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O Padre Cicero Romao Livio Sobral PREFACIO Ainda hoje, como no passado mais remoto, em yao nes ocuparemos de histéria sem focalizar, devidamente, 0 fator humano, dando-lhe a primazia na trama dos aconte- cimentos. . Grande 6 a atuagio exercida sobre os individuos pelo meio social e geografico, pelas idéias dominantes na época e predisposigdes atavieas. Mas essas influéncias, embora no- taveis, jamais poderdo anular a vontade e a responsabili- dade dos pro-homens, em torno dos quais giram os dramas sociais e polfticos, a cuja visio de conjunto damos o nome de histéria. Quem, dentro de algumas décadas a mais, tomar aos ombros a tarefa de pintar Juazciro, do Ceard, com o seu ecortejo de estranha religiosidade, sentir diante de si, do comeso ao fim de sua evolugio, a figura do padre Cicero, que a encampa e lhe preside As ocorréncias decisivas. Quan- do, todavia, quiser julgd-lo, ver-se-4 forgado a estudar o ambiente em que se agitou sua carreira singular, desde os componentes raciais da zona, e os seus antecedentes de fa- milia, até o clima e os mais acidentes geogrdficos, que atuam e condicionam os fendmenos sociais, em que se al- veiam og condutores de povos. Sem isso, saird malogrado, preliminarmente, todo o seu esforgo. No estd. no plano desta obra o propésito de escrever, propriamente, 2 histéria do patriarca, ou de Juazeiro, as- -suntos de que ge tem ocupado uma boa dezena de escrito- res, em fivros que correm o Pats. Alids, 6 muito cedo para REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 137 um julgamento definitivo, Ainda estéo vivas muitas das per- sonagens que se acharam em cena, ao lado do padre Cice- ro ou de seus adversirios. E esse contacto imediatoe com as Paixdes pessoais ou de partido, que sopraram o desenvolvi- mento da jovem Cicerépole, tornaria impossivel a serenida- de de juizo no historiador, abortando o melhor de sua ten- tativa. Eis por que o presente trabalho fica sendo, antes de tudo, um ensaio erftico, se bem que modestissimo, da men- talidade do padre Cicero. Um eshbogo de andlise do seu es- pirito, através do que pude ecolher, em vinte anos de ob- servagio direta sobre ele, ou, ainda, através de depoimento de pessoas acima de toda suspeig&o. Antes de tudo, sempre fiz, a mim mesmo, a seguinte pregunta: — Teve em mira o padre Cicero, desde'a juventude, preparar, de longe, o aparecimento da colmeia humana que é o atual Juazeiro? Previu e encaminhou, mais ou menos deliberadamente, os fatos culminantes de sua vida, inclusive © choque com os poderes civil e eclesidstico ? Ou foi, bem ao contrério, arrastado na caudal das ocorréncias, mais viti- ma do que algoz, antes recipiente do que irradiador de energias? E, em qualquer caso, teré sido um homem reto @ benfazejo, ou, ao envés, um obstéculo 4 marcha dos ser- tées para a sua suspirada civilizagao? Se, ao dobrar a derradeira folha destes rabiscos, o lei- tor tiver conseguido alguns esclarecimentos para a solugio de tais quesitos, que a muitos outros tem ecausado tormen- to, dar-me-ei por indenizado do meu sacrificio. Cumpre salientar, entre paréntese, que partilho do pensamento de Le&éo XIII, quando franqueou a biblioteca do Vaticano a0 exame dos curiosos: “A Igreja, filha da Luz, néo tem medo da luz.” Outrossim, esposei sempre 0 sentir do padre Mateus, o apéstolo moderno do Coragiio de Jestis: ‘Quanta vontade me dé [exclama ele] de to- car fogo em certas vidas de santos, que nos dao a falsa idéia de terem seus heréis nascido impecaveis e de terem domado as rebeldias da natureza, sem combate ¢ como por milagre !”” Estenda-se 0 conceito a todos os homens que sairam da vulgaridade ¢ entraram pela histéria a dentro, e tereis 0 meu ponto de vista. 138 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA CAPITULO 1 : SIM E NAO Quem-quer que se propés, até hoje, estudar a figura moral do patriarea de Juazciro, sentiu-se embaragado entre o sim do endeusamento popular e o néo reprovador e qua- se undnime das classes pensantes. Como quase todos os de minha geragio que abriram os olhos perto dele, comecei por venerd-lo desmesuradamen- te. Menino ingénuo e, como tal, amigo do maravilhoso, vi nele, até 03 catorze snos, a expressio maxima da virtude eristé que um mortal jé pudera encarrar entre nés. Meu pai, ancido nada erédulo e assaz desiludido da humanidade, cada vez que era visitado pelo padre Cicero, ouvia-o com singular deferéncia e, pelos modos, equipara- -va-o a0 padre-mestre Ibiapina, seu amigo e guia espiritual, de santa memoria. Minha mi, reservada e um tanto. eética, agarrava-se ao sentir da Igreja, que o préprio padre Cicero sempre Ihe apontara como a coluoa da verdade, a palavra inerravel, o intérprete seguro do pensamento divino. E, embora muito admirasse o patriarca, depois de ouvir © que se dizia pré e contra ele, rematava: — O padre Cfcero sempre nos disse que a obeditncia € pedra de toque do bom espirito. Disse muitas vezes que, se um anjo de luz viesse nos ensinar doutrina ‘dife- rente da que a Igreja ensina, ninguem se enganasse : 0 anjo de luz era o deménio disfargado. E sc um padre, ainda o mais digno, caisse na fraqueza de se afastar do pensamen- to da Igreja, ninguem se esquecesse que s6 a Igreja nado pode errar na diregdo das consciéncias; e, em todo caso, ficdssemos com a Igreja, nem que isso custasse a morte. Por tanto, nio julgo o padre Cicero, mas fico 6 com Igreja. A margem, porem, desses juizos discretos e comedidos, havia a impressionar-me o conceito j4 espraiado e-hiperbé- lico de que 0 ex-capelio gozava geralmente e que a contra- digio da mineria ainda mais realgava. — O padre Cicero possue uma virlude inata [dizia- -me, extasiada e ardente de fervor, uma nossa vizinha, mui to lida em espiritualidade e puxada a tedloga]. Nao vou 14 pensar que ele seja outra pessoa divina, baixada & terra, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 139 como querem certos fandticos. Mas, na vida daquele padre, estf-se vendo que existe um mistério. J&A sabe como ele chama & prépria mai? Chama é sinh4 Quinou. Por af se pode ver que ela talvez s6 seja mai dele na aparéncia. HE, entdo, donde teré vindo?... O pessoal que, de toda parte, vem a Juazeiro diz que nunca viu um padre como o daqui. Quem nao vé que é assim mesmo? Quando esté dizendo missa, parece um anjo: n&o quer nunea sair do altar, como se ld ja fosse o céu, Passa uma hora inteira celebrando. Quando prega, ndo tem enfado: ensina a verdade com to- das as letras e obriga a gente a pensar no que 6 bom. Eu morava quase a meia legua daqui e vinha com meu povo, todos os dias, & igreja. Vinha 4 missa da manhf e, na qua- resma, vinha tambem A explicagéo do Evangelho, & boca da noite. Ninguem tinha vontade de comer, téo depressa passava o tempo! E — veja bem — vinha era padre de fora para visitar e ajudar o daqui. E aquele que vinha uma vez ficava vindo, naturalmente por que achava o que ver... . Se os adultos atilados se exprimiam assim, maior era o exagero de conceituagéo na populagao infantil : — Seu padre Ciceio fala com Deus [confiava-me, convencido, um meu colega de escola, dos mais sisudos]. Fique sabendo que ele fala com Deus, assim como eu es- tou lhe falando. No mundo, ha dois padres santos: 0 papa em Roma e o padre Cicero em Juazeiro. — Vocés vivem muito enganados com este padre [pro- elamsava, a meia voz, do alpendre de sua casa de sftio, o major Rocha, velho conterréneo, desabusado e livre pensa- dor]. O padre Cicero comegou missionario, vai ficando mi- lionfrio e acabard revolucionério. Aquele aff nao 6 mais nem menos do que um jeito novo de pegar gente para o proprio partido. Quando se sentir forte, 0 estouro serA me- donho, e triste de quem morar aquf!... - Assim discreteava o major Joaquim José da Rocha, que, aliés, n&o era homem sem roda. Contavam-se por de- zenas os que, ali mesmo, dentro do microcosmo juazeirense, liam-lhe pela cartilha e gargalhavam, com filoséfica altane- ria, das santidades locais. Gargalhavam e glosavam desa- piedadamente, levando 4 butha, as vezes, a prépria doutri- na da [greja. A todas essas vozes dissonantes o patriarca se conser- vaya sistematicamente alkeio. Nem procurava os conrtradi- 140 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA tores, a t{tulo de reconciliaciio ou ajuste de contas; nem fazia mengdo dos mesmos, a néo ser de longe em longe e em tom displicente, Dir-se-ia que, em vez de aborrecé-los, comprazia-se em conserva-los perto de si. Se se acrescentar que, no Juazeiro de outrora, como em toda parte, existia ainda, entre os habitantes, uma boa porcentagem de indiferentes, que nao se pronunciavam sobre © caso religioso da terra, mas viam no padre Cicero um elemento benfazejo, terei enumerado os diversos naipes em que se dividia a opinido ptblica urbana, nos terspos de mi- nha infancia. Pode-se afirmar, todavia, que setenta por cento da Jocalidade tinham o ex-capeléo em grande conta e lhe obe- deciam como a um pai das eras biblicas. eee Chegou, porem, a adolescéncia e com ela comecei a ver © universo sob prismas deslumbrantes ¢ nfo pressentidos. : A razio passou a pedir-me conta de minhas crengas e, dentro em pouco, secundada pelo ambiente de colégio, nio raro zombeteiro e irreverente, atirou no chiio, enojada- mente, os fdolos de barro que a fantasia me hospedara no espfrito. Foi-se, na correnteza fatal, muita cousa querida, figu- rando nesse acervo o primitivo conceito do padre Cicero. A principio quis reagir contra a onda iconoclasta. Nao Ele néo era um padre somenos, um rebelado sem conscién- cia, um vivedor sabidério, conforme insinuavam. Depois, capitulei. f bem verdade que gota d’agua tam- bem cava pedra. Dentro de dois anos, a veneraciio de ou- trora, estava convertida em uma espécie de desprezo. En- vergonhava-me de ser da terra onde ele vivia. Achava-o, por minha vez, excessivamente compenetrado do eeu valcr pessoal, em contraste com a verdadeira humildade evangé- lica, E, de volta a casa, por casio das férias, abstinha- -me, 0 mais que podia, de ir vé-lo, fazendo-o quase comen- te para me despedir e ainda a instancias de minha mai. Ta e era recebido afetuosamente. Em meio & conversa, saia a tradicional bandeja de café, o café mais saboroso que se tomava no vale do Cariri. E, no final, quando eu lhe apresentava as minhas despedidas por ter de voltar ao es- tudo, jamais Ibe esquecia que éramos pobres: metia-me na REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 141 méo uma cédula de vinte mil réis, senfo duas ou trés des- se valor. Isso née obstante, a ojeriza perdurava; para isso con- correndo o juizo pejorativo que a élite mental do Pais for- mara a seu respeito. Houve, porem, entre outros fatores, um, que decidiu da modificagio dos meus sentimentos. Foi a ecerteza, adquirida paulatinamente, pela reitera- da observagio in anima vili, de que o impenitente rebe- lado era, antes de tudo, um visiondério. Como tal, devia ser um doente, e bem problemdtico o seu grau de responsabili- dade, do ponto de vista teoldgico. (Continua) |

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