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INTERAÇÃO HUMANO-ANIMAL

Ceres Berger FARACO1

RESUMO - Nesta apresentação, discutem-se alguns aspectos da relação


humano-animal e sua articulação com a Medicina Veterinária. Busca-se
encorajar o diálogo entre esta ciência e a nova área da Antrozoologia, uma vez
que são campos intrinsecamente conectados por temas e métodos em comum
que incluem a produção de conhecimento, o foco em um mesmo objeto de
estudo e a preocupação com as boas práticas nos diferentes contextos de
atuação. Além disso, apresentam-se novos dados e, em especial, sobre
habilidades cognitivas e sociais e subjetividade. Reconhecidos na atualidade,
esses aspectos repercutem na interação de cães com humanos e devem
certamente ser considerados na prática de clínica veterinária.
Termos para indexação: interação humano-animal, Antrozoologia, vínculo
humano-animal

HUMAN-ANIMAL INTERACTION

ABSTRACT - In this presentation, some aspects of the human-animal


relationship and its articulation with Veterinary have been discussed. It is an
attempt to encourage the dialogue between this science and the new area
known as Anthrozoology, since they are intrinsically connected by common
themes and methods, which include knowledge production, focus on the same
object of study, and concerns about good practice in different performance
contexts. Besides that, new data have been presented, especially about
cognitive and social skills, and subjectivity. Such aspects, which are currently
acknowledged, reflect on the interaction of dogs with humans and should
certainly be taken into consideration in clinical veterinary practice.
Index terms: Human-Animal Interaction, Anthrozoology, Human-Animal bond

Temos o propósito de analisar alguns aspectos centrais do campo de


estudos denominado de Interação Humano-Animal2, ou Antrozoologia. Sabe-se
que a relação interespécie é uma parceria antiga que acompanhou o processo
civilizatório humano, proporcionando inúmeros e variados benefícios. No
entanto, ela foi reconhecida apenas recentemente (décadas de 1970-80) como
tema acadêmico. Nesse período, foram criadas as primeiras sociedades
científicas, foram realizadas conferências internacionais e publicados artigos
pioneiros sobre diversas temáticas, incluindo: a família multiespécie3; a
sociedade e os animais; o luto; animais e crianças; animais e idosos; animais e
saúde (pacientes cardíacos, portadores de sofrimento mental, portadores de
SIDA, traumas físicos e mentais); ciclo da violência; zoofilia; cognição;
comunicação e adaptação entre espécies; motivação humana e treinamento
canino, entre outros temas de estudo.

1
Méd. Vet., Doutoranda e Mestre em Psicologia (PUCRS), Formação em Terapia Mediada por Animais
(DePaul University, USA). Professora na (FACCAT /RS). Rua Santa Cecília 1709/32. Rio Branco. Porto
Alegre, RS. Brasil. Cep: 90420-041. e-mail: ceresfaraco@gmail.com
2
Neste texto, adota-se a expressão “humano-animal”, na qual a palavra “animal” é empregada com
significado de “demais animais”, sem excluir os humanos do reino animal.
3
Família que se autodenomina como constituída por pessoas e animais.

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Desde então, há um interesse 1. Facilitador social (CORSON,


crescente do meio científico a 1975),
respeito do vínculo entre humanos e 2. Veículo simbólico para a
animais, e as investigações expressão de emoções (FREUD,
acadêmicas têm validado esse novo 1959),
campo interdisciplinar de conheci- 3. Foco de atenção e agente
mento e pesquisa. tranqüilizador (WILSON, 1984),
Esta abordagem científica 4. Objeto de apego
implica a necessidade de definir (WINNICOTT, 1953),
todas as expressões adotadas, 5. Fonte de suporte social
incluindo a própria expressão (BONAS, MCNICHLOLAS; COLLIS,
“relação humano-animal”, concei- 2000),
tuada como uma relação dinâmica e 6. Instrumento vivo para
mutuamente benéfica entre pessoas aprendizagem de novas estratégias
e outros animais, influenciada pelos e formas de pensar e agir
comportamentos essenciais para a (KATCHER, 2000).
saúde e bem-estar de ambos. Isso
inclui as interações emocionais, No âmbito da Veterinária, o
psicológicas e físicas entre pessoas, vínculo humano-animal é, na maior
demais animais e ambiente (AVMA, parte das vezes, considerado como
2005). objeto de estudo mais bem
Um dos benefícios da adequado ao campo das
presença de animais na vida das humanidades. Isso se deve à sua
pessoas é a sua companhia. ênfase em alguns aspectos, como:
Cavalos, cães e gatos, na socie- a subjetividade, as percepções, os
dade moderna, são referidos como sentimentos e emoções. Soma-se a
“animais de companhia” por isso um estranhamento por, em
estabelecerem fortes vínculos seus princípios, reconhecer
emocionais recíprocos com os atributos intrínsecos aos animais
humanos. que seriam análogos aos dos
Nesse sentido, a preocupação humanos, o que problematiza a
de vários pesquisadores tem sido visão científica predominante
elucidar os mecanismos de ação desses seres vivos. Essa “tensão” é
que explicariam o papel positivo dos traduzida na prática por lacunas ou
animais para as pessoas. Para por insuficiência no ensino de
tanto, são sugeridos diversos conteúdos referentes ao vínculo
mecanismos, sendo que, na maior humano-animal durante a formação
parte, são enfatizados os supostos curricular formal do Médico
atributos intrínsecos dos animais e Veterinário.
também seu valor como instru- Chama atenção essa situação,
mentos vivos para promover uma vez que a limitada abordagem
mudanças positivas no autoconceito curricular contrasta com a condição
e comportamento de pessoas. Estas seminal da relação humano-animal
modificações se apoiariam no para o desenvolvimento e exercício
desenvolvimento de várias habili- da Medicina Veterinária. É essa
dades e no exercício de respon- conexão interespécie que
sabilidades. O repertório dos fundamenta, dá sentido e justifica
possíveis papéis desempenhados todo e qualquer aspecto de atuação
pelos animais inclui: profissional do médico veterinário.
Em face disso, surge uma questão:

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como o médico veterinário pode se estabelece uma rede


enfrentar as dificuldades para comunicativa entre animais e
preservar a relação humano-animal pessoas que aguardam atendi-
se sua ecologia e propriedades não mento, o que evidencia o tipo de
estão claramente compreendidas vínculo existente e o seu significado
por ele? De fato, a carência é na vida de todos. No entanto, a
suprida através de ações em nível maior parte dos profissionais ainda
individual, já que há entre carece de conhecimentos impor-
profissionais uma busca crescente tantes a respeito das propriedades
por subsídios e dispositivos que dessa relação, e isso apesar de as
enriqueçam e potencializem sua pesquisas recentes sugerirem que a
prática. compreensão desse vínculo é uma
Entendemos que cabe ao das competências essenciais dos
veterinário o papel de contribuir profissionais mais bem-sucedidos.
para a expressão de todo o É fato também que, nos
potencial benéfico dessa interação últimos anos, as sociedades
e, a partir disso, promover a alteraram sua visão sobre os
continuidade e o bem-estar de demais seres vivos; com isso,
ambos (humanos e animais) através algumas leis foram aperfeiçoadas,
do equilíbrio harmônico na convi- reconhecendo o valor intrínseco dos
vência e a satisfação das neces- animais não-humanos e conferindo-
sidades espécies-específicas. O lhes uma maior proteção legal. Essa
veterinário deve estar apto a transformação social tem e terá no
compreender as diferenças e ajudar futuro sérias implicações para a
as pessoas a ser os melhores prática da Medicina Veterinária. Os
guardiões possíveis, tendo presente profissionais recebem novas
que é devido a esse vínculo que as demandas ao serem chamados
pessoas trazem seus animais aos para contribuir como especialistas
consultórios veterinários para avaliar se as condições de vida
(CATANZARO, 2002). dos animais são as adequadas, ao
Na prática, poucos veterinários serem solicitados a ensinar para os
clínicos de animais de companhia estudantes e para os clientes novos
podem argumentar que o vínculo modos de convivência com seus
humano-animal não afeta o seu animais e, por fim, ao serem
exercício do dia-a dia. É comum, mediadores em conflitos particu-
por exemplo, após um procedimento lares e públicos. Lamentavelmente,
de eutanásia, o veterinário oferecer os profissionais também são mais
algum tipo de apoio emocional ou freqüentemente responsabilizados
aconselhamento para seus clientes por crimes contra o bem-estar dos
humanos enlutados. Na verdade, os animais e sofrem as devidas
veterinários estão expostos a sanções legais e sociais.
inúmeros comportamentos que É importante ter em mente que
evidenciam a natureza do vínculo a maioria dos clientes que traz seus
constituído entre o cliente e o seu animais aos consultórios veteri-
animal de estimação. Essa ligação é nários espera encontrar com-
evidente na sala de espera de um preensão sobre seus sentimentos e
consultório veterinário, onde clientes conhecimentos profissionais. Essa
sorridentes, ou tensos e preo- compreensão permite ao veterinário
cupados, abraçam, afagam seus fortalecer o fluxo de comunicação
animais e falam com eles. Também com cada cliente. O favorecimento

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do elo entre profissional e cliente REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


conduz a resultados mais
promissores para todos: o
veterinário, o cliente humano e o AVMA. American Veterinary
paciente. Um exemplo prático é a Medical Association, 2005.
maior aderência do cliente aos Disponível em www.avma.org.
aconselhamentos e terapêuticas, Acesso em Dezembro de 2007.
bem como a continuidade dos BONAS, S.; MCNICHOLAS, J.;
cuidados de saúde preconizados. COLLIS, G.M. Pets in the network of
Também no campo de family relationships: An empirical
processos cognitivos sociais, study. In: A.L. PODBERSCEK, A.L;
verifica-se que a convivência entre PAUL, E.S.; SERPELL, J.A.(Eds.),
humanos e animais repercute sobre Companion Animals and Us:
a aprendizagem animal. Portanto, o Exploring the Relationships
nível de percepção sensorial Between People and Pets.
desenvolvido entre humanos e Cambridge: Cambridge University
animais é um instrumento valioso Press, p. 209-236, 2000.
tanto para promover a aquisição de
aprendizagem quanto para CATANZARO, T. E. Promocion del
fortalecer o vínculo entre ambos. Ao vinculo humano-animal en la
investigar os traços desenvolvidos practica veterinaria: fundamentos
pelo cão, Miklósi et al. (2003) para la jerarquización profesional,
sugerem que uma das principais Buenos Aires: Inter.-Médica, 2002.
diferenças comunicativas entre o CORSON, S.A.; CORSON, E.O.;
cão doméstico e o lobo é o GWYNNE, P.H. Pet-facilitated
comportamento de olhar a psychotherapy. In: ANDERSON,
expressão facial de seus parceiros R.S. Pet Animals and Society,
humanos. Esse comportamento tem Baltimore: Williams and Wilkins, p.
a função de iniciar e manter a 19-36, 1975.
interação comunicativa e é
congruente com os sistemas FREUD, S. The Interpretation of
humanos de comunicação. Os Dreams. New York: Basic Books,
mesmos autores supõem que um 1959.
feedback positivo (filogenético e KATCHER, A.H. The future of
ontogenético) conduziu a espécie a education and research on the
essas formas comunicativas com- animal-human bond and animal-
plexas, possibilitando a comuni- assisted therapy. Part B: Animal-
cação humano-cão. assisted therapy and the study of
É surpreendente que temas human-animal relationships:
como esse, relevantes para o bem- Discipline or bondage? Context or
estar e fortalecimento de vínculos, transitional object? In: FINE, A.H.
até o momento tenham recebido (Ed.), Handbook on Animal-
pouca atenção científica da Assisted Therapy, New York:
Veterinária, mas espera-se que Academic Press, p. 461-473, 2000.
estudos futuros a partir dessa
MIKLÓSI, A.; PONGRÁCZ,
ciência ajudem a elucidar modos
P; LAKATOS G.; TOPÁL, J.;
mais efetivos para promover a
CSÁNYI, V. A comparative study of
relação humano-animal.
the use of visual communicative
signals in interactions between dogs
(Canis familiaris) and humans and

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cats (Felis catus) and humans.


Journal of Comparative
Psychology, v. 119, p.179-186,
2005.
WILSON, E.O. Biophilia.
Cambridge, MA: Harvard University
Press, 1984.
WINNICOTT, D.W. Transitional
objects and transitional phenomena.
International Journal of
Psychoanalysis, 24, 88-97, 1953.

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