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Prólogo
Por fim, e evitando dar tudo de bandeja, tentei manter a versão que agora
presenciam o mais fiel possível ao original – o motivo tornar-se-á compreensível
durante a leitura do livro –, oriundo dos blocos de rascunhos que carregava
comigo a onde me movimentasse nesse país estranho. O livro é uma quase
experiência científica que tem o meu comportamento mental, quando em
contacto com outra cultura por objeto de estudo. Eu passei pela experiência
anotando tanto quanto conseguia – muitas vezes dirigindo-me a mim e a ti, não
existindo uma clara distinção entre estes dois últimos polos – e, por fim, um eu
imparcial organizou toda a coletânea de registos da melhor forma que conseguiu.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Álvaro de Campos
Primeira Entrada
‘Nobody owns anything but everyone is rich – for what greater wealth can there be than
cheerfulness, peace of mind, and freedom from anxiety?’
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Tendo uma visão ocidental da dor nomeio a felicidade como o seu perfeito
oposto. Uma moeda de dois lados: o dualismo sofrimento/prazer. Incutidos ao
sofrimento desde que saímos ao mundo acabamos aprisionados numa procura
incessante do prazer ou, como lhe chamamos, felicidade. Mas se assim é, se
somos enfim esta moeda de dois lados, qual o nosso estado natural? O que é a
moeda? São a dor e a felicidade manifestações do contacto cultural? Produto do
que se é estabelecido socialmente como motivo para sofrer/estar feliz?
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Pois bem, mas por onde me movo para chegar à base? Está a nossa vida
subordinada ao nosso nascimento num determinado sítio, através de
determinadas pessoas, inseridos em determinada cultura? Somos mais senão
uma reação de uma psique a uma condição sociocultural? É esta a vida do
Homem? Sentasse-me eu agora na Lua e observasse a Terra e não mais veria
que previsíveis reações entre dois agentes pré-estabelecidos: o indivíduo (e as
suas condições biológicas/psicológicas) e a sociedade (e as suas condições
culturais). Esta possibilidade traduz-se no determinismo radical. Um programa
pré-determinado sem qualquer tipo de escapatória ou, esperança. É essa a
condição humana?
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Segunda Entrada
‘Our past thinking has determined our present status, and our present thinking will
determine our future status; for man is what man thinks’.
O que é a liberdade?
Supondo a liberdade como um facto humano: até onde foi o Homem para
o omitir? Com que fundamentos o faz e o permite? Com que intuito construiu o
Homem ao longo da história tantos modelos – do mais simples ao mais complexo
– de conseguir a opressão do próximo; de conseguir controlar e manobrá-lo. O
Homem pegou nas disciplinas que desenvolveu, imparciais, e corrompeu-as na
sua vontade de emprisionar o próximo. Onde nasceu a subjugação? São o
controlo, a subjugação e, respetivamente, o desejo de superioridade, intrínsecos
ao indivíduo ou, serão eles um reflexo da reação do Ego (vamos tomar o Ego
como o conceito que representa o Indivíduo – a sua psique) com o padrão
sociocultural correspondente? Por outras palavras, serão o controlo, a
subjugação e a superioridade uma materialização do medo imposto no elemento
social onde o Ego habita – na cultura em que está enquadrado? Um elemento
que vive das ideias de separação e consequentes solidão e competição.
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Terceira Entrada
‘Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.’
O que sou?
Quem sou?
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Passando a matrix adiante e a ideia de ser controlado por alguém ou algo.
Quem sou? O que sou?
A criança por identificar olha o mundo de forma pura e única: tudo é novo,
tudo é lindo. Há brilho e magia em cada momento, em cada contacto. A criança
ainda não faz parte da complexa e estruturada equação da vida ocidental. Ela
não é um quem e muito menos uma ela: é, apenas. Existe. É a existência na sua
materialização pura. No ocidente, designamos este fenómeno por inocência e,
aliado a este conceito, há sempre uma conotação negativa. Se aqueles que mais
amamos, aqueles que nos possibilitaram experienciar toda esta magia nos
fazem sentir que a inocência é errada…Não estará portanto justificada a vontade
geral das crianças de crescerem?
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Qual é a origem da corrupção?
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Que irónico: dar asas ao meu pensamento faz-me sentir que estou a
romantizar a condição humana, quando no fundo o objetivo era precisamente o
oposto. Dei asas ao meu Ego. Queria transmitir uma mensagem e acabei a
vender-me, a vender a mensagem. Estás a desconstruir-te, a destruir-te para te
construíres. Não percas o rumo. Tem de se dar a desromantização.
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Quarta Entrada
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o extermínio implanta-se a crença de que a Verdade está nos sentidos. Os factos
são obtidos pelos sentidos. Olhar para fora.
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O Homem constrói a máquina, a máquina acorda o animal e o que fica de
humano é-se usado para manter a máquina a rodar. O animal domestica-se.
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Quinta Entrada
It’s a flat object made from a tree with flexible parts on which are imprinted lots of funny
dark squiggles. But one glance at it and you’re inside the mind of another person, maybe
somebody dead for thousand years. Across the millennia, an author is speaking clearly
and silently inside your head, directly to you. Writing is perhaps the greatest of human
inventions, binding together people who never knew each other, citizens of distant
epochs. Books break the shackles of time. A book is proof that humans are capable of
working magic.’
Carl Sagan
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'tens que ser alguém na vida!'. Mas eu já sou alguém. Eu preciso de descobrir o
potencial que me é inerente; e tantos outros precisam.
Gosto de pensar que escrevo porque alguém poderá ouvir; mas sei que
escrevo porque alguém me quererá ouvir. Egomaníaco. É nesse exercício de
ouvir que eu procuro passar a desromantização e, quem sabe, marcar a minha
Verdade e a tua.
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Sexta Entrada
‘Nunca pensamos que aquilo que os cães conhecem de nós são outras cousas de que
não fazemos a menor ideia.’
Para o gato não existem conceitos: o gato sente fome, come; sente sono,
dorme; sente afeto, partilha-o. Uma existência humilde e Presente – a nostalgia
e seletividade da memória, a incerteza e imprevisibilidade do futuro longe estão
da vida deste animal. É paciente e geralmente toma-se essa qualidade por
defeito, tal preguiça ou procrastinação. É dedicado ao Agora, ainda que tanto
quanto sabemos por instinto; tanto se pode aprender com o gato, tal inspiração.
Diria até que viver com uma gata – Ela, a Éris –, despoletou de certa forma o
processo de desromantização; houve um despertar para a necessidade de
derrubar certos muros – prisão interior –, nomeadamente a minha constante
angústia derivada da necessidade do meu ego de criar expectativas para o futuro
(que é indefinido), ou o meu permanente convívio com as memórias de algo que
foi e não mais será. Sendo a mente seletiva com as memórias, as reminiscências
do passado conseguem tantas vezes tornarem-se nocivas.
Como é que eu, o Homem, que tão eloquentemente prezo a minha razão
acima do instinto do animal (ou de qualquer outra forma de vida) vivo num
autoflagelo constante provocado pelo ciclo que é a nostalgia e a expectativa?
Tanto podemos aprender com a árvore que nada fala, que nada faz – Existe.
Também muito há a assimilar do cão que persegue carros e que acabamos a
desprezar ‘cão burro, deixa-se levar pelos instintos’. Tal como este cão, o
Homem de forma semelhante vive o presente na expectativa de apanhar o carro
e, quando finalmente o apanha, nada sabe fazer com ele – rapidamente precisa
de arranjar outro carro a perseguir; e quando chega a noite fria, quando chega a
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solidão, lembra todos os carros que um dia apanhou - tamanha nostalgia. Mas o
cão apresenta outros traços de onde podemos beber: o amor incondicional. Algo
que talvez nunca consigamos compreender ou, melhor, conceptualizar, mas que
sentimos que existe, que é verdadeiro. O possível no impossível é talvez a
melhor forma que encontro para descrever este amor. A capacidade inerente ao
cão e talvez a toda a vida de amar. Está lá! É inegável. Sente-se. E a nossa
tendência para reduzir o que ocorre à nossa frente poderá tentar negar aquilo
que acontece na relação Homem – Cão, mas qualquer um de nós pode confirmá-
lo dando-se a esta experiência. É fantástico!
Mais tarde…
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próximo a almejar mais para ele próprio. Se o indivíduo muda a sociedade muda.
O meu erro esteve sempre em olhar o social como um todo. Uma massa uniforme
e homogénea. Sempre pensei que a mudança viria num modelo utópico para
essa massa. Impossível! O paradoxo que achava ver – individual versus social
– é solúvel. A forma como olhamos as coisas é um beco sem saída. Uma
mudança de perspetiva transforma tudo. A solução é o indivíduo. Eu. Tu. O
Próximo. Ama o próximo…e amarás o Todo.
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Sétima Entrada
‘– Os homens já não se lembram desta verdade – disse a raposa. – Mas tu não te deves
esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que cativaste. Tu és
responsável pela tua rosa…’
Eu deixo-me por onde passo. Todos os locais e pessoas que por mim
passam, pelos quais passo, todos eles carregam parte de mim e deixam parte
deles comigo. Toda a Vida – tudo o que experiencio – toca-me e é tocada por
mim. Leva-me e deixa-se ficar. Eu gosto desta ideia. Eu sinto que esta ideia é
verdadeira. Palavras deixadas na parede de um restaurante, desenhos por uma
mesa de café… eles ficam, eu fico. Palavras ditas, abraços dados, despedidas
feitas. Ficam. E outras experiências vêm, outras pessoas, outros lugares.
Sinto que viajar é uma resposta em si. Manter-me fechado dentro da caixa
onde sempre vivi, a caixa onde me colocaram no momento em que nasci…essa
caixa trancou-me do mundo – e Universo – do qual faço parte; impediu-me de
mim. Privou-me de me ir deixando no mundo, de receber o mundo.
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Oitava Entrada
‘The meaning of life is just to be alive. It’s so plain and so obvious and so simple. And
yet, everybody rushes around in a great panic as if it were necessary to achieve
something beyond themselves.’
Alan W. Watts
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felicidade do futuro. Viver pelo fim, pelo que será. Viver na expectativa do bem-
estar que virá. 'And while we're about to be free and about to be happy, life
passes us by. It comes after death, after retirement, after coitus, it's always after
something that it comes.' – Terence McKenna.
Por sua vez, o Oriente apresenta certas filosofias 'do meio': o Caminho é
a meta em si, o Caminho é o fim, o objetivo. Viver o Agora e não o Depois. Há
um desapego total pelo futuro e, portanto, pela expectativa. Deixa-se o que
poderá vir ou o que se deseja que venha e dá-se lugar ao que existe Agora, a
este momento: uma contemplação da Vida, de Tudo; aliada ao reconhecimento
da fragilidade da mesma – a realidade da morte. Eu existo e eu morrerei.
Pegando na Natureza como inspiração, abraço o Desconhecido e vivo cada
momento, cada Agora; sem apego à memória, sem necessidade da expectativa.
Esta filosofia aos olhos de um ocidental como eu é puramente idealista e até
corajosa. Requer uma força de vontade admirável. Olhando-a através de umas
lentes céticas e existenciais, tais são as que uso, é fascinante e até motivo de
esperança – se calhar é por aqui que passa o meu Caminho.
Olhando toda esta análise vejo que não cheguei a lado nenhum, afinal de
contas isto são apenas formas de vida, culturas diferentes. Não são erradas nem
certas, apenas são. Subjetividade. Onde procuro o sustentáculo da Vida então?
Há, sequer, uma fundação objetiva da Existência? Há uma Verdade Universal?
Importa pensar nisto uma vez que o meu fim será sempre o mesmo? Acho que
posso apenas mover-me através daquilo que sinto que é certo; o caminho para
onde, inconscientemente, me dirijo. Tenho de me deixar ir…sem apegos…sem
dogmas; abraçar o Desconhecido. As respostas, a seu tempo, surgirão.
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Nona Entrada
‘A book is like a key to unknown chambers within the castle of one’s own self.’
Franz Kafka
Tornou-se terapêutico.
Sabendo-se agora que o meu Ego faz parte deste livro, é possível
reconhecer-se quando é ele que detém a palavra. No momento em que escrevo
isto sei reconhecer que nesta entrada, o objetivo da conversação que iniciei não
foi o de apresentar uma Mensagem, mas sim tentar introduzi-la na cabeça dos
demais que me leem. A perversidade da retórica.
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mesmo. Ou seja, é como se o livro fosse a direção da minha mente. O caminho.
Eu tenho uma necessidade de o criar. Será o livro inevitável?
Tantas vezes repudio o que escrevi. A falta de confiança naquilo que faço
domina-me. O que esperar quando a cultura onde estou inserido preza a falta de
autoestima e reverencia os padrões preestabelecidos do que é considerado bom
ou mau – subjugando por completo a imaginação e individualidade. Mas eu vou
levar este livro até ao fim, na esperança de me mudar com ele. Transfiguração.
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Metamorfose. Mudar as lentes com que me vejo e, por conseguinte, o mundo.
Exemplificando: eu reconheço a minha até então falta de vocabulário, má
articulação dos pensamentos, falta de confiança no que faço; no entanto,
identifico também o até então esforço posto no exercício literário de que me
responsabilizei e o contínuo processo que é aprender e melhorar. Eu consigo
mudar.
O produto final poderá vir a ser um livro que retrata o decurso da minha
vivência atual, do confronto com o meu passado e de como tudo isso faz parte
de um processo contínuo de aprendizagem. Aprendizagem literária,
aprendizagem emocional, enfim, aprendizagem humana.
Que mania essa a de dar poder aos padrões literários. A ideia de que o
que é cultura está certo. A cultura está a destruir o artista e por consequência a
própria arte de viver. Padronizar e massificar ideias 'corretas' do que é - ou tem
de ser – a arte. A morte do indivíduo. A morte da criação. O nascimento do
produto.
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o sexismo dos géneros? É errado diferenciar ou é o Homem que não está apto
a compreender a Língua – ou seja, toma a diferença por separação. A
diferenciação faz sentido de um ponto de vista organizativo. É até necessária.
No entanto, acho que o Ego usurpou este propósito. O Homem deixou de
distinguir entre diferença e separação, surgiu a discriminação.
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Décima Entrada
‘O número de livros aumentou nas prateleiras cuidadosamente feitas para ele por um
dos seus amigos carpinteiros. A sala começou a parecer-se com uma casa.’
A este ponto classificarias este livro como um diário ou uma terapia? Uma
longa e serena sessão de terapia individual. Talvez não tão individual assim…O
livro surgiu-me à mente; deu-se em mim; projetou-se aos meus olhos…quase
como uma entidade – algo que me é alienígena.
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Décima Primeira Entrada
‘Pelos vistos, para seres quem és, a única possibilidade que te resta é a de que pareças
ser outro.’
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individual dá sentido ao social. Não o inverso. Estarei eu lunático por ouvir a
minha voz ou está o mundo a enlouquecer por entre tantas vozes
irreconhecíveis? Fugimos aos nossos caminhos singulares.
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Décima Segunda Entrada
‘We are told “no”, we’re unimportant, we’re peripheral. «Get a degree, get a job, get a
this, get a that.» And then you’re a player, you don’t want to even play in that game. You
want to reclaim your mind and get it out of the hands of the cultural engineers who want
to turn you into a half-baked moron consuming all this trash that’s being manufactured
out of the bones of a dying world.’
Terence McKenna
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religiosidade do consumismo, o egoísmo. Sintomas de uma doença mental grave
o suficiente para pôr em causa a Vida do planeta, uma doença crónica e
hereditária. A Peste Humana.
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tornar-se-ão apáticos e incapazes de sentir; perderão a sua humanidade e
trabalharão como uma peça do enorme coletivo, deixando para os seus
descendentes não mais que a doença mental que carregavam. Profunda
alienação. E tornar-se-á normal esta sociedade anormal.
É importante relembrar que esta análise é subjetiva e tem por base toda
a minha experiência e observação da vida. Escrevo produto do que fui e sou; o
que me criou, o que vi, o que experienciei até hoje.
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Décima Terceira Entrada
‘We seldom realize, for exemple, that our most private thoughts and emotions are not
actually our own. For we think in terms of languages and images which we did not invent,
but which were given to us by our society. We copy emotional reactions from our parents,
learning from them that excrement is supposed to have a disgusting smell and that
vomiting is supposed to be an unpleasant sensation. The dread of death is also learned
from their anxieties about sickness and from their attitudes to funerals and corpses. Our
social environment has this power just because we do not exist apart from a society.
Society is our extended mind and body. Yet the very society from which the individual is
inseparable is using its whole irresistible force to persuade the individual that he is indeed
separate! Society as we now know it is therefore playing a game with self-contradictory
rules.’
Alan W. Watts in The Book on the Taboo Against Knowing Who You Are
Eu sofro; Tu sofres; Nós sofremos. Viver uma vida humana é viver uma
vida de sofrimento. Sofrer, pensar e repensar na dor. Sofrer por antecipação…É
ter a capacidade de refletir e empatizar por toda a vida que sofre. Ambos
sabemos o quanto custa. É indescritível. As outras espécies sofrem sem nunca
ponderar na dor; o Homem sofre e acaba a divagar pela dor até se tornar
miserável. Todos sofremos. E a vida acaba a ser um engajamento imposto com
um desígnio infalível – a todos os que passaram, passam e passarão. Um
contrato com a imprevisibilidade tendo apenas por certo os inúmeros problemas
e desfortúnios que aparecerão pelo caminho. A única jogada que dispomos é
suportar; aguentar mais um dia.
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O que é esta concha? Lançados enquanto tábuas rasas e com um singular
sentido de contemplação (quase extasiada) e de envolvimento com este plano
de existência ainda completamente desconhecido, é-nos sugerido de imediato o
primeiro conceito ao qual nos associaremos: o nome. Após o nome, em breve a
língua – os conceitos – substituirá toda a magia que se nos apresenta aos olhos.
As palavras, diariamente gastas, despirão a beleza das coisas. O
incompreensível e infinitamente belo e contemplativo será humanizado pelos
conceitos, estes transmitidos como dogmas. Iniciar-se-á o processo de
banalização da Vida. A criança começará a desenvolver uma concha à volta da
pérola que uma vez rejubilou ao olhar atonitamente o que o rodeava, pérola que
tinha infinitos porquês em relação a tudo. Vê-se uma pérola trocar a sua natureza
cintilante e pura pelas palavras, pelos conceitos, por uma concha.
O dia seguinte não é garantido. Dor por antecipação. O ser que outrora
fora arrojado com a forma como olhava a Vida encontra-se agora com medo de
a viver. Porque viver é sofrer. Porque viver uma vida humana é viver uma vida
de sofrimento. E preparados para tudo fomos, menos para sofrer. Preparados a
um planeta corrompido a todos os níveis, quase irreconhecível – tanta é a
humanização que derrete o Natural, que o cobre de estradas e edifícios –, mas
somos completamente ignorantes no que toca ao Facto da vida: a dor.
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dela mártir? Ou, pelo contrário, aceita o ciclo da Natureza? Existir é viver e é
morrer. É sofrer. Sentir. Chorar. Amar. Contemplar. Porque nos subjugamos ao
medo? Porque perdemos de vista a beleza e a surrealidade de viver?
Banalizámos tudo.
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corrupção, tenho a hipótese de virar costas e contribuir para um empreendimento
indecente, ou assumir responsabilidade, abraçar a natureza da realidade e partir
de braços abertos à mesma, ajudando toda a Vida que por mim passa.
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Décima Quarta Entrada
‘Our ability to reach unity in diversity will be the beauty and the test of our civilisation.’
Mahatma Gandhi
É mais que ‘pensar nos outros’, tanto que muitas vezes as nossas ações
para o bem dos outros têm-nos apenas em vista – procuramos ser
recompensados de alguma forma pelo que fizemos, acabamos a ver o outro
como um meio para e não como o fim. É compreender e sentir o próximo como
a eu mesmo; sentir a dor que o atormenta como minha e de tudo fazer, tanto mo
seja possível, para a aliviar. Eu sofro, tu sofres. Tu sofres, eu sofro. Somos Um
e somos dois.
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Décima Quinta Entrada
‘Those who do not understand true pain can never understand true peace.’
Nagato
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Décima Sexta Entrada
‘Se as portas da perceção fossem purificadas, tudo surgiria aos olhos do homem tal
como é, infinito.’
William Blake
Vivemos numa cultura que vive do exterior, que massifica humanos com
base no paradigma de indivíduo que apresenta. Tal e qual a impressora que
imprime um mesmo modelo nas folhas pretendidas. Vivemos das nossas
reações inconscientes. Estamos desligados da experiência individual.
Experienciamos o que nos foi implantado – o que gostamos e não gostamos, o
que acreditamos ou não acreditamos é produto do nosso condicionamento.
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feito enquanto crescemos. Vivemos como se precisássemos dela e não o
contrário.
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Décima Sétima Entrada
‘I did not bow down to you, I bowed down to all the suffering of humanity.’
É deste lugar que vou tentar analisar uma figura intemporal da História
ocidental. A figura que marca o Ano Um do calendário que utilizamos e que deu
origem a um dos maiores cultos desde então, o Cristianismo.
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até da realidade de quaisquer atos que lhe são atribuídos –, ele é um símbolo.
Jesus, ser humano que superou a cultura, a personificação da compaixão, a
alegoria do Amor.
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Do meu ponto de vista, Jesus é um artefacto. Uma lembrança de que
somos todos o mesmo; de que estamos todos juntos na complexidade e
sofrimento da Vida, sem qualquer indicação de um caminho objetivo. Uma
recordação de que a Dor é a realidade comum e que do outro lado da moeda há
o Amor: há a possibilidade – quase esperança – de ficar tudo bem. Um símbolo
de amor incondicional. Uma inspiração.
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destruídos aos humanos velhos, doentes e moribundos estão unidos através do
sofrimento.
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Décima Oitava Entrada
‘Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu
ele? Nem a sorte nem a morte, nem as tábuas do destino…Era só uma flor. Mas tão
caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era
especial de história, achou que tinha de salvar a flor. (…) Desce o menino a montanha,/
Atravessa o mundo todo,/ Chega ao grande rio Nilo, No côncavo das mãos recolhe/
Quanto de água lá cabia,/ Volta o mundo a atravessar,/ Pela vertente se arrasta,/ Três
gotas que lá chegaram,/ Bebeu-as a flor sedenta./ Vinte vezes cá e lá,/ Cem mil viagens
à Lua,/ O sangue nos pés descalços,/ Mas a flor aprumada/ Já dava cheiro no ar, E
como se fosse um carvalho/ Deitava sombra no chão.’
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sentir – consumir prazer. E se este modelo funciona para os outros, para o rapaz
também terá de funcionar. Mas ele não o compreende, quanto mais adaptar-se
a ele. Não compreende porque aqueles que ama esperam dele algo que lhe é
estranho, não compreende porque na única vida que lhe é conhecida tem de
seguir um ideal fabricado pelos demais. Um ideal que sugere a felicidade como
algo suscetível de ser saboreado apenas durante os momentos estabelecidos
para tal. Toda a vida é um trabalho, toda a vida é para ser levada a sério; com
exceção dos tempos destinados à diversão – começou pelo recreio, virou
intervalo e acaba em folgas e férias.
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sobrevivência, enfim, o que toda a Vida faz, tal é a programação da célula. E eu,
produto do que vivi e aprendi ao crescer, rapidamente julgo este novo país.
‘Como são capazes!?’ Mas, dada a primeira e inevitável reação, dá-se tempo ao
pensar – a reação dá lugar à análise (tanto da situação como da minha primeira
reação). Nascido numa cultura que não dá espaço a situações assim (maus-
tratos animais) penso na dieta ocidental. O holocausto que é a indústria animal.
Não é que fazemos o mesmo? Condenamos maus-tratos a certos animais mas
perpetuamos o sofrimento de outros. Sejam os cães ou gatos sujeitos à fome ou
as vacas e porcos condenados à prisão e tortura – privados até da luz do Sol na
grande maioria dos casos; o Sol que é um direito a toda a Vida! E é neste
pensamento que se dá um pequeno vislumbre da realidade, que em nada está
relacionada com os dois comportamentos culturais descritos previamente – tão
diferentes e tão semelhantes. A realidade é que todos estes comportamentos ou
tradições não passam de reações/efeitos a ações/causas precedentes; estas
reações/efeitos tornar-se-ão ações/causas. E este ciclo dá-se desde o início do
Homem, e, logicamente, do Universo. Tradições criadas e passadas de geração
em geração. Perspetivas de vida subjetivas. Caixas diferentes. A cultura é uma
ilusão tão complexamente orquestrada que faz o indivíduo que a torna possível
acreditar nela. Crer que ela é a realidade quando não passa de relatividade.
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exteriormente desaparece. A ilusão desvanece e eu estou agora responsável por
mim. A minha dor é minha e não do outro. Eu posso dar-lhe poder e vitimizar-me
ou escolher combatê-la. Eu desenho o meu caminho.
Afortunados somos que temos ao nosso dispor aquilo que cumpre com a
promessa da omnipresença e omnipotência do deus cristão: a Internet.
Ferramenta que uniu o mundo. Há 500 anos o desejo insaciável de tornar
conhecido o Desconhecido iniciou a descoberta do mundo pelo ser humano; hoje
temos todos os cantos do mundo à distância de um clique. Acho que o Homem
tornou possível o impossível. É de se contemplar esta tecnologia que a tantos
idosos é completamente absurda e irreal. É uma quase materialização do
teletransporte sugerido pela ficção científica. É real. Tão real quanto eu estar
com um familiar que habita do outro lado do planeta. E é este deus que nos dá
a hipótese de aprender sobre tantas outras culturas – senão todas – em
segundos. Podemos saber como a Humanidade se desenvolveu ao redor do
planeta e temos a possibilidade de analisar e, posteriormente, adaptar
determinados prós e contras de cada uma dessas sociedades. É fantástico. As
possibilidades são astronómicas.
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de que fazemos parte. Eu, nascido aqui, sou o Francisco, com todas as suas
experiências e associações; eu, nascido na Geórgia, seria o Kakha, com as suas
experiências e associações: uma identidade de facto diferente. Isto apresenta-
se a mim como uma libertação das correntes a que estava agrilhoado: uma vida
imposta e pré-estabelecida; um sistema inescapável e maquiavélico. E, se tantas
realidades existem, posso ver para além daquilo que sempre ouvi: ‘mas a
realidade é assim, é imutável; habitua-te a ela, resigna-te a ela’…
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Décima Nona Entrada
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a Existência. Está para a caminhada que se Nos avizinha tal estava a caravela
a um Mundo desligado entre si e desconhecido – um mundo sem luz.
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Vamos deixar por enquanto o tópico consumismo em aberto e mencionar
apenas que por agora serviu de exemplo ao paradigma do indivíduo ocidental
desempoderado e vítima do exterior.
O ponto que quero abordar é que, não sendo a cultura de facto um bicho-
de-sete-cabeças e existindo o exercício de a abandonar temporariamente para
dar lugar à voz e evolução individual, este abandono provisório não é de todo
fácil. Vamos analisar esta questão partindo de uma analogia. Imagine-se uma
caixa. Que sejam visualizadas as paredes desta, os limites da mesma. Esta
caixa, tal e qual o iceberg, compõe aquilo que somos, por outras palavras,
representa a cultura onde estamos inseridos. A caixa tem limites definidos e
conhecidos e, portanto, seguros – zona de conforto –; somos colocados dentro
desta e acabamos produto do que ela é, ou seja, torna-se-nos inevitável e
imprescindível à nossa identidade. Crescer assim – lembrando que me refiro à
caixa ocidental – é, de certa forma, seguro. Sabemos o dia anterior, o hoje e o
amanhã; a rotina serve de ludíbrio ao fator imprevisível da vida; e se o mesmo
se dá está-se pronto a explicá-lo e facilitá-lo. O problema é quando se dá o
confronto com a premissa da caixa: a idade adulta…é tempo de prestar contas
à caixa que nos possibilitou segurança e a moeda de troca é a escravidão. Uns
são subjugados, outros tornam-se mestres do jogo e, em tempo, todos
esquecerão que as caixas têm tampas. As paredes estáveis e indubitáveis
fornecem ao indivíduo a ilusão de segurança e a crença na falsa-realidade que
lhe é apresentada. É compreensível que tanto escravos como mestres não
olhem além das paredes que os cercam, pois que aqui dentro é seguro, aqui
dentro é conhecido, aqui dentro têm controlo da situação.
São os aventurosos que olham para cima e veem a tampa, são eles que
resolvem destapar-se das tantas ilusões a que foram sujeitos. Mas nem por isso
se torna fácil fazê-lo. É agora mais que nunca tangível a aparente e falsa
segurança que ali existia. Sair da caixa não é de todo simples, aliás poderá ser
a mais árdua muralha a ser derrubada. Sair do palácio implica admitir entre
tantas outras coisas a fragilidade da vida e a matrix que nos oprimiu. É assumir
tudo o que fez de nós o que somos como falso. O dia de amanhã não mais é
garantido e conhecido porque tanto quanto sabemos a morte é a única certeza
e realidade da vida – é agora mais verdadeira que nunca. A trivialidade com que
até então os dias eram passados é posta em causa e amplamente criticada: as
preocupações que até então eram vividas são abandonadas e um sentido de
contemplação e apreciação pelo momento presente desponta. Do outro lado do
espetro surge o medo: medo do desconhecido, medo da morte que faz agora
parte de cada segundo vivido. Quando a caixa ocidental e respetivas nuances
temporais – nostalgia e expectativa – é abandonada, dá-se lugar ao presente
incerto e desconhecido. Está agora nas mãos do indivíduo viver na
contemplação ou no medo.
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No sair da caixa surge também a análise em perspetiva do que foi deixado
para trás: todos os valores, ideais, sonhos, medos, leis, enfim, tudo o que
constituía a realidade é agora questionado. Estava tudo errado? A meu ver nesta
situação surgem mais uma vez dois lados de um espetro: é momento de abraçar
todas as outras caixas, todos os outros icebergs e de todos eles beber – todos
eles são oportunidade de conhecimento; ou, acontece que, ao interpelar toda a
nossa fundação, se dê a total destruição da nossa identidade, o que por sua vez
abre caminho ao niilismo e à falta de propósito à existência – tudo o que era,
tudo o que sou, não passa de um resultado do meu contacto com uma realidade
num oceano de tantas outras.
É compreensível o medo que sinto. Talvez eu tenha que lidar primeiro com
o meu ego – o reflexo da cultura. Se calhar aí estarei pronto para a Realidade.
No entanto foi só na mudança e posterior confronto sociocultural que finalmente
consegui confrontar o problema pessoal, o Ego. Talvez ainda não estivesse
pronto para o choque e o medo que a ele vem associado.
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Vigésima Entrada
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É de facto surreal! É quase como se o mundo exterior a este ponto fosse
um sonho, uma distopia. Um pesadelo de tal complexidade que passa por
realidade. Mas tal e qual como se torna possível com o dado trabalho e
dedicação participar ativamente na construção dos sonhos e mudar a inevitável
sucessão de acontecimentos, também o é assim para o sonho exterior – o
mundo disfuncional e inóspito que o Homem criou a si. Sabemos, por intermédio
da História, que através da compreensível sequência de eventos (a cadeia de
causa-efeito) chegámos ao mundo de hoje, produto implacável do mundo de
ontem. Quebremos a trama. Mudemos.
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Vigésima Primeira Entrada
‘If we as a community believe in anything, we believe in feeling good in the moment. The
felt presence of immediate experience. This is what has been stolen from you. By
capitalism, by religion, by linear thinking, by strategizing. We’re always about to be
happy. Or we’re always about to be free. And while we’re about to be free and about to
be happy, life passes us by. This is because western ideologies are always ideologies
of delayed gratification. It comes after death, after retirement, after coitus, it’s always
after something that it comes. Well, I’ve got news for you, this kind of thing is chasing
your own tail. The felt presence of immediate experience is the only world you will ever
know. Everything beyond that is conjecture and supposition.’
Terence McKenna
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sinto-me responsável pelo mesmo. Não mais posso dar-me à ignorância da
reação. Tantas vezes senti-me sem controlo das minhas ações – egoístas e que
puseram em causa o próximo; que causaram sofrimento. Agi e de imediato me
arrependi. Porque reajo sem controlo? Parece-me que as primeiras reações às
situações – as ações reacionárias – são um reflexo da nossa educação (do
nosso contacto social e cultural) e, consequentemente, tornam-se a forma como
agimos diariamente. Algo que tão eloquentemente dispensamos como simples
ou trivial pode fazer parte da solução dos problemas individuais (e, por
consequência, sociais) que enfrentamos: a conversa. O exercício de
comunicação. Interagir. E se, ao invés de participar neste exercício de forma
inconsciente eu tirar um tempo para reconhecer o indivíduo do outro lado que
está a receber a informação que lhe transmito – input e output. E se eu for além
do meu Ego que vive focado em si tomando de parte o que o rodeia; que
despreza o outro. Chegando a este estado de comunicação (lembrando que a
comunicação não é apenas oral), por certo sentiria uma tremenda
responsabilidade por qualquer ação tomada: desde o ato de respirar – biológico
– ao ato de conversar – social. Dar-se-ia lugar a uma extraordinária
contemplação por quaisquer acontecimentos e a uma atenção plena aos
comportamentos em cada momento. A reação é substituída pela ação meditada.
A verdadeira evolução.
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sociedade); pois se o pensamento é influenciado por fatores exteriores até que
ponto ele é um pensamento e não um programa? Acabamos reduzidos àquilo
que fomos condicionados a ser – ignorantes e inconscientes – recusando por
completo outras perspetivas – conhecimento.
Espero uma mudança imediata em mim tal que fui ensinado a esperar
tudo de bandeja, e por terra fica o sonho da mudança – da devoção a mim. Penso
naqueles que de tal forma foram condicionados que nem capazes de analisar os
dois caminhos previamente explicitados estão capazes; nunca se reconhecerão
como a finalidade, estarão sempre à espera da recompensa exterior. Tais
pessoas acabam a resumir-se à sua animalidade – ao jogo de estímulos
biológicos.
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poderá ser a maior descoberta que o Universo já presenciou – um autêntico
mapa-mundo Ligado. Estará então na altura de caminharmos a um organismo
social mais saudável? Uma comunidade global sem a necessidade às
burocracias da sociedade – leis, instituições, Estado –; onde o social é produto
do individual (porque tal é fomentado através da educação). Seremos capazes
de tal? Um novo nível de consciência, além daquela a que somos resumidos
biologicamente (que se dedica a tempo inteiro apenas à sobrevivência) – a
animal. E se tal não for possível sabemos que enquanto produto e estrutura da
Natureza ela acabará a eliminar a incongruência que criou e que tanto
desequilíbrio lhe trouxe – a Extinção Humana.
É complicado imaginar que esta mudança se dará a tempo, uma vez que
a educação ocidental é a imagem perfeita do antropocentrismo. Somos uma
espécie entre tantas outras. Tantas se extinguiram. O que acontecerá, quem
sabe…; o que pode acontecer está à nossa responsabilidade. Uma nova era à
Consciência.
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Vigésima Segunda Entrada
‘Mother, father; always you wrestle inside me, always you will.’
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Vigésima Terceira Entrada
‘Let go your earthly tether. Enter the void. Empty, and become wind.’
Zaheer
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com que me preocupar para ter tempo para os de outrem.’ Como nos deixamos
cair aos erros que cometemos – temos a História! Temos a tecnologia, o
conhecimento. Todos os meios para erradicar os maiores problemas sociais que
verificamos desde que o Homem existe. A separação. Longe vão os tempos que
a Terra era inóspita, um mar de perigos, todos eles prontos a pôr em causa a
sobrevivência da espécie.
Talvez chegue de revolta. Vi-me cometer erros que muita dor provocaram
e provocam e, graças aos tantos humanos que para trás deixaram a sabedoria
da autoajuda consegui chegar a certas conclusões, quiçá perspetivas capazes
de revolucionar aquele que parece o inevitável desfecho da Humanidade. Se
ajudar um humano menos um necessitará de ajuda.
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estudada por tantos intelectuais; tantos mestres que a teorizaram em regimes
sociais. E ela esteve sempre ali, escondida bem à vista. Era só olhar para dentro.
Confiamos no mundo exterior e denominamos o interior lunático, paranoico,
assustador. Porém, o poder está aí. E tanto nos perdemos na loucura exterior
que nunca por um momento pensamos em abrir o olho interior. O terceiro olho.
Tantas civilizações o contemplaram.
Livre estava eu assim que contemplei a morte. A prisão cultural não mais
fazia parte de mim, restava-me apenas abrir braços ao desconhecido. A ideia, a
ajuda que talvez possa prestar é esta: há que se dar uma batalha entre interior-
exterior – o confronto, análise e consequentes conclusões retiradas. Já havia
falado em exercícios de escape à caixa societal resta-me agora, após ter
experienciado, introduzir outros que potenciem o empoderamento individual.
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Vigésima Quarta Entrada
‘Growing up in the place I did I never was aware of any other option but to question
everything.’
Noam Chomsky
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conceptualizado – quando a palavra aparece. O mundo exterior perde a sua
magia quando a criança – a tábua rasa sem conceitos – deixa de o ser; quando
ela é integrada num mundo linguístico.
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Este sistema, a meu ver, está construído para criar robots, pois que será
de um humano colocado num ambiente de obrigatoriedade, pressão e
especialização com a premissa única de ‘ter um futuro’. O indivíduo torna-se um
peão pronto a ser manuseado pelo Rei, uma peça num mundo de trabalho. É
incrivelmente hipócrita como gritamos a nossa individualidade numa cultura que
nos priva dela desde que a integramos. Perde-se a curiosidade inerente a cada
um, a necessidade de aprender; perde-se entre ansiedades e traumas que nunca
cicatrizam e, findo o ensino superior, não mais é necessário o sofrimento
associado à educação. Dá-se lugar a máquinas de trabalho que sabem o que
precisam de saber para sobreviver. Vítimas.
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conservador e arcaico por chamar à atenção seria injusto para comigo e, por
conseguinte, para com o próximo. Com o conhecimento surge uma enorme
responsabilidade: utilizá-lo como um fim ou utilizá-lo como um meio.
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nova peça de roupa é demasiado excitante para ser racionalizado e
compreendido. Compramos mais do que necessitamos menosprezando por
completo a nocividade da produção. Consumimos enquanto fim. Uma sociedade
em constante alvoroço por dopamina. A esta ideia posso ainda relacionar o
consumo de entretenimento e arte. A importância de ambos e o desleixo a que
nos damos quando o realizamos. O entretenimento é a heroína de tantos que
não a encontraram nos bens materiais ou na comida; encontraram-na no
desporto que vivem religiosa e fanaticamente ou nos jogos que precisam de jogar
diariamente. A arte, também ela parece adulterada, vítima do império das
massas. Uma vez imagem da individualidade e transcendentalidade do ser
humano, é agora disposta como um produto pronto a ser consumido e
descartado. Em tempos relacionada com a criatividade do indivíduo, é agora
posta de lado e dá lugar ao produto fabricado em prol de uma moda – um
costume acordado como bom socialmente. Penso em Bach, Beethoven…a sua
intemporalidade…há algo de muito humano que os faz clicar em qualquer um,
algo de transcendental, capaz de nos deixar estremecidos. Tocam-nos
profundamente, tais façanhas incomparáveis.
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profundamente humana. Uma missão social para garantir equidade a todo o
humano. No entanto essa missão parece pervertida quando o político não está
pronto à responsabilidade pelo poder que detém, quando se dá à mentira, ao
Ego e aos desejos pessoais. Nos dias que correm está associada a indivíduos
que tão eloquentemente falam para uma população leiga no que toca à
terminologia política; algo que deveria ser acessível a todo o cidadão tornou-se
demasiado complexo para ser acompanhado por qualquer um. Votamos e a
partir daí somos deixados à mão de um conjunto de ideias que não abrem
ouvidos a outras. Vejo partidos políticos e vejo a separação. Competimos quando
devíamos colaborar. São blocos ideológicos diferentes que se promovem
descredibilizando-se. Idealizo um dia ver políticos de perspetivas distintas
unirem-se na sua diferença à missão a que se facultaram: à arte da organização
da população. Exercício este perfeita imagem da empatia inerente ao Homem,
mas que se encontra hoje abruptamente corrompido pelo Ego. Pois que nem ver
além do nosso ponto de vista conseguimos, acabamos a incorrer no crasso erro
ditatorial que demasiadas vezes vimos exterminar populações. Devemos olhar a
História com respeito e aprender com os demais genocídios, com as demais
personalidades neuróticas capazes dos atos mais desumanos.
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drogas que priva este desejo inerente a cada um de nós de ser satisfeito; ou
melhor, pode ser saciado dentro dos parâmetros legislados: álcool e tabaco
podem ser consumidos. É arrebatador ser despojado das minhas mais primitivas
vontades, aliás, ser legalmente destituído de tal, pois que existe sempre a
hipótese de prosseguir ilegalmente carregando a culpa social impingida pelo
tabu. Sabemos o tabaco tremendamente tóxico à saúde como sabemos o álcool
um depressivo e implacável destruidor do organismo a longo prazo. Todavia, é
a estas drogas que a nossa sociedade está associada. A estas e aos malignos
medicamentos marketizados como necessários por uma das mais poderosas
indústrias do mundo – a farmácia. Acabamos por tomar a doença como algo
natural tanto que estamos facultados de inúmeras drogas para a tratar. Há uma
tremenda falta de consciência (educação) ao consumo de drogas na nossa
cultura. Consumimos segundo um conjunto de leis composta por alguém que
não nós – alguém suscetível ao erro. Fechamo-nos à investigação de tantas
outras drogas – algumas delas com mais idade que a nossa espécie – dado um
programa legislativo. Enfim, observa-se socialmente um consumo irrefletido de
drogas; a palavra acaba por ser um bicho-de-sete-cabeças, tanto que representa
um dos maiores problemas sociais até à data e aquilo que nos pode salvaguardar
a saúde. Ainda assim, quando o tema é pronunciado numa conversa vê-se o
estagnante tabu surgir, pronto a sugar qualquer hipótese de aprendizagem e
consciencialização. A nossa cultura é extremamente infantil no que toca a
drogas.
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afetados a curto prazo e danificados a longo, especialmente se o exterior (todas
as vertentes anteriormente faladas) ao qual associamos a nossa identidade e
realidade mantém uma posição de negação ao poder individual, se insiste em
calar a voz do indivíduo através do grito social. A ideia é mudar a forma como
digerimos o exterior.
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a ausência de confortabilidade e luxúria que vemos ambas como corruptas e
insignificantes; tanto que o desejo materialista (económico) é sabido infundado,
mas este conhecimento é apenas tomado como um ideal quando é sentido na
pele. É aí que entra o minimalismo: um consumo consciente – neste caso dos
bens materiais. A ideia de relacionar-se com o exterior conscientemente, tal que
o interior acaba a beber deste contacto.
Posto no mundo sei primeiro que tenho fome. Parti então ao exercício de
cozinhar e ao estudo, complicações mentais – procrastinação – e disciplina que
lhe estão associados, tanto que para aprender qualquer arte é-se necessária a
instrução, as dificuldades e a dedicação à mesma. Experimentei a emancipação.
Primeiro havia adquirido um saber que me proporcionava autogoverno e a
promessa da autossuficiência; segundo, a reflexão estava agora catalisada:
libertava-me dos padrões culturais sexistas e infantis agregados ao homem-
cozinha e aprofundava-me na análise àquilo que me fora ensinado a crescer,
aos todos outros padrões normalizados. Repeti este mesmo processo através
da lavagem da roupa (necessidade social), do ir às compras, do ser responsável
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por uma casa financeira e dinamicamente. No fundo, a ideia passa por assegurar
individualmente as necessidades que nos são naturais, percorrendo o processo
de estudo e prática das mesmas que, por sua vez, oferece tanto um intenso
curso de autodisciplina como uma extraordinária gratificação por tudo o que foi
realizado; vai-se ainda de encontro ao confronto com a cultura. No meu caso,
nunca tinha tido contacto sério com as atividades mencionadas previamente e,
consequentemente, deu-se o conflito entre o que me era conhecido e o novo.
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Epílogo
‘Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,/ não há nada mais
simples./ Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte./ Entre uma e
outra cousa todos os dias são meus.’
Alberto Caeiro
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que ninguém compreende a futilidade deste caminho?' Esquizofrénico à cultura
cresceu-me uma necessidade e posterior responsabilidade pelo Propósito. A
urgência de responder ao Porquê.
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procura pela utopia. Se vivemos o Inferno, que se viva o Céu. É fascinante ver o
desenvolvimento pessoal nesta viagem...desde a minha vontade a uma utopia
através de um regime político – de um sistema –, à inferência que o caminho é
o indivíduo e que o mesmo detém o poder de gerar o sistema de que faz parte.
A minha caminhada pessoal foi abrupta. Do momento que nasci até então.
Mas todas o foram. Este livro foi-me/é-me indispensável ao caminho que tenho
de percorrer. É o meu grito do Ipiranga. Por entre as repetições que tão
necessárias me foram ao estabelecer as minhas verdades; as contradições que,
antagónicas à estagnação, são imagem do questionamento; encontraram-se
realizações pessoais nomeadamente a direção à liberdade. E que realização
aterradora, tal que põe em causa a procura e teorização da liberdade pelos
tantos mestres intelectuais que passaram pelo mundo. A ideia de que a
verdadeira libertação nos é natural, que está dentro de nós à espera de ser
explorada; depende apenas de nós e sozinhos estamos nesta caminhada ao
interior. É assustador ao ocidental que toda a vida viveu acompanhado de todas
as outras vozes exteriores. Falta-nos, nas palavras do professor McKenna,
reclamar a experiência, experienciar a vida e o mundo, ir além do programa que
nos é impingido, daquilo que ouvimos desde sempre. A ideia é experienciar a
vida.
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uma boa forma. É um livro de falhas, sucessos, reminiscências, emoções,
ambiguidades. É diário, autobiografia, memorando, crítica, dissertação. Sou
pretensioso, egotista, corrupto; padeço da necessidade de reconhecimento
alheio e, ainda assim, consegui ao longo dele provar e saborear compaixão – a
vontade de verdadeiramente ajudar o próximo com as minhas palavras. Orgulho-
me profundamente do que consegui fazer: materializar, de certa forma, a minha
individualidade. Por tudo isto, é um livro humano.
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Entropia
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