Mas sempre, e como atrás se acenou, considerando o “quid disputatum”, isto é a identidade das
partes, os termos da pretensão (aqui incluindo o pedido e a “causa petendi”) – cf. Prof. Manuel de Andrade
apud “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, 91.

Aqui o Autor pretende efectivar a responsabilidade extra contratual da Freguesia de BB por danos
causados ao meio ambiente (destruição de uma linha de água, uma levada ou barroca, desviando águas
pluviais, e outras, para o rio Zêzere; construção de ramais de esgotos a derivarem directamente para o rio
Zêzere, sem qualquer tratamento; colocação de placas, induzindo em erro sobre a área da freguesia;
provocar inundações do rio por implantação de obras em terreno de aluvião; contrariar pareceres da
Reserva Agrícola Nacional, da Direcção Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território e da CM da
Covilhã; violação do Plano Director Municipal da Covilhã e o Regulamento Municipal das Edificações
Urbanas e ao trânsito (construção de um muro e eliminação de um passeio pondo em risco a circulação
automóvel na EN 506 A).

1.2 - Nos termos do artigo 501º do Código Civil a responsabilidade civil do Estado e demais
pessoas colectivas públicas era accionada nos tribunais judiciais quando o acto lesivo era praticado “no
exercício de actividades de gestão privada”. Tratando-se do exercício de actividades de gestão pública, o
ETAF que vigorava – DL nº 129/84, de 27 de Abril – consagrava a jurisdição administrativa.
Discutiam-se, então, os conceitos de actos de gestão pública e de actos de gestão privada,
sendo, “grosso modo”, e respectivamente aqueles em que a administração intervém com as prerrogativas
do poder público e a gestão privada se age, fundamentalmente, nos quadros do direito privado e a ele
sujeito. (cf. v.g, o Prof. Marcello Caetano – “é gestão pública a actividade da Administração regulada pelo
Direito Público e gestão privada a actividade da Administração que decorra sobre a égide do Direito
Privado” – apud “Manual de Direito Administrativo, II, 1143; o Acórdão do STJ de 19 de Outubro de 1976 –
BMJ 260-155 – “A gestão privada compreende a actividade do ente público subordinado à lei aplicável a
quaisquer actividades análogas dos particulares; pelo contrário a gestão pública pressupõe o exercício do
jus imperii”; o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4 de Abril de 2006 – Pº 8/03 – “Actos de gestão pública
são os praticados pelos órgãos e agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no
exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou
representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou
agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa posição de paridade
com o particular ou particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em
que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado”; e ainda, v.g, os
Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 29 de Junho de 2004 – Pº 1/04 e de 12 de Janeiro de 1989 – Acórdãos
Doutrinais do STA – 330-85).

Certo, porém, que, e como nota Georges Vedel, a distinção entre gestão pública e gestão privada
apenas “definem uma directiva geral ou uma inspiração, mais do que um verdadeiro critério jurídico” (in
“Droit Administratif”, 1968, 84; Prof. Vaz Serra, “Responsabilidade Civil do Estado e dos seus Órgãos ou
Agentes” – BMJ 85-446 ss – RLJ 110-313; Prof. Afonso Queiró, RLJ, 121-237; Dr. J. Sinde Monteiro, “Actos
de Gestão Pública – Erro de tratamento médico em Hospital” – CJ, XI, 4º, 47 e ss; e Prof. Freitas do Amaral
– “Direito Administrativo”, III, 493 – os actos “deverão qualificar-se como gestão pública se na sua prática
ou no seu exercício forem de algum modo influenciados pela prossecução do interesse colectivo, ou porque
o agente esteja a exercer poderes de autoridade ou porque se encontre a cumprir deveres ou sujeito a
restrições especificamente administrativas, isto é, próprias dos agentes administrativos. E será gestão
privada no caso contrário.”).
1.3 - Era esta, no essencial, a jurisprudência e a doutrina produzidas durante a vigência da anterior
redacção do ETAF (de 1984).

Actualmente, porém – e como se disse aplicável a esta lide, por em vigor desde 1 de Janeiro de
2004 – o artigo 4º nº 1 alínea g) do ETAF (2002/2003) diz competir à jurisdição administrativa o julgamento
das “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas
colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função
legislativa.”
Trata-se de procurar pôr termo à, muitas vezes difícil, inserção dos actos nos conceitos de gestão
privada e de gestão pública e conceder em todos os casos de responsabilidade aquiliana assacada aos
órgãos de Administração uma espécie de “foro especial”, subtraindo-os aos tribunais comuns.
Assim entende o Prof. João Caupers (in “Introdução ao Direito Administrativo”, 7ª ed, 2003, 265);
o Cons. Santos Serra (in “A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa”, no Congresso Nacional e
Internacional de Magistrados na VI Assembleia da Associação Ibero americana dos Tribunais de Justiça
Fiscal e Administrativa”, México, 2006); Dr.s Mário Esteves de Oliveira e R. Esteves de Oliveira, “Código
do Processo nos TA e ETAF – Anotados, I, 59; e Dr. Mário Aroso de Almeida, in “Novo Regime do Processo
nos Tribunais Administrativos”, 4ª ed, 99).
Poderia, assim, e sem mais, concluir-se pela competência da jurisdição administrativa.
Mas deve ponderar-se que o nº 3 do artigo 212 da Constituição da República refere serem
competentes os tribunais administrativos e fiscais para acções “que tenham por objecto dirimir os litígios
emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.” (e, a final, o nº 1 do artigo 1º do ETAF).
Daí que o artigo 4º nº 1 g) da ETAF tenha de ser lido à luz desta norma constitucional, em termos
de a responsabilidade delitual dos órgãos da administração só seja conhecida no foro administrativo se a
comissão do acto ilícito estiver no âmbito de relações jurídicas administrativas.
Este conceito não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro
muito mais amplo.
Assim será, sob pena do ETAF de 2002 nada ter inovado, frustrando-se a intenção do legislador.
Precisemos então o conceito.

1.4 - Crê-se que na base estará uma perspectiva jurídico material, tendo de existir uma
controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.
É que podem assim existir relações jurídicas materialmente administrativas sem que tenham como
titulares órgãos da administração.
Na opinião dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa –
Anotada”, 3ª ed, 815) “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas
(ou fiscais) (nº 3 in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
1 - as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é
titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração);
2 - as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito
administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza
“privada” ou “jurídico civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e
fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo
e/ou fiscal.”

O Cons. Fernandes Cadilha (no seu recente “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, p.
117/118) refere: “Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre
dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo
e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva,
como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre
diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe
defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva
pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações
jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou
multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes
relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica
deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo
judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº1, Junho 1994, pags. 55 e ss.)

Em consequência, e ainda com este autor, o artigo 4º n.º 1 alínea g) abrange todos os casos de
responsabilidade civil extra contratual da Administração “independentemente de se tratar de danos
resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento
histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é expressamente mencionada na exposição de
motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer qualquer distinção entre
actos de gestão pública e actos de gestão privada.” e ainda, “as acções de responsabilidade civil
extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do
Estado e demais pessoas colectivas públicas” (ob. cit. 115).

Aceita-se, sem quaisquer reservas que assim seja, mas só por ter sido propósito do legislador
confiar à jurisdição administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extra contratual da
Administração (quiçá por os tribunais administrativos estarem mais vocacionados, e até tenham maior
sensibilidade, para lidar com questões que envolvam aplicação do direito público e com a Administração
pública) mas também por querer arredar de vez a velha dicotomia gestão pública – gestão privada, tantas
vezes de difícil caracterização e com linhas de demarcação muito ténues, e fonte de conflitos doutrinários
entre administrativos e civilistas.
Assim sendo, e no caso em apreço, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade aquiliana
de uma Autarquia, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como
ressalta da matéria articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos.

2 - Conclusões.
Pode, desde já, concluir-se:

a) Na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº
13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, os tribunais
administrativos são os competentes para as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extra
contratual de uma Freguesia, “ex vi” da alínea g) do nº 1 do artigo 4º.
b) Irreleva para a determinação de competência que os actos praticados sejam qualificados como
de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico
administrativa.
c) A Relação jurídico administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a
Administração, estando em causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.
Nos termos expostos, acordam dar provimento ao agravo, revogando o Acórdão recorrido,
mantendo-se o decidido na 1ª Instância.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 8 de Maio de 2007

Sebastião Povoas Moreira Alves Alves Velho

No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Ex.mo Cons.º Salvador da


Costa) de 12.2.2007, no Pr.º 07B238:

1. O âmbito de jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade


civil envolventes de pessoas colectivas de direito público, independentemente de as mesmas serem
regidas pelo direito público ou pelo direito privado.
2. Os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já
não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões
relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da
ordem administrativa.
3. O disposto no nº 7 do artigo 10º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
abrange o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta
extracontratual ou contratual das entidades públicas e das entidades particulares.
4. Os tribunais da ordem administrativa são os competentes para conhecer da acção em
que o autor, no confronto de uma freguesia e de uma sociedade comercial, exige-lhes indemnização
por danos causados pela última em execução de um contrato de empreitada de obras públicas
relativas a um caminho público celebrado entre ambas.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"AA" e BB intentaram, no dia 19 de Abril de 2006, contra a Freguesia de ... e "Empresa-A, acção
declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 7 505 e juros
à taxa legal desde a citação, com fundamento em danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de
destruição de esteios de ramadas, videiras, ferros de suporte e fissuras na casa, por via de realização de
pelas obras, com utilização de explosivos, de repavimentação e alargamento do Caminho Público do Paço
pela segunda ré sob adjudicação da primeira.
A Freguesia de ...., na contestação, invocou a incompetência material do Tribunal Judicial de Vila
Verde, sob o fundamento de para a acção serem competentes os tribunais da ordem administrativa, e os
autores, na resposta, sob o fundamento de se tratar de actividade de gestão privada, afirmaram a
competência dos tribunais da ordem judicial.
Na fase do saneamento, foi proferida sentença, no dia 12 de Junho de 2006, que absolveu as rés
da instância com fundamento na incompetência em razão da matéria do Tribunal e em a competência para
a acção se inscrever nos tribunais da ordem administrativa.

Agravaram os autores, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Outubro de 2006, revogou
a referida sentença, sob o fundamento de se tratar de responsabilidade civil derivada de gestão privada da
Freguesia da ... e, por isso, a competência para a acção se inscrever nos tribunais da ordem judicial.
Interpôs a Freguesia da ... recurso de agravo para este Tribunal…

II
É a seguinte a síntese do que os recorridos afirmaram na petição inicial a título de causa de pedir:
1. Os autores são donos de um prédio misto de casa de rés-do-chão e andar com logradouro,
destinados a habitação e a leiras do ....
2. A referida casa dista três metros do Caminho do Paço que faz parte da rede viária da Freguesia
da ..., em cuja linha divisória há um muro de pedra.
3. Por contrato celebrado entre a Freguesia da ... e Empresa-A, esta comprometeu-se a realizar
por conta daquela, mediante um preço, a obra de alargamento e de repavimentação do Caminho do Paço.
4. Em Março de 2005, a Freguesia da ... iniciou as referidas obras, mas ela e Empresa-A não as
executaram com os cuidados e exigências que lhes eram impostos, tendo a última, nos dias 22 e 28 de
Abril seguintes, usado dinamite no rebentamento de pedra que passava no Caminho.
5. Com isso destruíram-lhe esteios de ramadas, videiras, ferros de suporte, e causaram-lhe
fissuras na casa.
6. A Freguesia da ... e Empresa-A respondem solidariamente pelos danos causados pela última,
em actividade perigosa, sob ordens e instruções da primeira, esta independentemente de culpa, nos termos
dos artigos 493º, nº 2, 498º e 500º do Código Civil e 277º do Código Penal.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os tribunais da ordem judicial são ou não
competentes para conhecer da acção declarativa de condenação em causa.

1.
Comecemos pela caracterização do pedido e da causa de pedir formulados na acção.

O que os recorridos pretendem no confronto da recorrente e de Empresa-A é a sua condenação


solidária no pagamento de determinada quantia a título de indemnização.
A causa de pedir é, por um lado, um contrato de empreitada de obras públicas, nos termos em
que o define o artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, celebrado entre a recorrente e
Empresa-A.
E, por outro, a acção e ou omissão daquelas, uma de natureza pública e outra de natureza
particular, no âmbito da execução do referido contrato, causadora de danos reparáveis no património dos
recorridos.
Assim, a causa de pedir em que os recorridos baseiam o pedido traduz-se essencialmente em
actividade de execução de um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre a recorrente e
Empresa-A causadora de estragos no seu prédio misto acima identificado.
Trata-se, assim, de uma situação de responsabilidade civil extracontratual que envolve a
recorrente e Empresa-A, por um lado, e os recorridos, por outro, conexa com a referida relação jurídica
administrativa (artigos 483º, nº 1 e 1305º do Código Civil).

2.
Atentemos agora na competência jurisdicional em razão da matéria em geral dos tribunais da
ordem judicial e da ordem administrativa.
A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como
é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e a causa de
pedir.
A questão da competência ou da incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer
de determinado litígio é, naturalmente, independente do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas
partes.
Estamos, conforme já se referiu, perante um litígio formal relativo à competência do tribunal em
razão da matéria para conhecer de uma acção de indemnização no quadro da responsabilidade civil
extracontratual por facto ilícito imputado pelos recorridos a uma freguesia, pessoa colectiva de direito
público, e a uma sociedade comercial que se rege pelo direito privado.
A regra da competência dos tribunais da ordem judicial, segundo o chamado princípio do residual,
é a de que são da sua competência as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem
jurisdicional (artigos 66º do Código de Processo Civil e 18º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - LOFTJ).
Considerando que o confronto é delineado entre a competência dos tribunais da ordem judicial e
a dos tribunais da ordem administrativa, vejamos qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última
ordem.

O artigo 212º, n.º 3, da Constituição define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao
conceito de relação jurídica administrativa, certo que prescreve competir aos tribunais administrativos o
julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas e fiscais.
Conexo com o referido normativo, rege o artigo 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos
e Fiscais - ETAF - segundo o qual os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de
soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas e fiscais.
Nesse quadro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios
que tenham, nomeadamente, por objecto, além do mais, que aqui não releva, as questões em que, nos
termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público
(artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Dir-se-á ser a regra no sentido de à jurisdição administrativa incumbir o julgamento de quaisquer
acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os
litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o
legislador ordinário expressamente atribua a outra jurisdição.
A referida competência fixa-se no momento da instauração da causa, sendo irrelevantes as
modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, e se no mesmo processo existirem decisões
divergentes sobre a questão da competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior (artigo 5º do
ETAF).

3.
Vejamos agora, tendo em conta a data dos factos mencionados na petição inicial e a da sua
apresentação em juízo, a relevância ou não do conceito de actos de gestão pública ou de gestão privada
na definição da competência dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa.

As autarquias locais, incluindo as freguesias, como é o caso da recorrente, são pessoas colectivas
territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das
populações respectivas (artigos 235º, n.º 2 e 236º, nº 1, da Constituição).
O conceito de actos de gestão pública e de actos de gestão privada tem essencialmente a ver,
como é natural, com a actividade de gestão pública e de gestão privada da Administração, a primeira
regulada pelo direito público e a segunda regulada pelo direito privado.
Assim, quando o acto praticado pela pessoa de direito público, naturalmente através de um seu
órgão ou agente, seja de direito privado, submetido às mesmas normas aplicáveis quando o acto fosse
praticado por um particular, deve ser entendido como acto de gestão privada.
Conforme acima se referiu, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de
litígios que tenham por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Assim, ao invés do regime de pretérito, a lei alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas
as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público,
independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou
por um regime de direito privado.
Certo é que a distinção entre actividade de gestão privada e de direito público releva para a
determinação do direito substantivo aplicável à relação jurídica em causa, nos termos previstos no Decreto-
Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
Todavia, conforme resulta do artigo 4º, nº 1, alínea g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais, ao invés do que ocorria no regime de pretérito, os conceitos de actividade de gestão pública e de
gestão privada dos entes públicos não relevam para determinação da competência jurisdicional para a
apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da
ordem judicial ou da ordem administrativa.

4.
Atentemos agora na regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais
da ordem administrativa.
As relações jurídicas administrativas pressupõem, como é natural, o relacionamento de dois ou
mais sujeitos, que é regulado por normas jurídicas, derivante de posições activas e passivas, mas sob a
envolvência da realização do interesse público.
A regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais da ordem administrativa
é no sentido de que cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e,
quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor
(artigo 10º, nº 1, do CPTA).
Acresce que, nas referidas acções, podem ser demandados particulares ou concessionários, no
âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros
particulares (artigo 10º, nº 7, do CPTA).
Resulta, deste último normativo a possibilidade de accionamento de entes públicos e de outros
interessados, ainda que não sejam concessionários ou agentes administrativos, desde que a relação
material controvertida lhes diga igualmente respeito.
O âmbito da sua previsão e estatuição envolve o litisconsórcio voluntário passivo emergente de
responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual da entidade pública e de uma entidade
particular (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, págs. 80 a 82).
É, aliás, uma solução harmónica com o que se prescreve em sede de realização do direito
substantivo, no artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, segundo o qual os
vários responsáveis respondem solidariamente no que concerne às relações externas.

5.
Atentemos agora na definição da competência jurisdicional para conhecimento do objecto do
litígio, única questão que é objecto do recurso, do que se excluem as questões do mérito da causa e da
própria legitimidade ad causam das partes.
Ora, a responsabilidade civil em causa é imputada a actuações materiais concorrentes de um ente
público e de uma sociedade regida pelo direito privado, esta em execução de um contrato de empreitada
de obras públicas.
Estamos no caso vertente perante uma acção em que a uma entidade pública e a uma entidade
privada são imputáveis factos causadores de danos indemnizáveis, em que se lhes imputa uma obrigação
conjunta, como co-devedoras, em paralelismo de posições jurídicas, relativamente ao direito de
indemnização invocado pelos recorridos.
É uma unidade objectiva de pretensão formulada contra a referida dualidade de sujeitos
contitulares da mesma relação jurídica controvertida, o que configura uma situação de litisconsórcio
voluntário inicial do lado passivo (artigo 27º, nº 1, do Código de Processo Civil).

O mero accionamento da recorrente com fundamento na responsabilidade civil extra-contratual,


conexionada com a execução da relação jurídica administrativa envolvida pelo referido contrato de
empreitada de obras públicas, implica que a competência para dirimir o litígio em causa se inscreva nos
tribunais da ordem administrativa (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Os tribunais da ordem administrativa são competentes para conhecer da acção,
independentemente de os recorridos terem pretendido satisfazer o alegado direito de crédito apenas no
confronto da recorrente ou também no confronto de Empresa-A.
Neste quadro de litisconsórcio voluntário do lado passivo, envolvente de uma unidade relação
jurídica material controvertida, o tribunal que for competente para conhecer do pedido formulado contra a
recorrente não pode deixar de o ser também para conhecer do pedido formulado contra Empresa-A.
A conclusão, é por isso, no sentido de que são competentes para conhecer do litígio em causa, tal
como os recorridos o formulam na petição inicial, os tribunais da ordem administrativa.

6.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos termos da petição
inicial formulada pelos recorridos e da lei.

O litígio envolve uma situação de responsabilidade civil extracontratual conexa com uma relação
jurídica administrativa relativa a um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre um ente
público e um ente particular.
A definição da competência dos tribunais da ordem administrativa para conhecer da referida
situação de responsabilidade civil extracontratual imputada à recorrente não pressupõe a distinção da
derivante de actividade de gestão pública e de gestão privada.

Os tribunais da ordem administrativa são competentes para conhecer do litígio em causa pelo
mero facto de ser accionada a recorrente na sua posição de pessoa colectiva de direito público.
No quadro da unidade de relação jurídica controvertida invocada pelos recorridos - litisconsórcio
voluntário inicial do lado passivo - a competência para conhecer do pedido formulado contra a recorrente
abrange o conhecimento do pedido formulado contra a sua litisconsorte.
Os tribunais da ordem administrativa, ao invés do que foi decidido no acórdão recorrido, são os
competentes para conhecer do litígio em causa.
Em consequência, ocorre a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, conducente
à absolvição da instância da recorrente e de Empresa-A, nos termos dos artigos 101º, 105º, n.º 1, 288º, n.º
1, alínea a), 493º, n.º 2, e 494º, alínea a), do Código de Processo Civil.
Procede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorridos responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs
1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, dando provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, declara-se a
subsistência do conteúdo da sentença proferida no tribunal da primeira instância, e condenam-se os
recorridos no pagamento das custas dos recursos e da acção.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2007.

Salvador da Costa Ferreira de Sousa Armindo Luís

***
«Competência material:
Foi celebrado um contrato de compra e venda entre a autora e o réu, através do qual este adquiriu
àquela diverso mobiliário, sendo que tal aquisição foi efectuada através do procedimento pré-contratual
administrativo regulado no dec-lei 55/95, de 29 de Março .
As instâncias consideraram que o tribunal comum é o competente em razão da matéria para
conhecer da acção.
O recorrente entende que o Tribunal Administrativo é o materialmente competente, em virtude das
partes terem submetido o contrato ao regime previsto no dec-lei 55/95, de 29 de Março, sendo aplicável o
disposto nos arts 4, nº1, al. e) e f) do ETAF, aprovado pela Lei 13/02, de 19 de Fevereiro.
Mas sem razão.
O mencionado dec-lei 55/95 veio concentrar o que se encontrava disperso em diversa legislação,
adequando-o à legislação comunitária e tentando dar clareza, simplicidade e transparência às contas
públicas.
No referido diploma nada se impõe às entidades privadas e apenas se estabelece o regime da
realização de despesas públicas com locação, empreitadas de obras públicas, prestação de serviços e
aquisição de bens, bem como o da contratação pública relativa à prestação de serviços, locação e aquisição
de bens móveis – art. 1º do dec-lei 55/95.
O art. 1, nº 1, do ETAF preceitua que os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos
de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais .
O art. 4, do ETAF, dispõe:
1- Compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham
nomeadamente por objecto:
(...)
e) – Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução
de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos,
a um procedimento contratual regulado por normas de direito público .
f) – Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de
acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público
que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos
uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que
as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
Por sua vez, o art. 178, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo, define o contrato
administrativo como “o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação
jurídica administrativa”.

Ora, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções e recursos


contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas
ou fiscais – art. 212, nº 3 da Constituição da República.
Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em
todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – art. 211, nº 1, da Constituição .
Daqui se extrai que são da competência dos tribunais judiciais todas as causas que não sejam
atribuídas a outras ordens jurisdicionais.
O que significa dizer que a competência material dos tribunais judiciais se determina através de
um critério de competência residual.
Também dos arts 66 do C.P.C. e 18, nº 1, da LOFT se retira que a competência dos tribunais
judiciais é residual.
Relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições
de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres
públicos aos particulares perante a administração “ (Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, pág.
439).

Pois bem.
A relação contratual estabelecida entre recorrente e recorrida, da qual resultou a dívida reclamada
por esta, não reveste natureza administrativa, por não se verificarem os mencionados requisitos .
Com efeito, na relação mantida, o recorrente actuou despojado de poderes de autoridade ou de
restrições de interesse público, e à recorrida também não foram atribuídos direitos ou impostos deveres
públicos perante o recorrente .
No caso concreto, o que se verifica é que houve um procedimento administrativo pré-contratual,
como era exigido ao Município de Lisboa pelo aludido dec-lei 55/95, tendo a recorrida sido escolhida sem
prévio concurso público.
Mas tal situação, só por si, não é suficiente para se poder afirmar que os tribunais administrativos
sejam os materialmente competentes para conhecerem da falta de pagamento do mobiliário adquirido.
Não estão em causa questões relativas à validade de actos pré-contratuais, nem a interpretação,
validade e execução do contrato de compra e venda.
O contrato está perfeito, operou-se a entrega do mobiliário e a respectiva transferência da
propriedade .
Só falta o Município de Lisboa proceder ao pagamento do que é devido.
Por isso, não tem aqui aplicação as alíneas e) e f) do nº1, do art. 4, do ETAF.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 10-3-05, Proc. 21/03, “o que determina a
competência material dos Tribunais Administrativos para o julgamento de certas acções, é o elas versarem
sobre conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas, pelo que a
declaração dessa competência pressupõe que se julgue que o conflito nelas desenhado é um conflito de
interesses públicos e privados e que o mesmo nasceu e se desenvolveu no âmbito de uma relação jurídica
administrativa.
Na distinção, sem sempre fácil, entre contratos administrativos e contratos de direito privado,
importa considerar não só a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às
finalidades do interesse público que esse ente prossiga – o que é fundamental - mas também as marcas
da administratividade e os traços reveladores de uma ambiência de direito público existentes nas relações
que neles se estabelecem “.
Não concorrendo no contrato em apreciação nenhuma destas características, é de concluir, como
se conclui, ser o tribunal cível o materialmente competente para a apreciação e conhecimento do objecto
da acção» - Ac. do STJ (Cons.º Azevedo Ramos) de 24.6.2008, P.º 08A1714.

Antes de decidir qual o tribunal competente em razão da matéria (administrativos ou


judiciais) convém analisar os estatutos da pessoa colectiva a demandar, pois neles se contém,
quase sempre, regulada essa matéria.
Para todo o sector empresarial do Estado, as E.P.E (hospitais, etc.), rege o Dec-lei n.º
300/2007, de 22 de Agosto, cujo art. 18º dispõe assim:

Artigo 18.º
Tribunais competentes
1 — Para efeitos de determinação da competência para julgamento dos litígios, incluindo recursos
contenciosos, respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de
autoridade a que se refere o artigo 14.º, serão as empresas públicas equiparadas a entidades
administrativas.
2 — Nos demais litígios seguem-se as regras gerais de determinação da competência material
dos tribunais.

O art. 14º referido dispõe assim:


Artigo 14.º
Poderes de autoridade
1 — Poderão as empresas públicas exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o
Estado, designadamente quanto a:
a) - Expropriação por utilidade pública;
b) - Utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público;
c) - Licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável à utilização do domínio
público, da ocupação ou do exercício de qualquer actividade nos terrenos, edificações e outras infra -
estruturas que lhe estejam afectas.
2 — Os poderes especiais serão atribuídos por diploma legal, em situações excepcionais e na
medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constarão de contrato de
concessão.

Por sua vez, diz o


Artigo 7.º
Regime jurídico geral
1 - Sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais, intermunicipais
e municipais, as empresas públicas regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no presente
diploma e nos diplomas que tenham aprovado os respectivos estatutos.
2 - As empresas públicas estão sujeitas a tributação directa e indirecta, nos termos gerais.
3 - As empresas participadas estão plenamente sujeitas ao regime jurídico comercial, laboral e
fiscal, ou de outra natureza, aplicável às empresas cujo capital e controlo é exclusivamente privado.

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