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Desromantização

Prólogo

O livro surgiu através da premissa inicial ‘Desromantizando a Convenção’,


que mais tarde se viria a transmutar na Desromantização. Esta ideia que se
manifestou cronologicamente próxima do fator fundamental à sua catalisação
iniciou o que agora se vê como um produto final. Uma idealização de um
movimento, uma dinâmica, um exercício mental de desconstrução do
convencional, por outras palavras, uma reflexão e questionamento do status quo
e de todas as nuances e fragmentos que o constituem. As lentes com que
percecionava a realidade exterior à altura faziam-me crer num consolidado
romantismo geral: uma tendência idealista e escapista da qual adveio a
alienação e consequente egotismo verificáveis ocidentalmente; uma fuga à
realidade por meios da romantização e endeusamento das nossas vidas
individuais – o mundo gira à minha volta e de todas estas circunstâncias
principais da figura mais importante do Universo, Eu. Uma falsa realidade.
Derivado desta perspetiva que detinha sobre mim e o que me rodeava dei-me à
agora justificável primeira proposição: a Desromantização.

No âmbito de um projeto de voluntariado propus-me a uma viagem e


estadia (três meses) à Geórgia, onde a ideia se cristalizou. Aquando o escape e
migração cultural, o exercício a que me propus de início começou a dar-se
exponencialmente; assim dei-me a anotar tudo o que se passasse atrás dos
olhos e entre as orelhas. Escolhi arrumar estes pensamentos na forma de um
diário com entradas correspondentes aos dias em que estes movimentos
mentais se deram; não há qualquer datação. Optei ainda por associar às
entradas pedaços de sabedoria alheia que me têm vindo a inspirar desde que a
minha mãe teve a brilhante ideia de me apresentar aos livros.

Por fim, e evitando dar tudo de bandeja, tentei manter a versão que agora
presenciam o mais fiel possível ao original – o motivo tornar-se-á compreensível
durante a leitura do livro –, oriundo dos blocos de rascunhos que carregava
comigo a onde me movimentasse nesse país estranho. O livro é uma quase
experiência científica que tem o meu comportamento mental, quando em
contacto com outra cultura por objeto de estudo. Eu passei pela experiência
anotando tanto quanto conseguia – muitas vezes dirigindo-me a mim e a ti, não
existindo uma clara distinção entre estes dois últimos polos – e, por fim, um eu
imparcial organizou toda a coletânea de registos da melhor forma que conseguiu.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Álvaro de Campos
Primeira Entrada

‘Nobody owns anything but everyone is rich – for what greater wealth can there be than
cheerfulness, peace of mind, and freedom from anxiety?’

Thomas More in Utopia

Afinal em que se sustenta a vida humana?

O que impede o Homem de projetar a sua dor, reconhecível em qualquer


época histórica, na destruição total? Na aniquilação? Caos?

O que está por detrás da dor, do sofrimento? Será a necessidade? O


apego?

O que sustém…o que sustenta toda a engrenagem, toda a estrutura social


e mantém o mundo a girar fora da aniquilação e do caos imediatos?

Porque são os casos de psicose, culminando em destruição interior


(autoflagelo, suicídio) ou exterior (corrupção, homicídio) raros e não
precisamente o oposto? Aliás, até que ponto podemos considerar o facto de
estes casos serem raros como algo positivo. Porque é a psicose má? É
antinatural? Afinal de contas todas as disciplinas pelas quais nos regemos: ética,
moral, psicologia, filosofia, etc; todo o conhecimento que nos permite avaliar ou
julgar qualquer situação é humano e, portanto, suscetível de estar errado ou
correto; é subjetivo. Posta esta perspetiva, torna-se questionável qualquer lei
que aja sobre um agente psicótico após o mesmo cometer a pressuposta injúria.
Quem criou a lei senão o Homem. Se qualquer conceito é subjetivo porque se
toma a lei como objetiva? Quem tem o poder de nomear o psicótico mau ou
bom? Estabelece-se um paradoxo (dando-se aqui outro: não é o paradoxo
inexistente se o mesmo não passa de um conceito humano e os conceitos não
mais são que símbolos falsos e erróneos…a árvore nunca tentou compreender
a impossibilidade da possibilidade): indivíduo versus sociedade. Quem vem
primeiro? O Homem ou a sociedade? A psicologia tenta tornar saudável o doente
à sociedade. Mas será que ele precisa de ser ajudado? Mudado? Condicionado
à imagem do paradigma social?

Se a dor é propagada entre gerações seguindo o princípio da causa-efeito,


então o imperativo ‘o Homem é dor’ está correto. Mas se assim o é porque tenta
o Homem manusear, sedar ou até mudar este facto – a procura da felicidade.

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Tendo uma visão ocidental da dor nomeio a felicidade como o seu perfeito
oposto. Uma moeda de dois lados: o dualismo sofrimento/prazer. Incutidos ao
sofrimento desde que saímos ao mundo acabamos aprisionados numa procura
incessante do prazer ou, como lhe chamamos, felicidade. Mas se assim é, se
somos enfim esta moeda de dois lados, qual o nosso estado natural? O que é a
moeda? São a dor e a felicidade manifestações do contacto cultural? Produto do
que se é estabelecido socialmente como motivo para sofrer/estar feliz?

Voltando ao sujeito psicótico. Vamos exemplifica-lo através de alguém


com uma atração sexual por crianças. Se determinado indivíduo der asas ao seu
desejo sexual estará à procura do prazer, tal e qual todo o humano está; ou
estará doente? Transtornado? Errado? Afinal de contas ninguém escolhe a sua
orientação sexual, a sua propensão. O Homem não escolhe a sua psique. Tendo
isto por base, até que ponto é justo – sublinhando o justo – a conceptualização
da atração deste sujeito como um transtorno e, consequentes instituições e
órgãos sociais prontos a penalizá-lo pela sua inevitável condição. É o pedófilo
criminoso ou a sociedade que o ostraciza? Até que ponto é ético tentar mudar a
psique, mesmo sabendo que em certos casos esta poderá pôr em causa outras
vidas? Exemplo: o seguimento do caso em análise poria em causa a vida da(s)
criança(s). É ético tentar manipular a mente do pedófilo? Não se estaria assim a
pôr a sua vida em causa?

Quais devem ser os alicerces que servem de base à sociedade dada?


Observando a História planetária, a reprodução parece-me o Facto objetivo. Fora
quaisquer subjetividades, conceitos, disciplinas, julgamentos humanos, todos
eles passíveis de serem erróneos, a reprodução aparece como algo concreto e
factual. A multiplicação da Vida é o Facto: a ambição da mesma de manter a sua
integridade e assegurar que se assim o não consegue, passa a sua informação
a uma outra forma. De multiplicação em multiplicação, de vida em vida, chega-
se a um organismo instintivo resumido aos seus desejos/necessidades (tal é o
animal), que dispõe da capacidade de observar e analisar esses mesmos
instintos, quiçá libertar-se deles.

Tomando hipoteticamente a Vida como o princípio segundo o qual se


alicerça a sociedade humana e, posteriormente olhando o mundo e a forma
como ele se rege é clara a desarmonia: o mundo está a morrer. Não há quaisquer
iniciativas pela Vida, muito pelo contrário, elas observam-se até pela morte, pelo
Caos. Mas mais uma vez me pergunto, com que fundamentos posso estabelecer
a Vida como o Pé da sociedade? Se não conheço para além dela, se sei apenas
que ela se multiplica, se durante todos estes anos caóticos desde os primórdios
da Humanidade nunca houve uma qualquer preocupação por a estar a pôr em
causa e, no entanto, ela sempre se manteve, argumentando até que se tornou
melhor, ou pelo menos mais complexa. ‘A vida continua’.

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Pois bem, mas por onde me movo para chegar à base? Está a nossa vida
subordinada ao nosso nascimento num determinado sítio, através de
determinadas pessoas, inseridos em determinada cultura? Somos mais senão
uma reação de uma psique a uma condição sociocultural? É esta a vida do
Homem? Sentasse-me eu agora na Lua e observasse a Terra e não mais veria
que previsíveis reações entre dois agentes pré-estabelecidos: o indivíduo (e as
suas condições biológicas/psicológicas) e a sociedade (e as suas condições
culturais). Esta possibilidade traduz-se no determinismo radical. Um programa
pré-determinado sem qualquer tipo de escapatória ou, esperança. É essa a
condição humana?

No final de contas, quer-me parecer que todas as disciplinas que


desenvolvemos ao longo dos tempos queriam não mais que dar resposta a este
problema contudo, nenhuma delas consegue alcançar a resposta, pois todas
elas têm mão humana na sua construção. Estradas de subjetividade, muitas
vezes aliadas ao dogmatismo.

Dada esta análise, torna-se impossível acreditar em qualquer ‘teoria da


realidade’, qualquer hipótese que se afirme como resposta à pergunta ‘O que é
a realidade?’. Todas essas hipóteses não passam senão de cultura.
Relatividade. A realidade aqui é esta, mudada a localização geográfica é outra.
Não há objetividade. Esta perspetiva tem tanto de prisão (determinismo radical
– estar submetido às implacáveis condições estabelecidas); como de libertação
(a oportunidade de deixar para trás todas as ideias que nos foram incutidas e
que, em conjunto, formam aquilo que acreditamos como a realidade), tendo
especialmente em conta a prisão cultural que compromete a individualidade e
escraviza o ocidente.

A hipótese de liberdade. Que exaltação. Euforia. Pego nesta emoção e


interiorizo-a. Esta emoção guia-me. Sinto que este caminho é mais certo que o
de ontem. No fundo tudo o que posso fazer é tornar a minha existência um pouco
mais fácil. Não desabar no esgotamento nervoso e desistir. Manobrar a minha
perspetiva da vida: mudar as lentes com que a observo. A possibilidade de entrar
no mundo com um rejuvenescido pé direito. A possibilidade de liberdade.

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Segunda Entrada

‘Our past thinking has determined our present status, and our present thinking will
determine our future status; for man is what man thinks’.

C. G. Jung in The Tibetan Book of the Dead

O que é a liberdade?

É um conceito material ou imaterial?

Compreendendo o atual paradigma social do ocidente, até que ponto


podemos falar da liberdade como um direito universal? É a liberdade, hoje, uma
regalia? Algo que se adquire durante e segundo a postura na vida? Ou será a
liberdade um facto imaterial, um direito de nascimento, comum a todo o Homem?

Seremos a única forma de vida – conhecida – com o poder de tanto


reconhecer o conceito de liberdade como de a sentir nas nossas entranhas?

Supondo a liberdade como um facto humano: até onde foi o Homem para
o omitir? Com que fundamentos o faz e o permite? Com que intuito construiu o
Homem ao longo da história tantos modelos – do mais simples ao mais complexo
– de conseguir a opressão do próximo; de conseguir controlar e manobrá-lo. O
Homem pegou nas disciplinas que desenvolveu, imparciais, e corrompeu-as na
sua vontade de emprisionar o próximo. Onde nasceu a subjugação? São o
controlo, a subjugação e, respetivamente, o desejo de superioridade, intrínsecos
ao indivíduo ou, serão eles um reflexo da reação do Ego (vamos tomar o Ego
como o conceito que representa o Indivíduo – a sua psique) com o padrão
sociocultural correspondente? Por outras palavras, serão o controlo, a
subjugação e a superioridade uma materialização do medo imposto no elemento
social onde o Ego habita – na cultura em que está enquadrado? Um elemento
que vive das ideias de separação e consequentes solidão e competição.

É importante relembrar que todos estes pensamentos são


abundantemente influenciados pelas circunstâncias em que cresci, pela cultura
que me é referente.

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Terceira Entrada

‘Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.’

José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira

O que sou?

Quem sou?

Qual das perguntas anteriores é a correta?

Serei eu a projeção de todas as experiências sensoriais que presenciei,


recebi e, por fim, interiorizei? Sou o Francisco, em tempos um ser humano novo
no mundo: sem nome, sem experiências; uma tábua rasa, uma psique única e
intocada. Concebido por dois pais, ambos influenciados pelo seu contacto com
a cultura que os manteve, em teoria, cativos da sua verdadeira natureza (é fulcral
deixar a empatia penetrar-me para conseguir compreender a prisão cultural, a
programação recebida por ambos. É tão mais fácil esquecer que também eles
passaram pelo confronto com um mundo decrépito e acabar a culpá-los pelo que
sou).

A armadilha da cultura ocidental. A obrigatoriedade de uma identificação.


O contrabando das emoções. Vindo ao mundo a ligação pais-filho é a primeira:
um elo de puro afeto e confiança; a tábua rasa que é a psique deste recém-
nascido serve de esponja e espelho. Uma vez dado o afeto nutrido pelos pais
instala-se a confiança, a qual guia a primordial psique ao mundo dos pais, das
suas expectativas, desejos, mágoas, sofrimento: o/a menino/a dos papás.

Posto o caso em retrospetiva: os pais que agora implantam as suas vidas


nos filhos foram em tempos a criança desta história. Mimicaram os seus pais. E
daí por diante. Um ciclo. E este ciclo abrange todos os filhos e pais do local onde
se dá este e qualquer caso semelhante. Acrescenta-se à equação o fator social:
deixam-se as ideias circular. Passam-se entre gerações, passam-se entre
famílias, entre amigos. Cria-se uma cúpula cultural. Dá-se-lhe o nome de país e
a esta ideia/conceito vêm outras associadas, como o tóxico patriotismo. Uma
matrix perfeita: capaz de assimilar os processos da psique individual e do seu
contacto com o social e, partindo disso, incentivar ou torturar aqueles que
puserem em questão os seus axiomas.

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Passando a matrix adiante e a ideia de ser controlado por alguém ou algo.
Quem sou? O que sou?

Estarão as pessoas condenadas a seguir uma função linear durante as


suas vidas e, se assim não for, o que sucede após libertação do processo de
identificação, da armadilha cultural? Se não sou o Francisco, o que sou?

Se claramente não sou a minha chapa de identificação e toda a sua


bagagem de experiências com o mundo, todas as experiências exteriores (ex:
ser vítima de violência; apaixonar-me) e interiores (ex: sentir ódio; paixão); o que
sou? É tudo fugaz!

A criança por identificar olha o mundo de forma pura e única: tudo é novo,
tudo é lindo. Há brilho e magia em cada momento, em cada contacto. A criança
ainda não faz parte da complexa e estruturada equação da vida ocidental. Ela
não é um quem e muito menos uma ela: é, apenas. Existe. É a existência na sua
materialização pura. No ocidente, designamos este fenómeno por inocência e,
aliado a este conceito, há sempre uma conotação negativa. Se aqueles que mais
amamos, aqueles que nos possibilitaram experienciar toda esta magia nos
fazem sentir que a inocência é errada…Não estará portanto justificada a vontade
geral das crianças de crescerem?

Entro no mundo e ensinam-me a interagir: é-me ensinada a linguagem e,


assim que ela é adquirida e a porta para todas as possibilidades me surge de
frente, vejo-a ser destruída cruelmente. A incapacidade de comunicar, não por
falta de ferramentas, tal é a língua, mas porque a mensagem nunca chega ao
destinatário. A desvalorização da criança pelo adulto. Ela é inocente e a
inocência é negativa, é triste, é infantil! A armadilha da língua.

O Homem precisou de se alimentar e o nomadismo apareceu; o Homem


precisou de comunicar e a linguagem surgiu; o Homem olhou à sua volta, olhou
para cima e observou a impossibilidade do possível – do existente –, manifestou-
se a religião. Ainda o Homem viu-se a deixar a extração do que somente lhe era
necessário ao sistema que o rodeava e deu-se a exploração; pegou na
linguagem e corrompeu-a à sua necessidade egotista: ergueu-se a Mentira. E
não tomais por pouco a Mentira, tal que ela representa a corrupção do Homem,
a incapacidade para a Verdade, o caminho mais fácil. Foi com a mentira que se
corromperam todas as disciplinas e artes do Homem. Veja-se o capitalismo.

O extraordinário que é o humano: capaz de compreender os seus instintos


e necessidades animais (comer, sobreviver) e solucionar intelectualmente tais
problemas. Mais extraordinária é a capacidade de corromper todas as soluções
que arranjou. Transformá-las à sua imagem, à sua ignorância.

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Qual é a origem da corrupção?

De onde surgiu a maldade?

Porque é que o indivíduo se vê sempre como o fim, utilizando pelo


caminho qualquer meio que lhe seja útil, nomeadamente o próximo? Já os
primeiros homens eram capazes de ir tão longe quanto matar o outro para os
seus fins. Sobrevivência? Predadores. Animais. Estará a maldade ligada ao
nosso instinto de sobrevivência? Animais com delírios de grandeza.

A razão surge na equação e, no entanto, o mesmo continua a acontecer,


dando-se apenas de formas mais subtis. É regra da Natureza a multiplicação, tal
como é a extinção. Existimos para nos vermos extinguir? A razão foi um erro?
Um teste? A razão muda tudo! As possibilidades, as portas. É a razão
antinatural? Óbvia é a extinção que se aproxima se o atual paradigma se
mantiver, mas a oportunidade de mudança é também real. É até assustadora.
Mudar tudo o que se conhece. O ciclo. O status quo. Mudar tudo seria injetar o
desconhecido num mundo que se rege pelas mesmas leis sociais desde sempre.
Desromantização. Destruir o Homem e construir a Humanidade. Qual é o
caminho? O que percorremos desde que saímos ao mundo só nos trouxe senão
dor e desespero. Será a dor a base, a estrutura da Estrada Humana?

Parece-me que o Homem é a utopia, mas que pelo caminho se perdeu. O


poder é imenso e a responsabilidade a ele associada poderá ter sido
esmagadora. A História não tem que ser um ciclo.

O que sou? Uma manifestação do Natural? Uma projeção de energia


materializada? Uma possibilidade? Uma finalidade? Sei que o meu ego não sou.
Sei que o passado não sou. Sei que as expectativas do futuro também não. Sou
o Agora materializado num corpo. Preso a um corpo? Reconheço o meu Ego.
Reconheço o tabu que gira à volta do meu ego. Reconheço ainda como eu
participo no tabu dado o medo que tenho de descobrir o que sou: a necessidade
de controlar tudo, quando não há absolutamente nada para controlar – uma vez
que tudo o que É num momento pode desaparecer. Para onde me movimento
agora? É o Amor o caminho? Não me refiro ao amor romântico, à ideia de amor
corrompida pela nossa cultura: amar é hoje uma reação neurológica; algo estrito
apenas às pessoas que escolhemos, às pessoas que pertencem ao nosso
círculo. Monogamia. A restrição. Uma armadilha. Tem que se ir além do que há
e do que foi. Todos os conceitos e ideias têm que ser destruídas para,
possivelmente, chegar de novo ao que fora: à inocência, ao puro, ao estado de
contemplação, à criança que olha o mundo pela primeira vez. Os olhos dela
emanam Amor. Ela Vê a essência. Eu vi. Todos vimos. Já não me consigo
lembrar como era. O mundo e o antropocentrismo fizeram de nós escravos.

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Que irónico: dar asas ao meu pensamento faz-me sentir que estou a
romantizar a condição humana, quando no fundo o objetivo era precisamente o
oposto. Dei asas ao meu Ego. Queria transmitir uma mensagem e acabei a
vender-me, a vender a mensagem. Estás a desconstruir-te, a destruir-te para te
construíres. Não percas o rumo. Tem de se dar a desromantização.

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Quarta Entrada

‘A nossa sociedade ocidental contemporânea, apesar do seu progresso material,


intelectual e político, promove cada vez menos a saúde mental e contribui para minar a
segurança interior, a felicidade, a razão e a capacidade de amar do indivíduo; tende a
transformá-lo num autómato que paga o seu fracasso humano com o aumento das
doenças mentais e com o desespero oculto sob um frenesim de trabalho e de pretenso
prazer.’
Erich Fromm em Regresso ao Admirável Mundo Novo

Porque não consigo olhar para dentro? Introspeção?

Porque procuro as respostas no exterior? Estímulos constantes.

Estão ambos estes fatores relacionados com o meu ceticismo e posterior


existencialismo?

Poderá a minha autoestima fazer parte desta equação? Poderá a minha


falta de concentração estar associada a tudo isto? E a minha vontade de
alcançar estados mentais diferentes provocando alterações na minha
consciência?

Sei que a vozinha que divaga incessantemente dentro da minha cabeça


tem agora autocontrolo – autogoverna-se –, sei disso porque não a consigo calar.
Tento meditar, tento sonhos lúcidos, tento projeção astral. Ela impede-me. Sei
que quando lhe tomo rédeas ela imediatamente direciona toda a minha atenção
para o mundo exterior; para os estímulos exteriores; para aquilo que os meus
sentidos captam e que, consequentemente, o meu Ego toma como realidade –
daí sugerir a ligação com o ceticismo: é fácil pegar numa tábua rasa e fazê-la
crer numa realidade estritamente material, uma vez que é tudo o que os nossos
sentidos nos permitem experienciar. O contacto com o exterior parece ser a
Verdade. Indo mais longe, observa-se uma relação entre isto e o conhecimento
aceite numa cultura materialista: há sempre a necessidade de provas físicas. A
ciência serve de pináculo ao reducionismo da nossa cultura. O que o indivíduo
sente é completamente desvalorizado uma vez que é considerado subjetivo; a
ciência procura o objetivo. É uma destruição de qualquer mente jovem e criativa.
A criatividade e individualidade são pecados num mundo que vive religiosamente
o materialismo. O ceticismo (que comummente dá lugar ao niilismo existencial)
geral é justificável através desta perspetiva: o assassínio da individualidade, das
emoções, do subjetivo, da inocência, da criatividade, do olhar para dentro; dado

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o extermínio implanta-se a crença de que a Verdade está nos sentidos. Os factos
são obtidos pelos sentidos. Olhar para fora.

Sou um cético assumido. Ou fizeram de mim cético? Ou fiz de mim cético?


Porque procuro sempre as respostas no exterior? Porque assumo o exterior
como o culpado? Os outros. Vitimizo-me. Eu consigo ver o meu Ego. Consigo
perceber a origem do meu sofrimento. Mas faltam-me forças para mudar.
Porquê? A autoestima toma alguma parte nisto? Vejo os meus defeitos, o erro;
mas apenas com extrema dificuldade e até, apreensivamente, olho as minhas
qualidades.

A crescer, por várias vezes a palavra humildade foi-me comandada.


Olhando em perspetiva parece-me que essa palavra surgiu como uma
armadilha: 'não reconheças as tuas qualidades, sê humilde!'. Terei eu criado
subconscientemente, uma aversão às minhas virtudes, decorrente da conotação
associada à palavra humilde das tantas vezes que a ouvi? Mais que nunca o
processo de introspeção é-me necessário: preciso de alcançar os confins da
minha mente, caminhar à iluminação; preciso de me concentrar – olha para
dentro – e de calar esta voz. Permanentemente. É, no entanto, tão árduo e,
sobretudo, incompreensível para mim. É necessária uma autoinstrução de algo
que não está escrito ou que é passível de se ser ensinado: uma luta contra tudo
o que conheço e que deste sempre tomei como real. Mas as respostas, em
tempo, surgirão. Dedicar-me-ei infindavelmente à sua procura, pois sei que
sozinho estou, até ao final da Jornada. Eu e a minha mente até ao fim, ninguém
entra, ninguém sai. Tenho de aprender a viver comigo. Conhecer-me e
compreender-me.

Parafraseando o sagaz Alan Watts: primeiramente observados os


mecanismos e engrenagem da máquina social, o indivíduo sente uma enorme
futilidade quando se apercebe da vida linear que se lhe apresenta, mas, em
tempo, torna-se maravilhosamente estranho e, até, alienígena, como algo assim
estruturado sobrevive e continua a fazer parte das vidas de todos os indivíduos
que a constituem. Primeiro a futilidade, depois a raiva e ódio à ignorância (aos
cegos) e por fim o espanto, a admiração. Que imperfeita perfeição. O caos. Que
eloquente máquina esta que maltrata e escraviza os seus utentes. Criou-se a
máquina e inverteram-se os papéis. Qual veio primeiro: a máquina ou o Homem?
Mas a máquina É o Homem!...são todos os homens! Porque se deixam eles
esmagar, subjugar? Porque se deixam eles viverem e serem controlados através
dos seus instintos primitivos – tais animais. Acordam e respondem
mecanicamente tendo por base a necessidade de sobreviver. Se o Homem é
capaz de sacrificar de si em prole do todo, como é que o suicídio aparece na
equação? Paradoxo.

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O Homem constrói a máquina, a máquina acorda o animal e o que fica de
humano é-se usado para manter a máquina a rodar. O animal domestica-se.

Que dor. Que agonia.

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Quinta Entrada

‘What an astonishing thing a book is.

It’s a flat object made from a tree with flexible parts on which are imprinted lots of funny
dark squiggles. But one glance at it and you’re inside the mind of another person, maybe
somebody dead for thousand years. Across the millennia, an author is speaking clearly
and silently inside your head, directly to you. Writing is perhaps the greatest of human
inventions, binding together people who never knew each other, citizens of distant
epochs. Books break the shackles of time. A book is proof that humans are capable of
working magic.’

Carl Sagan

Porque escrevo? Porquê um livro?

Com base na minha experiência pessoal comprovo que escrever é uma


extensão da minha mente e, neste contexto, a caneta um prolongamento da
minha mão. O pensamento surge e a caneta acompanha-o, mas, a certo ponto,
parece que a mesma se vai distanciando e que tem agora autonomia. Se assim
é o processo de pergunta-pensamento-resposta então nada farei para o
contrariar: o potencial não discrimina e, portanto, não o recusarei. Seguindo a
ideia poderia afirmar que todo o humano é inteligente – conceptualizando a
inteligência como uma qualidade de qualquer indivíduo, contrariando a
convenção de que a primeira é passível de ser medida ou que está de qualquer
forma relacionada com a área de estudo do sujeito. A inteligência é potencial
explorado (e esta palavra é, neste caso, um caminho e não uma meta). Todo o
ser humano tem potencial e, por muito ficcional e irrealista que esta sugestão
pareça, ela pode ser confirmada individualmente - olha para dentro. A armadilha
da cultura surge mais uma vez: o inteligente é o homem das ciências, o homem
das letras, enfim, o homem que pressupostamente move a sociedade contra o
Universo. Mas e o homem das artes manuais, o homem das costuras, o homem
da terra – que manobra o ecossistema para proporcionar a sobrevivência dos
restantes, e quiçá regenerar habitats e possibilitar uma vida menos sofrida às
outras espécies –; não são estes homens inteligentes? Não reconhece ele o seu
potencial intrínseco e escolhe percorrer esse caminho. Não põe ele o seu
potencial em prática indo contra a máquina social e os estereótipos que lhe estão
afiliados? A dificuldade de um caminho cheio de estigmas – 'a pessoa do campo',

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'tens que ser alguém na vida!'. Mas eu já sou alguém. Eu preciso de descobrir o
potencial que me é inerente; e tantos outros precisam.

Este é o processo de desromantização: a desconstrução do Eu e da


Sociedade, tanto que estão interligados. Eu e o Outro andamos de mãos dadas.
O livro é ainda aquela que acredito ser a melhor forma de propagar esta ideia –
a sugestão. No fim de contas tudo o que posso fazer é sugerir. A Verdade é
subjetiva e, cada vez mais acredito, esse é o caminho – olha para dentro. A
Verdade não é escrita, não é ensinada, não é objetiva. É um caminho único a
cada um de nós. E nisto dá-se outro paradoxo: se a Verdade é individual porque
estou eu a (tentar) descrevê-la... gosto de pensar que estou a sugerir apenas a
direção: é assim que eu me movo e acredito que partilhá-lo por um livro possa
ajudar alguém. Viver na era do Ego torna complicado qualquer exercício de
comunicação, mais ainda quando a Mentira é a imagem da Língua. O logro. E o
que é o livro senão uma materialização do exercício comunicativo. Assim o vejo:
uma hipótese honesta e sem interferências exteriores de passar uma
mensagem; de ajuda pessoal e interpessoal; uma conversa entre escritor e leitor.
O livro vai mais longe que o ego, que a necessidade irresistível de manobrar o
próximo (através da mentira). O ludíbrio.

Gosto de pensar que escrevo porque alguém poderá ouvir; mas sei que
escrevo porque alguém me quererá ouvir. Egomaníaco. É nesse exercício de
ouvir que eu procuro passar a desromantização e, quem sabe, marcar a minha
Verdade e a tua.

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Sexta Entrada

‘Nunca pensamos que aquilo que os cães conhecem de nós são outras cousas de que
não fazemos a menor ideia.’

José Saramago em Intermitências da Morte

‘Dada a escolha de uma característica de um animal que pudesses


incorporar, qual seria?’

Definitivamente escolheria a habilidade de viver no presente do gato. A


capacidade de levar a vida física passo a passo sem uma definição ou
compreensão do tempo (não há ontem ou amanhã); aliás, se calhar até o
compreendem melhor que o humano que se deixa engolfar nele. Qual veio
primeiro: a nostalgia e apego ao passado ou a expectativa e ânsia do futuro?

Para o gato não existem conceitos: o gato sente fome, come; sente sono,
dorme; sente afeto, partilha-o. Uma existência humilde e Presente – a nostalgia
e seletividade da memória, a incerteza e imprevisibilidade do futuro longe estão
da vida deste animal. É paciente e geralmente toma-se essa qualidade por
defeito, tal preguiça ou procrastinação. É dedicado ao Agora, ainda que tanto
quanto sabemos por instinto; tanto se pode aprender com o gato, tal inspiração.
Diria até que viver com uma gata – Ela, a Éris –, despoletou de certa forma o
processo de desromantização; houve um despertar para a necessidade de
derrubar certos muros – prisão interior –, nomeadamente a minha constante
angústia derivada da necessidade do meu ego de criar expectativas para o futuro
(que é indefinido), ou o meu permanente convívio com as memórias de algo que
foi e não mais será. Sendo a mente seletiva com as memórias, as reminiscências
do passado conseguem tantas vezes tornarem-se nocivas.

Como é que eu, o Homem, que tão eloquentemente prezo a minha razão
acima do instinto do animal (ou de qualquer outra forma de vida) vivo num
autoflagelo constante provocado pelo ciclo que é a nostalgia e a expectativa?
Tanto podemos aprender com a árvore que nada fala, que nada faz – Existe.
Também muito há a assimilar do cão que persegue carros e que acabamos a
desprezar ‘cão burro, deixa-se levar pelos instintos’. Tal como este cão, o
Homem de forma semelhante vive o presente na expectativa de apanhar o carro
e, quando finalmente o apanha, nada sabe fazer com ele – rapidamente precisa
de arranjar outro carro a perseguir; e quando chega a noite fria, quando chega a

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solidão, lembra todos os carros que um dia apanhou - tamanha nostalgia. Mas o
cão apresenta outros traços de onde podemos beber: o amor incondicional. Algo
que talvez nunca consigamos compreender ou, melhor, conceptualizar, mas que
sentimos que existe, que é verdadeiro. O possível no impossível é talvez a
melhor forma que encontro para descrever este amor. A capacidade inerente ao
cão e talvez a toda a vida de amar. Está lá! É inegável. Sente-se. E a nossa
tendência para reduzir o que ocorre à nossa frente poderá tentar negar aquilo
que acontece na relação Homem – Cão, mas qualquer um de nós pode confirmá-
lo dando-se a esta experiência. É fantástico!

Por fim, em toda esta questão existencial, chegamos ao Homem e à


capacidade humana: a habilidade de compreender. O humano, por qualquer
motivo que me é alheio – tanto que hoje, mesmo com a ciência, as perguntas
mantêm-se: ‘porquê a razão?’ ‘Este dom?’ ‘Porquê o homem racional?’ –, pode
olhar o cão e observar e sentir o amor; pode depois conceptualizar esta emoção,
este estado e descrevê-lo; e pode por fim adaptar este novo conceito a si próprio
– a hipótese de mudar os seus comportamentos consoante vai bebendo do
mundo, da vida. Ao passo que o animal está subjugado aos seus instintos: ele
faz tal está programado para fazer. Indescritível é o poder do ser humano. Olhar
o mundo e poder ir além do instinto (que lhe também é inerente, tal animal). As
possibilidades são exorbitantes! Positivas e negativas. Mas não há positivo sem
o negativo… preto sem branco… são dois lados da mesma moeda. A moeda da
existência. E assim caminha o Universo. Existe. Uma luta do bem contra o mal.
Somos responsáveis pela nossa vida?

Mais tarde…

A Verdade, o Facto Universal, a Resposta ao Problema Existencial é


Individual! O Universo físico é composto por inúmeras, infinitas materializações
individuais – é tudo individual. A Resposta nunca será geral. Nunca. O Caminho
é Individual. Nunca será o problema social resolvido num modelo generalizado
que despreza todos os indivíduos que o compõem, tal são os modelos políticos
que conhecemos. Estão errados. A intenção poderá ser a melhor mas nunca
resultará. O social é o conjunto de todos os individuais e se um é esquecido há
corrupção. Ninguém pode ser deixado para trás. Enquanto individual tudo o que
posso fazer é procurar e dedicar-me ao meu caminho. A ajuda que tanto quero
fornecer aos outros pode apenas surgir na forma de inspiração: inspirar o

17
próximo a almejar mais para ele próprio. Se o indivíduo muda a sociedade muda.
O meu erro esteve sempre em olhar o social como um todo. Uma massa uniforme
e homogénea. Sempre pensei que a mudança viria num modelo utópico para
essa massa. Impossível! O paradoxo que achava ver – individual versus social
– é solúvel. A forma como olhamos as coisas é um beco sem saída. Uma
mudança de perspetiva transforma tudo. A solução é o indivíduo. Eu. Tu. O
Próximo. Ama o próximo…e amarás o Todo.

18
Sétima Entrada

‘– Os homens já não se lembram desta verdade – disse a raposa. – Mas tu não te deves
esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que cativaste. Tu és
responsável pela tua rosa…’

Antoine de Saint-Exupéry em O Principezinho

Eu deixo-me por onde passo. Todos os locais e pessoas que por mim
passam, pelos quais passo, todos eles carregam parte de mim e deixam parte
deles comigo. Toda a Vida – tudo o que experiencio – toca-me e é tocada por
mim. Leva-me e deixa-se ficar. Eu gosto desta ideia. Eu sinto que esta ideia é
verdadeira. Palavras deixadas na parede de um restaurante, desenhos por uma
mesa de café… eles ficam, eu fico. Palavras ditas, abraços dados, despedidas
feitas. Ficam. E outras experiências vêm, outras pessoas, outros lugares.

Sinto que viajar é uma resposta em si. Manter-me fechado dentro da caixa
onde sempre vivi, a caixa onde me colocaram no momento em que nasci…essa
caixa trancou-me do mundo – e Universo – do qual faço parte; impediu-me de
mim. Privou-me de me ir deixando no mundo, de receber o mundo.

O caminho é individual, mas a meu lado infinitos outros percorrem os


seus. Infinitas possibilidades. Caminhos cruzam-se. Nunca se unem. A união
leva à posse, essa ao apego e por sua vez à dor. A liberdade nasce de um
profundo desapego pelo mundo físico e de um enorme reconhecimento pelo
mesmo, pela possibilidade de experienciá-lo. Será assim?

19
Oitava Entrada

‘The meaning of life is just to be alive. It’s so plain and so obvious and so simple. And
yet, everybody rushes around in a great panic as if it were necessary to achieve
something beyond themselves.’

Alan W. Watts

Quais as fundações do caminho da Humanidade? Os alicerces da decisão


Humana? A estrutura da construção do Homem? As raízes da Árvore da
Vida...que por sua vez dão lugar a um tronco, uma copa, uma fruta e, por fim, a
outra árvore. O ciclo da Vida. Qual a base do mesmo? Para onde me direciono
quando tudo o que vejo é humano – a paisagem planetária a cada dia que passa
é coberta pelo Homem; são estradas, edifícios, enfim, cultura. Humano ou
produto da razão? Tudo isto criado por um ser vivo composto pela razão e
animalidade. A razão deu voz ao animal? Sei que já o fiz uma...demais vezes.
Usar a razão como ferramenta para vociferar a minha bestialidade. Vocalizar
todo o animal de que sou feito. Ações irracionais, violentas, descontroladas. À
falta de um olhar imparcial, de uma análise neutral da minha condição; à falta de
um reconhecimento do ódio que me consome e de, consequentemente, deixá-lo
governar-me, muitos magoei no meu caminho. Por vezes com essa mesma
intenção. Sou corrupto. É isto que acontece a uma escala global com o Homem?
É o ódio que nos move?

À imagem da Natureza está a destruição. Constrói-se e destrói-se. Cria e


mata. Romantiza e desromantiza. O Homem, tal como a onda está para o
oceano, é produto e estrutura do Universo. O Homem é a Natureza. Será contra
este princípio – destruição/extinção – da Natureza tentar manter a nossa espécie
viva? Tecnologia, Medicina...disciplinas que no final de contas procuram a
imortalidade. É errado debater-me sobre o fundamento do caminho do Homem?
Ou, como todas as espécies que até hoje conhecemos, somos apenas um
programa instintivo que nasceu e falecerá? Um programa que vive na ilusão do
livre-arbítrio. Talvez não sejamos mais que isso. Daí surge a questão Existencial.
O ceticismo. A vontade de existir esvai-se. À falta de resposta à pergunta 'porquê'
manifesta-se uma falta de propósito, de sentido. No Ocidente é oferecida uma
filosofia de vida ou, melhor, uma forma de existir que, ao fim e ao cabo, mascara
o existencialismo, a falta de propósito: viver para o futuro; viver para o objetivo
estabelecido, caminhar pelo Amanhã. A ideia de viver o Hoje com vista à

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felicidade do futuro. Viver pelo fim, pelo que será. Viver na expectativa do bem-
estar que virá. 'And while we're about to be free and about to be happy, life
passes us by. It comes after death, after retirement, after coitus, it's always after
something that it comes.' – Terence McKenna.

Por sua vez, o Oriente apresenta certas filosofias 'do meio': o Caminho é
a meta em si, o Caminho é o fim, o objetivo. Viver o Agora e não o Depois. Há
um desapego total pelo futuro e, portanto, pela expectativa. Deixa-se o que
poderá vir ou o que se deseja que venha e dá-se lugar ao que existe Agora, a
este momento: uma contemplação da Vida, de Tudo; aliada ao reconhecimento
da fragilidade da mesma – a realidade da morte. Eu existo e eu morrerei.
Pegando na Natureza como inspiração, abraço o Desconhecido e vivo cada
momento, cada Agora; sem apego à memória, sem necessidade da expectativa.
Esta filosofia aos olhos de um ocidental como eu é puramente idealista e até
corajosa. Requer uma força de vontade admirável. Olhando-a através de umas
lentes céticas e existenciais, tais são as que uso, é fascinante e até motivo de
esperança – se calhar é por aqui que passa o meu Caminho.

Olhando toda esta análise vejo que não cheguei a lado nenhum, afinal de
contas isto são apenas formas de vida, culturas diferentes. Não são erradas nem
certas, apenas são. Subjetividade. Onde procuro o sustentáculo da Vida então?
Há, sequer, uma fundação objetiva da Existência? Há uma Verdade Universal?
Importa pensar nisto uma vez que o meu fim será sempre o mesmo? Acho que
posso apenas mover-me através daquilo que sinto que é certo; o caminho para
onde, inconscientemente, me dirijo. Tenho de me deixar ir…sem apegos…sem
dogmas; abraçar o Desconhecido. As respostas, a seu tempo, surgirão.

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Nona Entrada

‘A book is like a key to unknown chambers within the castle of one’s own self.’

Franz Kafka

Tornou-se terapêutico.

Porque escrevo um livro? Realmente é um excelente exercício de


conversação: um Emissor, uma Mensagem, um Recetor, mas neste caso a
Mensagem não está suscetível a interferências aquando a sua difusão.
Comummente vêem-se conversas e observa-se a Mensagem dissipar-se pelo
apetecível paladar do Ego.

Neste caso, no exercício de comunicação através do livro, o meu Ego está


presente – eu sei-o – mas outros dois fatores também o estão: a possibilidade
de ler e reler (não partindo de primeiras reações); e a hipótese de racionalizar e
pôr a mensagem que chega em perspetiva (ao invés de reagir emocionalmente).
Ainda assim acho que é importante definir o meu Ego. Está sempre presente. Os
seus desejos corrompem por vezes a Mensagem. Acho que o posso descrever
como o ser emocional e reacionário que, guiado pelo passado, se deixa
condicionar nas decisões e movimentos presentes. Infelizmente, muito comum
é ver-se este ser dar a cara nas demais situações diárias ao longo da vida. O
Ego é uma interferência - senão o maior distúrbio - à Mensagem. O Ego é quem
acrescenta o ponto ao conto. Corrompe. O Ego é a ilusão da separação entre
Eu e o Outro, quando na realidade existe apenas um Nós.

Sabendo-se agora que o meu Ego faz parte deste livro, é possível
reconhecer-se quando é ele que detém a palavra. No momento em que escrevo
isto sei reconhecer que nesta entrada, o objetivo da conversação que iniciei não
foi o de apresentar uma Mensagem, mas sim tentar introduzi-la na cabeça dos
demais que me leem. A perversidade da retórica.

Há aqui falta de honestidade. Não seria de todo verdadeiro justificar este


livro exclusivamente como uma conversação: não seria apenas por este singelo
motivo que me dedicaria de corpo e mente à materialização das conversas que
se dão dentro de mim. Porquê, então, materializá-las? Porque parece-me haver
uma, ainda que inconsciente, dedicação mental (visualização) e orientação da
minha energia (pensar incessante no livro e na sua composição) em prol do

22
mesmo. Ou seja, é como se o livro fosse a direção da minha mente. O caminho.
Eu tenho uma necessidade de o criar. Será o livro inevitável?

Há mais! E aqui se dá, talvez, um dos meus maiores debates interiores. A


necessidade de deixar a minha mãe orgulhosa. O livro como um meio para isso.
E não se menospreze esta urgência pois ela é-me tão vital quanto o respirar e,
tanto quanto sei, tão maquinal e involuntária – enfim, inconsciente – como esse
mesmo ato. Esta necessidade está cá desde que me lembro e, no entanto, não
a consigo compreender, apenas a sinto. E que turbilhão ela causa. Estará o amor
de mãe ligado com esta imprescindibilidade? Afinal de contas a primeira ligação
que se dá é com a mãe. Mas este orgulho que procuro parece-se com
reconhecimento, e o reconhecimento, tanto quanto sei, é algo interior - procurá-
lo exteriormente não serve senão para me iludir. Sabendo o reconhecimento
exterior falso porque o procuro? Porque preciso dele? Mais precisamente, o da
minha mãe? Será que é um agradecimento? Será que confundi um obrigado por
reconhecimento?...obrigado por me mostrares a essência. O Amor liga a Vida. A
mãe é o primeiro amor e torna-se indispensável um agradecimento. Mostraste-
me o Tesouro que é Viver. Mas será de facto assim? Um agradecer? Falta-me
informação para conseguir aproximar-me de uma resposta: muito de mim precisa
de ser cavado, aprofundado, para conseguir plantar uma semente linguística e
fazer florir uma ideia. Uma ideia que me seja plausível, quem sabe verossímil ao
próximo também.

Deixando a especulação diarista para trás e avançando com a metáfora


literária que estou a tentar apresentar. Quero desmistificar a ideia comum de
livro: um produto final, passado por múltiplas correções e assassínios de ideias
originais; vítima do escrutínio literário que se nos apresenta como paradigma
social: o intelectualismo; vítima de si próprio, tanto que quando se obtém o objeto
final – o livro – tudo o que o constituía, toda a sua estrutura é capaz de estar
corrompida (alterada). Eu quero desromantizar esta regra. Eu quero olhar o livro
que escrevo como um processo e o processo como o fim em si. Eu não quero
que o livro cresça em mim, mas que cresça comigo. Uma analogia ao processo
de viver, que é uma aprendizagem constante e nunca um ponto perfeito (um
patamar utópico de onde mais não se aprende). O livro personifica o
reconhecimento de que almejar perfeição/utopia como um patamar objetivo e
imutável (algo concreto; exemplo: 'isto é a perfeição/utopia') é um erro crasso e,
possivelmente, até distópico.

Tantas vezes repudio o que escrevi. A falta de confiança naquilo que faço
domina-me. O que esperar quando a cultura onde estou inserido preza a falta de
autoestima e reverencia os padrões preestabelecidos do que é considerado bom
ou mau – subjugando por completo a imaginação e individualidade. Mas eu vou
levar este livro até ao fim, na esperança de me mudar com ele. Transfiguração.

23
Metamorfose. Mudar as lentes com que me vejo e, por conseguinte, o mundo.
Exemplificando: eu reconheço a minha até então falta de vocabulário, má
articulação dos pensamentos, falta de confiança no que faço; no entanto,
identifico também o até então esforço posto no exercício literário de que me
responsabilizei e o contínuo processo que é aprender e melhorar. Eu consigo
mudar.

O produto final poderá vir a ser um livro que retrata o decurso da minha
vivência atual, do confronto com o meu passado e de como tudo isso faz parte
de um processo contínuo de aprendizagem. Aprendizagem literária,
aprendizagem emocional, enfim, aprendizagem humana.

Que mania essa a de dar poder aos padrões literários. A ideia de que o
que é cultura está certo. A cultura está a destruir o artista e por consequência a
própria arte de viver. Padronizar e massificar ideias 'corretas' do que é - ou tem
de ser – a arte. A morte do indivíduo. A morte da criação. O nascimento do
produto.

É importante deixar explícito que não há uma Mensagem objetiva. Uma


moral da história. A Mensagem é volátil. Ela acompanha todo o processo. A
Mensagem é o processo. É uma exploração pessoal. Na esperança que outros
possam identificar-se com o que passei e que se lhes seja prestável entrarem
em contacto comigo. Discordâncias surgirão ao longo do livro. Paradoxos.
Incoerência. Mas quer-me parecer que se assim não fosse, estaria a ir contra a
própria natureza impermanente das coisas; estaria a tornar-me dogmático.

Que ideia divertida. Um livro que segue o seu escritor em direto.

E enquanto o escrevo, penso. Penso no livro, na sua forma, nas suas


cores, penso na sua materialização, penso na sua difusão, penso na
Desromantização – em deixar a nu o Homem. Desmascarar a sua fachada.
Penso no que seria de um livro assim em plataformas para o difundir. Quem o
iria procurar às autobiografias quando o que se procura nas prateleiras são os
romances. Eu que só queria ser ouvido; já os outros pavoneiam-se tão
eloquentemente ali, nos best-sellers, vendendo promessas de intelectualidade e
de uma nova postura social: a inveja dos vizinhos menos ilustrados e a
admiração dos intelectuais. A ironia da expressão 'julgar um livro pela capa'.
Compramos pelas letras e imagens engenhosas que se nos dispõem à frente,
pelas promessas de que seremos superiores ao próximo. E no final de contas
isto são apenas devaneios de um livro que, hipocritamente, também quer apenas
o mesmo: vender-se.

Porque existem categorias? Porque existem separações? Diferenciação?


Não foi a divisão de território – os países – que criaram a xenofobia? Não surgiu

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o sexismo dos géneros? É errado diferenciar ou é o Homem que não está apto
a compreender a Língua – ou seja, toma a diferença por separação. A
diferenciação faz sentido de um ponto de vista organizativo. É até necessária.
No entanto, acho que o Ego usurpou este propósito. O Homem deixou de
distinguir entre diferença e separação, surgiu a discriminação.

Onde se enquadra este livro nestas categorias? Uma autobiografia? Um


diário? Um conto? Esta rotulação cria problemas? Nomeadamente: serão
expectativas criadas de acordo com a secção do livro (condicionando a
experiência de leitura); ou este seccionamento perpetua a rotina e o conforto do
Homem dando-lhe sempre o que ele procura, alimentando apenas o que já lhe
é conhecido – a aprendizagem dá-se fora da zona de conforto. É errado separar
os livros? Ou simplesmente há uma falta de educação do Homem para a
abertura com o que lhe é desconhecido; para sair da rotina, do comodismo? Uma
falta de recetividade para com o que lhe é estranho.

No que a isto toca, o Homem ocidental, o Homem que conheço, muito


rapidamente procura vestir-se quando se sente ser despido das suas crenças,
ideais, enfim, do que lhe é rotineiro, conhecido, Normal. Quando a sua realidade
é posta em questão, ou quando há tal possibilidade, ele corre a esconder-se nas
suas roupas triviais.

O que seria do Ocidental se visse os alicerces da sua Construção serem


derrubados. Desromantizados. Que apocalipse seria se o convencional, se o
banal fosse posto em questão…

25
Décima Entrada

‘O número de livros aumentou nas prateleiras cuidadosamente feitas para ele por um
dos seus amigos carpinteiros. A sala começou a parecer-se com uma casa.’

Maxim Gorky em A Mãe

A este ponto classificarias este livro como um diário ou uma terapia? Uma
longa e serena sessão de terapia individual. Talvez não tão individual assim…O
livro surgiu-me à mente; deu-se em mim; projetou-se aos meus olhos…quase
como uma entidade – algo que me é alienígena.

Eu, as perguntas, e os problemas. Eu, a (auto) psicoterapia e as


sugestões e perspetivas. O livro, a ferramenta, as novas lentes.

‘Ajuda-te e ajudarás os outros.’ Algo neste seguimento. O individual


projeta-se no social e, se a intenção for pura, o social poderá inspirar-se nele.
Quase uma simbiose. Eu preciso de ti e alimento-me de ti. Retribuirei e alimentar-
te-ás de mim.

Se calhar é um diário…um memorando…um romance…se calhar uma


futura história infantil.

Talvez seja apenas um livro.

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Décima Primeira Entrada

‘Pelos vistos, para seres quem és, a única possibilidade que te resta é a de que pareças
ser outro.’

José Saramago em O Homem Duplicado

Sou um humano. Num oceano de humanos. Tenho falhas, defeitos,


problemas. Sei-o. Não porque existem várias vozes exteriores que mo dizem.
Sei-o porque assim mo diz a minha intuição. A minha voz. Estou a aprender a
ouvi-la. Ela não me guia pelo mundo exterior (como tantas vezes a tentei utilizar).
Ela encaminha-me pelo mundo interior. Pavimenta-o. As emoções orientam a
forma como me movimento. As minhas ações, automáticas e inconscientes –
maquinais – estão agora sobre o escrutínio desta voz. Esta singular voz. Estou
a ficar maluco? É um problema linguístico: se um maluco é aquele que ouve a
sua voz antes de ouvir as que o rodeiam, então lunático estou. No entanto e
partindo do facto de que no momento em que somos trazidos sem escolha ao
mundo, à consciência dos cinco sentidos, a única verdade e, atrevo-me a dizer,
garantia que temos, somos nós próprios. Ninguém mais tem acesso à nossa
mente senão nós. Estamos sós. Para sempre. A minha realidade é individual –
precede a social. Nascesse eu noutro qualquer meio social e dar-se-ia uma
reação totalmente diferente: seria o Anton da Estónia, com os seus
pensamentos, valores, medos, ideais – se calhar o meio social teria um enorme
poder sobre mim e nunca o poria em questão (realidade social anteceder a
individual) –; no entanto, a possibilidade de compreender a minha individualidade
e, porventura, realidade individual, estaria sempre em aberto. O exterior existe
porque eu existo! É até interessante sugerir que, enquanto Anton, poderia atingir
os mesmos ideais que agora penso e sugiro – colocasse eu as lentes da
imparcialidade e do espírito crítico. Questionar.

Não é descabido propor que a exploração interior é a autêntica viagem ao


centro da Terra e, quem sabe, a possível cura da Humanidade. A verdadeira
Descoberta. Imagine-se a Sociedade composta de indivíduos que finalmente
olham para dentro, que reconhecem os seus males, que os decidem combater;
e que, por fim, projetam o melhor de si no elemento social. O erro está em
vivermos segundo ideais expostos socialmente – cultura – por outros indivíduos,
dos quais desconhecemos as intenções. Como iria dar certo viver a vida dos
outros? Percorrer um caminho que me é alheio? O individual cria o social. O

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individual dá sentido ao social. Não o inverso. Estarei eu lunático por ouvir a
minha voz ou está o mundo a enlouquecer por entre tantas vozes
irreconhecíveis? Fugimos aos nossos caminhos singulares.

E quando a voz interior sugere pôr em causa a vida de outrem?

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Décima Segunda Entrada

‘We are told “no”, we’re unimportant, we’re peripheral. «Get a degree, get a job, get a
this, get a that.» And then you’re a player, you don’t want to even play in that game. You
want to reclaim your mind and get it out of the hands of the cultural engineers who want
to turn you into a half-baked moron consuming all this trash that’s being manufactured
out of the bones of a dying world.’

Terence McKenna

‘Os casos de doença mental realmente desesperados encontram-se entre


os indivíduos que parecem mais normais. «Muitos deles são normais por se
encontrarem tão bem adaptados ao nosso modo de vida, porque a sua voz
humana foi silenciada tão precocemente nas suas vidas que nem sequer lutam
ou sofrem ou desenvolvem sintomas como o neurótico.» Não são normais no
sentido absoluto que poderíamos dar à palavra; são normais apenas em relação
a uma sociedade profundamente anormal. A sua adaptação perfeita a essa
sociedade anormal é uma medida da sua doença mental. Estes milhões de
indivíduos anormalmente normais, que vivem sem espalhafato numa sociedade
à qual, se fossem seres humanos por inteiro, não deviam estar adaptados
acalentam ainda a “ilusão da individualidade”, mas, na realidade, estão em
grande medida desindividualizados.’ – Aldous Huxley e Erich Fromm em
Regresso ao Admirável Mundo Novo.

E que sociedade inóspita. Essa que se vai manifestando e absorvendo


todas as outras. Essa que cultiva individuais com um propósito em massa.
Vítimas sociais, apáticas a um mundo de dor e injustiça. Perfeitamente
adaptados ao puzzle social; encaixam neste meio que as preenche com ilusões
de livre arbítrio e individualidade. Sociedade ou vírus que se propaga através da
cultura. Uma peste inescapável. A descendência – que anda de mãos dadas com
o conceito de educação – é a chave desta doença mental. São vítimas os pais,
os pais dos pais, os pais dos pais dos pais; os educadores, os responsáveis pela
criança enquanto ela se encontra no período sugestionável, enquanto é uma
tábua rasa inocente que tudo questiona e para a qual tudo brilha. A criança que
ainda se encontra sem ideais alheios, leis e moral, medos e inseguranças,
encontra o seu primeiro axioma no amor dos pais. Esse amor é o seu primeiro
facto. A primeira verdade inquestionável. Mal ela sabe que caminha para o
abismo da desindividualização. O poço do sofrimento: a falta de amor-próprio, a

29
religiosidade do consumismo, o egoísmo. Sintomas de uma doença mental grave
o suficiente para pôr em causa a Vida do planeta, uma doença crónica e
hereditária. A Peste Humana.

Caminhamos apáticos, viciados, perversos, de mãos dadas – dado o


medo da solidão – para o Caos, a Destruição. O fim da Vida como a conhecemos.

Hoje, mais que nunca, é necessário ir além de criticar as múltiplas


sociedades que se viram adoecer ao longo da História. Deparamo-nos com uma
crise global: a sobrevivência da nossa espécie. Talvez sinta esta urgência de
ajudar, de fazer parte da arte da solução, porque a minha programação mais
básica e primitiva é a necessidade de sobreviver ao meio e reproduzir. Eu quero
solucionar o vírus, erradicar a doença.

Onde começa o problema?

Depositar as culpas na sociedade não será de todo a solução mais


plausível, afinal de contas o órgão social é constituído por todas as suas células
individuais. Hipocrisia.

Responsável és tu que reconheces o problema. Estás responsável de


procurar a solução.

Mais: existe realmente um problema? Como é que justifico objetivamente


que há um problema, uma doença? Se calhar é problema apenas para mim. Se
calhar estamos predestinados para o Caos.

A resposta é a Dor. Esta reação que se dá derivada de algo físico ou


mental. A dor funciona como um catalisador da mudança comportamental. Anda
de mãos dadas com a cognição. A dor é objetiva, por outras palavras, é comum
a toda a Vida tanto nos faz crer o nosso conhecimento atual: toda a Vida reage
quando é colocada em sofrimento.

Eu conheço a dor e tendo a viver de forma a evitá-la. Não ter de a sentir.


Eu sei o que custa. Tu sabes o que custa. Ele sabe o que custa. Pegando na
base dos ensinamentos do Buda: a Dor é o que une a Vida. É o Comum.

Sabendo cada um de nós o que é sofrer, imaginar-se-ia um mundo movido


pela empatia e compaixão, no entanto, vivemos da corrupção – doentes. A
doença que falava prolifera-se num meio de medo. Há medo de confrontar a dor,
o sofrimento. Quer-se confortabilidade, quer-se prazer. O oposto da dor. A dor é
medonha; tudo se faz para não a sentir, inclusive abdicar da individualidade
numa sociedade que ameaça magoar ou deixar para trás quem não a seguir.
‘Sem boas notas és burro’; ‘Sem curso não serás ninguém’; ‘Sem trabalho
definharás’; ‘Faz como te digo e sobreviverás’. Em tempo, estes indivíduos que,
por medo de sofrer futuramente resignam-se a fazer o que se lhes é mandado

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tornar-se-ão apáticos e incapazes de sentir; perderão a sua humanidade e
trabalharão como uma peça do enorme coletivo, deixando para os seus
descendentes não mais que a doença mental que carregavam. Profunda
alienação. E tornar-se-á normal esta sociedade anormal.

Parece-me que dependendo da infância do indivíduo se deparam duas


hipóteses: o neurótico (depressivo) ou o apático (funcional). Se há uma ligação
afetiva estável entre o educador e a criança – se há amor e, portanto, confiança
– cria-se um apático funcional, uma vez que a cultura (as ideias da sociedade) é
transmitida sem questão; cria-se uma peça maquinal da sociedade pronta a
trabalhar, consumir e colaborar para a ideia da Massa sem a questionar, por fim
reproduzindo-se para assegurar a sobrevivência do vírus. Uma ligação afetiva
perturbada – que cause sofrimento, que careça de amor e, porventura, confiança
– é capaz de produzir o efeito adverso ao infante: revolta e questionamento do
que é aparentemente normal. A criança, ferida, carrega a cicatriz da dor, da
dúvida, da revolta e, possivelmente, do ódio. Estão apresentados todos os
ingredientes para o neurótico. Um que olhe o que é considerado normal e veja
tudo o que está errado. Está tudo errado, doente. A princípio esta revolta e
infelicidade são suportáveis através das ofertas de prazer (felicidade
momentânea) de uma sociedade profundamente hedonista: drogas, sexo,
adrenalina, falso amor; mas em tempo nem isso chegará e a depressão surgirá.

É importante relembrar que esta análise é subjetiva e tem por base toda
a minha experiência e observação da vida. Escrevo produto do que fui e sou; o
que me criou, o que vi, o que experienciei até hoje.

O mundo, felizmente, ainda tem o poder – agora mais que nunca – de


observar todas as outras culturas para além da ocidental. Olhar todas estas
diferentes perspetivas de caminhar a vida, possivelmente menos tóxicas.
Inspirar-nos com os outros. No entanto, a absorção das outras culturas pela
ocidental é visível – repare-se na tecnologia que povoa agora todo o planeta.
Não será descabido então, sobretudo estando consciente do que aconteceu ao
longo da História, sugerir que temos um problema global entre mãos. Um
problema social que em breve se tornará incontrolável. Que está a dar origem a
outras crises de dimensão desconhecida ao Homem – olhe-se a crise ecológica.
Tal como o humano reage à dor, também o Planeta o faz. Deveríamos saber isso
(ou pelo menos considerá-lo), sabendo-nos produto da Natureza.

31
Décima Terceira Entrada

‘We seldom realize, for exemple, that our most private thoughts and emotions are not
actually our own. For we think in terms of languages and images which we did not invent,
but which were given to us by our society. We copy emotional reactions from our parents,
learning from them that excrement is supposed to have a disgusting smell and that
vomiting is supposed to be an unpleasant sensation. The dread of death is also learned
from their anxieties about sickness and from their attitudes to funerals and corpses. Our
social environment has this power just because we do not exist apart from a society.
Society is our extended mind and body. Yet the very society from which the individual is
inseparable is using its whole irresistible force to persuade the individual that he is indeed
separate! Society as we now know it is therefore playing a game with self-contradictory
rules.’

Alan W. Watts in The Book on the Taboo Against Knowing Who You Are

Eu sofro; Tu sofres; Nós sofremos. Viver uma vida humana é viver uma
vida de sofrimento. Sofrer, pensar e repensar na dor. Sofrer por antecipação…É
ter a capacidade de refletir e empatizar por toda a vida que sofre. Ambos
sabemos o quanto custa. É indescritível. As outras espécies sofrem sem nunca
ponderar na dor; o Homem sofre e acaba a divagar pela dor até se tornar
miserável. Todos sofremos. E a vida acaba a ser um engajamento imposto com
um desígnio infalível – a todos os que passaram, passam e passarão. Um
contrato com a imprevisibilidade tendo apenas por certo os inúmeros problemas
e desfortúnios que aparecerão pelo caminho. A única jogada que dispomos é
suportar; aguentar mais um dia.

Sofre a criança, o jovem, o adulto, o idoso. Sofre porque envelhece por


entre a amargura da nostalgia. Sofre porque é jovem e ninguém o leva a sério.
Sofre o que pensa na morte, no fim. Sofre porque quem fica sofrerá por quem
vai. A Vida apresenta-se como uma caminhada de dor e angústia, com breves
intervalos de prazeres supérfluos que, de certa forma, ajudam a tolerar a mesma.
E é quando saímos das nossas conchas que nos protegeram tanto tempo da
realidade, é quando observamos o que nos rodeia que finalmente vemos os
Outros e o seu sofrimento; cada um deles tentando esconder, isolar a sua
respetiva pérola de um mundo ambíguo e inóspito. Não damos sequer
oportunidade à dor; isolamo-nos das emoções.

32
O que é esta concha? Lançados enquanto tábuas rasas e com um singular
sentido de contemplação (quase extasiada) e de envolvimento com este plano
de existência ainda completamente desconhecido, é-nos sugerido de imediato o
primeiro conceito ao qual nos associaremos: o nome. Após o nome, em breve a
língua – os conceitos – substituirá toda a magia que se nos apresenta aos olhos.
As palavras, diariamente gastas, despirão a beleza das coisas. O
incompreensível e infinitamente belo e contemplativo será humanizado pelos
conceitos, estes transmitidos como dogmas. Iniciar-se-á o processo de
banalização da Vida. A criança começará a desenvolver uma concha à volta da
pérola que uma vez rejubilou ao olhar atonitamente o que o rodeava, pérola que
tinha infinitos porquês em relação a tudo. Vê-se uma pérola trocar a sua natureza
cintilante e pura pelas palavras, pelos conceitos, por uma concha.

A criança crescerá entre associações a ideias que lhe são indicadas: o


que é certo, o que é errado, o que é, a sua idade, o seu género, e as expectativas
em relação a tudo isto; e é neste meio que, em tempo, ela tomará todos estes
conceitos como parte de si, como a sua identidade – dá-se um apego a todas
estas ideias que foram fazendo parte da sua vida –, por outras palavras, criar-
se-á uma concha. Um Ego. Uma pessoa. A personagem principal da ficção que
tomamos como realidade. Uma relação de dependência estabelece-se para com
esta personagem – sem ela não sobrevivemos – até não mais ser relembrado o
que fora antes do Ego. Este, por sua vez, está na origem de todos os problemas
da pérola: corrompe o seu brio e pureza com as frustrações, expectativas,
medos, inseguranças. A crença nesta concha, neste ego, levará à crença nos
medos e inseguranças que o constituem, concedendo-lhe um olhar amedrontado
e egoísta por tudo o que o rodeia – nunca confiará em ninguém para além de si.
O medo da morte surgirá pois esta ameaça tudo o que o Ego é – todas as
associações que moldaram a concha. Não mais é uma pérola natural que abraça
o desconhecido. Tudo agora se lhe apresenta como ameaça; existir é em si uma
ameaça à concha frágil. Tudo pode colapsar a qualquer segundo. A fragilidade
da Vida.

O dia seguinte não é garantido. Dor por antecipação. O ser que outrora
fora arrojado com a forma como olhava a Vida encontra-se agora com medo de
a viver. Porque viver é sofrer. Porque viver uma vida humana é viver uma vida
de sofrimento. E preparados para tudo fomos, menos para sofrer. Preparados a
um planeta corrompido a todos os níveis, quase irreconhecível – tanta é a
humanização que derrete o Natural, que o cobre de estradas e edifícios –, mas
somos completamente ignorantes no que toca ao Facto da vida: a dor.

Há vida e há morte. Agarramo-nos à primeira, tememos a segunda. No


entanto sabemos que andam de mãos dadas. Dualismo. A moeda. A criança
pura – não humanizada – teme a sua morte? Vê a planta definhar, morrer e faz

33
dela mártir? Ou, pelo contrário, aceita o ciclo da Natureza? Existir é viver e é
morrer. É sofrer. Sentir. Chorar. Amar. Contemplar. Porque nos subjugamos ao
medo? Porque perdemos de vista a beleza e a surrealidade de viver?
Banalizámos tudo.

Quantos já foram condenados ao suplício durante as suas vidas, quantos


tiveram uma existência miserável conhecendo não mais que o sofrimento e o
infortúnio; quantos foram os que assim viveram até eu estar vivo, até agora, e
quantos mais são torturados agora? Penso nisso. A dor é angustiante.

Quando penso na morte, uma indescritível sensação de pânico domina-


me. Não o desejaria a ninguém. Não quero que ninguém sofra. Custa
demasiado.

E, no meio de tudo isto, o mundo que desenvolvemos para todos os que


aqui caem – sem escolha, pois quem escolheria existir neste oceano de mágoa
-– e para os que cá estão é um de medo e incapaz à vida humana. Um mundo
de pérolas apavoradas, fechadas a quatro paredes, acorrentadas a uma concha.

Desenvolvemos formas de comunicar e compreender o próximo e,


incompreensivelmente, não o conseguimos abraçar enquanto irmão. Vemo-lo
inimigo.

Postos numa bola de terra no meio do nada, sem qualquer compreensão


do que está a acontecer para além das leis naturais que vamos descobrindo,
recusamos o que de mais puro e real temos: as nossas pérolas. A derradeira
blasfémia.

É indecente a Existência – a complexidade de tudo e a falta de respostas


às perguntas que eu nunca pedi – mas mais indecente é existir e observar um
mundo que condena pérolas a conchas. Pois que, se não escolhemos estar aqui,
ao menos que escolhamos caminhar a Vida de mãos dadas e abraçar todo o
Desconhecido e a sua obscuridade. Juntos. Vamos engajar no empreendimento
Humano enquanto pérolas, responsáveis pela sua própria dor e,
consequentemente, pela do Próximo – por toda a Vida, que toda ela sofre.
Abramos caminho à empatia.

Porque todos sabemos o quão insuportável é a Dor. É implacável. Cruel.


E eu tenho medo. E pânico. Tenho que os enfrentar. Perdi-me por entre todas
as associações a que me resignei. Sei bem o que me custa questionar aquilo
que tomei como identidade – o que me é seguro. Desconstruir a concha.
Questionar a estrutura que me fiz acreditar real. Preciso de dar lugar ao
desconhecido. À escuridão. Quanto custa e vai custar. Mas tanto quanto sei a
Vida não passa disso mesmo, uma longa, ofegante e imprevisível caminhada. E,
a partir do momento que tenho a capacidade de reconhecer dor, malícia e

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corrupção, tenho a hipótese de virar costas e contribuir para um empreendimento
indecente, ou assumir responsabilidade, abraçar a natureza da realidade e partir
de braços abertos à mesma, ajudando toda a Vida que por mim passa.

35
Décima Quarta Entrada

‘Our ability to reach unity in diversity will be the beauty and the test of our civilisation.’

Mahatma Gandhi

Tenho que avaliar as minhas ações consoante as suas intenções. Se


consigo imaginar além daquilo a que fui condicionado, tenho de alcançar isso.
Tenho de ir mais longe que a ‘mente de macaco’, que o Ego; não ser vítima da
primeira reação que tenha. Uma vez identificado o Ego há que o controlar e não
mais ser limitado pelo mesmo: quebrar a concha e dar lugar à pérola sensível e
compassiva.

É mais que ‘pensar nos outros’, tanto que muitas vezes as nossas ações
para o bem dos outros têm-nos apenas em vista – procuramos ser
recompensados de alguma forma pelo que fizemos, acabamos a ver o outro
como um meio para e não como o fim. É compreender e sentir o próximo como
a eu mesmo; sentir a dor que o atormenta como minha e de tudo fazer, tanto mo
seja possível, para a aliviar. Eu sofro, tu sofres. Tu sofres, eu sofro. Somos Um
e somos dois.

A minha imaginação, que creio ser um traço da pérola – um indício do


mundo interior que me é escondido –, está na base da modificação das minhas
ações. Se consigo imaginar e conceber a dor alheia, se consigo sentir empatia,
consigo manifestar estas visualizações na forma de ajuda, num mundo alienado
aos princípios da razão. Consigo transmutar reações em ações conscientes. O
poder de ir para além do centrismo e egoísmo do Ego. Tenho a responsabilidade
de mudar.

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Décima Quinta Entrada

‘Those who do not understand true pain can never understand true peace.’

Nagato

A estrutura do empreendimento Humano é a Dor. O facto comum à Vida


é a Dor. O objetivo num oceano de subjetividade. A agulha num palheiro. O
Homem tem o poder de a compreender e, porventura, crescer a partir dela –
tanto falam as mitologias de seres iluminados completamente desapegados da
dor. Mas por tanto quanto sabemos, nós, ocidentais e pessoas de ciência (e do
ceticismo), todo o ser que nasce sofrerá; partindo deste conhecimento
poderemos ramificar as nossas ações, a nossa enterprise, tendo a Dor como os
seus alicerces. As nossas disciplinas…a política, a educação, a economia, a
comunicação de massa seriam desconstruídas em ferramentas com visa a
atingir fins leais ao princípio da Dor – ou seja, com vista a causar o menor
sofrimento possível. Não mais nos educaríamos à competição. Seríamos deuses
na Terra. Humanos plenos. Mestres da arte do humanismo – que tão mais
utópico é que o altruísmo.

Sendo o altruísmo o conceito que se opõe e completa o egoísmo –


dualidade –, um conceito que nós usamos sempre como um meio para um fim –
‘sê altruísta porque te sentirás bem’ –; somos altruístas pela recompensa e
nunca como o fim em si. Altruísmo deveria ser o estado natural do ser humano.
O humanismo, nesta linha de pensamento, é um conceito que admite o egoísmo
como um crescimento necessário a cada indivíduo e não como algo evitável (tal
como o conceito de se ser altruísta indica: sê-o para não seres egoísta). Um
crescimento da ignorância e do ódio para uma existência mais iluminada e
compassiva, mais humana. Uma existência plena. Cresçamos dos erros
cometidos. Libertemo-nos do animal a que estamos agrilhoados e, por fim,
abracemos o Universo. Humanos, animais, Vida.

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Décima Sexta Entrada

‘Se as portas da perceção fossem purificadas, tudo surgiria aos olhos do homem tal
como é, infinito.’

William Blake

Vivemos numa cultura que vive do exterior, que massifica humanos com
base no paradigma de indivíduo que apresenta. Tal e qual a impressora que
imprime um mesmo modelo nas folhas pretendidas. Vivemos das nossas
reações inconscientes. Estamos desligados da experiência individual.
Experienciamos o que nos foi implantado – o que gostamos e não gostamos, o
que acreditamos ou não acreditamos é produto do nosso condicionamento.

A educação do espírito crítico e o trabalho com a criatividade individual


mudará tudo, uma vez que o mundo que conhecemos é resultado de todos os
indivíduos que dele fazem parte. É olhar para dentro. Dar ouvidos à voz
interior…essa que tem o poder de ir contra tudo o que as vozes exteriores
contam e recontam. E sabemos o quão tóxicas são estas vozes exteriores.

De que serve a literariedade ocidental se os indivíduos estão desligados


de si; criam-se robots programados às necessidades de um mundo tecnológico
e em constante movimento. Desprezam-se as emoções do indivíduo e faz-se
dele uma peça apática. O maior génio matemático seria vítima mental numa
sociedade que o condena à pressão e ansiedade de um sistema educativo em
decadência; tornar-se-ia só mais uma parte da Máquina. Quão triste é viver e
condescender com uma cultura que vê os humanos que a compõem como meios
para um fim. Justificável é a epidemia de depressão que se observa – a
velocidade com que ela se alastra.

Em tempos ouvíamos o quão únicos éramos, só para chegar ao momento


de sair para o mundo e sentirmos nele a absurdidade e desprezo da Máquina
Social. Ninguém quer saber de ti; é cada um por si. Sentimo-nos
desempoderados. Tristes. Não mais somos as crianças especiais e amadas;
agora somos mais uma peça que tanto faz para se encaixar na enorme e astuta
engrenagem social – esta que está pronta a substituir qualquer um que não se
ajuste bem. E vivemos na ilusão da necessidade: achamos a Máquina
necessária, pensamos não conseguir viver sem ela – tal é o condicionamento

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feito enquanto crescemos. Vivemos como se precisássemos dela e não o
contrário.

E de pensar que a mudança seria instantânea se nos apercebêssemos do


poder que na realidade cada um de nós detém sobre o mundo que nos rodeia.
Porque o exterior é uma manifestação do interior. Alimenta o interior e vê o fruto
exteriormente. Tal e qual a figueira que surge no mundo, quase magicamente,
do interior da terra – do subterrâneo, do invisível – dado às complexas raízes
que a constituem. Do interior se cria e dirige o que surgirá exteriormente, o fruto.
Raízes desnutridas e, em tempo, se observa a árvore definhar. O mal-estar
interior tornar-se-á visível.

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Décima Sétima Entrada

‘I did not bow down to you, I bowed down to all the suffering of humanity.’

Fyodor Dostoyevsky in Crime and Punishment

Além do dogma e do culto, a religião é uma disciplina humana, uma muito


interessante. Nos dias que correm existem, generalizando, duas correntes de
pensamento quando a religião é introduzida à mesa: o crente e o ateu. No
entanto, a mesa tem lugar a mais uma corrente que vai além do dogma pessoal
do crente – alguém que dá a sua vida à fé cega, num culto criado pelo Homem
e, portanto, suscetível ao erro –, e da atitude dogmática do ateu, na sua recusa
a considerar sequer a disciplina religiosa – alguém que olha com superioridade
do seu pedestal antirreligioso para o crente e que não se dá à oportunidade de
estudar este tipo de conhecimento dado a sua atitude.

Deste terceiro lugar, a religião apresenta uma realidade inegável ao ser


humano: a procura pelo Divino, pelo superior, pelo extra-humano. Podemos
relacionar esta necessidade com a primordialidade da busca pelo propósito, a
urgência de um propósito; podemos também observá-la ao longo do tempo e do
espaço como uma porta de acesso ao mundo espiritual, o mundo além do carnal
e materialista que vivemos diariamente. Contudo, a religião foi sempre uma
realidade à vida humana, de acordo com os relatos que temos. Desde o deus do
fogo ao deus cristão. Do politeísmo ao monoteísmo: a religião foi, desde sempre,
fator incontestável ao Homem e, portanto, não é de dispensar imediatamente
este conhecimento – tal é a vontade de uma época histórica científica e
geralmente ateia; uma época que atingiu a lógica e se vê dispensada da fé. Há
que ir além da convenção: longe das duas e fechadas correntes de pensamento
que renunciam ao conhecimento devido às suas crenças. Desromantizar a
atitude dogmática e partir a observar e aprender com tudo o que nos rodeia, todo
o conhecimento à disposição, com um espírito aberto e crítico.

É deste lugar que vou tentar analisar uma figura intemporal da História
ocidental. A figura que marca o Ano Um do calendário que utilizamos e que deu
origem a um dos maiores cultos desde então, o Cristianismo.

Jesus é um símbolo. Afora todo o culto estabelecido em volta desta


personagem histórica há uma verdade fundamental. Para lá da dúvida em volta
da veracidade da vida deste homem – dos seus ensinamentos, dos milagres ou

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até da realidade de quaisquer atos que lhe são atribuídos –, ele é um símbolo.
Jesus, ser humano que superou a cultura, a personificação da compaixão, a
alegoria do Amor.

Estando toda a história deste homem suscetível de ser falsa, ela é,


indubitavelmente, verdadeira conceptualmente: ela é uma ideia, uma imagem.
Houve alguém que idealizou esta figura de amor e compaixão, alienada a uma
cultura de discriminação e separação – de ódio e violência. Alguém imaginou um
ser humano tão utópico que acabou a manter a sua importância até aos tempos
que correm. O Jesus bíblico e a sua vida é, portanto, tão real quanto o Jesus
histórico – não se detendo ainda um consenso em relação à sua vida. Mais
ainda, torna-se fascinante como se criou um culto global em volta deste símbolo,
um culto em torno duma mensagem tão simples quanto amar o próximo.

É necessária uma deslocalização da nossa atual vida e de tudo o que


conhecemos e andar na História (eis uma das maiores habilidades que esta
disciplina nos possibilita) até à cultura da época bíblica. Imaginar tudo o que
observaríamos numa vida assim. A fome, a pobreza, a miséria, a guerra, os
ideais culturais, o ódio… e, uma vez estabelecidos nesta realidade, é de se
imaginar a impossibilidade de existir este símbolo – de surgir algum humano
assim em sociedade ou de ser sequer imaginado –, alguém completamente
esquizofrénico ao meio onde foi (supostamente) condicionado. Alguém tão
alienado a toda a realidade da altura que falava de ideias inconcebíveis e factuais
à Existência: todos somos irmãos. É de uma impotência enorme tentar descrever
a impossibilidade de Jesus. A realidade que se vivia…um tempo completamente
inóspito, desumano…como surge um ser tão humano assim. Alguém que
desvendou a natureza da realidade: que viu além da ilusão da cultura – da sua
relatividade e subjetividade. E uma vez dado este conhecimento, verificou o
sofrimento como o facto do Homem e propagou uma mensagem de Amor.
Porque no fundo todos somos o mesmo, todos sofremos: o amor apresenta-se
como a salvação, como a possibilidade de juntos abraçarmos a incerteza e
complexidade da Vida.

Uma personalidade que nutria esta pura compaixão independente aos


pecados cometidos. É quase um abraço do tamanho do mundo. Um empático
‘eu compreendo’. E é observar o derradeiro sacrifício que fez: ir tão longe quanto
abdicar da própria vida por um ideal inimigo à então sociedade: amar o próximo.

Quando posta à lupa a figura que é Jesus, não é mais de dispensar de


imediato o culto e torna-se até compreensível a existência do mesmo. Pois que
viver é sofrer e nesta figura há compreensão e perdão. O Cristianismo é
compreensível.

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Do meu ponto de vista, Jesus é um artefacto. Uma lembrança de que
somos todos o mesmo; de que estamos todos juntos na complexidade e
sofrimento da Vida, sem qualquer indicação de um caminho objetivo. Uma
recordação de que a Dor é a realidade comum e que do outro lado da moeda há
o Amor: há a possibilidade – quase esperança – de ficar tudo bem. Um símbolo
de amor incondicional. Uma inspiração.

Do outro lado do mundo, numa cultura completamente diferente, nasce


outro símbolo.

Conta a história que em tempos houve um rei chamado Suddhodana e


uma rainha de nome Maya. Rei e rainha viviam na prosperidade do seu palácio
felizes. Tempo passou e a rainha deu à luz um filho: Siddhartha Gautama.
Durante as celebrações do seu nascimento Asita, um vidente eremita, havia
descido da montanha onde vivia para anunciar a profecia que tinha visionado:
Gautama seria um fantástico rei ou viraria as costas ao poder e tornar-se-ia num
grande líder espiritual, um sadhu. Pois que o pai de Siddhartha queria que o filho
se tornasse num notável sucessor, manteve-o confinado ao palácio enquanto
crescia. Sem contacto com o mundo exterior, o filho cresceu príncipe num
oceano de riqueza, luxúria e poder. Criados, joias, banquetes, mulheres. Assim
viveu durante vinte e nove anos; até ao dia em que persuadiu o pai a deixá-lo
sair do palácio. Foi na sua visita ao mundo exterior que se deparou com o
inconcebível. O que viu era horrendo e surpreendente: enquanto visitava a
cidade conheceu um homem velho, um homem doente e um homem moribundo.
Ficou fascinado por se aperceber que estes homens representavam condições
normais e inevitáveis da vida humana. Na saída do palácio que se seguiu,
Gautama conheceu um homem espiritual, alguém que tinha aprendido a procurar
uma vida espiritual no meio do vasto sofrimento da condição humana. Inspirado,
Siddhartha sentiu que a riqueza material não seria a resposta ao objetivo final da
vida e decidiu abandonar a que tinha até então. Abandonou o palácio e começou
a sua procura por conhecimento numa floresta, onde conheceu sábios e
ascéticos. Muito perto de morrer à fome esteve enquanto experimentou a vida
ascética – a renúncia aos prazeres e confortos humanos –, mas este método
não lhe trouxe satisfação à sua busca. Na mesma floresta, cansado, acabou por
se sentar debaixo de uma árvore, onde meditou como os sábios o haviam
ensinado. Aí, recordou-se de quando em criança observava o sofrimento pelo
qual os insetos passavam quando a relva era cortada e, por consequência, as
suas casas e vidas eram destruídas. Lembrou-se da profunda compaixão que
sentia pelos pequenos insetos na sua infância, o que lhe trouxe um enorme
sentido de paz. Findos os dias de meditação, Gautama acabou por atingir o
estado mais elevado da iluminação: nirvana. O apagar do fogo – das chamas –
do desejo, do ódio e da ignorância. Tornar-se-ia assim no Buda, o despertado.
Despertou quando se apercebeu que toda a Criação, desde os insetos

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destruídos aos humanos velhos, doentes e moribundos estão unidos através do
sofrimento.

Esta história prosseguiria com os métodos descobertos pelo Buda para


melhor abordar esta verdade fundamental, mas não é de todo esse o ponto que
me trouxe a ela. Esta história, que anos mais tarde daria origem ao Budismo
através dos ensinamentos e palestras de Gautama, é fascinante dada a
semelhança à figura abordada previamente, Jesus. É impressionante como
ambas dariam origem a cultos globais – que ainda hoje fazem parte da vida de
milhões –, e não é de todo de desprezar este fenómeno. São tantas as vidas que
seguem estas duas histórias; prescindir de as analisar seria no mínimo
presunçoso.

Prosseguindo. Observando a vida do Buda é de se enxergar uma


particularidade enquanto caminha à iluminação: a sua evasão à cultura. Uma vez
fora do palácio e do programa cultural que lhe fora impingido pelo pai – que por
sua vez estava também condicionado, pois que haveria de ser a vida do filho do
rei senão a de um herdeiro e sucessor – Buda isolou-se na floresta. Tal e qual
Jesus que também havia fugido (para o deserto), tornando-se alienado à sua
sociedade. Apartado o programa – as ideias pré-estabelecidas recebidas
culturalmente – Siddhartha meditou; e foi ao olhar para dentro, ao ter acesso ao
mundo interior, que obteve a verdade fundamental e estrutural da Criação: o
sofrimento. É também engraçado como à memória lhe veio aquilo que sentia em
criança (pérola pura e incondicionada) quando olhava os insetos e como isso lhe
deu um profundo sentido de paz encaminhando-o à resposta. E não é senão isso
que procuramos em vida? Paz de espírito…

É incrível a semelhança entre Buda e Jesus. Dois símbolos, duas figuras,


duas épocas, duas culturas, duas histórias; e, no entanto, uma mensagem em
comum: compaixão. Ou amor ao próximo. Ou amor incondicional. Duas figuras
que se extraíram das suas sociedades, dos seus programas sociais, dos seus
condicionamentos e que acabaram por ver a mesma realidade. É curioso…não,
é fantástico! É uma descoberta fundamental ao Homem. Como é que alguém
conseguiu escapar à Máquina Social, sobretudo em épocas tão distantes e
inóspitas; como é que chegaram à mesma realização; e, como é que atingida tal
realização, dois cultos imensos se desenvolveram com base nestas histórias até
aos tempos científicos que correm.

É fundamental destruir a convenção de que as religiões não passam da


fé cega, da crença, e que, com base nisto, não merecem ser estudadas.
Aquando esta desromantização surge-nos uma verdade comum: o Amor. O
amor que se manifesta através da compaixão. A compaixão que surge da
realidade da Dor.

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Décima Oitava Entrada

‘Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu
ele? Nem a sorte nem a morte, nem as tábuas do destino…Era só uma flor. Mas tão
caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era
especial de história, achou que tinha de salvar a flor. (…) Desce o menino a montanha,/
Atravessa o mundo todo,/ Chega ao grande rio Nilo, No côncavo das mãos recolhe/
Quanto de água lá cabia,/ Volta o mundo a atravessar,/ Pela vertente se arrasta,/ Três
gotas que lá chegaram,/ Bebeu-as a flor sedenta./ Vinte vezes cá e lá,/ Cem mil viagens
à Lua,/ O sangue nos pés descalços,/ Mas a flor aprumada/ Já dava cheiro no ar, E
como se fosse um carvalho/ Deitava sombra no chão.’

José Saramago em A Maior Flor Do Mundo

Vivemos tempos afortunados. Não mais é inescapável o condicionamento


cultural e o sofrimento a ele aliado. Há a hipótese de fugir à escravatura cultural.
Não estamos cingidos a uma vida sexual controlada por uma religião
institucionalizada, a mesma que até há pouco tempo impedia o Estado de se
tornar laico.

No entanto seguimos ainda um programa tóxico que compactua com a


desumanização dos indivíduos, mantendo-os calados. O sofrimento mantém-se.
Mantém-se na pobreza, na fome, na guerra, no desfortúnio, no suicida, no
homicida, no rico, no angustiado pelo sucesso. Estas são as realidades da vida
e enquanto a linha de causa-efeito proposta pela nossa cultura se mantiver, elas
persistirão também. Pois tanto o pobre o é dado o seu inevitável nascimento e
reação ao ambiente que o rodeia, como o homicida o é tendo o mesmo por base.
O rico. O elitista. O suicida. É como se as vidas estivessem predispostas para
as condições a que chegaram. Predispostas para a Dor. Sofre o pequeno rapaz
com sonhos e ambições que em nada correspondem com o paradigma cultural
do ocidente. De sonhos destruídos embarca numa revolta tumultuosa ao sistema
que desenhou uma vida linear assim.

Uma produção em massa de um modelo de vida – um mesmo propósito


insosso com pequenos vislumbres daquilo que chamamos felicidade mas que
não passa de prazer hedonístico. Escola, universidade, trabalho, família, morte.
Pelo caminho é-se-lhe exposta a ideia de felicidade e o que deve fazer para a

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sentir – consumir prazer. E se este modelo funciona para os outros, para o rapaz
também terá de funcionar. Mas ele não o compreende, quanto mais adaptar-se
a ele. Não compreende porque aqueles que ama esperam dele algo que lhe é
estranho, não compreende porque na única vida que lhe é conhecida tem de
seguir um ideal fabricado pelos demais. Um ideal que sugere a felicidade como
algo suscetível de ser saboreado apenas durante os momentos estabelecidos
para tal. Toda a vida é um trabalho, toda a vida é para ser levada a sério; com
exceção dos tempos destinados à diversão – começou pelo recreio, virou
intervalo e acaba em folgas e férias.

E sofre o insaciável pelo sucesso. Aquele que na sua busca condicionada


encontra o El Dorado prometido mas que, uma vez obtido, acaba desencontrado.
Uma vez conseguido o sucesso, este não o alimenta como o fizeram crer que
alimentaria e incorre num ciclo vicioso por mais e mais sucesso – tal e qual o
rato que na roda persegue o queijo. E se ele soubesse que lhe bastava sair da
roda para se desemaranhar das complexidades a que primeiro foi sujeite e, mais
tarde, aceitou e viveu como suas. Nada mais que sofrimento.

Mas e se existissem alternativas a este programa que, tanto quanto sei,


funciona como uma prisão que primeiramente mata a esperança e, por fim, deixa
os seus prisioneiros resignados à sua condição. Se existissem ferramentas que
aliadas a uma intenção pura despedaçassem por completo os paradigmas que
tantas vidas constroem para, a longo prazo, destruir. Uma nova perspetiva
alienada das estabelecidas. Algo assim, se real, seria uma enorme arma à
mudança da atual realidade; seria também um tamanho perigo – sabemos bem
o que acontece aos que colocam a ordem social em causa.

Viagem, psicadélicos, isolamento, asceticismo.

O embarque a um outro país – por muito parecido que seja ao de partida


–, abre portas que jamais serão fechadas. Quando me refiro à viagem, refiro-me
à estadia e contacto com toda a cultura; refiro-me a ir além do turismo que nos
mostra apenas superficialmente essa sociedade. Na migração a um novo país,
compreendi os países como inexistentes – ilusões. Meros conceitos. Na viagem,
o indivíduo entra em contacto com a parte inferior do iceberg e vê a base e
estrutura daquilo que o turismo nos permite ver, a superfície. Fazem parte deste
arcabouço os valores, as crenças, os ideais, os dogmas, os juízos; são eles que
constituem as culturas. É nesta viagem que a minha até então perspetiva
ocidental da vida é posta à prova. A minha realidade é desconstruída; não é que
existem outras realidades? Aquilo que durante dezanove anos achei real,
mandatório e inescapável não passa de uma caixa, de um iceberg num oceano
imenso com tantos outros. É olhar as ruas desta nova cidade, deste novo país,
ver todos estes costumes alienígenas. O boom está prestes a acontecer. Vejo
cães esfomeados – dezenas –, doentes, sós; vivem resignados à luta diária pela

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sobrevivência, enfim, o que toda a Vida faz, tal é a programação da célula. E eu,
produto do que vivi e aprendi ao crescer, rapidamente julgo este novo país.
‘Como são capazes!?’ Mas, dada a primeira e inevitável reação, dá-se tempo ao
pensar – a reação dá lugar à análise (tanto da situação como da minha primeira
reação). Nascido numa cultura que não dá espaço a situações assim (maus-
tratos animais) penso na dieta ocidental. O holocausto que é a indústria animal.
Não é que fazemos o mesmo? Condenamos maus-tratos a certos animais mas
perpetuamos o sofrimento de outros. Sejam os cães ou gatos sujeitos à fome ou
as vacas e porcos condenados à prisão e tortura – privados até da luz do Sol na
grande maioria dos casos; o Sol que é um direito a toda a Vida! E é neste
pensamento que se dá um pequeno vislumbre da realidade, que em nada está
relacionada com os dois comportamentos culturais descritos previamente – tão
diferentes e tão semelhantes. A realidade é que todos estes comportamentos ou
tradições não passam de reações/efeitos a ações/causas precedentes; estas
reações/efeitos tornar-se-ão ações/causas. E este ciclo dá-se desde o início do
Homem, e, logicamente, do Universo. Tradições criadas e passadas de geração
em geração. Perspetivas de vida subjetivas. Caixas diferentes. A cultura é uma
ilusão tão complexamente orquestrada que faz o indivíduo que a torna possível
acreditar nela. Crer que ela é a realidade quando não passa de relatividade.

Nos psicadélicos encontra-se também o poder da dissolução dos limites


da nossa consciência – ir além da atual perceção da realidade. Há ainda a
possibilidade da dissociação do Ego que tanto nos retrai e magoa. Infelizmente,
ainda hoje a nossa cultura enfrenta graves problemas linguísticos e acaba a
enclausurar estas substâncias na gaveta das drogas; quando tantas outras
culturas as veem como remédios. Posta em analogia, esta dissolução seria como
observar o iceberg que é a cultura e consequentemente o indivíduo – eu, tu –
mas de forma drástica. Por outras palavras somos atirados ao oceano: todos os
outros icebergs são agora visíveis, no entanto, o oceano é um espaço voraz e
obscuro, um abismo. Com os psicadélicos há a verdadeira hipótese de matar o
ceticismo do ocidental. A morte do Ego.

No isolamento o indivíduo encontra a solidão. Na solidão encontra-se


como companhia. Finalmente é levado a deixar o mundo exterior e olhar para
dentro. Ouvir a sua voz. Desta voz e das muitas conversas que com ela terá,
surge a possibilidade de compreender a cultura como uma ilusão – um conjunto
de ideias aceites socialmente num dado espaço geográfico; ideias subjetivas e
relativas ao espaço e tempo onde se dão –, e de partir ao interior na procura pela
verdade. O programa é agora suscetível à crítica e a voz individual empoderada.
Eu estabeleço as minhas regras, os meus ideais, os meus objetivos. Eu combato
os meus traumas, medos, inseguranças. Uma vez desligadas as vozes e
sofrimento alheios, dá-se espaço e tempo à dor pessoal – e à possível
compreensão e resolução da mesma. A expectativa da cura se encontrar

46
exteriormente desaparece. A ilusão desvanece e eu estou agora responsável por
mim. A minha dor é minha e não do outro. Eu posso dar-lhe poder e vitimizar-me
ou escolher combatê-la. Eu desenho o meu caminho.

O asceticismo, tanto quanto estudei, priva-nos dos prazeres e


necessidades físicas. Desde a greve de fome ao celibato, o indivíduo desliga-se
do animal – da sua biologia – para, hipoteticamente, enveredar pela alma (ou
consciência). Na privação dos sentidos e dos desejos do corpo dá-se um
acordar; surge algo à equação. A mente. Há uma dissolução de tudo o que é
conhecido.

E outras formas por certo existem para ir além da consciência a que


estamos condicionados pela cultura, além do pré-estabelecido. A mudança é o
facto da Vida: o segundo em que escrevi isto nunca mais existirá. Não mais
temos de ouvir ‘mas não é possível mudar’. O desempoderamento a que somos
subjugados desde que pomos os pés no mundo é solucionável.

Afortunados somos que temos ao nosso dispor aquilo que cumpre com a
promessa da omnipresença e omnipotência do deus cristão: a Internet.
Ferramenta que uniu o mundo. Há 500 anos o desejo insaciável de tornar
conhecido o Desconhecido iniciou a descoberta do mundo pelo ser humano; hoje
temos todos os cantos do mundo à distância de um clique. Acho que o Homem
tornou possível o impossível. É de se contemplar esta tecnologia que a tantos
idosos é completamente absurda e irreal. É uma quase materialização do
teletransporte sugerido pela ficção científica. É real. Tão real quanto eu estar
com um familiar que habita do outro lado do planeta. E é este deus que nos dá
a hipótese de aprender sobre tantas outras culturas – senão todas – em
segundos. Podemos saber como a Humanidade se desenvolveu ao redor do
planeta e temos a possibilidade de analisar e, posteriormente, adaptar
determinados prós e contras de cada uma dessas sociedades. É fantástico. As
possibilidades são astronómicas.

Cultura para aqui, cultura para ali. Todas as convenções previamente


mencionadas acabam por ser apenas peças do gigantesco e complexo puzzle
que é a cultura. Fazem parte dele os costumes (estruturais e superficiais) e os
indivíduos que não os questionam e os perpetuam. E torna-se compreensivo,
pois que dar continuidade à espécie é biológico: reproduzimos espécie e valores
– a cultura é biológica; um subproduto da razão? O problema aparece quando
as convenções se sabem causadoras de inúmeras situações más. A cultura é o
objeto da Desromantização.

Qualquer uma destas experiências permite-me a conclusão de que o


indivíduo e o ambiente que o rodeia mantém uma relação de interdependência
e que, portanto, a nossa identidade não é uma objetiva, tanto não o é a cultura

47
de que fazemos parte. Eu, nascido aqui, sou o Francisco, com todas as suas
experiências e associações; eu, nascido na Geórgia, seria o Kakha, com as suas
experiências e associações: uma identidade de facto diferente. Isto apresenta-
se a mim como uma libertação das correntes a que estava agrilhoado: uma vida
imposta e pré-estabelecida; um sistema inescapável e maquiavélico. E, se tantas
realidades existem, posso ver para além daquilo que sempre ouvi: ‘mas a
realidade é assim, é imutável; habitua-te a ela, resigna-te a ela’…

48
Décima Nona Entrada

‘Há muito mais coisas no Universo do que os vivos imaginam.’

Miguel Sousa Tavares em O Planeta Branco

A cultura não é de todo um bicho-de-sete-cabeças; não fosse ela existir


imaginava-se a Humanidade na estaca zero, tal que as ideias não eram
passadas de geração em geração. Este complexo de ideias, conceitos, crenças,
costumes, arte, moral, lei – enfim, conhecimento – proporcionou, especialmente
ao mundo ocidental, as demais qualidades de vida. Conseguimos tratar e
prevenir doenças que em tempos devastaram inteiras sociedades. Não fosse a
cultura, o humano não chegaria à filosofia: a arte de pensar. Foi o ato de pensar
e questionar que eventualmente nos levou ao método científico e,
subsequentemente, às ciências que hoje tão presentes estão nas nossas vidas.
O Homem encontrou a lógica num oceano de crenças, tradições e superstição e
o misticismo acabou a dar lugar ao empirismo – que, por sua vez, levou ao
materialismo.

A lógica é a melhor ferramenta que a Humanidade dispõe no seu arsenal


à caminhada pelo Universo. Hoje sabemo-nos uma espécie entre tantas outras
num pequeno planeta que faz parte dum sistema de tantos outros – o infinito
Cosmos. Conseguimos observar sistemas microscópicos e galáxias
telescópicas. Estudamos corpos celestes, organismos vivos, forças e as suas
interações, constituições atómicas e moleculares do plano material.

Basta enxergar à nossa volta e vemos a lógica presente em qualquer


paisagem do quotidiano: tecnologia, medicina, entretenimento, alimentação,
educação. No entanto, rapidamente tomamos tudo isto por garantido, utilizando
e descartando quanto nos dá jeito.

Acho que o mais importante é compreender e respeitar a ciência enquanto


disciplina que estuda o Universo material – completamente alheia ao Homem e
à sua subjetividade. A ciência faz jus às leis naturais e não se dá a modos se as
suas conclusões põem em causa quaisquer crenças ou ideias pré-estabelecidas
pelas tendências cognitivas do humano. É a disciplina mais objetiva de que
dispomos e é de uma gratidão enorme viver aquando da época em que ela existe
no mundo. O instrumento à descoberta do Universo. Uma luz à escuridão que é

49
a Existência. Está para a caminhada que se Nos avizinha tal estava a caravela
a um Mundo desligado entre si e desconhecido – um mundo sem luz.

Não fosse a cultura e o sentido de deixar um legado inerente ao Homem,


sabe-se lá o que seria da Humanidade. É desta perspetiva que surge um enorme
agradecimento à cultura. Sem ela a educação seria impossível, pois como se
educaria sem informação do passado – sem conhecimento em relação aos
caminhos percorridos pelos que já passaram e às qualidades e erros dos
mesmos.

O exercício de alienação à cultura, o sair do palácio, é não mais que um


empreendimento de libertação pois que o retorno à cultura é inevitável – tal que
o indivíduo e o social andam de mãos dadas. O objetivo desta prática será o de
empoderar a individualidade para a criação de um novo sujeito – e de uma nova
sociedade. Há uma emancipação iminente. Uma conjuntura favorável à
evolução… ir além da estagnação trivial.

Aqui entra a espiritualidade – e atire-se desde já fora a ideia de esoterismo


que está associada a este conceito. Eu olho a espiritualidade como o estudo do
interior, tal e qual temos a ciência como o estudo do exterior. Como a última com
todas as suas vertentes e ferramentas caminha ao Universo exterior, a primeira
dá-se à jornada ao Cosmos interior aliada ao mecanismo intuitivo – a Voz
individual. Porque tal como sabemos o exterior um sistema de inúmeros
processos também o interior faz sentido assim o ser e, no entanto, parecemos
viver resignados ao passado que criou o presente Eu. Há-que conceder voz ao
indivíduo. Há-que desligar as tantas vozes exteriores perturbadoras. Há-que
desromantizar esta convenção.

Comes o que queres ou queres o que comes? Vestes o que queres ou


queres o que vestes? Vive-se das ideias que são oferecidas pelos produtos que
consumimos. Bombardeados incessantemente pelas vozes extravagantes – que
denominamos publicidade – que publicitam felicidade e bem-estar associados
aos artigos propostos. Não mais consumimos artigos, consumimos as
promessas que lhes estão associadas. ‘Já não compramos laranjas, compramos
vitalidade, já não compramos apenas um carro, compramos prestígio. (…) Com
um dentífrico, por exemplo, adquirimos, não um mero antissético ou um produto
de higiene, mas sim a libertação do medo de sermos sexualmente repulsivos.
Com o «vodka» ou o «whisky» não adquirimos um veneno protoplásmico que,
em pequenas doses, pode deprimir o sistema nervoso de maneira vantajosa em
termos psicológicos; estamos a comprar amizade e companheirismo (…). Com
os nossos laxantes compramos a saúde de um deus grego, o esplendor de uma
ninfa de Diana. Com o best-seller do mês adquirimos cultura, a inveja dos nossos
vizinhos menos letrados e o respeito dos sofisticados.’ – Aldous Huxley em O
Regresso ao Admirável Mundo Novo.

50
Vamos deixar por enquanto o tópico consumismo em aberto e mencionar
apenas que por agora serviu de exemplo ao paradigma do indivíduo ocidental
desempoderado e vítima do exterior.

O ponto que quero abordar é que, não sendo a cultura de facto um bicho-
de-sete-cabeças e existindo o exercício de a abandonar temporariamente para
dar lugar à voz e evolução individual, este abandono provisório não é de todo
fácil. Vamos analisar esta questão partindo de uma analogia. Imagine-se uma
caixa. Que sejam visualizadas as paredes desta, os limites da mesma. Esta
caixa, tal e qual o iceberg, compõe aquilo que somos, por outras palavras,
representa a cultura onde estamos inseridos. A caixa tem limites definidos e
conhecidos e, portanto, seguros – zona de conforto –; somos colocados dentro
desta e acabamos produto do que ela é, ou seja, torna-se-nos inevitável e
imprescindível à nossa identidade. Crescer assim – lembrando que me refiro à
caixa ocidental – é, de certa forma, seguro. Sabemos o dia anterior, o hoje e o
amanhã; a rotina serve de ludíbrio ao fator imprevisível da vida; e se o mesmo
se dá está-se pronto a explicá-lo e facilitá-lo. O problema é quando se dá o
confronto com a premissa da caixa: a idade adulta…é tempo de prestar contas
à caixa que nos possibilitou segurança e a moeda de troca é a escravidão. Uns
são subjugados, outros tornam-se mestres do jogo e, em tempo, todos
esquecerão que as caixas têm tampas. As paredes estáveis e indubitáveis
fornecem ao indivíduo a ilusão de segurança e a crença na falsa-realidade que
lhe é apresentada. É compreensível que tanto escravos como mestres não
olhem além das paredes que os cercam, pois que aqui dentro é seguro, aqui
dentro é conhecido, aqui dentro têm controlo da situação.

São os aventurosos que olham para cima e veem a tampa, são eles que
resolvem destapar-se das tantas ilusões a que foram sujeitos. Mas nem por isso
se torna fácil fazê-lo. É agora mais que nunca tangível a aparente e falsa
segurança que ali existia. Sair da caixa não é de todo simples, aliás poderá ser
a mais árdua muralha a ser derrubada. Sair do palácio implica admitir entre
tantas outras coisas a fragilidade da vida e a matrix que nos oprimiu. É assumir
tudo o que fez de nós o que somos como falso. O dia de amanhã não mais é
garantido e conhecido porque tanto quanto sabemos a morte é a única certeza
e realidade da vida – é agora mais verdadeira que nunca. A trivialidade com que
até então os dias eram passados é posta em causa e amplamente criticada: as
preocupações que até então eram vividas são abandonadas e um sentido de
contemplação e apreciação pelo momento presente desponta. Do outro lado do
espetro surge o medo: medo do desconhecido, medo da morte que faz agora
parte de cada segundo vivido. Quando a caixa ocidental e respetivas nuances
temporais – nostalgia e expectativa – é abandonada, dá-se lugar ao presente
incerto e desconhecido. Está agora nas mãos do indivíduo viver na
contemplação ou no medo.

51
No sair da caixa surge também a análise em perspetiva do que foi deixado
para trás: todos os valores, ideais, sonhos, medos, leis, enfim, tudo o que
constituía a realidade é agora questionado. Estava tudo errado? A meu ver nesta
situação surgem mais uma vez dois lados de um espetro: é momento de abraçar
todas as outras caixas, todos os outros icebergs e de todos eles beber – todos
eles são oportunidade de conhecimento; ou, acontece que, ao interpelar toda a
nossa fundação, se dê a total destruição da nossa identidade, o que por sua vez
abre caminho ao niilismo e à falta de propósito à existência – tudo o que era,
tudo o que sou, não passa de um resultado do meu contacto com uma realidade
num oceano de tantas outras.

Abandonar a caixa pode ser tão fantástico como assustador. Iluminação


e libertação ou medo e confinamento psicológico. O desconhecido é medonho,
especialmente para aquele que tanto necessita de ter controlo de todas as
situações. É nesta altura que voltar à caixa pode manifestar-se como a única
solução plausível ao medo incontrolável – nela há o conhecido e o dia de amanhã
é real. Andar de caixa em caixa é também uma possibilidade, mas em breve o
viajante dá-se conta que a realidade vai além de qualquer caixa ou iceberg – a
natureza da realidade é o oceano. É pavoroso ao indivíduo que precisa de ter os
pés bem assentes em terra; necessidade esta que a meu ver é também produto
cultural – o Homem levantou as muralhas que agora o aprisionam. E, quando se
depara com o oceano, foge ao velho continente.

É compreensível o medo que sinto. Talvez eu tenha que lidar primeiro com
o meu ego – o reflexo da cultura. Se calhar aí estarei pronto para a Realidade.
No entanto foi só na mudança e posterior confronto sociocultural que finalmente
consegui confrontar o problema pessoal, o Ego. Talvez ainda não estivesse
pronto para o choque e o medo que a ele vem associado.

52
Vigésima Entrada

‘Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o


passado.’

George Orwell em 1984

É complicado: tanto quanto sabemos temos esta vida, este momento, o


Agora; e acabámos por, inevitavelmente, criar as algemas que carregamos, as
barreiras à liberdade e consequentemente à felicidade do individual. Viver
segundo um programa estabelecido…todas estas imposições mascaradas por
responsabilidades que despoletam tudo menos felicidade ao humano. Porque
não fazemos melhor? Porque somos levados a acreditar que a forma como
vivemos é a melhor para o bem individual e comum.

É surreal viver no mundo contemporâneo: o conhecimento e os meios


para solucionar os problemas que existem são reais, no entanto, a discriminação,
guerra, pobreza, fome, ecocídio são mais verdadeiros que nunca. Mais absurdo
é a educação ocidental compactuar e perpetuar com estes distúrbios
denominando-os irresolvíveis ou fabricando axiomas sociais – ‘sê realista e
segue o rumo que te designámos’; ‘não conseguirás mudar nada’; ‘é assim que
o mundo funciona’. É incoerente e ilógico observar uma cultura que se assume
como civilizada – o mundo civilizado – por deter conhecimentos como a
tecnologia, medicina, enfim a lógica (ciências), recusar participar (e eternizar) na
solução das maiores adversidades que a Humanidade enfrenta. Porque
continuamos a compactuar com sistemas educativos retrógrados que
desprezam e envenenam por completo o período de infância à maturidade do
indivíduo? Porque condescendemos com uma indústria alimentar que vive da
venda de cancerígenos, açúcares, aditivos, viciantes que nada fazem senão
prejdicar e, eventualmente, destruir os nossos corpos? Porque nos subjugamos
a um modo de vida egoísta e competitivo que mais não faz que fornecer
amostras de fugaz prazer? Porque necessitamos tanto de cumprir com a
expectativa social designada? Porque não acordamos da alienação à nossa
individualidade, à sociedade em que vivemos e ao planeta que habitamos;
alienação que há tanto danifica o individual, o Homem, e que agora sabemos
culpada pela deterioração e extinção da Vida no planeta.

53
É de facto surreal! É quase como se o mundo exterior a este ponto fosse
um sonho, uma distopia. Um pesadelo de tal complexidade que passa por
realidade. Mas tal e qual como se torna possível com o dado trabalho e
dedicação participar ativamente na construção dos sonhos e mudar a inevitável
sucessão de acontecimentos, também o é assim para o sonho exterior – o
mundo disfuncional e inóspito que o Homem criou a si. Sabemos, por intermédio
da História, que através da compreensível sequência de eventos (a cadeia de
causa-efeito) chegámos ao mundo de hoje, produto implacável do mundo de
ontem. Quebremos a trama. Mudemos.

54
Vigésima Primeira Entrada

‘If we as a community believe in anything, we believe in feeling good in the moment. The
felt presence of immediate experience. This is what has been stolen from you. By
capitalism, by religion, by linear thinking, by strategizing. We’re always about to be
happy. Or we’re always about to be free. And while we’re about to be free and about to
be happy, life passes us by. This is because western ideologies are always ideologies
of delayed gratification. It comes after death, after retirement, after coitus, it’s always
after something that it comes. Well, I’ve got news for you, this kind of thing is chasing
your own tail. The felt presence of immediate experience is the only world you will ever
know. Everything beyond that is conjecture and supposition.’

Terence McKenna

Acho que somos feitos de reações – mecanismos reacionários – ou


melhor, eu assim me identifico após meditar em relação aos meus
comportamentos. Olho-me como se estivesse fora do meu corpo e observo os
meus comportamentos sociais. Quando induzido ao exercício social sou
perfeitamente reacionário, reações essas reflexos da minha anterior interação
com o mundo. Simplificando, vejo-me como um indivíduo inconsciente – sem
qualquer deliberação relativamente aos meus comportamentos enquanto se dão
e, porventura, um total desprezo pelo poder da interação com o próximo, um
desdém pelo diálogo e o posterior peso do mesmo nos demais e em mim. Vivo,
mas não penso; aquilo que projeto exteriormente é maquinal e involuntário;
acabo por não admitir responsabilidade pela minha natureza gregária, pelas
minhas ações e as suas influências no outro.

Interajo com indivíduos através de respostas automáticas. Só após me


consigo sentar e refletir no que aconteceu. Toda a interação parece feita
apressadamente: tanto me dirijo como respondo de imediato – sem qualquer
ponderação. Conversa-se por norma. O ato de comunicar parece perdido,
esquecido por entre cortesias. Reavivo a História e as tantas etiquetas
(comportamentos sociais) que fizeram parte das vidas da elite, essas que agora
chacoteamos; reavivo e penso na ironia de zombar comportamentos antigos
quando os mantemos presentemente por entre ilusões de mudança ou, como
lhe chamamos, evolução – ‘evoluímos desses ignorantes e respetivos hábitos’.

Reconheço-me como produto do elemento sociocultural que me


corresponde, no entanto, sendo agora capaz de analisar o meu comportamento

55
sinto-me responsável pelo mesmo. Não mais posso dar-me à ignorância da
reação. Tantas vezes senti-me sem controlo das minhas ações – egoístas e que
puseram em causa o próximo; que causaram sofrimento. Agi e de imediato me
arrependi. Porque reajo sem controlo? Parece-me que as primeiras reações às
situações – as ações reacionárias – são um reflexo da nossa educação (do
nosso contacto social e cultural) e, consequentemente, tornam-se a forma como
agimos diariamente. Algo que tão eloquentemente dispensamos como simples
ou trivial pode fazer parte da solução dos problemas individuais (e, por
consequência, sociais) que enfrentamos: a conversa. O exercício de
comunicação. Interagir. E se, ao invés de participar neste exercício de forma
inconsciente eu tirar um tempo para reconhecer o indivíduo do outro lado que
está a receber a informação que lhe transmito – input e output. E se eu for além
do meu Ego que vive focado em si tomando de parte o que o rodeia; que
despreza o outro. Chegando a este estado de comunicação (lembrando que a
comunicação não é apenas oral), por certo sentiria uma tremenda
responsabilidade por qualquer ação tomada: desde o ato de respirar – biológico
– ao ato de conversar – social. Dar-se-ia lugar a uma extraordinária
contemplação por quaisquer acontecimentos e a uma atenção plena aos
comportamentos em cada momento. A reação é substituída pela ação meditada.
A verdadeira evolução.

Olho o organismo social e vejo uma educação que catalisa a ignorância,


esta que por sua vez produz inconsciência que está na origem dos tantos
problemas com que convivemos – pelos quais sou responsável, pois se tenho
poder para os reconhecer posso e devo fazer parte da arte da solução.

Uma sociedade que alimenta o prazer instantâneo através do


consumismo, acaba a fomentar o comportamento reacionário que falava: isto
manifesta-se na forma como esperamos mudança imediata às situações
desagradáveis que defrontamos e como prescindimos da responsabilidade de
as mudar uma vez que é necessária dedicação e perseverança, algo
completamente desconhecido ao indivíduo que vive da facilidade do prazer
imediato.

Uma cultura que impinge o condicionamento clássico desde a infância


perpetua a Reação. O indivíduo é habituado a comportamentos através da
recompensa – tal funciona a moral cristã que, embora bem-intencionada e
necessária aquando criada, é perfeitamente dispensável a um mundo admitido
inteligente e, portanto, consciente (capaz de meditar as ações) –, e acaba por
nunca assumir responsabilidade pelos seus comportamentos pois nunca houve
educação ao pensamento crítico. Ninguém nasce consciente. Caminhamos da
ignorância ou inconsciência à iluminação ou consciência. Quando se é ensinado
o que pensar acabamos a viver na ilusão do livre-arbítrio (relativamente à

56
sociedade); pois se o pensamento é influenciado por fatores exteriores até que
ponto ele é um pensamento e não um programa? Acabamos reduzidos àquilo
que fomos condicionados a ser – ignorantes e inconscientes – recusando por
completo outras perspetivas – conhecimento.

O consumismo, cúmplice da massificação ocidental e da


desindividualização, sustém por sua vez o ideal de prazer imediato. Vítimas da
manipulação publicitária, os consumidores creem na máxima prazer ao consumo
– pois que procuramos na vida senão prazer; prazer enquanto evasão à dor. É
incrível como o marketing malicioso tem cabeças humanas por detrás dele.
Estarão estas pessoas conscientes das suas ações e do que provocam nos
consumidores, ou serão apenas vítimas da Máquina social? Prossigamos. Esta
ideia de prazer ao consumo induz o indivíduo a um ciclo vicioso de prazer
instantâneo; por outras palavras, tomando este falso prazer por felicidade,
procura-o a todos os momentos da sua vida sem nunca se aperceber da sua
falsidade e efemeridade: ‘espera-se todo um tempo até ter X e quando finalmente
se o tem, o prazer tão rapidamente é sentido como se escapa por entre os
dedos’. E por aí vai ele consumir tanto quanto possa, numa procura incessante
para sentir aquela fugaz sensação de falsa felicidade. Hábitos criam-se. Dão
origem a vícios. Todo este conceito da busca pelo prazer momentâneo acaba a
criar humanos incapazes de dedicação, pois que essa requer tempo, esforço,
dor, autodisciplina; e qual será o indivíduo que trocará este fácil e, ainda que
fugidio, caminho pela promessa incerta da felicidade através do caminho mais
difícil? Talvez aquele que esteja consciente do comprometimento que o ciclo de
que é vítima lhe causa, aquele que necessite tanto de uma mudança de
comportamentos que se torna capaz de abdicar de toda a educação consumista
pelo exercício regular do pensamento, reflexão e ação meditada.

Espero uma mudança imediata em mim tal que fui ensinado a esperar
tudo de bandeja, e por terra fica o sonho da mudança – da devoção a mim. Penso
naqueles que de tal forma foram condicionados que nem capazes de analisar os
dois caminhos previamente explicitados estão capazes; nunca se reconhecerão
como a finalidade, estarão sempre à espera da recompensa exterior. Tais
pessoas acabam a resumir-se à sua animalidade – ao jogo de estímulos
biológicos.

A mudança é uma de consciência. A revolta não mais poderá estar


reduzida à violência tal como o esteve durante toda a História – ciclos –; a
mudança social assim imposta é hipócrita. Ainda que os objetivos possam ser
os melhores se os meios para os atingir ficam aquém…‘bombing for peace is like
fucking for virginity’. A revolta está já a dar-se…a revolta à inconsciência. Uma
nova Era iluminada pelo poder (e consequente responsabilidade) da
racionalidade. Ainda que ignorante a consciência coletiva chegou à Internet, que

57
poderá ser a maior descoberta que o Universo já presenciou – um autêntico
mapa-mundo Ligado. Estará então na altura de caminharmos a um organismo
social mais saudável? Uma comunidade global sem a necessidade às
burocracias da sociedade – leis, instituições, Estado –; onde o social é produto
do individual (porque tal é fomentado através da educação). Seremos capazes
de tal? Um novo nível de consciência, além daquela a que somos resumidos
biologicamente (que se dedica a tempo inteiro apenas à sobrevivência) – a
animal. E se tal não for possível sabemos que enquanto produto e estrutura da
Natureza ela acabará a eliminar a incongruência que criou e que tanto
desequilíbrio lhe trouxe – a Extinção Humana.

É complicado imaginar que esta mudança se dará a tempo, uma vez que
a educação ocidental é a imagem perfeita do antropocentrismo. Somos uma
espécie entre tantas outras. Tantas se extinguiram. O que acontecerá, quem
sabe…; o que pode acontecer está à nossa responsabilidade. Uma nova era à
Consciência.

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Vigésima Segunda Entrada

‘Mother, father; always you wrestle inside me, always you will.’

Jack in The Tree of Life

Envelhecer acorrentado à angustiosa nostalgia. O tempo que passou.

Nascer e, em tempo, compreender e antecipar a morte dos que


amamos…Mãe. Olhá-los nos olhos e ir à prancha do desespero: não há nada a
fazer. Impotência.

Ser-se humano é doloroso.

Preciso de me libertar da dor. Libertação do apego. Apego às associações


que prendi a mim, que tornei Identidade. Se não as deixar ir continuarei a sofrer,
tal que a perda – por outras palavras, a mudança – é o facto da Vida. Viver,
morrer. Mudança. Impermanência. Este segundo nunca mais o será. Desapega-
te ou sofrerás. Aceita o processo Natural.

59
Vigésima Terceira Entrada

‘Let go your earthly tether. Enter the void. Empty, and become wind.’

Zaheer

Acho que, além do meu ego, há uma necessidade urgente de ajudar os


outros, ainda que isso implique ignorar por completo a autoajuda de que preciso.
Talvez escreva porque é terapêutico ou será futuramente; mas agora escrevo
porque as palavras poderão ser úteis a alguém que as consiga aplicar, alguém
que não seja hipócrita como eu o sou. Eu só quero ajudar, sei o quanto custa.
De tempos a tempos um pensamento abre caminho na minha mente: se
houvesse a opção de absorver todo o sofrimento, a Dor do planeta, fá-lo-ias?
Não sei. Até que ponto consigo abdicar do ego, da minha identidade, de tudo o
que conheço. Deixar o Francisco morrer. O Sacrifício.

Eu vejo a aclamada Civilização prestes a domar todo o Planeta.


Inconscientemente partimos à aniquilação, ao Caos. A causa parece-me única;
vejo-a em mim diariamente, vejo-me desligado do Universo, da Vida – uma falta
de propósito – e, quando alheio, torno-me egoísta, alienado das minhas ações e
das suas óbvias consequências. Quando induzido à vida ocidental, àquilo que
chamamos de dia-a-dia, ‘a vida real’, o ‘ser crescido’, perco-me entre as paredes
do labirinto egotista. Absorto, o Universo parece-me um infinito e inóspito lugar
de sofrimento: tenho de sobreviver e posso confiar apenas em mim. Só. Acabo
a desligar-me do que Sou, do Todo.

Desligados vivemos vidas vazias com a constante sensação de que algo


está em falta. Corremos a tentar preencher o vazio, em vão. É incrível como
vivemos com uma perceção da realidade tão pequena: o Presente está a dar-se
apenas aqui, à minha volta, no meu círculo de família e amigos, no mundo
ocidental. Vivemos como se a realidade fosse só esta pequena porção do que
está a acontecer em todo o planeta, fora o Universo. Esquecemos todos os
acontecimentos que se estão a dar: alguém morreu…e outro alguém…tinham
famílias. O que seria se fosse um conhecido. Há fome, há guerra, há pobreza,
há doença, há envelhecimento. E lá fora? Além das nuvens que nos iludem de
importância. Está tudo a acontecer Agora.

É inconcebível uma cultura que nos desliga do mundo e que no entanto


nos permite viver ligados ao planeta – a Internet. ‘Tenho demasiados problemas

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com que me preocupar para ter tempo para os de outrem.’ Como nos deixamos
cair aos erros que cometemos – temos a História! Temos a tecnologia, o
conhecimento. Todos os meios para erradicar os maiores problemas sociais que
verificamos desde que o Homem existe. A separação. Longe vão os tempos que
a Terra era inóspita, um mar de perigos, todos eles prontos a pôr em causa a
sobrevivência da espécie.

Talvez chegue de revolta. Vi-me cometer erros que muita dor provocaram
e provocam e, graças aos tantos humanos que para trás deixaram a sabedoria
da autoajuda consegui chegar a certas conclusões, quiçá perspetivas capazes
de revolucionar aquele que parece o inevitável desfecho da Humanidade. Se
ajudar um humano menos um necessitará de ajuda.

E nós Somos mágicos afinal de contas. Mesmo perdidos no egotismo


alcançámos e alcançamos o impossível. Ligámos um planeta estranho e
desconhecido: encontrámo-nos. Compreendemos hoje as estrelas que
antepassados adoravam. Os nossos corpos são entendidos como sistemas tão
complexos quanto o Cosmos. Além da delicada barbárie do animal e da
agoniante complexidade da racionalidade, encontrámos um lugar onde reside a
fragrância, o aroma duma alma comum. Espaço de infinita criatividade,
indeterminável, inexplicável. Alguns conseguem materializa-lo: chamamos-lhe
Arte. Quem sabe o que seríamos sem ela. É numa música que lembro a
beatitude da Existência. Um poema. Um quadro. Movimentos. Um livro. Uma
intenção. Um esforço. Evoca-se em nós um Sentido, algo nos enche…uma
qualquer ligação a algo além do mundano. Este lugar resplandece. É luz. Ouço
um piano e Desperto. Há uma vinculação inexplicável aos sons do instrumento.
O Homem construiu este objeto. Compôs esta melodia que ressoa dentro de
mim. Dispô-la aos meus ouvidos, quando em tempos esteve perdida à
imaginação de alguém. Passados tantos anos está aqui. Em mim. É impossível
e, no entanto, está a acontecer. Agora. Brilhante.

Temos ao nosso dispor a ciência que tão pronta está a responder ao


‘como?’ mas nem por entre a filosofia, a teologia, a metafísica encontrámos
resposta ao ‘porquê?’. Por aqui andamos entre tantos embaraços culturais que
tudo fazem à intenção de desempoderar vidas individuais. Falhamos em ver que,
aquilo que chamamos realidade, é uma de várias que na ilusão assim se
aclamam; uma ilusão arcaica e manipulativa que tanta dor nos tem vindo a
provocar desde sempre – agora mais que nunca os vestígios da cultura no
indivíduo são visíveis: a depressão, a ansiedade, o suicídio. Evoluímos a
medicina do corpo mas a da mente perdeu-se pelos tantos tabus culturais.

Tanto quanto sei a Existência parece-me um jogo. Um jogo que merece


ser jogado. Apreciado. Sentido. E, sobretudo, livre. Das tantas vezes que me
deixei devanear pela morte, nunca julguei encontrar nela liberdade. A liberdade

61
estudada por tantos intelectuais; tantos mestres que a teorizaram em regimes
sociais. E ela esteve sempre ali, escondida bem à vista. Era só olhar para dentro.
Confiamos no mundo exterior e denominamos o interior lunático, paranoico,
assustador. Porém, o poder está aí. E tanto nos perdemos na loucura exterior
que nunca por um momento pensamos em abrir o olho interior. O terceiro olho.
Tantas civilizações o contemplaram.

Livre estava eu assim que contemplei a morte. A prisão cultural não mais
fazia parte de mim, restava-me apenas abrir braços ao desconhecido. A ideia, a
ajuda que talvez possa prestar é esta: há que se dar uma batalha entre interior-
exterior – o confronto, análise e consequentes conclusões retiradas. Já havia
falado em exercícios de escape à caixa societal resta-me agora, após ter
experienciado, introduzir outros que potenciem o empoderamento individual.

62
Vigésima Quarta Entrada

‘Growing up in the place I did I never was aware of any other option but to question
everything.’

Noam Chomsky

Confrontando a ideia de consumismo com minimalismo…aquando a


exploração destes conceitos analisarei o primeiro enquanto problema e
apresento o segundo como possível solução.

Primeiro quero dissociar o conceito de consumismo da ideia singular de


consumo material; quero associá-lo à ideia de dieta. Por sua vez, esta palavra
por norma está relacionada com alimentação; e aqui gostaria de salientar a
peculiaridade do exercício linguístico: ele está condicionado pela experiência
individual, tanto que estas palavras serão interpretadas por mim de uma forma e
por outro de outra. Dá-se então lugar então à capacidade compreensiva –
empatia – do transmissor: se o objetivo for fazer chegar a mensagem ao recetor
ele irá adaptar a sua comunicação ao último. O Homem desenvolveu a Língua
com o fim de comunicar e compreender o próximo, mas parece-me que há muito
se perdeu a parte da compreensão, que a linguagem virou um empreendimento
de sentido único: a emissão. Esta, por seu turno, pode ser egotista, uma vez que
visa apenas os desejos do interlocutor e a sua necessidade gregária de diálogo;
acaba por deixar por completo a mensagem de lado. Acho que é também
importante mencionar que a Língua é a ferramenta primeira ao enterprise
humano. São símbolos que nos permitem explorar o mundo exterior – o Universo
–, pensar o mesmo e guardar este conhecimento para futuras gerações. A
Língua, sendo produto da razão, acabou por expandir a última a horizontes tanto
quanto sabemos, infinitos. No entanto, tal como as outras ferramentas criadas
pelo Homem, também esta é suscetível à corrupção do humano
impreparado…olhe-se a mentira! Olhe-se a alienação à realidade a que nos
subtemos após aprendida a língua, por outras palavras, acabamos a tomar os
conceitos que usamos para definir o indefinível como a Verdade – citando Alan
Watts, ‘what we have forgotten is that thoughts and words are conventions, and
that it is fatal to take conventions too seriously. A convention is a social
convenience, as, for example, money…but it is absurd to take money too
seriously, to confuse it with real wealth…In somewhat the same way, thoughts,
ideas and words are «coins» for real things’. O Amor deixa de o ser quando é

63
conceptualizado – quando a palavra aparece. O mundo exterior perde a sua
magia quando a criança – a tábua rasa sem conceitos – deixa de o ser; quando
ela é integrada num mundo linguístico.

Retomando a minha ideia de dieta: esta será o consumo do exterior, tal


que a alimentação se insere aqui mas tantas outras dinâmicas também se
inserem. Educação, bens materiais, arte, espiritualidade, política, drogas,
ambiente. No fundo é o contacto entre o exterior e o indivíduo.

A educação a que atendemos começando em casa e seguindo às


instituições escolares pode dizer-se fulcral no desenvolvimento individual.
Somos reflexo daquilo que recebemos de quem tomámos por exemplo – do que
aprendemos. Pessoalmente comprovei isto dado a minha experiência: a casa
onde cresci teve um profundo impacto na forma como parti ao mundo e reagi
com ele progressivamente. Se recebi ódio, ele alojou-se no inconsciente – tais
são os traumas – pronto a tomar forma, a emergir ao consciente em futuras
ocasiões. A educação de que dispomos em casa é, por sua vez, imagem do
contacto dos educadores com o mundo, com o ambiente que os rodeou e rodeia;
e, enfim, se esse não for o melhor, o que chega aos educandos pode ser
desleixado e venenoso.

Na escolarização encontra-se aquele que a meu ver poderá ser um dos


mais influentes fatores na perpetuação de uma cultura tóxica. O indivíduo é
colocado num programa que o obriga à memorização de informação fora da sua
área de interesse; é forçado a um sistema de avaliação que promove a
competição nociva e que pontua apenas a capacidade de decorar; é sujeito a
horários semanais intensos num ambiente que, desde cedo, lhe é impingido
como uma obrigação – a ideia de que a escola é um trabalho e que deve ser
levado a sério, por outras palavras que aprender não deve ser divertido nem
desfrutável –; é exposto a um ambiente social que espelha as experiências de
cada um e, portanto, descontrolado e nocivo – exemplificando: bullying –; e, por
fim, é condenado a todo o desconcerto e ansiedades associados a este
processo, ansiedade esta que acredito completamente menosprezada nas
atuais instituições de ensino. A escola acaba por ser uma experiência traumática
capaz de condicionar a vida de cada um. É-se desde cedo dada a conhecer a
ideia de que a escolaridade representa o sucesso ou insucesso – e aliadas
complicações – individual; cada educando está posto à pressão de suceder a
este programa obrigatório que o priva dos seus interesses e do prazer de
aprender e, consequentemente, é-lhe introduzida a noção de que a instrução é
algo austero e que se pretende evitar. No fundo o escolar está sucumbido a um
projeto que, a longo prazo, significa ignorância. Chegado ao ensino superior
observa-se veemente o modelo educativo até aí usado e a especialização – é-
se atribuída uma função especializada à peça.

64
Este sistema, a meu ver, está construído para criar robots, pois que será
de um humano colocado num ambiente de obrigatoriedade, pressão e
especialização com a premissa única de ‘ter um futuro’. O indivíduo torna-se um
peão pronto a ser manuseado pelo Rei, uma peça num mundo de trabalho. É
incrivelmente hipócrita como gritamos a nossa individualidade numa cultura que
nos priva dela desde que a integramos. Perde-se a curiosidade inerente a cada
um, a necessidade de aprender; perde-se entre ansiedades e traumas que nunca
cicatrizam e, findo o ensino superior, não mais é necessário o sofrimento
associado à educação. Dá-se lugar a máquinas de trabalho que sabem o que
precisam de saber para sobreviver. Vítimas.

Poderia sugerir uma educação que primasse o indivíduo e não o programa


literário. Uma base literária é obviamente necessária, mas hoje temos
conhecimento empírico o suficiente para definir essa base e, potencialmente,
deixar às mãos da curiosidade individual o futuro programa educativo, isto é,
deixar o aluno responsável pela sua aprendizagem. Se o interesse de X aluno
são plantas então o educador estará pronto a acompanhar X no seu caminho ao
conhecimento. Mudar o paradigma do instrutor como uma figura autoritária
pronta a ditar o seu programa para um guia experienciado e aberto à discussão.
É uma ideia um tanto estranha, mas capaz, teoricamente, de solucionar a
patologia educativa e dar lugar a um mundo mais singular – mais humano –, uma
vez que cada pessoa é feita responsável pela sua experiência desde cedo, é
ensinada a depender de si, a seguir a sua voz interior. Eu sigo a minha
curiosidade e escolho o que aprender e um educador está pronto a guiar-me com
a sua sabedoria. Daí em diante é deixar a minha voz interior, a minha intuição –
a ligação inexplicável que sinto com determinados temas, determinadas direções
– orientar-me. Em tempo não será necessária a instituição escolar, tanto que
qualquer um tem a capacidade de nos guiar no nosso caminho – qualquer um é
guia. Eu penso que este processo educativo alimentaria a noção de
responsabilidade e autonomia, a ideia de que podemos mudar uma faceta do
mundo exterior – a educação – num empoderamento do mundo interior; ao invés
de o desconsiderar por meio da escolarização massificada e impreparada para
a individualidade e associada exclusividade. Talvez idealista, por certo invulgar,
mas todo o livro o é; é uma sugestão de um ex-aluno do currículo primitivo e
retrógrado.

Escolhi não utilizar as palavras professor e estudante porque parto do


princípio que todos o somos em todas as situações, temos apenas que nos abrir
a tal facto: transmissor e recetor. Acho que a educação ocidental corrompeu os
dois primeiros conceitos e convido qualquer um que reconheça a existência de
algo errado a lutar para o mudar, ao invés de se deixar cair na condescendência.
Estou agradecido pela oportunidade à educação que tive mas, e prosseguindo
com a máxima de que tudo está em permanente mutação, deixar um sistema

65
conservador e arcaico por chamar à atenção seria injusto para comigo e, por
conseguinte, para com o próximo. Com o conhecimento surge uma enorme
responsabilidade: utilizá-lo como um fim ou utilizá-lo como um meio.

Quanto à alimentação, é inacreditável a ignorância que lhe está


associada. Sabendo hoje cientificamente que determinados produtos
alimentares são nocivos ao Homem é injustificável a produção, venda e consumo
dos mesmos. São insustentáveis os meios utilizados para a produção em massa,
que acaba por danificar o Planeta, produzir alimentos nefastos e deteriorar o
consumidor. Há ainda um total desrespeito pelos animais condenados à
produção alimentar. Temos de facto a necessidade biológica de nos alimentar,
mas é incrível como o Homem é a única espécie prejudicial às outras e ao seu
ambiente aquando a sua alimentação. A indústria alimentar é hoje uma das,
senão a mais tóxica ao Planeta. Sabemos também o quão letais são os produtos
por esta vendidos e, no entanto, o consumo inconsciente dos mesmos mantém-
se, não havendo uma qualquer educação relativamente ao tema.

Sabemos incontáveis produtos constituídos por químicos que


resplandecem de vício e caímos à tentação do prazer imediato, a gratificação
instantânea. A certo ponto parece que não temos controlo sobre as nossas
decisões: vítimas da armadilha do prazer desculpamo-nos com a morte e a sua
realidade iminente – tendências hedonísticas. Eu fi-lo incontáveis vezes e de
todas elas sucumbido ao prazer do momento, vi-o, efémero, escapar-se tão
rapidamente quanto sentido, deixando progressivamente um vazio para trás. Um
vazio que se tornou insaciável. Havia confundido felicidade por prazer e o último
é sagaz, tanto que acreditei que dedicar-lhe a vida sararia o vazio. Não se
verificou.

Acabando o assunto em discussão, sou da opinião que há uma infeliz falta


de consciência relativamente à importância da alimentação no processo de viver
e, consecutivamente, ao regime de produção alimentar – e às repercussões que
lhe estão associadas. A resistência do mundo ocidental à mudança nesta área
poderá pôr em risco toda a espécie. É fascinante como existe a dicotomia
obesidade e fome – quão desligados estamos do equilíbrio, do saudável balanço.
A dissonância cognitiva coletiva é estagnante.

Acho que os bens materiais se encaixam e dão continuidade à imagem


do consumo inconsciente derivado da necessidade de prazer imediato – de
lembrar que o mesmo é perfeitamente justificável enquanto resposta ao
constante sofrimento. O prazer quimicamente associado ao consumo de uma

66
nova peça de roupa é demasiado excitante para ser racionalizado e
compreendido. Compramos mais do que necessitamos menosprezando por
completo a nocividade da produção. Consumimos enquanto fim. Uma sociedade
em constante alvoroço por dopamina. A esta ideia posso ainda relacionar o
consumo de entretenimento e arte. A importância de ambos e o desleixo a que
nos damos quando o realizamos. O entretenimento é a heroína de tantos que
não a encontraram nos bens materiais ou na comida; encontraram-na no
desporto que vivem religiosa e fanaticamente ou nos jogos que precisam de jogar
diariamente. A arte, também ela parece adulterada, vítima do império das
massas. Uma vez imagem da individualidade e transcendentalidade do ser
humano, é agora disposta como um produto pronto a ser consumido e
descartado. Em tempos relacionada com a criatividade do indivíduo, é agora
posta de lado e dá lugar ao produto fabricado em prol de uma moda – um
costume acordado como bom socialmente. Penso em Bach, Beethoven…a sua
intemporalidade…há algo de muito humano que os faz clicar em qualquer um,
algo de transcendental, capaz de nos deixar estremecidos. Tocam-nos
profundamente, tais façanhas incomparáveis.

Prosseguindo com a espiritualidade vou ser breve e deixar assente o


ponto de que observo o Homem a fechar a sua voz interior – a fechar-se ao
Desconhecido – através da religião. Sendo uma vertente riquíssima do
conhecimento que explora conceitos tão importantes e essenciais a todo o
humano, é de realçar que, paradoxalmente, deu origem a tanta separação,
discriminação e ódio. Muito podemos aprender com a religião e acho que a
posição (e movimento) ateísta repelam essa possibilidade. É inegável a
importância da mesma ao longo da caminhada até ao mundo presente, mas
considero-a hoje desnecessária. O dogmatismo e a fé religiosa fecham portas à
lógica e ao espírito – a voz individual – por entre teologias e obrigações
teológicas. Nesta dissertação, tive por imagem de religião o Catolicismo com o
qual cresci, mas a ideia a reter é, e nas palavras de um grande amigo, ‘religião
é seguir o caminho que um dia alguém percorreu, é acreditar na Verdade que
não é tua. Espiritualidade é fazer o teu próprio caminho, percorrer, criar e viver
a tua Verdade’. A religião pede demasiada individualidade ao indivíduo, ao passo
que a espiritualidade se deixa abrir a todas as religiões e conhecimento. Uma
procura pessoal pelas respostas às perguntas existenciais, aos porquês; algo
que é oferecido sem evidência religiosamente. É importante beber de todas as
fontes.

Relativamente à política deixo apenas uma mensagem humanitária pois


sou ainda muito ignorante no assunto. Acho a política uma disciplina

67
profundamente humana. Uma missão social para garantir equidade a todo o
humano. No entanto essa missão parece pervertida quando o político não está
pronto à responsabilidade pelo poder que detém, quando se dá à mentira, ao
Ego e aos desejos pessoais. Nos dias que correm está associada a indivíduos
que tão eloquentemente falam para uma população leiga no que toca à
terminologia política; algo que deveria ser acessível a todo o cidadão tornou-se
demasiado complexo para ser acompanhado por qualquer um. Votamos e a
partir daí somos deixados à mão de um conjunto de ideias que não abrem
ouvidos a outras. Vejo partidos políticos e vejo a separação. Competimos quando
devíamos colaborar. São blocos ideológicos diferentes que se promovem
descredibilizando-se. Idealizo um dia ver políticos de perspetivas distintas
unirem-se na sua diferença à missão a que se facultaram: à arte da organização
da população. Exercício este perfeita imagem da empatia inerente ao Homem,
mas que se encontra hoje abruptamente corrompido pelo Ego. Pois que nem ver
além do nosso ponto de vista conseguimos, acabamos a incorrer no crasso erro
ditatorial que demasiadas vezes vimos exterminar populações. Devemos olhar a
História com respeito e aprender com os demais genocídios, com as demais
personalidades neuróticas capazes dos atos mais desumanos.

Durante muito tempo julguei os países como a origem da discriminação;


vejo agora a má compreensão linguística como causa maior desse problema.
Grupos diferentes desde sempre existiram e a falta de conhecimento vivida
previamente para conseguir distinguir ‘diferente’ de ‘separação’ acabou a causar
tantas guerras e sofrimento. No entanto, hoje, tal não é justificável. O cidadão
parece perder-se pelas estradas do nacionalismo e mal se dá conta está nas
paragens do ódio xenofóbico aquando o jogo da sua seleção. E aqui tendemos
a dizer que tal não é assim tão grave, mas quando esse ódio dá lugar à
incapacidade de ver o ser humano num refugiado a gravidade manifesta-se.
Pensava o patriotismo como agente causal à discriminação, mas após identificar
a separação que sentia quando encontrava diferença pelo caminho, o ódio que
queria expelir contra o divergente, penso o nacionalismo como produto deste
erro ignorante que temos vindo a cometer desde sempre. Como fui capaz de por
momentos não ver o ser humano? Odiar?

Vejo a Pangeia. O pináculo da Civilização. Findos os países dá-se espaço


à Humanidade, à união política. A supressão dos partidos políticos abrirá trilho
ao empoderamento e responsabilidade individual. Todo o indivíduo se assumirá
responsável pelo ambiente onde vive, pelo próximo.

No que respeita às drogas acho inegável a procura do Homem por


estados de consciência alterados – diferentes da consciência dos cinco sentidos.
Contudo existe ainda um enorme tabu gerado pela legislação em torno das

68
drogas que priva este desejo inerente a cada um de nós de ser satisfeito; ou
melhor, pode ser saciado dentro dos parâmetros legislados: álcool e tabaco
podem ser consumidos. É arrebatador ser despojado das minhas mais primitivas
vontades, aliás, ser legalmente destituído de tal, pois que existe sempre a
hipótese de prosseguir ilegalmente carregando a culpa social impingida pelo
tabu. Sabemos o tabaco tremendamente tóxico à saúde como sabemos o álcool
um depressivo e implacável destruidor do organismo a longo prazo. Todavia, é
a estas drogas que a nossa sociedade está associada. A estas e aos malignos
medicamentos marketizados como necessários por uma das mais poderosas
indústrias do mundo – a farmácia. Acabamos por tomar a doença como algo
natural tanto que estamos facultados de inúmeras drogas para a tratar. Há uma
tremenda falta de consciência (educação) ao consumo de drogas na nossa
cultura. Consumimos segundo um conjunto de leis composta por alguém que
não nós – alguém suscetível ao erro. Fechamo-nos à investigação de tantas
outras drogas – algumas delas com mais idade que a nossa espécie – dado um
programa legislativo. Enfim, observa-se socialmente um consumo irrefletido de
drogas; a palavra acaba por ser um bicho-de-sete-cabeças, tanto que representa
um dos maiores problemas sociais até à data e aquilo que nos pode salvaguardar
a saúde. Ainda assim, quando o tema é pronunciado numa conversa vê-se o
estagnante tabu surgir, pronto a sugar qualquer hipótese de aprendizagem e
consciencialização. A nossa cultura é extremamente infantil no que toca a
drogas.

Por fim e conjunto aos fatores exteriores previamente mencionados está


o ambiente imoderado e combustivo de uma cultura em constante movimento.
Movimento esse que nada de positivo tem, de tão cáustico e nefasto que é ao
indivíduo. Surgimos contemplativos à vida para rapidamente nos tornarmos
opostos à nossa natureza no efusivo mundo ocidental. A confusão, o cansaço, o
barulho, o stress, os constantes estímulos exteriores. Não há um intervalo disso,
não há um stop. Não fomos prontos a tal, tanto física como mentalmente.

A ideia geral desta análise ao consumismo é o poder que o exterior detém


sobre o interior. Desde que acordamos até ao momento de adormecer somos
bombardeados, vítimas de uma turbulenta cultura que consumimos sem
questionar. Envenenamos o nosso corpo e mente do nascer ao pôr-do-sol;
dando apenas hipótese ao pensamento nos breves momentos antes do sono, os
quais tendem a ser excessivamente refletivos e assustadores para serem
aguentados: quem foi preparado à imagem da sua morte ou dos seus
familiares/amigos – e muitos aqui acabam a treinar-se para deixar estes
pensamentos para trás, tanto que no dia seguinte 'há trabalho' ou 'tudo estará
igual'. Se a nossa dieta é estritamente tóxica, então logicamente sairemos

69
afetados a curto prazo e danificados a longo, especialmente se o exterior (todas
as vertentes anteriormente faladas) ao qual associamos a nossa identidade e
realidade mantém uma posição de negação ao poder individual, se insiste em
calar a voz do indivíduo através do grito social. A ideia é mudar a forma como
digerimos o exterior.

Se os que põem em questão os axiomas atuais são loucos, como se


introduzirá mudança a uma cultura funesta que está propensa a reproduzir
apenas as atrocidades que mantém a futuras sociedades. É um ciclo. E veem-
se tantas barbaridades no mundo ocidental e nos demais...e somos vítimas.
Sofremos pela nossa condição num mundo inospitaleiro. E o exterior acaba a
tomar rédeas às nossas vidas, quando damos por isso desaparecemos dele sem
nunca realmente o ter vivido. E parece insolúvel este problema, tanto que tudo o
que consumimos de fora é indicativo que não haverá mudança. A certo ponto o
interior deixa de existir, a individualidade perde-se para sempre nas massas. E
a depressão, o suicídio, o homicídio, enfim, a propagação do ódio são
compreensíveis. As repercussões de uma sociedade profundamente anormal
que historicamente dissemina o ódio – e os comportamentos a ele associados.
Tanto vítima é o agressor quanto o agredido. Vítimas de um mundo opressivo e
condicionante. O próprio indivíduo que chega a identificar a corrupção vivida
rapidamente é levado a resignar-se com ela, tal é a intransigência social: 'a
situação do mundo é imutável, aceita-o'. A vida acaba a parecer-se com uma
inescapável e incansável fonte de sofrimento; sujeitos a tal, tentamos afugentar
a mágoa através do prazer. Mas tal não tem de ser!

Uma vez compreendido o papel e poder do mundo exterior em relação ao


interior temos às mãos a escolha: vítima da minha condição ou parto ao
desconhecido – deixo os icebergs culturais para trás e encaminho-me ao
oceano; com uma atitude aberta, parto a todo o conhecimento que existe.
Surgem a responsabilidade de tomar rédeas às nossas vidas ou, opostamente,
o compadecimento ao inevitável tumulto de um mundo sádico. É aqui que, tanto
quanto sei, posso ser prestável. Durante a minha viagem libertei-me do
agrilhoamento cultural. Senti-me por fim livre da obrigatoriedade de um rumo
predefinido e produzido em massa, da realidade ocidental. Esta libertação deu-
se dado o conhecimento das tantas outras realidades que existem, dado o
confronto da minha identidade (produto cultural) com outra identidade coletiva.
Não mais tenho de ser o Francisco; posso agora construir a minha Verdade
bebendo de todo o mundo – e não só do local a que fui condicionado aquando o
meu nascimento.

Na minha viagem vivi em condições um tanto dissemelhantes das que até


então tinha experienciado obtendo assim um vislumbre da filosofia minimalista.
É em resposta ao consumismo nocivo que a apresento. É quando experienciada

70
a ausência de confortabilidade e luxúria que vemos ambas como corruptas e
insignificantes; tanto que o desejo materialista (económico) é sabido infundado,
mas este conhecimento é apenas tomado como um ideal quando é sentido na
pele. É aí que entra o minimalismo: um consumo consciente – neste caso dos
bens materiais. A ideia de relacionar-se com o exterior conscientemente, tal que
o interior acaba a beber deste contacto.

Necessitei de cozinhar, dormir e tomar banho – sobreviver – e assim


experimentei e conheci o minimalismo. Privei-me da luxúria dos banhos, sofás,
televisão, roupas e afins bens materiais e vivi com o necessário à vida biológica
e social. Não mais que o necessário. Exponho o minimalismo como um escape
à cultura consumista. Primeiramente, apresenta-se como uma resposta à prisão
do rato: sujeito a perseguir o queijo para sempre; por outras palavras rompe o
ciclo comprar-prazer falso; abre portas ao interior e à liberdade que dele advém.
Uma vez desempoderada a ideia de consumir – todas as vozes exteriores –, há
espaço à voz individual. É uma filosofia que vai além das suas premissas. E é
quando a individualidade se começa a manifestar que se ganha noção do poder
do interior sobre o exterior – a capacidade de intervir num mundo tóxico com a
própria voz, a habilidade de consumir conscientemente; projetar o indivíduo na
sociedade ao invés do oposto. Não mais há que ser vítima uma vez dada a
possibilidade de criar um novo mundo. A mudança é agora palpável e
verdadeira.

O minimalismo abre ainda caminho à autonomia, a qual anda de mãos


dadas com a autodisciplina, que tendo a acreditar promotora da felicidade, já que
o processo de disciplina assegura a consciencialização das escolhas de prazer
– não mais há lugar ao prazer imediato, à falsa felicidade. Somos humanos e,
portanto, obrigados às condições humanas – as necessidades biológicas e
sociais –; ou seja, se necessito de comer, dormir, banhar-me, vestir-me, vou
agora tomar responsabilidade por essas urgências que estavam à mão de
outros. Daí nasce a autonomia: da libertação da dependência pelos outros
(pessoas, instituições, Estado).

Posto no mundo sei primeiro que tenho fome. Parti então ao exercício de
cozinhar e ao estudo, complicações mentais – procrastinação – e disciplina que
lhe estão associados, tanto que para aprender qualquer arte é-se necessária a
instrução, as dificuldades e a dedicação à mesma. Experimentei a emancipação.
Primeiro havia adquirido um saber que me proporcionava autogoverno e a
promessa da autossuficiência; segundo, a reflexão estava agora catalisada:
libertava-me dos padrões culturais sexistas e infantis agregados ao homem-
cozinha e aprofundava-me na análise àquilo que me fora ensinado a crescer,
aos todos outros padrões normalizados. Repeti este mesmo processo através
da lavagem da roupa (necessidade social), do ir às compras, do ser responsável

71
por uma casa financeira e dinamicamente. No fundo, a ideia passa por assegurar
individualmente as necessidades que nos são naturais, percorrendo o processo
de estudo e prática das mesmas que, por sua vez, oferece tanto um intenso
curso de autodisciplina como uma extraordinária gratificação por tudo o que foi
realizado; vai-se ainda de encontro ao confronto com a cultura. No meu caso,
nunca tinha tido contacto sério com as atividades mencionadas previamente e,
consequentemente, deu-se o conflito entre o que me era conhecido e o novo.

Há que experienciar tudo o que esta efémera caminhada tem para


oferecer e, por isso, sugiro ir mais além e questionar quaisquer padrões e tabus
que se nos apresentem pelo exterior. Que se interpelem todas as normas sociais
tomadas como corretas e todas as outras tomadas como erradas. Haja sexo.
Haja exploração. Haja vida.

É pelo caminho do minimalismo que se vão perdendo os traços do


humano meramente social, aquele que vive na ilusão da sua individualidade.
Abre-se portas ao verdadeiro indivíduo, aquele que cria o seu meio social, ao
invés de lhe ser vítima. Enveredar nesta viagem trouxe-me à mente a ideia de
que cada um de nós tem a sua voz. Eu tenho a minha. Não posso deixar de
sentir que ao alimentá-la caminho ao desconhecido e abismal Universo interior.
Um passo ao vazio. Resta-me terminar com a sabedoria de Fyodor Dostoyevsky,
'somos assim: sonhamos o voo mas tememos a altura. Para voar é preciso ter
coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo
acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso
o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As
gaiolas são o lugar onde as certezas moram'.

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Epílogo

‘Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,/ não há nada mais
simples./ Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte./ Entre uma e
outra cousa todos os dias são meus.’

Alberto Caeiro

Por onde começar...este livro é, sem dúvida, o maior ato de


responsabilidade e produtividade que já realizei. Uma aventura longe dos
conhecidos campos da procrastinação ao desconhecido, intangível e bastante
necessário lugar da criatividade.

Desromantização é a minha fundamental maturação duma sociedade


infantil. Uma viagem física, emocional e psicológica. Iniciou-se num dos muitos
banhos a que me habituei; aquele pequeno espaço do dia dedicado a uma
atitude alheia à consciência egotista, por outras palavras, ao pensamento e à
autocrítica. Foi assim que surgiu primeiramente o nome – na altura
Desromantização da Convenção –, e depois a ideia e processo. A viagem à
Geórgia acompanhou-me o projeto, o livro, e foi no decurso do meu confronto
com uma cultura distinta que se deu a escrita.

Dada a minha condição de reprimir emoções este livro acabou por se


tornar um ótimo terapeuta. De um lado do espetro, onde encontrei a revolta –
derivada do ódio reprimido e acumulado entre situações infelizes – ao lado
oposto, onde me dei com um temporário e beatífico sentido de compaixão. Em
retrospetiva, sinto-me imensamente vulnerável, exigiu muita força dar-me a
sentir; podia tão facilmente prosseguir a minha vida inconscientemente,
reactivamente, reduzido aos vícios, descartando por completo a hipótese de
algum dia enfrentar o sofrimento. Ser cobarde, enfim. Sinto-me orgulhoso de ter
comunicado, ainda que o tenha feito através de um livro.

É ainda de um tremendo orgulho conseguir cumprir com um projeto tão


pessoal e necessário. Dando-me um pouco biograficamente: começo no
entranhado existencialismo e niilismo a que fui colocado desde que, ao leito,
ainda novo, enxergava a mortalidade da minha mãe, familiares, amigos e a
minha. Ainda que vivesse as preocupações dos meus dias, estes terrores
acabavam sempre por me apanhar. A esta conduta existencialista agregou-se
uma dolorosa irreverência pela ideologia ocidental; eu simplesmente não
conseguia encaixar o sentido de vida a que me subvertiam ao crescer. 'Como é

73
que ninguém compreende a futilidade deste caminho?' Esquizofrénico à cultura
cresceu-me uma necessidade e posterior responsabilidade pelo Propósito. A
urgência de responder ao Porquê.

Na Era da Informação, é um autoflagelo enfrentar a realidade global.


Porque o mundo é de facto um território de sofrimento, opressão e suplício.
Nesta altura comecei a olhar o que me rodeava; lembro-me especificamente da
agonia sentida no metropolitano: 'porque estão todos apáticos?'. Porque é que
as pessoas desejam tanto que o tempo passe rápido só para mais tarde, na
velhice, suplicarem por mais? Odiamos as escolas, odiamos os trabalhos,
odiamos obrigações. Pelo caminho encontramos algumas personalidades que
mudam tudo, mas mal nos deixam, o martírio instala-se de novo. O capital é hoje
o objeto de veneração social. Caminhamos no mundo segundo uma teologia
consumista. Vivemos religiosamente para o dinheiro, tanto que este
supostamente assegura a nossa sobrevivência e a possibilidade de saciar
temporariamente a angustiosa procura por felicidade. Compramos prazer e, no
entanto, o vazio volta sempre – tão grave é a confusão entre prazer e felicidade.
É a esta desordem que está associada a aparente epidemia de depressão que
se espalha pelo ocidente. Num mundo estritamente material, o espírito vê-se
definhar por entre promessas de bens, posses, títulos.

A Crise Espiritual do século XXI pois que uma vez garantidas as


preocupações físicas, enfim, a sobrevivência do corpo, abre-se espaço às
preocupações da mente, às questões existenciais. Tão raros são os humanos
que apreciam trabalhar, porquanto quem o quer fazer quando se há que conviver
com uma falta de propósito crónica. Para quê trabalhar? Para quê ser-se
produtivo? Para quê acordar de manhã? E observa-se uma sociedade perpetuar
e efetivamente produzir humanos assim, em massa. Os bens materiais que
produzimos perderam por completo o brio que tinham: as mãos que os poliam,
que apreciavam a arte de conceber foram substituídas pelas máquinas e os
modelos em massa. Vivemos completamente alienados à Natureza, incorrendo
ao erro da separação e podemos hoje observar todas as repercussões desse
comportamento. Tratámos de pavimentar o Planeta com a Construção humana
menosprezando por completo o que sabemos dentro dos nossos ossos: somos
pó de estrelas, somos bactérias, somos dinossauros, somos primatas. Afastámo-
nos dos nossos semelhantes, da Natureza; vivemos para as preocupações fúteis
e ridículas dos nossos dias...e de pensar que engajar com a morte apresenta-as
como ilusórias.

Num mundo assim sádico como é possível Ordem, perguntei-me eu no


segundo parágrafo da primeira entrada que escrevi. É fantástico olhar para trás
e observar duas mentes distintas. O que era, não sou. Foi exatamente o ódio e
respetiva revolta que aí abordava que me despertaram um idealismo imenso: a

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procura pela utopia. Se vivemos o Inferno, que se viva o Céu. É fascinante ver o
desenvolvimento pessoal nesta viagem...desde a minha vontade a uma utopia
através de um regime político – de um sistema –, à inferência que o caminho é
o indivíduo e que o mesmo detém o poder de gerar o sistema de que faz parte.

A minha caminhada pessoal foi abrupta. Do momento que nasci até então.
Mas todas o foram. Este livro foi-me/é-me indispensável ao caminho que tenho
de percorrer. É o meu grito do Ipiranga. Por entre as repetições que tão
necessárias me foram ao estabelecer as minhas verdades; as contradições que,
antagónicas à estagnação, são imagem do questionamento; encontraram-se
realizações pessoais nomeadamente a direção à liberdade. E que realização
aterradora, tal que põe em causa a procura e teorização da liberdade pelos
tantos mestres intelectuais que passaram pelo mundo. A ideia de que a
verdadeira libertação nos é natural, que está dentro de nós à espera de ser
explorada; depende apenas de nós e sozinhos estamos nesta caminhada ao
interior. É assustador ao ocidental que toda a vida viveu acompanhado de todas
as outras vozes exteriores. Falta-nos, nas palavras do professor McKenna,
reclamar a experiência, experienciar a vida e o mundo, ir além do programa que
nos é impingido, daquilo que ouvimos desde sempre. A ideia é experienciar a
vida.

Desromantização, que começou como um processo de desconstrução do


que é convencional – da norma –, rapidamente se tornou uma introspeção, tanto
que ao questionar o exterior acabei a questionar-me. Todavia, a temática que
me inspirou a escrever nunca foi o fim, mas o meio; meio de caminhar a minha
Verdade. Este livro não é um manual de teologia, psicologia, educação, tão
menos é uma nova ideologia. O livro é uma manifestação do Francisco. Aliás, a
minha primeira sugestão é dispensar todas as minhas ideias como absurdas ou
anedóticas, pois que cada um deverá deduzir, inferir e chegar às suas próprias
conclusões – que se aliciem as reflexões que fiz, nunca sucumbindo a alguma –
; que se abdiquem das tantas histórias que nos contam – em especial a história
cultural – e dê-se asas à criação da Própria. Foi desta forma que me dei a
escrever o livro enquanto abordava as tantas vertentes do conhecimento
humano existentes: uma atitude antidogmática. Questione-se tudo. Beba-se de
todas as fontes nunca se apegando a alguma – gosto do conceito holístico como
resposta à especialização, que a meu ver é a morte da mente, da criatividade.
Para acabar a conversa em relação ao livro quero mencionar que reconheço um
incompetente exercício lógico ao longo do mesmo, noutras palavras, os meus
argumentos tornam-se fracos a partir do momento que vivo de conclusões
precipitadas e premissas fracas, para não falar da decorrente tendência ao viés
de confirmação. No entanto, acho que também me dei à criatividade filosófica de

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uma boa forma. É um livro de falhas, sucessos, reminiscências, emoções,
ambiguidades. É diário, autobiografia, memorando, crítica, dissertação. Sou
pretensioso, egotista, corrupto; padeço da necessidade de reconhecimento
alheio e, ainda assim, consegui ao longo dele provar e saborear compaixão – a
vontade de verdadeiramente ajudar o próximo com as minhas palavras. Orgulho-
me profundamente do que consegui fazer: materializar, de certa forma, a minha
individualidade. Por tudo isto, é um livro humano.

A utopia terá por base a lógica e a compaixão, a razão e a empatia. As


ciências e o humanismo. O racional e o emocional. O equilíbrio. O Homem
deixará de ver as tantas disciplinas que originou como um fim; elas serão
ferramentas na sua caminhada ao Infinito – o conhecimento tornar-se-á meio e
não fim. E todos estes ideais não serão instituídos socialmente – tal ditadura –,
serão aprendidos individualmente, proporcionada situação para tal – educação
ao pensamento crítico. Vislumbrando a Iluminação o Homem segui-la-á. O
Conhecimento é a Salvação. Espécie única, capaz dos atos mais humanos e dos
mais desumanos, capaz do ódio e da compaixão; é tempo de a consciência
coletiva evoluir além do Ego e do seu programa. Somos capazes de tão mais!

Onde em tempos vi adversidade vejo agora oportunidade. Vejo um mundo


sem fome, guerra, ódio. Paz. Liberdade de expressão. Quiçá um mundo sem
necessidade de leis. Vejo a enterprise Humana por fim reconhecer-se como tal:
unidos, longe fica a ilusão da separação, o nacionalismo, a discriminação.
Pangeia pronta a encarar o abismo que é a Existência. Vamos de mãos dadas
ao Caos, mas que 'o caos é uma ordem por decifrar'. Vejo o Planeta...um lugar
onde todos têm a oportunidade de almejar aos seus potenciais únicos. Livres por
fim de um passado inevitável; prontos a um futuro incomensurável. As
possibilidades são ilimitadas. Céu na Terra.

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Entropia

A tendência de um sistema à desordem, ao Caos.

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