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EXPEDIENTE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
Reitor
Roberto Leher
Vice-reitora
Denise Fernandes Lopez Nascimento
Pró-Reitoria de Graduação – PR1
Eduardo Gonçalves Serra
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR2
Leila Rodrigues da Silva
Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR3
Roberto Antônio Gambine Moreira
Pró-Reitoria de Pessoal – PR4
Agnaldo Fernandes
Pró-Reitoria de Extensão – PR5
Maria Mello de Malta
Pró-Reitora de Gestão e Governança – PR6
Ivan Ferreira Carmo
Diretor
Carlos Gonçalves Terra
Vice-diretora
Madalena Ribeiro Grimaldi
REVISTA DESVIO
Daniele Machado Gabriela Lúcio Thiago Fernandes Priscila Medeiros João Paulo Ovídio
Editora chefe, Editora executiva e Design gráfico e Entrevistas Entrevistas
revisão e entrevistas revisão diagramação
SUMÁRIO
05. Editorial
06. Colunista Convidada | Rogéria de Ipanema
09. Crítica | Vânia Mignone na Galeria Mercedes Viegas
João Paulo Ovidio
12. Crítica | Modernidades fotográficas no Instituto Moreira Salles - RJ
Priscila Medeiros de Oliveira
13. Entrevista | Izabela Pucu – Diretora e curadora do Centro Municipal de Arte
Hélio Oiticica
João Paulo Ovidio e Daniele Machado
20. Entrevista | Luiz Guilherme Vergara – Diretor geral e curador do Museu de Arte
Contemporânea de Niterói
João Paulo Ovidio e Priscila Medeiros de Oliveira
25. Caderno Especial | Descomemoração dos 44 anos do assassinato de Ana
Maria Nacinovic
26. Apresentação
Gabriela Lúcio
28. Heranças da ditadura: a atual conjuntura política e os principais desafios para
resgatar essa história
Ana Bursztyn Miranda
33. Anna Bella Geiger e Niomar Moniz Sodré: as artes visuais e a ditadura militar
Daniele Machado
40. 44 anos depois, o trabalho na Comissão da Verdade
Nadine Borges
47. Caderno Especial | Afroresistências - Estética negra e novas narrativas
48. Apresentação
Angélica Arcasi
49. Mulher negra: corpo, memória e protagonismo no audiovisual
Simone Ricco
56. PIXAÇÃO – a cultura Xarpi na cidade do Rio de Janeiro
Samuel Lima
70. A face negra do poder constituinte originário brasileiro: a atuação interseccional
das Mulheres Negras do Estado do Rio de Janeiro na construção das demandas
na constituinte 1988
Ellen Mendonça Silva dos Santos
81. Artigo | Arte Popular Brasileira: A influência do material no processo criativo
Liliane Alfonso Pereira de Carvalho
93. Artigo | Relações formais e sociológicas entre a arte ocidental da Idade Média e a
arte pré-colombiana
Thiago Spindola Motta Fernandes
Editorial
É com muita alegria que escrevemos o texto edi- que a presidente eleita democraticamente Dilma
torial da primeira edição da Revista Desvio! Um Rousseff está sofrendo, e diante do assassinato de
sonho que foi gestado por nós, estudantes da Es- Diego Machado no campus do Fundão da UFRJ.
cola de Belas Artes da UFRJ, por um ano até po- A Descomemoração dos 44 anos do assassinato
dermos concretizar. de Ana Maria Nacinovic, estudante da EBA as-
sassinada por militares em uma emboscada. E o
A Desvio foi criada à partir da demanda de um Afroresistências que ao longo de dias apresentou
espaço para nós, estudantes de graduação, apre- artistas e pesquisadores que lutam todos os dias
sentarmos ao público, acadêmico ou não, a nossa contra o esquecimento, invisibilidade e a violên-
produção. Sejam artigos, críticas de arte, ou os cia contra o negro na arte. Serão dois cadernos
eventos que mobilizamos dentro da Escola. Além especiais com artigos e transcrições das falas re-
disso, também recebemos contribuições de ou- alizadas nos dois eventos.
tros interessados como estudantes de graduação
e pós-graduação de outras universidades ou es- Por fim, encerramos a edição com dois artigos.
tudantes autônomos. O primeiro de Liliane Carvalho, Mestre em Edu-
cação, Arte e História da Cultura pela Universi-
Sendo assim, começamos esta edição com a dade Presbiteriana Mackenzie, sobre arte popu-
nossa primeira colunista convidada, a Prof. lar brasileira. O último sobre relações entre arte
Dr. Rogéria de Ipanema, e duas críticas de pré-colombiana e arte ocidental da Idade Média,
arte sobre exposições escritas por João Paulo escrito por Thiago Fernandes, estudante do cur-
Ovídio e Priscila Medeiros do curso de Histó- so de História da Arte da EBA.
ria da Arte. A primeira, mais longa, é sobre
Vânia Mignone na Galeria Mercedes Viegas. A Agradecemos a todos os colaboradores pelo em-
outra é sobre a exposição Modernidades Fotográ- penho. Venha contribuir com uma publicação
ficas, em cartaz até o ano que vem no Instituto para a próxima edição! As regras de submissão
Moreira Salles. estão no nosso site.
COLUNISTA CONVIDADA
ROGÉRIA DE IPANEMA
tivas e legislativas tanto da dimensão pública da edificação do seu anexo. E vimos, infelizmente,
Educação como a retirada da arte dos secunda- como, onde e quando não chegam as verbas de
ristas, nossos futuros universitários, tornam-se custeios e investimentos, as tragédias e os aci-
demasiadamente comprometedores, os nossos dentes podem acontecer, e não precisamos correr
papéis na UFRJ. Infelizmente, a Escola de Belas novos riscos no Prédio JMM.
Artes também foi atingida pela causa material
do incêndio que destruiu parte da Reitoria no 8º Este é o momento, também, de reflexão do con-
andar do Prédio Jorge Machado Moreira, provo- ceito e função uni-multi-formativa da Escola de
cando a interdição de grande parte das suas fun- Belas Artes, para atendermos às solicitações e
ções, e desterritorializando os cursos da FAU, do prazos estabelecidos pela Reitoria, com a elabo-
IPPUR, do GPDES e da EBA, e todas as Pró-Rei- ração de um documento que deve ser discutido
torias. Temporariamente, pela excepcionalidade com toda a base da Escola – estudantes, técnicos
instaurada, nossa escola estará reorganizada em e docentes - , para a consolidação do Plano de
suas atividades didático-pedagógicas avizinhada Desenvolvimento Institucional e do Plano Diretor
em outros espaços ofertados dentro do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro para os
da Cidade Universitária. próximos anos. Mais do nunca, todos os sujeitos
e todas as atividades da Escola devem ser iden-
Isto faz com que estejamos em muitos lugares, tificados e reconhecidos, por todos nós, no do-
mas não nos permite que deixemos de atuar. cumento que será encaminhado pela instituição
Nossa necessidade é a nossa necessidade. Es- à Reitoria. Documento que retrate a sua missão
tamos em todos os lugares, sempre estivemos; institucional, a sua pluralidade, as atualizações e
somos de uma Escola e sempre seremos; somos planejamentos necessários para o ensino, a pes-
Escola de Belas Artes em qualquer lugar, e não quisa e a extensão da instituição na UFRJ. Nesta
é a qualquer custo. Mesmo neste momento, de- grande discussão da unidade a participação dos
sapropriados da origem, só manteremos a nossa estudantes é imprescindível, e o História da Arte
unidade, se mobilizados internamente e mobi- sempre se fez, e faz: _ Presente!!
lizando a UFRJ em meio às tragédias locais, às
pautas reformistas para a Educação e aos ataques Como a arte é imprescindível, compõe e afeta a
do governo contra o funcionalismo público bra- universidade, outra importante frente nos chega
sileiro. E digo isto segura do direito, pelo dever para debate e reflexão coletiva sobre as lingua-
exercido, de quem chegou ao magistério federal gens artísticas, as suas interdisciplinaridades e as
há 7 anos, para a nova Graduação História da transversalidades culturais, a partir das unidades
Arte, e esteve nas mobilizações, locais, regionais que compreendem as graduações, pós-gradua-
e nacionais, junto aos estudantes, e aos próprios ções e as atividades de Extensão no campo das
que lançam esta revista, para as melhorias das artes na UFRJ. Pelas dimensões acadêmicas, a
condições de trabalho, pelas políticas sociais para Reitoria promove nos dias 22, 23 e 24 de novem-
a Educação Pública, e a indispensável qualidade bro, o I Encontro O Ensino de Artes na formação
das universidades, institutos e colégios federais universitária na UFRJ. Procurando estabelecer
do país. Neste momento, re-exisitir é manter-se um diálogo maior entre as unidades e os cen-
pautado pela reunificação física das Belas Artes, tros envolvidos, deseja-se identificar, reconhecer
de volta ao seu prédio, juntamente com a futura e significar as artes em seu papel de formação,
articulado em um encontro para o recorte espe- Sim, saudações às novas escritas que se revelam.
cífico das artes que a Universidade Federal do Rio
de Janeiro disponibiliza, produz e por ela é atra- E aos estudante da Escola de Belas Artes, aos edi-
vessada. Trazer ao debate universitário, as pe- tores e colaborados desviantes deste periódico,
sadas pautas nacionais contrarreformadas para nossas saudações culturais1
a Educação, projetando gravíssimos prejuízos e
esvaziamentos dos cursos de artes para todas as 1
IPANEMA, Rogéria de. Colunista convidada.
universidades públicas brasileiras. Capacitar e Revista Desvio, Rio de Janeiro, n.1, 2016.
qualificar as condições de articulação, pesquisa e
criação das artes no seu ponto de formação é po- Rogéria de Ipanema é Doutora em História pela
der se inserir no grande metabolismo cultural e Universidade Federal Fluminense (2007), Mestre
social da vida, pela academia ao conjunto de seg- em História e Crítica da Arte pela Universidade
mentos da sociedade e, dos demais segmentos da Federal do Rio de Janeiro (1995) e Bacharel em
sociedade para a academia. E aqui e agora, a par- Gravura pela Universidade Federal do Rio de
tir de um novo Desvio eletrônico, constituir-se-á Janeiro (1983). É professora do Curso de História
em mais um território sem fronteiras. da Arte e do Programa de Pós-graduação em
Artes Visuais, da Escola de Belas Artes/UFRJ.
Por isso, como membro da Comissão Organiza-
dora do evento, vi e veremos que vai ter sim, nes-
te Encontro, o espaço para a Desvio: acadêmica,
literária, crítica, artística, política e social. Pois, É
preciso estar atento e forte!
CRÍTICA
O vernissage da exposição “Hoje em dia”, da ar- nal, o que nos indica o título da exposição? A
tista campineira Vânia Mignone1, ocorreu no dia ausência de um completo a frase “hoje em dia”
15 de junho do ano vigente na Galeria Mercedes evoca uma atmosfera reticente, porém ponto de
Viegas – Arte Contemporânea2, no bairro da Gá- partida para pensar o que acontece nos dias de
vea, Rio de Janeiro. A mostra contou com a cura- hoje, e se diferem dos dias de ontem.
doria de Luiz Camillo Osorio3, crítico de arte que
já havia realizado trabalhos curatoriais nos quaisExatamente uma semana antes do fim da expo-
outras obras de Mignone estiveram presente. sição, no dia 13 de julho, o público teve a opor-
Primeiro, realizou a curadoria em conjunto com tunidade de conversar com o curador e a artista
Annateresa Fabris na exposição MAM 60, na Oca sobre as obras, o processo de criação, a poética e
do Ibirapuera no ano de 2008; e posteriormente, tantas outras questões pertinentes para o encon-
em 2010 no Rio de Janeiro, Camillo Osorio foi o tro. A conversa com o curador permite que o seu
curador responsável pela exposição Se a pintura texto seja segmentado em prol de esclarecimento
morreu o MAM é um céu!, a qual apresentou um acerca das leituras, referências e aproximações
panorama de artistas contemporâneos que bus- tecidas por esse. Tal dinâmica traz a tona críti-
cam manter a pintura enquanto uma linguagem cas, dúvidas, sugestões, e outros comentários que
atual. Após essas duas experiências, em 2016, possibilitam uma troca, antes de tudo, necessá-
coube a Luiz Camillo Osorio a responsabilidade ria, tanto para o amadurecimento da produção
de pensar as obras inéditas que compõe a exposi- plástica do artista, quanto para o discurso teórico
ção individual da artista Vânia Mignone. do crítico, além de provocar no espectador uma
leitura diferenciada em relação ao seu primeiro
A exposição foi composta por vinte e oito traba- contato com as obras. Se torna preciso ressaltar
lhos inéditos para a galeria, divididos em duas que o curador apenas apresenta um percurso
séries: uma realizada sobre papel e outra de possível, e que o espectador é inteiramente livre
pintura e colagem sobre MDF. Ambas com co- para construir suas próprias relações, ora ado-
res chapadas, traços expressivos e narrativas se- tando a proposta, ora gerando outra distinta.
quenciais. As obras da artista transitam entre o
cotidiano e o fantástico, apresentando cenas sim- O texto4 de Luiz Camillo Osorio contextualiza o
ples que recusam qualquer excesso decorativo, leitor sobre quem é a artista através de uma visão
contendo elementos essenciais que configuram o histórica da arte brasileira, apontando que surgi-
espaço, indicando produções de histórias que não mento da trajetória de Vânia Mignone ocorre no
asseguram se tratar de memórias ou factícios, início da década de 1990, ganhando visibilidade
realidade ou imaginação. Mas, antes de levantar em 1996 com o Projeto Antárctica Artes com a
especulações acerca da exposição, cabe partir Folha. A produção de Mignone surge após a efer-
de uma indagação capaz de expandir ou reduzir vescência do “retorno a pintura”, da chamada
nosso entendimento sobre os trabalhos. Pois, afi- Geração 80, porem existe resquícios desse grupo
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bre quem nós somos e a quem podemos confiar Acesso em: 27 de julho de 2016.
nossos sentimentos e mostrar nossas fraquezas. 2 Mercedes Viegas | Arte Contemporânea. Ex-
E as perguntas que fazemos hoje retornarão para posição (2016). HOJE EM DIA. Disponível em:
as próximas gerações. Se tornando assim frágeis <http://www.mercedesviegas.com.br/ex-
as fronteiras temporais entre passado, presente e pos/2016-06_expo_vania-mignone_01.html>
futuro, pois os dias continuam iguais, mudando Acesso em: 27 de julho de 2016.
apenas o modo como o operamos. 3 Luiz Camillo Osorio. Lattes. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/8954280130616397>
Acesso em: 27 de julho de 2016.
Notas
4 OSORIO. Luiz Camillo. Vânia Mignone: expres-
são dispersa ou o afeto das margens. Disponível
1 Vânia Mignone. CV. Disponível em:
em: <http://www.vaniamignone.com/hoje-em-
<http://www.vaniamignone.com/curriculum/>
dia-1/> Acesso em: 27 de julho de 2016.
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CRÍTICA
No primeiro capítulo de Jamais Fomos Modernos, dustriais em contraponto com a figura humana.
Bruno Latour narra diversos acontecimentos que Nacionalidades e culturas distintas nos olhares e
podemos visualizar nas páginas de um jornal, na subjetividades que aparecem nas escolhas temáti-
TV, no rádio ou nas redes sociais de hoje. As notí- cas e estéticas.
cias ora sobre avanços extraordinários no campo
das ciências e das tecnologias, ora sobre as gran- São nessas formas narrativas através das imagens
des catástrofes ao redor do globo acontecem de que mostra um Brasil que deseja o moderno e a
forma quase simultânea como causa e efeito. So- inovação, mas ao mesmo tempo possui raízes e re-
brepondo informações o autor narra o contraste alidades dentro da tradição e com uma complexa
entre as descobertas tecnológicas em contraponto cosmogonia.
com as culturas que não aceitam esses avanços. É
diante desse cenário que Latour coloca em jogo e A exposição nos transporta a um tempo passado
questiona o conceito de modernidade. muito questionado atualmente em momento de
incertezas econômicas e tensões. Dos 50 anos em
Com curadoria de Ludger Derenthal e Samuel 5 de JK ao progresso industrial de São Paulo, pas-
Titan Jr. Modernidades fotográficas nos mostra sando pela tradição indígena e do candomblé a um
esta contradição. Um Brasil que busca o moder- jogo de peteca em uma praia do carioca. Momen-
no, mas que mesmo em sua arquitetura moder- tos que precedem o golpe de 1964 e que mostram
nista de referência não abre mão do monumental cenas bucólicas mesmo tendo, muitas vezes, como
pelo funcional, do status pelo social, do poder pelo contexto as grandes capitais em transformação.
progresso coletivo, constituindo um moderno que
contradiz o próprio conceito de modernidade. São Mais que narrativas urbanas ou a busca da ideia
contradições e contrastes entre paisagens, povos de brasilidade, sempre em questão, em Moderni-
dentro de um todo nunca homogêneo, repleto de dades fotográficas vemos o olhar de fora e o olhar
ideias fora do lugar. de dentro, agenciamentos, e a imposição de um
modelo de progresso internacional que levam a
A começar pela multiplicidade dos próprios auto- certeza de que nunca foi fácil se voltar para a nossa
res. O brasileiro José Medeiros que traça um diá- própria constituição e complexidade.
logo entre o humano, a paisagem e a diversidade.
E os nascidos em diferentes lugares da Europa. Eleita umas das cinco melhores exposições do
Marcel Gautherot cria uma poética através dos es- mundo para serem visitadas Modernidades Foto-
queletos das estruturas na construção de Brasília. gráficas permanece no Instituto Moreira Salles até
Thomas Farkas influenciado pelas vanguardas do 26 de fevereiro de 2017.
início do século XX e Hans GuntherFlieg com um
trabalho que explora a imensidão dos espaços in-
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ENTREVISTA
Desvio: Izabela, sua trajetória acadêmica tem sabia aquela coisa acadêmica da EBA, não tinha
início na linha “prática”, mas atualmente você é prática de desenho e nenhuma dessas noções
doutoranda em História e Crítica da Arte. O que acadêmicas, não tinha realizado nenhuma práti-
provocou esse desvio? Gostaríamos de saber um ca como artista antes da universidade. Aquelas
pouco sobre a sua formação, sua vivência na escolhas que fazemos com 17 anos, e de repente
EBA-UFRJ, e os rumos que sua pesquisa tomou tem que decidir o que vai fazer da vida, e isso é
em cada fase. uma coisa bem esquisita, e eu comecei a traba-
lhar e estudar arte a partir daí. Eu não tinha co-
Izabela Pucu: É importante dizer de saída, que nhecimento nenhum, não havia nenhum artista
eu não vejo essa separação, pois é como artista na minha família, nada. Até os meus primeiros
que muitas pessoas dão aula, é como professor três anos achava que aquele fazer artesanal que
que muitas pessoas criam coisas, e então real- se ensinava ali era... A minha noção de arte era
mente não vejo nenhuma separação entre a mi- muito circunscrita a produção de objetos de arte.
nha prática como artista e o que eu faço hoje. É E eu tive a chance, por questão da minha família,
como artista que eu faço isso aqui. Não é uma de morar em Cuba, tranquei a universidade por
coisa planejada, a formação de uma pessoa, a um semestre e passei sete meses em Cuba.
trajetória... É claro, nós possuímos escolhas,
conduzimos isso, mas as vivências são muito im- Quando voltei de viagem a noção de arte se am-
portantes, as oportunidades que temos na vida pliou muito para mim, e isso foi muito impor-
são muito formadoras, e elas são norteadoras do tante porque encontrei a Glória Ferreira, pessoa
que vai se passando. Não é uma coisa estanque, muito importante na minha vida, que é a minha
“então eu decidi ser artista, e agora eu decidi ser orientadora do doutorado e uma grande amiga,
crítica, decidi ser curadora...”, pelo menos comi- e é uma pessoa que tinha uma pegada teórica
go nunca foi assim. E eu nunca pensei na minha muito forte. Eu trabalhei com ela na Diretoria
formação em termos de carreira, nunca tive esse de Intercâmbio Cultural durante dois anos sem
afã de uma carreira, nunca deslumbrei uma car- receber nenhuma bolsa, e tinha uma bolsa pro-
reira, o que aconteceu foram escolhas, vivências metida que nunca chegava, essas coisas de uni-
e oportunidades. versidade. E durante esses dois anos que fiquei
lá inventamos um projeto que se chamava Terças
Eu sempre quis ser jornalista, sempre quis es- de Vídeo, quando ainda existia essa coisa de vídeo
crever, e na última hora decidi fazer Belas-Artes, no final dos anos 1990, não havia se disseminado
tive que fazer curso de desenho porque eu não o YouTube e meios similares. Fizemos uma vide-
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oteca, tínhamos convidados que traziam filmes e queria organizar um livro do pai que havia mor-
tal, e isso foi formando para mim uma noção de rido em 2003. Quando publicamos o livro da FU-
arte que era muito maior do que a produção de NARTE em 2006 ele já havia morrido, e ele não
objeto de arte, a produção de arte era algo muito tinha nada organizado, e através desse livro...
mais amplo, a possibilidade de pensar a minha Para você ver como a formação não é uma coisa
produção muito além de objeto de arte. E eu saí pragmática, a formação está muito ligada a vida,
dali, terminei a minha graduação muito diferente e as experiências que a gente tem. Claro que a
do que eu terminaria se eu não tivesse ido para educação formal é importante também na nossa
Cuba, se eu não tivesse conhecido Glória Ferrei- trajetória. Então saindo dali eu fui, fiz esse livro,
ra, se eu não tivesse ficado dois anos ralando sem fui para o Parque Lage... No dia que eu lancei esse
bolsa no DAIC, entende? São coisas que a sua livro do Wilson Coutinho, a Luiza Interlenghi que
formação vai sendo dada por aí. Terminei a facul- foi diretora do Parque Lage por seis meses só, me
dade, e trabalhei muito em pesquisa com a Glória convidou para trabalhar com ela no Parque Lage,
em sequência, entre 2003 e 2006, eu fiz de tudo e a gente tinha feito outro trabalho de educação
nessa vida, muitas coisas mesmo, fora da minha para o MAM, que eu também comecei a atuar
área inclusive, e que também foram formadoras nessa área de projetos de educação, e aí a minha
para mim. E comecei a fazer exposições, de par- vida foi conduzida para isso.
ticipar de coisas como artista.
Quando eu fiz o doutorado eu já estava muito
Na época que eu fiz o meu mestrado já tinha uma mais envolvida com crítica, curadoria e pesquisa,
atuação como artista, desde 2003, não engatei eu achei que não fazia mais sentido porque eu
direto. Terminei minha graduação em 2003, mas já não tinha mais uma produção plástica, visual,
só em 2005 eu entrei para o mestrado, e aí a coisa eu tinha produção artística que era nesse outro
da escrita me pegou, e eu nunca mais consegui campo. E foi assim, meio caoticamente que eu fui
fazer um trabalho de arte visual. A escrita se tor- conduzindo a minha trajetória.
nou para mim uma coisa tão instigante que eu
até achava que fazia isso melhor do que o tra- Desvio: Como você articula os projetos educati-
balho de arte que eu fazia. E aí eu comecei a es- vos/curatoriais desenvolvidos no H.O com a sua
crever, e trabalhar como pesquisadora mesmo, e pesquisa acadêmica?
tal, e fui conduzindo a minha vida dentro desse
sentido. Izabela Pucu: A minha pesquisa é um “drama”
porque eu não tenho tempo de fazê-la como eu
Organizei o livro do Wilson Coutinho , através gostaria, mas também acho interessante essa
1
de outro livro que eu trabalhei como pesquisa- produção acadêmica em meio às coisas do mun-
dora com a Glória, e depois desse livro eu con- do. Isso tem sido um “drama” para mim, mas
tinuei com esse mosquitinho que me mordeu da entendo que é importante no sentido de experi-
pesquisa, e nunca mais eu quis parar de fazer mentar a produção acadêmica em meio a vida,
pesquisa. E com esse livro A Crítica de Arte no em meio a isso que pega fogo, que não te dá
Brasil2, que eu tinha feito com a Glória Ferrei- tempo, mas que também é encantador. A vida
ra, que eu conheci o Wilson Coutinho, conheci que inclui a produção acadêmica também, e é a
a filha dele, e foi ela que me procurou porque quebra da separação entre teoria e prática, fazer
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uma tese em meio a vida. E eu tenho tentado co- achava que no momento da tese eu deveria me
locar para dentro da tese a minha prática cotidia- isolar do mundo, ainda mais que eu venho de
na com as pessoas com quem trabalho. A profª. uma formação de artista que não é uma forma-
Tânia Rivera fala muito da importância disso, da ção teórica na EBA, e é bem deficitária, inclusi-
escrita acadêmica performar uma prática. E te- ve. Na minha época era, mas acho que agora as
remos uma Jornada dos trabalhos realizados no mudanças de currículo cumpriram um pouco as
Plataforma de Emergência, e é uma contribuição lacunas nesse sentido, mas quando eu fiz a EBA
no Brasil, a Academia Brasileira, porque pensa- o artista tinha uma formação teórica pifío. Nós
mos muito pouco. ficávamos no atelier, e é fundamental, adorei, foi
muito importante para mim esse approach com
A minha tese se chama A Arte como Trabalho, e a produção material, mas eu sei que vim cheia
tem uma abordagem sociológica de pensar o ar- de lacunas para o mestrado, entendeu? Qua-
tista como modelo ou contramodelo do trabalha- se morri para escrever a dissertação, e cheguei
dor, pensar as formas de produções no sistema no doutorado sacralizando muito esse lugar do
de arte como modelos ao mesmo tempo que po- intelectual. E talvez a impossibilidade de fazer
dem ser apropriados pela forma do capitalismo esse recolhimento do mundo, de mergulhar na
avançado, como também podem oferecer mode- pesquisa dessa maneira idealizada, trouxe para
los de resistência, confrontar isso com formas de mim a possibilidade de performar a minha práti-
organização de outros campos. Atualmente estou ca dentro da minha escrita. Ser performativa por
encantada com a ideia de museologia social, que falta de escolha, e depois perceber que isso era
é uma museologia que se apropria e se articula uma opção interessante, no sentido de esgarçar
com os ativismos comunitários. É uma coisa fa- os limites da escrita acadêmica. É esse o papel da
bulosa pensar como esses campos podem se con- arte dentro da academia: colocar questões para a
taminar positivamente. O que é tenho percebido escrita acadêmica. Se nos enquadrarmos alegre-
é a impossibilidade total de separar prática de es- mente na exigência de produtividade louca que
crita, reflexão de ação. Acredito que essa ideia de nos tem sido submetida, se nos enquadrarmos
uma escrita performada pela prática é a impossi- alegremente aos modelos acadêmicos de escri-
bilidade total de fazer outra coisa, além disso que ta... É muito fácil escrever uma tese que não seja
está sendo feito aqui, que é um processo super de criativa, criadora... pega os autores aqui, debate,
criação coletiva, assumir a possibilidade de colo- coloca um discutindo com o outro, mas e a cria-
car para dentro da escrita a prática do dia-a-dia, ção? E a deriva? E a entrega? O papel da arte na
é também dessacralizar a escrita acadêmica, tor- universidade é colocar em questão a escrita aca-
ná-la mais viva, menos modelar, menos metodo- dêmica, a produção de saber acadêmico, e trazer
lógica. O que eu tenho tentado fazer é tomar al- esse caráter performativo para a produção cien-
gumas atividades que realizamos como exemplo, tífica.
elas estão entrando na minha tese aos poucos.
Desvio: Fale-nos um pouco sobre a sua formação
Desvio: E não eram para entrar antes... profissional, e como os locais onde você traba-
lhou anteriormente contribuíram para sua atua-
Izabela Pucu: Não eram para entrar porque eu ção enquanto gestora do H.O.
mesma tinha esse preconceito. E isso porque eu Izabela Pucu: São muitas as camadas que me
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tornaram apta a dirigir esse espaço. Inclusive cobrir, organizar e colocar em condição de expo-
eu estou aprendendo a fazer isso enquanto faço sição uma coleção de gravuras que o Parque Lage
junto com as pessoas que estão trabalhando aqui possuía desde os anos 1990, que estava numa
comigo, com as pessoas que colaboram conosco. mapoteca apodrecendo, sendo levada em partes
Não é uma coisa que eu sei fazer, e nem que eu pelas pessoas. Convidamos o George Kornis para
sabia que eu poderia fazer, eu fui aprendendo no fazer a curadoria da primeira exposição3, organi-
fazer, e acho que isso é o que reitera o que eu dis- zamos um leilão com as cópias das gravuras que
se na primeira resposta a você. A experiência do tínhamos lá nessa coleção, higienizamos uma
Parque Lage foi rica, muito importante para eu cópia de cada uma, emolduramos, fizemos uma
entender um pouco certos meandros dessa coi- exposição, um catálogo, colocamos no site da es-
sa da gestão, mas eu fui muito limitada também cola, ou seja, tornamos pública a existência dessa
nas minhas possibilidades de atuação, porque coleção.
o Parque Lage é um campo de forças, e eu não
era dessa comunidade do Parque Lage, eu caí lá. Também implementamos um padrão de pro-
Então, assim, tinha muitas disputas, tinha uma dução de exposições, sabe? De comunicação, de
complexidade muito grande no espaço, mas eu produção, de relação entre produção interna e
posso dizer que consegui realizar projetos impor- produção externa, mas não conseguimos fazer
tantes para aquele momento do Parque Lage, e um perfil dos projetos, porque recebíamos coisas
logo depois que a Luiza Interlenghi saiu, a Clau- demais, e eu não tinha como fazer essa curadoria
dia Saldanha entrou e me convidou para perma- do que a gente ia receber ou não, e eu não tinha
necer, e eu fiquei, ela é uma pessoa muita bacana, autonomia para isso. E as disputas internas, e
uma amiga, diretora do Paço Imperial. essa escola pública que tinha que se confrontar
com essa escola privada, que tinha sido a forma
A Claudia possuía o projeto de tornar pública a de sobrevivência da escola para mim foi muito
Escola do Parque Lage, que também era uma es- ruim. No último ano que eu estive lá foi muito
cola que vinha de um passado de abandono por pesado para mim, mas foi uma experiência fabu-
parte do poder público, e de manejo da escola pe- losa, formadora para mim.
los professores por uma Associação de Amigos,
mas que também estava muito distorcida nas Desvio: Comente um pouco sobre o cenário da
suas forças de atuação, uma certa confusão entre arte contemporânea no Brasil
o público e o privado ali, e a gestão dela foi toda
no sentido de tornar público, de trazer cursos Izabela Pucu: Os últimos 20 anos foram funda-
gratuitos, de convocar pessoas da sociedade para mentais para a constituição de um campo para a
discutir a escola. E essa parte de acompanhar a arte contemporânea, e não só um campo de cir-
implantação da escola pública foi formadora para culação e exibição, mas reflexão e outras bases, e
mim. nesse sentido a universidade tem um papel fun-
damental. No Rio de Janeiro, Carlos Zilio é uma
Agora a minha atuação. Eu fiz coisas que consi- figura chave porque tomou para si a missão, jun-
dero importante como começar o Memória Lage. to com seus companheiros, pois não fez isso sozi-
Desde que eu cheguei lá apontei para essa neces- nho, de construir um cenário. Primeiro colocan-
sidade da escola organizar a sua memória. Des- do a arte dentro da universidade para que essa
16
pudesse estar junto a outras produções de saber, cenário de pesquisa sobre arte, então era uma
pau a pau, porque a instituição universidade é ca- dupla função ali naquele momento: livrar a arte
nônica o suficiente para legitimar alguma coisa de uma leitura só pelo entretenimento, só pelo
como produção de saber. Então, no momento em consumo, de colocar ela no mesmo patamar que
que o mercado de comércio de obra de arte co- as outras produções de saber e usar o prestígio
meçou a ganhar consistência no Brasil, e fabricar da universidade para isso é um projeto político; e
coisas como a Geração 80, que foi um processo ao mesmo tempo conseguir produzir um tipo de
muito mais complexo do que a “volta à pintura”, reflexão mais substancial sobre os trabalhos de
mas ficou reduzido a isso também por uma pres- arte, os movimentos artísticos, enfim, a cultura.
são mercadológica... Não é só isso! Acredito que
tinha ali muitas teorias sobre geração. O Rober- Ali no final dos anos 1990 teve essa ação de pro-
to Pontual foi bastante execrado, por ter sido a duzir uma reflexão mais profunda sobre arte. O
pessoa que lançou essa possibilidade, mas isso Ricardo Basbaun participou, foi dessas primeiras
era uma visão particular dele. O que aconteceu é turmas da PUC, depois na UFRJ, e depois passa-
que não foi produzido um discurso tão poderoso ram a ter muitas, e hoje temos uma variedade de
quanto o dele, e muitos autores reinteraram essa cursos e é muito importante que tenhamos isso.
faceta. E ali – durante esse período – se constituíram o
MAC de Niterói e o Centro de Arte Hélio Oiticica
O Carlos Zilio quando retornou ao Brasil, no iní- que são espaços dedicados à arte contemporâ-
cio dos anos 1990, ficou muito preocupado com nea. E também tem o movimento dos coletivos,
esse mercado que crescia num campo cultural que estavam muito ligados a arte pública, inter-
muito frágil e uma crítica de arte muita pautada venção urbana. E teve Santa Teresa também, que
na experiência de vida do artista, na biografia. teve um projeto chamado Intervenções Urbanas,
Ele veio de uma formação nos Estados Unidos e ligado ao Santa Teresa de Portas Abertas, que foi
na França com consistência e uma abordagem importante para caramba para os coletivos de
mais crítica, mais conceitual da produção de arte, artistas, porque todo mundo mostrou trabalhos
e em termos de confrontar com a sociedade, com nesse projeto e conseguiu executar trabalho na
os movimentos sociais e culturais, etc. Ele imple- rua. Teve o Zona Franca, enfim, uma série de es-
mentou uma paisagem de reflexão muito mais paços de artistas aqui no Rio de Janeiro, no final
complexa para a arte que foi fundamental. En- da década de 1990 até meados dos anos 2000,
tão teve essas duas coisas, a entrada de progra- que foram fundamentais para um cenário de arte
mas de pós-graduação e graduação em artes nas contemporânea no Rio de Janeiro.
universidades além da EBA, que era um espaço
absolutamente acadêmico – no mau sentido – E tem realmente 20 anos esses espaços. É mui-
no passado, e hoje vem se transformando, mas to significativo pensar o renascimento de uma
era uma escola muito ortodoxa, neoclássica, com instituição como essa que foi marcante. Aqui
uma orientação do século XIX. Então ele criou não tinha isso, São Paulo já tinha por já ter um
dentro dessas universidades e é muito comum mercado que trazia artistas internacionais, mas
os programas de pós-graduação serem estopim não chegava aqui no Rio, era muito provinciano o
para uma dinamização dos currículos da univer- nosso meio de arte, começou a ter galeria foi ali...
sidade, como uma missão de produção, de um Porque você teve ali nos anos 1970 um boom de
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mercado, as organizações da revista Malasartes, Izabela Pucu: Não tinha o doutorado, só o mes-
a parte do Fogo, toda essa galera tinha uma visão trado.
muito crítica sobre o mercado. E sempre cito isso,
porque acho tão engaçado, em 1975 o Ronaldo Desvio: Depois que criaram...
Britto escreveu na Malasartes o texto “Análise do
Circuito” que ele fala da roda dentada do merca- Izabela Pucu: E na PUC começou como só pós-
do, só que essa roda dentada era desdentada, né? graduação em Arquitetura e Arte. Mas formou
Eu acho que a roda tem muito mais dente hoje, muita gente, cara. Muitos professores e muitos
é muito mais complexa a injunção do mercado, e artistas que tinham interesse nisso começaram a
ao mesmo tempo o nosso meio cultural, vamos atuar como professor, foram buscar uma forma-
dizer assim em termos conceituais, era muito ção mais complexa. E isso foi muito importante
menos consistente para resistir a isso. Então acho porque a arte contemporânea está muito ligada
que realmente tem 20 anos que se constituiu um aos processos de educação, de formação, porque
campo de ponta para a arte contemporânea, mais a gente pode entender a arte hoje não apenas
sofisticado de produção e reflexão. como “vai estudar para ser artista...”, mas como
uma formação, e depois o cara pode ser jornalista
Desvio: No Rio de Janeiro, né? e outra coisa, gestor, né? Mas é um processo de
formação bem complexo, bem interessante, múltiplo.
Izabela: Eu só posso falar do Rio de Janeiro para
fazer uma análise, uma conjuntura maior. Não Desvio: E o que significa uma instituição como o
era um movimento só do Rio de Janeiro, mas se H.O sobreviver por 20 anos à precariedade?
você pensar em São Paulo nos anos 1970 já tinha
na ECA-USP pelo Walter Zanini uma escola de Izabela Pucu: Eu discordo que essa instituição
artes que tinha uma orientação bem mais con- tenha sobrevivido a precariedade. Ela sucumbiu
temporânea, com a Carmela Gross... E aqui só em muitos momentos, não acho que ela passou
foi acontecer nos anos 1990. Aqui tinha o MAM, incólume, em muitos momentos era só um nome
aquela coisa que os artistas estavam ali, a Sala e um prédio caindo aos pedaços, e por isso acho
Experimental, isso foi muito importante nos anos que ela não sobreviveu não, sabe? Ela tem mo-
1970, mas não era uma coisa institucional uni- mentos muito ricos na história desses 20 anos,
versitária. E nem tinha circulação em termos de mas tem momentos que ela ficou até de portas
circuito, de artistas contemporâneos. E por isso fechadas, então não posso concordar com essa
foi tão importante o CMAHO. ideia de que ela tenha sobrevivido. O que eu pos-
so acrescentar a essa pergunta é que as institui-
Desvio: Levantando material da minha pesqui- ções brasileiras tem uma fragilidade monstruo-
sa4 eu encontrei a primeira ação da EBA... Porque sa, e que dependem muito de pessoas físicas, de
estou sinalizando o inicio da parceria da EBA com pessoas que estão em determinado momento ali,
o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica que foi e quando essas pessoas saem isso desmoronam.
em 1998, e o foi lançamento do caderno de pes- E eu acho que isso é uma fragilidade de todas
quisa do mestrado. E eu me perguntei: “por que as instituições brasileiras por ausência de po-
colocaram mestrado?”, porque não tinha o dou- líticas que garantam a continuidade das coisas,
torado... que garantam a imparcialidade das coisas, que
18
garantam o caráter público das instituições pú- movimento artístico. Podemos muito com a arte,
blicas. Porque acontece é que as instituições são mas não à priori. Precisamos negociar a cada
lugares de visibilidade e projetos de pessoas de ação um espaço de potência para a produção ar-
interesses particulares, partidários, etc etc, uma tística, e isso implica em se reinventar como ar-
distorção da ideia do que seja política. Por isso tistas, curadores, e reinventar a própria ideia de
não acho que essa instituição sobreviveu... Bom, arte, requalificar para o momento atual. Porque
podemos até dizer que sobreviveu, aos trancos e essa ideia de que só por ser arte já é político, já
barrancos, mas não viveu, eu acho que ela teve é contra cultural, não... O capitalismo é bastante
momentos de vida, e esse momento atual é um flexível e pode incorporar, e pode mudar, subver-
momento de vida dessa instituição, mas essa ins- ter a função de qualquer coisa, não tem nada que
tituição sucumbiu durante muitos momentos. E não possa ser absorvido, apropriado e utilizado
a fragilidade dos acordos também que envolve- para fins de produção de capital, mera produção
ram a sua fundação também fizeram muito mal de mercadoria. E a arte se presta a muitos mo-
a vida institucional ao Centro Municipal de Arte mentos a isso. A arte não pode nada à priori, mas
Helio Oiticica. pode tudo.
Izabela Pucu: Nada à priori. Não existe nenhu- 1 PUCU, IZABELA (Org.). Imediações: a crítica de
ma potência garantida para a arte. Há uma falsa Wilson Coutinho. Rio de Janeiro: Funarte, 2008
impressão de que só por ser arte é resistência, 2 FERREIRA, Glória. (org.) Crítica de Arte no
só por ser arte é política. E discordo disso. A arte Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janei-
é uma força instituinte da sociedade, mas como ro: Funarte, 2006.
todas as forças ela pode ser apropriada, subverti- 3 Memória Lage. Exposição Forma(ação) Gráfi-
da em nas suas finalidades. Por isso acredito que ca. http://www.eavparquelage.rj.gov.br/memo-
não há nada garantido à priori. Eu acho que a ria/exposicao/formaacao-grafica-a-experiencia-
arte pode tudo, mas outras forças também po- da-eav-parque-lage/
dem, a arte não é uma excessão dentro das forças 4 Projeto de pesquisa Linhas de Tempos: 20 anos
instituintes da sociedade. As lutas dos pobres, as do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Coor-
lutas das chamadas minorias – que são as maio- denado por Daniele Machado, com orientação de
rias em muitos casos no Brasil –, são movimen- Glaucia Villas Boas e Izabela Pucu, 2016.
tos instituintes poderosos e que às vezes têm
uma efetividade muito maior do que qualquer
19
ENTREVISTA
Desvio: Optamos por nesta primeira edição fa- do estado de invenção todo dentro de uma traje-
zer uma entrevista com a Izabela Pucu do Centro tória e um outro que é da anti arte. Praticamen-
de Arte Hélio Oiticica e com você do MAC pelo te uma estética da existência, que está ligado ao
fato de que as duas instituições fazem 20 anos e programa ambiental, posição ética.
por serem instituições que lidam com arte con-
temporânea como foco. Isso por um lado é o Oiticica como é ter uma ins-
tituição ligada ao Hélio Oiticica. O outro lado é
Guilherme Vergara: H.O e MAC 20 anos. São o MAC. O MAC tem a arquitetura de Oscar Nie-
instituições públicas, municipais e com arte con- meyer, a coleção João Sattamini, então o outro
temporânea. O desafio está nessa instância aqui lado que me instigou é um paralelo que é princi-
de governo, estado, espaço público, sociedade e palmente você ter a arquitetura circular do MAC.
aí produção artística contemporânea. Então são Que é uma arquitetura quase que abrigo, e a pró-
três pernas e aí nesse sentido... Eu já vou atuali- pria arquitetura induz uma intuição de um anti
zar o que eu chamo de uma curadoria tripartida. -museu, por que é museu voltado pra fora que
Hoje em dia eu estou chegando a esse termo de celebra o mundo.
curadoria tripartida. Na minha relação de pes-
quisador através de tese de doutorado e tudo... Então aqui você tem uma interseção. Você tem o
Meu retorno ao Brasil foi em 1996. Exatamente Helio Oiticica falando de mundo abrigo, falando
há 20 anos atrás abriram o Centro de Arte Hé- de delírio ambulatório, falando de supra senso-
lio Oiticica e o MAC e eu ganhei uma bolsa de rial e ele provocando na sua experiência cada vez
pesquisa para tratar no Rio de Janeiro o que eu mais o desfazimento dos objetos. Então como é
chamei de desafio da arte contemporânea, para que você vai abrir uma instituição ligada a Hé-
as instituições públicas. Esse foi o mote e sua di- lio Oiticica com acervo e tudo onde o próprio
ferença Centro de Arte H.O e MAC. Helio Oiticica tenciona as situações para a ques-
tão do crê lazer, sopra sensorial... Então esse es-
Voltando a essa questão H.O significa o desafio tudo vem ligado a uma retrospectiva que abriu
do Oiticica para o sentido público das interfaces o Centro de Arte Hélio Oiticica há 20 anos atrás,
entre arte e sociedade. Então Hélio Oiticica já traz com a própria trajetória do H.O até chegar nesse
em si um legado que é um legado que por um campo de uma estética existencialista, uma esté-
lado é um legado construtivista que ele vai falar tica da existência ou anti-arte como ele poderia
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chamar. Aqui eu tenho uma chegada desse disco Porque ela é uma arquitetura do conter, ela é um
voador, dessa arquitetura que é uma arquitetura vaso, um recipiente, mas ela é ativadora de co-
monumento, uma arquitetura turística, fascinan- leções, então essa é a arquitetura fundante. Por
te futurista, mas que é uma arquitetura que de- outro lado ser coleção, mas redefinir uma abor-
safia conceitos curatoriais, desafia conceitos mu- dagem sobre o conceito de coleção então eu co-
seais desafia porque ela não é apropriada para loca arte e coleção como experiência. Eu já faço
um pensamento de cubos brancos, então aqui e remeto a John Dewey, esse é um dilema onde a
inicia 20 anos que pra mim instigou os desafios arte como experiência está além de ter a coleção
pra arte contemporânea, mas também, as raízes de objetos. Eu penso curatorialmente em como
utópicas antropofágicas brasileiras. Então aqui pensar essa coleção como também coleção de ex-
você tem Oiticica e o programa ambiental, tem periências, como também onde a obra se torna
Oscar Niemeyer e a paisagem, tem as raízes bra- acontecimento. A exposição é um acontecimento
sileiras e tem uma utopia antropofágica, que ela é na arquitetura e na paisagem, então aí tem essa
antropofágica até os conceitos a priori de museu. ideia de uma paisagem sociedade. Então essa
Então nesse sentido hoje eu to elaborando essa ideia de uma paisagem sociedade é paisagem
ideia de uma curadoria tripartida, essa curadoria nós, nós somos paisagem. Então se você provo-
envolve... Vou falando e vou desenhando. Então ca essa fenomenologia de ativar em programas
o que é essa curadoria? O MAC ser pensado por curatoriais programas de vivências essa relação
arquitetura, ele é arquitetura, você não pode ig- de pertencimento de extensão fenomenológica
norar a arquitetura que é curadoria, como você torna o mundo exatamente uma forma de unir
coloca essa arquitetura organicamente como pelas experiências um sentido novo de educação.
uma luva para as experiências artísticas. Outra Uma filosofia da educação. São esses aí os três
coisa que a gente tem é a coleção e aí eu entendo princípios que eu estou trabalhando dentro dos
coleção, e aí eu chamo arte e coleção como ex- desafios de dar sentido pra esse museu.
periência. E aí pelo terceiro viés, terceira perna
desse tripé que tem presente no MAC: paisagem. Desvio: Gostaríamos que você comentasse como
a sua formação no exterior de alguma forma
Porque se a paisagem inspirou a arquitetura, a pai- pode ter contribuído pra sua atuação inicial no
sagem ela é exatamente o mundo-paisagem-mundo, MAC, quais foram os meios que você encontrou
Como a gente cria uma unidade ai a banda de de conseguir trabalhar nesse espaço e desenvol-
meio de uma unidade tripartida? Como você cria ver essas idéias.
esses eixos, completamente indissociáveis um do
outro? Pensar uma curadoria, uma perspectiva Guilherme Vergara: Realmente a minha forma-
cultural em que a arquitetura seja parte do mun- ção no exterior contribuiu de uma forma muito
do, uma arquitetura abrigo e essa arquitetura importante porque eu trabalhei 5 anos em Nova
abrigo é um abrigo poético. Porque ela é total- York com educação, numa residência de artistas
mente um delírio ela é completamente futurísti- trabalhando em educação no Metropolitan. Essa
ca arquétipo, simbólica espiritual. Ela é universal, experiência criou uma complexidade de visão de
essa é uma arquitetura de uma complexidade fun- mundo muito importante pra mim. O Metropo-
dante do MAC, complexidade do museu. litan, um museu clássico, enciclopédico. É um
museu que tem arte africana, arte chinesa eu-
21
ropéia do século... Digamos pintura européia do no, arte africana e as relações entre cristianismo
século XIV, até o século XIX, XX. Você tem várias e outras espiritualidades de arte. Isso eu fazia nos
culturas representadas e expostas no Metropoli- outreach program... Posso dizer que nessas rela-
tan, é um museu completamente enciclopédico ções dentro dos outreach extra muro, de pensar
clássico. Ao mesmo tempo eu tive um privilégio uma ativação do papel artístico, de ser um co-
de trabalhar com uma equipe fascinante. Então nector, um ativador, um mediador, essa foi uma
de 1991 a 1996 eu estava em Nova York fazen- escola! Essa foi uma escola muito forte e própria
do mestrado em artes e ações ambientais. Olha o da cidade de Nova York, quando você conhece o
nome! Arte e ações ambientais. Era um mestra- avesso de uma cidade. Hoje em dia (NY) até pode
do que estava desenvolvendo ações, intermídias ser turístico, mas naquela época você conhecer
e tudo. Então eu fui ao mestrado como artista. Nova York, não só pelo Central Park, não só pelo
Ao mesmo tempo nessa mesma época em NYU MoMA, era outra coisa. Vários imigrantes latinos
eu comecei no estágio no Metropolitan. Então eu e africanos e eu me misturei graças a ser brasilei-
tinha dois mundos cruzados, o mundo de uma ro e falar portunhol, ganhei bolsa da universida-
academia, o mundo do estúdio e da crítica artís- de, então isso me deu um poder, possibilidades.
tica. O curso na NYU era bastante forte em arte Isso me deu o passaporte para voltar para o Bra-
e crítica. Então eu tinha muito uma dimensão de sil e ser chamado primeiramente pra trabalhar
arte conceitual pela escola de Nova York e tinha com educação e também consegui uma bolsa pra
a cidade de Nova York. Então tinha o Metropo- trabalhar no Centro de Arte Hélio Oiticica. Minha
litan um museu enciclopédico que pra mim foi pesquisa é exatamente o desafio da arte contem-
ótimo, uma ótima escola. Eu tinha uma bolsa porânea nos museus no Brasil. Eu fiz contato no
residência onde o que fiz que chamavam de ou- Brasil em 1996 em que o entendimento do sen-
treach program. Nesse outreach program eu fui tido público nos museus ainda era muito precá-
ao Bronxs, Brooklin, em várias esferas de hos- rio e ainda hoje é muito precário. Essa é a minha
pitais, presídios, ONGs. Então essa experiência provocação que me traz pro MAC.
de uma residência artística trabalhando nessa
esfera proporcionou conhecer um lado avesso Desvio: Aproveitando esse gancho, gostaríamos
de Nova York, mas também o outro lado de uma que você comentasse sobre o educativo que se
ação artística que eu também não conhecia. Eu tem hoje aqui no MAC e essa questão do público
recebi uma bolsa para residência, uma bolsa de e da arte contemporânea, a recepção.
estagio e comecei também, quando eu recebi
essa bolsa lá, um programa no Metropolitan cha- Guilherme Vergara: De 1996 para cá, a minha
mado Transcultural Trip. Eu organizava visitas bolsa foi temporária lá no Centro de Arte Hélio
para brasileiros morando em Nova York dentro Oiticica e aqui no MAC eu fui continuando. Meu
do Metropolitan, foi quando me surgiu a ideia de doutorado é em cima do MAC, a formação de vá-
curadorias educativas. Imagina que eu tenho um rias pessoas como Bia Jabour, várias pessoas que
acervo de exposições do Metropolitan e hoje eu hoje estão no campo. E esse é um campo híbrido
vou levar vocês pra arte chinesa, depois eu quero que é ser curador, ser educador e ser artista, é
ver um pouco de relações com a pintura de Van um entendimento que você mergulha como com-
Gogh, ou Japão, ou então ver arte religiosa do sé- partilhar processos artísticos, como abrir a caixa,
culo XVII e vou comparar com um busto africa- desmistificar essa aura da arte contemporânea,
22
mas como um processo colaborativo. Hoje em essa proposta de ser voltada pra questões da arte
dia eu vejo que o Brasil avançou muito mais pela contemporânea.
academia, pelos novos cursos, pelas novas gera-
ções que estão vivenciando mais isso. Foi muito Guilherme Vergara: O próprio mestrado Estu-
dos Contemporâneos do Instituto de Arte vem se
difícil no inicio e as dificuldades. A dificuldade é
exatamente essa insustentabilidade, não há nada atualizando, então todas as instituições de arte,
sustentável, você começa um trabalho e os recur- todos os tecidos culturais então sendo pressio-
sos, os programas, as bolsas nada se sustenta. nado e ao mesmo tempo se você não abre um
Então você não consegue formar laços e vínculos exercício de excelência você regride. Você fica es-
em profissionais que venham da universidade e tagnado as instituições tendem a ficar burocrati-
que também estejam no campo híbrido. Eu es- zadas e carentes e os funcionários dessas institui-
tava em Nova York, eu estava no Metropolitan. ções passam a ser quase que desrespeitados pela
Eu tinha bolsa da universidade, eu tinha bolsa própria condição de estar na instituição. Então
do Metropolitan. Os entrelaçamentos. Como eu quanto mais o campo acadêmico vai se atiçando
que posso... vocês que estão interessados tenham criticamente... O território do tecido público das
essa possibilidade de estagiar aqui e ficar aqui instituições não está acompanhando isso, não
dois anos e meio e sair daqui contaminados por está lidando com outro lado da disfuncionalidade
um experiência que refaz conceitos... Então você que é vocês que estão amadurecendo, lendo mui-
é um gerador de conceitos. Hoje eu vejo que a to, estudando muito, lendo traduções de textos
dificuldade de anos é que não há uma noção de internacionais, enfim... E as instituições estão em
progresso. 20 anos depois estamos com os mes- outra velocidade. Sem salários. Entendeu? Então
mos problemas, sem dinheiro, talvez ainda ame- esse é a grande dificuldade. Dentro da academia
açados por um retrocesso gravíssimo. Então Bra- também. Eu vejo um investimento extremamen-
sil é uma loucura. Não tem mais um fio. Como a te necessário dentro das universidades em que a
obra do Carlos Zílio, De zero a zero. Eu acho isso curadoria, as interfaces, as experimentações por
simbólico. um lado nos espaços de criação, da criação ar-
tística experimental; E, por outro lado que essa
O educativo hoje está fragilizado. A gente teve criação experimental seja feita reconhecendo a
um ano e meio interrompido, fechando o museu. interface os públicos diversificados se você é um
Fragilizou mais ainda os laços com os profissio- artista experimental, expor dentro de um cubo
nais que foram embora, mas no mestrado estou branco uma galeria fechada ou só vai ao público
formando um grupo de pesquisa. Esse museu é que é da arte é uma coisa. Esse museu é outra e
uma máquina, ele não para de atrair gente. Ele foi torna forte um trabalho.
reinaugurado, mas as relações de cuidado com as
interlocuções, com a produção de significações, Desvio: Gostaríamos que você comentasse tam-
com a produção de subjetividades precisam de bém sobre essa pesquisa que você tem na UFF e
profissionais cuidadosos. o que é possível entre UFF e MAC.
Desvio: Aproveitando que você falou da questão Guilherme Vergara: Isso seria pra mim nos últi-
do mestrado gostaríamos que você comentasse mos 20 anos um dos pontos da minha avaliação,
sobre a pós-graduação de artes da UFF que tem pontos de fragilidade. Eu acho que esse museu
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tem muito mais potência, muito mais potencia- de nossa infelizmente ainda ela é muito européia.
lidade do que eu pude alcançar, até por causa Modelo europeu que você é acadêmico você está
das flutuações, falta de recursos. Eu estava em protegido você vai publicar, pôr no lattes, e a dis-
uma reunião agora pra tratar com o pessoal da cussão fica sempre entre si. Então se a gente está
geociência sobre questões ambientais que a UFF discutindo o museu é o mundo, a gente também
pesquisa sobre arte e sustentabilidade. Isso é a tem que chegar a universidade é o mundo. O pro-
expansão dessa fronteira entre arte e outros pes- jeto de extensão que eu tenho é esse, museu la-
quisadores, não vou nem falar de ciência ou de boratório sem parede. Os programas de extensão
saberes. Isso é universidade. É um lugar que deve das universidades são desvalorizados, você tem
provar esse valoramento de conexões. Digo isso, que ser pesquisador. Esses campos ainda são rea-
vejo essa possibilidade e vejo o quanto ainda tem cionários nesse modelo, quase que desistência do
infinitamente de trabalho. mundo. Mas é uma desistência protegida, você
está em uma universidade. Esses são os pontos
20 anos é zero a zero. Eu vejo essa história do cruciais. 20 anos melhoraram a universidade. A
tempo o que a gente sedimentou de conquista universidade que também está na sua crise, mas
não, o que eu acho que tem de mais conquista que o museu possibilita pensar maiores aproxi-
nesse território é a universidade graças ao Lula, mações.
graças ao Reuni, graças a novos concursos novos
professores. E aí hoje eu vejo um descompasso
porque o tecido cultural se tornou cada vez mais
dentro de uma armadilha neoliberal. Entendeu?
As instituições todas subservientes é muito di-
fícil. As instituições precisam ser habitadas por
pensadores. Um pensador que ele tem o campo
de atuação dele é pensar com o comum, pensar
no laboratório das interfaces isso e a universida-
24
CADERNO ESPECIAL
Descomemoração dos 44
anos do assassinato de
Ana Maria Nacinovic
25
O Coletivo de Mulheres Ana Maria Nacinovic nas- As falas na integra podem ser conferidas no ca-
ceu a partir da demanda das mulheres da Escola derno a seguir.
de Belas Artes/UFRJ, diante de uma sociedade
machista e patriarcal. Para combater esse modelo Gabriela Lúcio, graduanda em Conservação e
de sociedade, nossa única opção é lutar. Restauração da EBA/UFRJ e militante do Mo-
vimento de Mulheres Olga Benário:
No dia 14 de junho de 2016 ás 10h no Auditório
Paulo Santos da Faculdade de Arquitetura e Ur- Vamos começar com uma breve apresentação da
banismo (Prédio da Reitoria/Cidade Universitá- Ana Maria Nacinovic. Ela nasceu em 25 de março
ria), aconteceu a primeira atividade do CMAMN: de 1947 no Rio de Janeiro, filha de Mário Henri-
a Descomemoração dos 44 anos do assassinato de que Nacinovic e Anadyr de Carvalho Nacinovic.
Ana Maria Nacinovic, estudante da EBA, covar- Foi morta em 14 de junho de 1972, aos 25 anos.
demente assassinada durante a ditadura militar. Ana era militante da Ação Libertadora Nacional
(ALN). Fez o primário, o ginásio e o científico no Co-
A fala inicial foi proferida por Gabriela Lúcio, gra- légio São Paulo em Ipanema, no Rio de Janeiro (RJ).
duanda em Conservação e Restauração da EBA/
UFRJ e militante do Movimento de Mulheres Olga Estudava piano e tinha entusiasmo pelas artes.
Benário, com o tema Ana Maria Nacinovic e a Terminou o científico (atual ensino médio) com
atuação de mulheres na luta armada. Em segui- 17 anos, e sua inclinação para a matemática le-
da, Ana Bursztyn-Miranda do Coletivo Memória, vou-a a freqüentar um curso pré-vestibular com
Justiça e Verdade apresentou sua pesquisa sobre as o objetivo de tornar-se engenheira. Casou-se e
Heranças da ditadura: a atual conjuntura política e adotou o sobrenome Corrêa, porém, seu marido
os principais desafios para resgatar essa história. era militar e fascista, e o casamento não durou.
Em respeito à memória de Ana, não usaremos o
Daniele Machado, graduanda em História da Arte sobrenome Corrêa, apenas Ana Maria Nacinovic.
da EBA/UFRJ, militante da Ação Popular Socia- O casamento malsucedido a fez interromper os
lista/RJ e coordenadora de Pesquisa e Público do estudos. Aos 21 anos, ingressou na Faculdade de
Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica apresen- Belas Artes.
tou sua pesquisa intitulada Anna Bella Geiger e
Niomar Moniz Sodré: as artes visuais e a ditadu- Ligou-se à ALN no Rio de Janeiro e, em seguida,
ra militar e o encerramento ficou por conta de foi para São Paulo como integrante do Comando
por Nadine Borges, que é coordenadora de Rela- Regional da organização. Foi a única sobreviven-
ções Externas da UFRJ e ex-Presidenta da Comis- te quando houve a emboscada, arquitetada pelo
são da Verdade - RJ, falando sobre o trabalho na DOI-CODI/SP contra militantes da ALN em se-
Comissão da Verdade, 44 anos depois. tembro de 1971.
26
Sobre seu falecimento, sabemos, através do contra uma mulher, demostra um ato de pura
Dossiê da Comissão da Verdade de São Paulo – misoginia.
Rubens Paiva1, que, enquanto Ana Maria, Iuri,
Marcos Nonato e Antônio Carlos Bicalho Lana al- A população, revoltada com tamanha violência e
moçavam no Restaurante Varella, o proprietário selvageria, esboçou, dias depois, uma reação de
do estabelecimento, Manoel Henrique de Olivei- protesto, tentando elaborar um abaixo-assinado
ra, telefonou para o DOI-CODI/SP, avisando da que seria encaminhado ao Governador do Estado.
presença de algumas pessoas que tinham suas Mas, devido ao clima de terror existente no País
fotos afixadas em cartazes de “Procurados”, pro- naquela época, somado ao pânico de que aquelas
duzidos na época pelos órgãos de segurança. cenas de verdadeiro horror pudessem se repetir
com eles, a iniciativa foi posta de lado. Também
Os agentes do DOI-CODI, assim que se certifi- as ameaças feitas pelos policiais, na hora do cri-
caram da presença dos quatro, montaram uma me, intimidaram os populares.
emboscada em torno do restaurante, mobilizan-
do um grande contingente de policiais. Queremos aqui, que essas ações repressoras, fas-
cistas e violentas não sejam esquecidas, para que
De imediato, foram fuzilados Iúri e Marcos No- nunca mais aconteçam, por isso, Ana Maria Na-
nato. Ana Maria, ainda vivia, quando um policial, cinovic presente, agora e sempre.
ouvindo seus gritos de protesto e de dor, impo-
tente perante a morte iminente, aproximou-se
NOTAS
desferindo-lhe uma rajada de fuzil FAL, à queima
-roupa, estraçalhando-lhe o corpo. Ato contínuo,
1 Dossiê da Comissão da verdade de São Paulo –
os policiais fizeram uma demonstração de selva-
Rubens Paiva: http://verdadeaberta.org/mortos-
geria para a população que se aglomerou em vol-
desaparecidos/ana-maria-nacinovic-correa
ta daquela já horrenda cena. Dois ou três policiais
agarravam o corpo de Ana Maria e o jogavam de
um lado para o outro, às vezes lançando-o para
o alto e deixando-o cair abruptamente no chão.
Descobriram-lhe também o corpo ensagüentado,
lançando impropérios e demonstrando o júbilo
na covardia de tê-la abatido. Não satisfeitos, des-
fechavam-lhe ainda coronhadas com seus fuzis,
como se mesmo morta Ana Maria representasse
ainda algum perigo. Tal cena repetiu-se com o
corpo de Iúri e Marcos Nonato, sendo entretanto
Ana Maria o alvo preferido.
27
Falar de Ana Maria para mim é muito emocionan- rava, primeiro no Posto 6, por isso ela estudou no
te, inclusive porque quando soube de sua morte Colégio São Paulo, e depois no Leme; nós fomos
eu estava presa em São Paulo, em um hospital. mesmo muito amigas. E bom, vida que segue,
Fui presa pela quarta vez em julho de 70, e estava eu estava entrando na ALN – Ação Libertadora
sendo submetida à segunda cirurgia como con- Nacional, organização de resistência contra a
sequência das torturas em junho de 72, depois de ditadura, conversávamos muito sobre política e
uma greve de fome que nós tínhamos realizado sobre a vida, ela veio também pra a ALN. Tinha
no Presídio Tiradentes, em São Paulo, porque es- tido pouca militância no movimento estudantil,
tavam retirando os meninos presos e levando-os pois estava entrando para a atuação política ha-
não sabíamos para onde. Dia seguinte à cirurgia via talvez um ano; mas eram tempos sombrios,
me sentei na cama, levantei devagar, andei dois com a decretação do AI-5 em dezembro de 68, e
passos e vi um médico numa mesa lendo jornal, Ana Maria era uma pessoa muito determinada, o
cuja manchete era o assassinato da Ana Maria, e que ela decidia, ela levava em frente.
aí não deu para continuar de pé, desmaiei.
Depois, quando invadiram a casa de meus pais e
Ana Maria era uma figura forte e doce ao mesmo sequestraram minha mãe, meu irmão e minha
tempo. Logo que a conheci (era uma jovem mu- irmã de 14 anos (exatamente no dia em que fiz 21
lher muito bonita, loira, de olhos verdes, verdes anos), fui obrigada a ficar totalmente clandesti-
belíssimos), ela pintava os olhos com delineador na e me mudei para São Paulo. Passaram-se uns
preto, o que para mim era meio estranho. Ela seis meses e qual não foi minha surpresa, quando
estava vindo de outra história de vida, casou-se eu estava escondida e saí um dia para ver uma
muito cedo, em 65, com um marido que, depois, papelada - e um companheiro com quem me en-
ajudou a persegui-la. Seu sogro chegou a gene- contrei me levou até Ana Maria! Isso foi no dia
ral, Antônio Jorge Correa. Tinha sido um casa- em que eu fui presa, poucas horas antes, em 14
mento ruim, péssimo, ele era muito ciumento e de julho de 1970. Nesse dia eu saí de manhã de
algo violento. Ela se separou logo. Aos poucos foi uma casa, encontrei com o companheiro que me
deixando esse hábito de pintar muito os olhos o falou “Olha quem está aqui! ”. Chamava ela de
que, para mim, os deixava ainda mais em evidên- Bete, porque o nome de guerra dela era Bete para
cia. Era uma pessoa de uma sensibilidade muito mim, e a gente conversou, mas não conseguimos
grande, tocava muito bem piano. Conheci sua bater papo por horas como queríamos, pois eu
mãe Anadir e sua avó, com quem Ana Maria mo- tinha que encontrar no centro da cidade uma
28
pessoa para resolver uma papelada, mas nós não Também aproveitamos para ver uma exposição
queríamos nos desgrudar. Estávamos há muito sobre Picasso no Instituto Tomie Ohtake, se vo-
tempo sem nos vermos, éramos amigas antes, ela cês puderem não deixem de ir. Peguei essa ‘deixa’
também estava em uma São Paulo desconhecida, de lá: ‘A arte não foi feita para decorar aparta-
os tempos eram muito violentos, nós éramos ca- mentos. Ela pode ser uma arma de ataque e de-
çados, perseguidos, e não dava mais tempo, eu ti- fesa contra o inimigo’. Claro, Picasso está falan-
nha que ir a um lugar no centro da cidade. Então do sobre o quadro ‘Guernica’, que é um quadro
marcamos de nos reencontrar à tarde de novo. E hoje mundialmente conhecido sobre o impacto
aí eu cheguei no local do centro da cidade atrasa- da guerra em 1937 em uma cidadezinha basca,
da, e tive que ficar rodando e esperando por mais o bombardeiro sofrido por aviões alemães em
uma hora. Foi nesse meio tempo que fui detida e apoio ao ditador Franco.
sequestrada.
SLIDE 1:
Ela está presente aqui simbolicamente, mas te-
nho certeza que ela estaria aqui conosco. Eu não
pude mais vê-la, foi à última vez que a vi, foi no
dia em que fui presa. Era uma figura muito boni-
ta, por fora e por dentro.
29
Em relação à nossa última ditadura – não esque- em 1979, que a gente dava apoio. Ali está uma fai-
cendo que tivemos pelo menos duas e várias ten- xa enorme escrita: “Povo exige anistia irrestrita”.
tativas de golpe anteriores – gostaria de indicar
um livro importante do Edson Teles e Vladimir SLIDE 3:
Safatle, que se chama “O que resta da ditadura”.
Logo no prefácio eles escreveram: “A ditadura
militar brasileira encontrou uma maneira in-
sidiosa de se manter, de permanecer em nossa
estrutura jurídica, nas práticas políticas, na vio-
lência cotidiana, em nossos traumas sociais (..) o
livro trata do passado de violência e da sua incrí-
vel capacidade de não passar, procurando refletir
sobre como certos hábitos e práticas autoritárias
foram assimilados através de uma reconciliação
extorquida. Minimiza-se o legado autoritário da
ditadura, a exceção brasileira indica as circuns-
tâncias que permitiram certa continuidade da Nós, tanto fora como dentro da cadeia, lutávamos
ditadura brasileira. O fato é que a ditadura não por anistia ampla, geral e irrestrita para todos os
está somente lá onde o imaginário da memória presos políticos. O que foi ‘acordado e concedi-
coletiva parece tê-la colocado. Mais ainda: sua do’ foi uma anistia restrita. Nem todos os nossos
permanência não é mais simples presentificação companheiros saíram, teve gente que ainda ficou
daquilo que já foi, do passado de repressão, mas em condicional, alguns continuaram presos. É
reaparece hoje nas práticas institucionais (...). verdade que tivemos alguns ganhos, como o caso
Há artigos sobre os múltiplos aspectos do lega- dos banidos e exilados, que puderam voltar. Mui-
do político da ditadura no Brasil, assim como as tos foram interrogados, mas puderam voltar ao
tentativas de deslegitimar o direito à violência Brasil e foi relevante. Mas a única categoria para
contra um Estado ditatorial ilegal. ‘Analisa-se a qual essa anistia foi irrestrita foi para os tortura-
perenidade institucional e jurídica dos aparatos dores. E isso mediante uma metáfora que foi usa-
econômicos e securitários; a aberração brasileira da, pois não está escrito em lugar nenhum, nem
em relação ao direito internacional sobre crimes na lei da anistia, de que eles ‘estariam’ anistiados.
contra a humanidade; o trauma social resultan- Eles escreveram de uma forma que a Lei pudesse
te da anulação do direito à memória; a herança ser interpretada a seu favor. Ainda tinham muita
política e as tentativas de deslegitimar o direito força, era 1979. Ainda havia atentados a bomba,
à violência contra um Estado ditatorial ilegal. prisões, mortes... O triste é que o STF em 2010
Completam o quadro avaliações históricas sobre confirmou que a anistia foi para os torturadores
a maneira como as Forças Armadas relaciona- também, por 7 votos a 2. A mais alta Corte do
ram-se com a anistia e reflexões sobre a literatu- Brasil anistiou os torturadores, os assassinatos,
ra diante do dever de memória”. as ocultações de cadáveres. Claro que isso tem
tido e continuará tendo consequências...
Aquela foi a greve de fome dos meninos (os pre-
sos políticos) da Frei Caneca, no Rio de Janeiro, Outras formas de legado: a política do esque-
30
cimento que foi imposta, e aí entra o papel da ros públicos em locais bem visíveis, que lutamos
grande mídia que foi crucial. E quando falo em para mudar, como a Ponte Presidente Costa e Sil-
metáforas, dou como exemplo o fato de a mídia va, que muita gente chama de Ponte Rio-Niterói.
ter chamado a ditadura, por muitos anos, déca- Acho que deviam colocar pelo menos Ponte Di-
das, de ‘regime autoritário’. Eles também conse- tador Costa e Silva, para ao menos se aproximar
guiram até hoje ocultar documentos. Nós tempos da verdade.
muitos documentos abertos desde a década de
80, quando tivemos governos estaduais progres- SLIDE 5:
sistas como o de Brizola, o do Arraes e outros,
que abriram seus arquivos estaduais. Temos vá-
rios arquivos abertos. Mas os principais, os dos
Centros de Informação da Marinha, do Exército
e da Aeronáutica, esses as Forças Armadas dizem
que perderam, que queimaram, que não viram,
que não existem. Esses continuam fechados.
SLIDE 4:
31
SLIDE 8:
SLIDE 7:
E diversos relatórios foram gerados, importantes
recomendações não estão sendo implementadas,
32
Bom dia a todas e todos presentes, hoje eu vou duas mulheres que participaram desse momen-
falar sobre duas mulheres que atuaram nas ar- to, no caso a Anna Bella Geiger e a Pietrina Chec-
tes visuais no período da ditadura, a Anna Bella cacci, e tinha também a Anna Maria Maiolino,
Geiger e a Niomar Moniz Sodré. Eu venho pes- que estava envolvida com isso. E aí eu já tinha
quisando o período da ditadura militar de 1964 três mulheres. Então eu disse, bom, não são só
há algum tempo a partir de alguns projetos e, es- homens, vamos achar essas mulheres. Tem-se
pecialmente a partir da iniciação científica sobre esse hábito, nós estudamos muito pouco as mu-
os discursos das artes visuais brasileiras na dita- lheres aqui na EBA, o que é muito esquisito por-
dura, sob orientação do Prof. Dr. Felipe Scovino. que não existem só homens pesquisando e exis-
Quando eu comecei a me dedicar a compreender tem muitas mulheres maravilhosas para serem
essa conjuntura de muitos anos de ditadura e a estudadas, então, o que é que está acontecendo?
ação das pessoas, dos artistas, dos articuladores, Elas não são citadas nas bibliografias, elas não
dos produtores culturais, dos museus e das expo- são lidas em sala de aula, elas não são debatidas,
sições surgiam nomes como o de Mario Pedrosa, então eu acho que é um esforço necessário que
Helio Oiticica, Rubens Gerchman, Claudio Tozzi, a gente faz de colocar isso em pauta, porque na
Glauco Rodrigues, Carlos Zilio, e outros, sendo verdade não é que não existam mulheres, é que
sempre homens e mais homens. E aí eu me per- elas não são colocadas e a gente só lembra dos
guntei: onde estão as mulheres? homens.
Paralelo a isso eu havia participado da equipe da E aí eu escolhi a Anna Bella Geiger e a Niomar,
exposição Bandeiras na Praça Tiradentes como para eu poder falar sobre duas atuações diferen-
Assistente de Curadoria da Izabela Pucu. A ideia tes nas artes visuais. A Anna Bella que é artista, e
dessa exposição era resgatar o contexto que en- teve uma atuação mais “reclusa”, menos “pública”
volvia a produção da bandeira Seja marginal, seja e a Niomar que foi a mulher que esteve à frente
herói de Helio Oiticica: uma ocupação realizada do Museu de Arte Moderna e do jornal Correio
na Praça General Osório em 1968. Se tratou de da Manhã em algum momento a partir de 1963,
um happening realizado na praça por muitos ar- e que teve uma vida mais “pública” digamos mui-
tistas que penduraram ou balançavam suas ban- to entre aspas. Então eu decidi comparar essas
deiras, ao som da Bandinha do Jaguar, que hoje trajetórias do ponto de vista do feminismo que
é a Banda de Ipanema. Tudo isso meses antes de acredita que o nosso cotidiano particular é muito
ser assinado o Ato Institucional Nº 5 que legiti- público. As nossas lutas diárias dentro dos lares,
mou e organizou a censura pelo país. das mulheres que são mães, que são casadas com
homens, as lutas a que nos dedicamos e são vi-
E, por ocasião dessa pesquisa, eu conheci logo vidas no íntimo são totalmente públicas porque
33
são muitas mulheres vivendo a mesma situação. Por essa gestão que a Niomar realizou ela foi ho-
Então a mulher “pública” com a sua atuação pro- menageada no mundo inteiro, com o reconhe-
fissional que foi a Niomar, teve uma situação tãocimento da atuação dela dentro do MAM. Então
pública tanto quanto foi a da Anna Bella. nessa atuação ela objetivou que o MAM tinha que
ter uma sede, lutou por isso, conseguiu arrecadar
Então esse aí é o MAM, sem o jardim do Burle os fundos, mobilizou as pessoas para que fizes-
Marx ter crescido ainda. O MAM foi uma criação sem as doações para que a sede acontecesse. E ela
muito referenciada a Niomar, mas na verdade só será finalizada bem depois desse desejo inicial,
nos primeiros anos ele teve como seu direciona- mas finalmente aconteceu como vocês podem
dor, digamos assim, o Raymundo Castro Maya. ver nesse cartão-postal.
A Niomar participa desse processo mais ativa-
mente quando em 1951, ela se torna Diretora Então em 1951 ela assume a Direção Executiva
Executiva do MAM, que segue com uma postura do MAM e ela era casada com o Paulo Bitten-
muito diferente da realizada até então. Enquanto court que era o proprietário do jornal Correio
que para Castro Maya o museu deveria ter uma da Manhã. Em 1963 o Paulo falece e ela assume
missão civilizatória, para Niomar a sua vocação a direção do Correio da Manhã, sendo também
era educacional, pedagógica como bem anali- a proprietária, e em 1964 estoura a ditadura. E
se Sabrina Parracho na sua tese Construindo a ela assume uma posição de oposição ao governo
memória do futuro: uma análise da fundação do golpista, e por conta disso ela acaba sendo presa
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Fo- em 1969. Então desde o início da ditadura o Cor-
ram instaladas as aulas de arte para pessoas que reio da Manhã publica uma série de editoriais.
não desejavam ser artistas, cursos livres mesmo Teve uma bomba que explodiu na sede do jornal
para pessoas comuns. Uma alternativa ao ensino em 1968, que também foi invadida por militares
acadêmico da Escola Nacional de Belas Artes. O várias vezes, teve editoriais que nem chegaram a
museu passou inclusive a realizar exposições de sair na rua porque foram censurados antes, teve
crianças, estando um pouco mais próximo da so- dias de “castigo” sem poder publicar o jornal por
ciedade. determinação dos militares. E, não se sabe muito
bem, parece que eles estavam fazendo um gran-
de caderno explicando tudo que estava aconte-
cendo, escrachando toda a tortura, todo o hor-
ror que estava acontecendo, quando a Niomar
foi presa em janeiro de 1969, junto com outros
dois diretores do jornal. Uma das suas acusações
foram algumas palestras que havia dado para es-
tudantes de jornalismo, incentivando-os a lutar
contra a censura que havia sido assumida insti-
tucionalmente com o AI-5.
34
referência. Teve em 1965 a Opinião 65 quando Então foi um evento que obviamente os milita-
Hélio Oiticica apresentou o Parangolé que era res não deixariam barato, mas não se estava es-
vestido pelos amigos do Hélio e passistas da perando que fizessem isso. Já havia acontecido
Mangueira, ao som da bateria, e foram todos várias exposições pelo Brasil que tinham sido
barrados de entrar no museu. Depois em 1966 censuradas, por exemplo a Bienal da Bahia que
teve a Opinião 66, em 1967 teve a Nova Objetivi- os militares invadiram e pegaram várias obras e
dade Brasileira, muito associada ao movimento sumiram com elas, em algumas botaram fogo e a
Tropicália, com a própria obra do Hélio que tinha Bienal só abriu dias depois, entre várias bienais e
na exposição, a Tropicália. E em 1969, em janeiro exposições. E quando chega a Pré-Bienal de Paris,
acontece a prisão da Niomar, ela fica dois meses os militares invadem, só que os funcionários já
presa, e em maio acontece a Pré-Bienal de Paris. estavam bem alertados pela Niomar e eles con-
seguem esconder algumas obras, entre elas a do
Depois da Bienal de Veneza, a Bienal de São Pau- Antonio Manuel e a Niomar esconde na sede do
lo se tornou o evento mais importante da arte Correio da Manhã e fala para ele buscar. E con-
naquele momento e ocorria também a Bienal de versa com ele, avisando que ele está sendo pro-
Paris, que era uma bienal para jovens de até 35 curado e a partir de agora ele precisa se esconder
anos. Então no Brasil tinha que ser feita uma ex- e ela oferece que ele se esconda na casa dela por
posição para apresentar as obras que iriam ser um tempo, e a obra ficou guardada.
expostas em Paris. Dentre os artistas que foram
selecionados estava o Antonio Manuel e o Evan-
dro Teixeira. Essa obra do Antonio, clássica da-
quele momento, muita gente já deve ter visto,
Repressão outra vez – eis o saldo. São telas co-
bertas, e é necessário puxar uma cordinha para
revelar o que há por baixo desse pano preto. E
o Evandro com essas fotografias incríveis, teve
recentemente a exposição dele no MAR, e foto-
grafou diversos eventos de manifestação popular
e a perseguição dos militares a esses momentos
e essas fotografias que justamente foram selecio-
nadas para a Pré-Bienal de Paris.
35
Então ela foi presa em janeiro de 1969, dois me- uma presença muito mais atuante na sociedade
ses depois ela foi solta, e foi uma grande mobili- naquele período do que tem agora. Esse boicote
zação no mundo para que ela voltasse a liberdade foi uma forma também de mobilizar e denunciar
e ela era conhecida internacionalmente pela sua tudo que estava acontecendo no país, todos os
atuação no MAM. Com essa mobilização estran- desaparecimentos e assassinatos, a própria pri-
geira ela se torna uma pessoa menos ainda grata são da Niomar, por isso, foi muito importante.
pelos militares no país, e se torna cada vez mais
difícil esconder a real situação do Brasil, as coisas
não iam tão bem quanto se tentava parecer.
36
especialmente trata de uma abordagem sobre o verdade brasileiro e ela fazia um deboche. Ela
indivíduo diante desse golpe civil-militar. Havia pegava os símbolos nacionais, e ela destruía. Ela
uma questão de agressão a sociedade como um destruía a bandeira, transformando-a em carim-
todo, ao país, mas se tratava também de uma bos, ela pegou o caderno de caligrafia em que as
questão individual quando cada corpo era se- crianças deviam ficar repetindo a bandeira e des-
questrado e sofriam tortura e, em boa parte dos fez a bandeira também, colocando os militares
casos, assassinado em seguida. na capa com as “cores brasileiras”. E ela faz essa
série que é muito interessante porque ela coloca
E aí eu também trouxe algumas obras que são que como ela era estrangeira, os pais dela conse-
representativas da questão que ela trouxe, que guiram escapar um pouco antes do início da se-
foi a negação de uma determinada instituciona- gunda guerra vindo para o Brasil, ela se sentia na
lidade, que foi a mesma proposta dos artistas no mesma posição como estrangeira, nessa postura
boicote a Bienal. A Bienal era um evento institu- nacionalista da ditadura. Ela se sentia tão estran-
cional do país, e se o país estava sendo governa- geira quanto o indígena. Então ela faz uma série
do por militares, então a Bienal era uma Bienal de comparações dela, como mulher estrangeira
golpista. O que mais ou menos está acontecendo num país que estava sob governo que evidencia-
nesse momento no país, obviamente não se trata va o tempo inteiro o nacionalismo, com as mu-
da mesma situação, mas dentro de um governo lheres indígenas, que foram também excluídas
ilegítimo, que tirou a presidenta sem um moti- e absolutamente perseguidas e mortas durante
vo real, o ministério da cultura no momento é esse período da ditadura, pelos militares.
um ministério golpista. Então essa obra da Anna
Bella foi apresentada na exposição da qual eu fa- E, para concluir a fala sobre a Anna Bella, ela foi
lei, na Bandeira na Praça Tiradentes, que se cha- esposa do Pedro Geiger, que era cientista políti-
ma Bandeiras Expandidas (1968 – 2014). co e geógrafo, e o Pedro foi preso duas vezes. Na
primeira vez que ele foi preso, os militares pren-
deram ele dentro de casa, ela tinha quatro filhos,
eles entraram com as armas dentro da casa dela.
Nesse episódio da Praça General Osório, a Anna
Bella diz não se lembrar se foi ou não, e ela acha
que não foi na verdade, apesar dela ter feito as
bandeiras para ir. E o que ela coloca é que ela tinha
medo pelos filhos dela, porque o marido dela já ti-
nha sido preso, e ela estava sozinha com os filhos.
37
das essas obras, o que foi muito incrível. Então surge letra a letra a palavra terminal, para depois
enquanto os companheiros estavam lá lutando de uma vez aparecer a palavra Centerminal. Se a
com as armas, alguém tinha que ficar em casa palavra Centerminal lembrava a poesia concreta,
e cuidar dos filhos, que não iam ficar largados. na narrativa do vídeo de fato é produzida uma
Então eu acho que a memória dessas mulheres é poesia concreta. Um pré-projeto no papel pode-
muito importante de se fazer lembrar. ria ser algo assim:
Ela também cita algumas situações, como na
missa ecumênica após o assassinato do Edson TER
Luís, eles foram caminhando da Candelária até o TERM
cemitério em Botafogo para fazer o enterro dele, TERMINAL
e ela passava pela porta da casa dela no caminho, ERMINAL
e ela resolveu ficar em casa por conta do medo. NTERMINAL
Sempre essa questão do medo por ser mãe, e TERMINA
pelo que poderia acontecer se ela também fosse NTERMIN
presa, o que aconteceria com as crianças. CERTERM
CENTER
E na situação do boicote, ela se juntou a outros
artistas aqui. Eles não assinaram o boicote, por- A câmera fica então nesta última parte por mais
que obviamente eles seriam presos, mas eles fi- de 20 segundos. Durante a formação dos Estados
zeram um pacto e nenhum deles participou da nacionais europeus no século XVII, uma cidade
Bienal de São Paulo até a década de 1980. Isso era designada para concentrar a administração
custou a visibilidade dela e desses artistas, já que daquele Estado. Sendo assim era redesenhada e
era o principal evento de divulgação do trabalho. remodelada para ser a materialização da institui-
Então ela coloca que isso teve um custo para o ção Estado, para ser a sua capital. Se uma das
trabalho deles, mas que era um custo inegociável, instituições mais antigas é a Igreja Católica, no
não dava para negociar com um tipo de organi- século XVII os Estados iniciam a construção do
zação como essa. aparato para funcionamento da sua instituição e
essa moda vai contaminando outros espaços que
Eu termino essa apresentação com um vídeo da vão emergir ao passar do tempo como campos
Anna Bella, um dos primeiros trabalhos de vídeo autônomos e institucionais. Um deles é a arte.
arte no país, que traz muito da crítica a deter- Essa cidade/capital projetada é o primórdio e um
minada institucionalidade como eu coloquei an- dos símbolos daquela nação, daquele povo. Além
teriormente. Então eu vou passar ele, e depois dela serão inventados os hinos, as bandeiras e as
eu passo novamente comentando. O vídeo que tradições. Essa única palavra que é/são muitas
possui quase dois minutos, inicia com a câmera palavras em uma só – palavra que na verdade só
percorrendo o chão de terra, repleto de folhas se- sabemos estar escrita por ser o título do vídeo,
cas, onde está escrita a palavra Centerminal, que pois em nenhum momento é filmada por inteiro
em si, como palavra única, já é poesia e lembra – é disposta apresentando claramente o centro, a
com afeto a produção concreta. A câmera parte capital, seja da instituição Estatal, seja da insti-
da letra T em diante para depois tirar o zoom e tuição artística. Está ali, carimbado, marcado no
apresentar toda a palavra. Assim, inicialmente chão de terra que é o nosso chão.
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Em seguida aparece Anna Bella com um figurino o desenho gráfico no papel do movimento reali-
usado no cotidiano, realizando uma espécie de zado e em inglês a frase qualquer direção fora do
ritual, no meio da floresta. Ela surge, caminha centro que indicava um boicote a instituição, ao
atenta, porém calmamente em forma circular. mesmo tempo que trazia resquícios da evocação
Quando vai iniciar outra volta, ela para e pega da marginalidade, como também Hélio Oiticica,
uma flecha que está encostada em uma árvore. mas com outra conotação, é claro. Quem escapa
Então ela vai para o centro do círculo pelo qual para fora do centro é a flecha do marginal indíge-
ela caminhava, e finca repetidamente a flecha na na. A produção de Anna Bella Geiger nos dez anos
terra. Finca finca finca, fura, perfura, vai enfian- que separam o início da ditadura e o ápice da sua
do a flecha. Depois ela ergue seu corpo, o prepara violência, vai da manipulação e exposição do cor-
para um arremesso, aponta uma mira e dispara po nas gravuras Viscerais, para a manipulação e
a flecha. Por fim, o caráter didático de sua prá- exposição da bandeira nacional, até a manipulação
tica artística aparece mais uma vez: Anna Bella e exposição dos processos ritualísticos quase mís-
segura um cartaz que possui um desenho esque- ticos por uma libertação do que está no Centro e
mático da ação que realizou com a frase “any di- também didáticos, quase um vamos juntos? A ar-
rection out of the center”. tista, mulher, estrangeira, mãe, esposa, enfatizada
quando a câmera enquadra junto a flecha as san-
Como que num ritual para a desconstrução insti- dálias tidas por femininas, experimenta mais uma
tucional, ela apela para todos os meios possíveis: a vez a superposição de linguagens entre poesia,
poesia concreta e a sua inserção no solo sagrado, desenho em grande escala, desenho em pequena
a performance onde o seu corpo realiza um de- escala sobre papel e o vídeo. Experiência pioneira
senho no vazio, primeiro desenhando o círculo, que merece a visibilidade devida. Obrigada!
marcando o seu centro e depois arremessando a
flecha que desenha a curva no ar, e por fim com
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Todas as atrocidades possíveis que um ser hu- e capitalista, e por isso não é universal, porque
mano pode fazer com o outro sem ser responsa- existem sociedades no mundo que não são euro-
bilizado e continuar vivendo tranquilamente é a cêntricas e capitalistas. Só para gente pensar um
realidade no Brasil sem revisão da Lei da Anistia pouco nisso, ou seja, o mundo não é o ocidente,
de 1979. Esse é o nosso país. Um país que até hoje inclusive a maioria da população mora no oriente!
não teve a coragem de fazer de fato uma transi-
ção. Eu costumo usar essa expressão, “o Brasil é No caso brasileiro e no caso argentino há compa-
o país da transação”. Como tudo é negociado a rações necessárias. Eu ouvi ontem que a Bolívia
gente não tem rupturas na nossa história, des- abrirá os arquivos da operação Condor e dispo-
de a invasão portuguesa em 1500. É vergonhoso nibilizará a consulta pública. Isso prova o quão
todo o processo da República Nova, o processo do distantes estamos atrás na história. E a Bolívia
Estado Novo. Até as negociações, as transações, só vai abrir os arquivos da operação Condor,
em relação às Capitanias Hereditárias, como se porque o governo argentino condenou na justi-
deu a questão de direito de propriedade que foi ça argentina – há mais ou menos duas semanas
gradativamente alicerçando a desigualdade so- – 15 oficiais das forças armadas da Argentina,
cial. Então, qualquer coisa na história do Brasil responsáveis pela operação Condor que vitimou
é sempre negociada, qualquer coisa. Isso faz com brasileiros, paraguaios, uruguaios, argentinos,
que a gente não consiga viver essas rupturas, bolivianos, chilenos. E o Brasil continua fazendo
algo muito atual. de conta que isso não aconteceu.
Uma das inquietações que quero falar da lite- E aí eu quero falar um pouco da semelhança ex-
ratura jurídica, sobretudo – que é a minha área traordinária que tem nesses países de ignorar a
de atuação, eu sou professora e estudo isso – é a participação das mulheres, inclusive aquelas que
de direitos humanos como uma concepção uni- não eram pobres, nesse relato. Por isso é impor-
versal. Às vezes a gente pensa que ao falarmos tante traçar esse paralelo. A gente viu aqui dois
dos direitos humanos como algo universal, aca- casos, a Daniele acabou de citar, eu não sabia
bamos inviabilizando algumas lutas específicas. da história, por exemplo, da Niomar, e poderia
Ao traçarmos um paralelo entre as minorias, e estar tudo bem porque eu não estudo belas ar-
aí digamos, por exemplo, os pobres, a principal tes, mas eu poderia saber, assim como eu sei de
contraprova, na minha opinião, de que os direi- outras pessoas que lutaram à época da ditadura
tos humanos partem divisões eurocêntricas e que eram engenheiros. Por exemplo, engenheiro
capitalistas é essa. Os direitos humanos são sem- Rubens Paiva, eu sei quem foi, por que eu não sei
pre pensados a partir de uma visão eurocêntrica quem foi a Niomar? Por que a gente sabe umas
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coisas e não sabe outras? Quem é que faz esse são negros ou são brancos? Estudaram em es-
filtro pra gente não conhecer essas histórias? cola pública ou particular? A maioria deles anda
de ônibus ou não anda? A maioria deles vai ao
Um exemplo mais conhecido é o da Olga Benário. mercado e sabe o preço das coisas ou não sabe?
É um exemplo que todo mundo sabe, ela foi en- Quem são essas pessoas? Quem é essa elite que
tregue aos nazistas pelo Getúlio Vargas, uma ou- hoje compõe o legislativo e o judiciário no Bra-
tra figura controversa que as pessoas costumam sil? Hoje eles compõem ou eles sempre estiveram
homenagear. Ela é uma exceção ao lado de pou- nesses espaços? Sempre estiveram. Nada mudou.
cas outras, não são muitas mulheres que a gente Eu vou embora (risos).
conhece nesse período. A Ana certamente conhe-
ce todas, mas por que a história não conhece? Eu quero trazer esse exemplo para o que a Ana
Por que as futuras gerações, as novas gerações falou do eixo memória, verdade e justiça. A gente
não conhecem? Isso é pouco na perspectiva dessa luta por justiça, a gente espera justiça e a gente
evidência somada a um desafio. As opressões que almeja justiça. E isso a gente almeja inclusive na
criam obstáculos para as diversas lutas feminis- nossa vida privada, nas questões particulares. Se
tas, nas diferentes abordagens do feminismo, no a gente compra uma coisa, se a gente tem um
mundo do direito, do trabalho, da propriedade, problema pessoal, a gente acredita no judiciário
porque as mulheres de fato não encontram um para resolver nossos problemas com as coisas.
lugar de igualdade. A Daniele deu um exemplo Mas quem compõe esse judiciário? Dá pra acre-
aqui da missa do funeral do Edson Luís, um ditar nesse judiciário, com essas pessoas, com
exemplo muito evidente disso. Os exemplos de essa elite branca que eu acabei de descrever aqui
muitas mulheres líderes, que tiveram destaque minimamente? A maioria é formada por pessoas
em suas atividades, na minha opinião, eles nada assim, tem exceções, mas são exceções. É igual à
mais são que a prova da exceção. São algumas, história das mulheres que lutaram contra a dita-
são poucas que são nomináveis, que são identifi- dura. A gente conhece essas histórias no campo
cáveis, e aí acaba confirmando essa sugestão da da exceção.
regra, a regra da exceção.
E o que faremos? Eu acho que é essa a perspec-
Não há como negar, e aí eu vou tentar trazer um tiva. Então a necessidade da gente pensar uma
pouco já que a discussão era essa, aproveitando epistemologia feminina, feminista, sobretudo,
a fala da Ana, da Daniele, que é o que está acon- pra gente ter condições de desmascarar esse ma-
tecendo hoje. A gente não pode negar que o di- chismo histórico. E aí, no caso específico da luta
reito é masculino, patriarcal. O nosso legislativo, por verdade, memória e justiça, tem uma presen-
esse legislativo que todos nós assistimos dia 17 ça majoritária de mulheres. Esse coletivo que a
de abril de 2016, ele é composto por homens em Ana descreveu aqui, a luta dos comitês que foram
sua maioria, e bota maioria nisso, mais de 90%. criados no Brasil inteiro antes de ser feita a Co-
Homens que fazem as leis, que exercem o papel missão Nacional da Verdade, predominantemen-
de legisladores, e depois essas leis são interpreta- te a organização desses comitês, desses espaços
das por uma maioria de juízes homens. E nisso em todos os municípios. Se não fossem esses co-
a gente vai vendo essa reprodução, quem são es- mitês, se não fosse à luta das familiares mulheres
ses homens, de terno e gravata? A maioria deles em especial, depois da lei da Anistia – inclusive
41
em 1975 já, no Comitê Brasileiro de Anistia, que últimos cinco ou seis anos, não estou falando da
foi uma luta organizada por mulheres – a presen- época da ditadura, e presença majoritária era de
ça das mulheres nessa luta é o que faz com que a mulheres.
gente tenha chegado até aqui, e isso é escondido.
Algumas experiências vividas na própria pele no Hoje vivemos um momento de caça às mulheres,
período da ditadura, que são de mulheres, algu- veja-se uma delas que ficou presa três anos, não
mas delas são mais conhecidas por quem atua e foram três dias, não foram três horas, foram três
milita nessa pauta, porque trabalharam na co- anos: Dilma Rousseff. Ela ficou presa três anos,
missão especial sobre mortos e desaparecidos sem entrar aqui em nenhuma avaliação sobre o
políticos. O Yuri apareceu aqui, irmão da Iara governo dela, que tenho muitas discordâncias,
Xavier que foi uma pessoa determinante para mas também reconheço os avanços. A história da
o trabalho da Comissão Especial sobre Mortos Dilma Rousseff, dessa prisão em que ela passou
e Desaparecidos Políticos. Suzana Lisboa, algu- na ditadura, tampouco é conhecida da população
mas mulheres que são referências nessa área, a brasileira. Como tantas outras mulheres ela teve,
Amparo Araújo de Recife. São algumas mulheres em alguns momentos, inclusive que negar, não
que fizeram parte da Comissão sobre Mortos e de maneira consciente e deliberada, mas não era
Desaparecidos Políticos e ajudaram a organizar conveniente para uma mulher que iria atuar na
os arquivos, porque era muito cruel. Apesar do política ter essa referência de ter sido guerrilhei-
governo brasileiro em 1995 ter criado a lei 9.140, ra, de ter lutado contra a ditadura. Politicamente
ano em que o Fernando Henrique era presidente não era interessante, e porque não era?
e ter dito que pela primeira vez se reconhecia que
o Estado tinha matado essas pessoas, era uma É preciso pensar e refletir sobre isso, em uma
perversidade de ônus da prova, uma inversão de análise da trajetória daquelas mulheres que con-
ônus da prova muito horrível porque a família seguiram furar o bloqueio da invisibilidade e do
tinha que provar. O Estado dizia está bem, nós silenciamento das suas vozes. Nós temos um
matamos, mas as famílias tinham que provar, e exemplo aqui hoje de descomemoração, que fo-
aí nem todos tinham condições de reunir provas ram impostos pela linguagem aplicada nas leis,
e muitos processos não foram aceitos justamente nas políticas públicas, atreladas ou não a con-
por isso. Isso exemplifica a luta muito forte na dição de familiares de mortos ou desaparecidos
presença das mulheres. políticos, ex-presos, é sempre no masculino, né?
A Ana é uma ex-presa, mas nós falamos ex-pre-
E aí mesmo nos bastidores e foi isso que eu falei. sos políticos, usamos essa linguagem predomi-
Aquilo que é mais recente, que eu vivenciei, que nantemente masculina. E aí essas pessoas, essas
foi o período que antecedeu a Comissão Nacional experiências pessoais, poderiam colocar essas
da Verdade, pouco se fala sobre isso, da impor- mulheres em qualquer outro lugar de fala, inde-
tância das mulheres nessa luta. A Comissão da pendente dessa normatização imposta, pelo di-
Verdade do Rio, ela se deve muito a luta de mu- reito de ser ou não ser da família de uma pessoa
lheres, sobretudo no coletivo que a Ana integra, que desapareceu, de ter sido afetada ou não pela
e outros movimentos sociais aqui do Rio. Bastava ditadura.
irmos em qualquer plenária, em qualquer reu-
nião de organização, isso eu estou falando dos Mas a questão da memória, da verdade e da jus-
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Essas poucas conquistas dos últimos anos, de- Considerando essa luta das mulheres, vemos
vemos a essa geração. Algumas coisas que eu a importância de entender a presença das mu-
queria falar, é que qualquer semelhança com a lheres no movimento por Memória, Verdade e
realidade, da presença das mulheres que cons- Justiça, com novas lentes, com visões capazes
truíram um alicerce de luta por verdade, memó- de emancipar essa presença universalista dos
ria e justiça no Brasil nos anos 1960 e 1970, não direitos humanos. E entender que aquilo que se
pode ser uma coincidência. Porque os modelos de diz na Declaração Universal dos Direitos Huma-
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nos, “todos os homens nascem livres e iguais em tendendo como se deu esse processo de constru-
dignidade e direitos”, primeiro é que deveria ser ção da Comissão Nacional da Verdade, inclusive
todos os seres humanos. Nascem livres, menos com sete homens à frente da Comissão e apenas
os pobres, quem é pobre não nasce livre. Não no duas mulheres. E por aí vai, a ideia da resistência
mundo capitalista. Ninguém que é pobre nas- à ditadura e da gente continuar ausente nessas
ce livre, isso não existe, é impossível. E aí dizer histórias. O nosso relatório parcial da Comissão
que as pessoas, os seres humanos nascem iguais da Verdade do Rio, no final a gente conseguiu
em dignidade e direitos é outra mentira. Porque concluir, óbvio, mas assim no sumário, e aju-
mesmo que a ONU, que assina embaixo dessa damos a elaborar o sumário, a proposta de su-
declaração, fosse um país, esse lugar não existi- mário, não tem nenhum caso específico de uma
ria. Um lugar em que as pessoas nascem livres e mulher, tem casos de homens, não tem o caso de
iguais em dignidade e direitos. uma mulher no sumário. São casos que a gente
tinha mais provas, reunimos mais elementos, as
Eu finalizarei porque o meu tempo está esgotan- pessoas deram mais testemunhos.
do. Falei de algumas pessoas conhecidas nossas
aqui, de algumas dessas mulheres que continu- E por que a gente escolheu investigar uns casos e
am até hoje envolvidas nas Comissões, auxilian- não investigar outros? Só que ao mesmo tempo,
do os trabalhos nas Comissões da Verdade, a Ana e eu quero dizer pra vocês que a dor era muito
está aqui com a gente, a Criméia que a Ana citou. grande de ouvir todos os testemunhos da verda-
Foram mulheres em grande maioria, que funda- de, que a gente chamou na Comissão da Verdade,
ram grupos que até hoje sustentam essa pauta não teve uma pessoa que conversou com a gente,
no país, como o grupo Tortura Nunca Mais e ou- não que eu lembre, que comentou o que sofreu,
tros coletivos. Foram mulheres que denunciaram as torturas, os sofrimentos familiares, pessoais,
o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos homens e mulheres, nenhum desses relatos não
Humanos em 1995 junto com o CEJIL, uma or- aparecia mulher na história. De algum jeito, de
ganização que é basicamente dirigida só por mu- alguma forma, em qualquer fala tem a presença
lheres. Enfim, como que as mulheres aparecem das mulheres. E não só no papel de mãe, com-
nessa trajetória? Quem eram essas mulheres? panheira, namorada, amiga, no papel de articu-
Quem são essas mulheres? Essas coisas a gen- ladora, no papel de organizadora daquela resis-
te tem que pensar. Mas e aí? São só essas? E as tência. Tem vários casos que a gente conhece que
outras? E as negras, e as travestis? E as pobres, contam pra gente quando começamos a mexer
e as camponesas? E as trabalhadoras da indús- nessas histórias. Foi à fulana que ligou para avi-
tria canavieira e têxtil? E as professoras do ensi- sar a família. Como foi a fulana que avisou? Que
no fundamental? E as milhares de mulheres que engajamento essa fulana, essa mulher tinha?
foram perseguidas pela ditadura? Algumas delas
entraram com um processo na comissão de Anis- Como que isso foi se silenciando, se silenciando
tia, mas muitas sequer sabem da existência da e aí a gente tem hoje um congresso com 8% de
comissão de Anistia até hoje. mulheres, a gente teve, e podem falar qualquer
coisa da Dilma, mas dizer e comparar que, se ela
Por isso inserir esses debates sobre feminismo é fosse um homem esse processo que o país está
necessário pra gente construir e aproximar, en- vivendo não seria da forma como está sendo. Po-
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diam ser as mesmas condutas, as mesmas prá- tem ideia do nome e do sobrenome, que a gente
ticas, a mesma análise das mesmas denúncias, pode estar nesse auditório numa plateia formada
não seria assim se ela não fosse mulher. Então majoritariamente por mulheres, uma mesa orga-
não tem essa da gente continuar vivendo como se nizada só por mulheres, coisas que eram impen-
a política não fosse lugar para mulher. Não tem sáveis há 30 anos atrás nesse país. Impensáveis!
nada, e às vezes eu arrumo confusão falando isso, Então a gente ainda tem muita luta pela frente, e
que eu não enxergo nenhuma ação que um ho- temos uma luta muito maior ainda que é dar gás,
mem seja capaz de fazer que eu não seja capaz de ânimo e força pra essa juventude que está vindo
fazer. E eu duvido que tenha. Às vezes as pessoas aí, pra aquelas meninas que foram para a Presi-
falam em força física superior em alguns casos, dente Vargas no dia 1º de junho agora, naquele
mas o homem é mais forte, o homem é mais for- ato das mulheres contra a cultura do estupro.
te nada, os homens são ensinados a serem mais Essa emancipação, do ponto de vista da história
fortes, as meninas não podem brincar, subir em da humanidade é muito recente e estamos no
árvore, sentar de perna aberta. Então as meninas meio disso. Às vezes a gente acha que está tudo
desde criança, a gente não potencializa. Então se muito tranquilo, favorável, mas não está. E em
você pegar um menino e uma menina e der as vários aspectos está cada vez pior. Só esse avanço
mesmas condições, vai ser forte igual, vai ter a que a gente teve da presença das mulheres nos
mesma força física. Está aí as Olimpíadas mês espaços públicos, das mulheres na reitoria da
que vem, pra provar que as mulheres batem re- UFRJ, de mulheres em todos os espaços, e a gente
cordes, e se fosse uma questão de condição física, está tendo isso cada vez mais, é uma conquista
e isso eu digo por que eu já ouvi pessoas falando muito, muito recente. E muito fácil de ser des-
isso, que estudam a anatomia humana e diz, que truída com ataques misóginos e machistas como
não existe isso. Por que a gente tem que cruzar as sofreu a Presidenta da República.
pernas? Todas essas condutas impostas às mu-
lheres. Ou quando se diz que a política se faz no Que isso sirva para ficarmos alertas em relação
bar, a política se faz tomando uísque, a política se
a isso, não se trata de uma defesa da Dilma, mas
faz nessas reuniões que não são nos espaços pú- ela sofreu um golpe, e esse golpe foi dado por
blicos. Política não se faz assim, política não deve
esses homens que representam as mesmas pos-
ser feita assim. E aí essa resistência da Dilma deturas daqueles que torturaram durante o período
não fazer política desse jeito, não é porque é a militar. Porque a gente viver num país com um
Dilma, é porque é mulher. Uma mulher como a cara como o deputado Bolsonaro, que é capaz
Dilma obviamente, porque tem outras mulheres de homenagear o Ustra, vocês imaginam isso na
que não se encaixam nesse papel. Alemanha? Se alguém fosse para o Congresso,
em uma votação como essa, e fizesse uma home-
Então talvez a minha homenagem que eu possa nagem ao Hitler? Vocês acham que essa pessoa
dar pra Ana Maria aqui, é falar pra ela que eu ia poder andar na rua tranquilamente depois? E
nasci em 1976, que eu entrei no colégio em 1983 isso é porque falta mexer com a nossa memória,
ainda na ditadura, que eu fazia fila, tinha a or- falta trazer a verdade à tona e falta justiça.
dem de distância, mas que foi graças a pessoas
como ela, e graças a pessoas como a Ana, como a Se saímos na rua e as pessoas não sabem o que
Dilma, e tantas outras mulheres que a gente não foi a Comissão da Verdade, é porque esse silen-
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ciamento continua se fazendo presente. Porque misógina, nem entre amigos, nem com a família,
a gente não teve até hoje uma política de Estado nem com coleguinhas de trabalho. Não aceite,
que cuidasse da Verdade, da Memória e da Justi- não tolere, se meta, não deixe passar! A não ser
ça. Nós tivemos algumas ações, de alguns gover- que você esteja sozinha numa rua escura e com
nos, uns mais e outros menos, mas uma política a sua segurança ameaçada, e a gente sabe que
que de fato fizesse isso, nós nunca tivemos. E tem horas que não dá pra se meter. Fora isso se
acho que a gente está aqui é pra lutar por ela. Pra meta, não deixe passar, porque foi graças a quem
que um dia ela se transforme numa política de se meteu que a gente está aqui hoje.
Estado, e que consigamos viver pra isso. Só acre-
ditando que não tem que brincar com piadinha
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CADERNO ESPECIAL
AFRORESISTÊNCIAS
Estética Negra e Novas
Narrativas
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Novas Narrativas
apresentação
Angélica Arcasi
Afroresistências - Estética Negra e Novas jetória de 200 anos da Escola de Belas Artes, no Rio
Narrativas foi um evento aberto que ocorreu de Janeiro? Qual será o impacto deste novo pro-
de 11 a 13 de maio de 2016 na Escola de Belas tagonismo na produção historiográfica e estética
Artes da UFRJ, e congregou estudantes, artistas, acadêmica? Arte que fazemos é para que(m)?
afroempreendedores, educadores, mestres, por-
tadores dos diversos saberes da cultura negra Abaixo seguem três artigos para apresentar uma
promovendo debates, apresentação de trabalhos pequena parte do que foi realizado nesses três
acadêmicos, oficinas, a economia criativa e uma dias de atividades. Simone Ricco com o título
mostra coletiva de arte. Mulher negra: corpo, memória e protagonismo
no audiovisual, Samuel Lima com PIXAÇÃO – a
Afroresistências, para nós, é o acúmulo presen- cultura Xarpi na cidade do Rio de Janeiro e Ellen
te da consciência imemorial vivida pelos corpos Mendonça Silva dos Santos com A face negra do
negros até hoje. O nosso objetivo era fortalecer poder constituinte originário brasileiro: a atua-
conexões com os conhecimentos e tradições - que ção interseccional das Mulheres Negras do Esta-
resistem e re-existem - da diáspora africana à re- do do Rio de Janeiro na construção das demandas
sistência dos povos nativos de nosso continente na constituinte 1988.
americano, estabelecer um espaço de diálogo e
trocas, de encontro. Boa leitura! Até o próximo Afroresistências!
O que propomos surgiu com a nova demanda no Angélica Arcasi, graduanda em História da Arte
contexto da recente entrada de estudantes ne- pela EBA/UFRJ e integrante da Comissão Organi-
gros e indígenas, periféricos e pobres na univer- zadora do Afroresistências.
sidade, uma instituição historicamente excluden-
te, a qual agora se converte em espaço de disputa email: afroresistenciasebaufrj@gmail.com
e resistência diária. Por isso, questionamos: qual Facebook: @afroresistencias
o lugar do conhecimento não eurocêntrico na tra-
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Novas Narrativas
O presente artigo foi elaborado a partir da comunicação realizada no Afroresistência, na mesa Mu-
lher negra: corpo, memória e protagonismo. As considerações tecidas propõem uma reflexão sobre
nuances do protagonismo feminino negro na recente produção audiovisual brasileira, analisadas a
partir dos filmes Elekô (2015), O dia de Jerusa (2014), Personal vivator (2014) e Kbela (2015).
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ajudam a consolidar a presença feminina negra Parte deste contexto mundial, o audiovisual bra-
entre os sujeitos atuantes na indústria cultural. sileiro não é um caminho fácil para as mulheres
negras. A matriz do poder colonial continua a
Percurso negro feminino ditar padrões eurocêntricos – elencos embran-
quecidos, nos quais ainda são raros corpos ne-
Ao ocuparem o lugar de produtoras de culturais, gros, sendo comum aos poucos corpos femininos
mulheres negras em ação no audiovisual brasilei- negros em cena a repetição de papéis estigma-
ro abriram espaço para o protagonismo feminino tizados – serviçais, amantes hipersexualizadas e
negro e desilenciaram discursos necessários no mulheres desqualificadas profissionalmente. No
cenário mundial descrito por Anibal Quijano e entanto, a partir da década de 1970, discursos
Ramon Grosfuguel afirmativos da identidade negra impulsionaram
a marcha de mulheres afro-brasileiras por dife-
Um dos mais poderosos mitos do século rentes espaços de formação e atuação, motivan-
XX foi a noção de que a eliminação das do algumas aproximações entre mulheres negras
administrações coloniais conduzia à des- e a experiência audiovisual.
colonização do mundo, o que originou
o mito de um mundo “pós-colonial”. As Com acesso limitado ao capital em circulação na
múltiplas e heterogéneas estruturas glo- indústria cinematográfica, mulheres negras em-
bais, implantadas durante um período de preenderam formas criativas ou fizeram uso de
450 anos, não se evaporaram juntamente ações afirmativas – editais para jovens produto-
com a descolonização jurídico-política da res negros, cursos de livres de formação e ofici-
periferia ao longo dos últimos 50 anos. nas, que viabilizaram a investida numa produção
Continuamos a viver sob a mesma “matriz audiovisual. Algumas das obras produzidas, têm
de poder colonial”. Com a descolonização sido importante ferramenta para os sujeitos im-
jurídico-política saímos de um período plicados com o projeto de implosão da hierarquia
de “colonialismo global” para entrar num colonial. As narrativas atingem às representa-
período de “colonialidade global”. Embora ções: “de incapacidade moral à incapacidade fí-
as “administrações coloniais” tenham sido sica e intelectual; de sexualidade exacerbada ao
quase todas erradicadas e grande parte mito da mulata sensual”. (GOMES, 2006, p. 137)
da periferia se tenha organizado politica- Na última década, posicionadas como sujeitos
mente em Estados independentes, os po- na criação audiovisual brasileira, algumas mu-
vos não-europeus continuam a viver sob lheres negras realizam um crescente processo
a rude exploração e dominação europeia/ de visibilidade dos corpos negros femininos em
euro americana. As antigas hierarquias atividades intelectuais e artísticas que, ao serem
coloniais, agrupadas na relação europeias realizadas, fortalecem reflexões necessárias para
versus não-europeias, continuam arraiga- a experiência de tornar-se negra e compreender
das e enredadas na “divisão internacional a complexidade do racismo brasileiro refletido na
do trabalho” e na acumulação do capital vida e reproduzido nas artes.
à escala mundial (Quijano, 2000; Grosfo-
guel, 2002).
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“Becos da memória” audiovisual brasileira sual têm feito da memória “este processo ativo de
criações de significações”. Unindo recursos visu-
Na semana anterior, a matéria estudada ais, textuais e sonoros, escrevem esta história a
em História fora a ‘Libertação dos Escra- partir de narrativas audiovisuais que percorrem
vos’ [...]. Fitou a única colega negra da sala registros históricos, ressignificam figuras históri-
e lá estava a Maria Esmeralda entregue à cas e configuram trajetórias femininas negras na
apatia. Tentou falar [...]. Pensou em Tio história do audiovisual brasileiro.
Totó. Isto era o que a professora chama-
va de homem livre? Pensou em Vó Rita, Pouco conhecida, essa história conta com figuras
na Outra e em Bondade [...]. Era diferen- que surgiram solitárias no território embran-
te de ler aquele texto. Assentou-se e, pela quecido e masculino do cinema, como a diretora
primeira vez, veio-lhe um pensamento: Adélia Sampaio, na década de 1970. A cineasta
quem sabe escreveria esta história um dia? foi a primeira mulher negra a dirigir um longa
Quem sabe passaria para o papel o que es- no cinema brasileiro – Amor maldito (1984), no
tava escrito, cravado e gravado no seu cor- entanto, mesmo sendo tão importante para a
po, na sua alma, na sua mente. (EVARIS- memória afro-brasileira, a cineasta é mais uma
TO, 2006, p. 137-138). mulher alvejada pelo apagamento das trajetórias
negras e invisibilidade.
Com o título Becos da memória, Conceição Eva-
risto apresentou à sociedade brasileira uma obra No decorrer de quatro décadas, vários aspectos
literária marcada pelo protagonismo negro. Um referentes aos corpos negros projetados na tela
texto que alinhava presente e passado expostos ou ao perfil dos produtores de obras audiovisuais
em fragmentos de episódios pessoais que se en- evidenciam um continuum cultural. Os grandes
trecruzam para contar a história da comunidade filmes brasileiros seguem o padrão embranque-
negra brasileira, forjada na desagregação social cido, com pequena representação da maioria
resultante da retirada do negro africano de seus negra. Em alguns documentários e curtas estão
laços comunitários e seu posicionamento à mar- a maior a ruptura, que atualmente toma forma
gem da sociedade brasileira em formação. com elementos estéticos e com a perspectiva da
inversão, estabelecida com a “não-modificação
A reconstituição desta história fragmentada é um dos sinais diacríticos presentes no corpo que re-
caminho para (re) estabelecer laços comunitários metem à ascendência africana” (GOMES, 2006,
entre a população negra. Narrativas literárias e p. 126).
audiovisuais surgem desta motivação e com in-
tuito de produzir sentidos para as descobertas Na década em curso, documentários, ficções e
sobre a comunidade negra, pois “o realmente im- narrativas experimentais realizadas por mulhe-
portante é não ser a memória apenas um deposi- res negras aguçaram olhares para a trajetória dos
tário passivo de fatos, mas também um processo corpos negros na cena audiovisual. Neste perío-
ativo de criação de significações” (PORTELLI, do, destacamos as ficções O dia de Jerusa (2014)
2004, p.296-313). - dirigido por Viviane Ferrreira, Personal Vivator
(2014) – dirigido e roteirizado por Sabrina Fidal-
As mulheres negras em ação na criação audiovi- go, Kabela (2015) – dirigido por Yasmin Tainá e
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Elekô (2015) – direção coletiva das Mulheres de negra em uma sociedade que nega e pratica o
Pedra. racismo. Um dado levado em consideração foi a
grande incidência de problemas de saúde mental
Elekô: fragmentos, imagens, corpos, silêncios no contexto brasileiro em que
e falas
A população negra vive “encurralada” com
Ao abordar a criação do filme Elekô – um fio de pouca ou nenhuma chance de ultrapassar
poesia vermelha, este texto tece um relato sobre a barreira econômica que lhe é impos-
uma experiência guiada pela memória históri- ta, mantida através do imaginário social
ca, acessada para construir imagens tradutoras que lhe confere o lugar do destituído. Ao
do percurso negro feminino pela sociedade bra- internalizar atributos negativos, que lhe
sileira, da chegada das negras escravizadas na são imputados, instala-se o sentimento de
Pequena África Carioca aos dias atuais. A ficção inferioridade, causando constrangimento
ressalta a multiplicidade de fazeres individuais na relação com seus pares, e favorecendo
e coletivos de mulheres negras que alinham as o aparecimento de comportamentos de
funções elementares do passado e experiências isolamento, entendidos, freqüentemente,
mais complexas. como timidez ou agressividade. Essa pres-
são emocional pode ser percebida ou lida
Dedicadas à realização de saraus na periferia do como perturbação do pensamento e do
Rio, a vivência das Mulheres de Pedra na produ- comportamento. (SILVA, 2004, p. 131)
ção audiovisual representou a investida em uma
tarefa mais complexa. Aguçadas pela chamada O reflexo desta questão entre mulheres negras é
do Festival 72 horas, as integrantes vivenciaram visível nos atendimentos da rede de saúde. Como
uma experiência cujo sentido se reforça na ob- confirmam as figuras de Estamira, Stela do Pa-
servação de Victor Turner (1974) sobre o senti- trocínio e de muitas usuárias do sistema de saú-
do etimológico do vocábulo experiência, palavra de mental atendidas na Colônia Juliano Moreira,
que inclui os sentidos, riscos, perigos, provas e onde as Mulheres de Pedra realizaram um Sarau
aprendizagem por tentativa, rito de passagem. dedicado à abordagem da loucura. As mulheres
negras são tratadas como fortalezas capazes de
Risco, perigo, prova e aprendizagem envolveram resistir ao sistemático abandono, ao trabalho pe-
o processo de concepção de Elekô. Transformar sado e às constantes manifestações de racismo
o set de filmagem em um local exclusivamente que atingem sua corporeidade e questionam sua
feminino foi a prova inicial, importante para en- presença em alguns espaços privilegiados da so-
frentamento do sexismo. Um primeiro desafio ciedade.
estabelecido pela equipe de criação e vencido pela
produção. A equipe contou com as integrantes da Imagens registradas nas memórias das mulheres
Coletiva Mulheres de Pedra e profissionais de di- negras integrantes da coletiva foram convocadas
versas áreas técnicas. para criar poesias, performances e sonoridades
que ocupam os 6 minutos desta obra que venceu
A concepção do roteiro tomou como ponto de o Festival 72 horas.
partida a reflexão sobre a loucura de ser mulher
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Silêncios e falas dividiram espaço nas perfor- formada por guerreiras defensoras da justiça e
mances que compõem a narrativa. A tela revela soberania feminina.
questionamentos: o que calar, o que dizer, como
dizer, como reeditar as imagens de mulheres ne- Sob inspiração de Elekô, sociedade combatente
gras escravizadas? “Como pôr para fora” tantas da secular opressão do poder masculino, as cria-
reflexões? A resposta surgir em olhares, gestos doras do filme homônimo associam suas habi-
e dança inseridos em performances capturadas lidades na composição de poemas, cenas e sons
pelas lentes e editados em forma em sequência que jorram nas telas um curto e intenso fluxo de
narrativa de 6 minutos. Desse modo, os corpos reverência cinematográfica a todas as mulheres,
negros femininos protagonizaram um filme cur- especialmente às mulheres negras que resistiram,
to, mas marcado por reflexões de longa data, lutaram e militam por um mundo em que as mu-
provocadas pela vivência de ser e tornar-se negra lheres tenham igualdade de direito. Transposto
em meio ao racismo estrutural tornado invisível para as telas, o tom sagrado da dança convida a
pelo discurso da democracia racial. restituir a solidariedade feminina existente no
culto de Elekô e perdida com a opressão ao culto
Com uma câmera na mão e todas estas ideias na à mulher, operada pela sociedade patriarcal.
cabeça, a equipe de Elekô elegeu o Cais do Valon-
go como cenário para performatizar a chegada Corpo, território de novos caminhos
feminina negra no território brasileiro, dando
início a uma trajetória coletiva desenvolvida em Alguns aspectos observados em O dia de Jerusa,
meio a um conjunto de práticas que configura “a Personal vivator, Kbela e Elekô, colaboram com o
loucura negra feminina” traduzida poética e ima- esboço de um plano geral sobre o a experiência
geticamente nas telas por mulheres que, assim estética da corporeidade negra na recente produ-
como a sociedade sagrada de Elekô, protegem e ção audiovisual.
valorizam o sagrado fluxo feminino em suas vi-
vências nos diferentes territórios por onde circu- Os corpos das personagens expostas nas telas são
lam. territórios para o exercício da representação e
autor representação. Tal como na ideia de corpo-
Pisando firme nos diversos territórios da socie- território, criada por Muniz Sodré, as diretoras
dade patriarcal, em cujo imaginário a sexualida- negras trabalham no sentido pensado pelo teó-
de feminina foi postulada a partir da procriação, rico
a criação de Elekô privilegia a leitura do feminino
tal como na tradição dos orixás. A mulher tem di- todo indivíduo percebe o mundo e suas coi-
versas faces, sem que uma anule a outra. Fora do sas a partir de si mesmo, de um campo que
set, algumas das mulheres associadas ao projeto lhe é próprio e que se resume em última
atuam na pedagogia, docência, administração e instância, a seu corpo. O corpo é lugar zero
outros fazeres distantes da arte cinematográfica, do campo perceptivo, é um limite a partir
com os quais encenam a arte da sobrevivência. do que se define um outro, seja coisa ou
A outra face dessas mulheres transborda no mo- pessoa (Muniz Sodré, 2005, p. 68).
mento da criação, fazendo surgir um roteiro que
adota como título o nome da sociedade sagrada
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Novas Narrativas
Dia 21 de janeiro de 2016 foi marcado por mais uma infeliz situação contra as Juventudes brasi-
leiras, quando os chamados Apoios - trabalhadores que fazem a segurança nas ruas dos centros
dos bairros e cidades brasileiras, e que tem uma prática muito parecida com o que o Rio de Janeiro
conhece por milicianos - torturaram três grafiteiros que foram confundidos com pichadores, no
Centro da cidade do Rio de Janeiro1. Baseado neste ocorrido, este artigo fará uma breve análise sobre
o universo piXador.
FOTO: Xarpi PIFIL, em um muro na Cidade Alta, favela de Cordovil (bairro que fica na Zona Norte carioca).
PICHAÇÃO, PIXAÇÃO, XARPI dades, sejam elas inscritas com pincéis, tintas,
sprays, giz ou qualquer outro material que mar-
Os estudos arqueológicos sobre as inscrições en- que, podemos dizer que a necessidade humana
contradas na Pompéia, as escritas que aparece- de “rabiscar”2 os lugares com antigas e/ou novas
ram com os movimentos estudantis da Europa e formatações estéticas não é um fenômeno novo.
nos protestos contra a Ditadura Militar na Améri- A pichação3 se manifesta nesse mesmo sentido,
ca Latina dos anos de 1960, as tags iniciadas pelas em variadas superfícies, advindas de novas ou
Gangues de Nova York em 1930 e que se estilizam experientes gerações, quase sempre (não que
com maior proporção na cultura Hip-Hop dos seja uma regra) em realizações feitas pelo público
anos de 1970/80, enfim, quando percebermos juvenil popular.
quaisquer grafias nas superfícies (muro, parede,
prédio, casa, transporte público, viaduto, ponte, PiXação4 é a denominação brasileira para definir
passarela) privadas ou públicas (que também aquela grafia enigmática e proibida, exposta em
se posicionam como privativas) nas grandes ci- uma superfície, a partir de um fenômeno que
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contém diversos signos linguísticos e de sociabi- Quem mora em um lugar de significados paisa-
lidade, o que leva a ressignificações próprias em gísticos estéticos como a Zona Sul, por exemplo,
cada território, seja ele algum estado, município, é beneficiado e assistido em detrimento das de-
região, bairro, rua ou lugar. No estado do Rio de mais regiões da cidade, ou seja, cria um dualismo
Janeiro, por exemplo, a prática da piXação pas- Zona Sul x ‘o resto do Rio’. O fato de pessoas de
sa a ser conhecida como Xarpi5: palavra piXar ao toda parte da cidade frequentarem as praias da
contrário, é usada entre os piXadores para iden- Zona Sul, traz desconforto aos moradores deste
tificar suas práticas e seus praticantes. local, que, muitas das vezes, acabam criminali-
zando estes sujeitos6.
Na cidade do Rio de Janeiro, o fenômeno da pi-
Xação é apresentado em seus “cartões postais”, A contemporaneidade das cidades exibe esse tipo
através da paisagem diversificada com belezas de realidade no campo da cultura, o que coloca
naturais, favelas, sabedoria carioca e malandra- emergência em debates sobre assuntos comple-
gem das ruas, numa “utopia romântica” que re- xos como a piXação, que há mais de quarenta
vela desejos de viver no maravilhoso. Isso acon- anos se posiciona na vida social urbana, em um
tece na imagem de uma estetização paisagística contexto de extremos que, quase sempre, obs-
abstrata que oculta desigualdades sócio espaciais truem as ações, logo, não se aprofundam sobre o
delicadas contidas na distribuição de bens (equi- sentido da cultura.
pamentos e serviços públicos) entre os diferentes
bairros e regiões do espaço urbano da “cidade Quando percebemos o que vale como cultura,
maravilhosa”. considerando o que as pessoas vêm criando e
interpretando no cotidiano, material e/ou ima-
Para Barbosa (2012), esta situação cria antissím- terialmente, em outras palavras, o que torna
bolos que se afrontam com os símbolos, e reve- possível as diversas existências das pessoas na
lam conflitos dados nas diferenças socioculturais sociedade - crenças, valores, práticas sendo tão
e econômicas: importantes quanto qualquer bem (casa, sapa-
tos, relógios, celulares) -, podemos trazer um
Os morros, planícies, manguezais e mar- olhar que não realiza separações dos significados
gens de rios e lagoas habitados pelas co- materiais e imateriais na cultura, e sim liga os
munidades populares, ganharam histo- dois à historicidade do contexto das múltiplas ex-
ricamente significados muito distintos periências de intersubjetividade, em relações re-
dos atribuídos à cidade maravilhosa. Eles cíprocas de tensão, que desafiam o próprio devir
representam uma paisagem a ser negada, do que significa cultura.
algo que macula o culto ao maravilhoso
da paisagem carioca. Os signos da natu- A cidade, a todo momento, é inserida nesse sen-
reza estilizada e os lugares da sociedade tido, em seus espaços de encontros contraditó-
desigual se encontram e se afrontam: são rios e conflituosos que trazem respostas por suas
símbolos e antissímbolos, em duelo na pai- tensões, estas de promoção de possibilidades en-
sagem urbana, revelando distinções de or- tre os diferentes sujeitos portadores de valores,
dem sociocultural e econômica. (BARBO- identificações gostos e práticas socioculturais. A
SA, 2012, p. 31). cultura seria resultado desses encontros de sabe-
57
res e fazeres da diversidade dos modos de vida, de gerar vitalidade cultural e econômica na vida
sendo construída no movimento das relações so- urbana dos cariocas. Seu discurso é aquele que
ciais que promovem a significação diferente do diz acreditar na “voz das ruas”, oferecendo opor-
ser-no-mundo. Mas, a existência do mundo a tunidades, por exemplo, para grafiteiros, ativis-
partir do ser que o constrói, enfim, nas práticas tas culturais11 que foram/são convidados a par-
vividas que, se forem mortas, o mundo também ticiparem de suas ações , como a que aconteceu
morrerá. em 18 de fevereiro de 2014, quando esse perfil de
público participou da construção de um decre-
Entretanto, a aceitação das diferenças não pode to batizado de GrafiteRio12, assinado pela prefei-
ser confundida com a sensibilidade seletiva, em tura. O decreto13 dá alguns critérios e diretrizes
ações diretas que acabam se configurando em normativas para as intervenções dos grafiteiros:
uma realidade que mostra divergência no trata- “libera” postes, colunas, muros, pistas de skate
mento de alguns sujeitos em comparação a ou- e tapumes de obras; ao mesmo tempo em que
tros. Em uma melhor explicação, podemos per- proíbe a grafitagem em muros considerados pa-
ceber que o tratamento sobre certas atividades trimônios históricos, viadutos, fachadas de imó-
culturais em alguns corpos segue pelo lado da veis públicos e tombados. O decreto ainda traz a
dureza (por exemplo, para os Xarpi), enquanto ideia de revitalização de espaços públicos de “alto
para outros o tratamento mostra uma ação de potencial turístico”.
combate (por exemplo, para os grafiteiros), den-
tro de um sentido de ações violentas justificáveis Ainda sobre a Prefeitura da Cidade do Rio de Ja-
para aqueles que não se mostram favoráveis as neiro e a suas legislações que (des)criminalizam
leituras do contexto hegemônico, ao mesmo tem- as grafias marginalizadas urbanas, podemos
po em que formam uma existência de orientação problematizar situações de tratamento desiguais
para aqueles que podem ser (ou não) potenciali- de iniciativas que acontecem antes da Lei Grafi-
zados dentro do quadro do poder do Estado e do teRio. No dia 6 de novembro de 2013, o cantor
mercado. internacional Justin Bieber foi autuado conforme
as leis daquele período, após ter feito um grafite
Não podemos esquecer que, na cidade do Rio de no muro do antigo Hotel Nacional, que fica no
Janeiro, projetos como os que restauraram as le- bairro de São Conrado (Zona Sul carioca). Mas,
tras do Profeta Gentileza7, em junho de 20108, antes da autuação e da suposta multa paga, o
surgem na esteira da investigação conduzida pela cantor foi convidado pela Prefeitura da Cidade
Polícia Federal sobre o piXo no Cristo Redentor9, do Rio para grafitar (ou quem sabe até pichar) o
que aconteceu em abril de 2010, e que pode ter muro da Vila Olímpica do Vidigal, já que, segun-
sido um tipo de manobra que o poder público do a grande mídia, na Zona Sul a prática da gra-
indiretamente empreende, em forma de “cura- fitagem seria comum14. É importante dizer que
doria”, com foco nos projetos artísticos e/ ou de para além do convite da Prefeitura para grafitar
conservação e limpeza na cidade. ou pichar em equipamentos públicos, e dentre as
variadas chacotas a partes sobre o cantor cana-
Essa cotidiana complexidade sociocultural e polí- dense “ser” um “rebelde”15, não podemos deixar
tica também pode ser vista em iniciativas como o de perceber o tratamento diferenciado sobre esse
Instituto EixoRio10, espaço construído com o fim tipo de figuração, pois ainda com a presença de
58
seguranças particulares (que estariam ali para Outro caso de tratamento de comoção aconteceu
afastar os paparazzi), Bieber16 praticamente re- após uma irreversível tragédia. No dia 20 de julho
cebeu escolta policial para terminar seu desenho, de 2010, Rafael Mascarenhas, jovem rapaz, músi-
antes de ser autuado pela Polícia Civil. O cantor co, morador da Zona Sul carioca e filho da atriz
não chegou a ir à delegacia, e tão pouco sofreu Cissa Guimarães, morreu após ter sofrido um
algum ato contra seu bem-estar físico e/ ou men- acidente por atropelamento. Rafael recebeu ho-
tal. menagens de familiares e amigos no próprio lo-
cal de acidente – o Túnel Acústico da Gávea, tam-
Sobre o fomento dessa postura, não podemos bém na Zona Sul carioca19. Para além de músicas,
deixar de comentar sobre o brusco tratamento danças, orações, como mostrava afinidade com a
desigual midiático realizado pelos meios de co- cultura urbana, uma das homenagens feitas para
municações hegemônicos e de massa, que explo- Rafael foram em formas de grafites e pichações,
ram situações como esta do Justin Bieber para inclusive da própria Cissa20, num clamor comum
“afirmar” ideias contraditórias sobre os argu- a qualquer pessoa que perdeu alguém querido. A
mentos das “justiças sociais”. No dia 4 de feve- homenagem seguiu para algo duradouro, já que
reiro de 2014 a âncora do telejornal SBT Brasil amigos grafitaram e escreveram com sprays pelo
Rachel Sheherazade fez declarações que infrin- túnel mensagens para o jovem falecido.
gem os Direitos Humanos, quando defendeu a
ação de “justiceiros” que amarraram um jovem Tanto nos casos caprichosos de Justin Bieber,
que estaria furtando pela região do bairro do Fla- quanto na infeliz fatalidade ocorrida na família
mengo (Zona Sul carioca). A âncora chamou o de Cissa Guimarães, o que nos cabe a questio-
jovem negro e aparentemente morador de rua nar é a reação da Prefeitura carioca, que não só
de “marginalzinho”, e explicou que “a atitude prontamente cedeu as paredes para tais ações,
dos vingadores é até compreensível”17. A repórter mas também mobilizou a máquina pública com
ainda legitima o contra-ataque, como ela mesmo propostas e aprovações de mudanças (por exem-
argumenta, sobre a “legítima defesa coletiva”. plo, a do nome do túnel). Essa seletividade mos-
Ainda com o mesmo canal, telejornal e repór- tra que apenas para alguns sujeitos, por alguma
ter, em novembro de 2013, quando noticiou que razão e/ ou licença, tem ou ganham o direito de
Justin Bieber grafitou na cidade do Rio, Rachel ter sobre a cidade suas marcas, sejam estas esté-
Sheherazade disse que o “astro da música pop” ticas ou até epitáfios. Em outras palavras, quem,
é apenas um menino prodígio com problemas, por se expressar com grafias em algum muro que
e mesmo que esteja “irreconhecível” por suas não é convidado para fazê-lo, através de tintas
atitudes de “Bad Boy”, o cantor estaria apenas e/ ou sprays, deve sofrer humilhações físicas e
se encontrando e passando pela “Síndrome da moralistas? Quem por pichar o muro com tinta
Adolescência”, fase turbulenta que mexe com os spray deve ser assassinado? Quem, por ter fale-
“hormônios em ebulição, conflitos, agressivida- cido deve ganhar no mesmo muro, com a mesma
de...”, devido a busca da própria identidade. No tinta e/ ou spray, deve receber sua lápide, palmas
fim, Sheherazade ainda faz um comovente pedi- ou qualquer tipo de clamor, inclusive das institui-
do: “Peguem levem com Justin! O menino está ções públicas?
crescendo!”18.
Existem muitas histórias trágicas ao longo dos
59
anos na cultura da piXação - podemos dar exem- que podem proteger jovens grafiteiros confundi-
plos das mortes de: Bloody, assassinado em Ma- dos com pichadores, e não lembra das denún-
dureira (Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro); cias feitas pelos piXadores, já que não entram no
Vuca, morto após cair do quinto andar de um sentido de paraíso, mas sim de caos, comumente
prédio no Centro do Rio; Caixa, assassinado em tratados como “caso de polícia”, em fundamentos
São Gonçalo (município da região metropolita- que nos levam a posicionamentos da existente
na) a tiros, após ser perseguido por ter piXado (mesmo que não oficialmente) “pena capital”, re-
em uma casa. Muitas homenagens para esses e alizada em nosso cotidiano, também fomentada
muitos outros já aconteceram e acontecem, en- pelo Estado24: reivindicador e monopolizador do
tretanto, sem receber nenhum consentimento da uso da força física (WEBER, 1967).
Prefeitura; pelo contrário, pois muitas dessas ho-
menagens a estes heróis de narrativas épicas já A principal ideia jurídica no GrafiteRio surge logo
tão esvaziadas em nosso tempo civilizado, foram no Parágrafo único do Artigo 1º do documento,
removidas, logo, são invisíveis em comparação a pois tem como objetivo a coibição das pichações:
cidadela-monológica-dos-licenciados e apagadas
pela conservação pública. (COELHO, 2015). Parágrafo único. O “PROJETO GRAFI-
TE” estimulado pelo Poder Público, imple-
Está nítido que a mesma instituição que per- mentará políticas educacionais e culturais
segue, bate, assalta e até mata um piXador, é a com a finalidade de inibir a prática de pi-
mesma que licencia uma “pichação do bem”. Não chações que criam no ambiente urbano a
podemos esquecer que a lei GrafiteRio dialoga poluição visual, transformando os espa-
sobre a ideia do “Graffiti Paradise21”, em uma ços pichados em locais para a pratica do
legislação para atender certo tipo de estética, grafite como arte urbana, possibilitando
a partir de uma curadoria, com a pretensão de a identidade artística e cultural aos seus
inibir a piXação, ou seja, legisla sobre o tipo de praticantes.
ação, o que pode parecer um sentido de julga-
mento sobre “o que está fazendo”, e até “quem A liberação de “vanguarda” feita pela prefeitura
está fazendo”; sendo mais nítido, podemos dizer apenas para algumas superfícies acaba não ama-
que o decreto legisla em qual superfície o artista/ durecendo a discussão sobre as estéticas gráficas
arteiro poderia ficar liberado a fazer. das paredes urbanas, e tão pouco descriminaliza
os praticantes da arte rueira com os sprays. A
Voltando a problematizar tais espaços de cura- ideia de que as piXações são simplesmente cria-
doria cultural da “sociedade civil da prefeitura”, doras de “poluição visual” no “ambiente urbano”
o Instituto Eixo Rio, que foi criado e articulado exibe um julgamento curatorial e não jurídico. O
pela prefeitura, e que diz estar junto ao conjunto decreto também deixa passar o questionamento
da movimentação cultural urbana (dando como sobre o que seria arte, e enxerga o grafite apenas
exemplo os grafiteiros), podemos dizer que essas como uma “arte urbana”. Essa falta de discussão
iniciativas transmitem ideias complexas e con- vem seguida de ausência de uso de conceitos, sem
traditórias, através de afirmações como “a Prefei- qualquer tentativa de realizar alguma muscula-
tura do Rio reconhece, valoriza e legitima a arte, tura teórica, pois afirma que o Xarpi não oferece
desde que com critérios”22, em atos civilizatórios23 “identidade artística e cultural ao seu praticante”.
60
O resultado desse equivocado decreto se dá no outros que exibem outras cartografias, que per-
cotidiano da amputação e até genocídio sofrido maneceram por um, dois, dez, 20 anos, e foram
pelo público juvenil brasileiro. Podemos ver tal apagados pela conservação dos espaços públicos.
situação, por exemplo, na matéria “Grafiteiros Em outras palavras, podemos dizer que nenhum
apanham e são humilhados ao serem confun- mapa mapeia a totalidade da cidade, e no limite,
didos com pichadores” que logo no título já exi- a edita e invisibiliza outras compreensões.
be a ideia da justificação de uma “pena capital” se
o caso tivesse acontecido com pichadores; ou até Portanto, podemos dizer que o decreto GrafiteRio
mesmo algumas que seguem com o título “Rio: não problematiza a legitimação do pensamento
relógio da Central do Brasil sofre pichação”, comum sobre o almejo de tortura (e até a mor-
induzindo a entender que as paredes de certos te) da população para os sujeitos da cidade que
lugares padecessem, sangrem, deterioram-se, se percebem como ativos através do Xarpi. Ne-
enfim, valessem mais do que a vida das pessoas25. nhum modo de vida pode afirmar e/ou renovar
suas tradições sem a presença de novos modos
Também podemos voltar à introdução do respec- de vida, sejam eles “legitimados” como os grafi-
tivo artigo, e recomentar a situação que ocorreu teiros, ou até os altamente criminalizados como
com os três jovens que estariam grafitando, den- os piXadores26. Tanta um quanto outro exibem
tro do aparato legalista e esteticamente morali- grandes riquezas de desvendamentos do que so-
zador da lógica da “beautiful city”, que acontece mos, onde estamos e como vivemos, dentro de
(como já comentamos) junto a uma força epistê- diferentes redes de sociabilidade.
mica afinada para o capital turístico, que reforça
certos paisagismos da cidade, diminuindo ou até Através de legendas imaginárias, que definem
nem reconhecendo outros lugares, no melhor es- fronteiras e constrói identidades territoriais, em
tilo “graffiti sim” - pois é belo, colorido, mostra múltiplas configurações, experiências no espaço
o novo tipo de realizar artes plásticas, se mos- vivido, em ações que são criminalizadas27, o piXo,
tra como práticas de “astros da música Pop”, ou junto com sua rede, traz consigo um universo
até como um memorial urbano, no caso infeliz acolhedor, no fundamento que vai para além de
ocorrido na família da atriz Cissa Guimarães, - ao receber aqueles que estão à margem, pois cria
mesmo tempo que “piXação não” – porque é feio, um espaço de pertencimento, onde a prática tor-
sujo, não oferece “identidade artística e cultural na possível uma zona de invenção de mundo.
ao praticante”, não mostra informação/compre- Sobre esse sentido de acolher, iremos problema-
ensão para os estrangeiros de outros países e da tizar o maior público que é atraído pelo Xarpi, ou
própria cidade. seja, as juventudes cariocas negras, residentes de
áreas populares (favelas e subúrbios) e transeun-
Isso se consolida na ideia de que apenas um tes na manifestação cultural urbana que, para
mapa dá conta de explicar a cidade. Entretan- além da piXação, podem estar circulando e/ ou
to, antes do falecimento de Rafael Mascarenhas, participando de Torcidas Organizadas, Bate-Bo-
ou seja, antes de seus amigos e familiares dese- las, Bailes Funk, dentre outras atividades que tra-
nharem, grafitarem ou picharem as paredes do zem uma diversa obragem estética, ritualística e
Túnel da Gávea, já se mostravam presentes os gestual.
Xarpis de Nado’s, Tico, Hair, Wrangler e alguns
61
Em seus quarenta anos ininterruptos de existên- que também povoam as superfícies de nos-
cia – tanto pelo lastro geográfico que ocupa as sa cidade sem, por isso, convocarem seus
cidades brasileiras (como já dissemos no subca- desejos de extermínio. Objetarão que estes
pítulo anterior), quanto pelo nível de reverbera- não escreveram sobre os muros das casas
ção das irradiações coletivas sobre um corpo sem das pessoas, nem nas janelas dos aparta-
subalternização aos regimes da racionalidade mentos, apenas em muros das linhas dos
elucidada – o piXador pôde constituir a lógica da trens, viadutos, postes, tapumes. Tudo
sua escrita como uma cultura popular jovem, em bem, em todo caso, parece-me um tanto
que a piXação vira um depositário fértil, de sabe- pouco crível que um policial possa retirar
doria sem autoria, dispersa e eloquente. as roupas, pichar o rosto, violentar, alguém
que esteja escrevendo ‘LEIA A BÍBLIA’, não
Dentro dessa complexidade, podemos problema- importa onde. Ou seja, suspeito que as jus-
tizar sobre as revoltas disseminadas a cerca esse tificativas materiais sejam dissimulações
fenômeno, que repousa não somente nas justi- discursivas que mantém veladas as razões
ficativas mais repetitivas que, criminalmente, a epistemológicas mais decisivas. (COELHO,
legislação a enquadra (depredação do patrimô- p. 184, 2015).
nio público e particular, danos ambientais), mas
também no choque epistêmico que a subjetivi- Assim, podemos dizer que, na maioria das vezes,
dade da sua escrita nos impõe. Gustavo Coelho as aproximações sobre esse tipo de fenômeno se
(2015) faz uma leitura que nos coloca sobre essa colocam como contraditórias, logo, não enxer-
perda da propriedade do sentido, faculdade prio- gam as potencialidades epistêmicas e descoloni-
ritária para constituir o homem moderno no zadas dessas ações contemporâneas juvenis, ricas
mundo, e que, a partir daí, poderá empreender a em provocar e sobreviver ao mundo capitalista, a
cruzada de seus acúmulos. partir das cotidianas tensões com a “máquina”
de captura/colonizadora, impostas socialmente
A partir de alguns exemplos, Coelho faz uma crí- na educação, nas formações, no “reino da huma-
tica nos posicionamentos sobre alguns corpos nidade esclarecida”, que tem o objetivo de impe-
que, assim como os Xarpi, se manifestam em dir o agir sobre a dominação das lógicas civiliza-
superfícies das cidades, visto que não recebem o tórias das relações modernas. (COELHO, 2015).
mesmo autoritário tratamento:
Frantz Fanon, que refletiu acerca da natureza
Tal raciocínio, a meu ver, fica mais eviden- do processo colonial africano do século XX, nos
te, quando percebemos que não há qual- mostrou situações que podem ser debatidas so-
quer campanha de repressão contra as ins- bre a tal dominação capitalista contemporânea,
crições, tão ilegais quanto, que, movidas está (ainda) de argumentos totalitaristas, advin-
por uma vontade persuasiva, pretendem das de raízes coloniais. Segundo o autor, o colono
enunciar sentidos preciosos, como por deve ser combatido com a violência, pois aceitan-
exemplo os ‘SÓ JESUS EXPULSA O DE- do de forma passiva a perda de seus bens (mate-
MÔNIO DAS PESSOAS’, ‘LEIA A BÍBLIA’, riais e imateriais), o “homem de dentro” sofrerá
‘COMPRO SEU CARRO BATIDO’, ‘JOGA- com a tirania da colonização. Em suas próprias
SE BÚZIOS’, ‘TRAGO PESSOA AMADA’, palavras: “explodir o mundo colonial é doravante
62
uma imagem de: ação muito clara, muito com- ção da palavra reunião, é a gíria usada no univer-
preensível e que pode ser retomada por cada um so da pichação para identificar os encontros com
dos indivíduos que constituem o povo coloniza- dos Xarpi. A partir desse encontro entre Xarpis
do.”. (FANON, p. 30, 1968). de diferentes lugares28, o objetivo direto seriam
as trocas entre as diferentes assinaturas dos Xar-
Diante do fenômeno e o público alvo em foco, pis, principalmente com aqueles que alimentam
ou melhor, analisando-os como descendentes suas pastas no decorrer do tempo da prática29.
de colonizados, e que hoje realizam uma prática Outra ação interessante nas reu seria seu rom-
que não é capturada pelos novos colonos da con- pimento com fronteiras simbólicas, pois os piXa-
temporaneidade, o Xarpi é enxergado como uma dores moradores de bairros e/ ou favelas vincu-
violência, por mostrar uma percepção nada paci- ladas a diferentes30 facções armadas de comércio
fista (já que estamos falando de um crime), mas de drogas ilícitas31, encontram-se sem restrições.
também porque (talvez) possa levar à atividades
(des)colonizadas, ação que surge concomitante Esse “não saber muito bem”, coloca uma socieda-
com o sentimento de independência, que absorve de historicamente colonizada diante do choque,
a questão prática e imediata sobre as possibilida- quando o Xarpi pode iniciar uma fantasia dos
des de liberdade. homens colonizados: estes que desejam o fim do
colono, e passam a ter “sonhos agressivos”. (FA-
Essa independência provoca qualquer pensamen- NON, 1968). Esse sentimento surge com a ideia
to que siga para o colonialismo. A busca pela in- de coletividade, que abdica da sua escolha indi-
dependência se dá no processo de descolonização, vidual, e traz razões de sua condição de Xarpi –
edificado pelo colonizado, com sua própria parti- jovem, morador de favela, apreciador da cultura
cipação na libertação, momento que o reprimido urbana marginal (o funk e seus bailes; os espa-
se torna o ator principal, vira protagonista do ços de cultura hip-hop; o trabalho independente)
seu próprio processo histórico, em uma constru- –, em uma perspectiva para além das escolhas
ção conjunta, liberando uma angustia que existe conscientes32.
dentro de si, sem nenhuma compreensão amigá-
vel entre as duas partes (colono X colonizado). Empiricamente, podemos dizer que a prática do
Quando os Xarpi expõem na cidade suas obras, Xarpi é uma prática popular carioca, que habi-
geradoras da “desordem absoluta”, o processo de ta obras inconclusas, em atos simbólicos que se
independência se torna uma reparação moral e encontram em lugares antisimbólicos, corpóre-
consagra a dignidade do sujeito colonizado, ainda os, materiais, vínculos, de interpretações e per-
que deixe a sociedade em aberto, já que tais sujei- fis múltiplos na sociedade, mas principalmente
tos colonizados, agora, independentes por serem pelos sujeitos que sofrem com a subalternização,
Xarpi, ainda não construíram e nem afirmaram o que gera ações/fruições estéticas, com um ma-
seus valores. nancial de saberes, formas de vida e artes do fazer.
Talvez as possibilidades de construções podem Apesar de contribuir com toda diversidade iden-
ser ensaiadas nas iniciativas piXadoras que vão titária no ser carioca - através de obragens es-
para além do piXo, como os momentos de visita téticas e ritualísticas que desafiam as linguagens
entre seus participantes, as camadas reu: redu- existentes no esclarecimento, em atividades de
63
superação das visões segregatícias, acolhendo vi- uma questão fundamental na construção do pa-
das que, no Brasil, tem um elevado índice de ho- radigma moderno: a ideia do “Bem X Mal”, pro-
micídios (jovem, negro e pobre) -, o Xarpi acaba pagada pelos grandes meios de comunicações de
sendo criminalizado oficialmente pelo judiciário massa (patrocinados pelos econômicos espaços
em duas leis: na Lei Anti-Pichação e no Decre- empresariados) e na teologia cristã, no concei-
to GrafiteRio. A primeira segue pelo sentido de to de que a falha do bem resultaria o mal. Esse
limpar a cidade, a segunda segue pela moral gen- contexto acaba abordando a piXação como algo
trificadora, usando uma cultura da diversidade individual, e não problematiza a situação de que
urbana (o grafite) para argumentar a posição de as grandes cidades do mundo compartilham a
uma cidade positivista e igualitária no sentido do mais de quarenta anos práticas parecidas. Nesse
enquadramento de algumas regras. sentido, podemos problematizar as representa-
ções comuns das positividades sobre os bandidos
A “escrita fora da escrita” – como explicou Gus- de uma cidade, que para povo, segundo Fanon,
tavo Coelho (2015) sobre a filosofia da linguagem realizam guias e esquemas de ações “heroicas”:
trazida pelo filósofo Maurice Blanchot - exibe
todo esse jogo de visibilidade com invisibilidade, E é inútil, evidentemente, dizer que tal
em um enigma presente, a partir do drama da herói é um ladrão, um crápula ou um de-
mentalidade moderna onde tudo do mundo pre- pravado. Se o ato pelo qual este homem é
cisa ser esclarecido. Tudo precisa ter a certeza e perseguido pelas autoridades colonialistas
a convicção do que é. O que está fora desse regi- é um ato dirigido, exclusivamente contra
me de compreensão poderá justificar, o aniqui- uma pessoa ou um bem colonial, então a
lamento, o assassinato, o extermínio da mesma. demarcação é nítida, flagrante. O processo
Dar tiro, porrada, barradas de ferro nas pernas de identificação é automático. (FANON, p.
para “aprender”, ou a lógica de, como disse um 53, 1968).
dos agressores dos três jovens, identificados pos-
tumamente como grafiteiros: “Trabalhando o dia Mesmo com a opinião pública sendo gerada em
todo, seu arrombado! Tu acha que a gente é o torno da “manifestação gentil”/ “atos pacificado-
quê, comédia?”. res”, da lógica capitalista, que não enxerga com
as devidas ferramentas a precária vida cotidia-
A busca dos piXadores é por acolhimento, den- na, esta que reafirma o citado jogo dual (“Bem X
tro de um mundo pouco acolhedor, criando uma Mal”), acaba colocando a vida do jovem em ex-
zona de existência que seja possível ter reconhe- pansão como merecedores de castigos.
cimento, ter uma vida ativa, dentro do sistema
que tende a escravizar seus sujeitos. Esse regi- É importante reconhecer os antissímbolos da
me da existência, concomitante com a redução cidade, como as manifestações realizadas pelos
da vida à lógica econômica, os Xarpis acabam Xarpis, que territorializam e reinventam a cul-
agindo na mesma dinâmica de qualquer cultura tura urbana, estas que promovem expressões
popular, pois cria autonomamente um berço de legítimas de uma cidade contraditoriamente
acolhimento para existir. criativa e corajosa, onde o poder público deve se
empenhar em garantir que estas ações não se-
Também não podemos deixar de comentar sobre jam simplesmente criminalizadas, amputadas ou
64
exterminadas, em uma possibilidade de políticas te, práticas culturais que são diferenciadas por
que possa acontecer pelo conjunto dos próprios alguns autores (as) como Giathy (1999), Lara
sujeitos, em formulações e execuções capazes (1996), Lodi (2003) e Ramos (1994). Por exem-
de (re)conhecer estas práticas culturais em suas plo, segundo Lara (1996), a pichação, aos poucos,
múltiplas identidades e representações, claro, em São Paulo, foi deixando de ser “sinônimo de
fora do campo da colonização. graffiti” durante os anos de 1990, período em que
novos grupos com identificações próprias foram
Enfim, finalizaremos por aqui de forma incon- surgindo, e trazendo diversas inscrições.
clusa, afirmando a importância das representa- 4 Apesar de ser usada na língua portuguesa com
ções socioculturais das cidades - estas que, nas “ch”, iremos escrever a palavra pichação (e suas
suas múltiplas contendas, são valorizadas por derivações, por exemplo: piXar) com a letra “X”
suas diferenças, no encontro entre os distantes maiúsculo, em afinidade com o trabalho de Gus-
e os próximos -, a partir das possibilidades que tavo Coelho em PiXação: Arte e Pedagogia como
respeitam à alteridade de acontecimentos, em Crime (2009), onde submete a grafia de Massi-
mediações de sociabilidades transformadoras, mo Canevacci no livro Culturas eXtremas (2005).
adentro dos reconhecimentos do campo de dis- Esse modo de escrita geralmente é usado quando
putas de imaginário sobre o sentido do mundo e estamos falando do Xarpi ou da piXação como
das provocações das lutas simbólicas, estas que uma cultura coletiva. Sendo assim, a partir de
se legitimam na posição do iluminar, ou melhor, agora, muitas das vezes identificaremos esses
do denegrir sobre as iniciativas do devir. atores da cultura urbana como Xarpis.
5 O Xarpi é a piXação, e ser Xarpi é ser piXador.
Assim como a rua diz, o Xarpi é sempre no singu-
Samuel Lima é mestrando em Educação, Cultura lar, significando fazer parte da cultura da piXa-
e Comunicação em Periferias Urbanas (Faculda- ção no Rio de Janeiro.
de de Educação da Baixada Fluminense/ UERJ) 6 Segue o link de uma notícia sobre um momento
e também é produtor e idealizador da Fortaleceu de conflito, trazido pela mídia apenas com foco na
Produções. criminalização dos atos de rebeldia dos banhistas
que não moravam na Zona Sul. Disponível em:
http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/
NOTAS
nos-anos-90-arrastoes-nas-praias-da-zona-sul-
do-rio-levaram-panico-aos-banhistas-10838744
1 Link da matéria “Vídeo mostra grafiteiros sen- (acessado em 01/08/2015). Pouco antes desse pe-
do torturados no Centro do Rio” - http://oglobo. ríodo, a Rede Manchete realizou um documentá-
globo.com/rio/video-mostra-grafiteiros-sendo- rio no fim de 1980, que mostra bem esse quadro
torturados-no-centro-do-rio-18550712#ixzz- dual da cidade https://www.youtube.com/wat-
3zkMFXipM (acessado em 30/01/2016). ch?v=w7yXtKxDBgU (acesso em: 01/08/2015).
2 No sentido de demarcar. 7 Figura conhecida na cidade do Rio de Janeiro
3 No Brasil, deixando de lado o campo publici- nos anos de 1980, José Datrino, mais conhecido
tário, com seus grandes comerciais em outdoors, como Profeta Gentileza, escreveu frases de amor
prédios, etc, as duas inscrições de rua de maior ao próximo em 56 pilastras. Segue link com um
destaque acontecem pela pichação e pelo grafi- pouco mais de informações - http://noticias.
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espaços públicos abertos (praças, quadras espor- ser humano – por exemplo, apesar de falarem a
tivas, embaixo de viadutos), para favorecer a cir- mesma língua, pessoas da mesma nacionalidade
culação de praticantes de diversos lugares. não se entendem. O autor mostra esse olhar quan-
29 Existem pastas com mais de 30 (vinte) anos do recupera o conceito de Weber, e acredita que o
de idade. Alguns destes acervos pessoais são co- homem é um animal amarrado a teias de signi-
mercializados, pois a cada alimentação, conco- ficados que ele mesmo teceu. O comportamento
mitante com o passar do tempo, mais preciosa a é uma ação simbólica, e a ação social (fluxo do
pasta fica. O documentário de 2011 “Luz, Câmera, comportamento) faz com que as formas culturais
PICHAção” (de Gustavo Coelho, Marcelo Guerra se articulem. O significado das culturas (no plu-
e Bruno Caetano) comenta um pouco sobre es- ral) surge no papel que elas desempenham. Esse
ses, digamos, patrimônios materiais do universo significado é público, porque a cultura é pública.
da piXação carioca (em 42 min. e 29 seg. para
47 min. e 7 seg.). Segue o link do filme - https://
REFERÊNCIAS
www.youtube.com/watch?v=b_MB_CmhjUQ
(acessado em 11/04/2016). AMORIM, Carlos. Comando Vermelho: A História
30 Na história das facções, o Comando Vermelho Secreta do Crime Organizado. 5° Edição. Rio de
(CV), Amigos dos Amigos (ADA) e o TC (Terceiro Janeiro: Record, 1993.
Comando) são rivais devido a disputas dos domí-
BARBOSA, Jorge Luiz. A favela na cena da política
nios das áreas de favela, locais escolhido para a
cultural urbana. Nº 36. Rio de Janeiro: Espaço e
venda de drogas. (AMORIM, 1993). Cultura Nº 36. P.217-234, 2014.
31 Para nós, a denominação tráfico de drogas é
uma interpretação que não traduz os elementos BARBOSA, Jorge Luiz. Considerações sobre a re-
materiais que os significam, e os “conceitos” (for- lação cultural, território e identidade. In: GUEL-
MAN, Leonardo Caravana (org.). Interculturali-
mados pela grande mídia e reforçados nas ações dades. EDUFF: Niterói, 2006.
do poder público) acabam se tornando estereóti-
pos. Entretanto, já existem trabalhos que reali- COELHO, Gustavo. Pixadores, Torcedores, Bate
zam um contraponto sobre estes olhares. Dentro -Bolas e Funkeiros: Poéticas do Enigma no Reino
da Humanidade Esclarecida. In: Revista Visagem
do campo da criminologia crítica, Zaccone (2011)
– Antropologia Visual e da Imagem. Rio de Janei-
penetra no universo da política de drogas e revela ro: UERJ, 2015.
a problemática sobre o combate do comércio de
drogas ilícitas. O autor reflete sobre o preconcei- COELHO, Gustavo. Pixadores, Torcedores, Ba-
to da sociedade com os pobres, estes que quando te-Bolas e Funkeiros: doses do enigma do reino
da humanidade esclarecida. TESE (Doutorado em
são envolvidos com o “tráfico”, acabam presos e
Educação) UERJ. Rio de Janeiro, 2015.
estigmatizados, diferentes dos ricos que, quando
envolvidos na mesma situação, são considerados CRUZ, Valter do Carmo. Itinerários Teóricos so-
como usuários e (muitas das vezes) não são de- bre a relação entre território e identidade. In:
tidos. BEZERRA, Amélia Cristina Alves; GONÇALVES,
Claudio Ubiratan; NASCIMENTO, Flávio Rodri-
32 Muitas das vezes a cultura confunde mais do gues; ARRAIS, Tadeu Alencar. Itinerários Geográ-
que esclarece. Nessa observação, seguiremos na ficos. Niterói: EdUFF, 2007.
teoria de Geertz (2008), pois para ele, um ser hu-
mano pode ser um enigma completo para o outro DOWDNEY, Luke. Crianças do Tráfico: um Es-
tudo de Caso de Crianças em Violência Armada
68
Organizada no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 LEFEBVRE, Henri. O direito a cidade. São Paulo,
Letras, 2003. SP: Moraes, 1991.
WEBER, Max. A política como vocação. In: En-
FRANTZ, Fanon. “Os condenados da Terra”. Rio saios de Sociologia. H. H. Gerth e C. Wright Mills
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. (ORGs). Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Cientí-
ficos, 1967.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas.
Salvador: EDUFBA, 2008. OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Sobre a adesão juvenil
às redes de criminalidade em favelas. In: Vida Sob
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Aspectos da cultura Cerco – Violência e rotina nas favelas do Rio de
popular antiga: Apresentação, tradução e discus- Janeiro. MACHADO, Luiz (ORG.). Rio de Janeiro:
são de alguns graffitis pompeianos. Revista Estu- Nova Fronteira, 2008.
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mestrado da Universidade Federal de Santa Cata- vens na Metrópole: etnografias de circuitos de la-
rina, Florianópolis, 2007. zer, encontro e sociabilidade. São Paulo: Terceiro
Nome, 2007.
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teoria interpretativa da cultura. Rio de Janeiro: RAMOS, Célia Maria Antonacci. Grafite, Pichação
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FAUSTINI, Marcus. O Novo Carioca. Rio de Janei- Duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Ja-
ro: Mórula, 2012. neiro: Editora UFRJ, 1999.
69
Novas Narrativas
O presente estudo realiza em seu marco teórico os debates: racial, filosófico, histórico e jurídico do
Movimento de Mulheres Negras do estado do Rio de Janeiro no período da Constituinte de 1988,
evidenciando suas participantes, pautas políticas e a efetiva contribuição no exercício pleno da
cidadania por intermédio da lei. A partir disso, busca-se visibilizar a bibliografia de intelectuais
compromissados com a luta antirracista, como também desconstruir o ideário do senso comum de
que a ciência jurídica não tem interesse nas reflexões e produções das ciências humanas e nas pautas
dos movimentos sociais.
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71
dadora do MNU – Movimento Negro Unificado e “As Aqualtunes estudavam para conhecer
militante do movimento de mulheres negras na e avaliar os processos usados pelas ideo-
época revela: logias (no plural) de dominação, crian-
do, paralelamente, uma contraideologia
“No meio do movimento das mulheres e uma postura de combate, que ajudasse
brancas, eu sou a criadora de caso, por- a desmitificar valores equivocados, que a
que elas não conseguiram me cooptar. No sociedade reproduz sobre as mulheres ne-
interior do movimento havia um discurso gras. A Reunião de Mulheres Aqualtune
estabelecido com relação às mulheres ne- era um encontro de preparo, de formação,
gras, um estereótipo. As mulheres negras de formulação de estratégia de combate
são agressivas, são criadoras de caso, não à dominação de raça e sexo. A tática era
dá para a gente dialogar com elas, etc. E ‘infiltrar-se’ nas entidades reivindicativas,
eu me enquadrei legal nessa perspectiva aí, para dar fundamento às reinvindicações e
porque para elas a mulher negra tinha que aos discursos, algumas vezes somente de
ser, antes de tudo, uma feminista de quatro palavras bonitas e frases de efeito.” (DEUS
costados, preocupada com as questões que Apud PEREIRA, 2014, p. 211)
elas estavam colocando.” (JORNAL NACIO-
NAL DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICA- No ano de 1980 surge o grupo Luiza Mahin, o
DO, 1991, p. 09) mesmo estava relacionado com o Movimento
Negro Unificado (MNU) e foi idealizado por Lélia
Referente à militância das mulheres negras no González e Zezé Motta. Em 1982, Lélia González
estado do Rio de Janeiro, no ano de 1978, desta- deixou a comissão executiva do Grupo de Traba-
cava-se o REMUNEA, que significava Reunião de lho Luiza Mahin (PAULA, 1986), para fundar em
Mulheres Negras Aqualtune, o mesmo se reunia junho 16 de junho de 1983 o NZINGA: Coletivo de
inicialmente no Instituto de Pesquisas das Cultu- Mulheres Negras/RJ. Ao tratar da sua relação com
ras Negras (IPCN). O grupo tinha como objetivo o Movimento Negro, Lélia Gonzalez (JORNAL DO
“fortalecer a consciência crítica e gerar conteúdo MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, 1991) relata:
sobre a questão racial e feminina”. (DEUS Apud
PEREIRA, 2014, p. 211) “Precisamos ter paciência revolucionária
para verificarmos o seguinte: olha, sabe,
As mulheres que faziam parte desse movimento não queira abraçar o mundo com pernas e
eram: Azoilda Trindade, Cecília Luiz de Oliveira, braços, porque não dá jeito e, a partir daí,
Cristina Daniel da Cruz, Édila Silva das Virgens, você tem a consciência histórica da tempo-
Estela Costa Monteiro, Irani Maia Pereira, Jure- ralidade, do processo, o que vai te permitir
ma Gomes da Silva, Léa Garcia, Suzete Paiva dos ter muito mais tranquilidade no que diz
Santos, Oir Nascimento, Shirlei P. da Silva, Vera respeito a tua inserção no movimento. Você
Lúcia de Nova Iguaçu, Pedrina de Deus, dentre adquire uma sabedoria. Você verifica a sua
outras. (DEUS Apud PEREIRA, 2014) temporalidade, seu tempo de inserção, o
que você pode fazer, e tem a humildade de
Pedrina de Deus (DEUS Apud PEREIRA, 2014) em dizer: eu não posso dar essa contribuição
entrevista concedida a Amauri Pereira explicita: e darei com todo o carinho, mas não sou o
72
único, não sou o salvador da pátria. Porque medida em que os debates, as reflexões e
entra muito aí aquela visão centralista, eu o embasamento que norteiam nossa atua-
diria até fascista de quem se acha o dono ção devem estar centrados em dois eixos: o
da verdade. Graças a essa visão distorcida primeiro – a questões do Gênero: SOMOS
da realidade tem ocorrido lutas internas MULHERES – e como tal submetidas à dis-
terríveis, cobranças absurdas (...). criminação sexual por que passam todas
as mulheres, independente de raça etnia,
Eu vejo meu próprio caso, eu fui muito as- classe social ou credo religioso. O segundo
sim, é uma autocrítica o estar em todas, me – a questão da Etnia: SOMOS NEGRAS – e
jogando loucamente, e meu projeto pesso- o que nos diferencia das demais mulheres
al se perdeu muito, agora eu estou catan- não é só a cor da pele mas a IDENTIDADE
do os pedaços para poder seguir a minha CULTURAL. E é para resgatar esta identi-
existência enquanto pessoinha que sou. E a dade de MULHER NEGRA, que precisamos
gente sai muito ferido e machucado dessa nos organizar a parte sim. Aprofundar as
história toda.” (JORNAL DO MOVIMENTO questões específicas, perceber onde, como e
NEGRO UNIFICADO, 1991, p. 9) quando somos oprimidas e partindo deste
específico participarmos mais fortalecidas
O NZINGA: Coletivo de Mulheres Negras/RJ ti- da luta geral.” (NZINGA INFORMATIVO,
nha como objetivo a discussão de gênero e raça 1988, p.02)
entre mulheres negras pobres de classe média,
alcançando enorme expressão nacional. O mes-
mo assumiu um posicionamento feminista e era
formado por: Ana Garcia, Elizabeth Viana, Ge-
ralda Alcântara, Ivonete, Jurema Batista, Jurema
Gomes da Silva, Lélia González, Helena Maria de
Souza, Mariza Martins Pereira, Miramar Corrêa,
Rosália Lemos, Jurema Gomes, Regina Coeli, Pe-
drina de Deus, entre outras.
73
Periferia era “dar visibilidade aos trabalhos de- dora pelo Partido dos Trabalhadores, no Rio de
senvolvidos pelas mulheres das comunidades, Janeiro, as convidou para serem assessoras. É im-
contribuindo para a sua autonomia”. (ROLAND, portante salientar que nas eleições de 1982, o sis-
2000, p. 241) Sua área de atuação era nas áreas tema de voto era vinculado; quem votasse para
de saúde e educação, privilegiando o combate à governador de um partido deveria votar para os
discriminação contra a mulher e o combate ao outros cargos na mesma legenda para não ocor-
racismo. rer a anulação do voto.
74
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“a criação do Conselho Nacional de Mulhe- Ellen Mendonça Silva dos Santos é graduan-
res Negras em maio de 1950, a ocorrência da em Direito, PUC-Rio e orientanda da profes-
do Congresso Nacional de Mulheres Ne- sora Doutora Thula Rafaela de Oliveira Pires, a
gras no mesmo período – inseridos no âm- qual fomentou a pesquisa pelo Núcleo de Estu-
bito do Teatro Experimental Negro (TEN) dos Constitucionais em parceria com o Núcleo de
-, sob a coordenação de Maria de Lurdes Direitos Humanos, ambos do Departamento de
Nascimento, nos alicerça no debate de que Direito da PUC-Rio. Outros aspectos dessa rela-
já éramos mulheres e negras, do ponto de ção entre movimento de mulheres negras e Cons-
vista argumentativo e da construção iden- tituinte 1987/88 foram desenvolvidos por Ellen
titária, antes mesmo das altercações com o Mendonça em sua monografia de final de curso,
Movimento Feminista e o Movimento Ne- intitulada: “Movimentos de Mulheres Negras do
gro. Rio de Janeiro: amefricanidade, interseccionalida-
de e políticas públicas na Constituinte de 1988”.
A luta, portanto era por direitos iguais, 2015. Departamento de Direito, PUC-Rio.
78
79
LOURENA, ALINE e FAUTISNO, AMANDA (Dire- SANTOS, Natália Neris da Silva. A voz e a pala-
ção). Tão Poucas ou Quase Nenhuma: Mulheres vra do Movimento Negro na Assembléia Nacional
Negras na Política, 2015. Disponível em: https:// Constituinte (1987/1988): um estudo das deman-
www.youtube.com/watch?v=-_q8nXRXK9Q das por direitos. São Paulo. 2015. 205 p. Disser-
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NOGUEIRA, Renato. Sambando para não sam-
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dade do samba e a origem da filosofia. In: SILVA, afroperspectivas filosóficas para pensar o samba.
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de Janeiro: Hexis: Fundação Biblioteca Nacional,
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PEREIRA, Amauri Mendes. Pedrina de Deus: mi- Jurema. O livro da saúde das mulheres negras:
litância e teoria em corpo e alma. In: SILVA, Jo- nossos passos vêm de longe. (organização) Jure-
selina; PEREIRA, Amauri Mendes (Orgs.). O Mo- ma Werneck, Maisa Mendonça, Evelyn C. White;
vimento de Mulheres Negras: escritos sobre os (tradução) Maisa Mendonça, Marilena Agostini e
sentidos de democracia e justiça social no Brasil. Maria Cecília MacDowell dos Santos. Rio de Ja-
Belo Horizonte: Nandyla, 2014. p. 205-217. neiro: Pallas: Criola, 2000. p. 10-11.
80
Artigo
No decorrer do tempo a Arte Popular Brasileira passou por modificações em suas composições. Este
fato deu-se por diversas influências: ambientais, sociais, culturais, políticas e pela disponibilidade
de novos materiais para a criação artística. Esta pesquisa consiste em apresentar, como a arte
popular modificou-se ao longo do tempo e encontrou caminhos para sua adaptação, demonstrando
a importância da Arte Popular Brasileira na contemporaneidade através das diversas fontes de
material. Por diversas vezes a história pessoal de artista popular e o meio que o circula influenciam
na escolha pelo material que servirá de base para a criação das mais diversas obras.
81
dade cortante. Não somos parte do mundo Brasil, compreendida como arte, pois desde os
“ocidental”. Mas também não somos parte tempos mais antigos já existia a produção de ob-
do mundo dos outros, do mundo “oriental” jetos com variadas funções. Dentre essas peças
(seja lá o que isso signifique). Do ponto confeccionadas podemos encontrar: objetos uti-
de vista desses especialistas, que é aceito litários com o objetivo de facilitar ações diárias,
como o ponto de vista do “mundo”, nós, que não foram concebidas como arte (imagem
mesmo aqueles de nós que podem ser vis- nº 01), objetos decorativos e peças para práticas
tos como os melhores, somos um não lu- religiosas.
gar, um entrelugar ou simplesmente uma
ideia fora do lugar. (ALAMBERT, 2015, p.
08).
82
manifestação artística, passou e continuou pas- ram novas técnicas e uso de materiais, citando
sando por transformações. alguns:
A arte que é passada entre gerações não possui • Zé Caboclo (1921 – 1973), inovou nas técnicas
uma garantia de sobrevivência estática. Confor- usando o arame para melhorar a sustentabilida-
me surgem as necessidades de quem a produz, des das peças e o carimbo como forma de assina-
mesmo que vagarosamente, a arte popular mo- tura nas obras (imagem nº 04).
difica-se.
• Manuel Eudócio (1931 – 2016), foi o primeiro
Certamente também uma parte desta arte que aprendiz e desenvolveu trabalhos com caracterís-
ainda resiste ao tempo. Como por exemplo, as ticas festivas e voltados ao humor (imagem nº
cerâmicas de Mestre Vitalino (1909 – 1963), que 05).
continuam a tradição após sua morte através
das mãos cuidadosas de seus filhos e netos. Par- • Zé Rodrigues (1914 – 1977), conhecido também
te de seus descendentes, exemplo Vitalino Filho como Zé Santeiro por ser um dos poucos cera-
(1940), busca manter os mesmos traços na mo- mistas do Alto do Moura a produzir santos.
delagem criados por Mestre Vitalino (imagem nº
02), outros buscam produzir suas próprias cria- • Manoel Galdino (1924 – 1996), desenvolveu pe-
ções. ças surrealistas e para cada trabalho escreveu um
poema (imagem nº 06).
83
não deixam de criar peças exclusivas, exercitan- algo que não possui valor estético. Deste modo
do a necessidade criativa. podemos refletir sobre esta problematização nos
apropriando das palavras do historiador de arte
A arte popular que gera renda e encontramos Ernst Gombrich:
com maior frequência é a construída em fun-
ção do âmbito turístico. Porém, frequentemente Nada existe realmente a que se possa dar o
deixa de ter características próprias para cum- nome Arte. Existem somente artistas. Ou-
prir exigências de comércio perdendo detalhes trora, eram homens que apanhavam um
importantes da cultura local que passa a girar punhado de terra colorida e com ela mode-
apenas em função de trabalhos em série, aproxi- lavam toscamente as formas de um bisão
mando-se manualmente das escalas repetitivas, na parede de alguma caverna; hoje, alguns
que neste gesto assemelha-se a produção industrial. compram suas tintas e desenham cartazes
para tapumes [...] Não prejudica ninguém
dar nome de arte a todas essas ativida-
des, desde que se conserve em mente que
tal palavra pode significar coisas muito
diversas, e tempos e lugares diferentes, e
que Arte com A maiúsculo não existe. Na
verdade, Arte com A maiúsculo passou a
ser algo como um bicho-papão, como um
fetiche [...] (GOMBRICH, 2011, p. 15).
84
ticas próprias, como os ceramistas do Vale do Determinadas peças são produzidas ao mesmo
Jequitinhonha em Minas Gerais, entre os mais tempo em diferentes regiões, não sendo algo ex-
conhecidos: Noemisa Batista dos Santos (1947) e clusivo na ideia de criação, mas distinguindo-se e
suas mulheres comportadas, respeitosas e seus tornando-se restritos em questão ao uso de ma-
homens em poses viris (imagem nº 04), Isabel teriais e função.
Mendes da Cunha (1924 – 2014), Ulisses Pereira
Chaves (1924 – 2006). Além da cerâmica, o Brasil é um país com abun-
dância na disponibilidade de materiais; Minas
Outro destaque é a Cerâmica Marajoara (Ilha de Gerais, com as esculturas feitas de pedra sabão
Marajó/PA, região norte do Brasil) que possuí e a palha de milho para a criação de adereços
uma longa história dividida por períodos de cria- decorativos e utilitários; ao redor do Rio São
ção, cada fase comporta uma variação de técnicas Francisco as carrancas esculpidas em madeira
na modelagem, cor, textura, desenhos e relevos. e inseridas aos barcos como forma de proteção,
A beleza estética gera uma sofisticação aos ob- para espantar os maus espíritos (imagem nº
jetos para rituais, urnas funerárias, peças utili- 06), tendo como seu maior representante Mes-
tárias, decorativas e estatuetas que demonstram tre Guarany – Francisco Biquida dy Lafuente
mesmo com o passar do tempo, características Guarany (1884 – 1987). Em Goiás, as cestarias
místicas, (imagem nº 05). e tecelagem. No sul é frequente a produção em
metalurgia, aproveitamento de porongos1 para
cuias de chimarrão e trançados de couro. As ren-
deiras de bilro no Rio Grande do Norte em Natal
e região e Santa Catarina em Florianópolis. O po-
pular caipira com o aproveitamento do chifre de
gado para armazenar água e pinga, também as
famosas paulistinhas oriundas do Estado de São
Paulo, referindo-se a pequenas imagens medindo
entre 15 a 20 centímetros de altura, geralmente
feitas de barro ou madeira. O artista Dito Pituba
(1848 – 1923) foi um de seus maiores criadores
de paulistinhas.
85
Outra produção artística popular a ser citada são A folia de reis é um bom exemplo que ilustra a
os adereços confeccionados manualmente para importância inerente em cada detalhe na cons-
as comemorações festivas, onde cada detalhe trução dos adornos, suas bandeiras consideradas
possui um significado e a comunidade se une na sagradas onde a cada graça alcançada acrescen-
organização e construção. Quanto a isso, Cattani ta-se uma fita. As fitas também podem ser inclu-
(2006) diz que no instante em que homens, mu- ídas a bandeira durante visitas às casas, demons-
lheres e crianças deixam seus afazeres para revi- trando agradecimento e carinho. E a festa criada
ver seus personagens e contar histórias, a alma e em torno da lenda sobre a morte e ressureição
a devoção do povo se engrandece, destacando a de um boi destaca a variedade de características
importância da criatividade expressiva nas raízes regionais, que em cada parte do Brasil recebe
brasileiras. adereços e nomes diferentes; Santa Catarina e
Paraná: boi-de-mamão, Maranhão, Rio Grande
Os adereços possuem uma infinidade de cores, do Norte, Alagoas e Piauí: bumba meu boi, São
formas e funções, entre alguns citamos, cha- Paulo: boi de jacá, Amazonas, Pará e Rondônia:
péus, máscaras, coroas, bandeiras, vestimentas boi-bumbá, Pernambuco: boi-calemba, Bahia:
e bonecos para outra infinidade de festas, como: boi-janeiro, Ceará: boi-surubim, Minas Gerais e
carnaval (imagem nº 07), comemorações da Se- Rio de Janeiro: folguedo-do-boi, Espírito Santo:
mana Santa, festas de Nossa Senhora, festa do boi de reis, Rio Grande do Sul: bumba.
Divino, festa de São Benedito, Círio de Nazaré,
folia de reis, cerimônias indígenas, cerimônias Pensando ainda dentro da questão sobre a im-
afro-brasileiras, cavalhada, festas Juninas, pro- portância dos detalhes encontramos os bordados
cissões, bumba-meu-boi, festa de São Jorge, festa vibrantes de Madalena dos Santos Reinbolt (1919
de Iemanjá, congada, festa de Parintins, carimbo – 1977), usando agulhas e linhas coloridas teceu
e festas gaúchas. fio por fio sobre trama de estopa2. Construindo
jardins floridos, animais e cenas cotidianas com
incontáveis pontos em relevo feitos à mão. As
obras desenvolvidas por Madalena são conside-
radas as primeiras tapeçarias propriamente bra-
sileiras (imagem nº 08).
Entre muitos artistas escultores temos Maurino tacando fatos da realidade em que se encontram
Araújo (1943), autodidata passou pela cerâmica, imersos. Demonstrando uma estrutura própria,
desenho até chegar à madeira, material no qual com grande parte de suas práticas profissionais
encontrou destaque (imagem nº 09). Acrescen- sendo realizadas por familiares, passadas entre
tando obras criadas por Agnaldo Manuel dos gerações.
Santos (1926 – 1962), esculturas do imaginário
e sobrenaturais de influências afro, Louco Filho No entanto é preciso levar em consideração que
(Boaventura da Silva Filho, 1932 – 1992) escultu- o fato da arte popular ter uma forte ligação com
ras que transitam entre o catolicismo, influências a produção passada entre gerações, não exclui a
afro-brasileiras e o imaginário popular, G.T.O existência de artistas que engajam em criações
(Geraldo Teles de Oliveira, 1913 – 1990) suas fi- autorais sem estarem fixados nos afazeres da co-
guras humanas amontoadas e com frequência munidade, ação crescente na contemporaneidade.
inseridas as formas geométricas, Lafaiete Rocha
(1934 – 2003), suas obras mais conhecidas são No enfoque social, criam-se elementos materiais
uma mistura de humano e bicho. e não materiais: pensamentos, costumes e tradi-
ções. É importante que a arte popular não seja
estudada apenas como uma peça exposta em
museus, o ambiente deve ser abarcado no enten-
dimento como parte de um conjunto estrutural.
Quanto a isso os autores afirmam:
87
No decorrer da história, a arte popular sofreu Registre antes que acabe – Outro aspecto
transformações estéticas e culturais. A indus- salientado por esses autores é que a cultu-
trialização no Brasil, que começou tardiamente ra popular é mais presente no meio rural e
comparado com outros países e se desenvolveu em cidades do interior. Esta questão está
significativamente apenas no século XIX, trouxe associada à noção de que a cultura popular
consigo consequências irreversíveis para a cultu- é rude, rústica, ingênua, enfim, algo que se
ra popular brasileira. opõe aquilo que está relacionado como o
progresso: a civilização. (AYALA, AYALA,
Com o avanço da tecnologia a arte popular re- 2006, p. 14).
cebeu influências mais profundas da cultura de
massa e das novas mídias, o que causa consequ- Ampliaram-se as possibilidades, a utilização de
ências na construção material e criação artística. produtos com outra função inicial e o reaprovei-
As temáticas do fazer artístico popular vão de tamento para a construção de algo com um novo
encontro com o processo de expansão industrial propósito, não necessariamente utilitária, mas
e tecnológica, onde o conteúdo disseminado pe- podendo ser decorativa ou função artística.
los veículos de comunicação, das mídias ocupam
cada vez mais o espaço na elaboração da arte po- O avanço da industrialização não causou apenas
pular atual. opções novas, mas também uma diferenciação
na criação da arte popular brasileira que adqui-
Esse processo de modernização provocou modi- riu uma característica até então inovadora em
ficações nas cidades, onde o acesso a novos pro- sua construção: peças manufaturadas utilizando
dutos e materiais era de fácil alcance à população. produtos industrializados, a união do tradicional
Lina Bo Bardi3 (1914 – 1992) comenta em Tem- e o moderno no mesmo artefato. Deste modo
pos de Grossura (1994, p.12), que bem ou mal rompendo definitivamente com as manifestações
o país se industrializou, confirma que o passado puramente rurais.
não volta, mas que o importante é a continuidade
e o perfeito conhecimento de sua história. As técnicas tradicionais são frequentemente
substituídas, a arte acompanha a instabilidade do
Com o passar do tempo uma nova realidade apa- tempo, de sua época e a nova realidade precisa
receu, a arte popular já não era mais elaborada ser aceita para ser estudada. Ainda é frequente
88
89
Zé Pretinho, arte urbana popular, parte do muro construído pelo artista em Diadema/SP.
Fonte: www.zepretinho.com, acesso em: 2 maio 2015.
Outro artista que podemos citar que recorre ao Cem anos atrás Marcel Duchamp revo-
uso de materiais industrializados como base para lucionou a arte ao deslocar uma roda de
suas criações é: Helenildo Domingos da Silva, co- bicicleta para o contexto de uma exposi-
nhecido por Zé Pretinho (1952). Sua arte urbana ção. Nasceu nesse momento o conceito de
contém características de uma produção popular ready-made4 [...] um novo olhar sobre ob-
que acompanha o desenvolvimento artístico con- jetos comuns pode modificar a experiência
temporâneo, criando de forma espontânea obras do cotidiano, evidenciando que é possível
a partir de diferentes objetos e materiais reciclá- pensar diferente sobre aquilo que parece ser
veis, destacando a utilização de brinquedos, pre- sempre o mesmo. (DANTAS, 2014, s/p.).
dominando as bonecas.
Parte da arte popular passou por um processo de
O objeto quando retirado do seu contexto inicial degeneração, mas ao mesmo tempo novas obras
é reclassificado de modo a servir como um indi- estão surgindo. Um novo olhar surge para quem
cador da evolução e declaração de identidade de vê positivamente as mudanças, quem não con-
uma sociedade. O deslocamento de objetos que clui apressadamente sobre o desaparecimento
carregam uma função inicial para o ambiente das manifestações populares, sendo visto apenas
artístico, é um questionamento que originou-se como uma renovação natural e necessária.
com Marcel Duchamp (1887 – 1968), surgindo a
reflexão sobre o que realmente vemos, a questão Considerações Finais
persiste até hoje com os artistas contemporâneos
apropriando-se de objetos cotidianos e estabele- A partir do momento em que o artista se apro-
cendo um debate entre a arte e o conceito. Quan- pria de materiais que foram descartados pela so-
to a isto, o curador da exposição Ciclos (2014) no ciedade, ocorre uma forma de reciclagem, onde
Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, o objeto ganha uma nova função e valor estético.
Marcelo Dantas, diz: Existe uma profunda relação entre o artista po-
pular e o ambiente a sua volta, que nutre a ne-
90
REFERÊNCIAS
São nessas características inerentes à arte po-
pular que se percebe o forte valor cultural e as AGUILAR, Nelson (Org.). Arte Popular: Mos-
significações produzidas pelo homem e que nos tra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação
permite compreender a vida e a arte do povo. Bienal de São Paulo: Associação Brasil 500 Anos
Artes Visuais, 2000.
91
tural Banco do Brasil - CCBB. São Paulo, 2014. GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de
Janeiro: Editora LTC, 2011.
DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário: A Po-
ética do Delírio. São Paulo: Editora Unesp, 2009. LIMA, Ricardo Gomes. Arte Popular. In: BAR-
CINSKI, Fabiana Werneck (Org.). Sobre a Arte
FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte. Rio de Brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p.
Janeiro: Editora LTC, 2010. 324-345.
FROTA, Lélia Coelho. Pequeno Dicionário da Arte RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro. São Paulo:
do povo Brasileiro: século XX. Rio de Janeiro: Companhia de Bolso, 2012.
Aeroplano, 2005.
92
Artigo
O presente artigo consiste em uma revisão das principais ideias discutidas por Eduardo Natalino
dos Santos e Esther Pasztory sobre a aceitação da arte pré-colombiana pelo Ocidente, seguido
de comparações formais e sociológicas entre obras de arte ocidentais da Idade Média e obras
produzidas por civilizações pré-colombianas. O principal objetivo do texto é demonstrar como
dois tipos de produções tão distintos se assemelham em suas soluções formais, em suas funções
e nos fatores que dificultaram a sua aceitação como obras de arte pelos europeus, destacando a
universalidade de uma ideia de arte a serviço do poder e como meio de persuasão e devoção.
Os povos mesoamericanos desenvolveram escri- blemas que dificultaram a aceitação dessas solu-
tas pictoglíficas, que resultavam da combinação ções pelos ocidentais.
de elementos pictóricos e glíficos. Surgidos prova-
velmente com os Olmecas por volta do ano 1.000 O primeiro problema é a aceitação do sistema
a.C., os objetos mais antigos que contêm essas es- pictoglífico mixteco-nahua como um sistema de
crituras foram encontrados nas regiões atingidas escrita. Alguns estudiosos aceitam apenas siste-
pela expansão olmeca e onde se desenvolveram mas fonéticos de escrita, excluindo registros vi-
as culturas teotihuacana, maia e zapoteca. Nessas suais que não codificam sons. A grande crítica de
áreas surgiram três importantes tradições escri- Eduardo Natalino a esse tipo de pensamento é
tas: a maia, a zapoteca e a mixteconahua1. contra o preconceito do mundo ocidental em re-
lação às escritas não-alfabéticas e a subestimação
Eduardo Natalino dos Santos, no seu texto Os dos recursos específicos que sistemas pictoglífi-
códices mexicas: soluções figurativas a serviço cos e ideográficos podem apresentar.
da escrita pictoglífica, analisa os códices (assim
chamados pelos colonizadores) desenvolvidos Outro problema culmina de outro preconcei-
por algumas dessas culturas, que são registros to ocidental, quando as soluções figurativas
pictoglíficos em formato de livros cujo conteúdo dos tlacuilos são comparadas com as dos artis-
revela temas de grande importância para a so- tas ocidentais e vistas como inferiores por não
ciedade que a produziu, em geral, e para as elites apresentarem perspectiva ou não representarem
governantes, como mitos de origem, histórias, o mundo realisticamente. Eduardo Natalino diz
epopeias, etc. O objetivo do autor é discutir as que certamente essas não seriam as prioridades
soluções figurativas desenvolvidas pelos tlacui- dos tlacuilos, e analisa as duas soluções plásticas
los (escribas) e “demonstrar que tais soluções adotadas por eles: o ponto de vista múltiplo e a
estavam a serviço das prioridades semânticas da vista em corte.
escrita mixteco-nahua”2. O autor cita alguns pro-
93
Fig. 1: Detalhe da Tapeçaria de Bayeux, 1066-1077. Bordado em fios de lã sobre linho. 700 x 50 cm. Bayeux, França.
Com o ponto de vista múltiplo cada elemento da importância para a leitura do conjunto pictoglífi-
mesma imagem é apresentado como se fosse vis- co. Nas civilizações mesoamericanas, a mera re-
to de um ponto diferente. Em uma mesma com- presentação do que o olho vê era insuficiente. O
posição, um elemento pode ser disposto como se mundo sagrado (invisível) é o que prevalece.
o olhássemos de cima, enquanto outro como se o
olhássemos de lado, por exemplo. O objetivo do Se a arte pré-colombiana causava um grande es-
tlacuilo não é representar um determinado ins- tranhamento quando comparada com a pintura
tante em um determinado ponto de vista, mas renascentista, é possível encontrar mais seme-
dispor os elementos de maneira que sejam re- lhanças entre os códices mesoamericanos e a arte
conhecidos pelo observador-leitor. Predominam medieval europeia. As semelhanças vão desde os
figuras humanas e de animais de perfil, mas a aspectos formais até mesmo os sociais. Podemos
existência de algumas figuras frontais mostra destacar primeiramente a ideia moderna de que
que as imagens em perfil não resultavam de uma o artista deve ser “original”. Tal ideia não era par-
deficiência técnica ou de uma regra absoluta. A tilhada pelos artistas medievais e tampouco pelos
frontalidade aparece quando seu uso destaca ele- mesoamericanos, as obras para ambos os artistas
mentos mais significantes para a leitura. eram constituídas a partir de modelos tradicio-
nais.
Outra solução plástica adotada pelos tlacuilos,
a vista em corte, causou grande estranhamento Arnold Hauser observa uma distância maior en-
nos ocidentais, pois ela consistia em tornar visí- tre a sociedade da antiguidade e as sociedades
vel o invisível, enquanto a pintura renascentista primitivas, que estavam muito mais próximas
tinha como base a representação do mundo visí- do homem medieval. Esta ideia é justificada por
vel. O que estava no interior das coisas e não po- Hauser pelo fato de que tanto a sociedade medie-
deria ser observado naturalmente, como peixes val quanto as primitivas possuírem uma arte que
dentro d’água e o interior de figuras humanas, se afasta da pura fruição estética para servirem
era evidenciado pelo tlacuilo, pois era de grande ao divino3.
94
Fig. 3: Códice Zouche Nuttal, 1200-1521. Pintura em pele de veado. 19 x 23,5 cm. British Museum, Londres, Reino Unido.
a incorporação de temas animais são típicos da A importância dos códices para os povos da Me-
arte românica do norte da Europa e sua estrutu- soamérica pode ser comparada com a importân-
ra remete às ilustrações dos manuscritos bíblicos cia das iluminuras para o homem medieval, pois
anglo-saxões. As cores utilizadas raramente se ambos tinham a função de manter viva e disse-
relacionam à natureza e podem indicar a gama minar uma crença. A Tapeçaria de Bayeux, ape-
de tinturas disponíveis na época. As bordas pic- sar de ser uma arte secular, e não uma iluminura
tóricas, no alto e na base da peça servem de mol- religiosa, também pode ser comparada com os
dura e apresentam animais estilizados e cenas códices mesoamericanos, pois eles não se limi-
cotidianas, como a aragem dos campos, indican- tavam apenas à religião e também poderiam ter
do a estação do ano4. Enquanto a borda de cima funções políticas ou históricas, como é o caso do
é puramente decorativa, a de baixo, em algumas Códice Zouche-Nuttall (1200-1521), que narra a
partes, pertence à história narrada. história do governante mixteca lorde Oito Vea-
dos Garra-de-Onça, que viveu entre 1063 e 1115
Segundo Hauser, a Tapeçaria de Bayeux apresen- d.C (figura 3). O códice inclui seus casamentos,
ta um “estilo de extraordinária fluência, com mui- conquistas políticas e militares, e do outro lado
tos e variados episódios e com um amor impres- registra a genealogia da dinastia até a invasão es-
sionante aos detalhes realistas”. Apesar de não panhola, por volta do ano de 15206.
ser uma arte monástica, como a maioria daquela
época, é a peça que mais nos revela os recursos A demonstração da genealogia da dinastia no
disponíveis naquele momento e constitui um re- códice é um modo de legitimação do direito de
gistro importantíssimo da vida no século XI5. reinar, assim como a Tapeçaria de Bayeux serviu
como uma forma de legitimação do poder de Gui-
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Inscrições tipográficas também auxiliam a narra- Segundo Pasztory, quando as Américas foram
tiva da Tapeçaria de Bayeux, explicitando o con- conquistadas, a arquitetura e a engenharia eram
teúdo das cenas que seguem um fluxo horizontal as únicas artes dos povos nativos admiradas pe-
(da direita para a esquerda) em uma única linha, los europeus. As outras artes eram vistas como
em uma solução muito diferente da que foi utili- imagens pagãs e obras do diabo que deveriam
zada no códice, que tem a narrativa orientada por ser destruídas. Ao mesmo tempo em que surgia,
linhas vermelhas8. Mas ao mesmo tempo apre- posteriormente, uma ideia de clássico na Euro-
senta soluções que se assemelham a ele, como a pa, surgia também um interesse pelo exótico, e
composição de personagens predominantemente aquelas imagens consideradas demoníacas pas-
em perfil, assim como o fundo em cor neutra e a saram a ser do interesse de colecionadores euro-
composição plana e linear, no sentido wolffliano9, peus. Mas ainda assim eram vistas como meras
que criam um conjunto de semelhanças formais. curiosidades.
Um dos artifícios utilizados no códice é a vista
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A autora destaca que sem o surgimento do con- Assim como a arte pré-colombiana, estilos oci-
ceito filosófico de estética, assim como o conceito dentais que não se encaixavam nas teorias evo-
de “sublime”, não seria possível o interesse cien- lutivas da arte também eram rejeitados pelos
tífico e pessoal dos europeus pelos objetos artís- europeus, como é o caso da arte gótica. A maior
ticos pré-colombianos. No século XVIII tornou-se semelhança que esses dois tipos de produção
possível a separação entre os aspectos estéticos carregam é o fato de terem sua compreensão e
das obras de arte e seus aspectos funcionais, so- apreciação prejudicadas pela estética ocidental,
ciais e religiosos, e a arte das Américas passou a que tinha como padrão o ideal clássico.
ser vista de duas maneiras: a estética e a científi-
ca. O estrangeiro pôde finalmente ser apreciado Wilhelm Worringer foi o primeiro a tentar pro-
sem precisar ser semelhante e sem que isso fosse por uma verdadeira interpretação psicológica
julgado como um ato de heresia. dos valores formais da arte gótica e a fazer uma
apreciação positiva deles. Worringer defende que
Mas o surgimento da estética não foi o suficien- uma verdadeira psicologia do estilo deve explicar
te para que o naturalismo idealista da arte grega os valores formais como expressões exatas dos
deixasse de ser o estilo favorito do ocidente. A valores interiores, rejeitando o dualismo fundo-
arte das Américas ainda era legitimada em com- forma11. Até então só era considerado o que o
paração com a arte clássica. A arte maia chamou artista conseguiu fazer, enquanto aquilo que ele
a atenção dos europeus no século XVIII justa- tentou fazer, a sua intenção artística, era ignora-
mente por ser naturalista e poder, de certo modo, da. Na medida em que foi surgindo a necessidade
ser comparada com a arte da Grécia antiga, en- de evidenciar diferenças de intenção, e não mais
quanto a maioria dos outros tipos de produções de capacidade, na análise de obras de arte, a arte
artísticas pré-colombianas só foram aceitas como gótica pôde começar a ser compreendida e apre-
obras de arte com o êxito das linguagens moder- ciada, assim como a arte dos povos nativos das
nistas do século XX que incitaram o gosto pela Américas e das demais culturas não-ocidentais,
abstração. ou não-clássicas.
As teorias evolucionistas acreditavam que a arte Apesar disso, Worringer rejeita a ideia de uma
sempre partiria da abstração até chegar ao natu- “estética gótica”, pois para ele a palavra “estética”
ralismo. Com a arte pré-colombiana acontece o remete à beleza, e o gótico nada tem a ver com
contrário, a arte dos Olmecas, que é a mais anti- a beleza, sua verdadeira grandeza não tem rela-
ga da Mesoamérica, é uma das mais naturalistas, ção com isso. Seguir essa lógica para tratar da
enquanto as posteriores em geral são mais conti- arte pré-colombiana torna-se perigoso, pois ao
das. As produções que não se encaixavam nessa contrário da Idade Média, que apresenta inúme-
sequência evolutiva linear ocidental eram conde- ros registros, documentos e tratados, pouco res-
nadas pelos europeus. Esther Pasztory defende tou dessas culturas além de vestígios materiais
que “o naturalismo não é uma visão específica, que não nos fornecem dados precisos. Porém
tampouco uma habilidade tecnológica perten- Pasztory observa que na arte pré-colombiana,
cente a um determinado estágio da cultura; ele em geral a beleza também não é a principal pre-
tem mais a ver com as demandas sociais e políti- ocupação.
cas de um determinado contexto”.
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Fig. 5: O sepultamento de Cristo, c. 1250-1300. Miniatura em Fig. 6: Tlalocan. Pintura mural. Palacio de Tepantitla, México.
papel velino. Koninklijke Bibliotheek, Holanda.
98
thiagosmfernandes@gmail.com
NOTAS
Hieronymus Bosch, Tríptico do Jardim das Delícias, 1490-1500.
Óleo sobre madeira, 220 x 97 cm. Museu do Prado, Madri.
1 SANTOS, E.N. Os códices mexicas: soluções fi-
de, mas na espiritualidade. Essa civilização, que
gurativas a serviço da escrita pictoglífica. Rev. do.
aspira ao sublime, não tem o “agradável” como
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14:
parte de seu mundo. O mural que representa
241-258, 2004.
o paraíso terrestre de Tlaloc, apesar de possuir
2 Ibid., p. 241.
uma grande mistura pouco ordenada de figu-
3 HAUSER, Arnold. História social da arte e da
ras humanas, borboletas e plantas, que pode ser
literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
comparada também ao Jardim das Delícias de
4 KING, Carol. Romanesco. In: FARTHING, Ste-
Hieronymus Bosch (figura 7), ao mesmo tempo
phen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante,
revela um grande esforço em impor uma sime-
2011.
tria em sua composição.
5 HAUSER, Arnold, op. cit., p. 194.
6 KING, Carol. Arte pré-colombiana. In: FAR-
Almas de pessoas mortas por raios, afogamen-
THING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro:
tos, ou qualquer motivo relacionado à água são
Sextante, 2011.
retratadas alegremente, dançando, interagindo,
7 HOCHLEITNER, F. J.; OLIVEIRA, A. P. de P. L.
possivelmente de forma a legitimar os sacrifícios,
de. Cronologia genealógica e calendário histórico
o poder do deus Tlaloc e demonstrar os praze-
-ritual Mixteca do Códice Zouche-Nuttal. Revista
res da vida após a morte. Apesar de haver uma
do Clube Humboldt do Brasil, São Paulo, v. 2, p.
maior preocupação decorativa aqui do que há na
141-168, 2002
arte gótica, ambas apresentam a mesma ausên-
8 KING, Carol, op cit. (item 6), p. 116.
cia de naturalismo e o desejo de um expressionis-
9 WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais
mo. A função persuasiva e legitimadora de uma
da história da arte: o problema da evolução dos
fé também são pontos em comum, mostrando,
estilos na arte mais recente. Ed. 4. São Paulo:
assim como na comparação entre o Códice Zou-
Martins Fontes, 2000.
che-Nuttall e a Tapeçaria de Bayeux, o uso da
10 PASZTORY, Esther. Aesthetics and pre-colum-
arte a favor do poder como sendo uma caracte-
bian art. In: Thinking with things. Austin: Uni-
rística universal, sendo contemplado neste caso o
versity of Texas Press, 2005, p. 189-196.
poder religioso.
11 WORRINGER, Wilhelm. A arte gótica. Lisboa:
Edições 70, 1992.
Ao comparar obras de povos tão distantes geo-
graficamente, cronologicamente ou culturalmen-
te, é possível perceber como a arte apresenta se-
melhanças universais em suas funções.
99
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