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JEAN- JACQVES VON ALLMEN

AS TF*
SÃO PAVLÓ
BS 440 .A46617 1963
Vocabulaario baiblico
[ Digitized by the Internet Archive
in 2014

https://archive.org/details/vocabulariobibliOOallm
VOCABULÁRIO
BÍBLICO
publicado sob a direção de
JEAN-JACQUES Von ALLMEN
com a colaboração de

P. Bonnard Ch. Biber

O. Cullmann M. Bouttier
Héring J.
Burnier
J.

E. Jacob M. Carrez

J.-L. Leuba Ed. Diserens

Ch. Masson A. Goy


R. Mehl A. Lelièvre

Ph.-H. Menoud D. Lys

F. Michaeli A. Maillot

H. Michaud J.-Cl. Margot


G. Nagel R. Martin-Achard

G. Pidoux A. Péry

S. Bickel J.-Ph. Ramseyer


S. de Diétrich J.
D. Robert

H . Mehl-Koehnlein H. Roux
S. Amsler Chr. Senft

F. Baudraz E. Trocmé
M. Bernoulli P. Vallotton

Tradução portuguêsa pelo


>rof. ALFONSO ZIMMERMANN
DEC 10 1998
. . .

Título do original:

VOCABULAIRE BIBLIQUE
Edição em português publicada pela Associação de Seminários
Teológicos Evangélicos, com colaboração do Fundo de Educação
Teológica de Nova York.

ASSOCIAÇÃO DE SEMINÁRIOS TEOLÓGICOS EVANGÉLICOS


Conselho Deliberativo:

Júlio A. Ferreira, reitor do Seminário Presbiteriano de Campinas;


Isnard de Rocha, reitor da Faculdade de Teologia Metodista de Rudge
Ramos;
Jaci C. Maraschin, professor do Seminário Episcopal de Pôrto Alegre;
Joaquim Beato, reitor do Seminário Presbiteriano do Centenário (Presidente
Soares-, Minas Gerais);

A. Ben Oliver reitor do Seminário Batista do Rio de Janeiro;


Wilson Guedelha, reitor da Faculdade de Teologia Presbiteriana Indepen-
dente de São Paulo;
Paulo Pierson, reitor do Seminário Presbiteriano do Recife;
David Mein, reitor do Seminário Batista do Recife;
Roberto Grant, reitor do Seminário Teológico do Rio de Janeiro (Pedra de
Guaratiba, Guanabara);
João Mizuki, deão da Faculdade de Teologia Metodista Livre de São Paulo;
Harding Meyer, professor da Faculdade de Teologia Sinodal Luterana de
São Leopoldo;
Paulo Schelp, professor do Seminário Luterano Concórdia de Pôrto Alegre;
Thurmon Bryant, reitor da Faculdade de Teologia Batista de São Paulo;
Aharon Sapsezian, secretário geral da Associação de Seminários Teológicos
Evangélicos.

Outros livros a serem publicados pela ASTE


No prelo:

H. Strohl, "O Pensamento da Reforma"


E. Léonard, "*0 Protestantismo Brasileiro"
O. Cullmann, "Pedro — Discípulo, Apóstolo e Mártir".

Em preparação:

D. M. Baillie, "Deus Estava em Cristo".


G. C. Berkouwer "A Pessoa de Cristo".
P. Johnson, "Psicologia da Religião".
G. Bornkamm, "Jesus de Nazaré".
T. W. Manson, "O Ensino de Jesus".
G. von Rad, "Teologia do Antigo Testamento"
A. Richardson, "Teologia do Novo Testamento".
PREFÁCIO
Nossa geração procura e redescobre cada dia mais, a Palavra do Deus Vivo
nas Sagradas Escrituras; com santa exigência espera de pregadores, doutores e
editores, ajuda e orientação para um melhor conhecimento do Livro Santo.
Na expressão de um manual, as Igrejas contemporâneas têm entrado numa
Renovação bíblica (Renouveau biblique), cujas consequências desafiam qual-
quer previsão, tôda vez que afeta e ilumina os domínios todos da vida ecle-
siástica.

A Igreja, conscientedo seu constante dever de encorajar orientalistas filó-


logos exegetas e historiadores de Israel do judaísmo e da Igreja primitiva, a
multiplicar suas pesquisas não desconhece ser também obrigação sua pôr ao
alcance dos não especialistas os frutos dos trabalhos especializados. Prova disso
é êste Vocabulário Êle, com efeito, foi preparado para ajudar o maior número
.

de leitores: no mundo nosso, a Igreja tem grande necessidade de membros capa-


zes de testemunhar, não apenas com o comportamento, mas com a palavra, a
salvação que dêles se apoderou; almeja torná-los bem aclimatados no mundo
da revelação, sempre mais versados na compreensão da mensagem bíblica. Nos-
so intento primordial tem sido, portanto, oferecer ao "grande público" uma
visão exata do alcance que nossas palavras humanas tomam quando são esco-
lhidas para servirem de veículos da Palavra de Deus — até mesmo esperamos
não decepcionar aos teólogos. Temos cuidado, em segundo lugar, de fugir ao
espírito sectário, visando interessar e ajudar não apenas os protestantes, mas
também "os de fora", que a Bíblia intriga ou revolta, e — sem qualquer intenção
de proselitismo — os católicos romanos que participam do trabalho de "retorno"
às fontes bíblicas empreendido em sua Igreja. Pois sabemos que não se deve
à casualidade a coincidência generalizada desta renovação bíblica com as espe-
ranças de ver restaurada a unidade do povo de Deus.
Para alcançarmos ao máximo a meta proposta, nosso Vocabulário exigiu
de nós a escolha de um método apropriado. Ora, tôda escolha, implica na
renúncia de tudo que não foi escolhido. Mencionemos algumas destas renún-
cias. A primeira: renunciar a escrever um livro demasiado oneroso, portanto,

demasiado volumoso, implicando isso na eliminação de muitas palavras; elimi-


nação que não significa carência de importância teológica; os têrmos eliminados
simplesmente não são "palavras-chaves" dentro da Bíblia, mas meros satélites
de outros têrmos explicados no Vocabulário (daí a frequência da flecha — >
que remete ao artigo-chave do têrmo imediatamente próximo). A segunda:
renunciar à técnica científica, como citação dos têrmos hebraicos ou gregos,
notas, discussões ou refutações de hipóteses exegéticas, etc. A despeito desta
limitação, os colaboradores esforçaram-se por realizar um trabalho exegética
e teolcgicamente profundo, meta que foi conseguida esperamo-lo, sem que fôsse
rebaixado o nível geral do Vocabulário. Finalmente, com poucas exceções, tive-
mos que renunciar às indicações bibliográficas: os eclesiásticos, um tanto inicia-
dos, sabem onde encontrar as listas essenciais; quanto aos leigos, não seria
indispensável remetê-los à publicações especiais que, por sua tecnicidade, con-
fundi-los-iam na maior parte dos casos. Todavia, notaremos, de maneira geral,
que do Vocabulário, embora consultando suas referências pes-
os colaboradores
soais, lançaram mão especialmente dos artigos do Theologisches Worterbuch
zum Neuen Testament, publicado a partir do ano 1933 por G. Kittel e logo
por Friedrich, e editado por Kohlhammer em Stuttgart, e também das melhores
Teologias do Velho e do Novo Testamento. Considerar-se-á, portanto, êste
Vocabulário, um manual popular de teologia bíblica, cujas principais noções
aparecem classificadas por ordem alfabética. Se assim fôr, nossa primeira intenção
estaria realizada.
Na realidade, depois de ler e cotejar tôdas as contribuições fiquei com a
impressão da forte unidade de um
não da dispersão de uni dicionário.
manual, e
Apresentou-se-me a idéia (renunciei a ela porque fizeram-me ver sua desme-
dida pretensão) de intitular a obra "A Palavra e os termos". Apenas indico êste
título no prefácio, para dar relêvo ao resultado que se me antoja como o fruto
dos nossos desvelos e (hesito em escrevê-lo, no receio de ser contradito pelo
leitor) como o sinal de nosso êxito. Êste título teria indicado, pois, que, qualquer
que fosse o termo que nos introduzisse no mundo tão rico, tão diverso, tão
matizado e tão estranho da Bíblia, levar-nos-ia sempre àquilo que é o coração
do Livro: a Palavra de Deus encarnada em Jesus Cristo. Quer se fale da Igreja,
quer de Jerusalém, ou da Lei, dos sacrifícios, do ministério, da edificação, do
Templo, do homem, da aliança, cada um dêstes vocábulos não entrega seu
conteúdo e seu segrêdo senão quando referido à Palavra a Jesus Cristo. Eis
porque a unidade do Vocabulário não parece ter sofrido da multiplicidade dos
colaboradores: a despeito de seus diferentes métodos de trabalho, de suas
competências já mais ou menos comprovadas, dos seus inevitáveis preconceitos,
e ainda que cada um leve a marca das alegrias e das ânsias do hic et nunc de
seu compromisso na Igreja, os colaboradores trabalharam durante dezoito meses
numa obra comum.
Expressarei aqui minha gratidão a todos aquêles que tornaram possível a
realização de um projeto que, há muitos anos, fomentava minha alma. Em pri-
meiro lugar, aos colaboradores do Vocabulário: não pouparam tempo nem
penas para que esta obra prestasse os serviços que, com razão, dela esperam
os leitores. Penso em particular nos especialistas que, acostumados a escrever
para profissionais e técnicos, aqui esforçaram-se em traduzir para um círculo
mais extenso, o resultado de suas pesquisas e estudos (1). Meu agradecimento
vai também aos pastores, cuja adesão total e fraternal foi-me brindada, pro-
vando sua colaboração que bem vale a pena, terminados já os semestres univer-
sitários, reservar-se um tempo para o estudo. Muito injustamente são censu-

rados por reservarem zelosamente, contra a tirania das obrigações paroquiais,


algumas horas de meditação e de pesquisas indispensáveis para não naufragar
na rotina: afinal é sempre para a Igreja que se é teólogo.
Todavia, que destino daria a Igreja à sua reflexão teológica sem a cola-
boração dos editores que consideram o seu nobre ofício antes de tudo como
uma vocação e um ministério? A senhorita A. Delachaux e o senhor A. Niestlé

(1) Justifiquemos a "ausência" de certos mestres que todo leitor gostaria de ver entre
os colaboradores a ausência de F.-J. Leenhardt é motivada por razões de saúde, a de W. Goy
:

pelo minucioso trabalho a que o condena a edição de uma nova concordância bíblica, e a de
W. Vischer à impossibilidade de interromper o seu "Témoignagc du Christ dans l Anete*
Testament".
: ;

exemplificam-no: para dar relevo ao décimo aniversário das coleções teológicas


que levam seu nome, aceitam os riscos consideráveis de uma publicação deste
caráter. Faço votos que, mesmo por mera gratidão a eles, os usuários dêste
Vocabulário participem em sua difusão, presenteando-o a amigos, a catecúme-
nos, a estudantes, ponderando-o a todos que amam a Bíblia ou a quem a Bíblia
intranqiiiliza ou embaraça.
Antes de ser submetido o rascunho pormenorizado do Vocabulário à apro-
vação dos membros da comissão de coleções teológicas, já tinham sido estabe-
lecidos e depois abandonados quatro ante-projetos completos. Não ignoro, pois,
quão dificilmente é aperfeiçoada uma tal emprêsa: a escolha dos artigos, de sua
dimensão, de seus redatores, suscitariam muitas discussões. Entretanto, uma
coisa importava mais que qualquer discussão, mesmo muito legítima: discernir
nos testemunhos- humanos que lhe tributam as Escrituras, o próprio Jesus Cristo,
a Palavra de Deus. Nossa intensão foi exclusivamente facilitar esta "única coisa
necessária".

Lucerna, outono 1953.


/.-/. VON ALLMEN
P. S. — Temos mantido uns poucos termos teológicos para não sobrecarregar os artigos
com repetidas explicações. Expliquemos os principais
Escatologia-escatológico do grego eschaton
: =
"quem vem por último" a escatologia é, :

pois, a doutrina que diz respeito ao fim do mundo e ao mundo vindouro. Desde que Cristo
irrompeu e, com êle. o Reino de Deus, o domínio da escatologia já está misteriosamente pre-
sente entre nós, com o seu pêso de promessas e, simultâneamente, seu atual julgamento
(
—> Tempo).
dois termos que indicam as duas mais remotas fontes
Iainsta-Eloista : literárias da Bíblia.
Hoje sabemos, com efeito, que os Livros Santos, na forma em que os temos, resultam da
reunião de numerosos fragmentos provindos de, pelo menos, quatro fontes principais (iavista,
eloísta, deuteronômica e sacerdotal). A
designação destas fontes mediante os adjetivos eloísta
e livista deve-se à maneira como elas denominaca Deus lave ou Eloim. :

A versão dos Setenta (LXX) é a versão grega do Velho Testamento hebraico. O nome
alude a uma lenda setenta tradutores teriam, independentemente um do outro, feito a versão
:

e comprovaram a perfeita identidade entre todas as traduções. Esta lenda tinha por objeto
acreditar na idéia de que a Bíblia dos judeus dispersos através do Império, e falando grego,
tinha o mesmo direito de ser considerada de inspiração divina como a Bíblia hebraica dos
judeus palestinianos.
O Pentateuco é a coleção dos cinco livros atribuídos a Moisés, a saber Génesis, Êècodo, :

Levítico, Números e Deuteronômio.


Os Evangelhos sinóticos, ou simplesmente os Sinóticos são os Evangelhos de Mateus, de
Marcos e de Lucas. Assim chamados porque, em linha geral, seguem o mesmo plano e podem,
ptjrtanto, (sentido etimológico grego do têrmo) ser "lidos e contemplados juntos".

SIGNIFICADO DAS REFERÊNCIAS BÍBLICAS


Lc 3.7 = Lucas, cap. 3 vers. 7
2Co 7.2s = 2 Coríntios, cap. 7 vers 2 e seguinte
Dn 3.15ss = Daniel cap. 3 vers. 15 e seguintes
Lc 24.1 par — Lucas, cap. 24 vers. e textos paralelos dos sinóticos
1

Tg 2.3,7 = Tiago cap. 2 vers. 3 e 7


Tt 2.3-7 = Tito cap. 2 vers. 3 até o 7
Rm 5.20-6.2 = Romanos cap. 5 vers. 20 até o vers. 2 do cap. 6
Is 4.2; 12 = Isaías cap. 4 vers. 2 e o cap. 12
Is 51-54 = Isaías capítulos 51 a 54
A flecha — > remete a outra palavra do Vocabulário; por exemplo — > aliança
= consulte-se o artigo aliança neste mesmo Vocabulário.
PRÓLOGO DO TRADUTOR
A unicidade da Palavra basta para basear a Teologia perene, universal
e ecuménica, que nossa geração ansiosamente reclama. A Teologia perene não
pode ser outra senão bíblica, limitando-se a estudar o conteúdo imediato da
Revelação e a escutar a voz do Texto inspirado.
Se desse ouvidos somente a determinados momentos da Revelação e só
recolhesse sínteses mais ou menos elaboradas e conscientes, em breve ela deixaria
de ser "Teologia" para decompor-se em "teologias". De fato, diversas e dife-
rentes teologias surgiram a partir da consideração exclusiva dêste ou daquêle
livro separado do conjunto bíblico: teologia iavista e teologia deuteromista,
tradição sacerdotal e tradição sapiencial, ensino sinótico e ensino joanino, elabo-
ração paulina e elaboração da carta aos Hebreus. Tais teologias, porém, não
são a Teologia Bíblica. A Teologia Bíblica escuta a Bíblia tôda, percebe a
continuidade orgânica e a coerência inteligível de todos os livros sagrados, ve-
dando portanto confeccionar diversas teologias, ou pelo menos exigindo-lhes
a unidade profunda. Ela é a única Teologia amplamente ecuménica, fonte de
unidade entre cristãos.
Unidade bíblica,fonte da unidade teológica. A unidade bíblica é-nos
conhecida exclusivamente pela fé. A fé aceita os diferentes Livros canónicos,
e exclui outros, muito preciosos, como os Salmos- de Salomão, comparáveis aos
Escritos mais belos da literatura canónica: a fé veda introduzir elementos não
inspirados pelo Espírito revelador. Ela transforma os diversos textos do Antigo
e do Nôvo Testamento num conjunto orgânico. É esta mesma fé que também
se pressupõe no ponto de partida da teologia bíblica.
Donde provém a unidade da Bíblia? Daquele que é o Centro da Bíblia,
Jesus Cristo. Para o crente, os Livros do VT anunciam e preparam o Messias
que veio para dar cumprimento a tôdas as Escrituras; e os livros do NTano-
tam atentamente a aparição de Jesus Cristo na História, orientando ao mesmo
tempo para a volta do Senhor no final dos tempos. O VT, para o crente, é
Jesus Cristo peparado e prefigurado, enquanto o NT é Cristo que já veio e
ainda esta a vir: princípio fundamental enunciado pelo próprio Jesus: "Não
penseis que vim revogar a lei ou os profetas: não vim para revogar, mas para
cumprir. Em verdade vos digo, até que o céu e a terra passem nem um i ou um
til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra" (Mt 5.17s).
A autêntica Teologia nunca se cansou de considerar esta verdade básica,
procurando na própria Bíblia, argumentos que a fundamentem e imagens que
a traduzam. A mais remota patrística já comparava o NT ao vinho no qual foi
divinamente transformada a água do VT.
É característica dêste "Vocabulário" a preocupação de discernir e seguir
o movimento profundo do pensamento cristão que, passando das figuras ao
cumprimento em Cristo, descobre a novidade do Evangelho. As consequências
desta fidelidade são tão inesperadas como múltiplas. Pois, uma Teologia bíblica
não poderá separar o Génesis do Evangelho de São Mateus, nem isolar o ensino
iavista relativo ao matrimónio do ensino paulino relativo à virgindade. Dora-
vante o protótipo da humanidade já não se busca no primeiro Adão, nem nêle
somos irmãos, mas no Nôvo Adão, Jesus Cristo. Jesus Cristo é a presença central
de tôda a Bíblia, polarizando e orientando a História.
A unidade bíblica provém, outrossim, da onipresença no Texto Sacro de
um Ser incansàvelmente ativo, cheio de Vida e doador de Vida, fonte de inicia-
tivas multímodas. A Teologia bíblica não se esgota recolhendo a Palavra de
Deus tal como ela foi concedida ao povo da aliança para formar a substância
de seu pensamento; pois a Teologia sabe que a Palavra, além de ser ensino, é
evento e chamamento; a Palavra é o próprio Deus que desceu para falar com
Israel, que segue ainda descendo, que terá o seu dia para restaurar tôdas as-
coisas e realizar em Cristo seu desígnio salvador. Para descrever este evento,
fonte de tantas inter-relações e intimidades entre Deus e o homem, a Bíblia
usa têrmos muito diversos e numerosos (Aliança, Eleição, Libertação, Salvação,
Amor, Lei, Evangelho, etc), que têm em comum um profundo parentesco men-
tal e uma idêntica estrutura de pensamento e de fé. Tal comunidade mental e
continuidade de fé é perceptível através da Bíblia inteira, até mesmo onde me-
nos se espera como, por exemplo, quando os- escritores inspirados reacionam
em face de materiais emprestados pelas culturas e religiões vizinhas: imagens
tomadas do mito babilónico da criação, da tradição mesopotâmica do dilúvio, das
concepções persas da angelologia ou do folclore cananeu povoado de sátiros e ani-
mais maléficos. Êste material é purificado, filtrado, repensado em função da fe-
no Deus Criador que realiza seus desígnios salvadores através de nossa História.
É esta unidade de espírito, alma das tradições e das concepções religiosas
da Bíblia inteira, que torna possível uma Teologia bíblica ecuménica, ou seja,
uma compreensão coerente e sintética da única Palavra de Deus, expressa me-
diante tantas outras palavras-. Não sem razão declara J. J. Von Allmen que
deseja intitular êste "Vocabulário": a Palavra e as palavras. Pois. não obstante
a multiplicidade dos têrmos explicados nêste vocabulário, a Bíblia é simples
como o próprio Deus, única como a Palavra. A
multiplicidade dos têrmos- é
como a multiplicidade da criação: Deus com uma simples olhada abraça todas
suas obras e, numa única Palavra, pronuncia todas as palavras. O
"Vocabulário"
pressupõe a unidade da obra de Deus e a síntese da olhada divina. Apresenta-se-
-nos êste texto na forma analítica de um
vocabulário, não com o fito de desani-
mar o leitor que procura a unidade da Bíblia, mas simplesmente para poupar-
-lhe uma sistematização arbitrária e abstrata. Convida-se o crente a circular de
um artigo ao outro, a comparar e aproximar as diversas- notícias encontradas,
para que surja desta aproximação, uma compreensão autêntica da fé.
Método, aliás, normal nas técnicas bíblicas. Quem pretende conhecer por-
menorizadamente a Davi e seu tempo, relaciona necessàriamente os livros de
Samuel com os das Crónicas-; e quem aspira penetrar no mistério de Jesus com-
para atentamente os quatro evangelhos. O
"Vocabulário" permite assim um
conhecimento profundo, por exemplo, do mistério da Aliança: estudando-o
através das suas variadas expressões históricas: Povo de Deus, reino, Igreja;
através das figuras proféticas: Abraão, Moisés, Davi, Elias, João Batista, Pedro;
através- das suas instituições :arca, altar, templo, lei, sacrifícios, festas; através
de seus heraldos e ministros: profetas, sacerdotes, apóstolos; através de sua
expansão a despeito dos inimigos: mundo, Anticristo, Satã. Permite igualmente
um aprofundamento das idéias básicas de tôda a Teologia, como Pecado e
Salvação, constituição do mistério da Iniquidade e do mstério da Redenção,
ministério do Homem e ministério do Sacramento, Sinagoga e Igreja, Morte e
Ressurreição, Vetustade e Novidade .

A frequente intimidade com estas páginas dar-nos-á uma visão de Deus e


do mundo, serena, humilde e otimista. Nenhuma teologia elaborada por arte
humana nos libertará a tal ponto dos fanatismos das intransigências e das estrei-
tezas sectárias. Depois de traduzir esta Obra, convencí-me que de tôdas- as siste-
matizações realizadas no transcurso dos séculos, nenhuma logrará jamais frutos
ecuménicos, como o estudo desapaixonado e inteligente do Livro Santo. Oríge-
nes, nos albores da cristandade, sugeria já que tomássemos muito a sério a Regra
de Interpretação paulina, para não cairmos em dissidências: "que o profeta
profetize segundo a analogia da fé" (Rm 12.6): s-àbiamente o grande intérprete,
que compreendia muito bem a língua grega, pois falava-a desde o berço, explica
como esta regra de interpretação conforme a analogia da fé consiste em fazer o
que faz aqui o "Vocabulário": comparar e aproximar as diversas notícias reve-
ladas, pois desta aproximação surge a autêntica compreensão da Fé; nunca fazer
"teologias" mas- "Teologia", quer dizer, nunca apoiar uma posição sôbre um
texto isolado, especialmente se fôr obscuro, mas sôbre todo o conjunto revelado.
Evitaremos assim as dissidências que dilaceram o corpo de Cristo e esterilizam
qualquer esforço de evangelização no mundo.
Faculdade de Teologia da Igreja Metodista do Brasil, 12 de junho de 1963
Alfonso Zimmermann — Catedrático de Filosofia
- .

índice das abreviaturas usadas no Vocabulário Bíblico

1. VELHO TESTAMENTO
Gn — Génesis Ec Eclesiastes

ÊX — Êxodo Ct Cantares

Lv — Levítico Is — Isaías

Nm — Números Jr Jeremias

Dt — Deuteronômio
T
Lm — Lamentações de Jeremias
Js — Josué Ez — Ezequiel

Jz — Juízes Dn — Daniel

Rt — Rute Os — Oséias

ISm — 1 Samuel Jl — Joel

2Sm — 2 Samuel Am — Amós


lRs — 1 Reis Ob — Obadias

2Rs — 2 Reis Jn — Jonas


1 Crónicas Ma Minnpias
2Cr — 2 Crónicas Na — Naum
Ed — Esdras Hc Habacuque.
Ne = Neemias Sf = Sofonias
Et Ester Ag — Ageu
Jó Jó Zc = Zacarias
SI Salmos Ml Malaquias
Pv — Provérbios

2. NÔVO TFSTAMENTO
Mt — Mateus lTm = 1 Timóteo
Mc — Marcos 2Tm 2 Timóteo
T
Lc_
T .
Lucas Tt — Tito
T
Jo
T„— _
João Fm — Filemon
A
At A.
— Atos Hb — Hebreus
Rm Romanos Tg Tiago
ICo 1 Coríntios IPe 1 Pedro
2Co — 2 Coríntios 2Pe — 2 Pedro
GI Gálatas Uo 1 João
Ef — Efésios 2Jo
— 2 João
Fo oJ u 3 João
Cl Colossenses Jd Judas
lTs 1 Tessalonicenses Ap Apocalipse
2Ts 2 Tessalonicenses

3. EXTRA CANÓNICOS
Tb Tobias Jd Judith
Sab Sabedoria lMc 1 Macabeus
Sir Siracides 2Mc 2 Macabeus
En Enoc
> >

VOCABULÁRIO BÍBLICO

ADOÇÃO fôsse a vontade de Deus, esta lei esmagava-o


com exigências sôbre-humanas o homem tremia
:

1. A linguagem do VT
não possui nenhum à idéia de comparecer perante um juiz inexo-
substantivo equivalente ao termo "adoção" do rável, e permanecia escravo acorrentado pelo
NT, fato digno de nota, porquanto prova a poder do pecado. Foi necessário que o Cristo
completa ausência de qualquer tipo legal de intervisse para quebrar o poder da maldição
adoção entre os judeus.
Contudo a ideia de adoção não está inteira-
da lei.Em virtude da morte de Cristo na
crus (Cristo foi feito pecado por nós, 2Co

mente ausente do VT. O termo "Ben" (=filho) 5.21), o crente, livre de qualquer temor, está
deriva da raiz verbal "bana" (=z edificar, cons- restabelecido em nova relação com Deus, feito
truir). Edificar uma família significa, por ex- "filho de Deus" por adoção, já não mais escravo
tensão, assegurar-se uma descendência, reviver medroso. Êle é filho, não como o Filho por
nos próprios filhos ( —>
Matrimónio,
Morte). O que acontece em caso de esterili-
— natureza ou essência, mas por adoção. Por meio
do Filho é que somos filhos, crianças adotadas
dade da esposa? Pode a mulher tornar-se mãe pelo Pai. Achamo-nos agora diante de Deus
de um filho "por meio de" outra? (Gn 16.2). na mesma relação em que Jesus se acha diante
As Escrituras respondem sim. "O Senhor tem-
:
de seu Pai.
me impedido de dar a luz filhos achega-te pois
; Entretanto, o estado de "filhos de Deus",
à minha serva, e assim edificar-me-ei com fi- ainda que desde já adquirido pela fé, só se
lhos por meio dela". (Comparar Gn 30.3: "coa- realizará plenamente na glória do Pai, quando
bita com Bila para que... eu traga filhos ao o nosso corpo fôr glorificado. A adoção de
meu colo, por meio dela, quer dizer por meio:
todo nosso ser permanece objeto de esperança.
dela eu serei mãe). O texto de Ex 2.10 que Eis porque continuamos aguardando a adoção
traduzimos "a filha de Faraó adotou Moi-
:
de nosso corpo (Rm 8.23).
sés", é literalmente vertido na versão de 1959:
"e dela passou Moisés a ser filho". (Ver tam-
Que acontece, então, com
havia declarado no VT :
—> Israel? Deus
"Israel é meu filho"
bém lRs 11.20; Et 2.7). (Ex 4.22). A adoção pertence-lhe também. A
Aidéia de adoção está pois latente no VT, restauração de Israel reintegrará a nação na
porém, não juridicamente codificada como no sua verdadeira condição de "filha do Eterno"
direito romano em cuja virtude a adoção colo- (Rm 9.4).
cava o adotado sob a potência legal do pai Somos portanto "filhos de adoção mediante
adotivo. Jesus Cristo" (Ef 1.5; ver também Jo 1.12-13)
2. No NT, os textos em que aparece o têr- e êste ato de Deus, adotando-nos por filhos, ma-
mo adoção não são numerosos: cinco em sua nifesta a misericórdia de quem nos salvou por
totalidade, e todos nas epístolas paulinas (Rm Jesus Cristo, para nos restabelecer em uma
8.15. 23; 9.4; Gl 4.5; Ef 1.5). A idéia de relação nova e normal a de filhos de Deus, que
:

adoção, sem renegar o sentido jurídico, está vivem na graça de seu Pai.
impregnada de um conteúdo religioso que nos M. BERNOULLI
coloca no centro da mensagem cristã. O cristão
clama: "Abba, Pai" (literalmente: papai! ver ADVENTO
Gl 4.6). Uma nova relação filial estabeleceu-se O têrmo "advento" de nossas versões neo-
entre Deus e o crente, sobre a base da obra latinas é a tradução de palavras diversas que,
cumprida por Cristo. O —>pecado havia rom-
pido tôda relação normal entre Deus e a cria-
não obstante diferenças de matizes, designam
a vinda, a chegada, a aparição ou presença glo-
tura. Ainda que a lei indicasse ao homem qual riosa do Messias, do Cristo, do Filho do Ho-
:

12 ADVENTO

mem ou do Senhor, tomando posse de seu reino, frequentemente ambíguas, a recusa de mani-
exercendo o poder soberano e o julgamento festar-se quando instigado por seus irmãos (Jo
fi.ial. Trata-se de um ato ou acontecimento 7.2-9), bem como sua declaração diante de
transcendente, para o qual estão voltadas nossa Pilatos (Jo 18.36), demonstram que sua mani-
esperança e fé, que marcará o fim do tempo festação gloriosa está subordinada ao cumpri-

—> —
("século presente") e inaugurará um >
tem- mento e término de seu ministério terrestre,
po nôvo, o da manifestação do "reino dos mediante sua morte e ressurreição. A
manifes-
céus" na terra. tação gloriosa, ilustrada pelas parábolas (de
Mateus 25 especialmente), é anunciada invarià-
1. O VT
já anuncia êste advento sob duas
perspectivas que, finalmente, se coadunam
velmente como um acontecimento temporal sú-
bito e imprevisível, acompanhado, contudo, por
a) O próprio Deus, por compaixão, zelo.
fidelidade à —>aliança, manifestará seu do-
mínio sobre seu povo. Êste domínio pertence-lhe
sinais discerníveis à fé. Jesus, repetidas vezes,
enfatiza a impossibilidade de sabermos o mo-
mento de sua "chegada" (Mc 13.32; Mt 24.42;
desde a eternidade (Nm 23.21; Dt 33.5: Is Lc 12.39 s; At 1.6-7) e a necessidade de espe-
44.6) porém, foi discutido e rejeitado. Eis
;
rá-lo em vigilância e oração. Até em João, pro-
porque, através dos acontecimentos históricos.
penso a confundir ressurreição, vinda do Espí-
Deus prepara um acontecimento sem precedente rito Santo e advento glorioso no fim dos tem-
nem paralelo, cujo anúncio constitui um dos pos, fala Jesus expressamente em sua "volta"
temas máximos da profecia a vinda, o advento,
:
(Jo 14.3).
a chegada, a volta do próprio Iavé ao seu povo. Muito debatida foi a questão de saber se Je-
tornando-se —
pastor de Israel (Ez 34.11 ss).
sus também acreditava na iminência de sua volta
revelando seu julgamento e sua graça tanto como nela acreditavam os fiéis da primeira
sobre Jerusalém quanto sobre as nações (Is geração. Três trechos aparentam insinuar a afir-
46.9-13; 52.7-8; Zc 1.3. 16; 2.9-13: 8.2-3). mativa (Mc 9.1; Mt 10.23; Mc 13.30). Sem
b) Mas trata-se também do advento de um entrar na exegese detalhada dêstes textos, que
rei escatológico, herdeiro das promessas feitas designam, com efeito, a geração contemporâ-
a Judá (Gn 49.10) e a Davi (2Sm 7.16: Jr nea de Jesus como testemunha do seu advento,
23.1-6). Êste rei é o —>
"servo", o "ungido"
de Iavé do 2.° Isaías. É anunciado, ora como
devemos convir com O. Cullmann (Le retour
du Christ, esperance de VÊglise, Neuchâtel et
um soberano temporal e político, ora como Paris, 1943, p. 24 s) que "o anúncio da proxi-
uma personagem apocalíptica às vezes "sus-
;
midade do Reino assume, perante Jesus e pe-
citado", as vezes, "vindo nas nuvens do céu". rante o cristianismo primitivo, um objetivo bem
Sua vinda é acompanhada por sinais anuncia- diverso do que o de fixar uma data final". O
dores do —> —
juízo e vingança vindouros (Is fato capital e decisivo é que a cruz e a ressur-
40.10), ou pela >paz paradisíaca a ser ins- reição marcam o cumprimento da redenção. A
taurada ^Is 9.6; 11.6 ss) e também pela re- vinda final de Cristo glorioso somente manifes-
conciliação universal entre os povos (Is 2.2-4 tará êste cumprimento, seja qual fôr a duração
—> Reconciliação) .
do intervalo entre a ressurreição e a volta de
Envolto de glória ( —> glória) e revestido
de poder sacerdotal (Ez 43.5; SI 110.4: Ml
Cristo.
Existe, a êste respeito, um texto capital em
3.1-3), o esperado de Israel, o Messias, é uma
pessoa celeste "semelhante a um filho de ho-
Hb que permite medir quão importante
9.27,
era para a Igreja primitiva a esperança esca-
mem", "vindo sôbre as nuvens do céu", a quem
tológica "Cristo, tendo-se oferecido uma vez
:

o próprio Deus confere o reinado e dominação


para tirar os pecados de muitos, aparecerá
eternos (Dn 2.44; 7.13-14; SI 24). Sua vinda
uma segunda vez para salvar os que o aguar-
identifica-se ou substitui aquela do "Dia de
dam". Esta relação entre a obra expiatória que
Iavé" (Am 8.9 s; Sf 1. 14 s; 3.14-16).
salva e a volta final é que caracteriza a espe-
2. A pregação de João Batista é o eco direto rança cristã primitiva —
"Êsse Jesus que den-
dos anúncios proféticos, apontando um Messias tre vós foi assunto ao céu, assim virá do modo
justiceiro iminente (Mt 3.11-12). Esta mesma que o vistes subir..." (At 1.11) Quem— .

esperança focaliza a perspectiva de um aconte- virá é quem já veio. A importância da volta


cimento temporal, que é a base da esperança de Jesus reside, pois, no fato de que ela reve-
escatológica provocada pela pessoa de Jesus lará, então em sua plenitude, a eterna atuali-
Os três primeiros Evangelhos, os sinópticos dade e universalidade de tudo que já foi am-
(Mt 4-25 par), nos seus discursos escatológi- plamente adquirido, cumprido e consumado na
cos, respondem à pergunta dos discípulos "Qual: primeira vinda do Cristo. Eis porque, no Apo-
será o sinal de teu advento?", descrevendo a calipse, o Cristo vencedor aparece sob a figura
chegada do Filho do Homem. Da mesma forma, do Cordeiro Imolado (Ap 5.12ss). Eis tam-
em Jo 7.25-52; 10.22-30, os judeus insistem em bém porque, na pregação da segunda vinda, os
saber se êle é ou não o Cristo. As respostas Apóstolos salientam as disposiçõesjxigidas pela
>
ÁGUA 13

esperança que a maneira como Cristo


antes ximidades o único lugar onde se pode morar
virá. As falam do "dia do juízo"
epístolas permanentemente.
(Rm 2.5-16), do "dia do Senhor" (ICo 1.8: "Quando uma terra, dessedentada por frequen-
5.5; 2Co 1.14), do "dia de Cristo" (Fp 1.6. tes chuvas, produz plantas úteis para os que a
10; 2.16), em termos que lembram as adver- cultivam, recebe bênção da parte de Deus mas
:

tências de Jesus e que se harmonizam com os aquela que somente produz espinhos e abrolhos
acentos dos profetas pregoeiros do "Dia de é tida por inútil e próxima a ser amaldiçoa-
Iavé" (ITs 5.2-3; 2Pe 3.10). O acontecimento da..." (Hb 6.8-7). É Deus quem abençoa,
será repentino, catastrófico e furtivo ("como um mandando "as chuvas da primeira e da últi-
ladrão!"), confrontará tôda a vida humana com ma estação" (Dt 11.14); castiga o povo idó-
o Santo e o Justo. A
expectativa da vinda de latra e seu rei, retendo as chuvas, como relata
Cristo confunde-se com a esperança da
ressurreição dos mortos (1 Co 15.23) e do


a história de Elias (lRs 17-18). A água, que
mata a sêde do homem, é um dom gratuito, libe-
juízo final. Implica pois que nos guardemos ralmente concedido por Deus. Nada manifesta
"irrepreensíveis" (ITs 5.23). Contudo a única mais tràgicamente a maldição divina do que
firmeza do cristão reside no fato de que, quem ver-se o povo constrangido a comprá-la a di-
o julgará, é precisamente quem o salvou pela nheiro (Dt 2.6: Lm 5.4). O profeta Jonas
cruz e ressurreição (ITs 5.9-10). Nesta cer- anunciando o julgamento divino e pregando o
teza, a volta do Cristo pode e deve ser aguar- arrependimento em Nínive. diz "Por mandato
:

dada sem qualquer temor, com esperança e do rei, nem homens nem animais provem coisa
alegria (ITs 4.15 ss; 2Ts 2.1-9), com amor e alguma... nem os levem ao pasto, nem bebam
paciência (Tg 5.8; 2Pe 3.4; ljo 2.28: 2Tm água" (3.7). Em o NT. Paulo afirma ser a
4.1, 8). sêde uma de suas provações (2Co 11.27: ICo
De tôda forma, o momento da aparição glo- 4.11), e Cristo crucificado, "para cumprir-se
riosa (epifania) do Senhor (Tt 2.13) será pre- plenamente a Escritura, disse: Tendo sêde" (Jo
cedido por um tempo de luta, provação, cujas 19.28). A água é também um sinal de hospita-
principais características, acompanhadas por si- lidade nos usos palestinianos (Lc 7.44). Se al-
nais e portentos enganosos, encontram-se des- guém der um copo de água a seu próximo, tes-
critas em 2Ts 2.1-12 (alusão ao "mistério de temunha o amor de Cristo (Mc 9.41), e. se
iniquidade" e à epifania do "ímpio"). (
Anticristo; ver Mt 24.15-27). Parte do Apo-
— êste fôr um inimigo, "tu, fazendo isto. amon-
toarás brasas vivas sôbre a sua cabeça" (Rm
12.20), isto é, êle será julgado mais severa-
calipse está consagrada à descrição dos últimos
mente.
combates escatológicos imagens fulgurantes,
:

Bem típico dos métodos divinos é o relato da


como a participação dos mártires e santos no
peregrinação de Israel pelo deserto. Mostra-nos
triunfo final e na glória. Talvez devamos ver
como Deus serviu-se da água para manifestar
em Ap 20.4-6 um eco do anúncio de Jesus aos ora sua bondade, ora sua severidade. Deus fêz
apóstolos (Lc 22.28-30). o seu povo vagabundear durante quarenta anos
H. ROUX (Nm 32.13) não obstante, levou-o à terra pro-
;

metida; recalcitra o povo (Nm 20.5); Iavé


ÁGUA ordena a Moisés ferir a rocha, para que as
águas emanem e o povo se sacie, matando a
Quando o anjo do Apocalipse disse: "Adorai sêde (Ex 17.6; Nm 20.8 ss ; SI 78.15-16).
aquêle que fêz o céu, a terra, o mar e as fon-
Compreendemos assim porque a terra da pro-
tes das águas" (14.7), proclamou uma verdade
messa é sempre apresentada sob a figura de
anunciada pela Bíblia tôda: Deus, que fêz a uma terra "irrigada pelas chuvas do céu" (Dl
terra e "tirou-a da água" (Gn 1.9; 2Pe 3.5).
11.11), perspectiva suficiente para conservar a
usa continuamente esta água para manifestar esperança de Israel.
sua ira ou clemência, sua graça ou julgamento:
Os profetas evocam a primavera milagrosa
mediante ela, num aparente paradoxo, aben-
çoa a terra, dando vida a sêres e plantas, e
do futuro —> Reino de Deus, pintando-a com
águas correntes e com o efeito da chuva sôbre
amaldiçoa-a entregando-a à morte. Tem a água
uma terra dessecada forma parte integrante da
;

ademais, uma virtude purificadora tanto em


sua esperança messiânica, a visão refrescante
sentido próprio como figurado.
e benéfica desta maravilha que é a água. A
1. A água, sinal de bênção. No Oriente bí- água vem a significar o dom do Espírito Santo
blico, a água assume um papel incomensurável. com a inerente plenitude de bênçãos e prospe-
A falta de chuvas ou de fontes provoca a sêca ridade (Is 35.7; 44.3-4, etc). A linguag_em do
e a esterilidade da terra, arrastando homens e vidente do Apocalipse coincide plenamente com
animais à sêde e à penúria: é o
No deserto, nómades
—>
deserto.
rebanhos se detêm junto
e
a dos profetas quando contempla a cidade san-
ta; êle diz dos eleitos :"O Cordeiro, que está
a poços e cisternas, sendo também em suas pro- no centro do trono, apascenta-os e leva-os às
14 ALEGRIA

fontes das águas vivas" (7.17). "Eu, a quem no fim dos tempos, aterrorizará os pecadores
tem sêde, darei de graça da fonte da água "como a voz de muitas águas" (Ap 1.15; 14.2;
viva" (21.6; 22.17. Comparar Is 49.10; 55.1: 19.6) ; "haverá angústia entre as nações por
58.11). Enquanto Zacarias (14.8) via águas causa do bramido do mar e das ondas" (Lc
vivas correndo de Jerusalém, "metade para o 21.25), profetiza o próprio Jesus. E João vê a
mar oriental e metade para o mar ocidental", o grande prostituta finalmente julgada: "Vem,
anjo mostrou a João "o rio da água viva, clara mostrar-te-ei o julgamento da grande meretriz
como cristal, que saía do trono de Deus e do que se acha sentada sobre muitas águas" (Ap
Cordeiro" (Ap 22.1). Ao contrário, o rico 17-1). No reino, porém, renovadas já todas as
da parábola sofre horrorosa sêde nas chamas coisas, "não mais existe o mar" (Ap 21.1).
do inferno (Lc 16.24). O Dilúvio (Gn 6-8) e a passagem pelo Mar
Se no reino escatológico a água é a imagem Vermelho figuram entre as descrições mais
do —> Espírito de Deus, fonte da vida eter-
na, ela representa, evidentemente, a mesma rea-
significativas e relevantes do VT. Não somente
se caracterizaram por assinalarem pontos culmi-
lidade na vida do crente e da Igreja. Deus é. nantes na história da antiga aliança, como tam-
para o judeu piedoso, "o manancial de águas bém pelo particular de ambas receberem sua
vivas" (Jr .13). O justo é comparado a uma interpretação em o NT.
árvore plantada junto à corrente de águas (SI O Dilúvio é a história da maldição lançada
1.3; Jr 17.8). João desenvolve amplamente no por Deus sobre a terra por causa do homem e
relato da Samaritana (c. 4) e suscintamente na da corrupção de tôda a criatura. Deus decreta a
conversa de Jesus com Nicodemos (3.5) esta morte de todos os sêres que havia criado "nes-
:

semelhança bem misteriosa para os interlocuto- se dia, romperam-se todas as fontes do grande
res do Mestre, demonstrando a atual eficácia do abismo, e as comportas do céu se abriram". Só
Espírito que renova a vida do crente. Em outros Noé encontra graça "lembrou-se Deus de Noé
:

lugares, para significar a superabundância da e das criaturas salvas na Arca". Isaías (54.9)
graça na vida cristã, Jesus exclama "Quem : interpreta a aliança celebrada, logo após, entre
crer em mim, do seu interior fluirão, como diz Deus e Noé, como um sinal de eterna miseri-
a Escritura, rios de água viva" (7.38). Mas córdia; a Epístola aos Hebreus (11.7) vê em
os falsos doutores são como "fonte sem água" sua fé a condenação do mundo, e a 2. a Epístola
(2Pe 2.17). As indicações joaninas dizem res- de Pedro (2Pe 3.5-7) menciona esta conde-
peito ao sentido sacramental que o NT dá à nação expressamente.
água, sentido de purificação e regeneração bem A Passagem do Mar Vermelho constitui, na
explícita no —> batismo. história de Israel, a façanha máxima do Deus
lioertador. Iavé manifestou sua glória precipi-
2. A água, sinal de maldição. A água, que
tando os Egípcios "no meio do mar": "Voltan-
dessedenta e rega, significa bênção, porém as
massas d'água, o —>
mar, "as grandes águas",
Deus mani-
do as águas, cobriram os carros e os cavaleiros
e todo o exército de Faraó"... "Afundaram-se
"as águas profundas" obedecem a e como chumbo em águas impetuosas" (Ex 14.28;
festam sua ira. Na realidade, o mar desenca- 15.10; Ne 9.11). Hebreus testifica que foi pela
deado é temível e espantoso (SI 107.23-32; Jon fé que os iraelitas atravessaram o mar Ver-
1: Mt 8.23-27). Deus, contudo, com Sua forte melho (Hb 11.29).
mão pode apaziguá-lo com soberana facilidade, Sem pretender entrar na exegese e seus pro-
a fim de proteger os marinheiros. No sentido blemas, indiquemos ainda que tanto IPe 3.20-21
figurado, as "grandes águas" representam os quanto ICo 10.1-2 interpretam êstes dois
perigos que ameaçam tragar os crentes, e dos acontecimentos como representando o batismo.
quais Deus os livra (2Sm 22.17; SI 32.6: Com efeito, o batismo recapitula o sentido que
144.7; Is 43.2). As muitas águas constituem a Bíblia confere à água: sinal de julgamento e
um poder maligno, como é maligno o poder dos de graça, de morte e de vida.
falsos doutores que, na expressão de São Judas E. DISEREMS
(13), são "ondas bravias do mar que espumam
as suas próprias sujidades": dignos, portanto,
ALEGRIA
de serem jogados ao mar, todos os fomentado- Da mesma forma que o —> amor, e contra-
riamente a outros dons do Espírito subordi-
res de escândalos (Mt 18.6 par) como foram
lançados ao mar os porcos endemoninhados que nados à nossa condição atual, a alegria apa-
Jesus expulsou dos dois gadarenos (Mt 8.28- rece através das páginas bíblicas como a carac-
33). Na profecia, os reinos da Síria e de Israel terística máxima do mundo vindouro. Trans-
serão destruídos "pelas águas do Eufrates" (Is borda de alegria o Apocalipse quando celebra
8.7, Babilónia morrerá precipitada "nas ondas o ajuntamento universal das criaturas em torno •

inimigas" (Jr 51.55), Tiro desaparecerá "co- do trono do Cordeiro (19.7). A alegria brota
berta pelas muitas águas e pelas torrentes abis- pela proximidade imediata e decisiva do Senhor,
mais" (Ez 26.19). A
voz daquele que julgará pela comunhão de tôda a criação reconciliada
ALEGRIA 15

e convidada a participar das maravilhas divi- vras a nota dominante do Evangelho. Com efei-
nas, a contemplar a glória de Deus (Jd 24; to, a alegria brota cada vez que se torna sen-
IPe 4, 13). Entrar no reino é entrar no gôzo sível a proximidade do reino; o júbilo acom-
do Senhor (Mt 25.21 e 23). Ainda que seja panha todos os pontos culminantes da vida e
uma realidade cósmica e escatológica, a alegria do ministério de Jesus: o relato de Natal (ver
manifesta-se desde já, brilha nos céus cada vez a certeza venturosa da intervenção definitiva
que um pecador se arrepende (Lc 15.10). O expressada no Magnificai, Lc 1.46; 2.10; 2
Espírito Santo efunde sobre a face da terra os 20) o testemunho do Batista ("o tempo do
;

sinais precursores do jubiloso triunfo final. Esposo", Jo 3.29) a proclamação do Evan-


;

Portanto, a alegria é, doravante, comum aos gelho, em plena narração de Lucas, da missão
céus e à terra, a Deus e ao homem. Neste ins- dos Setenta, e a exultação de Jesus (Lc 10.17-
tante reconciliam-se o Senhor e seu povo in- 20); a admiração das turbas (Lc 13.17); a
fiel (Is 62.5), encontram-se o pai e o filho graça e a salvação dos que estavam perdidos
pródigo. Devido porém, a nossa atual condição, Lc 15) a conversão dos pecadores (Lc 19.6)
; ;

enquanto estiver inacabada a salvação, nossa o relato da entrada triunfal (Mt 21.1-11 par) ;

alegria permanecerá austera, como o júbilo da as últimas conversações de Jesus com os discí-
espera e como o pressentimento daquele que pulos, as promessas da ressurreição, do Conso-
vai, de mãos vazias, rumo ao grande en- lador e da parusia (Jo 15.11; 16.20; 17.13,
contro. etc.) finalmente, as narrações da Páscoa e a
;

volta do Ressuscitado para os seus (Jo 20.20;


VT Lc 24.41). Salientemos, todavia, o caráter es-
As palavras "alegrar-se" e "exultar" têm, ve- pecial do quarto evangelho nêle não são os
:

rossimilmente, procedência estrangeira (ver P. acontecimentos, mas é Jesus Cristo quem comu-
HUMBERT, Laetari et exultare dans le voca- nica a plenitude da alegria alegria tão pro-
;

bulaire reliqieux de l'A.T. R.H.P.R., 1942, p. funda e íntima como a comunhão que une o
185-214). Paulatinamente implantadas no voca- Pai com o Filho, o Filho com os discípulos e,
bulário religioso de Israel, vieram a designar mediante o Filho, os discípulos entre si.
os transportes de entusiasmo, tumultuosos e fre-
2. Alegria análoga vibra nos Atos: A efusão
néticos (portanto, suspeitos aos rigoristas, como
do Espírito, os milagres em nome de Jesus, a
consta no Iavista e nos profetas, especialmente
pregação da boa-nova, a conversão dos gen-
em Ezequiel), mediante os quais os crentes ma-
tios... que prelúdio magnífico para o júbilo
nifestavam seus sentimentos de exaltação para
do último dia! (At 13.52: 8.8; 13.48; 15.3).
com seu Deus ou seu rei. mormente por oca-
sião das festas, dos sacrifícios ou de qualquer
A alegria emana dos corações convertidos, como
o eunuco etíope (8.39) e o carcereiro de Fili-
entronização. Exaltação bem mais ato ritual
pos (16.34). Esta alegria exulta, particular-
do que mera eclosão de emoções e sentimentos.
mente, por ocasião do banquete eucarístico, tão
"Os textos revelam o caráter vocal, barulhento
intimamente ligado às reminiscências pascais
e entusiasta dêsse júbilo: exaltava-se Iavé com
e às esperanças do banquete messiânico (At
gritarias tão retumbantes que a alegria de Je-
rusalém se ouvia até de longe (Ne 12.43). 2.46; 16.34). CVer O. Cullmann. Le culte dans
VÉglise primitive, Neuchâtel et Paris, 1944, pp.
2Cr 29 descreve-nos o paroxismo dêsses lou-
13-14. Digno de nota a semelhança com o ca-
:
vores triunfais."
ráter primitivo do júbilo cultual em Israel).
Esta alegria de caráter nacional e cultural
tomará em breve novos acentos. Já no Deute- 3. As epístolas paidinas, por sua vez, mani-
rônimo (12.7 e 12) aparece como manifesta- festam vários aspectos da alegria dos apósto-
ção da piedade familiar ulteriormente, nos Sal-
: los a) Ela é um dom do Espírito Santo ( =o
:

mos (16.8-9), vibra com


acentos verdadeira- segundo dom na lista de Gl 5.22; comparar
mente religiosos e pessoais, expressando a ado- Rm 14.17). A proximidade do Senhor é que
ração transbordante do regozijo próprio de acende a alegria (Fp 4.4: "alegria no Se-
quem se sabe na presença de Deus e conhece nhor"). Paulo faz da alegria o constante obie-
as promessas, misericórdias e mandamentos di- to de suas exortações todo crente tem direito
:

vinos (SI 119; 51). Isaías, finalmente, ousará e é convidado a regozijar-se. Dom do Senhor,
transportar esta alegria do plano ritual para não depende ela de circunstâncias fortuitas, mas
o plano escatológico (9.1) e até mesmo para pode ser incessante (lTs 5.16: 2Co 13.11;
o plano cósmico (43.13; 55.12, etc). O ju- Fp 3.1, etc). b) A alegria de Paulo faz-se
daísmo maduro associará a alegria com a es- verdadeira exultação, porquanto êle se sabe
pera dos últimos tempos. objeto de uma graça insigne por parte de Deus
("eu me glorio" traduz comumente êste senti-
NT mento peculiar). Mas esta exultação está em
1. "O reino está próximo, o meu dia já ama- oposto à glorificação humana daquele que se
nheceu (Jo 8.56), exultai!" Ressoa nestas pala- vangloria diante de Deus (Rm 5.2.11; ICo
:

16 ALIANÇA

1.31; 2Co 10-12: Gl 6.14, etc). c) Caracte- 2. A porém, não é tão simples assim.
vida,
riza comunhão dos membros do Corpo de
a Na as alianças sobrepõem-se uma9
realidade,
Cristo, que mutuamente manifestam uns aos ou- às outras, criando conflitos terríveis. Daí o dra-
tros a incessante graça de Deus através da Igre- ma de Jonatas que, para guardar-se fiel à alian-
ja. Todo progresso na fé, confirma a fé (lTs ça de sua família, deveria seguir o pai e odiar
2.19-20; Fp 2.2; 1.26; 4.1; 2Co 1.14 etc). a Davi todavia, com êste último concluiu uma
;

Regozija-se Paulo, mesmo


nos sofrimentos e aliança, cuja profundidade bem se percebe em
no martírio, pois neles outros encontrarão uma ISm 18. Atormenta-o o dever de filho, e mar-
fonte de graça (Cl 1.24; Fp 2.17). tiriza-o o dever de amigo, não menos sagrado.

4. Atingimos assim o supremo caráter da


Uma vez concluída uma aliança entre dois indi-
víduos, não decorre que ambas as partes serão
alegria em Cristo, que se vai~"afirmando cada
colocadas em pé de igualdade. Pelo contrário,
vez mais nas páginas do NT. embora sem per-
a parte prepotente impõe sua vontade e im-
der seu aspecto paradoxal alegria tias aflições
:

prime sua direção ao grupo de aliados. Tal o


e padecimentos por causa de Cristo, alegria no
caso de Ezequias e de Senaqueribe (2Rs 18.
martírio (2Co 13.9; Tg 1.2; IPe 1.8; 4.13:
33 ss). Quando a aliança existe no interior
2Jo 12; Hb 10.34; 12.11; At 5.41; Mt 5.12).
do povo, pode ser extensiva a outras nações,
Alegria, sim, pois sofrer por Jesus, é participar
como aconteceu com os gibeonitas, ganhando
da sua glória a tribulação apressa as dores do
;

por astúcia a aliança com Israel (Js 9) a :


parto maiores as dores, mais iminente a liber-
;

partir dêste instante os gibeonitas são sagrados,


tação.
não mais podendo Josué tratá-los como ini-
M. BOUTTIER
migos. A
expressão "o homem de minha alian-
ALIANÇA ça" também o "meu próximo", com
significa
quem estou obrigado. No seio do grupo for-
VT mado pela aliança reina a paz e prosperidade.
EmIsrael, a vida só é possível no seio da Cada qual pode desenvolver-se e viver livre-
comunidade. O indivíduo isolado constitui uma mente aí. sendo seu dever respeitar os direitos
exceção que causa escândalo. Uma vida assim alheios; eis a sua justiça. Contudo tem simul-
lesabrochada no interior da comunidade é in- taneamente a garantia de que os seus direitos
compreensível sem a noção de aliança. Mediante legítimos serão respeitados ou. caso contrário,
e aliança é que se formulam os laços que atam de que será justificado e recolocado em seus
os membros da comunidade. Além disso, as direitos, restaurando-se assim uma comunidade
relações entre o Deus de Israel e seu povo que tinha sido destruída.
ião concebidas sob o aspecto de uma aliança
sem ela não poderíamos compreender a vida 3. A palavra hebraica correspondente a "alian-
religiosa do povo de Deus. pois dela dependem ça" pode traduzir-se ainda por pacto ou con-
muitas outras noções, tais como a de
tiça e de —>pecado. Vale dizer que no
— > VT
jus-
trato. É usada com um verbo significando
cortar, alusão ao rito indicado em Jr 34.18 s.

a aliança tem um significado de capital impor- A conclusão de uma aliança podia ser acompa-
tância.
nhada por um ritual complicado ou, pelo con-
trário, ser reduzida a sua expressão mais sim-
1. Convém, entretanto, delimitarmos bem a ples :sacrifício, banquete, juramento, apêrto de
extensão que daremos à noção de aliança, a
mão. Parece aludir a uma refeição a conhecida
qual pode existir e atuar sem intervenção de
expressão "aliança de sal" (Nm 18.19: 2Cr
ritos apropriados ao momento de sua conclu-
13.5 ver também a aliança entre Labão e Jacó.
são. Há aliança tóda vez que viverem juntos
Gn 31.44). Vemos que a vida não é possível
sêres pertencentes ao mesmo conjunto. A me-
sem a aliança que está subjacente a tóda a vida
nor unidade, em cujo seio existe uma aliança,
de grupo ou de comunidade. É Deus, defensor
é também a mais natural é a família, que une
da vida, quem defende a aliança. Agir contra a
:

seus membros pelos laços do sangue. Seus


aliança é pecar (Jr 11).
membros possuem, na expressão dos árabes,
sangue comum, ou, no dizer dos hebreus, carne 4. Mas que confere à noção de aliança
o
comum. Romper os laços sagrados da aliança no VT um incomparável significado teológico
que une os membros da mesma família, da mes- é o fato de que as relações entre Deus e Israel
ma casta, tribo ou povo, constitui uma pre- aí aparecem expressas mediante a aliança. Cabe
varicação, uma maldade e uma injustiça. Mas afirmar que toda a religião de Israel supõe na
quem os observar, êste é justo e bom. E fora sua base uma aliança entre lave e a nação
do grupo unido pela aliança, deixam de exis- escolhida. Já Abraão celebra uma aliança com
tir as tais obrigações assim, por exemplo, pode
; Deus em Gn Cena grandiosa aquela em que.
15.
o israelita agir à sua conveniência, relativa- entre os animais repartidos ao meio, Deus passa
mente aos inimigos ou forasteiros, pois mesmo na forma de uma tocha de fogo, enquanto
aniquilando-os é êle justo. Abraão está mergulhado em profundo sono. A
>

ALIANÇA 17

divindade será chamada o Deus da aliança em "versão revista e atualizada no Brasil, 1959",
contextos que refletem a época em que ainda no cap. 9 de Hebreus, escreve "testamento" nos
não estava Israel em Canaã (Jz 8.33; 9.4, 46). v. 16 e 17, e "aliança" no v. 18. As desig-
No Sinai, o Deus dos antepassados fêz aliança nações usuais de Velho Testamento e Nôvo
com Israel, como também o fizera na saída do Testamento (2Co 3.14) derivam da mesma
Egito (Ex 19 e 24). Se Israel permanecer palavra grega que, na maioria das vêzes. é tra-
fiel aos deveres e observar todos os manda- duzida por "aliança". Estas diversas versões da
mentos impostos por Deus, Iavé manifestar-lhe-á mesma palavra grega respondem à necessidade
os sentimentos inerentes à aliança amor, bon- de bem traduzir todo o contexto bíblico, não

:

dade, graça; Deus será fiel. Nas grandes deixando todavia de dar ocasião a equívocos.
festividades judaicas, principalmente na Páscoa, Importa, pois, analisar o texto original com a
que comemora o êxodo do Egito, e na festa ajuda do contexto histórico.
otonal, o povo renovava solenemente a sua Diatheke figura 33 vêzes no (7 v. em NT
aliança com Iavé. As promessas divinas ti- citações do VT) 9 vêzes em Paulo, 17 em
:

nham um caráter concreto, compreendiam tudo Hebreus, 4 nos sinópticos. 2 em Atos e 1 em


aquilo que a Bíblia entendia por bênção,
isto é. segurança, felicidade, fertilidade da ter-
—> Apocalipse. O verbo que formou o substantivo
diatheke aparece raramente no (Lc 22.29; NT
ra, conservação do mundo criado por Deus e At 3.25; Hb 8.10; 9.16; 10.16).
inteiramente conduzido por sua providência. 1. Começaremos analisando, à parte, o texto
Muito cedo, porém, vemos aparecer na his-
do cântico de Zacarias (Lc 1.72), que se situa
tória de Israel um escrúpulo : será compatível na perspectiva vetero-testamentária tradicional.
com a majestade divina, fazer-se Iavé o par- A "santa aliança" evoca, pois, aqui, a continui-
ceiro de seu povo? Eis porque certos autores dade essencial do plano de salvação da história,
bíblicos, em vez de usar a expressão "concluir"
baseada na fidelidade de Deus "ao juramento
uma aliança, escrevem "outorgar" ou "estabe- que fêz ao nosso pai Abraão". Esta aliança re-
lecer" uma aliança. Não obstante o exílio ba- veste os três caracteres que conhecemos no
bilónico, a aliança com Deus subsiste, pois VT:
tem-se tornado parte da essência de Israel. Deus,
a) ela é uma iniciativa soberana e miseri-
com efeito, permanecerá fiel à sua aliança, res-
cordiosa de Deus (Zacarias canta não as van-
taurará e reconduzirá seu povo para a Jeru-
tagens da instituição religiosa ou do contrato
salém reedificada. Tal é a esplêndida mensa-
bilateral, mas a fidelidade de Deus)
gem de Is 40-55, onde o restabelecimento de ;

Sião é celebrado como a manifestação patente b) ela cria uma História bem concreta, a
da justiça eterna de Iavé, tornando-se sinóni- do povo expressamente suscitado e preservado
mos justiça e amor. graça e salvação. pela aliança (o têrmo "juramento" do v. 72
Alianças houve com Adão, com Noé. com evoca evidentemente que Deus, aliando-se, liga
Abraão, com Moisés no Sinai. Incessantemente, o seu nome ao nome de um grupo humano). A
no transcurso da história, a aliança é renova- História nasce assim de um princípio e tende
da, esplêndidamente. com cerimónias grandio- a um fim, pois a aliança nada tem de uma
sas: por Josué no cume do Ebal e do Gerizim conversação casual e fortuita, mas obedece a
(Js 8.30), por Josias (2Rs 23), por Esdras e um plano, tem por finalidade a salvação de Is-
Neemias (Ne 8). Deus permanece fiel. mas rael (esta finalidade temporal está bem mar-
Israel quebra a aliança e olvida seus deveres. cada no v. 77: ". ..redimi-lo dos seus pecados";
Já os Israelitas, como depois os contemporâ- compare Ap 11 19) .
;

neos de Jesus, gloriam-se de seus privilégios c) se Deus se associa a Israel com jura-
de povo escolhido e esquecem suas obrigações. mento, a aliança obriga mais ainda a êste Israel
Iavé constantemente intervirá para punir, po- serví-Lo"em santidade e justiça" (v. 74). Aqui
rém seu castigo visa purificar Israel e prepa- aparece o aspecto moral da aliança (bem des-
rá-lo para a conclusão da nova aliança, não crito em Rm
9.4: são dádivas conjuntas, a
mais escrita em tábuas de pedra, mas nos cora- aliança e a lei).
ções do povo transformado (Jr 31.31 ss). So- Êste significado básico encontra-se igualmen-
mente a noção de aliança possibilita-nos com- te em Atos. A
expressão "filhos da aliança"
preender os conceitos do divino amor, da jus- (3.25), o poder criador da aliança,
salienta
tiça, da graça, da salvação, e só ela torna in-
pois ela fêz surgir na História um povo que
teligível o caráter do pecado. Daí o seu lugar lhe deve totalmente a existência. O mesmo tex-
capital e central na teologia do VT. to, porém, lembra claramente que a aliança ce-

NT G. PIDOUX lebrada com Abraão visava, afinal de contas,


"todas as nações da terra" (Gn 22.18). O
O têrmo grego diatheke é geralmente tradu- contexto expressa que, por Jesus Cristo, têm
zido, nas versões neo-latinas, por dois vocábu- vindo já os tempos; os benefícios da aliança
los: aliança e testamento. Por exemplo, a nossa doravante derramam-se sòbre tódas as nações
>

18 ALIANÇA

(êste o sentido, aliás, do Pentecoste). Em


é a) Rm
9.4 anota que "as alianças" (=alu-
At Estêvão reassume o tema profético da
7, são às diversas alianças narradas no VT. Im-
infidelidade dos israelitas à aliança de Deus. portantes manuscritos porém escrevem no sin-
A expressão "a aliança da circuncisão" do v. 8 gular "a aliança" são parte de todo um con-
:

(compare Gn 17.10 e 21.4), usual no ambiente junto de privilégios, ou melhor, de graças ou-
judeu daquele tempo, alude à conhecida prática torgadas por Deus a Israel. Privilégios muito

——> —> —>


do VT de instituirem-se monumentos, ou teste- diversos >adoção,
: glória, culto,
munhos que comemorem as divinas alianças (p. alianças, promessas. Os judeus, conforme
ex. o arco-iris, altares, cerimónias de culto, Paulo, continuam gozando-os. Todavia o Após-
festas populares, circuncisão, etc). Descuidamo- tolo não deixa de sofrer, (v. 2 e 3) pois êles
nos frequentemente deste aspecto dos textos. agora correm o risco de tudo perder por causa
Entretanto o versículo em foco evidencia que de seu desconhecimento do Cristo. O texto ga-
constantemente a aliança corre o risco de ser nha seu sentido pleno quando pôsto em para-
esquecida ou negligenciada pelo povo, devendo lelo com a situação dos pagãos, "estranhos às
ser solene e regularmente relembrada muito ; alianças da promessa" (Ef 2.12).
mais ainda, êste texto sublinha que, ainda b) Em Rm
11.27, São Paulo cita Is 59.20
quando fundada sobre um evento inicial único, s (ver Jr 31.33 s), não para o relacionar com
a aliança renova-se de ano em ano e de geração a obra redentora de Cristo, senão para des-
em geração daí a importância decisiva dada no
;
crever o último dia quando, convertidos final-
VT às cerimónias comemorativas da aliança. mente os pagãos, Deus "tirará os pecados"
Somente à luz disto compreenderemos as pala- dos judeus. De conformidade com a intuição
vras de Jesus Cristo celebrando a última ceia mais profunda do VT. o Apóstolo concebe aqui
com seus discípulos ( —>
Eucaristia) maior
tentação do povo de Deus (denunciada pelos
. A a aliança
idéia
como uma remissão de pecados. A
de contrato bilateral cede lugar ao con-
profetas, e aqui por Estêvão) foi sempre de ceito de um dom soberano e gratuito de Deus
prender-se aos documentos e ritos da aliança, ao homem pecador. Evidentemente o pensamen-
festas, culto ou circuncisão, e de negligenciar to paulino se cristaliza é um fato que a alian-
:

a própria aliança com suas inerentes exigên- ça definitivamente gratuita tem-se tornado pos-
cias de fidelidade e de justiça. sível historicamente depois do sacrifício de Je-
sus Cristo.
2. Diatheke, para São Paulo(Gl 3.15 ss),
c)2Co 3.14 e Gl 4.24 evidenciam que Is-
guarda o seu conteúdo jurídico grego e signi-
rael não comprendeu a gratuidade da aliança
fica testamento (ver também Hb 9.16-17). O descrita pelo VT fêz de uma aliança de graça
:

apóstolo usa verbos (revogar, acrescentar algu-


(prefigurada por Sara), uma aliança de escra-
ma coisa) que evidenciam o fato; toma empres- vidão (prefigurada por Agar) (ver Gl 4.21-
tada uma imagem do código grego vigente, sem
31) deixou-se perniciosamente seduzir pela es-
;

recorrer à diatheke dos Setenta. Apoia-se na


cravidão e pelas presunções legais. Doravante
idéia da validade definitiva dum testamento le-
estendeu-se-lhe "um véu" (2Co 3.16) sóbre o
galmente redigido: não se deve forçar aqui
seu destino espiritual, falseou-se-lhe o sentido
a imagem para que nela caibam considerações
sóbre a morte do testador ou sóbre a maiori- das Escrituras, não mais entendeu Israel êste
dade dos herdeiros (isso fará Paulo em Gl documento da aliança gratuita. Nada, na opi-
4.1-7). Paulo aaui compara, mas não identi- nião de Paulo, curará sua cegueira, a não ser
fica, a aliança divina com Abrão a um testa- a conversão a Jesus Cristo, pois somente em
mento que não mais pode ser anulado nem mo- Jesus Cristo é desvendado o alcance libertador
dificado por ninguém. O conteúdo teológico do VT (v. 16-18).
mais notável dêste texto pode, pois, formular-se
como segue: na sua essência e origem histó- 3. Só agora cabe abordar a declaração de
rica, a aliança é uma promessa de Deus a
Abraão (e, mediante Abraão, à humanidade
Jesus na última ceia
eucaristia) (Mc
com
14.24;
seus discípulos
Mt
(

26.28; Lc 22.20;

inteira) ora, ao aliar-se com o homem, não
;
ICo 11.25). Deixando de lado o exame minu-
quis Deus desde já impor-lhe sua lei, pois esta cioso dos textos, observemos sumàriamente que:
interveiu na história da salvação muito tempo a) o texto conservado por Paulo (ICo 11.
depois e a título meramente provisório nem ;
25), tanto por sua forma como por seu con-
quis dar-lhe o benefício da salvação imediata- teúdo, é aparentemente o mais arcaico. Marcos,
mente, sem mediador mas promete-lhe a salva-
;
seguido por Mateus, cita as palavras "derra-
ção, agora realizada em Jesus Cristo. mado a favor de muitos", aludindo provàvel-
Nos demais textos paulinos ou deutero-pauli- mente a Is 53.12 (ver idêntica expressão em
nos, (com reserva de ICo 11.25), a ideologia Mc 10.45). Exclusivamente Lucas e Paulo fa-
filia-se díretamente ao pensamento do VT. As- lam de "nova" aliança (eco certo de Jr 31.31-
sim : 34; compare também Ez 24.8 e Zc 9.11).
:

AMÉM 19

b) Conforme Lc 22.29, 37, o "servo sofre- faz também o raciocínio inverso estabelece a
:

dor" é quem fala aqui (Is 42.6; 49.8). Com superioridade de Cristo pela superioridade das
sua "obediência até à morte" (Fp 2. ,5-11), o "promessas" cujo "mediador" é êle (8.6). Eis-
servo mártir ganhou o poder de levar os ho- nos aqui, mais evidentemente que em parte al-
mens ao reino de Deus e de selar entre Deus e guma do NT, em presença de uma cristologia
nós uma nova aliais funcional, que define a Cristo pela obra que
c) Ogesto de Jesus partindo o pão e ofe- veio cumprir. Fundado finalmente, como Paulo
recendo o cálice, entende-se portanto como uma e os sinóticos, no texto de Jr 31.31 ss, Hebreus
interpretação de seu sacrifício sobre a cruz. insiste no caráter caduco da primeira aliança

Seu sangue vertido (=sua morte) é o sangue (8.13): "aquilo que se tornou antiquado e
da nova aliança (Ex 24.3-8) que Deus cons- envelhecido, está prestes a desaparecer". Sua
tituiu para a nossa salvação. Como a antiga caducidade deve-se não à imperfeição intrín-
aliança, a nova é realizada sobre um fato sin- seca, mas à excelência da obra de Cristo; a

gular, absolutamente único, sôbre a —> cruz,


e instituída em forma de "cerimónia" destinada
primeira aliança está simplesmente envelheci-
da e ultrapassada pelos novos acontecimentos.
a renová-la incessantemente para o povo de A antiga oblação sacrificial pelos pecados, já
Deus. foi suprimida, portanto, uma vez que foi cumpri-
da já a remissão em Jesus Cristo (10.18; 9.15,
d) Dos textos sinóticos parece depreender-
16; 10.29). Eis porque a aliança, cujo media-
se que Jesus marcara um encontro com seus dis-
dor é Cristo, será chamada "eterna" (13.20).
cípulos no reino iminente (Mc 14.25; Mt 26.29:
"até o beber, nôvo, convosco, no reino"). Mas P. BONNARD
no texto de Paulo, trata-se antes de uma ceri- AMÉM
mónia a renovar, que "anuncia" a volta de
Jesus aos cristãos reunidos para esta espera. Amém é um termo hebreu que, frequente-
Todavia, nos sinóticos como em Paulo, a ceia mente usado no culto sinagogal, passou para o
do Senhor reveste o duplo caráter de fundar-se NT mantendo-se na língua litúrgica de tódas
no sacrifício único de Cristo e de constituir as igrejas cristãs. Deriva de um radical que
o ato próprio de um povo que está a esperar implica a idéia de firmeza, de realidade, origi-
outra —> ceia o banquete messiânico no Rei-
:

no definitivamente instaurado.
nando têrmos diversos e abundantes, tais como
subsistir, crer, verdade, solidez, fidelidade, cer-
e) Notemos finalmente o sentido da expres- teza, fé, e, talvez até Mamon.
são "Nova Aliança" que encontramos em ICo Amém significa, portanto: verdade, verda-
11.25; 2Co 3.6; Hb 8.13; 9.15 (ver Jr 31.31). deiramente, certo, certamente; às vêzes, corres-
O adjetivo "nova" vem afirmar que Jesus dá ponde simplesmente a "sim" (2Co 1.20). Foi
cumprimento às alianças do VT e que, em Cris- traduzido em grego por uma expressão que,
to, estas revestem seu sentido exato, embora
por nossa vez, transformamos em "assim seja",
limitado no tempo ;além disso, significa que a qual perdeu o matiz de firmeza e verdade,
a aliança, selada no sangue de Jesus Cristo, característico do hebraico, chegando a expres-
participa desde já do —> Reino de Deus,
onde tódas as coisas se farão novas.
sar para muitos nada além de uma espécie
de voto.
4._ Hb 9.16 considera o testamento (como Gl Contudo, o uso do Amém no VT permite afir-
3.15) em sentido jurídico grego. A intenção mar ter êle significado bem maior. Serve para
última da comparação visa aqui a validade defi- confirmar e apoiar o que acaba de ser profe-
nitiva do testamento, mas a morte do testador. rido. Ao pronunciá-lo, o auditório associa-se às
Depreende-se claramente do texto que, pelo declarações feitas, dando-as por válidas e for-
sangue derramado nos ritos da velha aliança mulando-as para si, pronto a conformar-se com
(Ex 24.3-8; Nm 19.4 ss; Lv 14.5) devemos elas. Assim Benaia responde "amém" às or-
entender a morte. "Sem efusão de sangue não dens de Davi (lRs 1.36; Jr 28.6). Amém
há remissão" (v. 22) significa "sem morte equivale, pois, a uma assinatura, a uma pala-
substitutiva não há remissão". Hb 7.23 resu- vra empenhada, explicando-se assim o seu uso
me bem todo o pensamento da epístola "Tem-se
: jurídico. O povo responde "amém" aos man-
tornado Jesus fiador de superior aliança" ím-; damentos que lhe dita Moisés, compromete-se
Perior, isto é, de maior eficácia para recon- a cumpri-los, e aceita, de antemão, as conse-
ciliar definitivamente o homem com Deus. Esta quências por êles implicadas (Dt 27.15 ss:
superioridade é que a epístola estabelece no 12 vêzes; Ne 5.13; Nm
5.22).
decorrer de sua argumentação. Não é por si Amém passou também para a linguagem
mesma que a Nova Aliança (8.13; 9.15) ga- religiosa, a fim de confirmar uma ora-
nha superioridade, mas por causa da superio- ção e sublinhar o caráter solene de uma doxo-
ridade decisiva e da suficiência absoluta da logia (lCr 16.36; Ne 8.6; SI 41.14; 72.19,
obra garantida por Cristo. Todavia, Hebreus etc.) A comunidade, por meio de seus "Amém",
.
:

20 AMOR

declara sua adesão ao louvor de Deus, tomando de elite (Antígona, por exemplo), pois nêles
parte na celebração e invocação do seu Senhor. a nobreza de coração e a benevolência domi-
Em o NT. Amém desempenha igualmente o naram as paixões humanas, c) Agapan, muito
papel de responso, tendo seu lugar no culto, mais raro, menos colorido, usava-se nos dois
conforme o provam os textos da Igreja primi- sentidos anteriores, mormente no segundo. Ora,
tiva (ICo 14.6; Ap 5.14). Encontramo-lo no é significativo que os tradutores do VT prefe-
fim das orações e doxologias, sublinhando a riram agapan para traduzir o correspondente
sua importância e verdade (ver Rm 1.25; 9.5: verbo hebraico. Do VT, êste têrmo grego es-
11.36: 16.27; Gl 1.5; Fp 4.20, etc). Faz palhou-se pelo mundo greco-romano. Não há,
parte dos hinos entoados a Deus, às vêzes, jun- talvez, nenhuma outra palavra grega que tenha

to com o Aleluia (Ap 19.4). É pronunciado dado ao cristianismo nascente uma fortuna
tanto pelo fiel, como pela congregação. Só mais maior.
tarde os sacerdotes reservar-se-ão o direito de
I . O amor de Deus Pelo homem. Contrària-
dizer o Amém.
mente à afirmação vulgar, o VT conhece o
Em o NT, o Amém conserva seu sentido pri- amor de Deus pelo homem, com os seguintes
mitivo: verdadeiro, verídico. Manifesta a cer- matizes principais
teza de uma igreja que responde confiadamente
a) O amor de Iavé expressa-se e revela-se
às promessas de seu Senhor. Na expressão de
especialmente em suas intervenções históricas
um comentarista, o "sim" da igreja faz eco ao em favor de Israel. É. portanto, um amor ativo
"sim" de Deus, sendo êste "SIM" o próprio
que se dirige, antes de tudo, a uma coletivi-
Jesus Cristo, a quem o Apocalipse designa como
dade. "Com amor eterno eu te amei, (Jerusa-
o testemunha fiel. o Amém. o verdadeiro Amém.
lém)" (Jr 31.3; ver Dt 4.37: 10.15: SI 41.
o Amém absoluto, talvez aludido a uma decla-
12). O israelita descobria êste imenso amor es-
ração do VT (comparar Ap 3.14 e Is 65.16).
pecialmente nas grandes liberações de sua movi-
Nesta perspectiva devemos interpretar a ex- mentada História. Trata-se, pois, de outra coi-
pressão "Amém, eu vos digo", introdução de
:
sa além de uma inclinação momentânea (como
vários discursos do Cristo. Trata-se de uma sucede frequentemente na mitologia grega). O
fórmula solene. Acha-se 30 vêzes em Mateus amor de Iavé se "renova" de geração em gera-
e 25 em João, que a repete. Mediante ela Jesus ção, pois segue um plano, desígnio eterno.
de Nazaré afirma desde o início sua autori-
b) Suas intervenções históricas explicam
dade messiânica, tendo-se por aquele que fala
por si só o ajuntamento de Israel. Iavé cria
em nome e em lugar de Deus: tem êle todo
o direito de assim proceder, porquanto sua pala- o povo com um amor eletivo e criador. Nin-
vra é verdadeira e eficiente como a própria pa- guém o determina em seu objetivo. Êle forma
lavra do Pai, e, semelhante a esta, compromete o povo que resolve amar e salvar livremente.
e exige resposta. "Amém", amém, eu vos di- "Não vos teve o Senhor afeição, nem vos esco-
go..." Eis o soberano que fala, o Filho do lheu, porque fôsseis mais numerosos do que
Homem, o fiel e verídico intérprete do pensa- qualquer povo, pois éreis o menor de todos
mento de Deus. os povos. .. mas para guardar o juramento que
R. MARTIN-ACHARD fizera a vossos pais..." (Dt 7.7. Ver também
4.37; 7.8, 13; 10.15; Jr 12.7-9: Is 54.5-8;
AMOR Os 11.1; Ml 1.2: Is 41.8; 2Cr 20.7).
Enquanto o hebreu possuía apenas um verbo c) Finalmente e sobretudo, êste amor é
principal para expressar os múltiplos matizes misericordioso. Salva (socorre, corrige) e per-
do amor (deixando-se ao contexto o encargo doa (Dt 23.5; Is 43.25; SI 86.5: Is 63.9:
de especificar o sentido peculiar), dispunha o "pela sua compaixão êle os remiu": Os 14.4;
grego de três verbos: a) Eran (daí erótico) II. 7-9: ". .porque eu sou Deus e não
. homem").
designava especialmente o amor-desejo do ho- Neste amor, ao mesmo tempo
soberano e mise-
mem pela mulher, bem como o amor-cobiça a ricordioso, Deus revela o que êle é. O livro
qualquer objeto digno de ser possuído (amor de Oséias, neste particular, não tem rival no
do belo, do bem, etc). Êste amor possessivo VT. A
estas três idéias fundamentais acrescen-
foi o principal impulso da vida social moral tam-se, evidentemente, outros matizes comple-
(amor às virtudes), artística (amor ao belo), mentares. Se Iavé ama com predileção seu
filosófica (amor ao verdadeiro) e religiosa povo, também ama "os outros povos" (Dt 33.3,
(amor aos deuses, à vida eterna, à imortali- texto obscuro) ama Abraão e Israel para que,
;

dade etc.) no mundo greco-romano. b) Filein por meio dêles, seu amor atinja todas as na-
(daí filantrópico, etc.) designava o amor desin- ções se Deus ama gratuita e soberanamente,
;

teressado, que se preocupa com o homem, o ama também a justiça e "aquêles que fazem a
amigo, a pátria etc... Êste amor, na opinião justiça" (SI 11.7; 33.5; 37.28; 146.8; Pv
grega, ocorria frequentemente entre os seres 15.9) e, se ama em particular o povo eleito.
: > .:

AMOR 21

ama também individualmente cada um de seus porque tenha um bom coração ou porque saiba
membros (Is 41.8; Ml 1.2; SI 41.12; Pv que Deus sempre perdoa, mas porque cumpre
3.12, etc). na terra o ministério histórico, próprio da
O NT retoma, determina e desenvolve estas nova derradeira iniciativa de Deus para socor-
rer o homem. Nas epístolas de Paulo, as men-
três intuições do VT.
ções do amor misericordioso de Deus, embora
a) O amor de Deus revelou-se num fato
raras, revestem-se de uma absoluta precisão,
histórico que realiza plenamente todas as liber-
pois o Apóstolo tem o dom da expressão origi-
tações particulares outorgadas aos pais: o fato
de
cos,
—> Jesus Cristo. Nos Evangelhos sinóti-
intervenção de Deus apre-
esta histórica
nal e da fórmula inesquecível. Qualquer leitor
observa que, ao falar Paulo da justificação do
homem por Deus, refere-se, antes de tudo. à
senta-se como a vinda do
inaugurado por Jesus. Êste reino
reino de Deus
não nos
—> — obra do divino amor, soberana, gratuita e recon-
ciliadora nunca, porém, encerra numa defi-
cansemos em repeti-lo —
abre um "tempo de
;

nição abstraía, mas nô-la mostra concretamen-


misericórdia". Por que agora urge o arrepen-
dimento? Precisamente porque acaba de fazer-
te na —> crus do Cristo. Até no texto de Rm
5.5 (onde, contrariamente à opinião de S. Agos-
se possível o arrependimento, porquanto a mi-
tinho, fala do amor de Deus por nós), Paulo
sericórdia divina tornou-se efetiva no ministé-
relaciona o amor "derramado em nososs cora-
rio histórico de Jesus (êste é o significado das
Bem-aventuranças :
—>
Bem-aventurados!)
Paulo mostra êste ato histórico principalmente
ções", com o sacrifício da cruz (5.8), cuja
característica essencial foi de haver salvo não
apenas os justos, mas os pecadores ("sendo
no evento da cruz e da ressurreição, conside-
nós ainda pecadores"; ver Ef 2.4). Todavia
rado como global (=cruz e ressurreição estão
mutuamente conexas) e reconhecido como a
êste amor de Deus (ou de Cristo mesmo =
sentido) é muito mais do que um mero fato
revelação única e suficiente do amor divino
objetivo. Realizado no pasado, continua sendo
(Rm 5.8; 8.28, 31 ss, etc). Os escritos joa-
a permanente realidade da qual vive a Igreja,
ninos salientam, igualmente, a paixão do Cristo
mesmo sem jamais "conhecê-la" plenamente.
(Jo 3.16, onde o verbo 'deu" significa "entre-
Conhecer o amor, experimentá-lo em comunhão
gou à morte"; ljo 4.9), porém com insis-
pessoal, bem como aprendê-lo intelectualmente,
tência no fato que Deus, além de ter amado
eis a "raiz" e o "fundamento" da vida cristã,
e de continuar amando, ê amor (ljo 4.8) :

sua "meta" e "realidade" pelo amor é que o


;
certamente não se afirma que o conceito de
crente será "colmado de tôda a plenitude de
Deus reduz-se ao amor, valor supremo, mas
Deus' (Ef 3.18-19). A tal amor dedicam-se
pelo contrário, que o amor não pode ser conhe-
algumas das páginas mais emocionantes do
cido senão mediante a revelação que de si
quarto evangelho (aliás compendiadas na des-
próprio fêz em Jesus Cristo.
crição do 'amor-serviço" em Jo 13).
b) Êste amor "histórico" de Deus é tam-
bém eletivo e criador. Eleição, em primeiro lu-
2. O amor do homem para com Deus. Ao
gar, de o Filho único, o "bem-amado"
Jesus,
amor histórico, misericordioso de
eletivo e
Deus pelo homem, corresponde, em tôda a Bí-
(Mc 12.6). Deus segregou-o e reservou-o para
uma missão particular. O amor do Pai para blia, o amor do homem para com Deus. res- A
com o Filho constitui a base da cristologia de peito do VT
cabem quatro constatações rele-
vantes
João entre aquilo que Deus pensa e decide,
:
:

e aquilo que Jesus executa, estabelece-se, por a) O Deus que Israel ama é, antes de tudo,
obra do amor, uma perfeita correspondência. o Libertador. Deus não é amado por suas per-
Porém, não resulta daí qualquer confusão mís- feições, mas por suas obras históricas de pode-
tica entre Pai e Filho, mas uma comunhão pes- roso auxiliador. O Deus amado do Salmista
soal e ativa ao serviço dos homens (Jo 3.35; (SI 18.2-4) é o "libertador", o "refúgio", o
5.20; 10.17; 14.31; 17.23-26). Paulo dá maior "poderoso salvador" que "liberta dos inimigos".
relêvo à soberania do Deus que elege e voca- 'Amo o Senhor porque êle ouve a minha voz
ciona a quem quiser, para formar sua
Igreja na terra (Rm 9.13, 25) todavia os :
— e as minhas súplicas' (SI 116.1).
do "por suas compaixões". Até
Deus
em
é ama-
textos de
eleitos são —
na expressão sinónima os ama- — escassa sentimentalidade, tais como Dt 6.5. a
dos de Deus (Rm 1.7; Cl 3.12; 2Ts 2.13: ordem de amar é precedida pela lembrança das
Ef 1.4; 2.4). iniciativas de Iavé amará Israel ao seu Deus.
:

c) O amor de Deus, historicamente efeti- isto é, ao Deus que o escolheu e salvou.

vado na pessoa de Jesus Cristo, obra misericór- b) O amor do homem para com Deus con-
dia e perdão corresponde, na perspectiva dos
;
sistirá em servir e obedecer. Quer se trate do
smóticos, à promulgação do "ano de graça" povo, de parte do povo, ou do simples indi-
o Messias recebe autoridade para perdoar
(Mc 2.5, 10; 1.22; 11.28). Jesus perdoa, não
—> víduo, nunca seu amor expressa uma efusão,
admiração ou mesmo uma aspiração a Deus.
>
22 AMOR

Amar a Deus reduz-se a servir a Deus, a obser- na a iniciativa de amar. "Vivo pela fé no Fi-
var, pragmaticamente, seus mandamentos e leis lho de Deus que me amou e a si mesmo se
(Dt 10.12 ss; neste texto devem entender-se entregou por mim" (Gl 2.20). Os escritos
como sinónimos os verbos : temer, amar, ser- joaninos, mais que qualquer outro, salientam a
vir, observar; comparar Jr 8.2 onde amar é anterioridade do divino amor (ljo 3.1 4.10.11. ;

aplicado aos ídolos )._ Amar a Iavé e guardar 17, "nós


19: amamos porque êle nos amou
seus mandamentos são sinónimos (êx 20.6: primeiro").
Dt 5.10; 7.9; 11.1; lRs 3.3; Dn 9.4; Ne b) O amor cristão primitivo continua sen-
1.5); sinónimo também, andar nos seus cami- do como no VT, mais um serviço concreto do
nhos (Dt 10.12; 11.22; 19.9 etc.). que um sentimento ou uma aspiração da alma.
c) Êste amor-serviço é uma obediência pes- É um compromisso voluntário ao serviço de
soal e total (exclusiva), que compromete todas uma nova obediência. Concebe-se o homem co-
as faculdades do homem. Jamais há confusão mo "servo" de um senhor, ou de Deus ou de
entre o homem que ama e o Deus amado. Mo- Mamon (=: riquezas). Está na alternativa de
biliza-se o homem inteiro para o serviço-amor, escolher (Mt 6.24; Lc 16.13); amar a Deus
proposto como suprema felicidade e alegria: de significa desprezar a Mamon. Não deixa de
todo o seu coração, de tôda a sua alma, e de surprender que os escritos joaninos, tantas ve-
tôda a sua fôrça (Dt 6.5; 11.13; 30.6. etc. zes interpretados em sentido místico, sejam os
Ver Mt 22.37). Tampouco aparece, no
homem, qualquer princípio espiritual pronto a
— mais veementes em relevar êste caráter de ser-
viço: "êste é o amor de Deus, que guardemos
amar a Deus o homem deve amar o amor
; : os seus mandamentos" (ljo 4.20; 5.3; 2Jo 6).
lhe é prescrito. O
"coração" não é a sede de c) O amor cristão é, também, um amor
sentimentos que se efundem, mas somente de Prescrito. O homem não ama a Deus espontâ-
vontade que decide. neamente. Esta exigência, tornada possível em
d) Finalmente, ao falar do amor-serviço, o Jesus Cristo, deve ser-lhe incessantemente lem-
VT sempre permanece muito sóbrio e humilde: brada. (Mt 22.37; Mc 12.30, 33; Lc 10.27).

pois não ignora as provações a que incessante-


3. Amor do homem pelo homem. O VT co-
mente está ele sujeito, e mesmo constata como
nhece todos os matizes do amor humano. Pode-
frequentemente a provação termina em confu- ríamos classificar os textos em três grupos,
são para o povo de Deus (Oséias; Dt 13.3 ss: conforme tratem do amor ao próximo, do amor
"o Senhor vosso Deus vos prova, para saber se aos pais, amigos ou correligionários, e do amor
amais o Senhor vosso Deus de todo o vosso co- 6exual. Estas três inclinações expressam-se co-
ração e de tôda a vossa alma"; ver Jr 2.2 ss). mumente no VT
mediante um único verbo, não
Também sabe o VT que um tal amor, total e faltando casos em que apareçam implicadas
indefectível, é e será. forçosamente, uma graça
umas nas outras. Não cabe. pois, distinguir
escatológica de Deus "O Senhor teu Deus
:
uma categoria "profana" e outra 'sagrada". Tô-
circuncidará o teu coração, e o coração de da a vida do povo, em suas inúmeras manifes-
tua descendência, para amares ao Senhor teu tações, é relacionada a Deus e a sua lei. reli-
Deus de todo o coração e de tôda a alma. giosa em todo seu conjunto, sem deixar de ser
para que vivas" (Dt 30.6). bem concreta, quotidiana, familiar e conjugal.
Eis a base do VT, absolutamente indispen- Esta será, também, a vida dos primeiros cris-
sável para a justa apreciação dos textos do tãos.
NT relativos ao nosso amor para com Deus. O VT bem conhece a idéia do amor ao
a) Pois, para o NT também, o amor cons- próximo (Lv 19. 17ss "amarás : ao teu
titui a nossa resposta ao amor libertador de próximo como a ti mesmo. Eu sou Iavé";
Deus. Há, porém, esta particularidade decisiva: ver Zc 8.16 s). Do contexto depreende-se que
que a fé cristã primitiva descobre o divino êste amor é bem diferente de um vulgar senti-
amor, concretizado na pessoa e na obra de mento de preferência racial ou de simpatia pes-
Jesus Cristo. Efetivamente, os sinóticos pro- soal. Implica "não cometer a injustiça", não
clamam-no especialmente revelado no anúncio semear calúnias e até "repreender o próximo
do reino de Deus (= reino de misericórdia, "ano a fim de não levar por sua causa algum pecado
de graça") e na atividade de Jesus em favor sobre ti". Depreende-se ainda do contexto que
dos pecadores (Lc 7.44 ss; 6.36; 15). Que
responda, pois, a esta irrupção do reino, um
o —> próximo é todo membro da comunidade
nacional ou religiosa. O amor, porém, não se
amor sem limites, um compromisso sem reser- limita a estas fronteiras, mas é inicialmente ne-
vas, do homem para com Deus (Mt 6.24 ss; las que se exercitará. O VT
conhece o amor ao
Lc 17.7 ss; Mt 5.29; 10.37 ss; Lc 14.26 ss). inimigo (Ez 23.4) e ao forasteiro: "conheceis
Paulo empenha-se em salientar a total depen- o coração do forasteiro, visto que fostes foras-
dência do amor humano: êste será apenas a teiros na terra do Egito" (Ex 23.9). Sob a
resposta ao amor divino antecedente sendo divi- custódia dêste amor, feito de respeito e de ser-
ANDAR 23

viço, encontraram expressão infinitamente ma- cumprimento da lei é o amor"). O mandamen-


tizada o amor o amor pátrio (2Sm
familiar, to do amor — fato digno de menção — é lem- !

1; ISm 20.17; 16.21; 18.3) e o amor sexual brado no das epístolas (p. ex Rm e Gl),
final
(Gn 29: os amores de Jacó; 2Sm 13: a paixão
perversa de Amnon por Tamar sobretudo os
;
como uma decorrência da —>
salvação de
Deus. descrita no corpo da carta, e como "o
Cantares, maravilhoso poema de amor que, fruto do Espírito" (Gl 5.22; Rm 15.30). A
antes de aceitar-se como uma alegoria do amor Lei e o Espírito aliam-se para ordenar e ou-
de Deus por seu povo, há de entender-se no torgar ao crente o cumprimento do divino man-
seu sentido óbvio e humano). Não encontrare- damento só mediante o amor torna-se ativa
:

mos no VT palavra alguma de desprezo pelo e fecunda a fé do salvo (Gl 5.6). Todavia, as
corpo ou pelo amor sexual em si. Mulher e epístolas insistem menos sobre o amor ao pró-
varão, criados e unidos pelo Criador, formam ximo que sobre o amor fraternal (Gl 5.13;
juntos uma unidade dentro da qual cada um lTm 4.9; Cl 1.4; Fm 5). Êste, baseado na
oferece ao outro o que possui de melhor (Gn solidariedade ativa tanto nas dores como nas
2.18-25 —> Matrimonio) Se os israelitas ne-
.

cessitaram tantas vezes ser prevenidos contra


alegrias, pertence desde já ao reino de Deus:
"nunca perece" (ICo 13.8), ao passo que as
as prostitutas estrangeiras, não foi por causa outras atividades provisórias do cristão (mes-
da "impureza" delas, mas por temor às rela- mo a fé e a esperança) acabarão e serão absor-
ções idólatras, que ameaçavam contaminar Is- vidas pela definitiva irrupção do reino. Enquan-
rael (lRs 11 .1 ss Ed 9 e 10, evitar não aper
; to a epístola de Tiago insiste mais no caráter
nas as prostitutas, mas tôda mulher estran- concreto do amor, lei régia (2.8) que ensina
geira, cujo perigo é idêntico). a repartir seus bens com os necessitados (2.16),
Aqui também, o NT só poderá ser compreen^ a não dizer mal dos irmãos (3.1 ss), dando,
dido à Luz do VT.
Jesus assume, por conta asim, vida à fé (2.1 ss 2.14-26), os escritos
;

própria, os dois mandamentos rabínicos de amar joaninos apresentam o amor ao próximo (to-
a Deus e ao próximo (Mc 12.28 ss. Mt 22.34 mado absolutamente: ljo 3.14,18; 4.7,8,
ss; Lc 10.25-27). Melhor do que os rabinos, 19), e especificamente o amor fraternal (ljo
sublinha a indissolúvel unidade de ambos (Mt 2.10; 3.10; 4.20; 3.11, etc.) como a pleni-
5.31-46; 18.3-35). Tanto no Nôvo como no tude, o cumprimento e o sêlo autêntico de tôda
Antigo Testamento, amar antes de mais nada, vida cristã (ljo 2.10; 4.12). Não obstante a
significa servir servir a Deus numa obediên-
: primeira impressão, a epístola I de João deixa
cia renovada à sua vontade, servir ao próximo a evidência final da preocupação pela vida con-
mormente na oportunidade de um socorro ime- creta e comunitária ela lembra aos cristãos que
:

diato (Lc 10.29 ss). Mais categórico que os o amor, tal como Cristo o comprendia, não é
rabinos, Jesus prescreve o amor aos inimigos. uma efusão da alma, nem consiste na perfeição
Ignoramos donde se lhes originou o ódio dos interior, senão no serviço fraternal "aquêle :

inimigos, (quiçá de certos salmos?), porém que ama a Deus, ame também a seu irmão"
Jesus precisou inculcar em seus ouvintes o (ljo 4.21).
amor aos adversários (aparentemente contrin- Nesta visão de fé, nesta perspectiva do amor
cantes em litígios ou demandas, Mt 5.38 ss) e real e gratuito de Deus, revelado em Jesus
aos inimigos (inimigos do nôvo Israel de Deus. Cristo, e inspirador de um amor fraternal su-
perseguidores, Mt 5.43 ss). Caracteriza-se êste mamente "quotidiano", entenderemos o que nos
amor como um ato de paciência (não replicar, dizem as epístolas a respeito do amor conju-
renunciar a se defender, pondo assim um têrmo gal. O amor conjugal não deve ser absorvido,
à contenda), bem como um ato de misericórdia nem sequer sublimado pelo amir divino, mas
(não fazer acepção de pessons, socorrer e gra- deve receber dêle a sua máxima significação
tificar a todos com a real munificência, caracte- e intensidade (Ef 5.25, 28, 33; Cl 3.19). O
rística da ação histórica de Deus em Jesus amor de Cristo à Igreja é caracterizado essen-
Cristo). A divina "perfeição" de um tal amor cialmente pela total entrega feita por ela, e
(Mt 5.48) forma homens capazes de amar, pelo ardente desejo de vê-la perfeita, gloriosa
não apenas personalidades excepcionais, mas e sem mácula. Eis o modêlo do perfeito esposo.
também pobres e humildes. Será precisamente Ame. pois, o marido a sua esposa com um amor
nos atos de amor de seus discípulos que Jesus que se "entrega" e providencie o verdadeiro des-
reconhecerá o reflexo da perfeita misericórdia tino dela (=a glória da esposa). Então será
de Deus (ver texto paralelo de Lc 6.36). o amor conjugal, em certa maneira, uma pará-
As lembram a lei do amor (Rm
epístolas bola do amor de Cristo.
13.8-10: "quem ama ao próximo tem cumprido P. BONNARD
a lei", não no sentido de ter-se conseguido
uma vida moral superior à prescrita no Decá- ANDAR
logo, mas de, amando, ter-se submetido de uma Andar, caminhar, encontram-se na linguagem
só vez, a todas as prescrições do Decálogo. "O bíblicamais frequentemente em sentido figu-
. ;

24 ANJO

rado do que em sentido próprio. Caminhar, por- conforme os preceitos e manadmentos da Lei
tanto, equivale a viver (SI 23.4 2Co 10.3). (Dt 8.6; 28.9). Outras variantes são: andar
comportar-se, condusir-se. A figura da marcha, nos caminhos da retidão, ou simplesmente andar
adequa-se efetivamente para expressar certos na retidão (Pv 2.13; 14.2), na fidelidade (Is
aspec f os de nossa existência, especialmente re- 38.3), na integridade (SI 15.2), na justiça (Is
ligiosa e moral pois traduz bem a idéia de
; 33.15), na paz (Ml 2.6), na sabedoria (Pv
ter a vida um sentido, uma orientação que nos 28.26), na verdade (SI 26.1), na mentira (Jr
pode ser dada por Deus. tornando-se êle nosso 23.14). O NT fala também em andar na cari"
companheiro de caminho, para nos conduzir dade (Ef 5.2), na luz (Jo 1.7), ou nas trevas
e fortalecer. Também diz a Bíblia que Deus (Jo 12.13), no pecado (Ef 2.2). na disolução
caminha, significando sua intervenção no des- ClPe 4.3). Evidentemente êstes têrmos não de-
tino e conduta dos homens. Nesta acepção con- vem ser interpertados isoladamente como se in-
vém distinguir as expressões seguintes sinuassem u'a moral independente, porém teolo-
Ir diante de: diz-se do chefe, do rei esco-
gicamente, dentro do conjunto do serviço de
lhido por Deus para encabeçar o povo no com- Deus.
bate (Dt 3.8; ISm 8.20), e também do anjo Como mostram estas citações, o NT utiliza
do Senhor (Ex 23.23) e até do próprio Iavé o hebraísmo andar em. Encontrâmo-lo especial-
ÍNm 14.14), verdadeiro chefe de Israel, cuja mente nas epístolas paulinas e nos escritos
presença assegura a vitória. Assim também joaninos. O apóstolo Paulo usa-o mesmo quan-
o pastor da parábola vai diante das ovelhas do não se trata de sujeitar sua vida a determi-
(Jo 10.4) e "ninguém as arerbatará da sua nadas normas, mas de abandonar-se a certas
mão" (10.28). potências, à carne ou ao Espírito (Rm 8.4;
Gl 5.16), à natureza humana (ICo 3.3) ou à
Caminhar no meio de Moisés suplica ao Se-
:
vida nova emanada de Cristo ressuscitado (Rm
nhor (Ex 34.9) e Iavé promete (Lv 26.12)
6.4). Diz-se então preferentemente: andar con-
andar no meio de seu povo. Eis outra expressão
forme, ou recorre-se a uma construção dativa
da presença do Senhor, penhor de vitória para intraduzível em nossas línguas latinas. Em com-
Israel (Ex 34.11; Dt 23.14). Desta maneira
pensação, encontramos a audaciosa expresão an-
também "Aquele que anda no meio dos sete dar nele (=em Cristo Jesus, Cl 2.6). Quer
candeeiros de ouro" (Ap 2.1) é a força da
dizer :seja vossa conduta digna de homens que
Igreja e o penhor do triunfo para ela.
vivem na comunhão de Cristo! Em suma: Vivei
Da mesma forma, Iavé anda com Israel (Ex como cristãos 1

33.16; Dt 0.4). /. BURNIER


Em todas estas locuções, andar aparece como
um têrmo religioso específico, designando a ANJO
marcha para o combate na perspectiva da guerra
santa. Ver também Mq 4.5, e quem sabe mesmo
VT
Is 6.8-9, onde Deus toma as armas contra seu Um anjo é um "enviado", não importando,
próprio povo. sua natureza. Embaixadores (Is 37.9), profe-
tas (Is 44.26; Ag 1.13), sacerdotes (Ml 2.7;
A marcha od Senhor à frente de Israel impõe
a êste, e a cada um de seus filhos, a obrigação Ec 5.6) são chamados anjos, bem como o pre-
de andar com Deus (Mq 6.8), de andar perante cursor do Senhor (Ml 3.1), sem cogitar-se
a sua face (Gn 17.1), na sua presença (lRs jamais se são homens ou sêres celestes. Aliás,
8.25) ou simplesmente perante êle (SI 116.9). a diferença de natureza entre sêres celestes e
Estas expressões, aliás mais variadas na versão terrestres não é muito nítida no VT
nem sem-
:

portuguêsa do que no original, designam uma pre possuem asas (Gn 28.12), andam sobre a
terra (32.1), unem-se às filhas dos homens
mesma atitude de piedade obediente. Israel se-
gue a Deus como os soldados ao seu capitão, (6.2), comem e assemelham-se muito aos ho-
todos se cuidando na batalha para não perdê-lo mens (18.1 ss, 16; 19.1; Ez 40.4). São supe-
riores a nós na força, conhecimento e inteli-
de vista, a fim de poderem obedecer ao menor
sinal feito por êle. Numa palavra e sem metá- gência (ISm 29.9; 2Sm 14.17, 20; 19.27).
foras, toda a vida do israelita centraliza-se em 1. Antes do exílio: a) Anjos e Terra pro-
Iavé. Certamente a religião de Israel não se metida. Antes do exílio não há angelologia ela-
limitou ao quadro da guerra santa, embora borada. A
monolatria iavista relegou os ve-
aludam a êle muitos têrmos de seu vocabulário lhos deuses cananeus ao nível dos servidores de
porém, desde os exórdios, abarcou a vida intei- Iavé, que preside seu conselho celeste (Jó 1-2;
ra. Testificam-no suficientemente os textos ci- lRs 22.19 ss) ei-los submissos e declarando
;

tados no comêço dêste parágrafo. que doravante Iavé possui e dirige, em seu
Com precisão cada vez mais perfeita, o VT lugar, a terra de Canaã (Js 5.13 ss). Os an-
usa a fórmula andar no caminho ou nos cami- jos fazem parte do conselho divino (Gn 32, 1.
nhos de Iavé (2Rs 21.22; Dt 10.12), isto é, 2, 28 e Os 12.4-5; Gn 28.12); demonstram
;

ANJO 25

que Iavé está relacionado com êste país e seus angélica de enlace entre Deus e os homens
moradores. reserva-se,desde já, aos profetas inspirados,
ao Templo e ao próprio culto.
b) Anjos e povo eleito. Portadores da di-
vina Palavra (lRs 13.18), anjo pestífero (2Sm 2. Depois do exílio. A angelologia elabora-
24.16s; 2Rs 19.35) ou destruidor (Gn 19.21s), se paulatinamente depois do exílio, até cons-
anjo guardião de Elias (lRs 19.3ss; 2Rs tituir-se em especulação autónoma. Ezequiel re-
1.3, 15) ou do fiel (SI 34.8; 91.11), eles têm cebe a divina revelação em visões ou mediante
por ofício comum a salvaguarda do povo de um anjo (40.2). Zacarias necessita de um anjo-
Israel ou de determinado indivíduo, enquanto intérprete que lhe explique as visões e lhe trans-
êste estiver inscito na aliança divina (p.ex. mita as respostas de Deus (1.9, 13. etc). Nos
Gn 24.7). Apocalipses, todas as revelações divinas são fei-
tas mediante sonhos ou visões, geralmente in-
c) O
anjo do Eterno. (Fontes iavistas e
terpretados por anjos (Dn 7.16; 10.14).
eloístasdo Pentateuco). Certos intérpretes vi-
ram nêle a segunda pessoa da Trindade ou- ;
A angelologia se desenvolverá livremente
dentro dos seguintes contextos:
tros, ao próprio Iavé ou a seu "substituto"
outros, uma simples glosa teológica e outros,
;
a) Deus é único, infinitamente santo e aci-

um anjo prinnts inter pares; esta última opi- ma do mais alto dos céus. A distância que o
nião, não infirmada pela filosofia, tem para separa dos anjos cresce mais e mais. Êstes são
si a interpretação dos LXX. Inicialmente, o humilhados perante êle, pois neles se pode en-
anjo do Eterno parece caracterizado apenas contrar o pecado (Jó 4.18; 15.14-15). Os an-
por ser o veículo das relações de Iavé com o tigos seres divinos (SI 9.1; 78.25; 97.7: Gn
povo eleito, serviço que desempenha de con- 6.1 ss) deixam de participar da natureza di-
formidade com o contexto das promessas feitas vina única, e formam doravante uma classe de
a Abraão e para a realização da aliança (des- criaturas intermediárias entre Deus e os ho-
cendência, herança, libertação do Egito). De- mens êstes são os anjos da versão dos Se-
:

pois do exílio, já diferenciado claramente, con- tenta. São numerosíssimos (Dn 7.10), repar-
servará a mesma atribuição (Zc 3.1 ss). Às tidos em vários coros hierarquizados. Há ar-
vêzes, vêmo-lo mencionado bem arbitràriamente canjos, Gabriel, Miguel, Rafael etc. Deus pos-
sui sua côrte de adoradores celestes (SI 103.20;
(Jz 6.14 com seu contexto). Excepcionalmen-
te aparece bem diferenciado de Deus. (Assim 148.2).
em Nm 22.22 ss Deus obra desde o céu; seu
: b) Regra geral, Deus deixa de agir direta-
anjo aparece falando diretamente na terra com mente na terra, sendo substituído por anjos
um pagão. Ver também Gn 16 e 21). Geral- especializados: anjos que curam, anjos que re-
mente, porém, o anjo do Eterno fala e age, velam, anjos que intercedem (Jó 33.23), anjos
incontestavelmente, como o próprio Deus (A que vigiam (Dn 4.13), julgam (7.10), pro-
respeito, comparar Gn 22.15 ss com Gn 12.1 tetores de determinados indivíduos (Tobit),
ss; Êx 20.2). Deus age plenamente através príncipes de nações (Dn 10.13). anjo de O
dêle: "nêle está o meu —> nome" (Ex 23.21).
Esta alternância de distinção e confusão en-
Israel, por exemplo, o antigo "Anjo do Eter-
no", passa a chamar-se. doravante, Miguel
tre Deus e o seu anjo, nada tendo de sistemá- (Dn 1.1).
tico, salienta que: 1.° a santidade de Deus não
3. Querubins. Não são anjos. São animais
é profanada nas suas relações com os homens.
mitológicos (Ez 1), importados dos meios ba-
O antropomorfismo do banquete de Iavé ( Gn
bilónicos, que servem de cavalgadura a Iavé
18) é atenuado e retif içado em Jz 6, onde o
(SI 18.11), sentinelas que vedam o acesso dos
anjo recebe um sacrifício (Ler também Êx
mortais à divindade (Gn 3.24: colocados sobre
19 ss e comparar com At 7.53 e Gl 3.19).
a cobertura da arca, Êx 25.20). Vêmo-los
Dificilmente pode Deus aparecer na terra e
ainda exercerem uma função intercessora no
falar com os homens, por causa de sua infi-
lugar santo (Êx 26.1,31).
nita santidade. Seu alter ego o substitui. 2.°
Israel, não é lesado, pois a ação do anjo não
Mencionemos finalmente outros sêres miste-
é inferior à de Deus. 3.° É bem menos perigosa riosos: os -Serafins (=os ardentes) de Is 6,

a presença dêste substituto do que a de Deus louvando ao Senhor no seu palácio; os Ofa-
(Êx 33.2 ss, 20). nins (=as rodas) que permitem deslocar-se o
O anjo do Eterno prefigura, indiscutivel- trono de Deus (Ez 1.15 ss).
mente, o mistério da Encarnação. Além disso, A. LELIÈVRE
êle é o modo "acidental" da presença e da ação NT
d'vina no seio de seu povo ( —> Arca) .

Notemos, ainda, que os anjos não são mencio-


De modo geral, o
ções do VT
NT
faz suas as concep-
e do judaísmo posterior, em maté-
nados pelos profetas pré-exílicos nem pelos ria de angelologia. Sem muito especular sôbre
autores dos textos sacerdotais; pois a missão a natureza dos anjos, o NT
nô-los apresenta
:

26 APÓSTOLO

como mundo do
seres celestes, pertencentes ao Cristo corresponde agora a descida pessoal e
céu, porém criaturas de Deus
não suscetíveis
e imediata de Deus no Espírito Santo. Doravante,
de qualquer culto ou oração (Cl 2.18; Ap 22.8 exclusivamente o Paráclito tem o poder de tes-
s). Usa-os o Senhor para realizar seus desíg- temunhar a Jesus Cristo, porquanto é êle o
nios nos céus e na terra, e para auxiliarem autor da nova criação, que escolhe os nossos
os eleitos (Hb
1.14). A
aparição angélica é corpos para sua morada, que nos é enviado
sempre uma intervenção, direta e de-
sinal de pelo Pai (Jo 14.15 ss; At 2.17). Os anjos,
cisiva que, arrancando os acontecimentos ao outrora mediadores da velha aliança, perdem
seu curso, toma milagrosamente as coisas em doravante seu ministério de intermediários en-
mão. Assim como os anjos no VT
foram os tre Deus e nós (Gl 3.19. Note-se também que
instrumentos de Iavé para conduzir Israel, vo- a primeira intervenção de um anjo foi con-
cacionar servos ou revelar-se aos profetas, ago- secutiva à nossa queda). Situação nova, bem
ra tomam parte dos grandes eventos da vida evidente no evangelho de João, em suas cartas,
de Jesus Cristo. Seu papel salienta-se, par- bem como nas epístolas de Paulo. Efetivamente,
ticularmente, nas narrativas do nascimento (Mt no caso de Paulo, constatamos que a interven-
1.20 ss; 2.13; Lc 1.11 ss e 26 ss; 2.9 ss) e ção guiadora dos anjos é substituída, progres-
da ressurreição (Mt 28.2 ss Mc 16.5 ss Lc ; sivamente, pela conduta do Espírito Santo
24.4 23; Jo 20.12 ss)
ss, bem como nos epi-
; Paulo é detido, impelido, levado, ligado pelo
sódios onde vemos Jesus travando as batalhas Espírito.
decisivas do reino (tentação no deserto, Mt
Anjos de Satanás (Mt 25.41; 2Co 12.7; Ap
4.11; Mc 1.13: agonia de Getsemani, Lc 22.
9.11; 12.7) são as potestades celestes revolta-
—>
:

43). Os anjos são como as duas faces, visível


das, trânsfugas a serviço do Diabo.
e invisível, do drama da salvação. Com sua
presença, êles atestam que Deus mesmo está, Anjos, autoridades,
ridades.
etc. celestes —> Auto-
em Jesus Cristo, travando a luta final, a qual
repercute nos céus e na terra. Vêmo-los tam- Anjos da Igreja (Ap 2-3) São muitas as
:

bém, no livro de Atos, demarcando, com suas interpretações a) os mensageiros enviados a


:

intervenções, os primeiros passos da Igreja, João pelas aludidas igrejas b) os bispos e mi-
:

participando ativamente dos progressos do evan- nistros destas igrejas; c) os anjos protetores
gelho e manifestando, assim, a continuidade es- de cada uma. Preferimos, porém, relacionar a
sencial que une o testemunho dos apóstolos ao expressão ao contexto de Mt 18.10 (os anjos
ministério terestre de Jesus Cristo (5.19; 8.26; das crianças) e ver nos "anjos da Igreja" a
10.3; 12.7; 27.23: etc). secreta e invisível realidade da vida cristã es-
O Apocalipse atribui-lhes um papel determi- condida em Deus. O apóstolo vê-se como arre-
nante, de um lado na revelação de Patmos e batado ao céu, contemplando, assim, o lado se-
de outro na derradeira luta escatológica como creto da vida destas igrejas: por "anjos da
tropas de choque do Filho do Homem (notar a Igreja" entende João êste aspecto invisível
expressão "os seus anjos" de Mt 25.31; 6.53). que Deus lhe revelou.
Os anjos rodeiam o trono; são os agentes exe- M. BOUTTIER
cutores do último drama cósmico travam as
;

últimas batalhas lá no céu em apoio às trava- APÓSTOLO


das na terra pela Igreja.
Mas, enquanto desempenham um papel ativo 1. Esta palavra comporta, no NT, dois usos
durante tôda a história da salvação, anterior e bem diferentes, embora baseados ambos num
posterior a nós, o NT
parece insinuar que o mesmo conceito radical legado pelo judaísmo,
tempo da Igreja marca para os anjos um tem- o de mandatário revestido de uma autoridade
po de silêncio, uma interrupção de seu minis- delegada. Poucas vêzes significa enviado, acep-
tério terrestre. Pois interveio um evento notá- ção geral que o contexto particulariza em de-
vel, do qual êles não participam, a encarnação : terminados casos (Jo 13.16; Fp 2.25; Hb 3.1:
êles não possuem um corpo carnal, ficando, 2Co 8.23). Normalmente, reserva-se para de-
portanto, extranhos à humiliação, aos sofrimen- signar um determinado grupo de pessoas, os
tos, à morte e à ressurreição de Jesus Cristo. enviados do Cristo ressuscitado. De fato, êste
O NT declara os anjos inferiores não somente apostolado consta de dois elementos constitu-
a Cristo (Hb 1.4 ss), mas aos próprios cris- tivos :a) ter visto o Ressuscitado (Lc 24.48;
tãos o crente tem uma comunhão com o Se-
:
Jo 20.21; ICo 9.1; 15.7); b) ter recebido
nhor, impossível aos anjos (—o laço do san- de Cristo o mandato de testemunhar sua ressur-
gue), atestada nos sacramentos oferecidos aos reição e, à luz da ressurreição, a totalidade da
homens e não aos anjos (ver IPe 1.12; ICo pessoa e da obra do Messias (Mt 28.19; Jo
6.3). Em Jesus Cristo somos feitos filhos do 20.21; Rm1.5; ICo 1.17). Portanto, nem
Pai, não passando os anjos de meros servos tôdas as testemunhas da ressurreição são após-
(Jo 15.15). À encarnação de Deus em Jesus tolos; os quinhentos de ICo 15.6 não o são.
. >
APÓSTOLO 27

Mas todos os apóstolos foram testemunhas da conhecidos, Jesus acusa a novidade de sua
ressurreição (ICo 15.7). Vale dizer que a obra ; e, chamando a Dose para estarem
si os
vocação apostólica limita-se, no tempo, com as com êle, declara que não pretende ficar só, mas
aparições do Ressuscitados, sendo Paulo o úl- quer para si homens que sejam seus (Jo 13.1).
timo dos Apóstolos (ICo 15.8). Onde êle estiver, também estarão os seus. Não
A distinção entre apóstolo e simples enviado espera a cruz nem a ressurreição para associá-
los a sua pessoa e obra. não contente em anun-
é, pois, evidente. A
dificuldade surge quando
intentamos determinar com precisão quais têm ciar-lhes sua Palavra e em realizar prodígios

sido os homens integrantes do grupo apostó- à vista dêles, envia-os pregar esta Palavra e a
lico, apóstolos no sentido restrito. Podemos no-
executar êstes portentos. É com êles que cele-
mear aqui com certeza apenas os Doce Simão- :
bra a Páscoa e que, celebrando-a, êle a renova.
Pedro, André seu irmão, Tiago e João, filhos Preferentemente a êles aparece ressuscitado.
de Zebedeu, Filipe, Bartolomeu, Mateus (=Levi "Com êles come e bebe, depois que ressurgiu
em certos textos de Mc e Lc), Tomé, Tiago dentre os mortos" (At 10.41), a êles é que
filho de Alfeu, Simão o Cananeu (o Zelote de confere o Espírito Santo (Jo 20.22). Os Doze
Lc), Judas filho de Tiago (Tadeu ou Lebeu em não serão apenas as testemunhas autorizadas de
Mte Mc) Cristo, mas constituirão a base de sua obra na
e Judas Iscariotes (Mt 10.2-3 e par).
Também foram
Paulo (Rm 1.1,
apóstolos Matias (At 1.26) e
etc.)
terra: sobre êles constituirá sua Igreja (
Pedro, em Nomes Próprios). São sinais pre-

Houve ainda outros apóstolos? Foram após- cursores do fim dos tempos (Ap 21.12), e
tolos Barnabé e os "irmãos do Senhor" (ICo desde já são garantias da fidelidade de Deus
9.5-6)? Andrônico e Júnias (Rm 16.7)? Tia- às suas promessas. O mesmo Cristo, que du-
go o "irmão do Senhor" (Gl 1.19)? Apolo rante seu ministério terestre os queria consigo,
(ICo 4.6, 9) ? Silas e Timóteo (lTm 2.7 com- promete estar com êles até à consumação dos
parar com lTm 1.1)? A resposta é duas vè- séculos (Mt 28.20). Além
de pregadores auto-
zes incerta. Pois, filològicamente não consta rizados, serão os Doze, pessoalmente, um ele-
que, nos textos alegados, o têrmo apóstolo se mento constitutivo da mensagem evangélica (ver
refere a estes personagens e, mesmo na supo- ;
ICo 15. 1-7) serão sinais da fidelidade de
;

sição de que a êles se refira, nem por isso


Deus às promessas, anunciando o evangelho
consta que êles sejam reconhecidos "apóstolos"
primeiramente aos judeus, logo aos samaritanos
no sentido toda vez que podiam ser
estrito,
apenas "enviados" de determinada igreja, ou
(= judeus cismáticos) e finalmente aos pagãos
missionários. A
melhor maneira de explicar o
(ver At 1.8; Gl 2.9; Mt 28.19).
uso algo flutuante do têrmo (no e em tex-
tos muito antigos, como o Didaquê), está em
NT 3. O apostolado de —>
Paulo. À diferença
do apostolado dos Doze, o de Paulo surgiu
admitir-se que, reservado originalmente aos Do-
quando já existia a Igreja, congregada em tor-
ze e a Paulo, este tomou maior extensão no
no dos Doze, seu fundamento. O caráter ex-
transcurso do primeiro período missionário, mas,
traordinário da aparição do Ressuscitado a Pau-
por causa dos abusos cometidos por falsos dou-
lo (At 9) muito depois das aparições aos Doze
tores, tornou a restringir-se e terminou cano-
e fora do país da Promessa, mostra que o
nizando-se. Seja como fôr, só podemos concei-
marco judeu rompeu-se Paulo será essen-
:

tuar o apostolado cristão através dos Doze e


cialmente o apóstolo dos gentios (Gl 2.9), le-
de Paulo, os únicos que sabemos com certeza
vará aos não judeus a salvação confiada à
que foram apóstolos e cuja atividade conhece-
mos (embora esta atividade, para a maioria comunidade renovada, ao novo Israel formado
pela Igreja judaico-cristã de Jerusalém. Terá
dêles, nos apareça apenas coletiva).
pois que entrar na Igreja, receber o batismo e,

2. O
apostolado dos —>
Doze. No início de
seu ministério na Galiléia, Jesus escolheu os
não obstante a vocação direta ouvida dos lábios
do Ressuscitado, terá que receber por tradição
Doze "para estarem com êle e para os enviar a catequese primitiva (ICo 11.23-26; 15.1-7).
a pregar" e para exercerem a "autoridade de Terá por objetivo específico de seu apostolado,
expulsar demónios" (Mc 3.14-15: note-se o explicar em terras pagãs o poder do evangelho.
verbo enviar (apostellein), radical de "após- A atividade evangelizadora dos Doze vai-se ir-
tolo"). A
eleição dos Doze está intimamente radiando desde o centro, Jerusalém, para a
ligada a seu ulterior apostolado, que Jesus Res- periferia, os pagãos. A
evangelização de Paulo,
surreto confirmará. Ao escolher dose homens, pelo contrário, embora destinada também aos
ou mais exatamente doze judeus, ratifica Jesus judeus preferentemente, chocar-se-á contra a in-
a aliança de Deus com as doze tribos de Israel credulidade dêstes. Paulo intentará, pois, a
(Mt 19.7 ss). Entre a obra antiga de Deus convicção de atingir finalmente, mediante êste
em Israel e a obra por emprender há perfeita desvio, a conversão de todos os judeus (Rm
continuidade. Contudo, ao escolher galileus des- 11.32.35). Êste apostolado específico torna
28 ARCA

Paulo essencialmente missionário, fundador de Nunca duvidou-se desta presença divina na


igrejas, doutorda universalidade da mensagem Arca antes do exílio. O fato aparece de ma-
cristã. neira especialmente notável no relato da cap-
tura da Arca pelos filisteus ausente a Arca,
unicidade do apostolado. Em-
:

4. Unidade e
Deus emigrou com ela, abandonando Israel.
bora distintos, o apostolado dos Doze e o de
Daí a tragédia sem par desta derrota (ISm
Paulo estão unidos. Os Doze e Paulo reco-
nhecem-se mutuamente (GI 2.7-10), testemu-
4.18-22; SI 78.60 ss). Uma das fontes lite-

nhando assim a unidade da Igreja, composta rárias do Pentateuco descreve, na verdade, a


presença de Deus na Arca como intermitente:
de judeus e pagãos. Fica doravante constituída
para o porvir a referência central de tôda a
Deus desce quando é aí consultado (Ex 33.9-
vida e de tôda a pregação da Igreja.
11). No entanto, textos sacerdotais, bem poste-
riores a esta fonte, asseveram que Deus "habi-
A Igreja está edificada sôbre o fundamento
dos apóstolos (e dos
A
—> profetas) (Ef 2.20).
apostolicidade será o critério usado pela Igre-
ta" no meio de
da Arca.
Israel pela instrumentalidade

ja ulterior para reconhecer os escritos canó-


A
Arca é declarada "trono de Deus" (ISm
4.4), "estrado de seus pés" (lCr 28.2) con- ;
nicos dignos de exercer perene autoridade sôbre
vergem os textos para garantir que a Arca é-o
ela. Critério que não implica porém a ideia de
lugar único, escolhido por Deus no Sinai, para
uma autoridade servil literal ou mecânica. Os
revelar sua perpétua presença entre os sem
apóstolos receberam o Espírito Santo a Igreja
(Ex 29.42 ss).
comprende e aceita o depoimento apostólico em
virtude exclusivamente do Espírito Santo. To- 2. A Arca é o instrumento do poder diznno.
davia é pelo testemunho dos apóstolos que Mediante a Arca demonstra Deus o seu poder.
Cristo quer manifestar-se ao mundo confirman- A Arca transborda deste poder que se manifes-
do a pregação dos seus enviados com o poder ta em favor da salvação do povo da aliança.
de seu Espírito. Neste sentido os Doze são Providência psicológica, confortadora e assus-
"os dispenseiros dos mistérios de Deus" Cl Co tadora! Quer exercendo-se no Jordão (Js 3),
4.1) e a apostolicidade (=a conformidade aos quer manifestando-se sôbre Dagom ou sôbre a
apóstolos num sentido que êste Vocabulário não corporação dos Filisteus ora dirigindo as va-
;

pode abordar) a conformidade ao que foram cas (ISm 5-6), ora matando, ora cumulando
e disseram os apóstolos será uma das notas de bens (ISm 6.19; 2Sm 6.6, 7, 12). Porém
essenciais da Igreja de Cristo pois Cristo com- mantém-se na liberdade de suspender o exercí-
prometeu-se a estar com êles até a consuma- cio de seu poder quando é ultrajado pelos pe-
ção do século" (Mt 28.20). cados de seu povo: assim não ajuda o Israel
J.-L. LEUBA contra os filisteus, nem sequer para que a Arca
não lhes seja arrebatada (ISm 4.11; 5.1).
ARCA a) Oficio régio da arca. Presença concreta
do Rei divino, a Arca guia Israel através do
Conforme uma descrição tardia de Ex 25 e deserto (Nm 10.33-36; Is 3.3-4), combate no
37 a Arca era um cofre paralelipédico de 125 X meio do povo, e salva-o de todos os seus ini-
75 X 75 cm. Comprendia "varais... para se migos (2Sm 11.11; Js 6). A Arca torna-se
levar por meio deles a arca" dois querubins
de asas estendidas ( —> Anjo VT), uma co-
como o paladino das —>
guerras de Israel,
merecendo ser chamada "Iavé dos exércitos"
bertura chamada propiciatório e uma cortina (2Sm 6.2). Terminada a conquista da terra
protetora; no seu interior conservavam-se as prometida, Salomão instalará a Arca dentro
duas tábuas da Lei (ver também Hb 9.3 ss). do Santo dos Santos de seu Templo (lRs 8.6).
1. A arca era o lugar "institucional" da divi- A vedeta das procissões mencionadas pelos Sal-
na presença. Onde se achava a Arca aí Deus mos de entronização de Iavé (24; 47; 68) não
estava presente, no meio de seu povo, sendo podia ser outra senão a Arca. Ainda que igno-
por meio dela, Emanuel (=Deus conosco). Tão remos muitos pormenores dêstes desfiles litúr-
real era sua presença, e tão concreta que, ao gicos, podemos pelo menos considerá-los como
aproximar-se da Arca, o fiel aproximava-se do a lembrança e a atualização do régio ofício
próprio Iavé (ISm 1.19, 22; 2.18; 3.3; 7.6; reservado à Arca durante todo o período pré-
2Sm 7.18; Ex 25.30). Nem bem enxergavam monárquico.
a Arca, os Israelitas exclamavam: "DeusI" b) Oficio profético da Arca. Deus repousa
(ISm 4.6-7; Nm 10.33 s; SI 68, 34). Certos sôbre a Arca, daí é que fala a Moisés, reve-
críticos conjecturam que havia dentro da Arca lando-se-lhe e comunicando-lhe sua vontade.
ou sôbre ela, uma representação visível de Chama-se Arca da aliança, ou Arca do teste-
Deus (pedra, estátua, serafim), possivelmente
chamada "Face-de-Deus" (ver Nm 12.8; SI
munho, pois contém as duas tábuas da 2> Lei
e precisamente para recebê-las foi feita
—em for-
27.4; Ex 33.14 s). ma de cofre (Dt 1Q.1-8).
;:

ARRAS 29

c) Ofício sacerdotal da Arca. Finalmente, bra que nêle tem sido feita a única aspersão
a Arca é o lugar de encontro entre Deus e que purifica os pecados do mundo inteiro.
seu povo (Ex 25.22) aí faz-se Deus acessí-
;

vel a Israel. Mas êste encontro não é natural,


A —> Igreja, corpo de Cristo, é presente-
mente para o mundo o que a Arca era para
evidentemente. Não é possível Deus viver no Israel (Ef 2.20-22).
meio de um povo pecador, nem êste aproximar- A. LELIÈVRE
se. ou enxergar pelo menos, a Arca sacro-
santa, sem precauções especiais cortina, ritos : ARRAS
de embalagem do cofre, custódia exclusivamen-
Por duas vêzes fala Paulo das arras do Es-
te confiada ao Sumo Sacerdote, serviço sujeito
pírito, lançando mão de um têrmo comercial e
a determinadas condições (Lv 10.1-2; Nm 16.
jurídico de origem semítica para expressar
35, 46).
uma realidade altamente espiritual. As arras.
A
cobertura ou tampa da Arca desempenha-
va um
papel fundamental na festa anual
das expiações. Nossas versões dão-lhes o nome
—> (penhor, aval ou garantia) são um sinal ante-
cipado, uma parte adiantada da totalidade que
se entregará posteriormente. Ler a respeito Gn
de "propiciatório" (Rm 3.25; Hb 9.5). A 38.17-20.
raiz hebraica desta palavra significa "cobrir".
Escrevendo aos coríntios (2Co 1.18-22), lem-
O Sumo Sacerdote cobre esta tampa com sete bra Paulo a fidelidade de Deus. que realizou
aspersões de sangue. Com êste rito, cobre ante
todas as promessas na pessoa de Jesus Cristo.
Deus os pecados de Israel, oferecendo-lhe o
A seguir declara: "aquêle que nos confirma
—>
16).
sangue (=a vida) da vítima (Ver Lv
convosco em Cristo, e nos ungiu, é Deus. Deus
que imprimiu em nós o seu sêlo e colocou em
3. Desaparição da Arca. Ignoramos quando nossos corações as arras do Espírito". Escre-
e porquê desapareceu a Arca. despeito da A vendo mais tarde aos Efésios, o apóstolo dá
menção tardia de 2Cr 35.3, a desaparição deve relêvo especial ao fato de êles terem crido em
ter ocorrido o mais tardar, sob o reinado de Cristo e recebido, portanto, "o sêlo do Espírito
Josias. Jeremias fala de sua destruição como Santo da promessa, o qual é o penhor da nossa
um acontecimento tristíssimo, ainda fresco nas herança" (Ef 1.14).
memórias (Jr 3.16). Durante o tempo de con- Acham-se os crentes numa situação singular
versão geral, prelúdio da era messiânica, não por sua morte e ressurreição, Cristo libertou-os
se confecciona outra Arca. Jerusalém, a cidade do pecado, conferindo-lhes o poder de não mais
santa, substitui-na, tornando-se o trono de Deus pecar. O Espírito fêz-se ativo e operante nê-
em meio de seu povo (Jr 17; ver Ap 22.3-4). les, instaurando a aproximação dos últimos tem-
pos (como em At 2). Contudo, ainda não está
4. A Arca nos sistemas teológicos ulteriores.
transformada a totalidade do ser humano, mes-
a) Uma tradição apócrifa informa que Je- mo regenerado. Apenas temos, já agora, a ga-
remias escondeu a Arca numa caverna do Monte rantia da plena transformação futura :pois o
Nebo, quando da destruição de Jerusalém, e Espírito Santo constitui as arras, o sinal ante-
profetiza que ela reaparecerá no final dos tem- cipado da plenitude que culminará no dia da
pos (2Mac 2.1-8; ver Ap 11.19). ressurreição dos crentes : então, eliminados de-
finitivamente o pecado e a morte, Cristo dei
b) A
corrente espiritualista formula votos
xando de ser o Senhor invisível, reinará à
para que o coração do crente seja êste cofre
vista de todos.
que guarda as tábuas da Lei (Jr 31.33-34).
Tal é o objeto da esperança cristã.
c) O Santo dos Santos do segundo templo Notemos ainda que, em vez de arras, encon-
permanecerá vazio. Todo o templo passa a ser tramos mencionadas (Rm 8.23) as "primícias"
o lugar da divina presença, a "Casa de Deus", do Espírito. No capítulo 8 de Romanos, Paulo
edificada no meio do povo. Preciso é, porém, explica como se realiza a vitória do Espírito.
atenuar o realismo desta fórmula cara aos Sal- Existe (fruto da libertação obrada por Cristo),
mos tardios e às crónicas. A partir dela, origri- uma nova humanidade que pertence ao Espírito
nam-se duas correntes: O
judaísmo poste-
1.° esta vive num mundo onde, mesmo vencido, o
rior destruição definitiva do templo (ano
à pecado permanece ativo. Só conseguirá a plena
70 d.C.) chama "arca" ao tabernáculo das si- liberdade de filhos de Deus o dia em que a
nagogas onde se guardam os rolos do Torá: corrupção será aniquilada. Por enquanto sofre;
2.° Jesus Cristo toma o lugar do templo e da sofrimento não comparável, porém, com a gló-
Arca (Jo 2.21), sendo doravante o único lu- ria vindoura. Tôda a criação está na expecta-
gar da divina presença e o instrumento do po- tiva dêsse dia, mormente os homens. "Também
der de Deus para salvar o mundo (Cl 1.19 s; nós, que temos as primícias do Espírito, geme-
2.9). Na qualidade de Cristo, Jesus é dora- mos em nosso íntimo, aguardando a adoção de
vante o Rei, o Profeta e o Sacerdote. 3.25. Rm filhos, a redenção de nosso corpo. Porque na
comparando-o ao propiciatório da Arca, lem- esperança fomos salvos". As primícias, os pri-
30 ARREPENDIMENTO

meiros frutos, anunciam a colheita próxima. tristezasegundo Deus, produz arrependimento


As arras, o penhor, as primícias do Espírito para a salvação e desta salvação ninguém ja-
em nossos corações garantem a próxima espi- mais se arrependerá" (2Co 7.10; ver Lc 13.3;
ritualização de todo o nosso ser interior. 15.7). O arrependimento está ligado à conver-
são (At 3.19; 26.20), bem como o arrepen-
M. CARREZ.
dimento está ligado ao perdão (Mc 1.4; Lc
ARREPENDIMENTO 17.3; 24.47; At 2.38; 5.31; 8.22), à fé (At
20.21), ao conhecimento da verdade (2Tm 2.
O termo grego significa, literalmente : pensar 25), à cura (Mc 6.12-13), à vida nova (Mt
depois, refletir após, mudar de parecer, e, por- 3.8; At 11.18; Hb 6.1; Ap 2.5; 16.19).
tanto, lamentar, arrepender-se, converter-se. Ca-
racteriza pois. não tanto um estado no qual 2. Arrependimento e reino dos céus. O arre-
desejamos permanecer, comprazer-nos ou de- pendimento, situando-se na transição de uma
sesperar-nos, quanto a passagem de um estado condição para outra, denota um momento de
a outro. O arrependimento bíblico não é uma tensão entre duas realidades irreconciliáveis en-
noção estática mas dinâmica. tre si. É precisamente neste ponto, em que se
encara o reino de Deus e os reinos dêste mun-
1. As duas faces do arrependimento noção . A do, que o arrependimento e a conversão devem
bíblica de arrependimento comporta dois aspec- ser colocados.
tos, um negativo e outro positivo o negativo,
;

aliás,somente existe em função do positivo. Olugar que ocupa a pregação de João Ba-
O arrependimento corres-
lado negativo do tista,no limiar do NT
(pregação essencialmente
ponde ao passado e supõe a constatação de uma baseada no arrependimento), não deixa de ser.
situação anormal, de um caminho errado ou de neste aspecto, muito característico. João lança
um estado pecaminoso. Aquêle que se arre- mão do velho apêlo dos profetas "arrependei- :

pende reconhece de início aue errou o cami- vos e voltai para o Senhor, convertei-vos ao
nho. Lamenta e admite o seu êrro. detesta o Senhor." Êste apêlo ressoa aqui mais categó-
seu pecado. rico do que nunca, com uma tonalidade mais
O lado positivo orienta-se para o porvir, e aguda, e uma premência mais urgente. razão A
abre ao pecador um caminho novo, para o qual é que seu apêlo se situa nos confins de um
lhe será possível dirigir seus passos ao preço novo mundo, na iminência do reino que vem,
exclusivo de uma conversão, isto é, de um re- e sob a pressão de acontecimentos de alcance
torno. Pois converter-se equivale, para quem escatológico. João se encontra no ponto extre-
reconhece o êrro cometido e os perigos de uma mo de encontro entre dois mundos. Portanto,
falsa situação, a entrar, por um movimento de a única atitude exigida, a única oportuna, é o
todo o ser, numa situação nova e justa. arrependimento, isto é, uma disposição à humil-
O arrependimento comporta, portanto, além dade (expressa formalmente mediante a recep-
da confissão e do abandono do pecado, a de-
terminação e o início de uma vida nova. Assim
ção do —>
batismo) implicando uma renúncia
aos poderes do mundo velho e na espera de
situa-se o convertido entre o pecado e a sal- um mundo nóvo. Destarte, o pecador é chamado
vação. a voltar-se para Deus, uma vez que Deus se
Erraria, pois, gravemente, quem confinasse o volta para o homem (voltar-se =. converte-se).
arrependimento aos exclusivos limites negativos,
vendo apenas o remorso, a lástima, o estéril 3. As causas do arrependimento . Na perspec-
ruminar das faltas passadas porquanto ne-
;
tiva bíblica, o arrependimentonão nasce neces-
nhuma destas coisas é capaz de dar vida & sariamente da falta cometida a gravidade do
;

libertação. Seria ficar imóvel no ponto de saí- pecado jamais origina, por si só, o remorso e
da. —
pois, embora necessário, êste primeiro a abominação do mal. O pecador não reconhece
aspecto há de ser transitório. Não se vive no
que anda por caminhos errados e não con-
arrependimento, no remorso, no pesar ou no
verte os seus passos se não fôr coagido por
desespero nestes sentimentos não se permane-
;

porém, se é necessário entrarmos neles, aí


um apêlo ou uma revelação escatológica. Pois
ce ;
é a proximidade do reino que, simultâneamente,
devemos ficar transitoriamente, para logo sair-
julga uma situação e outorga uma promessa,
mos de maneira decidida, pois não se trata ape-
causando, assim, o arrependimento. "Arrepen-
nas de lamentar os nossos erros e suas con-
dei-vos, porque está próximo o reino dos céus"
sequências, mas principalmente de sairmos de
nossa condição pecadora.
(Mt 3.2).

Assim se explica porque, via de regra, o têr- O arrependimento o objeto de um


é, pois,
mo arrependimento é acompanhado na Bíblia chamado exterior, de uma pregação (Mt
12.41
por outro têrmo ou expressão, salientando aue par; Mc 1.4-15 par; 6.12; Lc 5.32; 24.47;
um arrependimento, segundo Deus, desemboca At 2.38; 3.19; 17.30; 20.21; 26.20), de um
sempre na salvação, mediante a conversão. "A mandamento, de um preceito, porquanto a imi-
ASCENSÃO 31

nência do reino não dá lugar a mais tergiver- coisas têm-se feito novas (2Co 5.17). Confor-
sações e dilações: arrependei-vos (At 8.22:
! mar-se-á doravante às exigências do reino, pro-
Ap 2.5, etc.). duzindo frutos dignos de penitência (Mt 3.8)
Pode, contudo, ser provocado pela mera ma- e manifestando, através de suas obras, que todo
nifestação dos fatos que testemunham a vinda dom de Deus pede, em retorno, a obediência
do reino (Lc 5.8). do homem.
Oarrependimento é, pois, um dom de Deus. 5. O arrependimento de Deus. A criatura não
O de uma graça já ativa, embora ainda
sinal é a única sujeita a arrependimento. Muitos tex-
exterior. O impulso do Espírito Santo que, tos da Bíblia nos mostram o arrependimento
mesmo ainda não habitando no pecador, já o no próprio Deus (Ex 32.14; Jr 26.13; Jn 4.2,
pressiona e impele, o ilumina com fulgores re- etc). Folga dizer que o têrmo aqui usado é qua-
veladores das trevas, e o conduz finalmente à se sempre, diferente do têrmo que define o arre-
salvação. Assim, o arrependimento, longe de pendimento humano, devendo-se entender a con-
ser uma exigência tirânica de Deus, é antes um versão de Deus de um modo radicalmente dife-
fruto do seu amor. "Desprezas porventura a rente da conversão do pecador que lamenta seu
riqueza da bondade, da tolerância e longanimi- êrro. Se Deus se arrepende do mal que tinha
dade divinas, ignorando que a bondade de Deus pensado fazer (ou, Jr 18.10, do bem que tinha
é que te conduz ao arrependimento?" (Rm 2.4). projetado), denota isso que Iavé não é o Deus
Arrependimento e pecado. Se o arrepen- dos filósofos, prisioneiro de sua eterna imobi-
4.
dimento não é devido, primordialmente, à auto- lidade e imutabilidade, mas o —>
Deus vivo
e pessoal, sempre atento ao comportamento de
acusação ou introspecção escrupulosa, segue-se
que tampouco está relacionado, necessàriamente, seus filhos, sempre propenso a renunciar amo-
com pecados exteriores, manifestos ou aberta- rosamente às suas justas sãnções, a favor de
mente denunciados pela ética corrente. A graça, quem se arrepender. Pois Deus não deseja a
por certo, opera sempre sobre um enfêrmo, em- morte do pecador, mas sua conversão e sua
bora êste enfêrmo possa aparentemente sentir-se vida (Ez 33.11).
bem, e ser um homem honesto e irrepreensível J.-PH. RAMSEYER
quanto a lei. Também neste ponto, a pregaçãc
de João, o Batista, mostra-se bem reveladora. ASCENSÃO
Pois ela não se dirige apenas aos pecadores no-
tórios,mas também aos fariseus e saduceus. Êste têrmo, talvez inadequado, serve hoje em
Todo o poder do Espírito Santo e a revelação dia para designar a "subida" aos céus do Cristo
tôda do divino amor são necessários para con- ressuscitado. O terceiro Evangelho e os Atos
vencer o homem de pecado. Por êste motivo dos Apóstolos são os únicos documentos do NT
é que a pregação do arrependimento e da con- que mencionam explicitamente êste fato. Em
versão, a despeito de seu rigor impiedoso, sem- Lc 24.50-53, lê-se que o Cristo ressuscitado
pre carece de qualquer motivação ou forma lega- "apartou-se" de seus discípulos, enquanto os
lista nunca conduz a uma idéia de salvação pe-
:
abençoava (uma versão menos fundada do ver-
las obras, mas a uma alegre aceitação da graça. sículo 51 aduz que êle "foi elevado ao céu").
Uma tal pregação nos obriga a considerar o O contexto indica aqui que esta separação pro-
pecado como uma realidade muito séria, porque duziu-se no mesmo dia da ressurreição de Jesus.
nos faz levar mais a sério o próprio Deus. O Em At 1.2 trata-se de um "arrebatamento" de
desespêro que o conhecimento da culpa podia Jesus ao céu e o vers. 3 precisa que aconteceu
gerar fica assim vencido, no arrependimento, quarenta dias após a ressurreição de Jesus, pe-
pela confiança na misericórdia de um Deus que ríodo no qual Jesus "apareceu vivo" a seus
condena para salvar. A
tristeza do mundo cau- discípulos e falou-lhes acêrea "das cousas con-
sa a morte, enquanto "a tristeza segundo Deus cernentes ao Reino de Deus". Em At 1.9 en-
produz arrependimento para a salvação" (2Co fim, lê-se que o ressurreto "foi elevado", en-
7.10). quanto os discípulos o olhavam e que "uma nu-
O apêlo que, em
todo o curso da História vem o encobriu de seus olhos".
da salvação, homens a reconhecerem
incita os Analisando os três textos supra, forçosas são
seus pecados e a afastarem-se deles, não deve, certas observações, que podem ser resumidas
portanto, ser entendido e interpretado como uma
da seguinte maneira 1 Os têrmos gregos em-
: .

lei de condenação irrevogável, desde que em pregados para descrever a ascensão do ressus-
Jesus Cristo êle vem a ser um evangelho, uma citado, apresentam êste evento como um "arre-
boa nova. batamento" (verbos na passiva, pressupondo
Emconsequência, o pecador arrependido, so- que Deus é o sujeito da ação) antes que uma
bre quem, desde já, pesa a graça do perdão, "ascensão". O Cristo não escala os diversos
esforça-se-á por manifestar sua gratidão teste- céus que o separam da divindade, para acabar,
munhando que, à luz do Evangelho, todas as enfim, na luz supra-terrestre, como se observa
: >
32 AUTORIDADES

no mito conhecido por muitas religiões quanto nal da obra de Cristo, posto que ele foi elevado
à elevação das almas (e, em certos evangelhos para interceder junto ao Pai. reinar sôbre tôda
apócrifos, a respeito de Jesus). O que é arre- criatura, enviar o Espírito aos seus, voltar fi-
batado possui já —
ainda que sob formas va- nalmente para a terra, no último dia.
riadas, conforme os textos —
a glória da vida Num segundo grupo de textos teológicos sô-
é o ressuscitado que é arrebatado à vista de bre a ascensão, mister seria classificar tôdas
seus discípulos. —
2. Recolocado no contexto as menções da "sessão" do Cristo à destra de
do NT, o tema da ascensão aparece como niti- Deus. Como já dissemos, êste último tema, mais
damente secundário, em relação ao da ressur- frequentemente tratado junto com o da ascen-
reição-exaltação de Jesus. Efetivamente, os mais são, pertence primordialmente ao da ressurrei-
antigos textos do NT, se fazem finca-pé cons-
tantemente sôbre a idéia da glória do ressuscita-
ção de Jesus ( —> Direita) .

do, "sentado" à direita de Deus, não relacionam


P. BONNARD
esta afirmação com o fato da ascensão. (Ver
p.ex. lTs 1.10; 4.16: 2Ts 1.7; ICo 4.5; Rm
AUTORIDADES
8.34; ICo 15.4, onde se trata de aparições do 1. Muitos e importantes textos paulinos contêm
ressuscitado; Cl 1.18-20; Ef 1.3, 10, 20; Fp as palavras "autoridades", "potestades", "po-
2.9 ss; 3.20; 2Tm 2.8; 4.18, etc). Em
suma. tências", "poderes", "tronos", "principados", no
o fato da ascensão não aparece explicitamente sentido específico de entes invisíveis aparenta-
nem nas epístolas paulinas, ou deutero-paulinas.
nem nas católicas (exceto IPe 3.22), nem no
dos aos
Diabo).
—A >anjos e às forças satânicas (
estas palavras convém relacionarmos

Apocalipse, nem no primeiro Evangelho. Enun- outras que frequentemente as acompanham, tais
cia-se em Mc 16.19, que é um texto tardio, como "príncipes dêste século', "elementos", "al-
acrescentado posteriormente ao segundo Evan- turas", "profundidades", "o que está nos céus",
gelho e que, ademais, não diz outra coisa sôbre "o que está debaixo da terra". "Autoridades"
o assunto que o dito por Lucas e Atos e em : designa, primeiramente, o poder confiado a al-
Jo 20.17 onde, bem como em Lc 24.50-53. a guém e por êle exercido e. a seguir, as pessoas
ascensão produz-se logo após a ressurreição. — revestidas dêsse poder. Como veio ela a signi-
3. Vê-se que o tema da ascensão em si, pos- ficar os sêres específicos que menciona Paulo
terior ao da ressurreição-exaltação de Jesus, e já, antes dêle, o judaísmo contemporâneo do
não foi, no princípio, solidário com o das apa- cristianismo nascente?
rições durante quarenta dias (comparar At 1.3.
9: Jo 20.17; Jo 21.1). 2. a) Os demais escritos neo-testamentários
Porém, se o fato da ascensão, quanto a even- empregam, geralmente, os têrmos "autoridades",
"poderio" e "poder" em seu sentido profano,
to devidamente constatado, é parcimoniosa e
mencionando o poder terrestre dos chefes civis
tardiamente atestado no NT. a realidade desta
e militares (Mt
8.9; Lc 20.20; 23.7; At 9.14;
ascensão é muito mais amplamente testemu-
26.10-12) e estendendo o têrmo aos próprios
nhada. Trata-se então de afirmações teológicas,
chefes, como costumamos fazer em nossas lín-
sem caráter narrativo ou documentário, que po-
guas latinas (Lc 12.11; Tt 3.1)
dem ser classificadas em dois grupos prin-
cipais. b) Atos 1.8 diz respeito à autoridade com
Noprimeiro, classificamos Ef 4.10 ("aquele a qual Deus "determina os tempos e momentos"
que desceu é também o mesmo ciue subiu acima em vista da instauração do reino. Jd 8 e 2Pe
de todos os céus. para encher tôdas as coisas"),' 2.10 profetizam o castigo dos que se têm opos-
Depois, o hino litúrgico de lTm 3.16 sôbre o to ao "govêrno" de Deus. Os evangelhos sinóp-

"arrebatamento em glória" de Jesus. Em


se- ticos atribuem a autoridade divina absoluta a

guida, três textos da Epístola aos Hebreus Jesus, manifestando-se esta através das palavras
(4.14; 6.19 s: 9.24), onde a ascensão é com- (Mc 1.22; Mt 7.29) e das obras (Mc 2.10:
parada à entrada do Sumo Sacerdote da antiga Mt 21.23) do Nazareno. Ao Ressuscitado es-
aliança no Santo dos Santos. Finalmente, IPe pecificamente reconhecem a plenitude da auto-
3.22 sôbre Jesus Cristo "que foi ao céu" e a ridade divina (Mt 28.18: "tôda a autoridade
quem os anjos, as autoridades e as potestades me foi dada no céu e na terra", ver Mt 11.27).
ficaram subordinados. A
respeito destas atesta- Em sentido restrito, esta autoridade divina de-
ções teológicas, mais do que narrativas da As- lega-se aos apóstolos (2Co 10.8; 13.10). Mui-
censão, nota-se a) a subordinação do tema da
;
tos outros sêres aparecem, no Apocalipse, reves-

ascensão ao da ressurreição; b) o vínculo, se- tidos desta autoridade (Ap 2.26; 6.8; 11.6:
guidamente sublinhado, entre a cruz e a ascen- 13.7; 14.18; 18.1).
são esta última tem seu significado no fato de
; c) No plano terrestre chamam-se "autori-
ser o crucificado, ou seja, o homem Jesus, quem dade", "poderio", as pessoas encarregadas de-
entrou na glória celeste; c) o fato de a as- las e, destarte recebem estas denominações, tam-
censão não ser jamais apresentada como o fi- bém os servos imediatos de Deus no mundo
AUTORIDADES 33

invisível e os instrumentos diretos de sua auto- Acredita-se evidentemente que os anjos dos
ridade. Êste uso terminológico é levado ainda povos são os protótipos invisíveis dos príncipes
mais longe, no plano celestial, chegando a desig- empíricos. Eis porque as mesmas expressões po-
nar logicamente os próprios sêrcs invisíveis. dem designar ora as autoridades invisíveis, ora
Em virtude desta mesma lógica, outros termos os poderes constituídos pelos Estados terres-
também revestirão um sentido pessoal, como tres. Exemplo disso temos em ICo 2.8: "ne-
"poderes", "senhorios", "tronos", etc. É bom nhum dos príncipes dêste século conheceu essa
lembrar, a êste propósito, as personificações sabedoria; porque se a tivessem conhecido, ja-
dos atributos e funções divinas praticadas pelo mais teriam crucificado o Senhor da glória".
judaísmo (=as "hipóstases") O dificílimo tex-
. Nós sabemos que os "príncipes dêste século"
to de ICo 11.10 que fala da "autoridade que, são, na terminologia religiosa do judaísmo, as
por causa dos anjos, a mulher deve trazer na potestades invisíveis, inimigas de Deus, auto-
cabeça" (tradução da sinodal francêsa e de mui- rizadas por Deus para presidir o atual aioon
tas outras versões), encontra quiçá sua expli- (no aioon futuro nada se oporá ao reino de
cação nesta tendência a concretizar a autorida- Deus ou do Messias). Aqui, não obstante, Paulo
de divina, amparo contra qualquer outra auto- pensa evidentemente nos instrumentos terrestres
ridade. Explicação válida também para o "go- dos príncipes invisíveis, em Herodes e em Pila-
verno" de Jd 8. tos (Lc 23.12; At 4.27; 13.27). Lembremos
também o papel, há pouco mencionado, que de-
d) também exerce uma auto-
Pois o Diabo
sempenha o Diabo na narrativa da tentação de
ridade. Pretende dispor dos reinos terrestres:
Jesus, dispondo, com a autorização de Deus.
"Dar-te-ei tôda esta autoridade" (Lc 4.6). Fa- dos reinos dêste mundo. Concepção esta que
la-se em Lc 22.53 do "poder das trevas"; em explica as imagens usadas pelo Apocalipse para
Ef 2.2 do príncipe da potestade do ar" e no designar o Estado romano. Muito provàvel-
Ap 13.2 do "dragão que deu à besta o seu mente através desta ideologia e terminologia,
poder, o seu trono e grande autoridade". Carac- comuns aos judeus e a Paulo, interpretar-se-ão
teriza-se Paulo pelo emprego intencional desta as "autoridades" às quais devem sujeitar-se os
terminologia para designar os sêres invisíveis, romanos (Rm 13.1), quer dizer, reconhecendo
ratificando assim que o poder e autoridade — nelas, simultaneamente, os poderes invisíveis e
de Deus ou do Diabo — podem encarnar-se seus instrumentos, as autoridades do império
em sêres reais, assim como a autoridade em- romano. Interpretação confirmada pelo fato de
pírica que designa o poder exercido pode desig- Paulo nunca empregar a palavra grega "autori-
nar também a pessoa que o exerce. dades" no plural, sem apontar para as potes-
tades invisíveis. Uso, aliás, bem conforme à
e)Constatemos que as mesmas expressões
terminologia judia, onde a mesma palavra he-
designam o poder, a autoridade e o trono de
braica (sar) designa o rei, príncipe visível, e
Deus, e também o poder, a autoridade e o trono
os chefes invisíveis (Dn 10.13, 20; ver Js
do Diabo, resultando não poucas vêzes difícil
5.14).
reconhecermos se, em determinado contexto,
suas personificações são boas ou más. O cará- Indubitàvelmente, à antiga concepção do
ter impreciso e vago que manifestam tais po- "exército celeste", idéias estrangeiras, mormen-
tências tem sido explicado na teologia judaica te babilónicas, uniram-se para influenciar esta
pela doutrina da queda dos anjos. angelologia judaica, corrente na época do NT,
à qual os primeiros cristãos, e sobretudo Paulo,
3. De qualquer maneira, a crença relativa às concederam lugar de relêvo na sua teologia.
"autoridades" e "potências" descansa na idéia
que, sob a máscara dos fenómenos visíveis, 4. Não sabendo bem os detalhes das especula-
estão agindo sêres invisíveis, bons ou maus. ções judias a respeito dêste mundo invisível,
Portanto, os "elementos" de que fala Gl 4.3, 9 não percebemos que distinção fazia Paulo entre
e Cl 2.20 (também conhecidos por 2Pe 3.10, "autoridades" "potências", "senhorios", "tronos",
12) são princípios cósmicos, provàvelmente per- "elementos", e "príncipes dêste século". Pois
sonificados, que regem o curso do universo. êstes termos não são sinónimos e Paulo não
Por outra parte, vemos que todo homem pos- os acumula para efeitos retóricos. Sabemos, po-
sui o seu "anjo" (At 12.15), opinião que Jesus rém, que os judeus conheciam várias classes de
parece ter compartilhado (Mt 18.10). O Apo- anjos (Ap Bar sir 59.11). Na enumeração de
calipse fala-nos dos anjos das igrejas (2-3). Enoc 61.10, figuram potências, senhorios, e auto-
As fontes judaicas expressam a convicção de ridades. No Enoc eslavo 20 acrescentam-se po-
que cada povo tem o seu anjo. Daniel (cap. deres e tronos. Cabe opinar que havia a res-
10) fala dos anjos da Pérsia e da Grécia, e peito algum ensino secreto. A
angelologia rece-
Enoc (89.59 ss) menciona os setenta pastores beu, aparentemente, um notável desenvolvimento
dos povos, crença encontrada igualmente nas entre os essênios (Josefo, Guerra Judia II, 142),
fontes rabínicas. opinião confirmada pelos "Testamentos dos Do-
34 AUTORIDADES

ze Patriarcas", que as famosas descobertas do deixam sem resposta estas perguntas. Fica cla-
Mar Morto revelam ser de proveniências essê- ro, porém, que, na História da salvação, em
nia. O
Testamento de Levi (cap 3) contém uma cujo final "todas as coisas ficarão sujeitas a
doutrina sobre os anjos, ratificada por outros Deus para ser Deus tudo em todos" (ICo 15.
textos congéneres (Jub 2.2, 18; 15.27; 31.14). 28), já venceu-se a etapa derradeira e decisiva:
Infelizmente não existe um texto que permita desde já estão submetidas todas as potências
determinarmos a missão específica dêstes po- invisíveis, porquanto a morte de Cristo sujei-
deres. Não podemos dar aos tronos e aos senho- tou-as, pois "aprouve a Deus que... havendo
rios, por exemplo, um lugar mais próximo a feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio
Deus como outrora ousavam fazê-lo certos teó- dêle reconciliasse consigo mesmo todas as coi-
logos (W. BOUSSET-H. GRESSMANN, Das sas, quer as que estão sôbre a terra, quer as
Judentum im spathellenistischem Zeitalter. que estão nos céus" (Cl 1.20. Ver M. r>TRE-
1926). LIUS, Die Geisterwelt im Glauben des Paulus,
1910).
5. Uma coisa é certa: essas doutrinas não
eram secundárias para Paulo. Pelo contrário, 6. Liga-se tal convicção à interpretação cristã
além de compartilhá-las com o judaísmo e com do Salmo real 110, já explicado em sentido mes-
toda a Igreja primitiva, além de acreditar na siânico pelos próprios judeus. "Assenta-te
à
minha direita, até que eu ponha os teus inimi-
existência das potências ocultas. (ICo
real
gos debaixo dos teus pés". Não existe, talvez
8.5), Paulo tem a convicção de que detrás de
todo acontecimento visível para nós, há acon-
um texto mais citado pelos primeiros cristãos.
Todos os símbolos confessam que Cristo "está
tecimentos dirigidos pelos poderes celestes. Em
sentado à direita do Pai", reminiscência do Sal-
Ef 6.12, escreve: "A nossa luta não é contra
mo. Todavia, todas as fórmulas antigas acres-
o sangue e a carne, e sim contra os principados
centam, como coisa já em princípio resolvida,
e potestades, contra os dirigentes dêste mundo
os demais versículos do SI 110: a vitória dc
tenebroso, contra as forças espirituais do mal
Cristo sôbre os inimigos. Êstes inimigos, inva-
nos círculos celestes". Os anjos presenciam to-
riàvelmente, identificam- se com os poderes in-
dos os dramas que se estão desenrolando na
visíveis. Sirva de exemplo o antigo texto utili-
terra: "nós (os apóstolos) nos tornamos espe-
zado em IPe 3.22: depois de lembrar a morte
táculo ao mundo, tanto a anjos como aos ho-
de Cristo por nossos pecados e a sua pregação
mens" (ICo 4.9). Os desmaios da Igreja estão
aos espíritos, Pedro declara: "Êle (Cristo),
relacionados com os ataques dessas forças.
depois de ir para o céu, está à destra de Deus.
Deus é quem as criou em Cristo desde o prin-
ficando-lhe subordinados anjos, potestades e po-
cípio "Nêle (em Cristo) foram criadas todas
:

deres".
as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e
as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, Desde tempos remotos, crê-se que Paulo uti-
quer principados, quer potestades" (Cl 1.16). lizou, para Fp 2.6ss, alguma confissão cristo-
Também Rm
8.38 s designa-as como "criatu- lógica da comunidade primitiva, que culminava
ras" divinas. na afirmação da elevação e soberania do Cristo
Quem afirma que foram criadas em Cristo, "confessado, por todas as línguas, Senhor", —
declara que toda a História da salvação as o nome que está acima de todo nome Jesus — ;

atinge igualmente. Porquanto os primeiros cris- Cristo é o Senhor. Fazendo-se presentes os se-
tãos tomavam muito a sério a ação das forças res que estão no céu, na terra e debaixo da ter-
ocultas sobre os acontecimentos terrestres, tam- ra, "dobra-se o seu joelho ao nome de Jesus".
bém tomavam a sério a vitória de Cristo sobre Pode-se demonstrar (ver O. CULLMANN.
elas.Doravante há somente um mediador, sendo Les premières confessions de foi chrétiennes,
"ele aimagem do Deus invisível, o primogénito 1950) que até o segundo século os credos ecle-
de tôda a criação" (Cl 1.15). Embora não siásticos nunca deixam de mencionar a sub-
deixem de existir, as soberanias carecem, dora- missão dêsses poderes (Inácio de Antioquia.
vante, de importância, sujeitas como estão a Trai 9.1; Policarpo 2.1; Irineu, Adv. haeres.
Cristo todo seu intento de rebelião ou de ata-
: 1.10, 1). O fato de tal menção figurar em sím-
que está condenado a fracassar por causa da bolos tão breves, bem demonstra sua impor-
derrota definitiva que Cristo lhes inflingiu. Os tância para a Igreja primitiva. Também Ef 1.21
textos do NT, falando da vitória de Cristo associa a elevação de Cristo à sua soberania
sôbre as potências invisíveis, sempre parecem sôbre as potências "Cristo sentado nos lugares
:

ver, nestes poderes, inimigos de Deus, até Cris- celestiais, acima de todo principado, potestade,
to morrer. Com que base? Na suposição de que poder e domínio, e de todo nome que se possa
todos êsses poderes desviaram-se mais ou me- proferir não só no presente século, mas também
nos totalmente da divina vontade ? Ou de que no vindouro". A
seguir, citando SI 8.7, escreve
parte dêles opôs-se a Deus, merecendo assim Paulo "e pôs tôdas as coisas debaixo dos seus
:

os rebeldes sua derrota no Calvário? Os textos pés". Consta pois que, embora não aniquilados,
Y

AUTORIDADES 35

os poderes invisíveis estão dominados. Domínio inimigos invisíveis de Deus, deve ser traduzida
ao qual alude certamente a introdução do famo- portanto, ora por "desarmar" (=a vitória já
so preceito batismal dado por Jesus ressusci- se conseguiu) (2Ti 1.10), ora por "aniquilar"
tado aos discípulos "Tôda a autoridade me foi
: ( =a. vitória está por vir) (ICo 15.26).
dada no céu e na terra" (Mt 28.18). Cl 2.15. O NT contém rastos de uma concepção que
por sua vez, descreve, com as cores mais vivas, explica esta tensão os poderes ocultos, em vir-
—>
:

a sujeição das potências: pela cruz de tude da morte de Cristo, ficaram "atados" e re-
Cristo, Deus "despojou os principados e as po- duzidos a cumprir, doravante, a divina vontade.
testades, expondo-os publicamente ao desprezo A imagem de Satanás atado só se acha expli-
e triunfando sobre eles". citamente em Ap 20.2 ss, aliás aplicada ao reino
milenário. Mas é provável que os primeiros
O SI 110 considera a vitória sobre os ini-
migos como posterior à elevação do Rei-Senhor cristãos representassem analogicamente a con-

à destra de Deus. Porém, conforme a interpre- dição das potências ocultas durante o lapso que
tação cristã, a vitória de Cristo ocorreu já no corre desde a morte até a parusia de Cristo.
momento de sua morte na cruz. Todavia, en- Restava, pois, um único caminho para eliminar
contramos outros textos do NT que anunciam qualquer contradição nesta sua perspectiva em-
:

esta vitória para o fim dos tempos. Assim é a bora já vencidas, mas apenas atadas, estas po-
passagem de Paulo referente ao cumprimento tências tentarão emancipar-se momentaneamente.
final e à derradeira submissão de todas as coisas enquanto lhes dure o presente século. Ou, em-
a Deus "Então virá o fim, quando Cristo en-
:
pregando a comparação do laço, diremos que
tregar o reino ao Deus e Pai, quando houver Deus pode ainda deixar-lhes a correia mais ou
destruído todo principado, bem como tôda po- menos longa, mas que o laço nunca se romperá.
testade e poder. Porque convém que êle reine Asim, mesmo vencidas e subjugadas por Cristo,
até que haja posto todos os inimigos debaixo possivelmente tornem-se ainda demoníacas por
dos seus pés" (ICo 15.24-25). Os versículos um certo tempo, como sucede com a besta
seguintes desenvolvem o tema da suieição dos (=império romano) do Apocalipse (13.1 ss).
poderes, combinando, a exemplo de Ef 1.22, o
8. A expressão "príncipes dêste século", qui-
SI 110 com o SI 8.7. Porquanto subsiste neles
çá designação coletiva do conjunto ou de parte
um elemento de revolta, os poderes serão defi- destas potestades, salienta bem a sua condição
nitivamente sujeitos no fim dos tempos, median- presente e o seu destino futuro. Na raiz da
te sua total destruição. Por sua vez, Hb 10.
expressão, encontramos a idéia de que cada
12-13 refere-se à elevação de Cristo à destra de
aioon (=período cósmico) é governado por
Deus, citando também o SI 110; menciona ex-
um ou por vários poderes invisíveis, cujo do-
pl tamente a vitória sobre os inimigos, espe-
;

mínio expira com seu "século". Para o cristão,


cificando porém que a vitória ainda está por
o século futuro já teve seu início com a morte
vir, enquanto que a elevação já teve lugar: "O
e ressurreição de Cristo, no entanto perdura o
Cristo, tendo oferecido para sempre, um único
século presente, até voltar Cristo para o derra-
sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra
deiro cumprimento. Destarte ainda existem os
de p eus, aguardando, daí em diante, até que "príncipes dêste século", embora sem nenhum
os seus inimigos sejam postos por estrado dos
papel independente sua função fica como absor-
:

seus pés". vida pela de Cristo, mediador único, ao qual


tudo está subordinado até que, terminado o ato
7. Como
pode ser apresentada a vitória de
final, êle mesmo se sujeite a Deus (ICo 15.28).
Cristo sobre as potências, ora como já acon- NT
Mas é da maior importância para o e í,
tecida, ora como ainda por vir? Mais uma vez para os primeiros cristãos, a fonte de sua
constatamos anui, a propósito do problema par-
ticular "autoridades", um fenómeno bem
das
—> "alegria", a profunda convicção de que
daí em diante só há um "chefe" que governa o
característico de todo o pensamento neo-testa- nosso tempo, tempo êste que vai desde a ressur-
mentárin o fenómeno da tensão cronnlnq^ca
: reição até a segunda vinda do Cristo. Cristo
(

no
—momento
> Tempo) . A batalha decisiva travou-se já
da morte de Cristo é certa a vitó- ;
está à destra de Deus, e todos os poderes estão-
lhe sujeitos desde já; tôdas as potestades vêm-
ria. A guerra, entretanto, prossegue ainda está : se assimiladas a "espíritos ministradores" (Hb
por vir a realização final, a proclamação da 1.14), executam o plano divino na presente
vitória. Está inaugurada a nova era, mas sub- fase da história da salvação. "Agora, pela Igre-
siste o aioon antigo (="o século presente"). ja, a multiforme sabedoria de Deus se revela
Que um mesmo autor, Paulo, considere a vitó- aos principados e potestades nos lugares celes-
ria ora como já passada, ora como ainda futu- tiais" (Ef 3.10). Não mais renda-se culto aos
ra, eis um que demonstra bem até aue
fato poderes (Hb 1.2 ss Ap 19.10; 22.8 ss Cl
; ;

ponto era elemento do pensamento primitivo 2.18: não mais temor nem sujeição aos prín-
cristão esta misteriosa tensão cronológica. O cipes do século (Gl 4.3, 9), sabendo que há
mesmo verbo grego, expressando a derrota dos um só Senhor verdadeiro, embora subsistam
:

36 BATISMO

por enquanto outros senhores (ICo 8.5 ss). Reino de Deus marcava o fim do século pre-
;

"Eu estou bem certo de que nem morte, nem sente, sem ainda suscitar o século vindouro.
vida, nem anjos, nem principados, nem coisas João Batista, por todas estas razões, ainda não
do presente, nem do porvir, nem poderes nem estava sob a nova aliança (Mt 11.9.15).
altura, nem profundidade, nem qualquer outra
criatura poderá separar-nos do amor de Deus,
2. O próprio Jesus submeteu-se ao batismo
de João (Mt 3.13 ss par; Jo 1.32 ss), não por-
que está em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm
38-39).
que o necessitasse para si, mas "para cumprir
O. CULLMANN tôda a justiça" (Mt 3.14-15), isto é para as-
sumir o seu ministério de Filho ou de Servo
BATISMO de Deus (Mc 1.10 s; ver Is 42.1), comissio-
nado para solidarizar-se com o povo e tomar
1. O ministério de João Batista inaugura um sobre si os seus pecados (Is 53). O batismo
nôvo capítulo da História da salvação prepara de Jesus foi, neste sentido, uma preparação à
o —> advento do Senhor, anunciado pelos pro-
:

morte na —> cruz, (qualificada de batismo


pelo próprio Jesus: Mc 10.38; Lc 12.50). Seu
fetas (Mc 1.2 ss par; Lc 1.14 ss Jo 1.31); ;

batismo o indicou como o cordeiro de Deust


constitui a baliza indicadora de uma radical
(Jo 1.29-34). Os três sinópticos (em João há
mudança da História (At 1.22; 10.37; 13.24). certa flutuação entre 1.29-34, 3.22 ss, e 4.1 ss.
Não causa pois estranheza que os círculos di- embora encerrando numa mesma conclusão teo-
rigentes de Jerusalém enviem mensageiros para lógica, 3.30), suspendem a atividade do Ba-
indagar se êle é o Cristo (Jo 1.1V ss;. h,ra tista logo apos o batismo de Jesus, e nem men-
absolutamente necessária uma missão especial cionam qualquer outro batismo, até o momento
de Deus a fim de poder aplicar aos filhos de de Jesus começar a batizar no Espírito Santo
Abraão (Lc 3.8) o batismo que os judeus das (Mt 3.11 par; Jo 1.33); momento que só
últimas gerações aplicavam aos prosélitos, can- podia principiar depois de Jesus ter carregado e
didatos à fé de Israel (Mt 1.25 ss par") e a levado o julgamento de Deus contra o pecado
fim de proclamar que, pelo batismo. entra-se do mundo (Jo 7.39), isto é, depois da ressur-
nos desígnios divinos (Lc 7.29 ss). Pesquisas reição (At 1.5; 11.16). Só depois de ressus-
recentes têm provado que o batismo de João citar, Jesus dá a ordem de batizar (Mt 28.19
não provém das lustrações rituais comuns a s). Desde os dias de João até a aurora da Pás-
quase todas as religiões orientais e também coa, todo o mistério batismal ficou concentrado,
praticadas por determinadas seitas judias peio ;
de certo modo, em Jesus, cuja vida foi. na ex-
contrário, João aplicava aos próprios judeus pressão do Símbolo, um sofrer contínuo.
êste batismo de prosélitos. Os doutos procura-
ram explicar o que entendia João a respeito do 3. A partir do Pentecoste, a Igreja cumpre
batismo que êle administrava batismo único,
: docilmente o mandato de batizar (At 2.38-41).
por imersão, ligado a compromissos morais (Lc O NT nem imagina a possibilidade de sermos
3.1-18). A explicação mais provável encon- membros da Igreja sem batismo prévio (At
tra-se na idéia rabínica, aludida por Paulo, que 8.1, 36; 9.18; 19.5; Rm
6.3, etc). É êste o
para receber a lei de Deus e atingir a terra batismo de João ou um nôvo batismo? Certa-
prometida, o povo precisou "ser batizado em mente é um nôvo batismo. (At 19.1 ss) em-
Moisés, passando o Mar Vermelho' iiv^o lo. bora tenna as características do de João batis-
:

1-). Batizavam-se os prosélitos para que, a mo único (Ef 4.5), batismo de água (At 8.36:
posteriori, a passagem do Mar Vermelho lhes 16.13 ss). de arependimento, visando o perdão
fôsse aplicada a êles também. Ora, conforme (At 2.38). É um batismo que significa, para
uma compacta tradição judia, os acontecimen- o batizado, que o presente século abriu falência
tos do Êxodo prefiguravam eventos vindouros e foi julgado por Deus. E, contudo, êle difere
e anunciavam sucessos ligados ao advento da do batismo de João, porquanto é também um
eterna salvação. Portanto, foi para "habilitar batismo do Espírito além de encerrar, para o
:

ao Senhor —
cuja vinda era eminente um — batizado. o presente século, situa-se desde já
povo preparado" (Lc 1.17) que João batizou. no século vindouro, cujo penhor é o Espírito:
Congregou no deserto (Mt 3.1) o povo mes- o batizado leva no coração o penhor do Espírito
siânico, mediante um batismo de arrependimento (2Co 1.22; 5.5). O batismo de Jesus de—
(Mt 3.6 par; At 19.4) e de perdão (Mc 1.4). água e de Espírito —
aponta vigorosamente
que realizava a travessia do Mar Vermelho. No para a situação paradoxal da Igreja, onde coin-
entanto, era apenas um batismo de
(Mt 3.11 par), que lavava (Ez 36.25), jul-
água —> cidem o mundo que pasa e o mundo que vem
a Igreja, colocada no mundo do primeiro Adão,
gava (Gn 7.ss) e infundia esperanças (Is 35.7). aparece como o sinal da presença do mundo
Preparava para a salvação, sem ainda conce-
dê-la; punha um têrmo ao estado de coisas re-
nôvo, do segundo Adão (
—> —>
Jesus Cristo,
Tempo) Mesmo quando coincidem o ba-
.

provado por Deus, sem ainda substituí-lo pelo tismo de água e o do Espírito (At 10.44ss), de-
:

BATISMO 37

vem ser considerados como dois momentos de me) o batismo é administrado a conta (=sô-
:

um único ato batismal (ver Jo 3.5) O episódio


. bre a base) da morte e da ressurreição vicárias
da conversão dos Samaritanos que, não obs- de Jesus Cristo, em referência a elas. Assim
tante seu batismo por Felipe, não tinham rece- compreendemos Paulo, afirmando que o batismo
bido o Espírito Santo, fo qual só lhes seria mergulha e afoga (no sentido etimológico do
comunicado por Pedro e João especialmente verbo "baptizo") na morte de Cristo, sepulta
vindos de Jerusalém), não infirma esta doutri- com Cristo, visando uma ressurreição com Cris-
na :sem pretender estabelecer qualquer dife- to (Rm 6.3 ss Cl 2.12); compreendemos
:

rença entre o batismo de água e o de Espírito, porque declara que o batizado. em virtude do
salienta a integração da nova comunidade sama- batismo, é uma mesma planta com Cristo (Rm
ritana à Igreja apostólica de Jerusalém (At 6.5), que com Cristo está morto para o peca-
8.4.17). Quem procurar nesta narração, um do e vivo para Deus (Rm 6.11). Estudos re-
tanto obscura, alguma intenção teológica, en- centes demonstram que esta surpreendente ma-
contrará não uma pretensa oposição entre ba- neira de pensar não é meramente figura e sím-
tismos, mas a idéia que só aos —>
apóstolos
compete administrar o batismo cristão em sua
bolo, mas descreve a realidade no batismo e
:

em virtude do batismo, o batizado morre e res-


plenitude. suscita com Cristo sua vida carnal encontra
:

aqui seu fim, e sua vida espiritual o seu início.


4. Uma iniciativa tão capital como
o batismo O batismo transforma completamente a condição
não podia deixar de originar uma teologia ba- religiosa e moral do homem aplica a determi-
tismal (ver Hb 6.2: os "batismos" referem-se
;

nado indivíduo, de fato, o que, de direito, vale


provavelmente ao batismo cristão em contrapo- para todos, a saber, que morrendo e ressus-
sição ao batismo de João ou às abluções aná-
citando em Jesus Cristo, fenece a criação caída
logas usadas entre pagãos). Esta teologia, res-
e nasce a criação nova. Porém, necessário se faz
tringida aos escritos canónicos, contém os se-
notar que, embora o batismo mate e ressuscite,
guintes elementos principais, enumerados sem
quem emerge da água batismal é o mesmo que
qualquer propósito de subordinação lógica
a) O
batismo é essencialmente uma obra de
nela mergulhou ( —>
nôvoQ, como o Cristo
ressurreto é o mesmo que foi crucificado (Lc
Deus, o Pai (At 2.41), o Filho (Ef 5.26), e o 24.38 s). O batismo não interrompe a identi-
Espírito Santo (ICo 12.13), em cujo nome é dade do batizado, podendo licitamente falar êste
administrado (Mt 28.19). Não são nem o bati- último do seu "outrora" em oposição ao seu
zante nem o batizado, mas é o Senhor quem "agora" (Ef 5.8, etc).
opera no batismo e lhe dá sua virtude. Portan-
c) Assim, o batismo nos insere ao Cristo
to, tratando-se do batismo cristão, não pode
crucificado e glorificado, que se torna a nossa
êste ser repetido sem que haja blasfémia (Ef
4.5).
vida (Rm 14. 7s; Gl 2.20; Fp 1.20). Ora,
após sua ascensão, é na Igreja que se manifesta
b) O
batismo torna eficazes a morte e res-
e se apresenta o Senhor crucificado e ressus-
surreição de Cristo. Doutrina central do NT
citado. Eis porque o batismo conduz à Igreja
sobre o Batismo. Nele e por êle torna-se certo
que Jesus morreu pelos pecados e ressuscitou (ICo 12.13; Gl 3.27-28, acrescenta-nos à Igre-
para a justificação do batizado (Rm 4.25). Na ja (At 2.41). Assim não se pode conceber um
paixão de Cristo foi antecipado o juízo final: batizado que não seja, mediante um compro-
a ira e a maldição divina contra o mundo revol- misso consciente e fiel, membro da Igreja,
tado recaíram sôbre Cristo crucificado exclu- ;
como também não é concebível um membro da

sivamente Cristo carrega com elas e as leva Igreja que não seja batizado. Porquanto acres-
(2Co 5.21; Gl 3.13). Na manhã da Páscoa, centa um membro à Igreja (lugar onde a der-
Jesus tornou-se o primeiro dos ressuscitados rota do diabo é reconhecida, confessada e vivi-
(ICo 15.20). No Calvário e no jardim de Jose da), cada batismo constitui uma vitória sôbre
de Arimatéia foi decidida antecipadamente a o poder do Maligno.
sorte final do mundo. Ora, o batismo possui a d) O
batismo é um novo nascimento (Jo
virtude de tornar válidos tanto o fim do nosso 3.5), um
banho regenerador (Tt 3.5), que de
mundo como o início do mundo de Deus para ;
um filho da carne faz um filho de Deus (Jo
cada batizado êle antecipa, sacramentalmente, o 1.12 s). Portanto, o batizado deve demonstrar
destino final. Porém, esta antecipação indivi- a eficácia de seu batismo através de uma vida
dual é possível somente porquanto credita-se nova (Rm 6.8 ss Cl 3.1-15; Hb 10.19-25;
;

na conta da universal antecipação do juízo, que ICo 10.14). A primeira epístola de João salien-
teve lugar na morte e na ressurreição de Cristo. ta insistentemente a necessidade, para quem fôr
Eis porque o batismo administra-se no nome de nascido de Deus, de praticar a justiça (2.29),
Jesus (At 2.38; 8.16; 10.48; 19.5; ICo 1.13 de amar (4.7), de não mais pecar (3.9; 5.18);,
ss. Aexpressão "em nome de" é técnica usa-se, de ser vencedor do mundo (5.4; ler todo
—>
:

p.ex., para transferências bancárias; No- 5.1-13). Não é outra a doutrina de Paulo, pro-
: .

38 BATISMO

clamando que o batizado tem-se revestido de do Cristo os candidatos ao sacramento; assim


Cristo ( —> vestimenta) (Cl 3.26s). a Igreja pode esperar que êles não manchem,
com uma vida pecaminosa, o batismo que so-
e) O batismo é uma condição de entrada no licitam.
Reino de Deus (Jo 3.5). É lícito dizer que o
batismo salva a quem o recebe (IPe 3.21). b) Todavia, esta mesma fé, por exemplo,
Ainda quando tais afirmações neo-testamentá- que constitui o indício divino a favor do can-
rias aparentem falta de prudência dogmática, didato, pode, de conformidade com o direito
quem quiser negar o laço estreito e profunda- bíblico, dar acesso ao batismo também a todos

mente realista que une salvação e batismo nas que dependem da autoridade do crente, a saber:
santas Escrituras, precisaria de muita acroba- a sua —> família ou sua casa. A fé do chefe
de família é uma garantia suficiente para es-
cia exegética (cf por ex. Mc
16.16; At 22.16;
ICo 6.11; Tt 3.5). Portanto, é de suspeitar-se perar-se dêle que saberá sujeitar todos os seus
que, inevitàvelmente surjam imprudências na às disciplinas e exigências do Senhor (Ef 6.4).
disciplina batismal, cada vez que se pretenda, De fato vemos, repetidas vêzes, famílias intei-
por prudência na doutrina batismal, contestar ras admitidas ao batismo (At 10.24,48; 16.15,
ou limitar o realismo das correspondências en- 33ss; I Co 1.16). Para não ver aqui (con-
tre batismo e salvação. dicionada evidentemente à fé viva do chefe
de família) a autorização do batismo das crian-
f) Paulo, a despeito de Mt 28.19, afirma: ças, devemos rejeitar tôda a doutrina bíblica
"Não me enviou Cristo para batizar" (ICo sobre a unidade da família, precisamente a
1.17). As notícias que temos sôbre a atividade
do apóstolo dos gentios (At 16.15, 33; 18.8;
doutrina que permitia a —> circuncisão das
crianças judias. Ora, para São Paulo, o batis-
19.1 ss ICo 1.14 ss, etc) proibem-nos de soli-
; mo é o paralelo neo-testamentário da circun-
citar excessivamente esta afirmação. Provàvel- cisão (Cl 2. lis)
mente Paulo lembra que, depois de batizar pes- c) Certos cristãos de Corinto solicitavam o
soalmente os primeiros cristãos de uma cidade, batismo substitutivamente por defuntos que não
confiava a estes o cuidado de batizar os que se puderam conhecer o Evangelho, pois desejavam
acrescentassem posteriormente à Igreja. De fato, colocá-los na conta e benefício da morte de
entre quantos batizou em Corinto, Crispo foi Cristo (I Co 15.29s). Paulo —
fato surpreen-
quem primeiro se converteu (At 18.8) De
igual modo, a família de Estéfanas, por ser pro-
dente — não condena tal prática, dando-nos
assim a medida do realismo de sua doutrina
vàvelmente a primeira convertida entre as pa- batismal. Mas a prática não prosperou, aca-
gãs, é chamada "primícias da Acaia" (ICo bando por desaparecer totalmente, quiçá por
16.15). Primícias é um têrmo litúrgico que
causa da certeza de que, desde a descida de
permite supormos que Paulo alude aos batismos
Cristo aos infernos, o Evangelho é anunciado
que celebrou, sentindo-se "liturgia do Cristo
também àqueles que, em vida, nunca ouviram
Jesus entre os gentios, exercendo o sacerdócio
do Evangelho de Deus, para apresentar a Deus
a pregação cristã (ver IPe 4.6. —>
Morte).
uma oferenda de gentios, aceitável, santificada d) Não é possível batizar-se a si mesmo;
no Espírito" (Rm 15.16). Isto pôsto, o batismo o batismo deve ser conferido por outrem. Mas
é, para o oficiante, uma liturgia, na maneira quem possui o poder de batizar vàlidamente?
de sacrificar a Deus, quer dizer, de consagrar- Esta pergunta preocupou a Igreja de Corinto
lhe e dedicar-lhe aqueles que não mais querem até o extremo de provocar divisões (I Co
viver para si mesmos, mas para a glória de 1.12ss). Notemos que nunca vemos no NT
Deus. mulher alguma administrando o batismo. Lem-
bremos também o episódio dos samaritanos
5. O
batismo, além de provocar uma intensa (At 8.4-17) batizados por Filipe, cujo con-
reflexão teológica, exigiu medidas discipliná- texto insinua que apenas os ministros direta-
rias estritas, sendo as mais notáveis as que mente autorizados por Jesus têm o poder de
seguem conferir o batismo na sua plenitude. A êstes
convém, talvez, acrescentar os ministros de
a) Para que nada obste ao batismo (At igrejas unidas à comunidade-mãe de Jerusalém,
8.36; 10.47; 11.17; ver Mc 10.14 par), re- tais como Ananias, que batizou a São Paulo
quer-se uma indicação divina permitindo à (At 9.13s). Nada, porém, permite crer que
Igreja certificar -se de que pode administrar o o batismo conferido por Filipe ao eunuco etíope
batismo na obediência. Indicação que ora será não tivesse sido plenamente válido (At 8.36s).
a confissão da fé cristã por parte do candidato Notemos ainda que Pedro não batizou pessoal-
(At 8.13,36s; 16.14s,35; 18.8; Mc 16.16, etc), mente Cornélio e sua família, mas mandou que
ora a efusão do Espírito Santo (At 10.44ss). os batizassem (At 10.48s). Pedro possivel-
A profissão de fé e a efusão do Espírito indi- mente delegou a algum irmão de Jope a missão
cam que Deus realmente quer creditar à morte de batizar. Vimos já que também Paulo dei-
. : ;

BEM 39

xava que os primeiros batizados de uma cidade A epístola aos Hebreus saúda em Cristo aquêle
batizassem os que se convertiam posteriormente. que "veio como sumo-sacerdote dos bens vin-
Estas indicações escassas a respeito do direito douros" (9.11), porém, sem esquecer que a
de batizar, apenas permitem afirmar que a dádiva da Lei tinha já semelhante significado
Igreja nascente não ignorou que podia origi- e idêntico alcance escatológico (Paulo também
nar-se daí um problema conjuntamente teoló- proclamava a Lei "um pedagogo que conduz a
gico e disciplinário. Cristo" Gl 3.22), mesmo quando dava apenas
/. /. Von ALLMEN "a sombra dos bens por vir" (Hb 10.1).
Sendo Jesus Cristo a realidade de nossa sal-
BEM vação, nêle é que se concentra a dádiva divina,
a bênção para os homens. Nêle fomos "aben-
A Escritura não tenta definir a essência do
çoados com tôda
sorte de bênção espiritual"
bem : para ela êste não é uma realidade autó-
(Ef 1.3). Nem
sempre percebe o ôlho hu-
noma, absoluta em si, que, uma vez definida, mano imediatamente que é Cristo o nosso bem
possa ser relacionada com outras noções e Natanael começa duvidando "De Nazaré pode
:

outras realidades ; nem é um conceito de Deus sair alguma coisa boa?" (Jo 1.46). (Nata-
ou um atributo divino, mas, pelo contrário, a nael, ao proferir "alguma coisa boa", tinha
:

própria essência de Deus é o bem e a bondade. em mente a salvação vindoura ver ver. 45). —
(Bem e bondade têm em grego uma perfeita Entretanto, sempre consiste o ato de fé pro-
equivalência) Devemos afirmar do bem o que
. priamente dito em reconhecer que Cristo é o
Santo Agostinho dizia da eternidade entre a :
nosso bem, porquanto é a nossa salvação, que,
essência divina e o bem não existe qualquer sem êle, nada podemos fazer (Jo 15.5), só êle
relação analítica, mas o mesmo Deus é o bem. tem as palavras da vida eterna (Jo 6.68).
Só em Deus possui esta palavra um signifi-
cado determinável, fora de Deus não existe o
São
tese comum
idênticos o bem e a —>
ao Velho e ao Nôvo Testamento.
salvação: eis a

bem. Portanto, Deus não contempla (como o


Para ambos, o bem que recebemos daquele que
demiurgo de Platão) o bem como alguma rea-
é o único bem, não pode ser um mero objeto
lidade exterior e positiva, nem existe para êle
de contemplação, mas encerra uma exigência
alguma norma do bem. Daí que o homem só para nós é-nos dado como conteúdo da vontade
;

pode conhecer o bem exclusivamente em refe- divina. É somente para fazermos o bem e
rência à vontade de Deus aquilo que Deus
nos conformarmos a êle que Deus nos promete
:

quer é o bem. Neste particular coincidem per-


e nos dá o bem. É essencialmente simples a
feitamente o Velho e o Nôvo Testamento. O
êste respeito a posição do VT sendo a Lei :

homem que conhece a Deus não deixará de expressão clara e irrecusável da boa vontade
louvá-lo porque êle é bom (SI 118.1; 117.1;
de Deus, todo o bem do homem e a sua própria
I Cr 16.36: II Cr 5.13). Lembra o NT que
vida (Dt 30.15s) consistirão em obedecê-la e
que a bondade, inclinação a querer e fazer o Colocado o
comprí-la minuciosa e fielmente.
bem, é privilégio de Deus (Mt 19.17), exclu-
bem na perspectiva da salvação, seu têrmo
sivamente "Ninguém é bom senão um só, que
:
antitético não é o mal abstrato, mas a
é Deus" (Mc 10.18 e Lc 18.19). Logo a
revelação de Deus na História será a revela-
—> morte. Esta mesma relação, estreita e
lógica, entre cumprimento da Lei, bem e vida
ção da sua bondade só Deus fala o bem
eterna, encontramos também no NT. O jovem
:

Tudo que faz por seu povo saída do Egito, — rico pergunta a Jesus "Mestre, que farei eu
:

entrada na terra da promessa, proteção pater-


de bom, para alcançar a vida eterna?" Jesus,
nalmente dispensada —
é o bem (êx 18.9;
sem reconsiderar esta velha problemática, con-
Nm 10.29s). Boa, também, e sobretudo, é
a —> Lei de Deus para Israel (Rm 7.12);
boa, finalmente, a promessa escatológica que,
testa :"Se queres entrar na vida, guarda os
mandamentos" (Mt 19. 16s) acrescenta, con-
;

tudo, uma
condição nova e decisiva: não ape-
para Israel e a Igreja, renova incessantemente
o Senhor, mediante as —>
alianças: "Farei
com êles aliança eterna em cuja virtude não
nas despojar-se totalmente a favor dos pobres,
mas despojar-se para poder livremente seguir
a Cristo (v. 21). O comportamento de Jesus
deixarei de lhes fazer o bem" (Jr 32.40).
aceitando não só a solução do VT, mas tam-
Isaías anuncia (52.7) a vinda do bom mensa-
bém ultrapassando-a, estabelece as duas conclu-
geiro, anunciador da boa mensagem, pregoeiro
sões seguintes
da salvação dos últimos dias. Porque Deus é
bondade, tudo que dêle procede é bom essa :
a) Entre a Lei e o Filho do Homem existe
bondade é a nossa salvação. Não é, pois, o uma relação básica ambos nos são dados como
:

bem um conceito estático definindo certo equi- bens.


líbrio político ou ontológico, mas sempre tem b) O Filho do Homem é o cumprimento e
vislumbres escatológicos emanado de Deus, o
: a recapitulação de todos os bens. Lei, vista A
bem relaciona-nos ao cumprimento da história. nesta perspectiva, aparece caduca, subordinada
:

40 BEM

ao Filho do Homem. Poderá, portanto, o do bem. Os cap. 12 e 13 de Romanos, magní-


Cristo introduzir nela, em função do bem, hie- fico conjunto,são plenos de indicações valio-
rarquias e ordens de urgência. (Assim em Mt sas para situar a prática do bem (Ver a res-
12.12: "logo é lícito fazer o bem, aos sábados.") peito F. J. LEENHARDT,
Le chrétien doit-il
servir 1'État? Genebra 1939, pp. 47-66). O
3. Contudo, seguir a Jesus, unir-se a êle pelo bem visa a edificação da comunidade, como o
laço da fé e viver dêle, não nos afastarão do lembra I Ts 5.15: "Apontai sempre o bem
grande bem que era a Lei. Pelo contrário, entre vós e para com todos". Em
plena exor-
enquanto vivemos longe de Jesus, ainda não tação para o bem, Rm
12 esforça-se por indicar
feitos novas criaturas em Cristo, nem sequer ao
em que consiste o bem na comunidade da Igreja
benefício da Lei temos acesso "Eu sei que
:
e fora dela, ressaltando ser a caridade o cora-
em mim, isto é, na minha carne, não habita bem ção do bem a caridade que não se ensoberbece
:

nenhum o querer o bem está em mim, não.


:
(respeito entre vós da diversidade dos caris-
porém, o efetuá-lo não faço o bem que pre-
;
mas), procura a paz, usa de doçura e paciên-
firo, mas o mal que não quero, esse faço" (Rm cia, não erige entre nós barreiras infranqueá-
7.18s). Ainda mais, "o pecado, para bem re- veis e, pelo contrário, esforça-se por ir a ter
velar o que é, valeu-se de uma coisa boa para com o próximo tanto na tristeza como na ale-
dar-me a morte" (Rm 7.13). Numa palavra, gria (I Co 13). Rm
enquanto vivemos na —>
carne, os bens de
Deus, pelo poder do pecado, são desviados de
15.2 entrega-nos a
característica mais sintética da boa obra : "Cada
um de nós agrade ao próximo no que é bom
sua finalidade, metamorfoseados em seu oposto
mas, não bem implantada em nós a nova cria-
para edificação". A —>
edificação visa evi-
dentemente a comunidade dos irmãos edificada
tura mediante a fé, o bem original vem a ser
como uma casa. O conceito de edificação vai
novamente bem: longe de desconfiarmos das
boas —> obras, descobrimos que "somos cria-
dos em Cristo Jesus para as boas obras, que
sempre junto com o do bem, mesmo tratando-se
de um bem muito humilde como em Ef 4.28:
"Aquêle que furtava, não furta mais antes ;

de antemão Deus preparou para que nos trei-


trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que
nássemos nelas" (Ef 2.10). Nem bem renas-
é bom, para que tenha com que acudir ao
cidos, devolve-nos Deus a Lei, cujo uso deixa
de comportar os riscos mortais de antes. "O
necessitado". O —>
trabalho é um bem na
medida em que permite fortalecer a unidade da
pleno conhecimento em tôda a sabedoria e en- Igreja pelo laço da caridade. Finalmente o
tendimento espiritual" recebido então, permi- bem porque possibilita uma vida
é reconhecido
tir-nos-á obrar o bem, isto é, comportarmo-nos aprazível, laboriosa ehonesta (II Ts 3.6-16:
"de modo digno do Senhor", para o seu inteiro 1 Pe 3.11). Mas sublinhemos novamente que
agrado, frutificando em tôda boa obra" (Cl
1.9-10).
se o bem é o —>
amor (porquanto êste é o
próprio conteúdo da lei), as faces do bem
Perdido pelo pecado, o bem da Lei é reen- serão tão múltiplas como as faces de nossos
contrado naquele que nos libera do pecado. próximos. Impossível, portanto, pedir da Es-
critura uma descrição completa do bem.
4. Falta descrever concretamente o bem pro-
posto ao homem, ao qual os escritores apostó- Sem dúvida, ninguém pode vangloriar-se de
fazer o bem. Mesmo salvo, o homem não é
licos convidam-nourgentemente (Rm 12.9:
bom, e só "o homem bom tira de seu tesouro
"Detestai o mal, apegai-vos ao bem". 12.21:
coisas boas" (Mt 12.35). Mas quem vive na
"Não te deixes vencer do mal, mas vence o fé em Jesus Cristo já não tem motivo para
mal com o bem". II Ts 3.13: "Não vos can- desesperar conhecendo o poder da ressurrei-
:

seis de fazer o bem", etc). Êstè bem, como ção, ousadamente considerar o batismo
pode
se vê, não é mais descrito em têrmos jurídicos como "a petição feita a Deus de uma boa cons-
definidos como outrora no VT. Em Cristo sa- ciência" (I Pe 3.21), isto é, a petição eficaz
bemos ser êle inesgotável, não deixando Jesus que consegue de Deus uma boa cons-
solicita e
de evideciar-nos a exigência indefinida da Lei. ciência para guia. Repetidas vezes, o NT con-
Doravante é necessário discernirmos o bem, e ta com esta boa consciência dos que obram
só o conseguiremos com o auxílio do Espírito o bem (At 23.1; I Tm 1.5; I Pe 3.16). A
Santo. O preceito de I Ts 5.21: "julgai todas boa consciência não é a orgulhosa satisfação
as coisas e retende o que é bom", além de um daquele que presume dominar todas as exigên-
sentido teológico, tem um alcance ético. Paulo cias do bem, mas a segurança do cristão que
deseja que "sejais sábios para o bem" (Rm por causa da ressurreição, sabe que Deus aca-
16.19), dando a entender ser o bem objeto de bará nêle a boa obra que começou (Fp 1.6) e
um discernimento espiritual. A
ética do NT que "todas as coisas cooperam para o bem
não é pré-fabricada, nem o bem nos é indicado daqueles que amam a Deus" (Rm 8.28).
prèviamente. Contudo Paulo teve o cuidado
especial de nos indicar os caracteres próprios R. MEHL
;

BEM-AVENTURADO 41

BEM-AVENTURADO notar que tal ameaça paira primordialmente,


não sobre os pagãos, mas sobre os que foram
VT chamados por Iavé e dêle se afastaram (Os
7.13; Jr 13.27) açambarcando orgulhosamente,
1 Jamais o
. VT
declara a Iavé bem-aventura-
em benefício próprio, a missão que lhes incum-
<io,à maneira dos deuses gregos, "Os bem-aven-
bia cumprir (Is 10.1 a Assíria, vara da minha
:

turados". Êste fato meramente indica o abis-


cólera; Ez 13.3: os profetas insensatos). Fi-
mo que existe entre a fé de Israel e as religiões
nalmente em Is 6.5, êste grito adquire seu sen-
antigas. Pois estas consideram seu deus como
tido mais religioso é o estertor do pecador
um ser invejável, goza de uma
privilegiado,
:

que se encontra face a face com o Deus três


felicidade que é preciso atingir-se. Pelo con-
vêzes santo.
trário, Iavé é o Deus que vem a seu povo.
Não considera a felicidade como sua prerroga- T

tiva (Fp 2.5ss), mas a outorga. Por ser Cria- À7


dor, êle é a fonte da vida e da felicidade.
Bem-avcnturado, pois, aquele a quem Deus de-
1. O NT
começa o drama escatológico: Em
Jesus Cristo cumpre-se a instauração do reino.
sejou revelar-se e com quem fêz aliança. Se
Doravante a felicidade está relacionada a êste
a fé de Israel celebra como um indizível pri-
acontecimento exclusivo e definitivo, inaugu-
vilégio a bem-aventurança daquele que teme o
rado com a vinda do Messias. O destino do
Senhor é por saber-se objetivo de uma graça
insigne, a de ser o único a conhecer o Deus
mundo torna-se dramático, operando-se uma
separação inesperada e surpreendente entre os
vivo. Iavé é o único. Singular é a bem-aven-
homens. Feliz aquêle a quem é dado reconhe-
turança dos seus, libertados pela fé, da opressão
cer a suprema intervenção de Deus e nela par-
dos deuses estranhos e do prestígio dos cultos
ticipar ai daqueles que passam ao largo da
circundantes e da eterna tentação de auto-glo- ;

rificação. "Feliz és tu, ó Israel, porque Iavé


boa nova. O ministério terrestre de Jesus
traça uma primeira separação: Lc 7.23: "Bem-
é teu Deus. Quem é como tu um povo salvo
-aventurado é aquêle que não achar em mim
pelo Senhor?" (Dt 33.29). Quanto mais a
motivo de escândalo"; Lc 10.23: "Bem-aven-
fé de Israel é submetida à provas tanto mais
turado os olhos que vêem o que vós vêdes"
vibrantes as declarações que testificam esta fe-
licidade. Os salmos, em tôdas as modulações Lc 11.28: "Bem-aventurados os que ouvem a
possíveis,cantam êste tema pletórico de coro- palavra..." e, principalmente Mt 16.17:
lários. "Bem-aventurados todos os que nêle "Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas". Ao
se refugiam" (SI 2.12). "Bem-aventurado contrário, Mt 11.21: "Ai de ti Corazim" Mt ;

aquele cuja iniquidade é perdoada" (32.1),


26.24 e 23.13,16: "Ai de... Judas", "Ai de
"...aquêle a quem tu aproximas a ti" (65.4), vós, escribas". O encontro com a pessoa de
Jesus deixa o rastro de felicidade ou desgraça,
"...aqueles que habitam em tua casa" (84.4-5),
continuado pela pregação do Evangelho pelos
"...que praticam a retidão" (106.3); "Feliz a
discípulos (Jo 20.29; I Co 9.16); e que terá
nação cujo Deus é Iavé" (33.12; 144.15, etc).
seu cumprimento no derradeiro dia, na
2. Por uma decorrência natural (especialmen- parusia (ver Mt 24.19,46; Ap 16.15, etc).
te nos livros sapienciais e nos apócrifos), a fe- Não se deve deixar desapercebido no Apo-
licidade, fruto da bênção divina, aparenta rea- calipse : O
sentido mais compreensivo do
a)
lizar-se especialmente na plenitude e prospe- têrmo "ai" aplicado para designar grandes pro-
ridade da vida. Riqueza, êxito, prosperidade, vações do fim. b) Observamos também que
mulher, filhos, formosura, sabedoria, são indí- "guardar as palavras do Livro" constitui um
cios evidentes da bênção divina e, portanto, penhor da felicidade que o julgamento final
motivos tangíveis da felicidade com a qual Iavé dará àqueles que serão achados fiéis-
acumula os seus. Progressivamente, porém,
desprende-se a certeza de que, também nas pro-
2. Magnificamente recapituladas encontram-se
tôdas estas coisas na régia proclamação das
vações e particularmente no martírio (ver Ma-
cabeus), experimentam os fiéis uma felicidade
Bem-aventuranças (Mt 5.3-12; Lc 6.20-23 e
verdadeira. Finalmente, através das vicissitu-
em sua antítese de Mt 23.13,33 e de Lc
6.24-26). Seu tom solene provém da inversão
des do jadaísmo tardio, a felicidade adquire um
acento escatológico e messiânico. catastrófica de todos os valores estabelecidos.
Paradoxos, sim, porque encaram o presente na
3. Por contraposição aparece, principalmente perspectiva do futuro —
uma vez que em Jesus
na profecia (ver Isaías), o grito "ai", anuncia- Cristo fêz-se presente o futuro. A
felicidade
dor de desgraça. A
desgraça é invocada sobre prometida não é algum lote hipotético de con-
os que provocam a ira ou a condenação de solação, mas o compromisso assumido por
Iavé mediante sua desobediência, de ordem mo- aquêle que pode ver e julgar o presente par-
ral, social, política ou espiritual. É importante tindo da última hora. Enquanto os ricos, os
42 BÊNÇÃO BLASFÉMIA

poderosos, os fariseus ficam de mãos vazias 21), que acolhe, e sempre acolherá favoràvel-
(ver a profecia do Magnificai: Lc 1.51ss), os mente nossas súplicas (SI 28.6; 63. 4s). Elié-
pobres, os humildes, os famintos acham-se ino- zer dá graças a Deus por sua fidelidade a
pinadamente entre os bem-aventurados apenas : Abraão (Gn 24.27). Davi inclina-se sôbre o
a vinda do reino pode colmá-los. virtude Em leito, abençoando a Deus, que lhe assegurou
de sua condição humana ou social (Lc), bem sucessores, confirmando-lhe a promessa de um
como de sua atitude interior (Mt), os pobres reino para sempre (I Rs 1.47s; II Sm 7.11-16).
esperam e contam com alguém. São os naturais O povo congregado para o culto, por sua vez,
destinatários do Evangelho (Mt 11.5). Para bendiz ao Deus que o escolheu e que se revelou
éles vem o Rei, crucificado e ressuscitado pois ;
a êle (SI 115.18). Zacarias e Simeão bendi-
estão êles de conformidade com êle. Sua causa zem a Deus que cumpriu sua promessa de um
revela-se aliada à de Deus. Salvador (Lc 1.68; 2.28-32).

M. BOUTTIER N B
. O cálice de bênção que abençoamos
.

(I Co10.16). A expressão não evoca nenhum


gesto de bênção conferindo ao cálice uma vir-
BÊNÇÃO tude mais ou menos mágica abençoar signi-
;

1. A
bênção é uma palavra cheia de poder, fica aqui "dar graças". Porquanto o cálice,
por cujo meio Deus em pessoa, ou represen- sinal de comunhão com o sangue de Jesus, é

tado por um homem, faz descer sobre pessoas, o dom de Deus que salva a Igreja, razão por
sóbre sêres vivos ou sôbre coisas, a salvação, que merece ser o objeto dos nossos louvores.
a prosperidade e a alegria de viver. Abençoou
Deus o homem e a mulher, abençoou os ani-
CHR. SENFT
mais (Gn 1.22,28) abençoou o pão e a água,
; BLASFÉMIA
para que não comunicassem enfermidades (Êx
23.25) as sementes, para que fossem fecundas
;
Frequentemente as versões neo-latinas tradu-
(SI 65.9-11); o labor humano (Dt 2.7). A zem blasfemar por ultrajar, injuriar, maldizer
vida não é um fenómeno natural, mas uma e caluniar.

dádiva milagrosamente preservada pelo próprio


1. A blasfémia é um atentado contra a honra
Deus. Quando um homem abençoa, esta virtude
e majestade divinas. O blasfemador injuria o
não sai dêle mesmo, mas da riqueza divina o :
Amo absoluto da vida comete um ato irrepa-
homem ora (Gn 4.60; 49.25; 6.22ss: Nm ;

rável que a lei mosaica castiga com a morte


I Sm 2.20).
(Lv 24.11ss). Também Deus pode ser blas-
2. A bênção é, geralmente, uma manifestação femado na pessoa de seus representantes, de
da liberalidade de Deus. Especificamente, po- Moisés (At 6.11), de Jesus (Mt 27.39; Lc
rém, constitui o selo da História da salvação. 23.39) Antes da conversão, Paulo era blasfe-
;

mador, porquanto negava a revelação de Deus


porquanto está presente em cada etapa: a) na
criação, Deus abençoa tódas as coisas e todos
em Jesus Cristo ainda mais, intentava levar os
;

cristãos a blasfemar, a negar que Jesus é o


os sêres, confirmando-lhes a dádiva da vida e
Cristo (At 26.11).
fazendo-se garantia dela. Eis, na sua forma
geral, a primeira
sua criatura, b)

Após
;> aliançaDeus com
de
Deus abençoa
o dilúvio,
2. Jesus é acusado de blasfémia (Mt 9.3 par)
porque perdoa os pecados ao paralítico, prerro-
Noé e seus filhos, firmando com a humanidade gativa divina. Os judeus desconhecem neste
decaída uma nova aliança sob o signo da pa- nazareno o Filho, isto é, o representante e
ciência (Gn 9.1,11). Deus não é vencido pelo plenipotenciário de Deus (Jo 10.33,36). Sob
pecado, mas confirma-nos a sua graça, única a acusação de blasfémia condenarão a Jesus
capaz de restaurar-nos. Deus tem seus inten- (Mt 26.63ss). Não é a declaração de Jesus
tos, que revelará na terceira etapa, c) Aben- em si que julgam blasfematória, mas o fato de
çoa Abraão e escolhe-o, não por causa de qual- que seja precisamente êste Jesus, prêso, impo-
quer mérito do patriarca, mas para preparar tente, evidentemente privado de qualquer marca*
a salvação de tódas as nações (Gn 12.1ss). do poder divino, que ousa declarar-se Filho
Abraão e o povo nascido dêle serão o sinal da do Deus Vivo (Fp 2.7). Aos seus olhos, um
promessa que em Jesus Cristo receberá seu Filho humilhado e aflito não passava de um
cumprimento (Gl 3.14; Jo 8.56). Esta bênção impostor.
messiânica, e não u'a mera bênção paternal, é
que oporá Jacó ao primogénito Esaú (Gn 27) .
3. Os crentes devem zelar para não induzir
outrem a blasfemar. Davi, adulterando, provo-
3. O homem, ou o povo que Deus abençoou, cou as blasfémias dos inimigos de Deus (II Sm
corresponde abençoando a Deus, isto é, dando 12.14), das nações vizinhas que deviam ver
graças a Deus. O crente abençoa a Deus, que brilhar em Israel a santidade de Deus. A ati-
é fiel às suas criaturas (SI 104.1,35; 145.10, tude respeitosa dos escravos cristãos para com
! :

BUSCAR 43

seus amos, a humildade e o espírito de serviço pelos diversos caminhos que êle pode imaginar
da esposa cristã, evitarão que seus senhores e consulta ídolos, crendo ser êles a manifestação
maridos, ainda pagãos, blasfemem o nome e visível da divindade invisível (II Rs 1.2; Is
a palavra de Deus ( I Tm 6.1; Tt 2.5). 19.3; Rm 1.23), evoca mortos (I Sm 28),
interroga astros (Jr 8.2), adivinhos e magos
4. Todopecado, inclusive a blasfémia contra
(Lv 19.31), etc. Tódas estas práticas estão
o Filho do Homem, pode ser perdoado, porém
não a blasfémia contra o
(Mt
—> Espírito Santo
12.32; Mc 3.28ss). Doutrina que intran-
expressamente condenadas pela Escritura, não
simplesmente como ilusórias, mas como aten-
tatórias à liberdade de Deus, que se reserva
quilizou a muitos crentes temerosos de Deus
manifestar-se onde e quando lhe aprouver (Dt
Ela significa apenas que unicamente a recusa,
18.10). Há, ademais, outra procura funesta:
consciente e deliberada, da graça presente, re-
a do homem que pretende atingir Deus me-
conhecida e provada (Hb 6.4-6), causa a mor-
diante os próprios merecimentos religiosos ou
te; porque o Espírito Santo é a presença de
morais (Rm 9.32), dispensando-se do arre
Deus revelado no coração cristão. O Filho do pendimento e da conversão a Jesus Cristo.
Homem é Deus presente sob o véu de sua hu-
manidade, e certamente é blasfemar contra êle b) No entanto, para que o busque e o con-
o pecado de não reconhecê-lo, de duvidar dêle. sulte, Deus pôs ao dispor de Israel determi-
Cada qual deve combater, sem tréguas, este nados meios um
dos mais antigos meios de
:

pecado, orando ao Espírito Santo, arrependen- consulta tem sido a sorte, tirada pelo chefe
do-se e obedecendo. (Js 7.14), e posteriormente reservada ao sa-
CHR. SENFT cerdote, que usará esta prerrogativa e indicará
o julgamento de Deus mediante o Urim e o
BUSCAR Thummim (Nm 27.21). Êste velho meio de
consulta foi aparentemente praticado de nôvo
Êste verbo, frequentemente usado, pertence
na época sacerdotal (Ed 2.63; ver At 1.26).
ao próprio âmago da mensagem bíblica, pois
Frequentemente o povo de Israel consulta Deus
caracteriza três aspectos da relação entre Deus
mediante os profetas (Êx 18.15; I Rs 22.28:
e os homens e entre os homens e Deus.
Ez 14.4) depois dêstes, procura Deus em sua
;

1. Deus vem a suas criaturas para buscar, Palavra escrita (Is 34.16; SI 119.2). Para-
isto é, para exigir aquilo que, com direito, es- lelamente, o santuário (altar, tabernáculo,
pera delas: o Senhor busca a obediência (Mq
6.8), a verdadeira adoração em espírito e em
—> Templo), sinal da presença do Deus invi-
sível no meio do povo, vem a ser o lugar onde
verdade (Jo 4.23), a fidelidade (I Co 4.2), se busca e se consulta ao eterno Iavé ( Êx 33.7;
como o proprietário vai à árvore que plantou Dt 12.5 II Cr 1 .5) O peregrino que caminha
; .

em procura de fruto (Lc 13.6s). Esta busca para o santuário busca a Deus sobretudo na
de Deus, exigente, porém justa, provocou a oração daí o frequente uso nos Salmos, sem
;

confusão do pecador que foge da face de Deus qualquer alusão ao santuário, da expressão
(Gn 3.10). Pois inutilmente procura Deus um
homem que corresponda às suas esperanças (SI
"buscar a Deus", ou "buscar a
Deus", no sentido de orar (SI 24.6; 27.8:
face dc —>
14.1-3). II Cr 7.14; SI 40.17). É também .no sentido
2. Eis porque o Senhor decretou descer, na de orar que Jesus emprega o verbo "buscar"
pessoa de seu Filho, a buscar os homens para no famoso texto: "Buscai e achareis" (Mt
os salvar e reconduzi-los a casa: como um 7.7). Buscar a Deus, ou aproximar-se de
pastor procura a ovelha perdida até encontrá-la Deus (Hb 11.6) significa, pois, ter acesso a
e devolvê-la ao redil (Lc 15.4), o Filho do êle por meio da oração confiante. Todas esta.-,
Homem veio buscar e salvar o que se havia maneiras de procurar a Deus resumem-se e
perdido (Lc 19.10). Esta procura edificante cumprem-se em Jesus Cristo, o Caminho pelo
de Deus, longe de subtrair os homens às divi- qual todo aquêle que busca encontra (Mt 7.8).
nas exigências, justifica as renovadas preten- c) Mais em geral, buscar descreve a ati-
sões do Senhor em ser melhor servido (Lc tude do homem fiel que persevera na obediên-
12.48). cia e na receptividade perante Deus (SI 34.11;

3. Todavia, buscar descreve,em geral — espe- Rm 10.20; At 15.17). "Buscador de Deus" é.

cialmente no AT — a atitude do homem pe-


pois, aquêle cuja vida é inteiramente orientada
por Cristo e pelo reino que vem (Mt 6.33;
rante Deus. Com efeito, um dos sinais do
Cl 3.1), que não teme vender tudo que tem
amor de Deus é deixar-se buscar pelos homens
para comprar esta pérola de grande preço (Mt
(Is 65.1; Ez 36.37); furtar-se às suas pro-
13.45).
curas é um sinal de sua ira (Os 5.15; Am
8.12; Ez 20.3). Buscar expressa a tensão muito peculiar que
a) Entregue a si mesmo, o homem procura existe, a partirda queda, entre Deus que desce
Deus, porém como às apalpadelas (At 17.27), até nós pecadores que, recusando fugir, nos
. .

44 CÁLICE CAMINHO

convertemos a êle. A busca do fiel constitui, convidado recebe o copo de vinho das mãos do
pois, a resposta à iniciativa de Deus. ho- O seu anfitrião. O copo de vinho simboliza o
mem que procura a Deus, entra, desde já, em destino feliz do homem colmado por Deus (SI
real comunhão com êle, mediante Jesus Cristo. 16.5; 23.5). Pelo contrário, o castigo e a
Neste sentido, já encontrou quem anda buscando morte dos ímpios é figurado por um cálice de
(Mt 13.44). Mas ao invés da filosofia que fogo e de enxofre (SI 11.6), de desolação e
dá voltas em torno de seu objeto e da mística de ruína (Ez 23.33), que sorverão até às es-
que se afoga em Deus, esta procura é uma córias (SI 75. 8s).
comunhão de fé e de esperança que se reali- Os empregaram repetidamente esta
profetas
zará plenamente apenas no reino. Somente figura para proclamar a ira e os juízos de
então a busca cederá lugar à posse plena e Deus. Com ênfase retórica representaram a
inteira (I Co 13.12). Deus enchendo de ira o cálice que fará beber
S. AMSLER aos rebeldes, a Israel e Judá (Is 51.17; Ez
23.31ss), aos pagãos (Jr 25.15ss) até que
CÁLICE êles tremam e enlouqueçam, desvariem e caiam.
Ao copo associa-se, na realidade, a idéia de
O VT conhece uma grande variedade de
embriaguez e de queda O próprio povo, ins-
substantivos para designar, segundo a forma e trumento da vingança divina, compara-se a um
o tamanho, o recipiente, oriundo do Egito ou cálice "Babilónia era um copo de ouro na mão
:

da Fenícia, no qual bebem os ricos e os pobres. do Senhor, o qual embriagava tôda a terra; do
Até nos templos usavam-se cálices para as seu vinho beberam as nações e por isso enlou-
ofertas e libações sagradas (I Cr 28.17). Os queceram" (Jr 51.7). Através dos profetas,
mais preciosos eram de prata (Gn 44.2) e de a figura desceu à linguagem popular (Hc 2.16:
ouro (I Rs 10.21) tinham, às vezes, as bor-
;
SI 75.9). Será utilizada pelo Apocalipse para
das lavradas "como flor de lírios" (I Rs 7.26).
Os copos mencionados no NT tinham a forma
evocar a
18.6).
—>
cólera de Deus (14.10; 16.19;

das páteras greco-romanas, chatas e pouco


Da mesmaforma, Jesus aludindo à sua mor-
fundas no cálice que terá de beber (Mt
fala
te
Nas comidas profanas, cada seu qual tinha
20.22-23; Jo 18.11). No Getsêmani roga ao
copo individual (Gn 40.13; Mc 7.4) do qual Pai para que afaste dêle "êste cálice" (Mt
bebia e, às vezes, se embriagava. O anfitrião um mero
26.39,42). Cálice, neste transe, não é
costumava acolher e dar as boas-vindas ofere- sinónimo de morte, mas dá a entender que é
cendo a cada convidado um copo de vinho. o próprio Pai quem decidiu a morte de seu
Beber do copo de alguém era sinal de profunda Filho e, oferecendo-lhe êste seu verdadeiro des-
intimidade (II Sm 12.3). Nestes diversos tino, pede-lhe aceitá-lo voluntàriamente.
usos encontramos a origem dos vários simbo-
lismos que nas Escrituras acompanham a pa- 4. O cálice da comunhão. Circulando entre
lavra "cálice". os convidados, por exemplo nas festas religio-
sas, o cálice significa a comunhão que une os
1. O cálice de ações de graça (literalmente, comensais (I Co 10.21). Não consta que o
o cálice das liberações, SI 116.13) alude ao ritual da Páscoa judaica conhecesse já o copo
banquete festivo no qual se ofertava a Deus comum, símbolo de união na ação de graça e
um cálice de vinho em testemunho de gratidão na esperança. Jesus, instituindo a santa Ceia,
pelas libertações recebidas (SI 116.17). O ri-
reparte entre seus apóstolos o cálice do seu
tual da Páscoa comportava quatro copos su- sacrifício, para demonstrar-lhes que estão
cessivos levantados em sinal de ação de graça desde já chamados a compartir o destino do
(ver Lc 22.17,20). A elevação do cálice, na Messias agora humilhado e em breve glorifi-
Santa Ceia, conserva ainda êste valor eucarís-
tico pois êle é o cálice de benção (I Co 10.16;
:
cado. (
O
—>
Sangue) .

da Santa Ceia garante, pois, aos


cálice
Mt 26.27), por êle agradecemos a Deus
( —> Eucaristia) .
crentes a participação no sacrifício de Cristo
(I Co 10.16) e a sua glória no Reino (Lc

O cálice de consolação 22.28-30).


2. (Jr 16.7) alude ao
copo de vinho que se oferecia nas comidas
S. AM S LER
fúnebres aos parentes enlutados. A imagem CAMINHO
aqui aponta principalmente para o vinho, sím-
Como os têrmos paralelos no VT
bolo de alegria (
—> znnho)
senda, ve-
reda, atalho, "caminho" pode possuir um sen-
3. O cálice do destino, expressão muito orien- tido literal ou figurado.
tal,conhecida do Salmista, que significa o nosso No primeiro caso designa estradas, caminhos,
destino terrestre (SI 11.6; 16.5; 23.5; 75.9). atalhos e veredas que cruzam a Palestina (At
Do Senhor recebemos o nosso destino, como o 8.26) e o mundo (Mt 10.5) (sentido local)
.

CEIFA 45

e por extensão pode indicar caminhada, viagem "vos lembrará os meus caminhos em Cristo
(Gn 42.25; Mt 10.10) (sentido ativo) e tam- Jesus, como por tôda parte os ensinos em cada
bém pode marcar a distância: um caminho de Igreja" (I Co 4.17), indica certamente as
sábado (At 1.12), a jornada de 2000 côvados prescrições espirituais e morais que pertenciam
ou seja 800 m. à que limitavam os doutores da às igrejas de Jesus Cristo.
lei, baseados em Êx 16.29, a deslocação lícita Repetidas vêzes o livro dos Atos emprega
no sábado, qualquer determinativo à palavra caminho (9.2;
sábado. 19.9,23; 24.14,22; ver também 22.4), resul-
No sentido figurado, as palavras caminho, tando uma certa indecisão que repercute nas
via, senda, etc, quer no singular (Jr 10.23), diversas traduções usuais entre nós o caminho
:

quer no plural (Dn 5.23), aplicam-se em pri- do Senhor, nova doutrina, evangelho, seita, re-
meiro lugar à vida humana em geral: (Assim ligião. Esta peculiaridade deriva quiçá da
a expressão partir pelo caminho de tôda a terra expressão o caminho do Senhor, e designa de
significa —>
morrer) e logo à vida confiada
à responsabilidade humana, isto é, ao compor-
modo geral o cristianismo, movimento ao qual
Deus leva os homens.
tamento, à maneira de viver, e à conduta (I Rs Incumbe-nos examinar aqui duas citações
15.26; Tg 1.8; Jd 11). importantes no XT onde caminho tem um
Daí provém importantíssimo uso, na teologia, sentido bastante diferente do figurado que aca-
da expressão: os caminhos de Deus. Designam bamos de indicar: Hb 10.20 (e 9.8) e Jo 14.6.
primeiramente os caminhos em que o próprio Hb 10.20 é um texto difícil. Trata o autor
Deus anda; em outros têrmos, sua atividade da obra de Cristo em relação ao culto israe-
atual (Dt 32.4; At 13.10) ou futura (Is 40.3; lita do Tabernáculo. Afirma que "pelo sangue
Mt 3.3 par), seu modo de proceder (Is 55.8), de Jesus temos livre acesso ao Santo dos San-
seus planos e desígnios (Is 58.2; 11.33). Rm tos", isto é, na presença de Deus no céu, pois
Também indica caminhos que Deus nos manda Cristo inaugurou para nós "um nôvo e vivo
seguir (Jr 7.23; SI 25.4), especialmente os caminho através do véu" que fechava a entrada
mandamentos da Lei (Dt 8.6) também se re- ; do lugar santíssimo. De fato, não é rasgando
fere ao ensino moral de Jesus (Mt 22.16). O êste véu, constituindo aqui uma simples ima-
caminho do Senhor é determinado ora por um gem, mas a sua própria carne, que fêz com
mero adjetivo, tal como bom
Rs 8.36), reto
(1 que Jesus abrisse para nós êste caminho, o
(I Sm 12.23), 101.6), ora por
íntegro (SI qual nos possibilita aproximar-nos de Deus li-
um complemento do substantivo, como o ca- vremente (10.22; ver 4.16). O caminho nôvo
minho da justiça (Pv 8.20; Mt 21.32), da e vivo designa, portanto, o acesso à comunhão
verdade (SI 119.30). Abster-nos-emos de in- com Deus graças à expiação de Jesus e sua
terpretar tais expressões sem referência a Deus : intercessão atual (7.25).
o caminho só é bom, porquanto Deus, que é EmJo 14.6, Jesus chama-se a si mesmo o
bom, o prescreve. caminho, obrigando-nos o contexto (especial-
Não causará espécie se encontrarmos fre- mente os vs. 1-4 premissa lógica do 6) a re-
quentemente o têrmo caminho na pregação dos conhecer um significado particular. Não se
profetas, chamados a desviar o povo de seus trata já de uma certa maneira de viver, mas
maus caminhos (II Rs 17.13). Êstes apelam do caminho pelo qual chegaremos ao Pai. Ora,
para os homens deixarem os maus caminhos o único caminho que pode levar os discípulos
(Zc 1.4; Jn 3.8,10), e reformá-los (Jr 7.3-5; ao Pai, é o próprio Jesus Cristo que, morrendo,
26.13). Entrementes o próprio Deus dará ao vai preparar-lhes um lugar e voltará logo para
seu povo "um só caminho, para seu bem e bem buscá-los em sua segunda vinda. Êstes esta-
de seus filhos (Jr 32.39) rão no caminho que conduz ao Pai, permane-
Um eco destes apelos permanece no tema cerem unidos a Cristo pela fé.
muitas vêzes empregado nos livros sapienciais
do VT a oposição entre os dois caminhos, o
:
/. BURNIER
bom e o mau (SI 1.6; Pv
4.18-19; 12; 12.28; CEIFA
ver Jr 21.8). Também Jesus recorrerá a esta
Ceifa encontra-se 1.° no seu sentido próprio,
oposição a fim de precaver os seus discípulos 2.° num sentido figurado temporal, 3.° num sen-
contra as dificuldades que tornam o caminho
tido figurado profético-escatológico.
estreito (Mt 7.13-14).
A apostólica, a exemplo da de
pregação 1. Sentido próprio (Gn 8.22; Jo 4.35; Tg
Cristo, exige que assumamos uma vida. nova 5.4, etc). A ceifa para a Bíblia não é um
e característica. Assim reaparecem os têrmos mero assunto material e egoísta. Comporta
caminho e via, nas epístolas, a fim de expres- uma parte de exigências, uma parte reservada
sar o comportamento geral dos cristãos (II Pe a Deus: as primícias da ceifa pertencem ao
2.2), ou a atitude dêles desejada (I Co 12.31).
Quando o apóstolo Paulo escreve que Timóteo
Senhor ( —> Pentecoste: Êx 22.29; Lv 23.10).
e outra parte reservada ao próximo: um canto
:

46 CÉU

do campo escapará da ceifa e será abandonado que tiver semeado para o Espírito colherá do
aos necessitados e forasteiros (Lv 19.9; 23.32; Espírito a vida eterna (Gl 6.8). Assim os
Dt 24.19). Ademais a ceifa era ocasião de atos humanos são prenhados não apenas de
festas e divertimentos para o povo (Êx 34.22; História, mas também de eternidade.
Is 9.2) a colheita era tida por uma graça
; Precisamente em virtude disso, porque não
insigne, uma promessa cumprida. A alegria pertence ao homem dispor da eternidade, nem
do fruto maduro coroava as esperanças do se- qualificar definitivamente qualquer ato, bom ou
meador. mau, permanece a seara final um grande mis-
A imagem da ceifa, da colheita, servirá, por- tério. Não foi aos servos terrenos que tem
tanto, para significar uma
relação de causa e sido comissionada a tarefa de separar o joio
efeito entre umsuas consequências
ato e e o trigo: poderiam eles arrancar o trigo com
"aquilo que o homem semear, isso também o joio (Mt 13.28-30, 39-43). Mas a tarefa
ceifará" (Gl 6.7). Lei geral que veremos apli- foi comissionada aos ceifeiros angélicos. Os
cada não apenas na natureza, mas também, em nossos atos estão entregues à divina justiça cujo
primeiro lugar, na economia moral de nosso sol pode fazer frutificar as mais insignificantes

mundo e, finalmente, no último juízo asseme- sementeiras e consumir os frutos do orgulho e


lhando-se à ceifa do mundo. da presunção. Pela fé podemos saber com
plena confiança que, em Jesus Cristo, a jus-
2. Sentido figurado temporal. Já neste tiça de Deus é justiça de amor. Esta confiança
mundo, embora imperfeitamente, podemos ve- permite esperarmos tranquilamente o tempo da
rificar o mecanismo das leis morais e constatar ceifa celeste. Como na terra, a ceifa se acom-
os efeitos de uma justiça imanente: "O que panha de alegria e júbilo, assim a ceifa divina
semeia a injustiça, segará males" (Pv 22.8), será um tempo de festa e gozo. As sombras
"quem semear o vento, recolherá a tempestade" do juízo contribuirão para salientar mais as
e se "semeais em justiça ceifareis em miseri- belas realidades da promessa e da salvação, a
córdia" (Os 10.12). "Se nós vos semeamos alegria da colheita, a recompensa régia outor-
as cousas espirituais, será muito recolhermos gada aos fiéis que "depois de semear com lá-
de vós bens materiais?" (I Co 9.11). grimas, agora ceifarão com júbilo" (SI 126.5).
Esta manifesta lei de correspondência entre A Deus pertence a ceifa, ao homem a se-
a sementeira e a colheita confere a todos os menteira. Ora, já na sementeira decide-se
nossos atos um pêso de História não há ato : parcialmente a ceifa. Deus revelará no último
indiferente uma vez que todos os atos levam dia aquilo que o homem desde muito tempo
o germe da vida futura, temporal e eterna. ia cultivando. Aquilo que se revela nos céus.
Todos os nossos atos inscrevem-se numa His- procede da terra. A única novidade será a
tória que será, em
suma, o desenvolvimento nova luz reveladora, e até transformadora;
do potencial ou negativo encerrado
positivo enquanto a ceifa iluminada será aquela, e ne-
nêles. Esta verdade fornece poderosa argu- nhuma outra, que fora confiada à terra nos
mentação à pregação moral, premonitória e dias das sementeiras terrenas. "Portanto, não
exortativa premunição para aqueles que fazem
:
nos cansemos de fazer o bem... enquanto ti-
o mal sem preocupar-se com as germinações vermos oportunidade a seu tempo ceifaremos"
:

que êle prepara exortação a fazer o bem, pois


;
(Gl 6.9-10).
"a seu tempo ceifaremos" (Gl 6.9). J. PH. RAMSEYER
Entrementes o tempo da colheita, embora es-
poradicamente visível já neste século (Mt CÉU
9.37-38; Jo 4.35-38), aparecerá universal e Em português, bem como na maioria das de-
perfeito nos dias do último juízo, com êle se
mais línguas modernas, a palavra "Céu" possui
confundindo. As ceifas dêste mundo manifes- ora um significado simplesmente meteoroló-
tam e anunciam a colheita do mundo, isto é, gico ou astronómico, ora um sentido religioso,
a hora em que a própria terra há de ser cei-
não estando sempre bem definida a diferença
fada (Ap 14.15-16).
entre ambas as acepções. Não causa novidade
3. Sentido figurado profético-escatológico. que isso já acontecesse com os antigos. Ade-
"A ceifa é o fim do mundo" (Mt 13.39). lei A mais, a bivalência do vocábulo é de certa for-
de correspondência entre a sementeira e a seara, ma justificável, porquanto entre a superiori-
encontra aqui sua expressão perfeita, bem como dade local das coisas de cima e a superiori-
seu perfeito mistério. dade essencial das coisas de Deus, há uma
Os frutos de nossos atos serão reconhecidos "analogia do ser" predispondo a primeira a
por maduros apenas quando o próprio Deus os ser o símbolo da segunda.
colha ou rejeite, segundo a sua justiça. Então Para maior clareza, destacaremos os dois
aquele que tivesse semeado conforme a carne, sentidos de "céu", até no VT, sem esquecer
ceifará da carne a corrupção, enquanto aquêle que nem sempre vão nitidamente separados.
>
CÉU 47

1. O céu no sentido natural. Inicialmente e da lua, movem-se em torno da terra imóvel.


a palavra CÉU designa para a Bíblia o que Entre os planetas, só Vénus (em hebr. —Hel-
hoje chamamos de atmosfera. Assim fala-se lel. Is 14.12) e Saturno (Chium; em caldai-
dos "pássaros do céu", como dos "peixes do co Kenan, Am 5.26) são nomeados explici-
mar" (Dn 4.12; Mt 6.26; 8.20 etc). Da tamente. Não sabemos em que medida os he-
mesma forma, Daniel (7.13) fala das nuvens breus identificavam Vénus com a estrela da
do céu (ver Mc 14.62 par), a não ser que manhã, mas consta que êste astro brilhante,
"nuvens" tome um sentido simbólico. Nota- anunciador do dia, desempenhava na sua ima-
mos, outrossim, que as aves e as nuvens não ginação um papel preponderante, pois fize-
são os únicos moradores do ar, estando êste ram dêle um dos símbolos da salvação o Si- :

cheio de seres invisíveis, alguns bem inquie- racida (Sab 50.6) compara-lhe o sumo-sa-
tantes (Ef 2.2.
bitualmente, porém,
—> Anjos
"céu"
e Demónios)
designa o firma-
. Ha- cerdote Simão. 2Pe 1.19, por sua vez, chama
a Jesus Cristo "a estrela da alva que há de
mento ou a abóbada celeste, tendo o hebraico nascer em vossos corações". João, o Vidente,
também outra palavra para esta acepção. Gn (Ap 2.28) vê ao Ressuscitado prometendo aos
1.6 ensina que o firmamento separa as águas que perseveram, "a estrêla da manhã", isto é,
"de cima" e as "de baixo". As águas sôbre o uma luz sobrenatural emanada de Cristo.
firmamento constituem o reservatório da chuva Entre as estrelas chamadas fixas, Jó ins-
(SI 148.4) que passa através das comportas truído talvez pelos árabes enumera várias
do céu (Gn 7.11: ver também Jó 38.37). É constelações. Conhece as Plêiades e órion
por estas "comportas" ou janelas ciue passou Í9.9; 38.31), o Dragão ou Serpente (26.13),
também o maná, o pão do céu, conforme nar- e menciona outras constelações em têrmos de
ra o SI 78.23-24 (Ver SI 105.40 e Sab 16. equivalência para nós duvidosa (a Ursa? as
20). Neste sentido compara-se frequentemente Híades? Aldebarã). Amós também conhece
o céu a uma tenda amplíssima ou a uma cor- as Plêiades e Órion (Am 5.8).
tina imensa (Is 40.22; SI 104.2). de con- Os signos do Zodíaco, familiares à litera-
formidade com imagens assaz espalhadas no tura rabínica, correspondem possivelmente ao
Oriente. Notemos ainda que encontramos en- Mazzaroth do VT (ver em particular 2Rs
tre os hebreus vestígios de uma imagem
po- 23.5).
pular entre os orientais, e até entre os ociden- Consideram-se, às vêzes. as estrêlas como
tais, que representa o céu como o manto régio
sêres vivos; assim em Jó
38.7 elas cantam ale-
da divindade (assim o SI 102.25-26 compara gremente: em Jz 5.20, elas pelejam contra
os céus a um manto que, já envelhecido e Sísera. Personificação não isenta do risco de
gasto, enrolado
será por Deus desejoso de astrologia no temno dos Reis, Israel sucumbe
:

vestir prendas novas. (Comparar certas Vir- a esta tentação (2Rs 21.3-5; 23.4-5). O Deu-
gens no catolicismo, vestidas de um manto teronómio prevê o perigo e decreta a pena
estrelado).Ap 6.14, usando outra expressão, de morte contra êste delito (Dt 17.2-5). Não
anuncia que Deus enrolará os céus como um deixa de insistir o texto sagrado na afirmação
"volume", isto é, na fôrça etimológica, como que os astros são meras criaturas de Deu»
um pergaminho em forma de rôlo. (2Rs 21.3-5; Gn 1.14ss; Am
5.8; SI 74.16;
Outras vezes o céu é-nos mostrado colo- 136.7: Jó 9.7-9, etc), soberano do céu e da
cado sôbre colunas (Jó 26.11). Samuel (2Sm terra. Deus é quem pode sacudir a terra (Jó
22.8) fala, de forma generalizada, em "fun- 0.6) ou deter a marcha do sol (Js 10.12-13).
damentos" do céu. Esta idéia do "céu" forma- O NT
não contém qualquer proibição explí-
do por u'a massa sólida não é privativa do cita com respeito à astrolatria, mas esta vai
Génesis: também Jó 37.18 mostra-nos um céu
sólido "como um
espelho fundido", imagem
implicada na proibição da angelolatria (
Anjos e Autoridades) .

de que se lembrou quiçá Ap 4.6 e 15.2 ao fa- Em nenhum mencionam-se os come-
texto
lar-nos de "um mar de vidro". tas, a não
que êles sejam êstes "astros
ser
Na concepção de Gn 1.14s, as estrelas pren- errantes" de Jd 13. Mas, quando o Apoca-
dem-se ao firmamento, concepção que não se lipse H2.4) descreve um grande "dragão ver-
deve tomar literalmente se bem encontramos
:
melho" cuja cauda varre o céu arastando a
na Bíblia que a abóbada se move com as es- te-ceira parte das estrêlas. nós evocamos ime-
trelas nela prendidas, Jó 22.12 mostra-nos os diatamente a aparição dum cometa com sua
astros suspensos um pouco abaixo do céu, a chuva de estrêlas cadentes. Acaso "a espa-
grande altura. Seu número é muito grande, da de Deus" suspensa no céu, de Isaías (34
incontável (Gn 15.5). As estrelas, melhor 5). era também algum cometa?
que as demais criaturas, proclamam, com o Folga dizer que Deus é o Senhor de to
seu luminoso esplendor, a glória de Deus (SI dos os fenómenos meteorológicos, do trovão,
19.2; Dn 12.3). Todas, em companhia do sol do raio e do granizo (Ex 19.16; 20.18; ISn»
: >
48 CHAMAR

7.10; SI 77.18; 104.7; Sab Sirac 43.13-22: Os céus sãotambém a morada dos anjos;
46.17). Deus dá a chuva e os raios do sol. estes formam amiúde a corte do trono di-
Notemos que Jó não comparte a concepção vino (lRs 22.19). Sobre a hierarquia angé-
ingénua dos reservatórios de chuva nos céus. lica frequentemente descrita pela literatura
mas declara que as nuvens, constituídas de
vapor (37.11; ver SI 33.7), são que nos dão
apocalíptica e por São Paulo, veja-se
Anjos, Autoridades.

a chuva. , O trono de Deus figura também nalgumas
Finalmente, que opina a Bíblia a respeito da das grandiosas visões do Apocalipse joanino.
astrologia? Embora não conste interdição ne- No cap. 4, o trono divino aparece rodeado
nhuma, Is 47.13 zomba dos astrólogos e Jr de vinte-quatro tronos menores ocupados por
10.2 previne os fiéis contra suas superstições. vinte-quatro anciões, de sete lâmpadas que
Contudo, se distinguirmos entre a crença na são "os sete espíritos de Deus", e das quatro
influência astral e a fé na virtude profética criaturas aparecidas já na famosa visão de
dos astros, forçoso será reconhecer que, no Ezequiel (cap 1): águia, boi, leão e homem.
segundo sentido, a Bíblia conferiu certa con- Da me^ma forma "no mais alto dos céus" (ex-
sagração à astrologia. Pois amiúde os fenó- pressão dos anjos em Lc 2.14) situa-se, con-
menos extraordinários são considerados como forme Hb 7.25 (comparar Hb 1.3; 5.10:
sinais calamitosos com os quais Deus adverte 12.2; 8.1; ljo 2.1), um tabernáculo sobre-
os homens (Jl 3.15; Am8.9; Is 13.10: natural, onde o verdadeiro Sumo-Sacerdote.
34.4; Ez 32.7-8). Esta é também a maneira Cristo, oferece sacrifícios espirituais e inter-
de ver da pequena "apocalipse" sinótica (Mt cede por nós.
24.29 par) e da revelação joanina (Ap 6.12 Textos sinóticos absolutamente idênticos re-
ss, especialmente). Mas, pelo menos uma vez, latam como o próprio Jesus anunciou que os
anuncia uma estrela um acontecimento feliz
homens "verão o Filho do Homem sentado
a estrela de Belém. Os magos-astrólogos não à destra de Deus" (Mc 14.62 par). Vejam-se
recebem qualquer crítica por ter sabido inter- também Mc 16.19 e a visão de Estêvão nos
pretar a sua mensagem pelo contrário são
;
Atos (7.55). O vidente do Apocalipse vê.
louvados pela prontidão de sua obediência. (20.4ss) no céu, as almas dos mártires "de-
capitados por causa de Jesus... que não ado-
2. O céuno sentido religioso. É o mundo
sobrenatural, ou mais exatamente, o conjunto raram a bêsta, nem a sua imagem, e não
dos mundos invisíveis. De fato, não deixa receberam na frente e na mão a marca da
bêsta". Estas almas precederão tôdas as demais
de ser surpreendente o grande número de ve-
zes que o NT, em particular Mateus e Paulo, na glória celestial. Jesus, conforme relata o
usa a palavra "céu", no plural particularidade quarto evangelho, promete aos seus discípulos
;

que só a filologia não basta para explicar, pois uma morada no céu, especialmente preparada
mesmo quando o têrmo hebraico para céu por êle (14.1-3). Da mesma forma, a epís-
careça de singular, esta constatação não re- tola aos Hebreus (8.1; 11. 8s) menciona um

solve o caso, porquanto os hebreus acredi- lugar preparado nos céus para os crentes e
tavam em vários "céus" sobrepostos um ao prefigurado pela terra santa.
outro. Assim Dt 10.14 fala do "céu dos céus" /. HÊRING
para designar o céu supremo, morada de Deus
(da mesma forma lRs 8.27; SI 148.4; Ne CHAMAR
9.6). Ef 4.10 mostra-nos a Cristo ascendido
"acima de todos os céus" (comparar Hb 4.14). Chamar, seus derivados e sinónimos encon-
Lembremos ainda que Paulo conhece a um tram-se na Bíblia no sentido vulgar de con-
homem (a si mesmo) que foi arrebatado ao vocar, convidar ou nomear. Mas, frequente-
terceiro céu (2Co 12.1ss). Contudo, a Bí- mente, chamar é um verbo específico da lin-
blia é muito sóbria em especulações sobre os guagem bíblica; cada vez que tem Deus por
diversos céus, enquanto os Livros de Enoc sujeito, toma uma significação radicalmente
estão cheios de pormenores curiosos com res- nova, peculiar e exclusiva da Revelação. Êste
peito aos sete ceus. sentido propriamente bíblico acompanha en-
Quanto ao trono de Deus, está êle inserido tão tanto o verbo, como o seu adjetivo par-
ora simp esmente "nos céus", (Is 66.1; 2Cr
1 ticipial (chamado) e o seu substantivo (cha-

30.27; SI 11.4), ora (para salientar melhor mamento), e até a mesma condição daquele
a transcedência divina) "no céu dos céus", que é chamado, isto é, revestido de uma vo-
"por cima do firmamento" (Ez 1.26-27), "por cação.
cima das águas" (=das águas superiores do A
versão grega dos LXX
expressa median-
firmamento, SI 29.3). Não faltam textos co- te um
único têrmo, o poder do ato divino
mo Is 40.12 que pressupõem a Deus assen- que o hebraico expressava com três verbos
tado por cima de todo o universo. diferentes. Efetivamente Deus, quando chama,
: :

CHAMAR 49

além de fazer ouvir sua voz, suscita o ser eleitos.Tão nova é a obra a êles confiada que
vocacionando-o, cria o universo nomeando suas o vocacionado terá de levar sobre si uma mar-
partes constitutivas (Gn 1) toma para si e
;
ca desta novidade em cuja virtude se lhe trans-
reserva para seus desígnios. Numa perspectiva torna a existência até o ponto de parecer êle
geral, o chamamento divino revela-se como a uma nova criatura. O verbo chamar, na sua
modalidade própria do encontro de Deus com exigência mais íntima, vem a ser sinónimo
o homem. de "nomear". O —>
nome significa, então,
tanto a vocação do chamado, como o conteúdo
1 O encontro de Deus com o homem. Deus
.
profético, ou mesmo escatológico do chama-
é, por definição, "aquele que chama" (Rm mento. Entre muitos outros, tomemos o exem-
9.11; Gl 5.8) "conforme sua própria deter- plo de Isaque (Gn 17.19), o "riso de Deus",
minação" (2Tm 1.9). Deus, desde o princí- que anuncia a ressurreição e conversão dos
pio, tomou a iniciativa, recusando abandonar pagãos ou, no limiar do Evangelho, o de
;

sua criatura caída. "Deus chamou ao homem e João (=Iavé foi favorável), assim chamado
lhe perguntou: Adão, onde estás?" Assim pelo próprio Deus contra tôda a tradição fa-
abriu Iavé um diálogo que continuou depois miliar de Zacarias (Lc 1.13, 59ss). O nome
de Adão. Doravante sua voz ressoa nesta ter- do Messias podia vir exclusivamente de Deus
ra (SI 19), revelando-se Deus, comunican- "Darás à luz um filho, a quem chamarás pelo
do-se e abaixando-se através dos seus chama- nome de Jesus. Êste será grande e será cha-
mentos. Iavé entra em relações com a huma- mado Filho do Altíssimo" (Lc 1.31s). O no-
nidade, irrompe na História dos indivíduos e me que Cristo impôs a Simão, no dia do pri-
das nações, porém sem perder sua liberdade meiro encontro, prefigura a vocação do após-
de ação secreta e soberana. Finalmente o VT tolo na Igreja primitiva: "Tu és Simão, o
fica como impregnado de uma repetida pro- Filho de João tu serás chamado Cefas que
;

messa cujo cumprimento nos será dado em quer dizer Pedra" (Jo 1.42).
Jesus Cristo, ao raiar o NT. Então Cristo, o Por muito pessoal que, de por si, seja o
"Verbo de Deus" (Ap 19.13), incarnará na encontro de Deus e do homem, o apêlo divino
própria pessoa o chamamento de Deus aos ultrapassa o destino pessoal do vocacionado
homens. assim, a vocação de Abraão suscita e constitui
Antes de analisar as diversas formas do o povo que Deus forma para si entre as na-
divino chamamento, notemos o seu caráter es- ções ;e o nôvo nome "Israel" dado a Jacó,
sencial. chamamento é função da
Porque o mais do que pessoal, é genérico, destinado a
obra redentora, êle provém da misericórdia designar todo o povo eleito. Eis porque os
de Deus e destina-se à salvação dos homens. profetas, particularmente o segundo Isaías,
A História dos vocacionados confunde-se com tanto repetem e tanto insistem no chamamento
a História da —>
aliança divina, manifes-
tando "a graça que nos foi dada em Jesus
de Deus ao povo, e tanto valorizam seu apêlo
todo prenhado de sentido, de esperanças e de
Cristo antes dos tempos eternos" (2Tm 1.9). censura, apêlo familiar como quando se inter-
Deus, na antiga e na nova aliança, chamou pela um indivíduo "Eu, o Senhor, te cha-
:

homens cuja missão e depoimentos foram úni- mei em justiça (Is 42.6). Por que razão nin-
cos na História. Chamou a Moisés (Ex 3.4; guém respondeu a meu apêlo?" (Is 50.2). Apê-
19.20; 24.16), a Samuel que tinha sido já lo ainda mais premente quando Deus dá re-

devotado ao do templo (ISm 3.4),


serviço lêvo ao nome dado por êle mesmo "Dá-me :

a Isaías Folga dizer que as modali-


(49.1). ouvidos, ó Jacó, e tu, ó Israel, a quem cha-
dades e efeitos dêstes chamados não mudam, mei" (Is 48.12; ver 42.1; 45.3). "Aías tu,
mas são típicos porquanto os interlocutores ó Israel, servo meu, tu Jacó, a quem elegi,
são sempre Deus e o homem. São Mateus in- a quem tomei das extremidades da terra, a
terpreta a palavra de Oséias (11.1) como uma quem disse : Tu ès o meu servo, eu te elegi"
chamada de Deus ao seu Filho realizando o (Is 41. 8s). Renovadamente Deus vem ao en-
anunciado retorno do Egito porém,
va- uma contro do seu povo para salvá-lo e tomá-lo a
;

riante interessante embora tardia, escreve seu serviço. Uma tal chamada é para o voca-
"Eu o chamei meu Filho". Paulo apresenta-se cionado um convite salutar cujos efeitos se
como "chamado para ser apóstolo" (Rm 1.1) :
manifestarão muito além de espaços e tem-
assim define a sua função peculiar e lembra pos. O Nôvo Testamento é que nos revelará

que o seu apostolado coincidiu com a sua vo- o segrêdo da vocação, sua finalidade e ins-
cação à fé. Com todo o direito reivindicará trumentos.
o seu chamamento apostólico e defenderá o 2. Um convite
salutar, a) O segrêdo da
seu novo nome: Paulo (ICo 9.1; 15.9). vocação. A
vocação procede da graça miste-
Assim somos levados a observar que, fre- riosa e soberana de Deus, manifestada em
quentemente, Deus impõe um nome a seus Jesus Cristo, no Evangelho. O Senhor que,
>

50 CHAMAR

durante seu ministério entre nós. chamava os recerá somente ao fim. embora frutifiuue des-
discípulos com uma autoridade vinda exclu- de já em efeitos benéficos.
sivamente de Deus, continua chamando por
meio do Espírito Santo. Lembrando-lhes sua
Nos Evangelhos, Jesus chama para
reino vindouro do qual
o
secretamente, o rei.
é,

origem pagã, São Paulo escrevia aos Roma- O texto mais característico dá-se na parábola
nos: "vós... chamados para serdes de Jesus das bodas (Mt 22.1-14) que profetiza a re-
Cristo" (1.6). No triunfal hino de ação de cusa de Israel rejeitando sua vocação (vers.
graças que abre a epístola aos Efésios, uma 3-4, 8) e a entrada dos pagãos na promessa
variante bastante conhecida de 1.11 afirma: cloriosa (9-10). Achamos a chamada ao reino
"Nêle, digo, fostes chamados". Nêle isto é. apenas uma vez nas epístolas ( lTm 2.12) e
em Jesus Cristo. Mas, próprio
porque é o no Apocalipse: "Bem-aventurados aquêles que
Deus, em Cristo, o único autor da vocação. são chamados à ceia do Cordeiro I" (19.9). A
Paulo não hesitará em desenvolver a surpreen- linguagem paulina e deutero-paulina possui
dente expressão de Isaías 49.1 (a comparar outros têrmos para definir a obra divina à
com Jr 1.5): "Quando ao que me separou nual estamos convidados a entrar, tais como
antes de eu nascer e me chamou pela sua
graça, aprouve revelar seu Filho em mim"
a —> vida eterna: "Toma posse da vida eter-
na para a qual foste chamado" (lTm 6.12),
(Gl 1.15). Antecipa-se o apêlo à decisão e
resposta humana, pois depende exclusivamente
a —> glória: "... para alcançar a glória
de nosso Senhor Jesus Cristo" (2Ts 2.14),
da liberalidade divina. Paulo, portanto, po-
derá explicar êste mistério dizendo "Aos que :
ou a figura emprestada do VT, da
ça :"Recebem ... a eterna herança aquêles
heran- —>
predestinou :, a êsses também chamou e aos ; que têm sido (Hb 9.15). (Ver
chamados"
que chamou, a êsses também justificou" (Rm também a variante de Ef 1.11
interessante
8.30). Também poderá afirmar que sua qua- e Cl 1.12). Paulo usa ainda a comparação
lidade e ministério apostólico procedem ex- familiar da carreira no estádio "para o pré- :

clusivamente de Deus "Não sou digno de


: mio da celestial vocação de Deus em Jesus
ser chamado apóstolo... mas pela graça de Cristo" (Fp 3.14).
Deus sou o que sou" (ICo 15.9s). Mas, embora manifeste Deus sua obra "pa-
Costumamos traduzir êste apêlo da graça ra saberdes qual é a esperança que em nós
por vocação, palavra que comumente não tem desperta o seu chamamento", o aspecto atual
no NTo sentido um tanto confuso que cos- da obra guarda toda sua importância, por-
tumamos lhe dar; pois expressa o primeiro quanto sua eficácia presente condiciona sua
passo de Deus na relação a soberania da-
: realização final. Quando Deus chama "à co-
quele que chama jamais se confunde com a munhão de seu Filho Jesus Cristo" (ICo 1.9).
expansão de dons. talentos e inclinações hu- compromete virtualmente todas as múltiplas
manos; noutros têrmos, somente Deus (ou circunstâncias da vida da Igreja e dos fiéis.
Cristo) é o sujeito do verbo chamar. Por- Assim Paulo lembra
aos Colossenses, sedu-
tanto, o particípio substantivado (chamado, zidos pelas tão fatais à comunidade,
heresias
vocacionado) e também o substantivo (cha-
mamento, vocação) referem-se sempre a Deus,
que são chamados à —>
paz de Cristo, (Cl
3.15), e aos esposos divididos declara: "Deus
(ou a Cristo). Sendo santo o que chama, (IPe vos tem chamado à paz" (ICo 7.15). Aos
1.15), a vocação é qualificada de santa (2Tm Gálatas tentados a voltar ao jugo das pres-
1.9), celestial (Hb 3.1), vinda dc cima (Fp crições legais do judaísmo, declara vigoro-
3.14) ;todos éstes atributos apontam para
o sujeito. (O texto difícil de ICo 7.17-24,
samente: "Irmãos, fostes chamados à
berdade" (5.13).
li-

Importa aos Tessalonicen-


—>
presta a discussões, como veremos § 3 c) ses compreender bem o alcance moral de sua
Ademais, se houvessem dúvidas em algum lu- vocação "Deus não vos chamou para a im-
:

tar com respeito ao significado da vocação, a pureza, mas para a santificação" (lTs 4.7).
questão aclarar-se-ia plenamente ao exami- Quais são os chamados a esta imperiosa
narmos o porquê da vocação. vocação, às suas promessas e exigências?
b) A finalidade da vocação. Quando Deus c) Os chamados. Todos os homens (Rm
chama alguém, é sempre para
seu Filhosi e 11.32) são chamados. A
obra redentora abar-
que êle convoca. O eleito participará de todas ca o mundo inteiro. Esta revelação transtorna
as graças de salvação, divinamente incorpora- o pensamento do judeu Paulo de Tarso e
do à obra redentora não apenas como ator abre-lhe a perspectiva-chave sobre toda a dou-
mas como As múltiplas expres-
beneficiário. trina da salvação. "Somos chamados não só
sões que lemos no NT
são outras tantas afir- dentre os judeus, mas também dentre os gen-
mações multiformes do intento único "da- tios assim o declara Deus em Oséias "Cha-
: :

quele que vos chamou na graça de Cristo" marei povo meu ao que não era meu povo.
íGl 1.6), intento cuja gloriosa plenitude apa- e amada à que não era amada e no lugar ;
>
;

CHAMAR 51

em que se lhes disse : Vós não sois meu povo, que a situação social ou Professional em que
alimesmo serão chamados filhos de Deus vi- nos encontrou a vocação vem a ser a condi-
vo" (Rm 9.24s). Cristo é "para os que fo- ção nossa depois da conversão, a "nossa he-
ram chamados, tanto judeus como gregos, po- rança recebida do Senhor". No texto em re-
der de Deus e sabedoria de Deus" (ICo 1.24). ferência, conforme J. Héring (Commentaire
Sublinhemos finalmente outro aspecto da vo- du NT, VII, Neuchâtel et Paris, 1949, p. 54),
cação divina: é comunitária tanto como pes- "Paulo amplia o debate, afirmando a relativi-
soal. As epístolas declaram-no explicitamente. dade das situações humanas perante o reino
O cristão recebe vocação mediante a
Igreja, para Igreja e, por ela, para o mundo.
— de Deus seu ponto de vista resume-se em duas
:

palavras não mudar as condições humanas da


:

O chamado à salvação realiza-se somente me- existência que não se opuserem à realização
diante a integração do eleito na posteridade da vocação cristã... A própria escravidão dos
de Abraão (Rm 9.7), no Corpo de Cristo escravos, quando comparada à libertação da
(Cl 3.15). O eleito deve participar da edi- escravidão espiritual, é coisa de tão pouca
ficação do corpo de Cristo e do seu ministério monta que é preferível nada mudar". Mas tal
íEf 4.11-12). Temos a respeito o exemplo interpretação não resiste ao exame dos deta-
típico da vocação de Paulo (Gl 1.15; Rm lhes. O autor citado, fundando-se no parale-
1.5), bem apto para compreendermos como lismo do v. 17, conclui que "temos de acei-
se deve expressar a resposta do chamado. tar, como u'a maneira de realizar nossa voca-
ção individual de cristãos, a situação social
3. resposta do crente a) A fé. Fora da
A (celibato ou matrimónio, liberdade ou escra-
fé. não é percebido o chamamento de Deus vatura) na qual estávamos no dia da conver-
mas, uma vez percebido, êle suscita a "obe- são (...). Destarte, "o chamamento" não de-
diência da fé". "Pela fé Abraão, chamado, signa aqui a vocação à fé, e sim a necessidade
obedeceu e foi para o país que devia receber de a realizarmos mediante a aceitação de
por herança" (Hb 11.8). O evangelho mos- nossa condição individual e social". Em abo-
trando-nos como a pregação de Cristo foi um no. Héring nota a grande fortuna dêste texto
apêlo à penitência e arrependimento, aponta paulino na moral cristã, especialmente pro-
bem exatamente qual deve ser a resposta dos testante que fala sempre de "vocação" quando
crentes (Lc 5.32). Paulo, explicando aos Gá- trata do papel reservado aos cristãos (p. 55).
latas o que aconteceu com êle no caminho de
Embora sedutora, esta explicação foi rejei-
Damasco, declara "não consultei carne e san-
tada vitoriosamente por K. L. Schmidt (ibid.
gue" (1.16).
111, H. Cremer. Contraria o testemu-
492) e
b) Quem responde ao cha-
Ministérios.
nho unânime do NT onde "chamamento" sig-
mado, achar-se-á, ipso facto, comprometido na
nifica invariavelmente vocação à salvação. O
obra de Deus ou seja na edificação do corpo
de Cristo na terra, porquanto Deus chama em alcance ético do texto paulino, visto pelos Re-
vista de sua obra redentora. Ninguém pode formadores, não foi conhecido dos primeiros
atribuir-se algum título ou assumir alguma cristãos. Os Reformadores revalorizaram a
função de própria iniciativa e por si mesmo, situação social e a profissão humana do cris-
"senão quando chamado por Deus, como Arão" tão neste mundo. Para Lutero, a fé eleva o
(Hb 5.4). Mas seja qual fôr a vocação, ela humilde trabalho do camponês ou da dona de
convoca sempre para servir, quer nas rela- casa às alturas de uma obra santa. Calvino,
ções mútuas entre cristãos (Gl 5.13), quer
no —>ministério da Igreja sob as diversas
formas que ela instituiu (IPe 4.10s).
cuja doutrina inspira-se no conceito da sobe-
rania de Deus sôbre tôdas as coisas e da
divina glória à qual o cristão deve ordenar
c) A
condição do cristão no mundo. De tôda sua atividade. afirma que "temos de ob-
maneira mais geral, a vocação determina a servar diligentemente que Deus manda a ca-
condição do cristão neste mundo, fazendo-o da um de nós que considere a sua vocação
depender inteiramente de Deus em Jesus Cris- em tôdas as ações da vida (...) E para que
to. O vocacionado entra a pertencer a um ninguém saia imprudentemente dos seus pró-
povo "estrangeiro e peregrino sobre a terra" prios limites, Deus chamou estas condições
(Hb 11.13), cujos componentes têm de ma- de vida: vocações." Cabe perguntar se é Deus
nifestar sua eleição tanto através do com- quem chamou vocações às diversas condições
portamento individual como da vida social. de vida. Pois Calvino, evidentemente, amplia
(Ver IPe 2.9-10). o significado dêste têrmo e o seu uso, além
Tão é isso que muitos intérpretes
evidente dos dados bíblicos. A
ética dos Reformado-
e a maioria
das versões explicam a vocação res, entretanto, tira as consequências práticas
de que fala Paulo (ICo 7.17-24) como uma da doutrina evangélica salienta que o cha-
;

condição ou estado. Esta interpretação supõe mado divino ou vocação à fé manifesta-se me-
.

52 CIDADE

diante a obediência do crente unificando-lhe é. o lugar onde, pela vontade divina, o céu
todos os atos. se encontra com a terra, onde se celebra o
Otestemunho interno do NT convida-nos culto que para Israel atualiza a aliança cele-
pois mais bem a compreender o pensamento brada e garantida por Deus. Aí encarnou-se
de Paulo da seguinte maneira aquêle que :
na dinastia real de Davi, a promessa messiâ-
recebeu vocação, por preço foi comprado (v. nica. Destarte Jerusalém constitui o sinal visí-

23), portanto permaneça na vocação divina vel da salvação prometida a Israel e, através

(20) e ande conforme Deus o tem chamado de Israel, a todos os povos (Is 56.6-8; 60.1-9;
(17). Importam infinitamente mais a graça Zc 9.9-10). Cidade não por vontade dos ho-
e a promessa da salvação do que a condição mens mas por obra e eleição de Deus, Jeru-
exterior e provisória do crente. salém prefigura a cidade vindoura que Deus
Folga dizer que pode o cristão considerar, prepara encaminhando para ela o mundo por
através da fé, esta sua condição exterior como salvar.

"a sua herança recebida do Senhor". Pois é


2. Para o NT, que atesta a realização das
sempre no contexto de tal circunstância, lugar promessas e o fim das figuras, a cidade não
e momento, que êle terá de obedecer. Paulo
pode orar para que Deus torne os Tessaloni-
é outra senão o —> Reino de Deus. Com
efeito, esta é a nova Jerusalém, a Jerusalém
censes dignos da vocação divina (2Ts 1.11).
de cima (= celestial, Hb 12.22; Ap 3.12;
"Prisioneiro por causa do Senhor", escreve
Gl 4.26), bem fundamentada porque Deus é
também aos Efésios: "rogo-vos que andeis de seu arquiteto e edificador(Hb 11.10), a ci-
modo digno da vocação à que fostes chama- dade por vir (Hb 13.14), a cidade do Deus
dos" (Ef 4.1). Quer dizer que êles devem vivo (Hb 12.22). O Reino será de fato o que
portar-se de conformidade com as exigências
Jerusalém apenas anunciava mediante figuras
evangélicas (Fp 1.27), com a vontade divi-
emprestadas à realidade terrestre e usadas por
na (Cl 1.10), "viver por modo digno de Deus
Deus para prefigurar a realidade divina: será
que os chama para o seu reino e glória" (lTs
o lugar da presença onipotente de Deus e da
2.12).
sua salvação perfeita, a cidade segura e perma-
Em suma, Deus
pode valer-se de qualquer
condição,
sos, e da nossa
mormente dos
— —>
sofrimentos nos-
morte para manifestar o
nente porquanto na sua edificação só entraram
materiais feitos pela própria mão de Deus.

poder do Evangelho. Desta maneira é que Pau- 3. O povo de Deus espera esta cidade, e ela
lo estima- se "o prisioneiro de Cristo". Tam- vem marchando de encontro com êle. O povo
bém desta maneira devemos compreender, como fiel espera legitimamente, embora sem inicia-
os destinatários de IPe 2.19, 21, que "é graça tiva própria nem merecimentos, pois Deus é
suporiar tristezas e sofrer injustamente. .
quem outorgou o direito de cidadania e
lhe
porquanto para isto mesmo fostes chamados". criou para êle, em Jesus Cristo, um passado
para o qual possa apelar, e um futuro que
ED. DISERENS possa esperar. Temos nos céus a nossa cidade,
donde também aguardamos o Salvador, o Se-
CIDADE nhor Jesus Cristo (Fp 3.20; Gl 4.26: Jeru-
Apalavra cidade entrou na teologia devido salém nossa mãe) nossa vida presente é cons-
;

em grande parte ao significado que tinha, para tituída e determinada pela nossa integração ao
Israel, Jerusalém, a cidade por excelência. mundo futuro, cujas primícias nos têm sido
Folga dizer que o têrmo tem um sentido ab- reveladas e comunicadas já em Jesus Cristo.
solutamente diferente daquele que recebe da Cabe pois afirmar que os crentes atingiram já
tradição cívica arraigada na Grécia antiga. a cidade do Deus vivo (Hb 12.22), não por
Na tradição clássica, cidade significa a cria- ter vindo já o Reino mas porque, incorpo-
ção excelente e típica do génio humano que, rados à Igreja fundada em Cristo, êles possuem
racionalmente, domina e organiza a vida e as garantias do Reino e contemplam já agora
as relações humanas na cidade é que o ho-
; os primeiros sinais da manifestação gloriosa
mem dá feição ao seu mundo, formula as suas da salvação. A Igreja vai caminhando entre
leis sujeitando-se a elas livremente: membro o passado e o futuro, entre ambas as dádivas
da cidade, êle é plenamente homem, em posse
de si mesmo e realizando seu ideal humano.
CIDADE. Aí ergue-se o
é outra senão o — —> templo, isto
Reino de Deus. Com
Jerusalém é também cidade, mas em sentido de Deus. Atestam-no muito bem os dois sa-
absolutamente diverso. Na expressão de Je-
sus, ela é "a cidade do grande Rei" (Mt 5.
cramento: o —> batismo que mergulha na
morte de Jesus Cristo e alicerça o crente
35). Visto que Deus habita nela, presente em sobre o passado feito por Deus ("pelo sangue
meio de seu povo, ela é, por execlência, A de Jesus Cristo fostes aproximados — cons-
CIDADE. Aí ergue-se o —> templo, isto tituídos beneficiários — das graças concedidas
:

CIRCUNCISÃO 53

a Israel": Ef 2.11-13). Firmemente baseada tria superior (Hb 11.16), é como encontrará
sobre o passado, a Igreja reunida para a san- também a verdadeira fidelidade às pátrias ter-
ta Ceia ( —>
Eucaristia) vigia e exulta na
,

espera da cidade que vem marchando de en-


restres : José, forasteiro no Egito, achará sal-
vação não apenas para si e os seus, mas tam-
contro com ela ("anunciais a morte do Se- bém para o Egito Abraão, forasteiro em
;

nhor, até que êle venha": ICo 11.26). Canaã, leva em si a salvação de todas as na-
ções. Assim a Igreja, forasteira, porém não
4. Oriunda da cidade vindoura, a Igreja não isolacionista, existencialmente solidá-
sabe-se
deve instalar-se no mundo nem tornar a viver ria com o mundo e responsável por
inteiro,
nas seguranças humanas. "Não temos aqui todos. Não se retira da vida pública. Os cris-
cidade permanente (declaração que, longe de tãos têm de orar pelas autoridades, porquanto
conter uma lamentação resignada sobre a não poderia a Igreja cumprir plenamente a
brevidade da vida, constitui o grito da fé que sua missão para com todos, se o país fôsse
exclusivamente em Deus reconhece o seu fu- entregue à corrupção e desordem ou se ela
turo), mas buscamos a que há de vir" (Hb
13.14). Estamos no mundo como peregrinos
mesma fôsse acossada pela
(lTm 2.1-8; IPe 2.13-17; Jr
—>
perseguição
29.7). Contudo,
cm trânsito (IPe 1.17; 2.11), forasteiros nes- a lealdade da Igreja não é incondicional: dá a
te mundo, porém não do mundo (Jo 17.14s).
César o que é de César, mas a Deus deve dar
Abraão deixando sua cidade para peregrinar o que é de Deus (Mt 22.21), proclamando as-
como forasteiro em Canaã, e os demais pa- sim que as autoridades da cidade terrestre são
triarcas, são o tipo da Igreja e o modelo dos
sujeitas ao Rei da cidade vindoura.
crentes (Hb 11.9s). Abraão mora na terra da
promessa, porém sob o amparo móvil da ten- CHR. SENFT
da, sem ainda tomar posse do país. Pois se
arraigasse, não mais viveria da promessa e da
CIRCUNCISÃO
fé, sua vida não mais seria uma procura da Operação cirúrgica que consiste em cortar o
cidade celestial preparada por Deus para êle prepúcio. Pratica-se entre os judeus desde
e os seus (Hb 11.16). tempos remotíssimos em cumprimento de pres-
Deus não exige do crente que fuja para crições legais (Gn 17.12s; Lv 12.3). Tôda
fora do mundo mas que viva sujeito às leis da criança masculina circuncidar-se-á ao oitavo
cidade de que Deus o fêz cidadão. Nesta cida- dia após o nascimento (Lc 2.21).
cerimo- A
de é que se encarna o Reino, realizam-se os nia de caráter religioso celebra-se na sinagoga
direitos de Deus sobre o homem, efetuam-se em presença da comunidade que ora e entoa
a redenção e o juízo vindouro. "Portai-vos hinos litúrgicos o pai do menino e o "mohel"
;

com temor durante o tempo de vossa peregri- (=o circuncidador) executam o rito confor-
nação" (IPe 1.17). Não somos meninos ami- me leis e com instrumentos bem determinados.
mados, nem podemos impunente desprezar a A circuncisão não é exclusiva dos judeus:
vontade do Pai, vivendo na incredulidade nos- :
numerosos povos praticam-na até hoje em
sa vida tôda tem de anunciar que somos res- muitos lugares da terra, calculando-se em 200
gatados não pelos bens perecíveis que o mun- milhões o número dos circuncidados convém :

do dá mas pelo sangue de Cristo, por Deus mencionar, entre outros, os árabes. O estudo
que julga a incredulidade e oferece-nos, na e observação dos diversos povos permitem de-

sua graça, nossa única alternativa de porvir. duzirmos melhor o sentido específico do rito
Forasteiros em trânsito, abster-nos-emos das êste, antigamente, podia ter um sentido aná-

cobiças carnais que pelejam contra o espí- logo em Israel. Os numerosos textos do VT.
rito (IPe 2. lis; Cl 3.4-6); afastar-nos-emos explicitamente relativos à circuncisão, for-

de qualquer empresa que, a pretexto de dar- necem um apanhado das idéias arcaicas e das
nos vida plena e salvação, arrasta-nos para modernas que, no correr das idades, acompa-
a morte. Assim fazendo, ambicionamos não nham o rito.
apenas não decair da graça mas guardar-nos Qual fôra, no Israel antigo, a significação
sem equívocos aos olhos dos pagãos, perma- primeira? Heródoto e outros historiadores
clássicos explicavam a ablação do prepúcio
necendo os estrangeiros, os inassimiláveis, que
atestam o Reino em marcha. como u'a medida higiénica e sanitária. Hoje.
porém, parece-nos mais verossímil ter sido a
5. Portanto, as relações entre a Igreja e o circuncisão um rito de iniciação mágica ou reli-
mundo não são apenas negativas. presençaA giosa.Remonta a tempos antiquíssimos. As pe*
da Igreja, sua vida claramente definida pela dras afiadas ou facas de pedra (Ez 4.25; Js
pertença à cidade futura, são o julgamento do 5.3) do ritual, insinuam uma época anterior à
mundo, o desmentido às tentativas que êle faz idade de bronze.
de achar em si próprio sua razão de ser. Ade- Tratou-se talvez originalmente de um rito
mais, conservando-se a Igreja fiel à sua pá- de puberdade ou de matrimónio: acaso antes
> ;

54 COBIÇAR

de casar-se e para habilitar-se plenamente à aliança outorgando uma


posteridade numerosa
função varonil, devia o mancebo submeter-se e abençoada; desdetroca os nomes de
já,
a uma determinada série de provas iniciató- Abrão e Sarai em Abraão e Sara. Doravante
rias tal como a circuncisão. Acompanhavam-se a circuncisão constituirá a marca dos ver-
estas de sacrifícios sangrentos para a divin- dadeiros israelitas, distinguindo-os dos estran-
dade conceder fecundidade ao casal. Vestígios geiros e dos pagãos. Entretanto, só paulati-
dêste primeiro sentido acham-se no VT. As- namente aparecerá a observância religiosa do
sim, Gn 34.14-17 subordina o matrimónio en- rito dentro da História do povo de Deus,.
tre descendentes de Jacó e estrangeiros à cir- Muito cedo arraigou a prática de circuncidar-
cuncisão dos últimos. Os termos que, na lín- se, porém apenas tardiamente determinou a
gua hebréa, significam "noivo" e "sogro" (Ha- teologia o alcance espiritual do rito. Antes do
tan e Hoten), derivam de um radical signifi- exílio, Israel vivia rodeado de povos semitas
cando "cortar"; êste mesmo radical no árabe todos praticavam a circuncisão, exceto os filis-
atual ainda significa "circuncidar". O sogro teus, sendo reservado especialmente a estes o
circuncidava seu genro no momento do casa- epíteto de "incircuncisos" (=pagãos), como
mento. Não tem outra explicação o curioso vemos em ISm 14.16; 17.26; 31.4. Consta
episódio da circuncisão do filho de Moisés também que, na primeira legislação (Ex 20-23
por Zípora, quando o Senhor atacou e quis e 34) e no próprio Decálogo, a circuncisão
matar a Moisés (Ex 4.24-26). História A nunca é mencionada como prescrição. Somente
primitiva, acaso, era outra Moisés incircunsi-
: depois do exílio, quando Israel acaba de mo-
so casou-se com uma midianita (os midianitas rar entre povos incircuncisos, na Babilónia e
praticavam a circuncisão), e, por não se ter na Pérsia, ela se torna uma obrigação religiosa
submetido a esta prova, quase que seria morto e um compromisso essencial (superior à obser-
pela divindade. Então Zípora circuncidou-o vação sabática) para todo o prosélito Judeu.
exclamando conforme a fórmula ritual "Tu : Nos alvores do cristianismo, introduziu-se a
és para mim um esposo de sangue" (vers. 26). distinção entre prosélitos da porta, que podiam
A tradição ulterior, não compreendendo bem integrar-se à sinagoga sem sujeitar-se a tôdas
o sentido do episódio, transpôs sobre o filho as prescrições legais, e prosélitos da justiça,
de Moisés a circuncisão, substituindo o filho submetido a tudo, particularmente à circun-
ao pai. Destarte, aliás, explicar-se-ia e justifi- cisão.
car-se-ia a circunscisão das crianças quando A circuncisão, marca de pureza ritual e ra-
ela deixou de ser um rito matrimonial. contudo e desde
cial dos judeus autênticos,
De maneira mais circuncisão pa-
geral, a épocas remotas, foi tida por um ato de al-
rece ter sido um rito de iniciação a uma função Explica-se
cance mais simbólico do que real.
ou a uma responsabilidade importante do va-
assim porque a Escritura fala em árvores
rão; assim explicar-se-ia o relato de Js 5.2-9:
fruteiras incircuncisos (Lv 19.23), de fruto
A circuncisão não é exclusiva dos judeus;
car-se-ia a circuncisão das crianças quando reputado impuro; em circuncisão do coração
De maneira mais geral, a circuncisão pa- (Dt 10.16; 30.6; Jr 4.4), das orelhas (Jr
Josué mandou circuncidarem-se todos os filhos 6.10), dos lábios (Ex 6.12), para significar
de Israel antes de conquistar Canaã, num lugar a pureza do coração, a obediência, a fidelidade
denominado Gilgal. O nome
da colina Areloth a Deus... sendo esta circuncisão mais impor-
significa em hebreu prepiicios. Igualmente, à tante que a da carne (Jr 9.25), pois ela é a
noite pascal que iniciou o êxodo do Egito, marca da verdadeira fidelidade do crente in-
Deus mandou que fossem circuncidados todos corporado ao povo escolhido. Os pagãos são
os incircuncisos (Ex 12.44). incircuncisos de carne e de coração (Ez 44.7).
A significação capital do rito na velha alian- Neste sentido simbólico é usada a palavra no
ça, porém, é-nos fornecida no relato da sua NT, em particular por São Paulo, explicando
divina instituição (Gn 17.9-14
23-27). e A que os verdadeiros filhos de Abraão são cir-
circuncisão é, daí por diante, o rito da
aliança, a marca de pertence e de incorpora-
— cuncisos de coração (Rm 2.25-29; ICo 7.19;
Gl 5.2-6) e que há circuncisão verdadeira so-
ção a uma família, raça ou povo. Esta nar- mente em Cristo (Fp 3.2-3; Cl 2.11.15).
rativa (tradição menos antiga da referida nos F. MICHAELI
cap 12 e 15 do Gn) mostra-nos a aliança en-
tre Deus e Abraão selada, no homem, pela COBIÇAR
circuncisão: todo macho, quer seja filho da
casa, quer estrangeiro comprado por dinhei- 1 . Não reconhece a Bíblia ao homem natura-
ro, levará esta marca e todo varão incircun-
; lista nem legítima os seus desejos todos, as
císo será excluído do povo como violador da suas paixões e cobiças, mas encara-o a partir
aliança (v. 14). Deus, por sua vez, selará a da vontade revelada de Deus,
CONFESSAR 55

Já no VT, o teor do décimo mandamento CONFESSAR


mostra que o pecado não está apenas nos atos
do homem, mas no seu coração e vontade. Confessor significa declarar-se formal e vali-
damente, em relação concreta com Deus. A
2. O décimo mandamento (Ex 20.17; Dt confissão é a expressão pública da fé. Median-
5.21) enumera os diversos objetos da cobiça te ela é que a fé se torna compromisso. Q
humana mulher, servidores, gado, casa do
:
mero testemunho da fé dirige-se aos homens,
próximo. A concupiscência sexual desempenha mas a confissão perante os homens atinge n
grande papel (Gn 39.7; 2Sm 11.2; Jó 31.1, 7; próprio Deus num movimento espontâneo de
Pv 6.25; Mt 5.28; Rm 1.24), bem como a gratidão e louvor. Mediante a confissão, u
cobiça das propriedades (Mq 2.2), do ouro povo crente —
e cada fiel em particular com- —
e da prata (At 20.33). promete-se ante o mundo e obriga-se ao ser-
Quem coração (Rm 1.24), a
cobiça é o viço de Deus. Confessar não é proferir uma
carne (Rm
o corpo (Rm 6.12), os
13.14), opinião pessoal. A confissão visa o absoluto,
olhos(Gn 3.6; Jó 31.1; ljo 2.16), a alma apela para a exigência do Deus vivo na solu-
(Ap 18.24) porém não o ôlho mas todo o
; ção dos nossos debates humanos. Não é tam-
homem é quem peca (Mt 9.47). pouco a exposição de uma doutrina eterna e
anónima aquêle que confessa se confessa, con-
:

3. O
pecado não está nos objetos cobiçados, fessa seus riscos e perigos na realidade de uma
mas no homem concupiscente "o que sai do :
situação bem determinada.
homem, isso é o que o contamina" (Mt 7.20-
23) A concupiscência demonstra que o
.

homem é "carne", que êle não ama a Deus


>> — 1 No
. VT
"confessar" possui os três significa-
dos seguintes: a) Louvar, celebrar; b) pro-
de todo o seu coração e de tôda a sua alma e clamar (ao Senhor, ao Libertador) c) re- ;

de tôda a sua força (Dt 6.5; Mt 22.37), mas conhecer as próprias culpas. Colocando-nos
que realiza contra Deus o seu próprio querer. na perspectiva do VT, veremos a relação íntima
Porque é a finalidade da Lei ( Lei) mani-
festar êste caráter do homem, pode ela tôda
—> entre êstes três atos impossível louvar a Deus
:

se não fôrem proclamadas suas obras reden-

ser resumida na proibição de cobiçar (Rm toras. Como, porém, cantar a redenção senão
7.7). Pois ceder às cobiças equivale a viver mediante uma recapitulação sobre a miséria e
como os pagãos (IPe 4.2; Ef 4.17), ao modo o pecado de que Deus nos libertou? Eis porque
do mundo (Tt 2.12; ljo 2.16). Os textos encontramos os três atos associados em muitas
contra a cobiça podem ser referidos todos às orações (Gn 32.9-12) e salmos de gratidão e
famosas oposições de Paulo arrependimento (22; 32; 40; 51; 116; Is
"carne-Espírito" :

38.9-10) o crente narra a sua libertação, des-


(Ef 2.3; Rm 8; Gl 5 e 6), "cousas terrestres- :

creve a sua miséria, celebra a misericórdia do


cousas celestes" (Fp 3.18-20; Cl 3.1-9).
Senhor e, absolvendo um sacrifício, compro-
4. A cobiça não vem de Deus (Tg 1.13-15), mete-se a proclamar perante todos a divina
mas habita em cada qual
com seu poder de bondade. Essas confissões do VT, individuais
corrupção e escravidão (Ef 4.22; Tt 3.3) ;
ou coletivas, públicas, litúrgicas ou espontâ-
provém do "mundo" e faz-nos perecer com êle neas, celebram-se ordinariamente no templo de
(ljo 2.15-17). Quem ceder à cobiça, corre Jerusalém. Jó 33.26-28 conserva-nos uma des-
para a morte (Tg 1.15). crição sumária do ritual acostumado.

5. A cobiça revela insatisfação e revolta 2. A palavra original do NT que nós, latinos,

(Tg 4.1-4). O
chamado a con-
crente está traduzimos por "confessar", significa radical-

tentar-se com aquilo que Deus dá (Fp 4.11-13; mente "entrar em conciliação, concordar sobre
Hb 13.5-6), sabe confiar em Deus nas penú- uma base comum" : a confissão implica, de fato,
que o confessante entre na plena adesão à von-
rias e na pobreza (Hb 13.5; Mt 6.25-34;
tade de Deus. A palavra, contudo, herda da
Fp 4.6-7; IPe 5.7). Restaurado no amor de
tradição vetero-testamentária a significação
Deus e do próximo (Rm 13.9-10), o cristão complementária de "louvar, celebrar" (como
está libertado das cobiças como de todos os
vemos em Mt 11.25; 15.19). Rm
Temos
outros pecados, pelo Espírito Santo que Cristo
assim, também no NT, uma confissão, ato de
faz habitar nele. Mas esta libertação perma-
louvor além de mera conciliação de opiniões
:

nece subordinada à fé e à perserverança. Daí entre dois parceiros iguais, além da proclama-
as exortações apostólicas a não mais viver ção de um consenso humano, esta confissão
como antanhos (Ef 2.3; 4.5; Gl 5.16, 24, 25; cristã será, pois, a aceitação esclarecida, con-
IPe 1.14-15; 4.1-4), mas como resgatados vencida, agradecida e dócil, de uma vontade
(ICo 6.20) e filhos da luz (Ef 5.8). que adoramos. Confessando oramos como é
conveniente na presença de um Senhor onipo-
F. BAUDRAZ tente e misericordioso.
-

56 CONHECER

3. A
confissão tem dois objetivos: visa Jesus entre o Criador
e a criatura salva. con- A
Cristo e visa os pecados do confessante. Cristo fissão é um
ato gratuito que pode acarretar
e o pecado são dois aspectos de uma só e mes- consequências desagradáveis (Jo 12.42).
ma revolução: Cristo veio trazer o perdão Confessar (bem como não confessar,
c)
dos pecados. Portanto, confessar a Jesus calar, negar) tem um alcance escatológico, por-
Cristo implica reconhecer nossas culpas e, por quanto repercute no último juízo e na salvação.
outro lado, não podemos confessar nossos pe- Esta perspectiva, implicitamente indicada já
cados utilmente e arrepender-nos com fruto por João Batista, aparece bem luminosa em
senão "segundo Deus" (II Co 7.9-11. Qualquer Jesus Cristo (Mt 10.32; Lc 12.8; Ap 3.5.
outra tristeza é perfeitamente estéril) O velho .
Paulo lembra que Jesus será o juiz II Tm :

homem, morrendo, confessa pecados a seus ;


2.11-13). Seremos acusados por Satanás pe-
nova criatura que nasce confessa Jesus Cristo
tomando posse dela.
rante o tribunal de Deus ( Diabo) e pre-
cisados da defesa de Cristo, nosso advogado e
—>
a)Confessar Jesus Cristo significa confes- redentor, que não se ruboriza chamando-nos de
sar, um sistema religioso, mas um nome,
não "irmãos". Como negaremos, pois, defender
uma pessoa. A
confissão no reassume NT agora o seu nome diante dos homens? Paulo
assim, nos seus próprios termos, a confissão salienta esta perspectiva escatológica, ensinan-
do VT "Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus
:
do que a confissão de bôca conduz à futura
é o único Senhor" (Dt 6.4), precisando ape- salvação (Rm 10.10,13) e ressurreição (II Co
nas o nome deste Senhor. Nós confessamos 4.13-14). Não é, pois, a confissão um suple-
"Jesus Cristo", "o Senhor Jesus" confessamos ; mento à nossa fé, mas a manifestação e a prova
"que Jesus Cristo é o Senhor" (Fp 2.11), "o de nossa fé (Jo 12.42) em vista do último
Filho de Deus" (Mt 16.16); confessamos "o dia. A
comunidade confessante prefigura a
evangelho de Cristo" (II Co 9.13), "o nome comunidade dos tempos derradeiros (Rm
de Deus" (Hb 13.15), "nossa esperança" (Hb 14.11-12; Fp 2.11) cujas confissões prenuncia
10.23). Reconhecer o senhorio de Jesus Cris- o Apocalipse (5.9s; 11.15...).
to e saber o seu nome, eis a suma de quanto d) A
confissão é feita perante os homens,
importa saber. Portanto a confissão, uma vez quer em particular, quer publicamente, ora na
formulada, serve para símbolo (= resumo) da assembléia dos fiéis (I Co 12.3) ou ante a
doutrina cristã confiada à nossa fidelidade Igreja universal (II Co 9.13), ora perante a
((I Tm 6.12; Hb 3.1 —>
Doutrina), mor-
mente contra os hereges (I Jo 4.2-3; II Jo
multidão ignorante e hostil ou diante de um
tribunal (frequentemente "confessor" tornar
7-9) Usaremos esta arma não por arrogân-
.
-se-á sinónimo de mártir) O gosta muito
. NT
cia, mas com humildade verdadeira.
da expressão "falar abertamente, livremente,
b) A pecados, já usada no
confissão dos com firmeza": assim é que deve falar a fé.
VT, renovada Batista (Mc 1.5),
por João e) A
confissão é a obra do Espírito Santo
acompanha o ministério de Jesus (Lc 5.8; 19.8. (Mt 10.20; I Co 12.13; I Jo 4.2s). Ela é a
Ver em particular as parábolas: Lc 15.21; confissão de uma comunidade continuada, e
18.13) e dos apóstolos (Jo 20.23; At 19.18). não de indivíduos isolados, pois sua missão é
Os apóstolos não deixam de recomendá-la de transmitir o conhecimento de fatos históri-
(I Jo 1.9; Tg 5.16). si. Em
como prática cos cuja aceitação integra novos membros ao
religiosa, não tem qualquer sentido toda a sua :
corpo da Igreja. A
confissão é indicada espe-
significação lhe provém, como reflexo ou re-
percussão, do renovo trazido por Cristo.
cialmente no —>
batismo (At 8.37; 10.44-46;
ver Mt 3.16-17) e na ordenação ao mi- —>
Aquele que confessa seus pecados aponta para nistério (provàvelmente I 6.12). Tm
o perdão de Cristo, pois crê que Cristo tem
vindo e foi constituído o Senhor inclusive do C. BIBER
tempo passado e perdido.
CONHECER
4. As
perspectivas da confissão, a) con- A
fissão é dirigida a Deus, porquanto é a resposta
Para determinar o significado específico de
"conhecer" na Bíblia, convém comparar a no-
ao seu chamado faz-se logo oração e louvor
;

ção hebréa do conhecimento com a grega clás-


(Mt 16.16; Fp2.11; Hb 13.15). Não obstan-
te, os homens podem ser testemunhas e tam-
sica. As precisões assim conseguidas permi-
tirão interpretarmos os dados assaz complexos
bém ministros
extraordinários de uma decla-
do VT.
ração dirigida a Deus.
b) A confissão é um ato revelador Embora 1 . O conhecimento grego e o conhecimento
não destinada primordialmente a persuadir, hebreu. O conhecimento grego (e seu derivado:
amiúde persuadirá e outras vezes escandalizará o conhecimento científico) é essencialmente in-
(Mt 10.32-39; Jo 9.22). Demonstra ao mun- telectual a realidade conhecida, pessoa ou
:

do a conciliação básica possível, reencontrada, coisa, nunca deixa de ser um objeto, se bem
;;

CONHECER 57

que o conhecedor toma posse dêle por meio obediência a Deus (Is 11.2; SI 9.11; 36.11)
dos sentidos, em particular da vista. Esta e que quer tudo que Deus quis primeiro.
possessão faz-se tanto mais completa quanto
a idéia adequa-se melhor ao objeto conhecido.
2. Conhecer no NT. A noção neo-testamen-
A fim de se anexar bem o objeto, deverá o tária do conhecimento descansa essencialmente
sóbre o VT. Conhecimento = reconhecimento
sujeito guardar em face dêle a maior distância
dócil da obra divina, com a diferença de que
possível, pois dominá-lo-á intelectualmente na
medida em que se contente com observá-lo. esta obra já se cumpriu em Jesus Cristo (Lc

Para o grego, conhecer é essencialmente saber 10.11; At 2.36; I Co 2.8; Fp 3.10) e que,
e o seu contrário é ignorar ou errar.
embora terminada, fica ainda escondida para
ser gloriosamente revelada ao fim dos tempos
No nível do senso comum, o conhecimento
a fim de salvar os crentes (Mt 24.32-33 par).
hebreu não exclui uma realidade análoga, po-
rém ultrapassa em procura dum maior Realis- Se o homem tem o poder de conhecer, deve-se
isso exclusivamente ao fato de que Deus pri-
mo. Conhecer, na perspectiva do VT, signi-
fica, além de saber e observar, principalmente
meiro conheceu o homem, ligando-se a êle (Gl
encontrar, experimentar e participar. Trata-se 4.9; I Co 13.12). Apareceu, entretanto, no
menos de tomar posse do objeto mediante a NT, dois matizes ignorados do VT, e exigidos
idéia, e mais de deixar-se encontrar por êle,
pela nova situação.
de deixar uma realidade invadir na intimidade Primeiramente, depreende-se de certos textos
do "sujeito" conhecedor arrancando-o à sua (Rm 1.18-23; I Co 1.21; Gl 4.8-9; Rm 2.20;
autonomia. I Tm 2.4; II Tm 2.25; 3.7; Tt 1.1, etc) o
Neste sentido dirá o VT que conhece o ho- conceito conhccimento-saber Dirigido exclu-
.

mem o sofrimento e a doença (Is 53.3), a pri- sivamente aos israelitas, o VT podia descuidar
vação de filhos (Is 47.8), o poder de Deus e o aspecto intelectual presumia com razão que
:

a sua vingança (Jr 16.21; Ez 25.14) ;


expres- as façanhas divinas eram teoricamente sabidas
sões bem pouco inteligíveis para um ouvido do povo e estimava de primordial necessidade
grego. O homem conhecerá a mulher (Gn 4.1 tirar as suas consequências morais. As coisas
Jz 19.25) ; a mulher conhecerá o varão (Nm agora mudaram a mensagem apostólica des-
:

31.17). O uso, generalizado e absolutamente tina-se também aos pagãos, tornando-se neces-
correto, da expressão bíblica "conhecerem-se os sário dar a êstes o conhecimento —
inicialmen-
esposos", fêz olvidar que se trata nesta locução te intelectual — dos fatos divinos que ignoram.
apenas de um exemplo particular de uma signi- Os textos, porém, não deixam de recalcar que
ficação muito mais geral. êste conhecimento não deve ficar teórico, pois
À mera observação das coisas ou pessoas ficaria estéril (I Co 13.2,8,9,12). Saber a his-
assimiladas pela mente mediante a idéia, o co- tória divina é a condição necessária, embora
nhecimento bíblico acrescenta, pois, uma nova insuficientemente, do conhecimento verdadeiro,
dimensão, o tempo : no tempo desenvolve-se sendo êste, em qualquer hipótese, uma dádiva
uma História que requer do sujeito conhecedor divina comunicada pelo Espírito Santo (I Co
um compromisso perante o objeto conhecido. 12.8) e recebida pela fé ativa na caridade (Fp
Para o VT, conhecer significa estar compro- 1.9-11; Fm 6).
metido num evento e consentir no compromisso. Emsegundo lugar, note-se que o pensamento
Não apenas ato da inteligência, mas também apostólico a respeito do conhecimento (já em
ato da vontade; de tal modo que o contrário Paulo, mais em João) elaborou-se contra o
do conhecer não se reduz só à ignorância e gnosticismo cujo vocabulário não teme empres-
ao êrro, mas culmina em desobediência, rebel- tar frequentemente. O gnosticismo é uma cor-
dia e autonomia, isto é, em —> pecado. rente filosófico-religiosa anterior ao cristianis-
Tal noção do conhecimento atinge seu alcance mo e, mais tarde, grave ameaça para êle. À
totalnas relações entre Deus e seu povo, Israel. diferença da epistemologia clássica, considerava
"Deus conhece Israel" não significa somente o conhecimento não como o fruto natural da
que Deus sabe o que seu povo é, obra ou pensa, observação objetiva, mas como uma iniciação
mas que Deus se compromete com Israel, como celestial comunicando ao iniciado capacidades
o noivo com sua noiva, criando-se um laço mú- espirituais superiores à razão. Combatido pelos
tuo para uma História em comum (Os 13.5). herdeiros do pensamento clássico em nome da
Êste conhecimento, especificamente bíblico e razão, será combatido pelos cristãos em nome
teológico, implica forçosamente em
e —> —> eleição
rejeição (Am 3.2). "Israel conhece a
da fé. Na realidade, o gnosticismo tinha o
conhecimento por uma sabedoria misteriosa-
Deus", não significa apenas que Israel sabe que mente infusa no iniciado, tornando assim inútil
"há" um Deus, mas que aceita a —> aliança e
o compromisso com Deus (Os 2.20), que re-
a fé. Paulo (I Co 8.1-3) e João (através de
seu Evangelho e de suas epístolas) lembram
conhece os grandes feitos de Deus (Dt 11.2; que o conhecimento não é alguma faculdade
Is 41.20; Os 11.3), que tributa louvor e acrescentada ao homem para seu uso arbitra-
:

58 CÓLERA CRESCER

rio,mas que provém do ato de fé na revelação Nm 14.18; tardio em irar-se de Ne 9.17), mas
histórica deDeus em Jesus Cristo, cumprimen- quando observa coisas que lhe desagradam ou
to da História de Israel. Fé e conhecimento percebe a impiedade, acende-se-lhe a ira (Nm
promovem-se mutuamente (Jo 6.69; 8.31-32; 11.1; Rm1.18; I Ts 2.16), e quando se ira,
10.38; 16.30; 17.7-8, etc), sem que jamais ninguém pode subsistir a sua vista (SI 76.7;
possa o conhecimento emancipar-se da fé Na 1.6; Ap 6.17). A
cólera divina acende-se
(
—>/<?), nem o homem arrancar-se da His-
tória sagrada para reintegrar-se à sua História
contra determinada pessoa (II Cr 25.15), con-
tra Israel prevaricador (Êx 22.23-24), contra
própria. O conhecimento evangélico não é a um país e seus habitantes (Dt 29-27-28). É
propriedade de um iniciado, mas o reconheci- na sua ira que Deus dá um rei aos israelitas
mento de um crente. (Os 13.11). Derrama o seu furor sóbre as
J. L. LEU BA nações (SI 79.6), dando-lhes a beber o >ca-
lice cheio do vinho de seu furor (Jr 25.15;

CÓLERA Ap 14.10). O castigo dos réus acalma a ira
divina (Nm 25.4; Js 7.26); às vêzes, porém,
A Bíblia fala mais da cólera de Deus do que tarda esta em desviar-se (Jr 4.8; 23.20;
da ira dos homens, sendo esta, porém, usada 30.24). Quando a ira de Deus se dirige con-
por Deus como modêlo para descrever a ira tra os pecadores endurecidos, cumpre neles o
divina. Comecemos pelo modêlo. conteúdo das fórmulas de —>
maldição (Dt
29.19-20); atinge os filhos de ira (Rm 9.22;
1. A humana. Os homens da Velha
cólera
Cl 3.6; Ef 2.3; 5.6). Quem ler descrições
Aliança notaram já que o nariz do irado se
dilata e suas narinas fremem. Daí a expressão
como Is 5.25; 30.27; Am
1.2 ou Na 1.2,
compreende que Iavé, no seu furor, provoca
"o seu nariz se inflamou" por "encolerizou-se",
atos que êle mesmo reprova (II Sm 24.1-17),
e o substantivo "nariz" ou "narinas" para de-
castiga a iniquidade dos pais através dos filhos
signar a cólera. Comparemos, para nossa uti-
(Is 20.5; 34.7), expulsa os habitantes de um
lidade, os dois exemplos a seguir, um aplicado
país (Dt 29.27) e os extermina (Is 22.24;
ao homem, outro a Deus
Jr 10.24).
"O nariz de Jacó se inflamou contra Raquel"
(Gn 30.2). b) A ira divina do último dia. Os textos
indicam que a cólera de Deus pode acender-se
"O nariz de Iavé se inflamou contra Moisés"
qualquer dia. Virá, porém, um dia expressa-
(Êx 4.14).
mente reservado à manifestação desta ira, o
A O
identidade é evidente.
tório da ira humana consta
caráter transi-
bem em Gn 27.45;
dia de Iavé, o dia do —>
juízo, o dia da
cólera, da vingança e da indignação (Ez 7.19;
mesmo quando a agitação humana, fonte da
Sf 1.15,18; Mt 3.7; Lc 21.23; Rm 2.5; I Ts
cólera, somente cessará na morada dos mortos
1.10; Ap 6.17).
(Jo 14.1; 3.17).
Entretanto, encontra-se Iavé ligado pela sua
O cristão e, com mais razão, o bispo evitará
a ira (Lv 19.18; Ef 4.26,31; Tt 1.7). promessa de não mais irritar-se (Gn 8.21-22;
Também o Diabo
Is 54.9; I Ts deixa-se
5.9) aplacar
cólera" (Ap 12.12).
é visto "cheio de grande
Babilónia tem dado a com —> sacrifícios (Gn 8.21
;

I Sm 26.19)
sobretudo Jesus Cristo será quem subtrairá da
;
;

beber a tôdas as nações do vinho que suscita


a ira divina" (Ap 14.8). De modo geral, com ira divina os seus crentes (Jo 3.36; 5.9; Rm
I Ts 1.10).
seus pecados, o homem irrita a Deus, provo-
cando sua cólera (I Rs 16.13; Jr 32.32). Relações
3. entre a cólera divina e a ira
humana. Mesmo quando a ira dos homens não
2. A cólera divina. O exemplo do parágrafo
é forçosamente pecado (Ef 4.26), ela não obra
anterior mostrou-nos dos têrmos
a identidade
a justiça de Deus (Tg 1.19), porquanto pro-
que pintam a cólera de Deus e dos homens.
vém de um mero homem (embora seja êle um
A despeito, porém, das muito realistas descri- Davi. Ver II Sm 6.8: Davi irritou-se) Mas .

ções (como no SI 18.8-16), a cólera divina


a cólera divina é sempre a manifestação da
é absolutamente diferente da humana.
divina justiça (Rm 1.17-18).
A
cólera de Deus é santa, sem sombra de
pecado. Sendo livre (Os 11.9), ela se exerce R. MICHAUD
contra o pecado. Jesus animou-se desta cólera
quando observava o auditório de coração endu- CRESCER
recido (Mc 3.5). A
ira divina é motivada
Assim como o grão semeado na terra aspira
pelo amor (Dt 6.15; SI 79.5), pela paixão de
ao desabrochamento da planta, a obra de Deus
Deus pelos seus.
no mundo tende para a sua plenitude final. A
a) A ira divina pode manijestar-se qualquer obra de Deus está colocada sob o signo do cres-
dia. Iavé é lento para a ira (= longânimo de cimento, isto é, do desenvolvimento progressivo
: !

CRESCER 59

de grande, de imperfeito para


pequeno para
para consumado.
3. crescimento da Igreja. A
O Igreja
agente escolhido por Deus para fazer o
o
—>
perfeito, de iniciado é
ABíblia usa copiosamente a noção de pro- Reino crescer entre nós. O crescimento do Rei-
gresso, nunca porém para designar qualquer pro- no está relacionado com o progresso da Igreja.
gresso de um estado natural para um estado Ora, ela tem de crescer segundo duas modali-
sobrenatural como se fôsse possível aceder à dades diferentes, embora complementares a :

salvação a custo de esforços constantes ou de quantitativa e a qualitativa.


virtudes cada dia maiores. Embora anunciando Deve a Igreja crescer qualitativamente, isto
a vinda e difusão do Reino no mundo, a Bíblia é, manter-se cuidadosamente pura e fiel no re-
ignora todo conceito 'progressista" do progres- moinho das astúcias e seduções mundanas. Se
so não acredita na evolução natural do mundo
: almejar crescer até a estatura perfeita do Cristo,
para uma hipotética idade de ouro e denega cuidará muito de tender à unidade da fé e do
ao homem e ao mundo a faculdade de realizar conhecimento do Filho de Deus, e professar a
a própria salvação. verdade na caridade (Ef 4.13-15). Êste cres-
O crescimento do Reino, da Igreja e do in- cer em Cristo implica em que a Igreja perse-
divíduo cristão, é sempre um crescimento den- vere bem atenta às próprias estruturas, porquan-
tro da ordem da graça (2Pe 3.18). Há progres- to somente um corpo bem coordenado e sóli-
so, porém êste progresso não parte da natureza do é suscetível de ser edificado (Ef 4.16).
para a graça, mas parte da graça para o pleno Também deve crescer quantitativamente, ga-
desabrochamento da salvação. nhar número e extensão. Guardar-se do mundo
mas com a finalidade de estar-lhe mais presente
1. O autor de todo crescimento. Portanto,
quem dá o crescimento não é o homem (ICo Não permitir que se enraíze em si o espírito
do século senão no intuito de fazer o Espírito
3.6), mas exclusivamente Deus: só êle é Senhor
de Deus crescer no século !Onde é fiel a Igre-
do mistério da vida. Mas, mesmo estando Deus
ja, aí progride grandemente a Palavra de Deus
na origem de qualquer crescimento, não é êle
(At 12.24), aí aumenta o número dos discí-
o seu único autor. Pois, na realidade, a obra
pulos (At 2.47; 4.4; 6.1; 6.7; 9.31, etc),
divina efetua-se por meio do Senhor Jesus
pois Deus multiplica a posteridade de quem êle
(lTs 3.12), por meio da Palavra divina que
abençoa (Gn 12.2; Hb 6.14). Uma igreja cuida-
faz crescer para a salvação (IPe 2.2), por
dosa da qualidade de seu crescimento interior,
meio dos que levam a Palavra e trabalham na
necessàriamente passa a ser uma Igreja que se
edificação da Igreja (Ef 4.11-16) e, final-
expande: uma igreja missionária.
mente, mediante a obediência dos que recebem
a Palavra (2Co 9.10). 4. O crescimento do cristão. O corpo de
O homem, repitamo-lo, não dá o crescimento Cristo, pelo seu crescimento, traz vigor e de-
êle dorme e se levanta, mas a semente cresce de
senvolvimento a todos seusmembros e, por ;
noite e de dia, sem êle saber como (Mc 4.27).
sua vez, o crescimento dos membros traz aumen-
Contudo, o homem é obreiro conjuntamente com
Deus: semeia (Mc 15.4), planta e rega (ICo to e forças a todo o corpo. O cristão em posse

3.6), exercendo os ministérios da Igreja, para do conhecimento da salvação deve doravante,


aperfeiçoamento dos santos e edificação do cor- por vocação, ir de progresso em progresso (lTs
po de Cristo (Ef 4.12), para difusão da cari- 4.1) e cobiçar os dons espirituais que servem
dade (2Ts 1.3) e progresso do Evangelho para a edificação da Igreja (ICo 14.12). Deve
(Ep 1.12). passar da infância espiritual à idade do homem
perfeito (Hb 5.12), progredindo na fé (2Ts
2. crescimento do Reino de Deus. O Reino
O 1.3), no conhecimento de Deus (Cl 1.10), no
de Deus adquiriu vida neste mundo onde caiu, amor (Fp 1.9; lTs 3.12), nos frutos da jus-
qual ínfima semente, onde se escondeu qual tiça (2Co 9.10). Todos que destarte crescem
fermento na massa ou tesouro no campo (Mt na graça experimentam realmente que, à me-
13.31-33, 44). O nascer do Reino é escuro,
dida que avançam, vão aumentando as suas
seu crescimento é misterioso, obstaculizado pela
forças (SI 84.8).
ação do inimigo (Mt 13.24-30), mas suas am-
bições são imensas e compreendem todo o uni- 5. Em
nenhum momento atinge o cristão a
verso criado. Pois o campo de crescimento sua meta (Fp 3.12), mas na sua carreira para
abarca, muito além do coração dos crentes e da a perfeição almeja sem cessar por atingir, me-
própria Igreja, o mundo inteiro (Mt 13.38), a diante o poder do Espírito, a estatura perfeita
massa inteira (13.33). É bem significativo que do Cristo. E, na medida que Cristo cresce nêle,
as leis prepostas ao crescimento do Reino asse- apaga-se-lhe o próprio Eu "Convém que Cristo
:

melhem-se perfeitamente às leis da natureza a : cresça e que eu diminua" (Jo 3.30). Assim,
ordem da redenção, por decisão divina, inse- longe de enaltecer a vaidade nossa, nossos pro-
rir-se-á, desenvolver-se-á e expressar-se-á na gressos na perfeição incitam-nos a maior humil-
ordem da criação. dade, levando-nos a reconhecermos cada dia
;

60 CRIAÇÃO

mais "que nem o que planta é alguma coisa, como a sua finalidade : tornar possível a vida
nem o que rega, mas Deus que dá o cresci- onde antes não era. O vers. 2 declara o caos
mento" (ICo 3.7). desde o primeiro dia. Um vasto oceano cobre
J.-PH. RAMSEYER a terra mergulhada nas trevas. Ainda subsiste
alguma dúvida sôbre a identidade do espírito
CRIAÇÃO de Deus que pairava por sôbre as águas, pois
o texto autoriza traduzir também "uma grande :

Sumer, Babilónia, Egito e demais povos vi- tempestade soprava sôbre as águas". Os vers.
zinhos de Israel possuiam tradições relativas à 3-5 preludiam, mediante a criação da luz, a
criação do mundo. Tais narrativas tinham um formação da vida. Nos vers. 6-8 o mundo é
caráter religioso. A
Enuma Elish, a magna visto como um amontoamento de águas Deus ;

epopeia babilónica, recitava-se na festa do Ano começa criando o firmamento, o céu, represen-
Nóvo. Um traço principal destas cosmogonias tado como uma abóbada sólida que fixa o ocea-
está no seu aspecto mitológico. As diversas par- no superior ou celeste. Os vers. 9-10 relatam a
tes do mundo, o céu, a terra e o mar, figuram separação dos mares e da terra, e a aparição
como outras tantas divindades empenhadas nu- da porção sêca. Doravante a vida faz-se pos-
ma guerra mortal da qual sai o mundo criado. sível. Nos vers. 11-13, aparecem os vegetais.
Embora vivendo num ambiente repleto de mi- Nos vers. 14-19, são criados os luzeiros, o sol,
tos da criação, Israel não pediu emprestada a lua e as estrêlas. Note-se em primeiro lugar
qualquer parte substancial destas narrativas que a luz foi criada antes que os astros, e a se-
pelo contrário, logrou delas libertar-se. Ape- guir, que os mais importantes dêstes, o sol e a
nas esporàdicamente e só na forma, talvez te- lua, não aparecem designados pelo seu nome,
nha o VT guardado pequenos vestígios dos ve- mas simplesmente chamados "luzeiros". Há uma
lhos mitos. Num combate Iavé venceu o grande evidente intenção nesta degradação declarada dos
dragão das origens representando o oceano astros, porquanto êstes eram divinizados na
imenso, o abismo, e denominado Raab, Leviatão Babilónia. Nos vers. 20-23, a terra produz as
ou Dragão (SI 74. 12-17 ;89. 10-13; Jó 26.12-14; aves e os peixes agrupados e juntos como se
Is 27.1; 51.9) e logo criou o mundo. Outros fossem a mesma família. Abençoa-os Deus, isto
textos aludem ao oceano dominado por Iavé é, dá-lhes o poder de se reproduzirem e mul-
(Jó 38.8; Pv 8.29; Jr 5.22; Hc 3.8; SI tiplicarem. Nos vers. 24-25, a terra produz os
18.16; 33.7; 65.8; 104.5-9). animais. Nos vers. 26-28, Deus intervém pes-
A Bíblia contém duas narrativas da criação, soalmente para formar o homem, coroa da cria-
de procedência e de épocas diferentes : (A) Gn ção, para quem foi feito todo o anterior. Os
1.2 até 2.3 e (B) Gn 2.4-17. As diferenças críticos não deixam de observar aqui o aban-
dono da terceira pessoa e a introdução da pri-
entre elas é grande, implicando não apenas na
meira pessoa plural: "Façamos o homem...",
ordem da criação mas em pontos fundamentais.
opinando alguns que o Deus do Génesis, cap 1,
No momento da criação, o mundo é apresen- estava rodeado, como em Is 6.8, de uma côrte
tado em (A) como um oceano sem praias, imer-
de sêres celestiais e divinos. "Façamos o ho-
so na obscuridade, verdadeiro caos onde a ter- mem à nossa imagem" significaria, pois, "faça-
ra, as águas, a noite se mesclam, —
em (B), mo-lo à imagem dalgum dêsses sêres que ro-
como um deserto árido e sêco. Os dois itens deiam o trono de Deus". Mas esta conclusão é
dão, como aliás a Bíblia inteira, uma visão do forçada. O historiador sagrado usa a forma plu-
mundo bem diferente da de hoje e muito co- ral "façamos" simplesmente para dar relêvo ao
mum na mentalidade antiga. Caracteriza a ver- fato de Deus pessoalmente intervir na criação
são (A) a total ausência de mitologia. Os ele- do homem, rei da criação. Desde muitos séculos,
mentos nada conservam da personalidade que
tinham nos velhos mitos, não mais sendo deuses
a expressão "a —>imagem e —>
semelhan-
ça." alimenta as discussões teológicas, fato muito
porém simples coisas. Resulta daí um relato compreensível porquanto interessa o mistério
muito comedido, com têrmos mesurados, quase
como um símbolo de fé. Não elucida a questão
da aparência do
com o Criador. O
—>homem e de sua relação
sentido, todavia, é bem claro,
de haver Deus criado o mundo do nada (creatio pois os têrmos (hebr. =selem e demut) aqui
ex nihilo), porquanto tal pergunta não cabe no usados designam sempre na Bíblia uma aparên-
pensamento semítico. O verbo usado para cia exterior, física. O homem imagemé criado à
"criar" (barah) não autoriza qualquer conje- de Deus. Seu aspecto é de um criador. Deus
tura a respeito. No momento da intervenção abençoou-o dando-lhe o poder procriador. Nos
divina, o mundo constitui-se de uma massa de vers. 29-30, as ervas e os frutos sãodoados ao
água e terra sem possibilidades para a vida. homem para se alimentar, dispondo os animais
Agindo como criador, torna Deus a vida possí- de pastagens. O vers. 31 mostra-nos o entarde-
vel no mundo. Nesta perspectiva, as diversas cer do sexto dia. Deus está contemplando sua
fases da criação se coordenam claramente, bem obra constatando ser ela muito boa.
;

CRIAÇÃO 61

Convém sublinhar o caráter fortemente teo- Deus está atento para que as ondas do caos não
cêntrico desta narrativa. Nada absolutamente ultrapassem os limites permitidos (Jr 5.22;
acontece a não ser por Deus. Exclusivamente Pv 8.29), e, depois da desforra concedida às
Deus torna habitável a terra e possível a vida. forças inimigas por ocasião do dilúvio, asse-
Sôbre Deus, sobre sua palavra criadora, gura o equilíbrio do mundo e da vida, e o ciclo
descansa a vida. Se Deus retirasse sua pa- regular das estações (Gn 8.22; SI 74.16s;
lavra, tudo voltaria às trevas, às águas destru- Jr 31.35) ;sustenta o mundo com justiça, quer
toras eà morte. O espetáculo das ondas do dizer, conserva-lhe os caracteres próprios de
mar batendo nas praias e refreadas por um um mundo apto para a vida (Jl 2.23: SI
poder invisível, bem como a vista do céu re- 148.6).
tendo as águas superiores, recordam ao homem O
Deus da Bíblia é celebrado incansàvelmen-
tudo que aconteceria se Deus retomasse sua pa- te como o Deus Criador mas os autores sa-
;

lavra. Cada tarde a queda da noite traz nova- grados visam menos recordar o evento original
mente à sua memória a lembrança das trevas seu intento é antes engrandecer o poder e a
originais. No ápice da obra divina ergue-se o sabedoria de Deus (SI 93.1; 96.5, 10; 102.26;
homem criado, reflexo visível do Criador que Is 40.21), ontem, hoje e sempre. De Deus é
fêz o mundo da graça, da luz e da vida. o universo. Deus tem poder sôbre a natureza
O relato (B) transporta-nos a um deserto e usa-o para realizar seus projetos (SI 24.1;
árido, inacessível à vida, imensa extensão de 65.10; 78.26; Is 40.26; 44.24; 45.12,18; Jó
argila sêca. Mas eis que da terra brota uma 9.4). Toma cuidado do mundo, obra das suas
água regando a superfície do solo. Da argila mãos (SI 104). Sendo Criador, êle é o forte
umedecida, Deus o oleiro divino forma uma que pode ajudar (SI 146.5; Is 45.9). As alu-
estatueta, e, soprando-lhe nas narinas o sopro sões bíblicas não estão interessadas em reme-
de vida, torna-a viva. A seguir, fala-se- acerca morar o evento passado, porquanto a noção
do jardim de Deus, plantado de árvores, a for- bíblica de criação não é uma mera questão teó-
mação dos animais, a criação da mulher for- rica, e sim uma questão básica, de existência.
mada duma costela de Adão. Esta segunda nar- Ao repisar tantas vêzes a atividade do Criador,
ração, mais arcaica, de caráter menos sistemá- os escritores sagrados querem sublinhar o mara-
tico, supõe uma concepção diferente do mundo. vilhoso poder divino e, corolário natural, a
A despeito de figurar no encabeçamento da pequenez e dependência humana (SI 33.8; 103.
Bíblia desde uma data relativamente recente, 14; Jó 10.9; 33.6; SI 139.13-16). Observe-
os dois relatos da criação não despertaram gran- mos ainda que, para falar da atividade cria-
de ressonância no resto do Livro. Ezequiel co- dora de Deus, a Bíblia gosta de empregar o par-
nhece o mito do Éden, mas num contexto dife- ticípio presente, acusando assim o caráter per-
rente (Ez 28.13). Ambas narrativas interes- manente da criação. Assim, Is 44.24: "Eu sou
sam-nos hoje em dia principalmente pela sua o Senhor que faço tôdas as coisas, que sozinho
atitude religiosa que nos serve de eterno ensi- estendo os céus, nenhum outro espraia a terra".
namento e exemplo. A visão do mundo que elas Entenda-se que a criação (bem como a reden-
pressupõem pertencia a esta época remota que ção de Israel) é um ato permanente de Deus.
considerava a terra como um bolo colocado sô- Poderíamos interpretar exatamente Ontem, ho-
:

bre pilares, e o céu como uma abóbada posta je e sempre, eu sou e permaneço o Criador;
sôbre as montanhas e retendo as águas supe- é sôbre mim que descansa o equilíbrio do mun-
riores. do e a firmeza do universo. Porém, o Deus que
A Bíblia declara que o mundo e o homem faz o mundo pode também destruí-lo. Muitos
não souberam conservar a perfeição recebida textos descrevem o fim do mundo, outra ma-
do Criador, porquanto interveio um aconteci- nifestação do poder criador (Jr 4.23-26). Fi-
mento misterioso narrado figuradamente no ca- nalmente, notemos que o Livro de Provérbios
pítulo 3 do Génesis. É-nos difícil determinar representa a Deus ajudado na sua obra pela
a importância que o culto hebreu concedeu ao — "> Sabedoria (Pv 8.22ss).
evento da criação tão lembrado e celebrado nas O ensino do VT referente à criação é prodi-
liturgias babilónicas. Certamente não faltam, em giosamente rico. Embora baseado em pressupos-
particular nos Salmos, numerosas alusões à tos hoje vencidos, declara (eis o que importa!)
criação autorizando-nos a pensar que, também que o mundo existe exclusivamente por Deus,
no culto oficial, Deus fôra louvado como Cria- que sem Deus não haveria vida alguma. Com
dor. o mundo Deus tem as relações de Criador para
Quando falamos da criação, costumamos ver com criatura sendo êle absolutamente livre é
:

o acontecimento como passado e cumprido uma ela absolutamente dependente. O poder de Deus
vez para tôdas. O VT
vê bem diferentemente: sôbre o mundo e a vida é irrestrito a vida hu-
;

o mundo criado, o mundo da vida, está cons- mana está subordinada à graça do que criou o
tantemente ameaçado pelos podêres da morte, e mundo e guarda-lhe a vida por pura benevo-
necessita ser defendido por Deus noite e dia. lên cia. G. PIDOUX
:

62 CRUZ

CRUZ rar, o Salvador confiou-os um ao outro. Se-


gundo o quarto evangelho, o qual faz morrer
Os Romanos receberam provàvelmente dos
Jesus no dia e na hora em que se imolava o
Cartagineses o suplício da crucifixão oriundo
cordeiro pascal, os judeus pediram a Pilatos
do Oriente. A crucifixão reservava-se inicial-
que os corpos dos justiçados não ficassem pre-
mente aos escravos mas acabou aplicando-se
gados nas cruzes, para que sua presença não
também aos réus provincianos. A
cruz era um
maculasse a terra no sábado da grande festa
patíbulo em forma
de T, pouco alto, apenas o
(Jo 19.31; Dt 21.23).
suficiente para que os pés do supliciado não
tocassem a terra. As mãos do réu eram fixa- As narrativas evangélicas da paixão trazem
das ao "patibulum", viga transversal, mediante para o historiador muitos e delicados proble-
cordas ou pregos. O interesse dos escritores mas, mas o próprio fato da morte de Jesus so-
neo-testamentários pela cruz não é arqueoló- bre a cruz há de considerar-se historicamente
certificado. Com as palavras "padeceu sob o
gico, mas exclusivamente cristológico quando :

falam da cruz, referem-se sempre à cruz de Je- poder de Pôncio Pilatos", o Credo opõe a qual-
sus Cristo, Filho de Deus.
quer tentativa de transformar o Evangelho em
uma gnose intemporal, o caráter histórico da
1 . A de Jesus Cristo. Nos sinópticos,
cruz revelação de Deus em Jesus Cristo.
os anúncios da Paixão (Mc 8.31; 9.31; 10.32
par) relacionam a morte de Jesus ao plano 2. Olhando para a cruz de Cristo. Fora dos
divino Deus decretou que o Cristo fôsse entre-
:
evangelhos, as palavras cruz e crucificar só apa-
gado aos Gentios pelos chefes de Israel, de- recem, no NT, nas epístolas paulinas, nos Atos
vendo morrer não no suplício israelita da lapi- (2.36; 4.10), em Hebreus (6.6; 12.2) e no
dação, mas na cruz romana (Mt 20.19). Na Apocalipse (11.8). Note-se, aliás, a relação
ausência de provas fundamentando a acusação, que com Paulo têm os Atos e Hebreus. Por
Pôncio Pilatos queria soltar a Jesus mas o ;
que ocupa a cruz no pensamento do apóstolo
populacho, amotinado pelos chefes dos sacer- um lugar tão proeminente? Sumàriamente, por-
dotes, exigiu a gritos a morte do Senhor que Paulo esbarrou violentamente contra ela,
"crucifica-o, crucifica-o !". Pilatos tentou em antes de reconhecer nela a cruz messiânica, ou
vão impor sua vontade acabou mandando cru-
;
seja, o ato pelo qual Deus reconciliou consigo o
cificar a Jesus, depois de flagelado em sua pre- mundo (2Co 5.19). Como acreditar que fôsse
sença (Mc 15.15). É bem compreensível que, Messias e Cristo de Israel, um Jesus de Na-
exausto por êste castigo preliminar, Jesus se zaré entregado pelo Sinédrio a Pôncio Pilatos,
encontrasse incapaz de levar o patibulum, con- um crucificado ferido pela divina maldição (Gl
forme praxe, sendo preciso requisitar um tran- 3.13)? Somente a revelação fulminante do ca-
seunte, Simão Cirineu, para carregar-lhe a cruz minho de Damasco, a aparição do crucificado
(Mc 15.21 par). João, neste particular, corrige ressurreto (Gl 1.16), pôde convencer a Paulo.
a tradição sinótica afirmando que o mesmo Daí por diante Paulo tem a certeza inabalável
Jesus levou sua cruz (19.17). Quiçá João não de que Jesus é o Cristo Messias, não a des-
lograva conciliar a fraqueza tão humana de peito mas por meio da cruz. Esta absoluta con-
Cristo, confessada pelos sinóticos, com a sobe- versão do pensamento de Paulo relativamente
rana majestade que Cristo reveste no quarto ao crucificado norteia agora tôdas suas refle-
evangelho. Todo o horror da crucifixão de Jesus xões.
no Gólgota (Mc 15.22 par) está encerrado O
Cristo crucificado ocupa o centro do Evan-
nestas simples palavras "e crucificaram-no"
: gelho. Pela "palavra da cruz" (ICo 1.18,23;
(Mc 15.24). Com êle crucificaram dois ladrões, 2.2), Deus julga qualquer pretensão do homem
provàvelmente não delinquentes de direito co- de ser o dono do próprio destino e de salvar-se
mum mas terroristas daqueles que o poder ro- por si mesmo. Os judeus, para crer, exigem
mano tratava de eliminar do país ocupado (Mc milagres (1.22) e um pronunciamento do mes-
15.27 par). E assim, aquele que a inscrição míssimo Deus sôbre o seu Ungido. E eis que o
(titulus) da cruz designa como o rei dos judeus Evangelho anuncia-lhes Jesus, um Messias cru-
(Mc 15.26; Alt 27.37; Jo 19.19), expira entre cificado Só fraqueza, derrota, condenação e

—>
!

dois zelotes, partidários da ação direta que êle maldição, só escândalo (ICo 1.23) Como !

repudiara sempre (Mc 12.13-17; Mt 26.52). não mergulhar na incredulidade? Haverá coi-
Os presentes zombam, provocando o rei dos sas mais contrariante para o judeu, do que reco-
judeus a descer da cruz para que êles cressem nhecer que foi o povo de Deus quem entregou
(Mc 15.29ss; Mt 27.39ss) põem em ridículo
;
o seu Messias aos étnicos para que fôsse cruci-
o Messias crucificado, salvador de todos que ficado? que foi precisamente a observação da
não pode salvar-se a si mesmo, e levam ao má- Lei que o levou a êste pecado dos pecados? que
ximo a desonra do justiçado. Narra João que a o seu único remédio agora é crer neste Cristo
mãe de Jesus e o discípulo que Jesus amava crucificado confiando exclusivamente na graça
estavam ao pé da cruz, e que, antes de expi- de Deus? Entre a Igreja e a Sinagoga ergue-se.
;!

CRUZ 63

a cruz de Cristo. Os judaizantes comete-


pois, la-se no plano redentor, cujo elemento decisivo
ram o êrro de não o compreender. Queriam é a morte de Cristo e cujo intento final é a
submeter à circuncisão e observâncias mosaicas salvação dos crentes (ICo 2.7; Rm 8.16-17,
os crentes oriundos do paganismo "somente pa- 20,30), incorporados à plenitude da vida divina.
ra não serem perseguidos por causa de Jesus No entanto, os príncipes dêste mundo, as potên-
Cristo" (Gl 6.12), na expressão veemente dc cias angelicais (Ef 1.21 Cl 1.16, etc.
;

^Au-
Paulo. Pregar a circuncisão (Gl 5.11) desar- toridades) tinham recebido de Deus a comissão
maria quiçá os judeus hostis, mas esvaziaria de governar o mundo pecador e assegurar-lhe,
o julgamento da cruz sôbre tôda justiça própria, mediante as leis e as autoridades, uma certa
desvirtuaria o Evangelho, eliminaria o escân- ordem social e moral. Eis porque, por detrás
dalo da cruz (Gl 5.11), coisas que Paulo ja- do Sinédrio e do Procurador Pilatos, custódios
mais aceitaria. da ordem secular, Paulo discerne a ação dos
Os gregos não dão melhor acolhida à prega- príncipes dêste mundo declarando que se ti-
ção do Cristo crucificado, porquanto êles "bus- vessem conhecido a sabedoria de Deus, jamais
cam a sabedoria" (ICo 1.22). Necessitam com- teriam crucificado o Senhor da glória. Antes,
preender para crer. É-lhes verdadeiro tudo que teriam cuidado para não colaborar com a morte
se harmoniza com sua concepção do mundo e redentora do Senhor que haveria de arruinar
satisfaz sua razão e seu sentido de medida. o seu império, colocando os homens sob a auto-
Como não afastar-se de um Cristo crucificado, ridade imediata de Deus em Jesus Cristo pelo
como não gritar com desprezo e troça loucura
:
Espírito Santo.
(ICo 1.24)? Cristo desconcerta-os absoluta- c) A obra da cruz está descrita de modo
mente... Como tomá-lo em sério sem renun- análogo em
Cl 2.14-15. Deus perdoou os nos-
ciar a quantos valores conferem interesse à sos delitos, "cancelando o escrito da nossa dí-
sua vida? vida... removendo-o inteiramente. . encravan-
.

Só os chamados aos quais Deus dá a fé (ICo do-o na cruz". Já não mais somos devedores
1.24) contemplam na sua luz plena o paradoxo insolúveis ante Deus, porquanto êle mesmo, vo-
da cruz loucura, porém, sabedoria de Deus
: luntàriamente, renunciou ao documento que pos-
impotência, porém, poder de Deus (ICo 1.24- suía contra nós e, mediante a cruz, noticiou-nos
25). De fato, estão unidas em Cristo a fraqueza cancelação da dívida. Um tal perdão teve uma
do homem e a potência de Deus "Foi crucifi-
: ressonância cósmica : enquanto franqueou-nos
cado por causa da sua fraqueza, mas vive pelo o acesso a Deus na alegria dos nossos corações,
poder de Deus" (2Co 13.4). Sim, foi crucifi- destituiu as potências angelicais, garantias da
cado quando Deus o entregou indefeso à morte, ordem mundana, e entregou-as publicamente ao
mas vive em virtude do poder divino que o res- desprêzo, triunfando sôbre elas na cruz (Cl
suscitou e dêle fêz o VIVO. Ora, se Deus quis 2.15). Os homens, famintos de salvação, delas
ostentar a sua onipotência na forma da cruz já nada têm de esperar. Cl 1.20 mostra-nos
para salvar o mundo, todo recurso do pregador todas as criaturas, quer nos céus, quer sôbre a
aos argumentos da sabedoria humana e ao pres- terra ( =os homens e os podêres angélicos),
tígio da eloquência espoliará a cruz de suaclivi- reconciliados com o Filho e, mediante o Filho,
na eficiência (ICo 1.17). com Deus, pois o Filho "pelo sangue da sua
cruz" selou a paz. Aqui vemos a redenção uni-
3. Significação da cruz de Cristo a) Investi-
versal imputada "ao sangue da cruz", isto é, à
gar o sentido da cruz de Cristo comporta, ipso

facto, investigar a significação de sua ^mor-
vida entregue por Jesus crucificado, sem consi-
derar qualquer doutrina particular da reden-
Limitar-nos-emos a recolher o depoimento
ção. Em Ef 2.16, encontramos uma aplicação
te.

de textos que mencionam a cruz. O NT


não parcial da mesma idéia abrogando a Lei, muro
:

aponta para as dores físicas que Cristo sofreu


de separação entre judeus e gentios, concedendo
na cruz, e sim para a ignomínia do suplício.
a todos a mesma graça salvadora, Cristo re-
Para gregos e romanos a cruz era infâmia pró- conciliou a todos com Deus e os reuniu em um
pria de escravos que a gente decente nem se-
só corpo "por intermédio da cruz". Cristo é o
quer mencionava. Para os judeus, morrer justi-
elo de paz entre étnicos e judeus reconciliando
çado "fora da porta" (Hb 13.12) denunciava
a ambos com Deus e integrando-os à Igreja
a maldição de Deus sôbre o réu, separado do
"que é seu corpo".
povo (Gl 3.13, cortado do corpo). Cristo, acei-
tando o suplício da cruz, venceu esta ignomí- 4. A cruz na vida do crente, a) Jesus pro-
nia (Hb 12.2) e deu a medida de sua obediên- clama que "se alguém quer vir após mim, a si
cia (Fp 2.6-8). mesmo se negue, tome sua cruz e siga-me" (Mc
b) Paulo coloca a cruz numa perspectiva 8.34 par). Tomar sua cruz significa carregar a
cósmica (ICo 2.8) se o mundo tivesse conhe-
: cruz a exemplo do Mestre que a levou durante
cido a sabedoria de Deus, jamais teria crucifi- todo o seu ministério e na subida ao Calvário.
cado o Senhor da glória. Esta sabedoria formu- Ninguém se nega a si mesmo se não aceitar
:

64 CULTO

de antemão a morte, a mais ignominiosa se fór (Rm 6.3). O nosso homem velho (=o que
preciso, por fidelidade a Cristo. As contínuas somos de nascença em oposição ao homem nóvo
repressões romanas, as crucifixões de sedicio- que somos em Cristo) foi crucificado com Cristo.
sos, tinham feito da cruz um suplício corriquei- Devemos e podemos, portanto, viver vida nova
ro na Palestina, bem podia Jesus falar de cruz e andar na obediência do Espírito (Gl 5.25).
antes de morrer crucificado. Tôdas as exportações morais de Paulo baseiam-
se neste fato. O próprio apóstolo pôde demons-
b) Os judaizantes, conforme denuncia Pau-
trar à Igreja o paradoxo de uma vida que tem
lo, intentavam persuadir os gálatas a receberem
a circuncisão "somente para não serem perse-
como condição a morte "Tendo sido crucifi-
:

cado com Cristo, não mais vivo eu, mas Cristo


guidos por causa da cruz de Cristo" (Gl 6.12) ;

recusavam-se pois a carregar a cruz. Paulo, pelo


vive em mim" (Gl 2.19-20).
contrário, jamais se gloriou de coisa alguma CH. MASSON
"senão da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
pela qual o mundo está crucificado para mim,
e eu para o mundo" (6.14). Longe de enver-
CULTO
gonhar-se da cruz, só nela se gloria, porquanto Admite-se geralmente ter o culto a finalidade
dela recebeu o seu renascimento de nova cria- de estabelecer e manifestar, mediante seus sím-
tura (6.15). O mundo com sua sabedoria e sua bolos e ritos, uma relação entre o homem e a
justiça, julgado pela cruz, perde qualquer va- divindade. Quer pela magia, pelo sacrifício, pela
lor para Paulo, como também Paulo ficou sem oração ou por outros meios, o culto, em nossa
valor para o mundo desde que aceitou o julga- opinião, criará, entre o mundo dos deuses e o
mento da cruz recebendo em troca a sabedoria nosso, intercâmbios proveitosos para ambos, ou
e a justiça de Deus. seja, uma espécie de circuito de forças místicas
vitais, indispensável tanto aos deuses como
c) Aprendamos dos judaizantes. Há cristãos e

que, conscientes ou inconscientes,acabam repu- a nós. O culto, ocasião de encontro dos fiéis
diando a cruz de Cristo e esvaziando o Evan- e das realidades mais ou menos impessoais às
gelho de tôda a sua substância e eficácia. "Mui- quais adoram, torna-se fonte de renovo e garan-
tia de felicidade tanto para o céu como para
tos andam entre nós, dos quais repetidas vêzes
eu vos dizia, e agora vos digo até chorando, a terra raramente, porém, é desinteressado
;

que são inimigos da cruz de Cristo: cujo des- pressupõe uma transação entre a humanidade
tino é a perdição, o ventre seu deus, sua glória e a divindade, um "Eu te dou para que tu

posta no que é a sua infâmia, só preocupados me dês".

com as cousas terrenas" (Fp 3.18s). Muitos Aspráticas religiosas, inventadas pelo desejo
exegetas vêem nesta gente o partido dos judai- de entrar em relação com o mundo dos espíritos
zantes, mas os traços do comportamento estig- e dos deuses, são, não obstante seu grande nú-
matizado pelo apóstolo designam bem os cris- mero, de uma semelhança notável. Fàcilmente
tãos que pensavam poder conciliar os hábitos descobriremos, no decurso do tempo e espaço,
do mundo gozador com a sua fé cristã. Hebreus uma coleção de ritos e mitos gémeos. O ho-
6.6 proclama a impossibilidade de levar a arre- mem, seja babilónio ou grego, chinês, canaca
pendimento àqueles que, tendo conhecido a graça ou hotentote, esbarra com idênticos mistérios
de Cristo, recaíram no pecado e com sua apos- e confronta-se com os mesmos fenómenos não ;

tasia recrucificaram para sua ruína o Filho de deixa de se impressionar pelas diversas etapas
Deus expondo-o à ignomínia. Crucificar nova- da vida humana, como o nascimento, a puber-
mente aquêle que por nós foi crucificado, cons- dade, a morte, a sucessão ininterrupta de dias e
titui um pecado sem remissão porquanto torna noites, pelo ciclo regular das estações ou pelo

condenação a própria obra de graça. curso misterioso dos astros. Em


quase todo
lugar praticam-se ritos parecidos de iniciação
d) A visão de Cristo morto sobre a cruz
e purificação, celebram-se cultos agrários se-
lembra-nos incessantemente a fonte e as normas
guindo idênticos esquemas e, por ocasião das
de nossa nova vida. Esquecer essas realidades festas solenes, mimam os fiéis o mesmo com-
até o extremo de regressar à circuncisão, não
bate das forças da luz e da vida contra as po-
tem qualquer explicação. Os gálatas foram víti- tências do caos.
mas dalgum malefício. Acaso não foi Jesus
Cristo exposto ante seus olhos como crucifi- 2. O mundobíblico não escapa à lei comum.
cado? (Gl 3.1). A fé no Cristo crucificado No culto descrito pela Escritura encontramos
acarreta para os crentes a radical ruptura com traços assombrosamente parecidos com as ceri-
a Lei, com o pecado e com a carne. "Os que mónias pagãs. Como as nações vizinhas, Israel
são de Cristo Jesus crucificaram a sua carne, possui tempos sagrados como o —>
sábado
com as suas paixões e concupiscências" (Gl e a —> Páscoa, lugares santos como os carva-
—>
5.24), constituindo o —> batismo para êles o lhos de Manre e o Templo de Jerusalém,
sinal de sua participação na morte de Cristo nazireus ( —>
Ministérios) Como as nações
.
— >

CULTO 65

vizinhas, Israel conhece a —> — circuncisão, os —> orações e obras —>


obras, porquanto
dias fastos e nefastos, puros
os animais > nunca pode ser prisioneiro de seus próprios atos
e impuros ^sacrifícios), as grandes ou dons. Dêste Deus nunca poderá apoderar-se
— (

^.festividades da colheita e das vindimas. o homem, como se apodera dos ídolos que fa-
bricou para seu uso e cuja existência depende
Existem inegáveis correspondências entre os
exclusivamente do seu bel prazer. Portanto,
costumes religiosos do povo de Deus e os costu-
servir a Deus consiste, em primeiro lugar, no
mes pagãos dos povos próximos ou afastados,
reconhecimento da autoridade de Deus, absolu-
não logrando porém as evidentes semelhanças
ta e eterna.
encobrirem o caráter específico do culto exigido
pela Bíblia. Gestos e palavras podem ser, aqui 5. Não deixará pois de estourar o conflito
e ali, idênticos, mas o espírito animador é abso- mais trágico entre Deus e seu povo (Israel ou
lutamente diverso. a Igreja), tóda vez que este presumir poder
encerrar a Deus na sua revelação, ou atá-lo a
3. Para a Escritura Sagrada, o culto é um certas pessoas ou coisas e assim sujeitá-lo para
serviço devido a Deus pelo povo escolhido, po- suas conveniências :sob pretexto de servir a
rém não limitado a certos gestos rituais ou ceri- Deus, servir-se a si mesmo. Tentação realmente
mónias religiosas, pois deve abarcar todos os para o povo de Deus (Israel ou a Igreja)...
campos da vida. Deus quer ser servido em to- poder dispor de seu Senhor De fato, acontece
!

dos os planos da existência humana, como cla- que, através de festas religiosas esplêndidas, de
ramente se vê na legislação bíblica (
reito). O hebraico —
fato bem significativo!
Di- —> —
ofertas generosas ou de orações repetidas, se
procure a própria satisfação e que, sob o manto
usa o mesmo têrmo para designar trabalho, de uma religião aparentemente edificante, se
serviço e culto; não há absolutamente qualquer pratique a adoração própria. Então entram em
separação entre as fainas diárias e a adoração ação os profetas mandados por Deus para reco-
a Deus desde os primeiros capítulos da Bí-
;
locar o povo escolhido em face da aliança, das
blia vemos estreitamente unidos o trabalho ma- exigências e das promessas do verdadeiro Deus.
nual e o serviço de Deus. Na atual acepção es- Lembrem pois os escolhidos que seu Deus é.
treita, a palavra culto designa apenas uma par- essencialmente, um Deus ciumento que não to-
cela do serviço muito extenso que Deus espera lera partilha alguma : seu serviço é um serviço

de seu povo pois, na realidade, tudo que fazem exclusivo. Impossível servir a Baal e a Iavé.
;

os crentes pode e deve constituir um ato de confiar em Mamon e em Deus. Tôda vez aue
culto e uma homenagem a Deus. Israel demanda pão, felicidade e salvação fora
de Iavé, seu aliado, celebrando uma aliança en-
4. Que é servir a Deus? Servir a Deus, para ganosa com os podêres do mundo, acaba se
perdendo e caindo na escravidão política e reli-
Israel e para a Igreja, é, antes de mais nada.
giosa. Para os crentes não existe alternativa:
tratar com Alguém, com Alguma Pessoa, por-
quanto o —>
Deus da Bíblia não é uma mera
emanação da natureza, uma fórça cósmica, uma
ou servos de Deus ou escravos dos ídolos.
Também lembram os profetas que Deus não
idéia racional ou moral, mas o Deus vivo que se deixa comprar: não o cegam os muitos sa-
entra na História dos homens e forma para si crifícios nem os ritos pomposos. Êle rejeita um
um povo com a finalidade de salvar o mun- culto desmentido pela vida diária e repele horro-
do. Israel (e, a seguir, a
da escravidão, deve a existência exclusivamente
—> Igreja), tirado rizado as homenagens vindas de lábios hipócri-
tas e de mãos tintas do sangue inocente. Abo-
ao favor de Deus tendo sido escolhido para
; mina a piedade que serve de máscara à vida in-
servir a Deus, somente tem sentido em função fame. Longos e violentos requisitórios põem as
dêste serviço sua vocação primordial e impos-
;

tergável será dar testemunho, perante o mundo,


coisas no devido ponto: Deus reclama a
— —
justiça e a ]> verdade, condena o culto
do Deus vivo. Uma —>
aliança, selada em
determinado lugar e momento, fixa, uma vez
sacrílego como mentiroso e falso, e, em primeiro
lugar, antes das preces e dos holocaustos, exige
para tôdas, as relações entre Israel, o povo vidas totalmente dedicadas ao serviço divino,
eleito, e seu Deus. Aiudos parceiros, agora inti- ao direito e à misericórdia. Os profetas, evi-
mamente unidos, guardam sua original desigual- dentemente, não condenam, ipso jacto, tôda e
dade Deus manda e Israel obedece, Deus toma
: qualquer prática religiosa, porém proclamam
e até o fim reinvidica a iniciativa, Israel é ape- firmemente que Deus rejeita absolutamente todo
nas um convidado a caminhar humildemente com compromisso com o mal e repele qualquer tran-
seu Deus. É, pois, privativo de Deus fixar e sação ideada pelo povo, porquanto não precisa
modificar os aspectos e formas do serviço espe- das cerimónias irrisórias e blasfematórias, caras
rado. Hoje e sempre, Deus é livre de escolher aos homens. Será Deus, acaso, um dêstes ídolos
tempos, lugares e meios é seu, indefectivelmen-
; cuja existência e prestígio dependem do núme-
te o direito de aceitar ou de rejeitar ofertas, ro de sacrifícios e da prosperidade de seus ado-
. : ;

66 CUMPRIR

radores? Antes deixará Deus profanarem-se os Não que uma coisa está
seria possível saber
lugares santos, antes permitirá que seu povo sendo cumprida não fôr antes anunciada.
se
seja entregue às potestades pagãs, mas nunca Promessa e cumprimento implicam-se mutua-
entrará no partido do infiel e do rebelde. mente. Daí a importância do testemunho do VT
para o NT.
6. Contudo, os profetas em particular nem a Jesus apela expressamente para o VT
no
Escritura em conjunto nunca intentam substi- tocante a sua palavra e as suas obras (Mt 11.
tuir as práticas religiosas por um determinado
4-6), a sua paixão e morte, escândalo para os
código de regras éticas sabem do iminente pe-
:
judeus e mesmo para os discípulos (Mc 14.21
rigo de o culto degenerar-se em moralismo e Lc 24.26s). Êle é quem havia de vir e as Es-
legalismo. Pois, é muito fácil ao crente masca- crituras tinham traçado o caminho que devia
rar sob as apariências o culto de si mesmo e, seguir. Mateus confronta quase minuciosamente
até mesmo repudiar a Deus sob o disfarce das as Escrituras com os acontecimentos da vida
obras meritórias ou das práticas religiosas. En- de Cristo (1.22; 2.5,15,17,23; 3.3,17; 4.14;
trementes, na perspectiva bíblica, o culto estri- 12.17; 13.14,35, etc). Os demais evangelistas
tamente entendido tem uma missão admirável sublinham com preferência a concordância da
a de colocar novamente cada geração diante das paixão com os anúncios escriturísticos (Mc
façanhas do Criador revelando-lhe a inteligên- 15.28; Jo 18.9; 19.24; 19.36s; At 4.25ss;
cia do plano salvador e orientando-lhe a espe- 8.32ss; 13.27), bem como a da ressurreição

nos (

rança para o cumprimento dos desígnios divi-
"> Profecia VT)
(Jo 20.9; At 2.31; 13.32ss) e da ascensão
(At 2.34s) . Em
suma, as —>
Escrituras de-
O culto constitui hoje o traço de união entre monstram que Jesus é o Cristo (Lc 24.27,32,
um passado pleno de divinos favores concedidos 45; At 17.2s;28.23; ICo 15.3-4).
a Israel (ou à Igreja), e um porvir prenhe das
promessas do Reino. Destarte êle manifesta aos
2. O cumprimento das Escrituras significa
muito mais do que a correspondência de deter-
crentes a fonte donde procedem, e a pátria à
qual são chamados faz-lhes ver a maravilhosa
minada palavra do VT com determinado evento
;

da vida de Jesus. Pois as Escrituras na sua tota-


benevolência e as sagradas exigências de Deus.
lidade dão testemunho dêle (Jo 5.39-47). O
Torna atual a Palavra que une a Deus o povo
escolhido, fazendo-a mais presente e viva para
VT foi escrito tendo em vista Jesus (Jo 5.46-
aqueles que se congregam à sua voz abre aos
;
47; 8.56) e a Igreja (Rm 15.4; 16.26; 4.23s),
de tal modo que somente a Igreja reconhece o
crentes o caminho do serviço, fortalece-lhes a
significado profunda da Bíblia (Rm 9.10ss;
fé. estimula-lhes a esperança e desperta nêles
10.11; 2Co 3.14-16), pois lê a Escritura à
o divino amor. Enquanto não vem o Reino, o
luz de seu cumprimento.
culto é o venturoso lugar de encontro dos fiéis
com seu Deus. Jesus dá cumprimento à Escritura tanto pelo
que êle é como pelo que faz, tanto na sua pes-
7. Em suma. servir a Deus significa encon- soa como na sua obra. Não somente traz a pala-
trarmo-nos com Alguém que exige total obe- vra de Deus, mas é a Palavra de Deus perso-
diência e absoluta submissão, porquanto pre- nificada (Jo 1.1,14). Por êle o Reino de Deus
tende ser o único Amo de tôda e qualquer vida, fêz-se presente e está entre nós (Mc 1.15; Lc
inclusive a nossa. Servir a Deus implica medir- 7.18-23; 11.20), suas obras são os sinais do
mos a nossa indignidade perante tão bela voca- Reino pois delatam a identidade de seu autor
ção, empreendermos uma faina impossível, po- (Jo 5.36). Em
Jesus encontra-se manifesta
rém, obrigatória, descofiarmos das próprias ca- não apenas a promessa mas a realidade de sal-
pacidades e descobrirmos o —>
Servo do Se- vação (Lc 4.21).
nhor, o Cristo que vem ao nosso encontro,
aprendermos que êle toma sóbre si as nossas
Jesus cumpre a
(Mt 5.17; Mc 10.45;
—>
Lei e os
Rm
—>
Profetas
5.18s; Fp 2.8),
misérias e insuficiências dando-nos em troca mediante sua obediência perfeita, mesmo na
sua paixão de servir. cruz. Doravante a Lei e os Profetas cedem sua
autoridade a Jesus Cristo (Mt 5.18; Lc 16.16;
R. MARTIN-ACHARD Rm 10.4). Não é mais a Lei, mas é Jesus Cris-
to quem regerá as relações dos homens com
CUMPRIR Deus.
Quando o verbo "cumprir' tem um alcance 3. Também através de Jesus Cristo devem
teológico,serve essencialmente para expressar ser consideradas as coisas futuras, o fim do
o acontecimento máximo da História da salva- mundo (Hb 8.4ss; 10.1), como as coisas já
ção, a vinda de Jesus Cristo vista em relação passadas. Jesus Cristo há de voltar na glória
aos tempos anteriores. O VT
era o tempo da do Pai, para o julgamento, a ressurreição, o to-
promessa cujo cumprimento nos é dado em que final da salvação (Mt 25.31; Mc 8.38;
Jesus Cristo. Rm 8.18,23; lTs 4.13s; ljo 2.28-33). Contu-
DEMÓNIOS 67

do o que para cumprir é menos do que Cris-


fica algo bem parecido com um culto negativo pres-
to já fêz (Rm
5.1-10), porquanto a res-
surreição apenas manifestará a vida eterna já
—> tado a um espírito. Carrega-se um bode de
todos os pecados do povo; logo o bode e de-
presente (Jo 5.24; 6.39s). Na realidade, o que dicado ao demónio Azazel e expulso para o
decide a sorte dos homens é a sua fé ou incre- deserto. Para tirar qualquer caráter pagão da
dulidade relativamente a Jesus Cristo (Jo 12. referida cerimónia, sacrifica-se outro bode a
47s). Iavé "em oferta pelo pecado" (Lv 16.8-22).

4. A nova
que excede à dos escribas
justiça,
Ad b) Merecem o nome de "demónios"
e fariseus (Mt
5.20), é o amor. O amor
resume a Lei antiga (Mc 12.28-31; ver Dt
—> todos os deuses de Canaã aos quais os israeli-
tas sincretistas ou apóstatas oferecem sacrifí-
cios (Dt 32.17; SI 96.5; 106.37). Essas di-
6.4-5; Lv 19.18) e o mandamento nôvo (Jo
vindades cananeas eram provàvelmente deuses
13.34; ljo 2.8).
da vegetação e da fecundidade. Nossa tradu-
Neste sentido, cumpre o amor toda a lei
(Gl 5.13s; Ef 5.2). Tudo que Deus fêz con-
ção —> ídolos, carece da necessária precisão
porquanto não implica o clima satânico dêstes
vida os crentes a colocarem suas vidas a ser-
viço do próximo (Ef 2.10; Mt 25.3-46), a cultos que os autores sagrados tencionam evo-
exemplo de Jesus Cristo (Jo 15.12s; Ef 5.2). car. Talvez fôsse primitivamente um deus ba-
bilónico, êsse famoso Asmodeu de papel tão
O amor é a única realidade que subsistirá no
mundo vindouro (ICo 15.8) a "lei real", a sinistro na História de Tobias (6.10ss; 8.1-2).
;

lei do Reino dos céus (Tg 2.8), a marca do Ad c) O


Livro dos Juízes menciona espí-
Reino e a marca do Cristo (Jo 13.35: "nisto ritos perversos descidos do céu (Jz 9.23. Um
conhecerão que sois meus... se tiverdes amor mau espírito é enviado por Deus para indispor
uns aos outros"). Abimeleque e os Siquemitas) O Livro de Sa-
.

F. BAUDRAZ muel (ISm 16.14; 18.10; 19.9) mostra-nos a


casa de Saul perturbada por um espírito per-
DEMÓNIOS verso enviado "da parte de Deus". Da mesma
VT forma o Livro dos Reis (lRs 22.19-23) re-
lata que Miquéias, o profeta (não o escritor),
Os demónios na Bíblia têm uma quádrupla
viu um espírito ante o trono de Deus, ofere-
origem A Escritura menciona
. :

cendo-se para enganar a Acabe mediante um


Espíritos da natureza, remanescentes da
a) estribilho uivado por 400 falsos profetas.
concepção animista do mundo. texto sagra- O Ad d) Menciona-se expressamente anjos caí-
do só menciona os espíritos maus que moram dos e propensos a cair (Gn 6.1-4) Seu pecado
.

de preferência nos lugares mal afamados, de- foi unir-se às filhas dos homens, originando-se
sertos, ruínas e cemitérios (comparáveis aos assim os famosos gigantes. O Livro de Enoc
djins árabes) . relata pormenorizadamente esta história bem

b) Divindades pagãs rebaixadas à posição


como o castigo dos anjos. Judas, citando Enoc
de demónios, como Belzebu ( Diabo) e os
deuses gregos que Paulo e os Padres da Igreja
—> (1.14), fala dos anjos presos nas trevas até
o dia do Juízo (Jd 6), alusão certa a êstes
assemelham aos demónios.
mesmos seres.

c) Espíritos perniciosos que Satã ou Deus NT


enviam dos céus para provar, tentar ou castigar.
Na época do NT, não mais se conheciam a
Anjos caídos (Gn 6.1-2; Jd 6; ver tam-
d) diferenças entre as diversas categorias de de-
bém os textos de Enoc) ou por cairem ICo mónios. Todos estão indistintamente sob o
11.10). Não parece, porém, que os espectros mando de Belzebu, ou Satanás. Mas mencio-
e fantasmas fossem confundidos com os demó- nam-se casos de pessoas, possuídas por demó-
nios, pois, no único caso de evocação dum de- nios ou espíritos impuros, que Jesus curou. Às
funto (ISm 28.11-12), o espectro desempenha vêzes, dão-nos pormenores.Aprendemos que
um papel muito digno e honroso. os demónios podem fazer suas vítimas enlou-
Ad a) Isaías (34.11-15) menciona bodes quecerem, como no caso da "legião" de demó-
(sátiros peludos) em companhia
de Lilit (de- nios de Gedara, particularmente impuros para
mónio feminino da noite), bufos, ouriços e os judeus, porquanto habitavam nos sepulcros
corvos, para pintar a desolação com a qual e aceitaram entrar numa grei de porcos (Mc
retribuirá Deus a Babilónia e as nações (ver 5.1-20 par). Lucas (8.2) também narra um
Is 13.20-22). Embora fossem expressamente caso de possessão múltipla: o de Maria Mag-
proibidos os sacrifícios aos demónios (Lv 17.7), dalena possuída por sete demónios. Marcos
ocorre-nos em plena religião mosaica um curioso (9.17-29) e Lucas (9.38-42) atribuem ao de-
resto da religião dos espíritos praticada entre mónio, explicitamente a "um espírito surdo-mu-
os nómades na forma típica de um rito, há
: do", um caso de epilepsia agravada de mutismo.
68 DESCANSO

Mateus cita o caso de um endemoninhado ao dio da "pythia" de Delfos talvez se tratasse


;

qual o demónio tinnha arrebatado não somente apenas de um caso de mediunidade intermitente.
a fala, mas também a vista. Leva-nos isso a falar também da intervenção,
Não temos, porém, o direito de ver um epi- tão temida de Paulo, dos espíritos impuros no
lépticono endemoninhado de Mc 1.23-28: pois, próprio culto cristão. Êstes parecem ter sido
aparentemente, só depois do exorcismo foi êle pessoas perfeitamente sãs que, entrando em
agitado violentamente e abandonado pelo espí- êxtase ou outro transe supranormal, davam
rito aqui, não é caracterizada claramente a lugar, não exclusivamente aos bons espíritos
;

enfermidade, entretanto suscita interêsse o fato nem ao Espírito Santo, mas aos espíritos per-
de o espírito falar pela bôca do possesso feito versos, para expressar-se por bôca das mes-
médium de Satanás. (Comparar Lc 4.35). mas. Os profetas e glossólalos estavam em
particular expostos a êstes acidentes. Impor-
Contudo é digno de nota que exclusivamente
tava, pois, sobremaneira, saber discernir entre
as enfermidades mentais ou nervosas fossem
bons e maus espíritos. Era tanta essa impor-
acreditadas na conta dos demónios. Jesus
tância, que o carisma do discernimento é men-
curou muitas outras doenças não atribuídas aos
cionado como muito útil e necessário (ICo
demónios como a gripe da sogra de Pedro
;

12.10; 14.29).
(Mc 1.29-31), a cegueira congénita do mendigo A respeito das potências que crucificaram
(Jo 9.1-7), paralisias (Mc 2.1-12 par), etc.
Tampouco usam-se exorcismos nas ressurrei-
Jesus
Em
—> Anjos, Autoridades .

conclusão, folga dizer que as garantias


ções de mortos. Achamos apenas uma exceção
dadas aos crentes contra as emboscadas
em Lucas (13.10-13): a mulher "atormentada
por satanás" é descrita como possuída "por um
do —> Diabo valem igualmente contra os de-
mónios, com a condição, porém, de conservar
espírito de enfermidade".
a fé e aguçar o sentido crítico (ljo 4.1).
Notemos ainda que, mesmo exorcizando,
Jesus não usa fórmulas mágicas, mas ordena /. HÉRING
peremptòriamente ao espírito, e com ameaças DESCANSO
quando necessário. Menciona-se um único caso
de Jesus ter aceitado discutir com os demónios 1. Quando as palavras descanso, repouso, des-
e atenuar sua sentença (o da "legião" de Ge-
cansar, repousar implicam numa noção teoló-
gica, devemos entendê-las na perspectiva e no
dara) Às vêzes, os demónios reconhecem
.

expressamente a natureza superior de Jesus. dinamismo da História da salvação o repouso :

é o lugar para o qual Deus conduz o seu povo.


Assim, o espírito imundo (Mc 1.23s) chama
a terra prometida por Deus àqueles que liber-
a Jesus "Nazareno" (aqui=nazireu, homem de
tou da tirania do Egito (Dt 12.9; Js 21.44:
Deus) Não cabe a menor dúvida de que Jesus
.

SI 95.11); a terra para a qual voltarão os


considerava essas expulsões como os prenún-
cios do —>
Reino. Notemos finalmente o
episódio da pacificação do lago de Genezaré
desterrados (Jr 46.27), o cumprimento e rea-
lização de tudo que, até então, tinha sido dado
apenas por antecipação a felicidade final e
(Mc 4.39 par) a maneira como são acalma-
:
:

eterna do reino de Deus (Hb 3.7-4.10), o


das as ondas sublevadas pela tempestade lembra
surpreendentemente uma conjuração; supõe-se amanhecer do grande —>
sábado, do descanso
de tôdas as coisas em Deus que descansa (Gn
aqui os elementos 'animados" por espíritos ma-
2.2-3; Êx 20.11; Hb 4.3ss).
lévolos.

Consta que os discípulos, por ordem expressa 2. Como u'a mulher, casando-se, acha o des-
de Jesus, e quando Jesus ainda vivia, pratica- canso e apaziguamento de todo o ser na pre-
vam a expulsão dos demónios. O Mestre, oca- sença de tudo que colmará os seus anseios (Rt
1.9; 3.1), assim também a Igreja avança para
sionalmente, inculcava-lhes quão difíceis são as
o tempo em que terminarão seus trabalhos, suas
tais curações (Mc 9.28s par) e quão expostas
provações e penas. Por enquanto, o povo de
à recaída (Mt 12.43-45 par). Depois da res-
Deus, a exemplo do seu Senhor (Mt 8.20;
surreição, Jesus renovou-lhes a segurança de
Lc 9.58), desconhece esta segurança e apazi-
que terão todo poder no céu e na terra, isto
guamento tão desejados (SI 55.1-7); ai de
é, poder sôbre as forças visíveis e invisíveis
(Mt 28.18; Mc 16.17). E, de fato, vêmo-los quem dorme num falso descanso (Sf 1.12-13;
expulsando demónios em nome de Jesus (At
Lc 12.16-21) Pois a hora presente é o tempo
!

sem folga em que a obediência exige uma dis-


3.6). Porém, o nome de Jesus operava ape-
posição perene (At 5.42; 20.31; Cl 1.9, etc).
nas quando o taumaturgo possuia o Espírito
Santo (At 19.13-16). Entre as curas de en- pois Deus nos associa a seu trabalho redentor
demoninhados, cumpre destacar, pelo interêsse que não se concilia com o repouso (Jo 5.17:
dos detalhes, a cura da possessa de Filipos Is 62.7).
(At 16.16ss). Tinha ela um "espírito-píton", 3. Não obstante isso, o repouso prometido
que rendia oráculos, como Apolo por intermé- por Deus a seu povo (Sf 3.13) manifesta-se
DESCER 69

desde já em algumas antecipações (que atingem


até a própria terra: Ex 23.11; Lv 25.4ss) :
a expressão equivale a —> morrer) Subir,
pelo contrário, designa todo movimento que
.

nas libertações que pontuam a História santa remonta do limbo para a terra (assim SI 71.20;
(2Sm 7.11; lRs 5.4; 2Cr 14.5; Is 14.3ss. "de nôvo me tirarás dos abismos da terra") ou
etc), embora possam elas dar lugar a tentações da terra para o céu, do homem para Deus (as-
(Ne 9.28), na grande pacificação salomônica sim At 10.4: "tuas orações subiram ante
(lRs 8.56-61; lCr 22.9), nas horas passadas Deus"). O homem, criatura de Deus, encontra
no Templo que é para o próprio Deus um lugar vida e salvação nas alturas morte e perdição,
;

de repouso (SI 91.1) (veja-se, porém, Is 66.1; nos abismos. Ora o homem, porquanto desobe-
At 7.49), e especialmente na paz do
do (Ex 31.17; 23.12; 34.21; Lc 23.56, etc).
sába- —> deceu, privou-se de qualquer acesso natural às
coisas de cima. A
pretensão mesma de se ele-
Até mesmo adivinharemos uma antecipação do var a elas tornou-se a raiz do pecado (Exemplo
repouso escatológico nas "férias" que Jesus con- da torre de Babel. Ver Is 14.13 onde "subir ao
cede aos seus (Mc 6.31) e que, aliás prepa- céu" parece ser o eco do "Eu serei como
ram a multiplicação dos pães (Mc 6.34-44 par) : Deus"). Enquanto Deus não descer milagrosa-
a fartadela das turbas alimentadas milagrosa- mente a seu auxílio, o homem não violará a
mente prefigura o repouso prometido já em proibição de subir da morada dos mortos para
SI 23.2 e Ez 34.14ss. A
mesma morte, quando a terra, ou da terra para o céu.
qualificada pela esperança, pode vir a ser o Repetidas vêzes vemos no VT Deus intervir
prelúdio do grande repouso final (Dn 12.13; para julgar ou salvar, quer fazendo "descer"
SI 16.9ss=At 2.26; Ap 14.13), embora ela um jogo, uma vos, um anjo, ou descendo pes-
não seja ainda a plenitude dêste repouso (Ap soalmente para salvar Israel (Ex 3.8; ver At
6.9-11). 7.34), para falar a Moisés (Ex 19.11), etc.

4. Em virtude da presença entre nós do reino No entanto suspira Israel pela descida defini-
tiva de seu Salvador (Is 64.2) e, quando por
de Deus e de suas riquezas, Cristo concentra
fim sua espera se cumpre, o Evangelho vibra
na sua pessoa todo o repouso que Deus tinha
de alegria; então, o Espírito Santo "desce"
prometido: eis porque tantas vezes escolhe o
dia sábado para colmar os homens e dar des-
como uma pomba para designar Jesus Cristo
canso aos pobres e aos necessitados (ver Is
como o Esperado, descido do céu para fazer a
vontade do Pai e para dar a vida de cima, a
14.30) eis porque também convoca a si todos
;

vida eterna (ver Mt. 23 presente Jesus, Ca-


os que andam aflitos e carregados para os ali-
:

viar e dar descanso às suas almas (Mt 11.28ss).


farnaum é suscetível de ser elevada até o céu).
Nesta perspectiva, sem dúvida, é que devemos Jesus é pois o verdadeiro pão descido do céu
ler o cap 6 de João no qual aparece tão mis- (Jo 6.30ss). Êle é quem enviará a seus dis-
cípulos o Paráclito e êste descerá no Penle-
teriosamente Jesus-o-nosso-descanso (V. 66.69).
coste sobre os apóstolos reunidos (At 2. Yer
P.S. Para uma descrição do contrário do
repouso, ver Lv 26.34-39; Dt 28.63-68.
também 8.16; 10.44; 11.15). À
descida (=hu-
milhação) do Filho do Homem (descerá êle até
/.-/. von ALLMEN à mansão dos mortos), responde Deus elevan-
DESCER do-o na sua glória (Jo 20.17). Completando
Jo 3.13, Ef 4.8-10 dá a medida da descida e
Além de sua acepção vulgar, os verbos "des- da subida do Cristo, de sua humilhação e de
cer" e "subir" recebem da Bíblia vários senti- sua glorificação o Filho do Homem é a pleni-
:

dos técnicos um sentido geográfico ( Subir a


: tude de todas as coisas mediante êle há de
;

Jerusalém, Descer ao Egito) um sentido cul-;


nôvo comunicação entre o céu e a terra, 'o mes-
tual (Subir ao Templo, Subir à montanha) ;
mo que desceu também subiu" é êle a nossa ;

ambos, porém, subordinam-se a uma significa- vida acompanha-me êle para onde eu fôr "pa-
;

ção teológica básica "subir" e "descer" desig-


: ra cima" ou "para baixo"; êle tudo recapitu-
nando, então, as mútuas relações de Deus e lou. Tal é o significado do surpreendente texto
do homem (simbolizadas pela escada de Jacó paulino "Não mais é preciso subir ao céu para
:

pela qual subem e descem os anjos, Gn 28.12; buscar Salvador e salvação, pois Cristo desceu,
Jo 1.51). Esta terminologia técnica arraiga-se homem entre os homens nem mais é preciso
;

«a concepção bíblica do mundo (


formado de três andares sobrepostos
mundo),
o céu
—> :
procurá-lo entre os mortos, pois êle ressusci-
tou" (Rm 10.5-13). Cumprido está o Salmo
trono de Deus, a terra morada dos homens, o 139 descrevendo a onipresença de Deus "Se :

inferno domicílio dos mortos. Descer designa, subo aos céus, lá estás se faço a minha morada
;

pois, qualquer movimento do céu para a terra no "Hades", lá estás também se nas asas da
;

ou da terra para o inferno; isto é, de Deus alvorada fujo para os confins dos mares, ainda
para o homem (assim, tôda dádiva boa e todo lá me apanha a tua mão".
dom perfeito desce do Pai das luzes, Tg 1.17) Finalmente, "descer" tem um sentido escato-
« do homem para o inferno (assim, Gn 37.35. lógico, designando a parusia, isto é a última apa-
;

70 DEUS

rição do Senhor (lTs 4.16). Com


também a nova Jerusalém (Ap 3.12; 21.2-10)
êle descerá ser
uma
um Deus vivo. Assim como a —>
vida é
realidade misteriosa que foge a qualquer
pondo um fim definitivo a tôda separação entre explicação embora todos comprovem sua pre-
Deus e a criação. sença, assim Deus é uma realidade presente e
Cumpre notar ainda o uso de "descer" no óbvia. A expressão "Deus Vivo" possui um
momento do batismo (At 8.38:Filipe mandou caráter teológico menos acusado que outras
parar o carro para ambos descerem à água"), afirmações, tais como "Deus Rei" ou "Deus
bem apto para salientar o significado batismal Santo" mas esta outras afirmações são con-
;

de "morte com Cristo para ressurreição com dicionadas pela afirmação da vida a vida de
:

Cristo". Deus é a condição de sua duração, de seu po-


E, última nota, também o Diabo tinha seu der, bem como da existência dos homens que
antro nas regiões celestes (conforme Ap. 12.12, vivem exclusivamente em virtude de um sopro
também Lc 10.18) até que a vitória de Cristo de sua bôca (SI 104.29). A
fé no Deus Vivo
ccmpulsou-o a descer de lá. consegue expressar-se melhor na linguagem
antropomórfica. Precisamente, é desta idéia do
Sentido geográfico "subir" significava "ir
:

à Palestina"; o judeu, porém, descia ao Egito.


"Deus Vivo" que o antropomorfismo bíblico
recebe seu sentido bem original, tomando um
Estas expressões não eram apenas a tradução
valor bem diferente do que acusa o antropo-
duma realidade vulgar de altitude ou de lati-
morfismo similar aplicado aos ídolos pagãos.
tude. Enriqueciam-se com as analogias que ha-
via, por uma parte, entre a Terra Santa e o
"Porque Deus é vivo, podemos falar dêle como
de um homem vivo; mas também, porque dêle
Reino de Deus, por outra, entre o Egito e o
falamos como de um homem vivo, não deixa-
reino da escravidão e morte. De tal modo que
"subir do Egito" significava "achar a liber-
mos nunca de lembrar que Deus é vivo" (F.
dade".
MICHAELI, Dieu à Vimage de Vhomme, Neu-
châtel et Paris, 1950, p. 147).
Sentido cultual: A Bíblia usa o verbo "su-
bir" para caracterizar o ato de ir a Jerusalém,
O antropomorfismo acompanha todo o VT
à Cidade Santa, ao Templo, para cumprir um
êle não é uma modalidade primitiva de falar
culto devido a Deus (lembrar "subir a festa",
de Deus, nem é incompatível, como consta no
"subir ao Templo" etc). "Subir" veio a signi-
segundo Isaías, com uma teologia muito espiri-
ficar ir para adorar, não apenas porque primi-
:
tualizada (Ver p. ex. Gn 6.12; Ex 16.12;
tivamente o culto era celebrado em lugares ISm 26.19; SI 2.4; Is 7.18; 63.6; 66.1, etc).
altos e, logo, o Templo construído no cimo
Os antropomorfismos acompanham-se de an-
da cidade, mas porque todo culto, oração ou tropopatismos Deus experimenta todos os sen-
:

timentos humanos, como alegria (Sf 3.17), má-


festividade, constitui uma aproximação do céu.
Esta classe de aproximação é a única 'subida" goa (Lv 20.23), arrependimento (Gn 6.6),
concedida ao homem pecador para êle, o Tem- ciúme (Ex 20.5). Contudo a fé israelita pôs
:

plo é de certo modo o símbolo terrestre do san- certo limites a um antropomorfismo excessiva-
tuário celestial. mente consequente; embora falando de Deus
Tôda a vida cultural de Israel cumpre-se ple- em termos humanos, não esquecia que entre
na e perfeitamente na subida e entrada à pre- Deus e o homem não há comum medida; "Eu
sença de Deus, de Jesus Cristo, o soberano sa- sou Deus, e não homem" (Os 11.9). Isaías re-
crificador(ver Hebreus). sume a irredutível diferença entre Deus e o ho-
M. BOUTTIER mem nestas duas palavras carne e espírito
:

(Is 31.3). A oposição não é tanto entre o espi-


ritual e o carnal, como entre o forte e o fraco
DEUS Por outra parte, o homem da Bíblia só existe
1 "Iavé é o Deus, único verdadeiro, o Deus
verdadeiramente como membro de uma comu-
.

nidade; ora, Deus basta-se a si mesmo, não


Vivo, o Rei eterno". Esta proclamação de Je-
precisando de uma parceira feminina. A língua
remias (10.10) resume perfeitamente o que
era Deus para Israel. hebraica carece dum têrmo especial que corres-
ponda à nossa palavra "deusa", apenas usando
O Deus Vivo. O fato divino era tão normal o genérico elohim (lRs 11.5). Deus não tem
que não guarda o VT o mínimo vestígio de filho; os seres chamados "filhos de Deus" (Gn
qualquer especulação sôbre a origem ou o des- 6.2; Jó 1), embora sêres divinos, não são ge-
tino de Deus. No entanto as teogonias ocupam rados por Deus. Outro limite pôsto ao antro-
um lugar considerável nas crenças dos povos pomorfismo estava na proibição de fazer-sc
vizinhos. Sem dúvida, nem sempre foi Iavé o de Deus qualquer representação figurada (Ex
Deus dos Israelitas, mas tem com os deuses 20.4). Israel compreendeu bem a impossibili-
anteriores uma mera relação de sucessão sem dade de reduzirmos Deus às nossas escalas, e de
qualquer conexão genealógica. Não bem apa- determinarmos uma realidade tão misteriosa e
rece, já é êle um Deus maior e soberano, por tão evidente qual é a vida divina.
DEUS 71

O Deus único. A
afirmativa de ser o Deus da soberania única de Iavé. Esta é, essencial-
de Israelúnico verdadeiro Deus, o Deus
o mente, uma conquista da fé dos profetas os:

único, embora sendo dominante no VT, formula profetas lograram desligar Iavé de qualquer
uma verdade menos evidente do que a anterior. atadura com o sangue e com a terra para en-
O monoteísmo apenas afirmou-se teoricamente tronizá-lo Amo e Senhor da História univer-
em época assaz recente, mas sempre dizer que. sal (Am 3.2; 9.7); doravante os deuses das
desde os exórdios ou, em qualquer hipótese, nações não passam de meros instrumentos na
desde a época mosaica, a fé de Israel foi pra- mão de Iavé. Textos como Dt 4.19 e SI 82
ticamente monoteísta. Moisés não foi reforma- proclamam que os deuses pagãos devem sua au-
dor religioso à maneira de Amenofis IV o qual toridade ao Deus dos Israelitas. O
senhorio de
introduziu uma religião nova vedando e per- Deus sobre a História exige como corolário seu
seguindo a anterior. Também distinguia-se o senhorio sóbre a criação (Am 4.13; 5.8). A
monoteísmo de Israel da lenta evolução babi- diferença entre Iavé e os outros deuses não é
lónica assegurando paulatinamente a suprema- uma mera questão de hierarquia o Deus de
;

cia do Deus Marduc e reduzindo as demais di- Israel situa-se numa esfera radicalmente dife-
vindades unicamente a personificações dos atri- rente e superior. A
afirmação monoteísta, im-
butos de Marduc. O
problema da existência ou plicitamente presente nas mensagens de Isaías
da não-existência de outros deuses não cabia e de Jeremias (Is 31.7; Jr 2.5,11), é sistema-
dentro dos horizontes imediatos de Moisés ês-
;
ticamente enunciada pelo segundo Isaías, o qual
te teve a revelação de um Deus que, pela sua proclama que Iavé é o único Deus; anterior-
força e vitalidade como pela exigência de total mente não houve nem posteriormente haverá
rendimento dos seus adoradores, não dava na outro deus. Iavé é o primeiro e o último (ver
realidade nenhum lugar a outros deuses (Ex Is 41.4; 43.10ss; 45.3-6; 48.11, etc). Os ou-

20.3). M. W. F. Albright opina que cabe tros deuses, em particular os de Babilónia que
falar em "monoteísmo" já nos tempos de Moisés, tinham manifestado seu poder sujeitando Israel,
e cita como prova "a afirmação de um Deus não passam de meros ídolos, pedaços de madeira
único, criador do céu e da terra, fonte de jus- ou metal sem vida (Is 41.24,29). Mas Iavé é
tiça, poderoso no Egito como no deserto e na não apenas o Deus vivo, mas o Senhor da His-
Palestina, desprovido de sexo e de mitologia, tória tôda, tão Senhor da criação total como
que tem uma forma humana a despeito de não de qualquer evento particular que pode predizer
ser visível aos olhos humanos e não ser susce- todo o futuro (Is 43.12; 45.21; 46.9; 48.3,16
tível a qualquer representação figurada" (De etc). Tendo insistido tão fortemente sóbre o
1'âge de pierre au Christianime) . O Deus de caráter único do Deus de Israel, este profeta
Moisés é cioso, e a imagem do laço conjugal, considera-se agora com o direito e o dever de
com a qual os profetas ilustrarão a realidade levar as demais nações ao conhecimento do
da —> aliança, manifesta claramente que o
Deus de Israel considera como uma infidelidade
único verdadeiro Deus, e assim nasce o mono-
teísmo explícito e missionário da religião israe-
a presença de outro deus. Contudo nesta remota lita; muitos são, a partir desta data, os textos
época ainda não é negada a existência de ou- refletindo a influência do grande profeta exí-
tros deuses; enquanto Iavé era o Deus de Is- lico (SI 96.5; lRs 8.60; 2Rs 19.15,20). Dora-
rael, Kamosh era deus do vizinho Moabe (Jz vante vemos frequentemente o nome de IAVÉ
11.24). A
maior parte dos israelitas, cuja fé substituído por ELOHIM, vindo IAVÉ a de-
não era sublime como a de Moisés, pensava signar o deus em geral, especialmente no pro-
que o poder de Iavé limitava-se aos confins da feta Ezequiel.
terra e do povo santo, que peregrinar numa Em conclusão, o monoteísmo de Israel não é
terra estrangeira era desterrar-se da face de fruto de uma reflexão sóbre a unidade do divi-
Iavé (ISm 26,19) e cair sob a tutela de outro no ou sóbre a ordem do mundo, mas é con-
deus quiçá mais poderoso (2Rs 3.27). Mas es-
quista do Deus zeloso e bastante poderoso para
tas fronteiras serão quebrantadas pelo zêlo de
acabar dominando o mundo inteiro.
Iavé o qual reclama para si não apenas a ado-
ração exclusiva dos seus, mas a rendição dos 2. Os nomes do Deus de
Israel, a) El, Elo-
outros deuses êle não podia desinteressar-se
: him . Em
tôdas as línguas semíticas, a idéia do
dos deuses com cujos povos seu povo mantinha divino expressa-se mediante o radical EL (em
incessantes contatos. A
luta de Israel com as acadiano, ilu em árabe, ilah, que, combinado
;

nações vizinhas acompanha-se de um conflito com o artigo, faz allah) cujo significado básico
,

entre Iavé e os deuses dás nações. Contudo, parece ser poder. Para os semitas, Deus é o
:

ambos conflitos seguem uma ordem inversa: forte, o poderoso, que inspira temor e respeito,
enquanto a História política de Israel assinala- a cujos pés curvar-se-á o homem no acatamen-
se pela perda progressiva da independência na- to da fatalidade, do chamado ou da ordem
cional, sua História religiosa se caracteriza, ao emanados dêle. O VT dá êste nome EL a todos
contrário, pela afirmação cada dia mais firme os deuses sem distinção, embora reservando-o
;! ::

72 DEUS

não poucas vêzes como nome próprio para tal cido das tribos israelitas da fase nómade, rece-
deus em particular. Os textos de Ugarite ma- beu de Moisés, quando da revelação sinaítica,
nifestam claramente que o deus EL gozava de um significado e um prestígio antes ignorados.
indiscutível superioridade no panteão cananeu Buscar-se-á o significado conforme as indica-
é êste EL supremo que encontramos nas his- ções da narrativa da sarça ardente, isto é, rela-
tórias patriarcais (assim Gn 33.20: "El, deus cionando-se o nome "Yahveh" com o verbo
de Israel). Seu nome é seguido às vêzes de uma hayah (=ser). Na narrativa de Ex.3, Deus é
aposição toponímica, como El-Betel, El-Olam aquêle que, identif icando-se a si mesmo, declara
(=o deus de Betei, o deus de Olam), ou de "Eu sou =
eheyeh", do qual falarão os ho-
um qualificativo. Porém, o VT
prefere usar, mens, dizendo "Êle é == yaveh". Esta explica-
como nome próprio, ELOHIM. Elohim desig- ção, além de possuir maior verossimilhança,
nava primitivamente todos os deuses e deusas, concorda perfeitamente com o relato do Êxodo;
tornando-se paulatinamente nome próprio em exclui, a meu modo de ver, a opinião daqueles
substituição de Iavé, quiçá para evitar que fósse que pretendem ser Yahveh uma forma causa-
substituição de Iavé, quiçá para evitar que fôsse tiva de hayah =
ser, para designar ao Deus
pronunciado o nome inefável ou para salientar que faz ser, que chama à existência. Falta sa-
que Iavé é o deus por excelência. ber se a resposta de Deus a Moisés constituiu

b) IAVÉ. Encontra-se mais de seis mil


uma revelação ou foi mera evasiva, uma reve-
lação devendo ser traduzida por "Eu sou aquê-
vêzes. No atual texto estabelecido pelos "mas-
le que é", ou evasiva a traduzir por "Eu sou
soretas" do século sexto de nossa era, a asso-
o que sou", isto é, "a ti que te importa?" Há,
ciação de consonantes e vogais permite ler
sem dúvida, alguma verdade em ambos os pa-
Yehovah, forma errada, verdadeiro barbarismo, receres. Com efeito, abundam construções ver-
que se espalhou graças a certas liturgias (Jeo- bais análogas no VT (Ex 3.14; 2Rs 8.1; ISm
vá ^formação híbrida e artificial, originou-se 23.13; Ex 33.19; Ez 12.25), expressando in-
da seguinte forma as vogais da palavra Ado-
:
determinação ou, pelo contrário (como no caso
nai = meu Senhor, que era a pronunciada na dos dois últimos textos citados), intensidade
leitura em substituição do "nome inefável", en- maior "Eu sou verdadeiramente aquêle que é",
:

traram em combinação com as consonantes do que foi, em minha opinião, o sentido da res-
tetragrama sagrado IAVE). Depoimentos, con- posta de Deus a Moisés. Contudo, a fórmula in-
sideráveis tanto pelo número como pela auto- tencionadamente ambígua encobre bem um mis-
ridade, levam-nos a acreditar que Yaveh foi tério que, não obstante a revelação, deve perma-
o único nome próprio do Deus de Israel. Certos necer intato. Em qualquer hipótese, o verbo
Padres da Igreja deixaram transcrições dife- hayah pretendia salientar, não a idéia normal
rentes, tais como Yabe, Yaoue, ..ao, etc. Nos e evidente de existência, mas a de presença com
documentos assírios o elemento teóforo Yah Moisés e seu povo Moisés deverá levar a
:

torna-se Yau. Verossimilmente, desde remotas Israel a revelação específica de Deus ativamente
épocas, conhecia-se o nome da divindade em presente para conduzir, julgar e salvar.
duas formas, uma breve "Yah, Yahu", outra c) Yahveh Tsebaoth. O Eterno dos exér-
mais extensa "Yaveh". O VT conserva ainda citos ou o Senhor dos exércitos. Figura 279
excepcionalmente a forma breve, como em Ex vêzes no VT
e preferentemente nos proféticos.
15.2: "Yah é a minha fôrça e o meu louvor", Conforme três interpretações diferentes, signi-
e na doxologia "Hallellu Yah" =
louvai Yah ficaria exércitos terrestres dos filhos de
os
A mais extensa forma: Yaveh encontra- se usa- Israel, os exércitos de estrêlas ou as legiões de
da já no s. IX a.C na inscrição do rei moabita anjos e espíritos. Notemos que frequentemente
Mesha, bem como nos "ostraca" de Tell ed a expressão figura relacionada com a arca da
rentes, tais como Yabe, Yaoue, Yao, etc. Nos aliança a qual era inicialmente um símbolo
"papyri" de Elefantina o nome divino é trans- guerreiro (Nm 10.35) ademais, Davi defron-
;

crito invariàvelmente como Yahu. Quiçá, am- tando-se com Golias declara "Eu vou contra ti
:

bas formas coexistiam, sendo contudo mais cer- em nome de Yaveh Tsebaoth, o Deus dos exér-
to ver na forma breve uma redução de Yahveh, citos de Isrrael" (ISm 17.45). Êstes exércitos
e não em Yahveh uma ampliação de Yah(u). são, pois, verossimilmente os esquadrões béli-
Relativamente à origem do culto a Yavé e cos. Os profetas ampliando a idéia incluirão
do sentido dêste nome, o Êxodo (cap.' 3) nos todo o conjunto das forças que Iavé conduz
dá uma narração circunstanciada insinuando que destarte salientam o papel dinâmico de Deus
o nome Iavé fôra desconhecido até Moisés. Mas e sua obra de conquista. Não exclui isso que
Gn 4.26 e 9.26 permite conjeturar que se usara os profetas considerassem boa a expressão para
bem antes desta época. A tese que pretende ser afirmar além dêste aspecto essencial, que Iavé
Iavé um empréstimo aos Cananeus ou Quenitas chefia o exército celestial, que êle e não as
não passa de uma mera suposição. Parece-nos divindades estrangeiras tinha direito à adora-
mais provável que o nome de Iavé, já conhe- ção dos fiéis.

DEUS 73

d) Títulos dados ao Deus de Israel. O ra- 7-23) e só tardiamente foi eliminado por Jo-
dical baal denota propriedade e senhorio. Como sias (2Rs 23.13).
título dado a um deus, significa pois que êste
Milkom, o apelativo melek) tornado nome
deus é o proprietário e amo dum determinado =
próprio o REI, era o deus nacional dos amo-
lugar ou pessoa e pretende dominar sóbre eles.
nitas. Sacrificavam-se-lhe crianças, dedicadas no
Assim Iavé era o baal do seu povo (Is 54.5). vale de Hinom, perto de Jerusalém. Opinam,
Em muitos antropônimos o elemento teóforo entretanto, outros que os tais sacrifícios eram
baal designa evidentemente Iavé (Jerubaal, Is- oferecidos a outro Melek, deus cananeu, mais
baal. Baaliada, e sobretudo Baalyah). Progres-
conhecido como Molec ou Moloc (da transcrip-
sivamente, porém, e mais e mais, dissocia-se
ção dos LXX).
ba'al de Iavé (Os 2.16-17): reação necessária
contra a religião cananéia. Entre os cananeus, Tammus, tipo do deus que morre e ressuscita,
além de ser também um título possessivo. Baal personificava as forças da natureza que morre
era o nome próprio da divindade principal. com os calores estivais e ressuscita com a pri-
Iavé chama-se também adon — senhor, espe- mavera. Originário de Sumer (onde era conhe-
cialmente na forma vocativa, adoni ou adonai. cido já no ano 3000 a.C), passou à Siria e à Pa-
O inferior saudava a seu superior e interpela- lestina penetrando até no recinto do Templo
va-o gráfica ou oralmente dizendo-lhe "ado- (Ez 8.14). Entre os fenícios recebeu o nome
nai" =
meu Senhor de Adônis.
Frequentemente achamos associado a Iavé o Dagon, que o VT
encontrou como deus dos
título de melek — rei (Is 6.5). Os Salmos
filisteus(Jz 1.23; ISm 5.2-7), emigrou à Me-
atribuem muita importância à realeza de Iavé; sopotâmia, merecendo um lugar privilegiado no
porém, aplicando-se também o termo à realeza panteão de Mari. Não era um deus-peixe, como
terrenal, a significação de rei flutuou conforme
pretendia a tradição recolhida por São Jerônimo
as mudanças ocorridas em Israel e afetando não
{dag, em hebr. =
peixe), mas o deus da vege-
apenas a pessoa mas a ideologia do rei. Tam- =
tação {dagan trigo) com atributos análogos
bém, com matiz de carinho, Iavé era. chamado
aos de Tammuz.
ab —
pai (Jr 3.4; 31.9; Is 63.16). Vemos em
Entre as deusas, o panteão cananeu reservou
muitos nomes próprios o nome de Deus subs-
o primeiro lugar a Asherah. No texto de Uga-
tituído pelo nome de pai Abias, Abraão, Abner,
:

rite, Asherah figura como paredro (conselheira)


Acab(e), Eliab(e), Joab(e). Iavé merece o
de El e de Baal. Menciona-a o VT (2Rs 21.7;
nome de pai, não por possuir determinadas qua- lRs 15.13; 2Rs 23.7; lRs 18.19) como Baal. ;
lidades inerentes a êste termo, mas por ter gera-
ela era associada aos cultos naturistas da fer-
do na realidade o seu povo declara-o muito bem
;
tilidade e de fecundidade. Noutros contextos
Isaías (64.8) associando as imagens da argila
do VT, Asherah designa um poste de madeira
e do oleiro à idéia de paternidade "Tu és :

objeto de veneração cultual; o nome da deusa


nosso Pai, nós somos o barro tu és o nosso
;
foi aplicado ao poste sagrado sem confundir-se
oleiro e todos nós somos a obra das tuas
com êste, pois Jr 2.27 informa-nos que o poste
mãos".
era uma divindade masculina.
3. Algumas divindades estrangeiras. O VT, O VT não menciona Anat, padroeira da guer-
quando fala dos deuses estrangeiros, tantas ve- ra entre os cananeus. Mas os papiros de Elefan-
zes tentação para Israel, chama-os Baalim e tina (=colônia judia no Egito superior, s. V
Astartes (Jz 10.6; ISm 7.4). O
genérico Baal a.C.) nos informam que Anat-Yahu foi dada
serve-lhe para designar as divindades mais di- como parceira ao próprio Iavé, o que autoriza
versas. O Baal da época de Elias, competidor a crença de ter-se praticado o culto desta deusa
orgulhoso de Iavé, era provàvelmente Melqart, entre os israelitas do reino samaritano, pois
o deus regional de Tiro, pátria da rainha Jeza- êstes colonizaram Elefantina. Anat aparece co-
bel. Entre outros deuses locais, o cita oVT mo nome próprio de um chefe de Israel nos
deus de Siquem {Baal berith de Jz 8.33, cha- tempos dos Juízes (Jz 3.31; 5.6), bem como
mado também El berith, em Jz 9.46) e o deus ligado a pontos geográficos Beth Anat e Ana-
:

de Ecron {Baal Zebub, o deus das moscas, que tot, a pátria do profeta Jeremias.
o escárnio israelita chamará de Beelzebul, deus
Astarte (ordinàriamente pontuada com as
da estrumeira, e que tinha o poder de curar
certas doenças; ver 2Rs 1.1-6; Mt 10.25; 12-24;
vogais da palavra boshet =
vergonha, forman-
do-se a palavra Astor eth) é a Ishtar de Babi-
Mc 3.22; Lc 11.15-19). lónia, a deusa da estrêla matutina, a Vénus da
Kamosh era o deus nacional de Moabe (Nm guerra e do amor. Deusa do amor, Astarte pa-
21.29; Jr 48.7ss. Jz 11.24 menciona-o errada- trocinava a volúpia e a fecundidade. Foi do-
mente como o deus dos amonitas) nos tempos ; tada de uma personalidade tão rica que muitas
salomónicos do sincretismo religioso, recebeu outras deusas acabaram fundindo-se nela, de
direitos de cidadania em Jerusalém (lRs 11. tal modo que pode a Bíblia falar de Astartes
: . :

74 DEUS

no plural para designar todas as divindades fe- embora os ídolos sejam vaidade, fazem sombra
mininas locais. Contudo, a Escritura não des- a Deus e provocam seu zêlo, aspecto êste
conhece que Astartes foi a deusa-tipo, a rainha dos mais originais no monoteísmo bíblico.
do céu, exercendo em todos os tempos seu po-
der sedutor sôbre o temperamento feminino (Jr
—O >Deus
( ídolos)
único quer ser reconhecido como tal
7.16-20 e 44.15-30). pelos homens, não se contentando com um mero
Ed. JACOB —> conhecimento intelectual: o conhecimento
não estabelece a verdadeira relação
NT intelectual
homem-Deus os demónios também participam
;

Não há, nem pode haver no


alguma dou- NT do conhecimento intelectual de Deus e nem por
trina original de Deus, porquanto o Deus do en- isso deixam de tremer (Tg 2.19). Mas Deus
sino de Jesus e dos Apóstolos é o Deus conhe- exige do homem reconheça a sua vontade con-
cido de todo o povo, o Deus da aliança, o
Deus vivo, único, zeloso e misericordioso, o
—> creta, as suas exigências,
cia e misericórdia; quer dizer, o
santidade, benevolên-
conhecimento
Deus santo a quem todos devem obediência e de Deus deve traduzir-se em fé e confiança
fidelidade. Contràriamente a tudo que podiam (Rm 4.3; Gl 3.6), fé na sua justiça, espe-
esperar os intelectuais de Atenas (At 17.19), rança na sua misericórdia (Rm 4.18; 2Co 3.4:
a mensagem evangélica não traz qualquer en- At 24.15; IPe 1.21; 3.5). (_>
Fé) Êste .

sino nôvo sôbre Deus o Deus que age na His-


:
conhecimento prático de Deus salienta bem um
tória de Jesus deve ser reconhecível para qual- outro fato não é possível estabelecer a unici-
:

quer israelita piedoso, pois age como sempre dade de Deus isoladamente precisamos reconhe-
;

acostumou agir de plena conformidade com


e cer que santidade e unicidade de Deus são liga-
as suas promessas. É explicando as Escri-
turas (como Jesus fêz com os discípulos de
—> das para basear a tese da unicidade de Deus.
Deus é Deus único, porque só êle é santo.
Emaús, Lc 24.25ss, e como fizeram os após- Quando mostra a sua face ao homem, mostra-
tolos com a comunidade prístina) que se faz lhe sua santidade e a exigência que esta com-
inteligível a nova ação realizada por Deus em porta: "Sêde santos, porque eu su santo" (Lv
Jesus Cristo. Porém importa comprendermos 11.44), exigência ecoada através do NT: "Sêde
bem que o mesmo Deus da aliança e da Lei, o santos como o vosso Pai celestial é santo" (Mt
Deus dos profetas, continua obrando a favor 5.48). Portanto a fé no Deus único e santo
dos homens cmo sempre fêz. Portanto todas as deve ser obediência. É a obediência que teste-
teses teológicas do VT
passam implicitamente munhará concretamente que só êle é Deus.
para o NT. Quem servir a Deus compromete-se a negar
qualquer serviço a Mamon (Mt 6.24), aos ape-
1 Primeira tese a absoluta unicidade de Deus.
carnais (Lc 12.19), aos ídolos (2Co 6.16;
. :
tites
Todo o NT se monoteísmo do VT
refere ao ICo 10.21), às potestades cósmicas (Gl 4.8).
como a uma tradição indiscutível (Ver a con-
versa de Jesus com os escribas curiosos de ve-
às —> autoridades do século empenhadas a
levantar-se acima de Deus (Mc 12.17; At
rificar a conformidade do ensino deste com a 4.19; 5.29). Evidencia-se pois que tanto no
tradição bíblica, Mc 12.28-34, em particular Nôvo como no Velho Testamento o conheci-
os vers. 29 e 32). Tôda vez que vem à tona mento de Deus é inseparável de uma ética ates-
a unicidade de Deus, o NT
afirma simplesmen- tando que Deus olha para o homem, cuida do
te nós sabemos (ICo 8.4) ou nós cremos, no
: homem e está fundamental e essencialmente ao
sentido absoluto do têrmo (Hb 11.6; Tg 2.19). dispor do homem.
Sem dúvida esta tese não se deve entender num
porquanto não visa to-
sentido intelectualista, 2. O VT expressou esta convicção mediante
mar parte nem definir posição na disputa entre as noções de
Deus do VT
—>aliança e de —>
eleição. O
define-se como Deus de Abraão,
a unicidade ou a multiplicidade dos princípios
diretores do mundo. Tem um sentido polémico de Isaque e de Jacó, como o Deus de Israel
e exclusivo afirmar a unicidade de Deus vale
:
escolhendo um povo que marchasse com êle e
tanto como proclamar a futilidade e a vaidade realizasse seus destinos na História. Esta con-
absoluta dos ídolos (ICo 8.4; 10.19). O NT vicção permanece tal qual no NT. Quem
não afirma a não existência dos falsos deuses, contará os textos mencionando esta re-
uma vez que acredita, a exemplo do VT, na lação singular do Deus único com um povo
possibilidade de o homem entrar em comuni- preferido? (Mt 22.32-33: texto decisivo por-
cação com os poderes demoníacos (embora ce- quanto declara que, precisamente através de
lestes), e considera o culto dos ídolos não como sua relação com Israel, Deus manifesta sua ver-
coisa indiferente mas como uma temível parti- dadeira natureza de ser o Deus vivo. Mt 15.31
:

cipação numa pseudo-religião cheia de perigos Mc 12.26-29; Lc 1.68,78; 20.38; At 3.13;


(ICo 10.7; At 7.40-43; ljo 5.21). O NT 5.30; 2Co 6.16; Hb 11.16; 2Pe2.1; Ap 14.11.
coloca-nos ante o paradoxo herdado do VT etc). Como foi o Deus de Israel, Deus será o
:

DEUS 75

Deus da (At 20.28;


Igreja, herdeira de Israel Cristo e, finalmente, o reino do único Deus na
15.14; Hb 4.9; 11.25; IPe 2.10). Esta rela- terra e nos céus será conseguido pelo combate
ção histórica, viva, de Deus com uma comuni- vitorioso do Cristo (ICo 15.28).
dade temporal e êste laço pessoal entre Deus Assim consta que a única pretensão do NT
e os homens ilustram muito bem a insuficiência é de ensinar-nos a existência de uma relação
das costumeiras noções de eternidade, transcen- profunda entre Deus e Jesus Cristo de confor-
:

dência, etc com as quais tentamos definir Deus. midade com a esperança de Israel, havia de
Nenhuma destas noções pode ser aplicada ao vir um enviado de Deus, um Messias, seme-
Deus bíblico sem precisões ou reservas. Rei dos lhante a um filho de homem (Dn 7.13s), a
céus, criador de todas as coisas, Deus é certa- travar o combate final. Isso não é novidade. Ge-
mente transcendente, eterno, absoluto, etc. po- ; ralmente, porém, o VT opinava que êste Mes-
rém, êste Deus liga-se à História dos homens sias integraria a categoria dos profetas, sendo
que criou, deseja ser conhecido por êles, sus- quiçá um dos que já tinham vindo (Mt 16.14).
cita alguns privilegiados que deverão ser as A fé do VT ignorava totalmente que o enviado
suas testemunhas. seria o Filho único do Deus único e que Deus
revelaria assim em que sentido êle é Pai real-
3. Todos êstes paradoxos culminam na relação mente. Conscientes da novidade inaudita desta
unindo o Deus eterno ao homem —>
Jesus.
Na relação entre a doutrina da unicidade de
revelação, os redatores do NT multiplicam as
expressões aptas para definir simultâneamente
Deus e a cristologia aparece mais nitidamente a posição singular de Jesus e o fato da plena
a originalidade da religião bíblica. Os judeus revelação de Deus invisível em Jesus Cristo.
•stão tão conscientes desta originalidade que Deus declarou Jesus sumo-sacerdote (Hb 5.10),
concebem o temor de que o ensino de Cristo enviou-o (Jo 3.34), suscitou-o (At 7.35; 13.
constituía uma ameaça ao monoteísmo.
23), fê-lo Senhor e Cristo (At 2.36), estabele-
Jesus insiste na transcendência divina absolu- ceu-o juiz dos vivos e dos mortos (At 10.42),
ta,indubitàvelmente. Condenando os mil cálculos deu testemunho dêle (At 2.22), marcou-o com
dos fariseus empenhados em assegurar suas o seu sêlo (Jo 6.27), ungiu-o (At 5.31; Fp
relações com Deus, lembra a soberana dignidade 2.9). Numa linguagem que não é inteiramente
de Deus. Pessoalmente, põe em máximo relêvo empréstimo do VT e da tradição judaica, João
a sua própria dependência de Deus só a Deus : usará expressão que caracterizam ainda mais
procura obedecer (Mt 26.39; Fp 2.8) e pe- enèrgicamente a divindade de Cristo. Jesus vem
rante Deus coloca-se no plano comum a todos de Deus (Jo 3.2; 8.42; 9.16,33; 13.3; 16.27s.
seus interlocutores "Meu Pai e vosso Pai, meu
:
etc). Mas é Paulo quem encontrará as fórmu-
Deus e vosso Deus" (Jo 20.17). Não manifesta las mais decisivas para declarar que Deus, eter-
a mínima pretensão de possuir os segredos de no e Criador, tem-se feito criatura histórica
Deus (Mt 24.36) tirando sua sabedoria exclu- na pessoa de Jesus Cristo. (O prólogo de João,
sivamente da revelação escriturística. recorrendo à noção de Logos, tinha o incon-
E, contudo, Jesus é o Filho de Deus (Mt veniente de induzir o leitor a um modo mais
metafísico que histórico). "Em Cristo estava
16.16-17), revestido do poder divino ou, pelo
Deus reconciliando consigo o mundo" (2Co
menos, de certos aspectos decisivos dêste po-
5.19). "Nêle habita corporalmente a plenitude
der. Sem jamais prevalecer-se da onipotência
da Divindade" (Cl 2.9). Afirmação absoluta-
divina, exerce o poder de perdoar os pecados,
mente nova do NT é que não temos conhe-
reservado exclusivamente a Deus, entrega as cimento autêntico de Deus fora de Cristo, por-
chaves do Reino dos céus (Mt 16.19), exercerá quanto aprouve a Deus revelar sua santidade
o juízo no último dia (Mt 25 31 s)
. . A
primeira e seu amor na pessoa de Jesus Cristo e realizar
teologia cristã designa-o como mediador tanto por meio dêle sua obra redentora.
na criação como na redenção (Hb 1.2: Cl Em momento nenhum, contudo, periga a
1.16; ICo 10.4). Jesus apresenta-se _como transcendência ou a eternidade de Deus, pois a
embaixador de Deus, isto é, segundo as idéias encarnação do Filho não esvaziou o céu, o Pai
da época, como igual em dignidade a quem continua aesentado no trono e Jesus Apresenta-
o enviou "quem me recebe, recebe aquele que
: se como pessoa cuja vontade fica radicalmente
me enviou" (Mt 10.40). O príncipe dêste mun- em contato e harmonia com a do Pai. A união
do, inimigo de Deus, é também seu inimigo entre ambas as vontades é tão perfeita ("Eu e
"para isto se manifestou o Filho de Deus, para o Pai somos um, Jo 10.30; também 17.11,21)
destruir as obras do diabo" (ljo 3.8). Neste que vem a ser idêntica coisa crer no Pai e crer
combate, Deus está absoluta e totalmente com no Filho (Jo 14.1; 14.9). Subsiste, não obs-
o Cristo; o combate do Cristo identifica-se com tante, a dualidade de pessoas: tudo que Cristo
o combate de Deus prova disto é a ressurrei-
; possui é-lhe dado pelo Pai (Jo 17.22: "a glória
ção de Jesus (At 2.32). Sua ressurreição real- que me tens dado") ;
cumprida a obra, Jesus
mente constitui a ratificação divina da obra de retorna ao Pai (Jo 13.3; 17.11). Esta duali-
:

76 DEUS

dade de pessoas na identidade de vontade, não Deus e o homem e proibe qualquer angelologia
se deve exclusivamente ao fato da encarnação, integra a sabedoria, o Logos, à pessoa do Cris-
pois esta não significa em Deus um desdobra- to; no entanto êste mesmo NT
faz do Espírito,
mento provisório nem resulta a dualidade do
; como do Cristo e em relação ao Cristo, uma
encontro entre um princípio uno e uma matéria- pessoa divina. (Esporàdicamente o apresen-VT
fonte-de-divisão. Os redatores do NT podiam tava já o Espírito como uma hipótese divina).
encontrar sem dificuldade na tradição helenís- O NT declara-o "Senhor" (2Co 3.17). fa- O
tica elementos para tal interpretação. Mas não moso texto: "Deus é o Espírito" (Jo 4.24)
o fizeram, embora fossem judeus muito apega- parece identificá-lo com o próprio Deus. Ora,
dos à afirmação monoteísta preferiram formu-: sendo impossível parcelar a obra de Deus, tam-
lar a idéia da pré-existência do Verbo (=do bém resulta impossível discernir de maneira
Filho) aceitando o risco de serem tidos por radical o que depende de Cristo e o que depen-
politeístas (Prólogo de João; Fp 2.6; Cl 1.17: de do Espírito no transcurso do cap. 8 de Ro-
:

Ef 1.4). Sem dúvida Cristo apenas excepcio- manos, Paulo atribui a intercessão pelos san-
nalmente é chamado Deus (Rm 9.5, texto tos ora ao Espírito (27), ora a Cristo (34).
aliás controvertido; Jo 1.1; 20.28; ljo 5.20), Tôda união do homem com Deus ou com Cristo
mas, em compensação, é constantemente cha- faz-se pelo Espírito (ICo 6.17). Espírito O
mado "o Senhor" —
título privativo de Deus chama-se ora Espírito de Deus, ora Espírito de
no VT —
e recebe nas epístolas todas as prer- Cristo. Há porém um ponto absolutamente cer-
rogativas da divindade. A Escritura afirma to: o papel do Espírito é compreensível somen-
pois, sem dar lugar a ambiguidade, a divindade te quando é relacionado com a obra redentora
de Cristo, e note-se que a cristologia não apa- de Cristo. O
Espírito é dádiva outorgada aos
rece aqui como um mero apêndice acrescentado que crêem em Cristo: eis porque figura como
à teologia mas como uma parte integrante dela. promessa feita por Cristo. Do texto bastante
A cristologia pretende revelar-nos o Deus úni- curioso de Jo 7.39: "Isto disse Jesus com res-
co que é comunidade viva, comunidade de pes- peito ao Espírito que haviam de receber os que
soas. O VTensinava que Deus vive e que é nêle crescem pois o Espírito até êsse momento
;

Pai. O NT declara em que sentido Deus vive não fora dado, porque Jesus não havia sido
e é Pai. Não cabe dúvida que a unidade de ainda glorificado" não se deve concluir que o
Deus na dualidade de pessoas seja de difícil Espírito é uma criatura de Deus que começa
inteligência e de difícil expressão as fórmulas :
a existir a partir de um determinado momento,
neo-testamentárias não possuem sempre o rigor mas simplesmente que êle se torna presença di-
desejável, deixam dúvidas, em particular sobre vina apenas ao término do ministério de Jesus.
a subordinação do Filho ao Pai deve-se esta : O NT está bem longe de pretender especular
exclusivamente ao voluntário despojo do Filho sobre a natureza do Espírito Santo e suas re-
vestindo uma humanidade autêntica e inamissí- lações com as outras pessoas divinas ; conten-
vel (subsistirá mesmo depois da glorificação)? ta-se em narrar as diversas épocas da História
Ou existia ela já na preexistência eterna? Da da salvação, e as diversas modalidades da di-
mesma forma, o NT, embora o salientando vina presença nessa História. Assim é que o
caráter pessoal da obra do Filho, não permite Espírito, revestido do poder de Deus, entra em
estabelecer uma distinção entre a obra do Pai e ação depois da partida de Jesus, manifestando-
a do Filho (veja-se a fórmula embaraçada de se simultâneamente Consolador, Ensinador, co-
Paulo: "Para nós há um só Deus, o Pai, de mo aquêle que nos dá, já no século presente,
quem são tôdas as cousas e para quem existi- participação na vida eterna (Jo 14.26; 15.26;
mos e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual
;
20.22). O Espírito, ligado ao Cristo, fala exclu-
são tôdas as cousas, e nós também por êle", sivamente de Cristo (Jo 16.13-14). Quer dizer
ICo 8.6). O roteiro seguido por muitos Pa- que o Espírito Santo não representa para nós
dres da Igreja e teólogos para distribuir entre a descoberta de um nôvo atributo de Deus an-
Pai e Filho os diversos atributos e obras, é uma tes desconhecido. Cumpre atribuir-lhe os mes-
norma puramente especulativa sem apoio nas mos qualificativos que a Cristo não é por :

Escrituras. casualidade ou por incoerência que Jesus me-


rece, como o Espírito, o nome de Paráclito
4. O caráter não-especulativo do NT apa-
(= consolador e advogado; ljo 2.1). obra A
rece também na forma como é introduzida na divina de nossa redenção é uma, embora sejam
revelação do Deus único, a pessoa do Espírito misteriosamente diferentes as modalidades da
Santo ( —> Espírito) . Nenhum
testamentário formula explicitamente o caráter
escrito neo-
presença de Deus entre nós.

trinitário de Deus. Mas a pessoa e obra do 5. O NT


não formula uma doutrina trinitária
Espírito depreendem-se da exposição da eco- de Deus; mas, não obstante, isto seu depoi-
nomia redentora. O NT
repele qualquer po- mento constante autoriza e exige a seguinte
testade ( —>
Autoridades) intermediária entre afirmação teológica o Deus que se revela ao
:
:

DIABO 77

homem para o salvar é uno em três pessoas. usados nas religiões pagãs e na filosofia hele-
Esta trindade de Deus nunca pode ser abstraí- nística. A título de exceção, encontramos po-
da de sua obra redentora, isto é, da História da rém ljo 1.5: "Deus é luz", expressão de to-
salvação, conforme a enérgica declaração de Gl nalidade iraniana. Paulo usa aexpressão "Deus :

4.4-6: "Vindo porém a plenitude dos tempos. eterno" (Rm 16.26), salientando porém o texto
Deus enviou seu Filho... a fim de que rece- original que Deus reina sôbre a eternidade, não
bêssemos a adoção... e porque vós sois filhos, sendo esta uma realidade que existe fora de
enviou Deus aos nossos corações o Espírito de Deus.
seu Filho..." As fórmulas que mencionam as
três pessoas da trindade relacionam-se todas à
7. O que o NT nos ensina sôbre Deus não
pode ser expresso mediante os conceitos usual-
História da salvação (ICo 12.4-6; 2Co 13.13;
mente reservados a Deus. Em particular o con-
Mt 28.19). Êste fato limita grandemente as
ceito de Transcendência, embora inevitável, é
especulações teológicas relativas à Trindade.
inadequado Deus não é alheio ao mundo que
Convém observar finalmente que o têrmo "pes- :

criou (quando envia o seu Filho, envia-o "aos


soa", usado para designar Pai, Filho e Es-
seus" Jo 1.11), mas é o Senhor do mundo.
pírito Santo, não é bíblico e deve ser portanto
Esta expressão que qualifica relações interpes-
sujeito a uma crítica filosófica prévia. Tem a
soais é a única conveniente a Deus. O evento
vantagem de significar que Deus age sôbre o
da encarnação rompe o esquema implicado pela
homem à maneira de uma pessoa, não màgica-
noção de transcendência. A oposição entre os
mente mas pessoalmente.
céus e a terra não designa uma oposição do
6. O NT a Deus numerosos outros
aplica tipo sacro-profano, transcendente-imanente, por-
qualificativos que não podemos sistematizar ou quanto a vontade divina será cumprida tão per-
hierarquizar como se fossem atributos de uma feitamente na terra como no céu (Mt 6.10).
Nada, sôbre a terra, conseguirá impedir defi-
substância qualquer, onde licitamente distingui-
nitivamente a onipotência de Deus (Lc 3.8; Mc
mos entre atributos principais e outros secun-
10.27; At 5.39; 2Tm 2.9) os cristãos têm o
dários. Os divinos atributos do NT correspon-
;

direito de esperar o dia no qual "Deus será


dem todos a determinada presença de Deus per-
tudo em todos" (ICo 15.28). Não menos er-
to dos homens e na História dos homens: esta
rado seria crer que a vinda do Filho nos leva
presença é total em cada caso, designando sem-
à concepção da imanência de Deus a relação
—>
:

pre um ato divino bem mais do que u'a modali-


normal com Deus está na fé e na oração,
dade de Deus. Em abono destas observações»
implicando uma referência pessoal com Deus e,
temos múltiplas afirmações escriturísticas Deus
portanto, uma distância; esta distância, porém,
:

é (ICo 1.9; 10.13; 2Co 1.18), sábio (Rm


fiel
não significa exterioridade, estranheza, e sim,
16.27), verídico (Jo 3.33; Tt 1.2) misericor- ;
posse (ICo 3.23; 6.19). Neste sentido devem
dioso (Rm 2.4), justo (até na sua ira, Rm
ser compreendidas certas fórmulas que, toma-
11.22) é Deus de paz (Rm 15.33; 16.20; lTs
;
das absolutamente sem nexo com o conjunto da
5.23; Fp 4.8-9; ICo 14.33; Hb 13.20), de
revelação, insinuariam quiçá a imanência di-
esperança (Rm 15.3), de consolação (2Co 1.3),
vina no homem, abrindo caminho a u'a mística
de amor (2Co 13.11). Para declarar que em
bem diferente da religião bíblica (tome-se por
Deus não há atributos distintos da essência di-
exemplo o texto de Ef 4.6, onde as palavras
vina e que Deus expressa-se todo no que faz
"em todos" não devem obliterar estas outras
por nós, João usa a expressão "Deus é amor"
— > Amor).
:

"sôbre todos"; o ljo 4.16: "aquêle que per-


(ljo 4.8 Como
muitas vêzes se
manece no amor permanece em Deus, e Deus
observou, esta fórmula não significa que o amor
nêle" que adquire sua verdadeira significação
é divinizado, que considerando-o como um abso-
somente quando lembramos que permanecer no
luto o homem faz dêle um Deus, mas simples-
amor é permanecer em Cristo, feito homem).
mente que reconhecemos a plenitude do amor
na obra feita por Deus em Jesus Cristo me- R. MEHL
diante o Espírito, para nos salvar. Não possuí-
mos norma para medir o amor verdadeiro, a DIABO
não ser o dom que Deus outorga ao mundo en-
tregando seu próprio Filho (Jo 3.16). A palavra hebraica "Satanás" significa adver-
sário. Hada, rei de Damasco, é chamado o
Convém notar ainda que
"satanás de Salomão" (lRs 11.14). Mais exa-
a) O NT, sem contestar o caráter terrível tamente, satanás é o adversário ante um tri-
da santidade divina, tão fortemente sublinhado bunal, quer dizer, o acusador (ver Ap 12.10:
pelo VT (em particular Is 6), raramente o Satanás é chamado "o acusador"). Logicamente
menciona (se excetuarmos Rm 1-2). vem a designar também "o denunciador", "o ca-
b) Os redatores do NT falando de Deus evi- luniador". Os gregos traduziram pois correta-
taram cuidadosamente os atributos e epítetos mente Satanás por Diabo, diábolos significando
;

78 DIABO

de fato o denunciador e o caluniador (ver Jo dos homens ante Deus, intenta fazê-los cairem
6.70s: Judas é chamado "diabo", mal tradu- em pecado, por ser êle pecador (ljo 3.8). Me-
zido por "demónio" em muitas versões). rece pois o nome de "o Tentador" (Mt 4.3;
Nas partes mais arcaicas do VT, Satã ainda lTs 3.5). Tenta com a promessa dos praze-
não é uma personagem independente, nem se- res (ICo 7.5), do poder mundano (Mt 4.8-11),
quer figura como um ser absolutamente malfa- ou de uma ciência quase divina (Gn 3.5) em
zejo. Em Zc 3.1, que é o texto mais antigo troca de nossa desobediência a Deus. Não va-
mencionando Satanás, vêmo-lo à mão direita do cila em usar as mentiras mais astutas, justa-
trono de Deus, e, ao lado, "o anjo do Senhor". mente é conhecido como "o mentiroso", "o pai
No Livro de Jó, Satã revela uma vontade pró- da mentira" (Jo 8.44).
pria aparece apostando com Iavé a alma de Jó,
: Gosta de assassinar: o assassinato é um dos
como posteriormente, na lenda de Goethe, apos- seus meios de ação prediletos. É o "senhor da
tará a alma de Fausto. Porém, somente obra morte" (Hb 2.14; ver Jo 8.44; Ap 9.11; Mt
com a expressa autorização de Deus e dentro 10.28; ljo 3.11-12). É êle o responsável por
dos limites traçados por Deus (Jó 1.12; 2.6). tôdas as tentativas de derrubar um poder moral-
Segundo lCr 21.1, Satanás é quem sugere a mente superior solapando a base física sôbre a
Davi a idéia de recensear o povo de Israel no ; qual êste age. Assim é com os "podêres dêste
entanto 2Sm 24.1, mais antigo, declara que foi mundo" (ICo 2.6-9) que, embora não origi-
o próprio Senhor, na sua ira contra o Rei, quem nados de Satanás, acabaram sendo servos do
o instigou a esta loucura. Diabo, crucificando a Jesus e perseguindo os
Paulativamente, a pregação amiúde pessimista cantos.
dos profetas, as experiências políticas catastrófi- Satanás usa constantemente violência e fraude.
cas dos judeus, bem como a influência da reli- Impõe-nos isso muito valor e extremada vigi-
gião persa, fomentam a concepção mais dualista lância (Ef 6. lis: Tg4.7; IPe 5.8s; 2Co2.11).
do mundo. Embora sem chegar a ser um anti- tanto mais que "o próprio Satanás pode trans-
deus, como entre os mazdeus e os maniqueus. formar-se em anjo de luz" (2Co 11.14). A sau-
e com a consciência de ser criatura inferior a dável desconfiança, a prudência da serpente (Mt
Deus, Satanás começa a assumir um papel mais 10.16) face aos lobos vestidos de ovelhas, são
dramático e independente. Aparece como chefe virtudes cardiais recomendadas pelo NT (Mt
de um exército nefasto, empenhado a prejudi- 7.15; At 20.29-30; Fp 3.2; ver Mt 7.6). Nin-
car os planos da divina Providência. Seu exér- guém terá o direito, se fôr enganado, de invocar
cito é constituído pelos "anjos de Satã" (Mt como desculpa sua credulidade ingénua ou sua
25.41; Ap 12.7,9). O Apocalipse conhece um confiança generosa.
"trono de Satanás" (2.13). Os judeus, porém, Convém notar aqui que não apenas os indi-
nunca desenvolveram noções muito precisas so- víduos mas também e sobretudo as coletividades
bre a hierarquia do mundo satânico êles con- ; são o objetivo de Satanás, de suas mentiras
fundiam, às vêzes, Satanás com Belzebu (=rei e astúcias; estas é que pretende ganhar para
da estrumeira; forma corrompida de Belzebub, sua causa. As potências políticas são "servas de
a divindade filistéia considerada pelos judeus Deus" somente enquanto se esforçam por man-
como muito perniciosa, 2Rs 1.1-3; ver Mc ter o direito e a justiça (Rm 13.1-7). Um go-
3.22s par). vêrno que substitui a justiça pela arbitrariedade
O nome Beliar podia convir, inicialmente, a e o terror, que persegue os inocentes, torna-se
qualquer criminoso. Mas no NT encontramo-lo escravo de uma ou de outra das bestas, criaturas
tornado sinónimo de Satanás (2Co 6.15). diabólicas, que o Apocalipse descreve com ima-
Não consta que o narrador sagrado identifi- gens tão horrorosas.
cara a serpente de Gn 3 com Satanás. Mas pos- Satanás, em suma, aparece como o malfeitor
sui a cobra modalidades tão expressivas das por excelência, digno de ser chamado "o Ma-
intenções diabólicas (tentação, falsidade, ma- ligno" ou "o Mau" (2Ts 3.3; Mt 6.13; ljo
tança da humanidade), que não deixa de pare- 2.13). Diria-se hoje em dia que é êle o inimi-
cer-nos muito natural que, ulteriormente, a Sa- go número um (Mt 13.39). Tão grande é seu
bedoria (Sab 2.24) e o Apocalipse (12.9; 20.2) poder no mundo atual que se lhe dá às vêzes o
identificassem o diabo com "a velha serpente" título de "príncipe dêste mundo" (Jo 12.31;
que tão péssimo papel teve nos exórdios da 14.30; 16.11); não se reduz seu poder a esta
humanidade. Também o dragão que, será derro- terra mas, enquanto durar o presente século, é
tado pelo arcanjo Miguel, confunde-se com o também "o príncipe da potestade do ar" (Ef
diabo. Nem por isso devemos acreditar que o 2.2).
poder satânico limita-se exclusivamente à terra Qual será a sorte de Satã? Já sofreu uma
manifesta-se, pelo contrário, no céu e nos mun- derrota humilhante com a morte de Jesus sô-
dos intermediários. bre a cruz, evento que êle havia planificado
Satanás, sob êste ou outro nome, age sempre cuidadosamente em vista de sua vitória. Mas,
de idêntica forma. Além de denunciar as culpas pela morte de Cristo, foi cancelado o escrito de
DINHEIRO 79

dívida que devia arruinar a humanidade (Cl tamente absurda e antibíblica)


falsa, Anti- . Um
2.14s). Êste é um dos aspectos mais prodi- cristo menciona-se apenas em ljo
(singular)
giosos do grande paradoxo da —>
cruz. Mas
ainda continua a luta, em particular no mundo
2.18) "Ouvistes que vem o Anticristo". Êste»
:

segundo ljo 4.3, "já está no mundo". Mas o


invisível. Embora Jesus tenha visto a Satanás primeiro texto acrescenta "Também agora têm
:

caindo do céu como um relâmpago (Lc 10.18), surgido muitos anticristos", aludindo aos nega-
esta visão foi meramente profética sem alcance dores da encarnação real do Cristo (2Jo 7)
definitivo para o presente. que rejeitavam a identidade entre o Cristo ce-
lestial e o Jesus histórico. Mas o Anticristo por
O cristão ressente na sua vida, até na sua
carne, os contragolpes dos combates entre Cris- excelência (singular) não aparece expressa-
to e os poderes inimigos (2Co 12.7). Esteja mente identificado com o Diabo trata-se, an- ;

êle pronto para marchar ao martírio, se prc tes, de um sequaz de Satã, do "homem de ini-

ciso fôr nunca considere a prática dos pre-


;
quidade, filho de perdição" que Paulo anuncia
ceitos do sermão do monte como suficiente para antes do fim dos tempos (2Ts 2.3-4).
garantia de paz e segurança. Por outra parte, também chamado "o adversário" e que, ani-
os semeadores da boa palavra não são respon- mado de um orgulho insensato, apresenta-se
sáveis pelo joio crescido no campo — quem como se fôsse o próprio Deus (ibid). Êste é o
o semeou é o inimigo, Satanás. (Mt 13.39). Anticristo que provocará uma grande apostasia,
Entrementes o cristão não duvida da final juntamente com as grandes bestas do Apocalipse
destruição de Satã e seus anjos. Esta é expres- que são também criaturas do Diabo.
samente anunciada no NT, em particular nas
epístolas de São Paulo e no Apocalipse de São /. HÉRING
João (Rm 16.20; ICo 15.25-28; Ap 14.10;
19.20; 20.10; 21.8; Mt 25.41). DINHEIRO
Quanto à tese de Orígenes, aceitando como
provável a conversão e redenção final do Diabo, Dentro do contexto bíblico reina afinidade
não aparece biblicamente fundamentada. entre as idéias de dinheiro, de ouro, prata, bens,
O crente, a despeito de tôdas as misérias riquezas e Mamon, correspondendo lugar maior
causadas pelo Diabo, tem a certeza do amor e aos conceitos gerais de bens e riquezas. O ouro
da fidelidade de Deus, o qual "não permitirá e a prata não representam, através dos diferen-
que sejamos tentados além das nossas forças" tes níveis históricos da Bíblia, estas realidades
(ICo 10.13). Sabe que Deus, por si mesmo, simbólicas que costumamos designar sob seu
a ninguém tenta (Tg 1.13), que a sexta peti- nome constituem frequentemente puras reali-
:

ção do Pater (Pai nosso) significa: não nos dades materiais, preciosas em si, mas não ins-
introduzas em provação. Na realidade, Deus trumentos de intercâmbio (ver Gn 2. lis e Ag
pode provar-nos mediante tribulações mas Sa- ; 2.7s) "As coisas preciosas de tôdas as na-
:

tanás intenta positivamente fazer-nos cair um : ções virão, e encherei de glória esta casa, diz
mesmo acontecimento, aliás, pode tornar-se pro- o Senhor dos exércitos. Minha é a prata, meu o
vação divina e tentação diabólica, conforme as ouro, diz o Senhor dos exércitos").
intenções respectivas de Deus e do Diabo.
1. Bens e riquezas, ouro e prata, formam o
Notemos ainda a expressão "Filho do Diabo" esplendor da criação. Ora, sendo a criação inva-
Não possui necessàriamente um sentido mitoló-
riàvelmente concebida em dependência do_Cria-
gico, mas pode designar os servos de Satanás
dor. esplendor e glória são propriedade do Fa-
(em particular os judeus incrédulos no vers
zedor (SI 24.1). Êle é quem dispõe promete
8.44 de João, os mágicos de At 13.10. Devem
e dá àquele que lhe aprouver, livre e gratuita-
ser interpretados com maior literalidade os
mente, mesmo quando o homem não faz jus a
textos que nos mostram a Satanás entrando em
eles. Assim Deus promete em Moisés a seu
determinadas pessoas, p. ex. em Judas Iscario-
povo: "casas cheias de tudo o que é bom, casas
tes, Lc 22.3; Jo 13.27; ou tomando posse de-
que não encheste, grandes e boas cidades que
las, p. ex. de Pedro, Mc 8.33 par).
tu não edificaste, poços abertos que não abriste,
O rito de entregar a Satã um pecador, oca- vinhais e olivais que não plantaste" (Dt 6.10s).
sião de contaminação para a Igreja (ICo 5.5). As riquezas aparecem primordialmente como o
deve ser explicado à luz da excomunhão prati- sinal da bênção divina, da graça e livre prefe-
cada na Sinagoga: o réu excomungado da co- rência de Deus ; testemunham a fidelidade do
munidade torna-se, ipso facto, devotado às for- Senhor que paga com suas dádivas a fidelidade
ças do mal contudo Paulo considera que esta
;
dos homens (SI 34.11; 36.9; 65.10.14). "Se
desgraça é suscetível de dar ao pecador oca- quiserdes e me ouvirdes, comereis o melhor des-
sião para se arrepender e se salvar.
ta terra" (Is 1.19). Mas, mesmo quando con-
Finalmente, qual é o ensino bíblico sobre o cedidos por Deus, os bens e riquezas serão con-
Anticristo? (A ortografia antecristo é absolu- siderados como a possessão de Deus (SI 105.24;
80 DINHEIRO

Ag 2.7s). Não esqueça pois o herdeiro da pro- acúmulo e cobiça ofende o senhorio único de
messa que exclusivamente o Senhor promete e Deus, Criador e pai, porquanto manifesta des-
dá, só êle garante e assegura a perenidade do confiança para com êle.
bem outorgado. Nunca poderemos dissociar o
gesto de dar e a coisa dada. conforme a ex-
3. O NTinsiste menos na idéia de serem os
bens materiais o sinal da bênção de Deus, mas
pressão do salmista (SI 16.56) :

reitera com a maior energia a proibição de

"O Senhor é a porção da minha herança e apropriarem-se os bens que pertencem exclusi-
[do meu cálice; vamente a Deus (Lc 15.12ss: a parábola do fi-
Tu és o arrimo da minha sorte: lho pródigo mostra que reivindicar e apossar-se
uma herança ameníssima caiu-me em das coisas signfica separar-se de Deus). Tal
[sorte. apropriação manifesta nossa vontade de dispen-
outorgou-se-me uma linda herança". sarmos a ajuda de Deus (o Rico Insensato, Lc
12.15-21), e nossa incapacidade de seguir a
Tôda a História de Israel, enquanto perma- Jesus Cristo (o Jovem Rico, Mt 19.22: "ou-
nece testemunha um cuidado extremo de
fiel, vida esta palavra, retirou-se triste, por ser dono
não se apropriar os dons de Deus. Deus dá, de muitas propriedades"). Tiago asevera ser
porém, continua amo e senhor de seus dons. impossível qualquer apropriação de riquezas que
dispondo dêles e retirando-os como consta na não seja ligada a alguma injustiça (5.1-6). E
História de Jó. João demonstra a incompatibilidade entre a
posse de riquezas e o amor fraterno (ljo 3.17).
2. Ademais, os bens e riquezas são concebidos Vemos recomendado, em lTm 6.17ss, um ver-
mais como alimentos que Deus dá para saciar dadeiro dever de imprevidência, e preconiza
os homens famintos e sedentos na medida pre- como previdência espiritual a generosa repar-
cisa de sua fome e sêde, do que como tesouros
tição dos bens postos à disposição de todos os
para acumular. O VT sublinha muito pouco necessitados. O sentido final de qualquer ri-
os títulos de propriedade do homem, e sim muito queza é prover às necessidades dos que pade-
sua condição de poder desfrutar os bens recebi- cem fome. Os tesouros da criação não se des-
dos (ver p. ex. Ec 5.17-19). O homem é o tinam a ser acumulados para assegurar o po-
usufrutuário da criação não seu proprietário
;
der de um homem: são meramente bens de
irrestrito. Deus o criou para gozar as riquezas consumo. O rico que guarda egoistamente para
da terra e regozijar-se nelas. Cumpre referir si os seus haveres é amaldiçoado, mas o pobre
esta observação ao tipo de civilização e à ma- é proclamado bem-aventurado (Lc 6.20). As-
neira de viver do velho Israel nómade ou semi-
:
sim se explica a atitude da primeira comuni-
errante, não cogita em acumular bens, satisfeito dade de Jerusalém: os crentes, após venderem
com alimentar-se. A história do maná com o seus bens, punham o dinheiro em comum (At
qual Deus alimentou-o no deserto, deixou nas 2.45 e 4.32). Os bens destinam-se aos pobres,
suas tradições lembranças profundas (Ex 16), não para torná-los ricos a sua vez, mas para que
podendo Paulo mencioná-la como um ensino bá- cesse sua miséria. Contudo, não seria bem con-
sico (2Co 8.15). Não basta, porém, esta expli- forme ao espírito bíblico entender apenas espi-
cação Israel veio a ser um povo sedentário e
:
ritualmente o versículo: "Encheu de bens os
proprietário, e contudo não eliminou os escrúpu- famintos e despediu vazios os ricos" do Magni-
los e dificuldades suscitados pelo acúmulo das ficat (Lc 1.53). Nem devemos tomar o con-
riquezas e do dinheiro. Esta nunca deixou de junto dos textos aludidos como um panegírico
ser o objeto da reprovação, em particular dos da pobreza em si, porquanto o estado de misé-
profetas. (Em Ez 27-28, amaldiçoa-se Tiro por ria não agrada a Deus, mas, pelo contrário.
causa do acúmulo de riquezas e comércio). A Deus deseja terminar com êle: eis porque proí-
reprovação profética anuncia o juízo de Deus. be o acúmulo das riquezas nas mãos dos ricos.
o qual retomará o que é seu (Zc 9.4). Ainda Um tal acúmulo anuncia a ruína do rico que
mais, no Deuteronômio Israel aparece plena- coloca sua fé não em Deus mas nas próprias
mente consciente do perigo espiritual inerente riquezas.
à sedentariedade, à posse da terra e à realeza.
Acumular cavalos, mulhres, ouro e prata, é proi- 4. Não desaparece, porém, do NT a idéia da
riqueza como bênção e graça divina, mas apa-
bido ao futuro rei (17.16s). Salomão, com tôda
a sua sabedoria e piedade, não evitará a cen- rece ligada ao ideal de renúncia. É preciso
sura por ter feito que "em Jerusalém houvesse perder sua vida para ganhá-la. "Em verdade vos
prata como pedras, e cedros como sicômoros nas digo que ninguém há que tenha deixado casa.
planícies" (lRs 10.27). Arruina-se o reino de irmãos ou irmãs, mãe ou pai, ou filhos ou cam-
Salomão com esta política de acúmulo e ava- pos, por amor de mim e por amor do Evange-
reza, agravado ainda por Roboão, seu sucessor lho, que não receba, já no presente, o cêntuplo
(lRs 12). Para o VT, qualquer política de de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos.
DINHEIRO 81

com perseguições, e no mundo por vir, a vida e as preocupações inerentes a qualquer forniu
eterna" (Mc 10.29-30). Observemos todavia de possessão tiram-nos a liberdade indispensá-
que as bênçãos terrenas não constituem algum vel para a procura do Reino. Aliena-nos o di-
sinal inequívoco da divina graça ; entre tantas nheiro perante as esperanças do Reino... tão
coisas prometidas há lugar para as persegui- grande é o seu poder Contràriamente à opi-
!

ções. Já insinuava o VT que as riquezas não nião dos modernos, a onipotência do dinheiro
são um critério absoluto e uma prova irrecusável não se deve unicamente a uma paixão interior
da benevolência de Deus "vale mais o pouco do
: que nos devora. Mas esta paixão interior, da
justo que a abundância de muitos ímpios" (SI qual nos fala também Jesus, corresponde a uma
37.16) Jó, depois de muito relutar, compreen-
;
realidade exterior bem objetiva: O dinheiro
deu que sua pobreza e miséria não significavam não é coisa neutra, deixada ao nosso uso bom
o abandono de Deus. ou mau, mas, aos olhos de Jesus, êle ocupa um
assento entre as potências satânicas que sujei-
5. O conceito de dinheiro está, na verdade,
tam o homem, razão por que Jesus lhe dá o
incluído na idéia de bens, aplicando-se-lhe jus-
nome de Mamon (Mt 6.24; Lc 16.13) pala-
tamente tudo que até agora foi dito. Entretanto,
vra aramaica que significa ordinàriamente o
o dinheiro merece considerações especiais por
dinheiro e, por extensão, a riqueza. Aqui, Jesus
representar, mais do que as outras riquezas, uma
personifica o Dinheiro considerando-o uma di-
ameaça espiritual. "O amor do dinheiro é raiz
vindade. Assim fazendo, Jesus não obedece ao
de todos os males" (lTm 6.10). A moeda, meio ambiente, nem adota alguma designação
com seu cortejo de facilidades, aumenta ilimi- corrente entre os seus ouvintes, pois não consta
tadamente o poder do homem, despertando-lhe
absolutamente que, entre judeus ou galileus, ou
uma cobiça sem medida. "Quem ama o dinheiro
entre os vizinhos pagãos, houvesse alguma di-
jamais dêle se farta; e quem ama a abundân-
vindade chamada Mamon. Jesus não se refere
cia nunca se farta de renda" (Ec 5.10). Em a um ídolo pagão para fazer-nos compreender
certa maneira, o dinheiro é o contrário dos
a ineludível opção entre o Deus verdadeiro e
bens de consumo, nunca sacia, sempre multipli-
um nem alude a alguma superstição
falso deus,
ca a vontade de poder. Constitui para o homem local.Mamon, como personificação do dinheiro,
uma fonte inesgotável de sujeição. Por esta é conforme tudo indica, uma criação de Jesus.
razão, a legislação mosaica levou a extremos O Mestre pretende revelar-nos, com respeito
as diligências para limitar o poderio do dinhei- ao dinheiro, uma coisa excepcional, pois não
ro: proibição de emprestar a juros, proibição costuma lançar mão de deificações ou personi-
da usura nas interrelações de israelitas entre ficações.(Ver J. Ellul, Uargent, p. 31 de Étu-
si ou com os estrangeiros instalados em Israel
des théologiques et religieuses, 27.° ano, n.° 4.
(Dt 23.20; Lv 25.35-36; Ex 22.25s). Teme 1952). Revela-nos precisamente êste poder qua-
com muita razão o VT que o dinheiro, inter- se sobrenatural do dinheiro, tão enorme que
pondo-se entre o homem e seu próximo, dete- consegue, dentro dos limites permitidos por
riore suas relações mútuas. Resulta do maior Deus, prejudicar até os planos divinos colo-
interêsse confrontarmos essas diversas prescri- cando-se em paralelo com o poder de Deus. Dai
ções com as que regulamentam o salário (Dt o dilema: "Ninguém pode servir a dois senho-
24.14s; Jr 22.13; Tg 5.4) porquanto também res... não podeis amar a Deus e a Momon"
estas manifestam o temor de o dinheiro tornar- (Mt 6.24). Cinicamente o poder daquele que
se um poder de opressão. Tiago (2.1-4) obser- "despojando os principados e potestades, publi-
va que a consideração dada às pessoas por camente os expôs ao desprêzo, triunfando sô-
causa de seu dinheiro e das marcas exteriores bre êles na cruz" (Cl 2.15), poderá dar fim à
de suas riquezas, levar-nos-á a discriminações dominação de Mamon, como dá fim a todo o
mortais para a fraternidade cristã. Jesus dá afã e a tôda a angústia. Notava já o VT quão
particular relêvo ao poder satânico do dinheiro longe podia ir o poder do dinheiro. Amós (2.6)
e das riquezas. Pois, nelas, quase fatalmente, denunciava os crimes dos filhos de Israel que.
coloca o homem sua confiança, fazendo-se-lhe "juízes, vendem o justo por dinheiro, e conde-
doravante impossível a entrada ao Reino dos nam o necessitado por um par de sandálias".
céus (Mc 10.23-25). Eis porque exige uma re- Miquéias (3.11) pintava a perversão da casa
núncia radical ao poder do dinheiro :"Vendei de Israel "Os seus cabeças dão a sentença por
:

os vossos bens e dai esmola; fazei para vos suborno, os seus sacerdotes ensinam por um
outros bolsas que não se desgastem, tesouro salário, os seus profetas anunciam por dinhei-
inextinguível nos céus, onde não chega o la- ro". O NT descreve fenómenos parecidos a :

drão nem a traça consome. Porque onde está isca do dinheiro leva os homens a transformar
o vosso tesouro, aí está também o vosso cora- a casa de oração em casa de comércio (Jo
ção" (Lc 12.33s). Observemos que êste ensino 2.15) por amor ao dinheiro Ananias e Safira
;

4e Jesus insere-se num conjunto doutrinal sôbre rompem a comunidade da Igreja (At 5.2)
a espera escatológica do —> Reino: o dinheiro Simão, o mago, (não carece de interêsse tra-
;
;

82 DINHEIRO

tra-se de alguém que tem comércio com as pais da unidade da Igreja (Ver Ph. H. ME-
potestades demoníacas) acredita que o dom NOUD, La vic dc 1'Eglise naissante, Neuchâtel
de Deus pode ser comprado a dinheiro (At et Paris, 1952.). O dinheiro é uma bênção de
8.20) de São Paulo, espera Félix não as pa-
; Deus na medida que êle é livremente dado. e
lavras de salvação mas "que lhe desse dinheiro" não acumulado (lTm 6.18s).
(At 24.26). Finalmente e sobretudo, a palavra Não se preconiza o desprêzo ao dinheiro. Sim-
de Amós revela-se profética em Judas (Mc plesmente deve êle desaparecer como potência
24.26) e nos soldados cuja falsa declaração hostil ao poder de Cristo deve deixar de ser
;

contra a ressurreição comprou-se a dinheiro poder para tornar-se o sinal do amor fraternal.
(Mt 28.12s). Singularmente significativo foi Paulo, em máxima bem concreta, caracteriza o
o papel decisivo do dinheiro entre todas as nôvo estado de coisas o dinheiro-poder tendia
—> potências satânicas coligadas para matar
:

a sujeitar, a explorar o homem pelo homem;


a Jesus Foi crucificado Jesus o crucificado e
! : mas agora, em Cristo, êle deve tender a instau-
o JUSTO, aquele mesmo que chamou o dinhei- rar a igualdade entre os homens: "Não é o
ro de "Mamon de iniquidade" (Lc 16.11). En- nosso propósito (escreve com ocasião da coleta
tre o Justo e Mamon, não fica lugar para com- para os irmãos de Jerusalém) que vós vos so-
promisso. Eis porque Jesus se negou a cobrir brecarregueis para que outros tenham alívio
com sua autoridade o poder do dinheiro dar : mas para que haja igualdade. Nas circunstân-
a César (isto é a uma outra potência) o di- cias presentes, a vossa superabundância suprirá
nheiro que é de César (Mt 22.21). O dinheiro a falta dêles e também a superabundância dé-
;

como tal não pode ser posto ao serviço de les virá a suprir a vossa falta, de modo que
Deus. haja igualdade..." (2Co 8.13-14).
Ao
poder constrangedor do dinheiro oponha- A parábola do administrador infiel (Lc 16.
se portanto a absoluta gratuidade da Palavra e 1-13) ilumina com maior luz a decadência do
do Reino. A
redenção do homem não se faz dinheiro-poder e a valorização do dinheiro-
a dinheiro "Vós, os que não tendes dinheiro,
: dádiva para manifestar a salvação gratuita de
vinde, comprai e comei sem dinheiro e sem Deus o ecónomo, ainda que infiel e desonesto,
:

preço" (Is 55.1-2). Os Doze são enviados sem é louvado por Jesus e proposto em exemplo,
dinheiro (Mc 6.8). Paradoxalmente, os ho- porque não teve consideração pelo valor sacro
mens serão alimentados, reconfortados e sal- do dinheiro, antes olhou para a necessidade dos
vos por Aquele que foi o Pobre: "conheceis a homens cativos. O dinheiro é subordinado ao
graça de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo homem (na medida que êste é sujeito a Cris-
rico se fêz pobre por amor de vós, para que to) :mais vale fazer-se amigos com o Mamon
pela sua pobreza vos tornásseis ricos" (2Co da iniquidade do que professar a religião do
8.9). Será pois servo de Cristo quem, privado dinheiro. Aparábola declara, pois, na sua in-
de quantas riquezas os homens cobiçam, saberá tensão secreta, que o rei-dinheiro foi destronado.
encher os homens (como na cura do coxo da Também na parábola dos trabalhadores da
Porta Formosa: "Não possuo ouro nem prata, vinha, o Senhor expressa que não se preocupa
mas o que tenho isso te dou: em nome de Je- tanto com respeitar as normas impostas sob o
sus Cristo, o Nazareno, anda!" At 3.6). reinado do dinheiro, como de fazer bem àqueles
Não decorre contudo destas reflexões que. que êle ama (Mt 20.1-16).
repudiando a afirmação do VTsobre as rique- Longe pois de pregar uma ética de absten-
zas sinal da bênção de Deus, o NT proiba aos ção em face do dinheiro e de outras formas de
fiéis todo contato com o dinheiro, e preconiza riqueza, a Bíblia nos convida, na ausência do
uma ética sistemática de desprêzo ao dinheiro. Amo (Mt 25.15), a fazermos frutificar os ta-
Sem dúvida deve-se devolver a César o que é lentos (Mt 25.14-30) e utilizarmo-los para sus-
de César, no entanto deverá César servir-se do tento dos nossos semelhantes (Mt 24.45-47).
dinheiro para cumprir sua missão própria pois
;
Mas esta tarefa será impossível enquanto o
esta, ainda que porvisória. não deixa de ser dinheiro continuar sendo uma potência, isto é.
conforme à divina vontade. Para quem reco- enquanto nós não formos de Cristo (ICo 3.22).
nhece a soberania de Cristo, o dinheiro perdeu Em Cristo, pelo contrário, as nossas obras não
o seu poder. Na perspectiva de Cristo o dinhei- carecerão de sentido. Pois, Deus assumirá al-
ro se desvaloriza importa não o dinheiro em si.
: gum dia, em forma não revelada, as nossas
o seu maior ou menor volume, mas a capaci- obras edificadas com o "Mamon da iniquidade",
dade de dispor dêle livremente. Neste espírito ou seja, com as riquezas injustas, e as entroni-
de renúncia, pode constituir o dinheiro o objeto zará no Reino (Ap 21.24), porquanto essas
duma oferta a Deus (ver Mc 12.41-44: o óboio obras pertencem ao Senhor. Destarte a decla-
da viúva), ou o sinal da união fraternal, como ração do Senhor (Ag 2.8) "minha é a prata
:

acontecia no "comunismo" da primitiva Igreja e meu o ouro" revestirá seu sentido essencial-
ou nas coletas levantadas a favor da Igreja de mente escatológico.
Jerusalém e que foram uma das marcas princi- R. MEHL
. :

DIREITA 83

DIREITA 5.31), "assentou-se" (Hb 1.3), "está de pé"


(At 7.56), "está à destra de Deus", significam
!. Muito embora não goste de antropomorfis- que Jesus, terminado o seu ministério, cum-
mos, o VT não encontra maneira mais concreta prida a sua morte e ressurreição, foi instalado
para nos falar do Deus vivo e ativo, que cria por Deus como rei no sentido do SI 110, ou
e conserva, que age, ataca e defende, que julga, seja como vencedor de todos os seus inimigos
castiga e salva, quando não lança mão das (vers. 1), como rei de Israel (v. 2), revestido
metáforas bem humanas de "mão", "braço", simultâneamente das funções de sacrificador
"destra" ou direita de Deus. Mostra-nos pou- eterno (vers. 4 =
Hb 7), e de conquistador
cas vêzes as mãos consoladoras, cativantes (Is e pacificador de todos os reinos e povos
40.11) ou maternais (Nm 11.12) de Iavé, e (vers. 5-6) Todos os autores do
. procla- NT
sim, muitas, as mãos do Libertador (Ex 13.3), mam esta realeza (veja-se por exemplo Mt
do Senhor proprietário (SI 95.4), do Pastor 26.64 par; Rm
8.34; Ef 1.20; Cl 3.1 Hb 8.1 ; :

que não perde de vista seu rebanho (SI 95.7), 10.12; 12.2; e IPe 3.22 particularmente signi-
do Protetor livre e poderoso (Is 40.2; SI 63.9), ficativo) Notemos, porém, que João nunca
.

do Rei que dá recados a seus mensageiros (Ez usa a expressão "à destra de Deus" nem cita
3.22; 37.1), do Criador (SI 104.28), do Juiz o Salmo 110, embora venha a dar por outro
que sevícia (Is 5.25), do Adversário inven-
cível (Dt 32.39; 2Sm 24.14), do Juiz de última
caminho na mesma proclamação ( Pala-
vra.). Na declaração unânime de todos os escri-
—>
instância (SI 31.6,16). "Vingadora" (não vin- tores do NT, por Jesus é que doravante Deu-
dicativa, mas literalmente "mão de justiça", Is age, reina, cria, conserva, ataca, defende, cas-
41.10), a mão de Deus restaura a justiça em tiga e salva.
prol dos oprimidos e da honra divina C. BIBER
( —> Juízo —>
Justo) Com idêntica inten-
ção fala o texto sagrado do "braço" de Deus.
.

DIREITO
é para o povo de Deus a suprema consolação
e a máxima esperança, saber que a destra de 1. O
conjunto dos documentos que se relacio-
Deus obra, ou seja que Deus é o Senhor da nam com o direito encontra-se no Pentateuco
História, cuja providência vigilante ostenta os conhecido em Israel como THORA — A
LEI
seus efeitos na vida das nações e de cada com efeito, o
Pentateuco contém a regra dc
crente vida prescrita a Israel juntamente com
2. O NT fala raras vêzes da mão ou da destra
a —> revelação divina. A tradição faz de
Moisés o legislador de Israel; ao que parece,
de Deus (Lc 1.51; Hb 10.31; IPe 5.6), por- deve-se a Moisés a constituição do direito israe-
quanto agora a intervenção divina tomou for- lita bem como a permanência de suas caracte-

ma e nome em Jesus Cristo encarnado de ; rísticas essenciais durante o transcurso da


Cristo cumpre falar agora. Em compensação, longa História do povo escolhido. Muitos
textos foram redigidos indubitavelmente muito
a expressão "à direita de Deus" do Salmo 110
depois do Êxodo, em particular entre o VII.°
figura umas vinte vêzes. O Salmo 110 era
e o V.° séculos mas, não obstante isso, Moisés
usado na antiga aliança como canto de entro- ;

influiu decisivamente na formação do Direito.


nização o acesso ao trono de Israel era um
:

ato político que correspondia à iniciativa de Moisés forjou a alma de Israel.


Deus. O rei era simplesmente o "amo-depois- No verdadeiro amontoado de
Pentateuco,
-de-Iavé" do povo, investido da autoridade su- documentos distinguem os especia-
legislativos,
prema, porém responsável ante Deus. O NT listas diversas coleções, sendo as mais antigas :

aplica o salmo ritual de entronização a Jesus a) um código ritual (ver Ex 34.10-26) pro-
que Deus fêz Senhor e Cristo (At 2.36) con- vàvelmente anterior ao êxodo; b) o Decálogo
fiando-lhe todo o poder (Mt 28.18). O sen- (Ex 20.2-17; Dt 5.2-24) cujo original data-
tido pleno desta entronização do Cristo é reve- ria da época mosaica c) o Código da Aliança
—>
;

lado na " Ascenção", narrada no final de (Ex 20, 22, 23, 19), vasta compilação de pre-
<4
obsu3Dsi2„ y -s£{o;sid3 sbu 9 soqpSuEAg sou ceitos litúrgicos, rituais e morais. Entre os
's^surejpijduii 3 Bipijdxa 'joSia uiod EpESsjd documentos mais modernos, cumpre citar
oSoj 3 'so}y 3p oSojcnd OU 3 SBonq 3 SODJEJ^ d) o Deuteronômio (1-26), descoberto em Je-
manifesta uma efetiva tomada de poder, e não rusalém durante o reinado de Josias (622 aC) :

uma viagem milagrosa (cuja atestação aparece em forma de exortação dirigida por Moisés
muito sóbria nos textos) "Ascendeu aos céus"
. a seu povo, lembra-se a gratuidade da eleição
significa uma ascensão política, não meteoroló- de Israel e o reconhecimento que êste deve
gica (W. Vischer) o ; —>
céu é o lugar onde
reina Deus, donde emana o querer divino, lugar
manifestar a seu Deus, observando os divinos
mandamentos (ver 2Rs 22) e) o Código de
;

sempre superior a qualquer autoridade humana. santidade (Lv 17-26) redigido na época do
Portanto, as expressões "foi elevado": (At exílio. Insiste-se na santidade de Deus e nas
86 DOUTRINA

Em suma, para "os seus", Jesus não é um comunicar as leis c preceitos da Bíblia, os cami-
professor ("Não fala como os escribas", Mt nhos e vontade do Senhor (Ver Ex 18.20; Dt
7.29), mas, sendo seu Senhor de quem êles de- 4.1; 11.19; Ed 7.10; SI 25.4; 51.16, etc).
pendem totalmente, fala-lhes com autoridade. Quem ensinava era o próprio Deus, o chefe de
Os discípulos haverão de ser as testemunhas de família ou algum crente piedoso. Observemos
tudo quanto êle fêz na sua vida, morte e res- que, contràriamente ao ensino grego, a) não
surreição. se visava a perfeição de tal ou qual faculdade
No Livro dos Atos, a palavra "discípulo" re- humana pessoal, mas pretendia-se relacionar o
cebe uma extensão bem maior, pois designa em aluno com uma realidade exterior a êle, coro
geral todos os cristãos (At 6.1; 9.1,25; 11.29; a realidade divina; e b) o ensino visava essen-
21.16 etc), alternativamente com "irmãos" e cialmente a vontade do homem convidando-a a
com "crentes". Uso muito sintomático porquan- se sujeitar à autoridade da mensagem divina.
to declara mais uma vez que ser discípulo im- O ensina moldava a totalidade do ser humano.
plica fé incondicional naquele que é o Senhor. As mesmas intensões, formas e métodos, ani-
mavam ainda o ensino do judaísmo tardio. O
M. BERNOUILLl "rabbi" (—> Discípulo) mestre religioso em
,

Israel, não se contentava com o aperfeiçoa-


DOUTRINA mento das faculdades especulativas ou práticas
Todos os termos da Koiné, traduzidos nas do aluno, mas propunha-se a inculcar a von-
versões neo-latinas por "doutrina, ensino, ensi- tade de Deus, apoiando-se (= futura caracte-
nar, doutor e mestre", derivam do mesmo ra- rística do ensino cristão) na autoridade dos tex-

dical grego (com exceção de "Mestre", que tos sagrados e comentando-os.


umas poucas vezes usamos para traduzir "ky-
rios" quando deveríamos dizer "amo" ou "se-
2. Jesus doutor. Do ponto de vista formal,
o ministério magisterial de Jesus não se difere
nhor", como em Mt
6.24). Os nossos substan-
tivos "mestre" (aplicado a João Batista, Lc
do dos rabinos. Como êles, ensina Jesus nas
sinagogas (Mc 1.21 par), senta-se para ensi-
3.12, e sobretudo a Jesus, nos quatro evange-
nar (Mt 5.1; Lc 5.2s; Mc 9.35), tem seu:.
lhos) e "doutor" (para designar os judeus ver-
sados na Escritura, Lc 2.46; Jo 3.10, e tam- —> discípulos para o servirem (Mc 4.35s;
bém mais tarde os cristãos encarregados do 6.37-41; 11.1-6; Mt 26.17-19; ponto no qual
ministério magisterial, ICo 12.28; Ef 4.11) encontra-se com João Batista, outro rabbi Lc :

traduzem um mesmo vocábulo grego, didáscalos. 3.12; Mt 9.14; Lc 11.1; Jo 3.25); e como
êles comenta as Escrituras (Lc 4.16.21; Mt
Em certos textos (Mt 23. 7s; Jo 1.38; 11.8.
5.17-48; 9.13; 19.16.20, etc). A
diferença
etc), conservou-se o equivalente aramaico rabbi
que assim passou às versões gregas e latinas, de outros títulos privativos de —>
Jesus, tais
como "Cristo" ou "Senhor", êste título de dou-
bem como à quase totalidade das versões mo-
dernas. Esta observação prévia demonstra que tor pode legitimamente ser aplicado a outros

há. no conjunto de noções do relativas à NT homens, antes (Lc 2.46), durante (o Batista
doutrina, uma unidade, coesão e precisão bem e Nicodemos) e depois do ministério redentor
maiores do que deixa supor o nosso texto por- (os doutores cristãos), não obstante Mt 23.8
tuguês. que explicaremos mais abaixo.
Oministério doutoral de Jesus tem, contudo,
1 .Ensino grego e ensino judeu. Ensinar sig- um caráter absolutamente único. Jesus, ao en-
nificava, na Grécia, comunicar aos alunos um sinar a Escritura, fala, na realidade, de si pró-
saber de ordem intelectual ou técnica, tal como prio. Pois dêle é que testemunha as Escrituras
leitura, música, equitação ou esgrima. Assim (Jo 5.39; 5.45-47). Daí provém-lhe esta auto-
comprendido, o ensino comportava duas carac- ridade soberana que reivindica (Jo 5.31-38) e
terísticas a) esforçava-se o mestre por des-
:
que impressiona tão vivamente seus ouvintes
pertar e desenvolver as disposições pessoais do (Mc 1.22; Mt 7.29; Lc 4.32). Os rabinos
alune, mediante determinada série de normas e ; contentavam-se em comentar a Lei defrontando
b) as disciplinas ensinadas dirigiam-se exclusi- os seus ouvintes com as exigências abstraías de
vamente à faculdade humana em causa como : Deus. Mas enquanto Jesus ensina, nêle se en-
à razão nas ciências intelectuais, aos músculos carna a própria vontade do Deus vivo, de tal
na educação corporal, à habilidade manual nas maneira que não precisa dizer "assim diz o
:

artes ou nas técnicas. Não era visado o homem, Senhor", mas ousadamente "em verdade eu
:

na sua totalidade. vos digo" (Mt 5 passim) . Em Jesus, a vontade


O VT
não ignorava certamente êste tipo ba- de Deus atinge imediatamente a vontade do
nal de ensino, semelhante ao grego ensino do : homem sem qualquer necessidade dos deficientes
canto (Dt 31.22) ou da guerra (2Sm 22.35). intermediários intelectuais que fatalmente pro-
Todavia na maioria dos casos, o verbo "ensinar" vocam discussões e demoras. Jesus é o comen-
aplicava-se à coisa bem diferente : ensinar era tário vivo da Escritura que ensina, pois, embora
:

EDIFICAR 87

a Lei fora dada a Moisés, é em Jesus que são Constatação bem típica nem bem entrados
:

«ladas a graça e a verdade que a Lei prometia na Igreja, os pagãos precisavam do ensino e da
(Jo 1.17) e que nos introduzem à fé. doutrina, como consta da importância que as
epístolas a Timóteo e a Tito atribuem à "sã"
3. O ministério eclesiástico do ensino. O ca- doutrina. Êste renovo de interêsse pela doutrina,
ráter únicodo ensino de Cristo não impede a depois de vencida a primeira época missionária
presença na Igreja de doutores revestidos do
ministério específico de ensinar ( —>
Ministé-
rios NT). Aqui como alhures, a unicidade abso-
na qual predominava a pregação, confirma tudo
que já sabemos pelo NT: o ensino cristão é
acessível somente a homens já convertidos pela
luta de Cristo não exclui mas exige funções
pregação.
eclesiásticas que repercutem esta unicidade.
Noutras palavras, não é possível interpretar Mt
Em termos mais gerais, sempre válidos para
a Igreja, a teologia ( := o esforço por explicar
23.8 ("Vós não sereis chamados mestres, por-
os tesouros da revelação) não precede mas se-
que um só é vosso Mestre") senão harmonizan-
gue á pregação. Cumpre abrir primeiramente
do-o com outros textos tais como ICo 12.28-29;
uma janela, mesmo pequeníssima, sóbre o imen-
Ef 4.11; At 13.1. De tôda evidência, Mt 23.8
so horizonte do Reino (Lc 17.5-6) logo, à
;
impossibilita doravante qualquer ensino autó-
luz desta fé (se tiverdes fé como um grão de
nomo, porém não elimina e sim fundamenta
mostarda), o ensino bíblico e catequético, com
mais solidamente "em Cristo" o ministério ecle-
raízes nos dois Testamentos, descobrirá passo
siástico de ensinar. Ensinar "em Cristo" é um
a passo, com a ajuda do Espírito (Jo 14.26), a
dom carismático concedido por Cristo (Ef 4.
insondável riqueza do Reino.
II), mediante o Espírito (ICo 12.1; 4.11).
J..-L. LEU BA
4. Doutrina pregação. Fundado sóbre a
c
Escritura e destinado a explicar a Escritura, o
ministério do ensino difere especificamente
EDIFICAR
da —>pregação do Evangelho. 1. Velho Testamento. O
verbo edificar apa-
Jesus ora prega, ora ensina. Pregar e ensi- rece no VT
no sentido próprio de construir:
nar não formam pleonasmo mesmo quando apa- (seu equivalente grego deriva de oikos, casa
recem juntas como em Mt 11.1 ou nos Atos significando literalmente fazer uma casa) edifi-
(4.2; 5.42; 15.35; 28.31). Quando pregam, car-se um altar, etc. (Ex 20.25; lCr 21.18;
Jesus e os apóstolos anunciam o Evangelho, a lRs 16.24; Am
9.14, etc). Por extensão pas-
nova inaudita o Reino de Deus cumprido e pre-
:
sa a significar o edifício que Iavé está a cons-
sente em Jesus Cristo. Na pregação não desem- truir em Israel "Para sempre firmei a tua
:

penham as Escrituras um
papel definitivo. Mas posteridade e edifiquei o teu trono de geração
quando ensinam, Jesus e os apóstolos declaram, em geração" (SI 89.5). No mesmo salmo 89,
a partir das Escrituras, a conformidade dos fa- a graça de Deus é um edifício eterno (lit. "a tua
tos presentes com a História santa de Israel,
misericórdia será edificada para a eternidade).
revelando todo o alcance e riqueza das Escri- Em Jr 12.16, Iavé decide edificar não apenas
turas. Aos Livros do VT
incorporaram-se, por
natural consequência, as palavras de Jesus (Mt
o seu povo, mas as —>
nações: "serão edifi-
cadas no meio de meu povo", verdadeira incor-
28.20) e, ulteriormente, também as palavras poração dos pagãos à comunidade religiosa de
dos apóstolos (ICo 4.17; Cl 2.7; 2Ts 2.15;
Israel, cuja realização subordina-se à sua con-
ITm 6.2). O
antigo cânon das Escrituras com-
versão prévia à fé no Deus de Israel "se elas :

pletou-se com o nôvo cânon, comentário per-


juram pelo meu nome dizendo: Iavé é vivo!
feito e completo do primeiro. Doravante Ve-
elas serão edificadas no meio do meu povo".
lho e Nôvo Testamento constituem a fonte úni-
Iavé edificará os muros de Jerusalém (Jr 31.
ca de todo ensino cristão.
3-11) concretamente: aos deportados de Babiló-
É, pois, natural que as duas terceiras partes nia promete Jeremias a volta ao país, a recons-
<3os textos neo-testamentários, onde figura o
trução de Jerusalém e da comunidade nacio-
verbo "ensinar", encontrem-se nos Evangelhos
nal.
e na primeira metade do Livro de Atos; que,
das 59 menções da palavra "mestre", 49 se
O
VT, usando o verbo edificar para descrever
a ação de Iavé no mundo, acentua quatro as-
achem nos Evangelhos. O ensino, tal como vie-
pectos principais da ação divina
mos a definí-lo, é o único que podia convir
imediatamente aos judeus, sem prévia prepara- a) É uma ação histórica Deus entra real-
:

ção. Os pagãos, pelo contrário, deviam ser le- mente na História para construir um povo tem-
vados a Cristo pela pregação e, a seguir, alimen- poral (uma realeza, famílias, cidades...) alvo
tados pelo ensino: pois, já convertidos, eles se das incessantes vicissitudes inerentes à mar-
tornam capazes de contemplar a riqueza do cha de todo o povo, vitórias e desmoronamentos,
Cristo através das Escrituras e do comentário revoluções internas e guerras exteriores, fide-
que delas fizeram Cristo e os Apóstolos. lidade e traição à fé ancestral, orgulho e maras-
88 EDIFICAR

mo popular, etc. Importa grandemente notar ressuscitado de At4.11, mas o Cristo glorifi-
que o Deus de Israel não edifica apenas um cado "pedra viva" do edifício for-
e espiritual,
determinado escol de almas religiosas, mas um mado de pedras vivas, cabeça dos membros da
—> povo inteiro, vocacionando-o como tal para Igreja.).
levar seu nome a todas as nações. Tampouco Encontramos ainda nos evangelhos muitos
dirige-se Iavé a tôda a humanidade em conjunto
mas no meio dela edifica um grupo social e
ecos de uma reflexão sôbre o
—> —>
Templo de
Jerusalém, sôbre sua edificação e muito
religioso que dará testemunho do Deus da ter- mais sôbre sua destruição iminente (Mc 13.1;
ra tôda. 14.58; 15.29; Mt 26.61; 27.40; Jo 2.19; At
b) O edifício social de Iavé será, pois, essen- 6.14). Emtodos estes textos, o Templo de
cialmente, durante todo o transcurso de sua Jerusalém é tido por "o edifício pré-excelente
existência, a ilustração do —>
juízo e da gra-
ça de Deus. Assim, acontecerá que ao verbo
de Israel" as pequenas sinagogas locais, a des-
;

peito de seu papel importante na vida religiosa


edificar venha juntar-se o verbo destruir: Iavé nacional, nada têm com o Templo somente o
:

destruirá frequentemente o seu povo, para


Templo testemunha e garante a presença de
Iavé e a vida da tradição (SI 46; 48; 76; 84;
reedificá-lo melhor. "Porei sôbre éles favorà-
Telmente os meus olhos, e os farei voltar para 122; 125; 132; 133) (Comparar Mq
3.12; Jr
esta terra edificá-los-ei e não os destruirei ;
7.14,26ss). Portanto profetizar a destruição
;

plantá-los-ei e não mais os arrancarei" (Jr 24.


do Templo equivalia a anunciar a ruína de todo
6). Estas promessas e esperanças referem-se
o povo de Deus. Jo 2.19 (ver também Mc
imediatamente ao regresso do exílio, mas se 14.58; 15.29; Mt 26.61; 27.40) relaciona de
estenderão posteriormente a uma reconstrução
maneira bem significativa a ruína do Templo
escatológica definitiva.
com a ressurreição de Jesus, o nôvo Templo, o
nôvo lugar de reunião dos fiéis.
c) O edifício construído e o campo culti- Por outra parte, a palavra de Jesus a Pe-
vado por Iavé são duas imagens que, já no dro "Tu és Pedro e sôbre essa pedra (rocha)
:

VT. atraem-se e se completam. O campo culti- edificarei a minha Igreja" (Mt 16.18) abre
vado dá uma idéia de continuidade o constru- :
perspectivas novas a) É doravante Jesus, não
:

tor de Israel não deixa um só dia de traba- Deus, quem edifica o povo escolhido; essa é a
lhar na edificação. E o edifício sugere a idéia sua tarefa messiânica que iniciou com o cha-
de comunidade o agricultor Iavé não planta
:
mamento dos apóstolos, b) No rabinismo. Deus
plantas isoladas, mas um edifício, uma casa edificava o mundo sôbre a rocha de Abraão
cujas diversas partes formam um conjunto le- (= sôbre o fundamento de Israel), doravante
vantado à sua glória (Jr 12.14; 31.27; 1.9ss: é Pedro quem assume o papel de fundamento
18.7-10). em lugar do pai dos crentes notemos, porém,
:

d)Finalmente, o VT
gosta de relacionar as aqui e lá, a fundação do povo de Deus feita
idéias de criação e de edificação (
Iavé construi a mulher (Gn 2.22;
— Am
^> criação).
9.6).
sôbre uma pessoa crente, especialmente eleita;
o papel de Pedro, nesta construção, sendo úni-
A edificação do povo de Deus é uma criação, co, é irrepetível, c) Pedro será o fundamento

porquanto, na sua origem, há apenas a auto- da Igreja; seu construtor porém é Cristo: "Eu
ridade e a gratuita eleição de Iavé. edificarei" (não: tu edificarás ou dirigirás),

2. Nôvo Testamento. O NT aceita o uso de


d) A —> Igreja é que será edificada. O vocá-
bulo grçgo Igreja aparece apenas aqui e em
"edificar" vulgarizado através do VT (Mt 21.33 Mt 18.17, sendo ignorado dos demais evange-
par, lembrando Salmo 118.22 citado
Is 5.1ss; listas. O têrmo aramaico usado por Jesus desig-
em Mt 21.42; Mc 12.10; Lc 20.17; At 4.11; nava sem dúvida a comunidade messiânica co-
1 Pe 2.7; ver também Rm 9 33 em relação a
Is 8.14). Quando o NT cita o VT na perspec-
. missionada para anunciar o —> Reino e dava
ao mundo os sinais precursores dêste Reino
tiva de construir, sua intenção é sempre polé- vindouro.
mica, evidentemente não para negar que o Ve- Passando para as epístolas, encontramos uma
lho Israel fora uma edificação de Deus, mas reflexão muito aguda sôbre o fundamento e a
para afirmar que o edifício recebe em Jesus cimentação do edifício eclesiástico (ICo 3.9-15).
Cristo seu complemento e seu verdadeiro sig- Paulo afirma em primeiro lugar (v. 1-8) que
nificado, e que a Igreja é a perfeita realização todos os ministros são iguais perante Deus ao
e a última razão de ser da Sinagoga (Mc 12. qual pertence em exclusivamente o poder e a
lOs) a Pedra rejeitada pelos chefes do povo,
; glória de fazer "crescer" a Igreja. Aseguir
Jesus o Cristo, não é mais a pedra angular, sus- claramente (v. 9-15) o seu próprio ministério
tentáculo da casa, mas a pedra da cumeira. (que tem sido, em Corinto, de colocar a base
coroa do edifício, e sua explicação (cf IPe da Igreja mediante a pregação de Cristo) do
2.4,7, aqui a pedra não é o Cristo da parusia. ministério de seus sucessores (Apolo, etc.) (que.
como em Mc 12.10-11, nem o Cristo morto e sôbre esta base inalienável (v. 10) edificarão
:

ELEGER 89

a Igreja). A intenção profunda de sua argu- 3.13-14), ora que é a habitação de Deus na
mentação é de salvar a própria responsabilida- Igreja (Ef 2.22; 4.12-16), ou a proclamação
de Paulo fêz a sua parte, que cuidem os suces-
: do Evangelho a todo o mundo (IPe 2.4-10).
sores do que fica por fazer, que edifiquem sa- Êstes diversos textos têm em comum uma coi-
biamente sobre a base do apóstolo (ver a mes- sa: sublinham que a edificação da Igreja não
ma em
contextos diferentes:
idéia 15.20; Rm tem sua finalidade em si mesma, mas serve uma
Ef 2.20; lTm
2.19). A
nota teológica rele- presença divina e uma missão mundial ultra-
vante aqui é que o fundamento da Igreja não passando a própria construção.
é um homem, uma instituição ou associação, Finalmente, cumpre notar que a edificação
mas o próprio —> "Jesus Cristo", "colocado"
cm Corinto mediante a pregação apostólica.
da Igreja está ameaçada sem trégua, do exterior
e muito mais do interior. Daí as exortações
Os outros textos de Paulo referentes à edi- das epístolas para que todos cuidemos da cons-
ficação apostólica podem ser divididos em duas trução comunitária ameaçada pelo individualis-
(A) Paulo
categorias: define o seu ministério mo religioso (ICo 14), pelo individualismo
como propriamente de edificação (2Co 10.8; moral (ICo 8.1,10; 10.23; Rm 14.19; 15.2;
13.10; 12.19). (B) Descreve em que condições lTs 5.11; Cl 2.6) e pelo individualismo dou-
se desenvolve êste ministério (ICo 3.15-17; trinal (Jd 20; IPe 2.4-5; Ef 4.11-16; Cl 2.6).
Rm 15.20; Gl 2.18; Ef 2.19-22; 4.11-16). O Quem analisar êstes três grupos de textos, verá
texto de Efésios considera a edificação na pers- com surprêsa com quanta precisão de pensa-
pectiva da —
"^.unidade da Igreja: unidade mento e com quanta autoridade pastoral aten-
diam os apóstolos à edificação das primeiras
entre os cristãos judeus e os cristãos gentios
no interior do "edifício" único de Cristo uni- ;
comunidades cristãs. (Sóbre tôda esta matéria,
dade de toda a Igreja "crescendo" sob o man- consultar P. BONNARD, Jésus-Christ édifiant
dato de um mesmo "cabeça", Cristo (Ef 4.11- son Église, le concept d'édification dans le NT,
16). Aqui, como acontecia amiúde no VT, as Neuchâtel et Paris, 1948).
imagens da construção e do crescimento se com- P. BONNARD
penetram e completam mutuamente, dando lugar
a expressões logicamente incoerentes, porém,
perfeitamente coesas para a intuição teológica
ELEGER
Jesus Cristo é declarado simultaneamente o VT
fundamento da Igreja (por meio dos apóstolos
e dos profetas), a autoridade (cabeça) da Igre-
1. A noção de "eleição", "voca-
"escolha",
ção", "preferência", descansa
sobre o verbo
ja (causa de seu crescimento, atividade cons-
"bahar" que, inicialmente, significa olhar ràpi-
trutora), e a meta final (tôda a vida da Igreja
damente como um animal acossado pelo caçador,
cresce para Cristo).
e. por extensão, examinar, apreciar e escolher.
Ademais, os fiéis também hão de "edificar" Como acontece com outros verbos, "bahar" é
a Igreja, fossem êles apóstolos como Paulo e usado em todos os casos nos quais usaríamos o
os Doze, ou profetas, glossólalos, intérpretes- verbo escolher ou eleger em nossa língua.
glossólalos, portadores de carismas (ICo 14.3-
No domínio da vida corrente, escolhe-se um
12) ou simples crentes vivificados pelo Espírito objeto (por ex. pedras, ISm 17.40; um cami-
de amor. Pois o amor é que edifica (ICo 8.1)
nho, SI 25.12; um refúgio, Dt 23.16), uma
(—>
10.23)
amor) Muitas coisas não edificam (ICo
.

não qualquer conduta moral edifica,


pessoa (uma mulher, Gn 6.2; um chefe, Ex
;
18.25), uma realidade moral (o bem ou o mal.
mas a conduta pacífica (Rm 14.19) possível Is 7.15s; a vida ou a morte, Dt 30.19). Um
a todos (Rm
15.2; lTs 5.11; IPe 2.5; Jd 20) ; derivado de "bahar" designa homens ou mulhe-
também serve para edificar o ensino indireta- res jovens e escolhidos, o escol ("bahour", Jz
mente apostólico (Cl 2.6-7). Por ser Cristo o 20.16), os valentes. Normalmente, qualquer es-
construtor da Igreja, não estão menos compro- colha pressupõe um exame, uma ponderação
metidos na empresa todos os membros da co- onde o elemento intelectual predomina sobre o
munidade. Ademais o objeto da edificação não sentimento. A
eleição decide-se depois de pesar
é apenas a Igreja como tal: o NT
não conhece os prós e os contras. Todavia uma escolha não
outra Igreja senão a realidade bem concreta se pode eximir totalmente de um sentimento de
dos homens e das mulheres de que ela é com-
preferência ou de favor escolhemos o que ama-
:

posta êstes homens e estas mulheres devem


:
mos com predileção e, assim, passa o verbo
;
ser edificados, "construídos" no edifício total.
"eleger" a significar também "amar" (Is 1.29;
Nunca porém dá o NT
à palavra edificar o
Jó 36.21).
sentido, preconizado pelo pietismo, de uma emo-
ção religiosa tôda íntima e individual. Qual 2. Quase sempre, o VT relaciona eleger com
será pois a finalidade última da edificação? As a vida religiosa do homem ou do povo, dando-
epístolas contestam, ora, que é o futuro julga- lhe, por sujeito ou por complemento, Deus. Às
mento visitando e provando o edifício (ICo vêzes, usa-o a propósito da decisão do homem
90 ELEGER

respondendo a alguma exigência de Deus rela- vaso, sendo o senhor absoluto da argila que
tiva à lei, à vontade divina, ao caminho da jus- amassa sobre rodas (Jr 18.2-6). Não significa
tiça (SI 110.30,173; Pv 1.29). Nunca porém isso que a eleição é arbitrária como os caprichos
aparece o próprio Deus como sendo objeto da dos potentados mas a preferência divina é diri-
;

eleição humana, porquanto é Deus quem elege gida sempre para a realização do plano pré-
o seu povo e os seus fiéis. (Citemos, a título determinado salvar o mundo. Não há eleição
:

de exceção, a idéia de Deus objeto da eleição fechada em si, mas vocação para uma missão
humana, em Js 24.15-22: "se vos parece mal prevista e para um serviço. Israel tem sido
servir ao Senhor, escolhei hoje a quem sir- eleito para uma determinada missão entre as
vais... vós mesmos escolhestes a Iavé para o nações. Tal vocação enriquece de privilégios
servir". Aqui, o povo, posto na alternativa de indubitáveis (bênção divina, promessa, prote-
servir a Deus ou aos ídolos, escolhe a Deus, ção, libertação, etc), mas comporta responsa-
devidamente prevenido por Josué contra uma bilidades pesadas e impossíveis de serem evi-
preferência superficial e inconsiderada. Mas tadas sem romper a aliança. Ademais, ela tem
neste caso também, a escolha do povo é secun- evidentemente os seus limites, tôda vez que a
dária : elege a Deus, porque Deus primeiro o infidelidade acarreta repúdio. Haverá infideli-
preferiu e o libertou, levando-o com zelosa dade quando o povo escolhido esquece a voca-
ternura, como aparece nos vers. 16-20). ção recebida e também quando, enaltecendo-sc
orgulhosamente e gabando-se de sua eleição,
3. Chegamos assim à noção central da elei- despreza os demais povos, e imagina Deus na
ção na antiga aliança Deus elegeu o povo de
:
obrigação de protegê-lo em tôda circunstância
Israel entre todos os povos, para fazer dêle (p.ex. imagina que Jerusalém nunca será ven-
o seu povo. Esta escolha divina manifesta-se cida ou destruída por ser a cidade de Iavé).
especialmente em duas circunstâncias caríssi- Contra êsses presunçosos desvios não deixarão
mas à tradição de Israel antes de existir o :
de lutar os profetas. O
povo considera os pa-
povo, foi escolhido já na pessoa de Abraão e gãos como rejeitados de Deus, mas acha im-
de sua posteridade (Gn 12.1-3; 22.15-18; 26.4; possível perder o seu privilégio de povo esco-
Is 41 .8 Ne 9.7) posteriormente, no momento
; ; lhido os profetas, no entanto, não se cansam
:

do êxodo do Egito, foi novamente escolhido na de proclamar que a eleição é subordinada à


pessoa e por intermédio de Moisés que Deus uma obediência e fidelidade incondicionais e
convocou para esta missão libertadora (Ex 3.
7-10; Dt 6.21-23; SI 105.26). Esta eleição, a
que, sendo estas violadas, ver-se-á Israel
rejeitado, e não os pagãos. "De tôdas as famí-
—>
despeito de ser a certeza fundamental da fé lias da terra somente a vós outros vos escolhi,
israelita, carece de qualquer explicação racio- portanto eu vos punirei por tôdas as vossas
nal. Porque preferiu Deus a Israel? Não cabe iniquidades" (Am 3.2; Jr 7.16-34; 37.17-20;
resposta alguma positiva O Senhor tem a livre:
Ez 6 e 7; SI 78.59-67, etc). Os profetas mos-
decisão. Encontramos porém um intento de res- tram que o exílio na Babilónia é o maior cas-
posta, em forma negativa Deus escolheu a :
tigo mandado por Deus contra seu povo infiel,
Israel, não porque fôsse um povo numeroso,
enquanto os chefes de Israel gritam presumida-
pois Israel é o menor de todos (Dt 7.7), nem mente "Deus está no meio de nós que mal
: !

porque fôsse mais justo do que outros e me- nos sobrevirá?" (Mq 3.11; Jr 5.12; Ez 13).
recesse tal privilégio; pelo contrário, Israel
A justiça divina exige de seu povo que não
tem dura cerviz (Dt 9.4-6). Deus escolheu a se deixe cegar pela eleição até o ponto de olvi-
Israel porque o ama, porque é fiel à aliança dar sua missão (Am 4; 9.7s).
firmada com os antepassados (Dt 4.37; 7.8;
10.15). Israel é escolhido porque é amado de 4. Entretanto os profetas, salvo raras exce
Deus (Dt 23.5). ções,nunca afirmam a total rejeição de Israel.
A eleição corresponde, pois, ao — > amor de Deus castiga e prova, mas permanece fiel à
sua aliança e às promessas feitas não revogando
Deus por Israel. A explicação não satisfaz
nossa razão. Deus acaso não podia preferir e a vocação de seu povo. Israel será castigado,
amar qualquer outro povo? explicação está A porém sobreviverá
cente para
um —> resto,
os desígnios do Senhor.
realizar
um remanes-
além de tôda razão humana, na soberana liber-
dade de Deus. Deus obra como melhor lhe Esta idéia de um resto é muito importante nas
aprouver, não está ligado a ninguém nem a perspectivas da eleição, porquanto o resto é
coisa alguma. Escolhe a Abel e deixa a Caim, quem herderá a missão de Israel e os seus pri-
elege Isaque e não Ismael, Jacó e não Esaú, vilégios 10.22s; 37.31s; Sf 2.3; Mq
(Is 4.3;
porquanto é o Senhor soberano que tem o di- 5.7-9). Ao regresso de Babilónia, os poucos
reito de obrar como quiser (Ml 1.2). Esta sobreviventes que restauram a comunidade de
verdade é bem declarada na imagem do oleiro Jerusalém consideram-se como êste resto anun-
o qual faz o vaso ao seu entender e, se êle ciado pelos profetas. A
idéia do resto de Israel
se estraga em sua mão, torna a fazer dêle outro se ramificará em duas direções opostas no :
;

ELEGER 91

judaísmo eclodirá a ilusão de um resto salvo com sua vontade soberana. Iavé tem previsto
por Deus e formando o grupo dos puros e fiéis
*
os eventos e leva os homens de tal modo que
germe do orgulho farisaico, do particularismo se cumpra sua vontade divina (Is 41.21-29;
estreito e do nacionalismo intransigente por ; 42. 8s; 44.6-8, etc). Daí surge uma concepção
outro lado, nascerá também a convicção de teológica da História que explicita todos os ele-
um resto, divinamente preservado para a missão mentos subjacentes da revelação bíblica. (Exem-
universal de levar a mensagem redentora a to- plo clássico A
cidade de Deus, de Sto. Agos-
:

das as nações germe do universalimo missio-


: tinho).
nário que inspirou algumas das mais belas pá- No entanto, a idéia de uma predestinação in-
ginas do VT (Is 40 a 55; Zc 8.20-23). dividual está quase ausente da Bíblia, não se
A consequência desta diferente concepção re- achando outro texto digno de menção senão
lativamente ao resto, traduzir-se-á na atitude do o Salmo 139.15-16.
judaísmo em face dos pagãos enquanto muitos
:
F. MICHAELL
proclamam a definitiva rejeição dos gentios,
outros anunciam sua conversão ao verdadeiro
NT
Deus pela instrumentalidade de Israel, divino O conceito de "eleição" é expresso nos escri-
luzeiro de todos os povos. tos neo-testamentários com o verbo eleger (19
textos), com o adjetivo escolhido ou eleito (23
5. Além desta eleição de um povo, o VT fala
textos) e com o substantivo "eleição" (7 tex-
também da eleição de determinados indivíduos
em particular. Os homens de Deus são escolhi- tos).O examinador mesmo superficial não dei-
dos por Deus: Abraão (Ne 9.7), Moisés (SI
xará de reconhecer nestes textos e no contexto
105.26), Davi (SI 78.70). Igualmente são obje-
um dos temas característicos da reflexão crista
primitiva.
to da divina eleição os sacerdotes (Dt 18.5:
2Cr 29.11). Os profetas, embora não explici- 1. Nos quatro evangelhos êste verbo descreve,
tamente designados com o nome de "escolhidos". antes de mais nada, a escolha dos apóstolos por
São chamados por Deus, separados desde seu Jesus (Exceto Lc 14.7 e 10.42, onde escolher
nascimento (Jr1.5). De modo especial são é usado na acepção mais grega de reservar
:

considerados como os eleitos de Deus os reis para si um assento no banquete, a "melhor


:

de Israel (ISm 10.24; 16.6-13 etc). Também parte" de Maria). Acêrca da eleição dos Doze.
nestas eleições particulares aparece mais uma convém notar: a) que Lucas exclusivamente
vez a idéia já notada, que a preferência divina (6.3) lança mão do verbo
"eleger" para êste
Dão é arbitrária, porém totalmente livre, huma- relato (comparar Mc 3.13-19; Mt 10.1-4);
namente não racional e ordenada a uma mis- b) que os evangelhos se coincidem ao descrever
são ou serviço confiado à responsabilidade do a eleição como um ato soberano e gratuito, sem
vocacionado. Idéia essencial em muitos contex-
:
nada de reconhecimento de mérito ou qualida-
tos manifesta-se a divina eleição insòlitamente, des a escolha tira os Doze da massa anónima
:

designando povos ou indivíduos inteiramente dos discípulos sem outra justificativa a não ser
alheios ao povo de Israel, para que sejam ins- a autoridade de Jesus; c) que a eleição não
trumentos do plano de Deus, a despeito de se- tem qualquer finalidade em si mesma, e sim
.íem pagãos. um caráter patente de instrumentalidade os :

Para castigar Israel escolhe Deus o exército discípulos são escolhidos para u'a missão que
de Babilónia ao qual Jeremias anuncia o de- lhes é confiada logo de início (anunciar o reino,
ver da obediência, por assim Deus mandar (Jr expulsar os demónios, curar os enfermos, Mt
27.32). Como executor dos desígnios de Iavé, 10.1-4; Mc 3.13-19; exceto em Lucas (6.
Nabucodonosor, "servo de Iavé", cumpre a sua 12-16), o relato da eleição dos Doze sempre
missão (Jr 25.9) e Faraó foi duríssimo para
; menciona anexa a sua "autorização" para o
com os judeus, "para que fôsse Deus glorificado ministério apostólico, ou coincide com ela d) ;

no exército, nos carros e nos cavalarianos de em todos os relatos da eleição figura o nome
Faraó" (Ex 14.17s). Ciro será chamado "o de Judas com a menção expressa "quem o
:

ungido de Deus" e vocacionado para devolver a traiu" ou equivalente. O quarto evangelho faz
liberdade ao povo santo (Is 45.1; Ed 1.1-3). da traição de Judas o tema de uma reflexão
De todos estes escolhidos, nenhum pertence ao mais desenvolvida: João, mais explicitamente
povo de Deus, alguns são seus inimigos mortais que os sinóticos, salienta que, quando Jesus
Deus, porém, chama-os para um serviço es- chamar, Deus é quem chama, tirando os coro-
pecial. lários seguintes: a eleição é feita através do
E
assim estamos a examinar a noção de de- Filho sempre é histórica nada tendo de um
;

creto de Deus para a conduta do mundo e da decreto intemporal (Jo 6.65; 13.18); e, por
História. O segundo Isaías (cap 40-55) é outro lado, a eleição constitui uma vocação
quem mais nitidamente expressa o conceito de para a fé e para a obediência, portanto, longe
Deus dirigindo os acontecimentos de acordo de suprimir o compromisso humano, torna-o
! ;

92 ELEGER

possível e suscita-o (Jo 6.70; 15.16: "eu vos cial (nesta interpretação, o vers. 14 aponta
designei para que vades e deis fruto"). Acerca apenas para os vers. 10-13, conforme parece
de Judas, o quarto evangelho afirma que, por insinuar Lucas 14.16-24). Também é possível
um lado, êle foi eleito por Jesus com perfeito que, aqui, como frequentemente no VT, os
conhecimento de causa (sua eleição não foi um adjetivos chamados e escolhidos tenham o mes-
érro, um acidente, um ato inconsiderado de mo significado,em cujo caso o vers. 14 seria
Jesus "para ver se dava certo") ;
por outro simplesmente uma advertência paradoxal contra
lado, que Judas não cria (6.64) o traidor
; as pias ilusões Não são tantos os eleitos como
:

começou sendo um duvidador e, por duvidador, vós pensais


um "demónio" (6.70). Sua revolta contra Je-
sus não impediu que se cumprisse aquilo para
2. A idéia de eleição tem um papel importante
nos Atos e no terceiro evangelho, sendo nisso
que foi escolhido, "para que se cumpra a Es-
particularmente visível o parentesco entre am-
critura" (13.18); no mesmo momento de des-
bas as narrativas nelas aparece apenas o ver-
:
mascará-lo, Jesus lhe disse: "o que pretendes
fazer, faze-o depressa" (13.27). Os textos não
bo eleger ou escolher, e nunca o adjetivo. Ele-
ger, nos Atos, designa antes de mais nada a
apontam tanto para a responsabilidade indivi-
escolha feita pela Igreja de um apóstolo (1.24),
dual de Judas como para o fato, terrível para
de diáconos (6.5), de delegados (15.22,25).
quem sabe entender, que, vista a gravidade do
pecado, foi "preciso" que o demónio da traição
Com respeito a esta acepção, notemos a) que tais
eleições eram apenas o reconhecimento da sobe-
devastasse até o grupo íntimo dos Doze.
rana eleição feita por Deus "Tu, Senhor, re-
O adjetivo (ou escolhido) é apli-
"eleito",
:

vela-nos qual dêstes dois tens escolhido" (1.24).


cado por duas vezes a Jesus, nos Evangelhos
(Lc 9.35; 23.35). Êste qualificativo cristoló-
O papel da Igreja, embora real, reduz-se a
apresentar dois homens (vers. 23) entre os
gico, embora nunca aplicado ao Messias na
quais decidirá a sorte (vers. 26) b) seguia-se
;
versão dos Setenta, era usado na apocalíptica
a escolha de uma apresentação aos apóstolos
dos judeus para designar o Libertador espera-
do. Lembra-nos que a mentalidade judaica não
êstes impunham as —>
mãos aos eleitos de-
pois de orar (6.6). c) Foi feita também a
concebia vocação alguma, divina ou humana,
eleição pelos apóstolos e presbíteros, "com tôda
que não tivesse seu fundamento ou explicação
a Igreja", e também, conforme parece, dentro
na autoridade soberana de Deus. Nos demais
do círculo mais restrito dos apóstolos e dos
textos, o adjetivo eleito ou escolhido, aparece
presbíteros (15.22,25). Impressiona bastante a
substantivado, na forma plural e sempre num
variedade das modalidades da eleição. Consta
contexto escatológico os eleitos, os escolhidos
:

porém que os elementos principais foram sempre


(Mt 24.22-24; Mc 13.20-27; Lc 18.7) dos
o parecer da Igreja tôda e a autoridade dos mi-
últimos dias terão de atravessar provas espan-
nistros particulares, apóstolos ou presbíteros.
tosas, só triunfando sôbre elas pela graça de
Opinava-se sem dúvida que, fôsse qual fôsse a
Deus. O espírito de auto-justiça e de segurança
modalidade usada, não deixaria de manifestar-
orgulhosa, característica frequente dos apoca-
se a vontade de Deus por meio dela (15.28).
lipses judaicas tardias, encontra aqui um eco,
Atos 13.17 menciona a divina eleição dos pa-
aliás bem repurado; reconhecemos as mesmas
triarcas, "pais" de Israel, como tôda a sequela
expressões, mas vemos o homem a tremer ainda
importante das providências históricas tomadas
em face das provações e do juízo vindouros; o
homem treme e, a despeito de tudo, espera no por Deus para conservar Israel através de sua
longa existência e preparar o advento de um
socorro "último de Deus". Mc 13 e Mt 24, além
"Salvador" suscitado divinamente em e para o
de precaverem os eleitos contra as seduções
povo escolhido. Consta dêste texto que, para
vindouras, prometem e anunciam o socorro o :

os primeiros cristãos, a eleição de Israel to-


Senhor "abreviará" os dias àqueles por causa
mava sua verdadeira significação exclusiva-
dos escolhidos. Com respeito à famosa conclusão
da parábola do festim "muitos são chamados
mente na salvação trazida por Jesus Cristo. A
:

exemplo dos evangelhos, At 15.7 salienta o


mas poucos escolhidos" (Mt 22.14) ela deve
caráter acentuado de mera instrumentalidade
ser entendida como uma advertência de Jesus
contra a ilusória segurança dos judeus (ou
em qualquer eleição: Pedro foi escolhido para
fazer o Evangelho ressoar aos ouvidos dos
dos discípulos) :não basta ter em mãos o
pagãos (as palavras "desde há muito", lite-
convite messiânico, mas é preciso discernir e
ralmente, "desde os primeiros dias", referem-se
aceitá-lo quando a hora soar (nesta explica-
provàvelmente aos começos da Igreja de Je-
ção, o vers. 14 constituiria a conclusão da pa-
rusalém).
rábola propriamente dita e que se estende do
vers. 1 ao 10) ou, não basta aceitar o convite, 3. Nas a idéia de eleições eclesiás-
epístolas,
mas é indispensável comparecer ao banquete ticas desaparece quase por completo e aparece
despido de tôda justiça própria, vestido somente na sua plenitude a idéia da escolha divina re-
i da misericórdia divina, figurada pela veste nup- vestida das características teológicas já vistas
ELEGER 93

nos evangelhos. A eleição divina, eis a única 4. Por menos não deixam de ser
explícitas,
dignidade da Igreja: ela é que torna a Igreja bem Pedro e de
características as epistolas de
instrumento da ação missionária no mundo. Es- João. Os eleitos são os membros da Igreja
tas duas concepções fundamentais formam o (IPe 1.1), expressão que verossimilmente se
âmago de ICo 1.27-31, texto prestigioso do tornou corrente neste sentido (Ap 17.14). So-
qual salientaremos em particular: a) seu acento bre Cristo, a pedra eleita, ergue-se o nôvo
triunfal fazendo de Deus o exclusivo fundador —> edifício, a Igreja (IPe 2.4-6; comparar
da Igreja; b) sua lógica, vendo na eleição uma Is 28.16), chamada também a raça eleita (IPe
verdadeira criação e não reconhecendo nela 2.9), em reminiscência do VT. Consta pois que
qualquer assunção de valores humanos (vers. nestes textos a eleição conserva também um
28) c) sua afirmação de a "escolha por Deus
;
caráter cristocêntrico a Igreja é eleita apenas
:

das coisas fracas" obedecer a uma finalidade em virtude de sua relação com o Eleito, Jesus
intencional ninguém portanto se glorifique an-
: Cristo. O conceito da eleição é formulado por
te Deus (29-31); d) sua origem: a reflexão Pedro (IPe 1.1-2) dentro de um contexto
paulina sobre a fraqueza escolhida por Deus doutrinal trinitário os cristãos são escolhidos
:

não se arraiga em visões filosóficas nem em conforme a presciência do Pai, santificados no


prurido de paradoxos, mas na profunda medi- Espírito, para obedecer a Jesus Cristo. Com
tação da —> cruz de Jesus Cristo (vers. 17ss).
Convém comparar este texto com Atos 9.15:
efeito, a eleição é absolutamente impensável,
se não fôr confirmada pela santificação e pela
"o vaso de eleição", e, ainda mais, Tiago 2.5: obediência (2Pe 1.10); Pedro exorta pois os
os pobres escolhidos e colmados pela fé. crentes a confirmarem sua vocação e eleição,
Bemdiferente é o propósito de Paulo em Ef expressão paradoxal, mas absolutamente con-
1.4ss. único texto onde vemos explicitamente a soante à doutrina geral do NT.
eleição mergulhando suas raízes até no âmago
5. Para resumir notaremos que, de conformi-
da eternidade "antes da fundação do mundo";
dade com o NT, a eleição divina caracteriza-se
sem porém perder o seu caráter histórico ba-
principalmente a) por ser soberana e gratuita,
seado em Jesus Cristo, "nos escolheu nêle".
b) realizar-se na História, em Jesus Cristo, c)
(Ver IPe 1.2). Aqui a eleição não mais tem
por convocar ao homem para a decisão da fé
por finalidade a evangelização do mundo, mas
e da obediência, d) por reservar sempre o últi-
a santificação dos fiéis e "o louvor da glória
da graça divina". Paulo usa parcamente o adje-
mo juízo de Deus sobre o crente, e) por possuir
tivo eleito ou escolhido, mas quando o faz,
um caráter comunitário bem acentuado e, /) por
designa com êle os membros da comunidade, ser claramente "instrumental" Deus elege
:

os —> santos (Rm 8.33; Cl 3.12; Rm 16.13


aplica eleito, no singular, a Rufo; ver também
Jesus, os apóstolos, a Igreja, para confiar-lhes
u'a missão no mundo.

2Jo 1.13). Paulo, evidentemente impressionou- 6. Finalmente observamos que no NT o têrmo


se muito mais com o advento histórico da elei-
e a idéia de "eleição" são acompanhados, com-
ção de Deus em Cristo, que com o fato de
pletados determinados por uma plêiade de
e
existirem homens escolhidos e outros deixados.
Cumpre notar, de fato, que a idéia mesma de verbos e substantivos gravitando em torno da
reprovação oposta à de eleição, nunca parece idéia de predestinação e merecedores de uma
no NT: mesmo em Rm 9.13 ("amei a Jacó, investigação particular. Todavia, bem analisa-
porém me aborreci de Esaú") citação de Ml nada acrescentam ao conceito essencial
dos, êles
I. 2s, o contexto evidencia que se pretende e de eleição, antes dependem dêste e
básico
revelar a graça misericordiosa de Deus, e não revestem os mesmos caracteres teológicos que
um decreto de morte contra Esaú aliás o verbo
;
êle. Anotemos em particular os verbos conhecer
"aborrecer-se" não implica aqui a idéia de eter- (Rm 11.2; IPe 1.20; 2Pe
de antemão 8.29;
na reprovação.
3.17) e seu correspondente substantivo presciên-
Nas epístolas pastorais, a eleição conduz à
cia (At 2.23; IPe 1.2), predestinar (At 4.28;
fé (Tt 1.1), deixando sem resposta a questão
da salvação definitiva dos "escolhidos", por Rm 8.29-30; ICo 2.7; Ef 1.5,11); estabelecer
cuja causa tudo suporta o autor de 2Tm 2.10. de antemão ou preestabelecer (Rm 1.13; 3.25;
Os anjos, na afirmação de lTm 5.21, são os Ef 1.9) e seu correspondente substantivo pro-
eleitos de Deus. Sem muita dificuldade percebe pósito ou predestinação (Mt 12.4; Mc 2.26;
o leitor que há, na base da reflexão paulina Lc 6.4; Hb 9.2; 3.11; 2Tm 1.9; 3.10). To-
sobre os destinos de Israel, a convicção da dos êstes têrmos têm isso de comum são for-:

eleição gratuita agindo concretamente na His- mados com o prefixo grego porque significa
tória, acompanhando o povo por ela criado, antes, pré, em sentido estritamente temporal
preservando um —> resto dêste povo e con-
duzindo-o finalmente a Jesus Cristo (Rm 9.11;
(Exceto quiçá na expressão pães de proposição.
Mc 2.26 par). Ademais todos êles insistem no
II. 5,7,28). fato de que a salvação, feita em Jesus Cristo e
: :

94 ENFERMIDADE

revelada ao mundo por meio da pregação, foi 6-7; Jó 2.10; Is 45.6-7; Lm


3.37-39). _Esta
preparada por Deus desde a profundeza dos é a razão da relação, estabelecida não simplista-
tempos. mente mas com profunda seriedade, entre
P. BONNARD —> santidade e saúde, —>
sabedoria e
e
saúde não entranhando isso que o mais sábio
:

ou o mais virtuoso seja o mais são, mas que


ENFERMIDADE o povo santo ( —>
reservado, santificado) e
abençoado, guardado, curado e que o conheci-
Enfermidade e cura nunca aparecem tratados mento e a prática da Sabedoria de Deus gera
na Bíblia do ponto de vista médico ou cientí^ a vida (Pv 3.8; 4.22). Idêntica noção de san-
fico, mas sempre do ponto de vista religioso, tidade inspira a legislação mosaica sôbre a le-
quer dizer, considerando a relação particular pra (Lv 13 e 14). Esta legislação faz parte das
que elas criam ou manifestam entre o doente "leis de santidade" baseadas sôbre o puro e o
e Deus. Não interessa a natureza da doença» impuro. Ao sacrificador compete pronunciar, por
sua evolução ou seu tratamento, mas o fato decreto ou julgamento, a exclusão ou a reinte-
mesmo, porquanto significa os destinos e a con- gração do leproso ao seio da comunidade san-
dição humana dentro da perspectiva geral da ta, pois nada impuro pertence ao povo "consa-
História da salvação. Os termos usados para grado ao Senhor". Igualmente e por idênticas
qualificar as diversas enfermidades são amiúde razões, "os homens em que houver defeito ou
vagos, não permitindo uma classificação quan- ; mutilação serão excluídos do ministério sacer-
do a Bíblia alude a febres, dermatoses, hemor- dotal" (Lv 21.16-23) As mesmas noções de
ragias, mal-estares diversos ou irregularidades julgamento e de graça reaparecem no caso da
mentais, perturbações nervosas atribuídas a pos- enfermidade e da cura de Ezequias (Is 28 e
sessões diabólicas, bem como quando fala vaga- 39). Em virtude do julgamento de Deus, Eze-
mente de "males", "aflições", "fraqueza" ou quias adoece duma enfermidade mortal. Eze-
"debilidade", "langores" e "sofrimentos", sem-
quias se humilha e implora perdão. Sua cura é
pre tem em mente o estado normal e ordinário
concedida em sinal da graça que Deus lhe
da humanidade caída a queda abriu a porta à
:
concede como ao rei do seu povo, sinal por-
dor e à pena física (Gn 3.16-19) e à morte.
tanto da aliança de misericórdia e de justiça
( —> Morte) . Doenças, enfermidades, aciden-
tes corporais são portanto a condição ordinária
"Livrar-te-ei a ti e a esta cidade". Posterior-
mente, Ezequias, por não ter compreendido o
do homem pecador na sua forma aguda, cons-
;
significado do prazo de graça que Deus lhe
titutuem as marcas características, diretas ou
indiretas do —> pecador, da maldição ou cas-
tigo, seu fruto. Contudo a relação direta enfer-
tinha concedido, receberá o castigo (Is 39.1-8).
Êste episódio salienta o caráter pedagógico da
enfermidade (2Cr 32.24-31) visto que lembra
:

midade-castigo é mencionada apenas excepcio-


ao homem que sua vida está nas mãos de Deus,
nalmente (Nm 12.10; 2Cr 21.11-19; At 12
a enfermidade prova sua fé.
20-23). Jesus recusa discutir o problema da
responsabilidade pessoal do cego de nascença 2. Se a enfermidade é sinal de condenação e
(Jo 9). Ainda quando atinge um indivíduo, um de maldição, a cura aparece como sinal de gra-
grupo, uma categoria de homens, ou um povo. ça e de bênção. A
vontade de Deus não é que
a doença manifesta a sorte comum do homem o pecador morra, mas que se converta e viva
pecador perante Deus. Deve-se notar também (Ez 18.23). Portanto, a doença e a própria
que, ainda que atribuída às maquinações satâ- morte desaparecerão. Pois estas realidades, ca-
nicas (Jó 1.5-6 —>
Satã), a enfermidade não
deixa de ser relacionada com alguma intenção
racterísticas
cidas juntamente
dum
estado de pecado, serão ven-
pecado. As promessas
com o
ou vontade divina, quer escondida, quer clara- messiânicas atestam que a vinda do "Rei de
mente indicada (Lc 13.16). Aparece isto niti- justiça" será acompanhada pela liberação dos
damente no quadro da aliança mosaica Israel : cativos e pela cura dos enfermos (Is 42.1-2;
é um povo poupado, salvo, curado (Ex 15.26). 61.1-2); o "Sol de justiça traz a saúde nos
Como tal, é chamado a viver debaixo do julga- seus raios" (Ml 4.2). Naqueles tempos "ne-
mento e da graça de Deus caso permanecer fiel nhum morador de Jerusalém dirá estou doen- :

—>
;

à ver-se-á abençoado, próspero,


aliança, te" (Is 33.24) A
salvação prometida como uma
livre de doenças e flagelos se viola a aliança,
:
obra de justiça não se realizará "pela morte do
verá chover sôbre si "todos os males que caíram pecador", mas pela morte do Justo. O Messias
sobre o Egito" (Ex 23.25; Dt 7. 15 28. 16.22 ; curará pecadores e enfermos, carregando sôbre
Lv 26.16). Saúde, prosperidade, fecundidade si todas as dores (Is 53.4-5). Êle será ferido,

bem como doença, miséria e esterilidade são, moído e humilhado, em substituição do réu. A
nas mãos de Deus, sinais de bênção e de maldi- cura aparece pois como o sinal da Redenção
ção, pois o Eterno "faz viver e morrer" e "da conferida gratuitamente; ela marcha parale-
sua mão recebemos o bem e o mal" (ISm 2. lamente com o —>
perdão. (SI 103.2-3).
: ;

ENVIAR 95

O ministério terrestre de Jesus constitui o pois ela na vida do cristão, a marca humana
é,

cumprimento do prometido em tôrno de Jesus


: e a condição que Cristo quis revestir para sei
congregam-se os doentes, salientando-se assim "Deus conosco". Assim, presentemente, a cura
o significado profundo de sua vida (Mt 9. e também a enfermidade podem ser os sinais
12-13). Êle cura para a crescentar à autoridade da graça e da misericórdia.
de sua palavra o sinal visível de seu poder. Mas H. ROUX
também para certificar que é realmente aquele
que havia de vir (Mt 11.4-5) e que realmente ENVIAR
veio cumprir a promessa de Isaías 53.4-5 (Mt No Velho Nôvo Testamento lemos que
8.17) As curas dos
. —
^> demoníacos revestem
um sentido profético: ilustram a vitória de
1 . e
certas pessoas ou reis enviam mensagem a ou-
tras pessoas ou reis, seja participando-lhes de-
Deus "pelo seu Espírito" sôbre os espíritos e cisões seja comunicando-lhes informações. A
seu domínio sôbre a criação antes sujeita a pessoa do enviado desaparece atrás do enviante.
Satã. Igualmente as curas de leprosos anun- Esta forma de missão é de grande importância
ciam o fim da separação entre puro e impuro tôda vez que possibilita o encontro entre duas
Jesus toca os leprosos, êles não mais são ex- pessoas afastadas uma da outra. Fidelidade, obe-
cluídos mas reintegrados na aliança da graça. diência e sujeição são as condições do bom
O mesmo fato de estarem relacionados os mi- enviado, do mensageiro de confiança. Bíblia A
lagres de Jesus com a pregação da boa nova do não menciona nenhuma missão que fôr exclu-
reino, tira-lhes todo caráter de publicidade. As sivamente religiosa; eis porque o têrmo "en-
curas não visam instaurar de maneira gloriosa viar", usado com referência a Deus, tem a par-
uma era de felicidade nesta terra, mas erigir ticularidade de acentuar menos o aspecto reli-
sinais da presença do Filho do Homem e, por- gioso da missão confiada do que a total e inteira
tanto, da proximidade do reino. "O poder do disponibilidade do mensageiro para o serviço
Senhor estava com êle para curar" (Lc 5.17):. de Deus (Jo 13.16).
Finalmente sucede que é o Senhor quem será A acolhida feita ao enviado revela as dis-
rejeitado e crucificado. Precisamente porque o posições pessoais do destinatário para com o
sinal decisivo não é a cura de enfermidade, se- enviante. "Enviei-vos todos os meus servos, os
não o sinal do profeta Jonas (Mt 12.38-40). profetas, mas não me destes ouvidos" (Jr 7.25).
isto é, a cruz e a ressurreição. Jesus cura, mas Não receber o mensageiro equivale a recusar
fá-lo "carregando a enfermidade", recusando aquêle que envia. "Quem me recebe, recebe
"curar-se a si mesmo" (Lc 4.23), tornando-se aquêle que me enviou" (Mt 10.40). quali- A
o enfermo (Mt 25.36). Não se deve esquecer dade dêste "missionário" reside na sua missão
o laço estreito entre a cura da enfermidade e a tôda a sua autoridade se baseia no envio inicial
redenção mediante o sacrifício expiatório da de seu amo não havendo envio, não há missão.
;

cruz êste laço permite comprender o alcance


: No quarto evangelho, todas as coisas que faz
da cura e o sentido da enfermidade na Igreja ou diz Jesus e tudo que é, está relacionado com
e na vida cristã. Os apóstolos recebem de Jesus Deus, "ao Pai que me enviou". "A obra de Deus
a missão de anunciar o evangelho e o poder é esta, que creiais naquele que me salvou" (6.
de curar "pela —>imposição das mãos" (Mc
16.18), "em nome de Jesus" (At 3.6). Pode-se
29) Jesus é o único que conhece a Deus e tem
.

poder de o revelar, porquanto foi enviado por


concluir que o ministério da Igreja sucede pura Deus (7.29). Logo, quem amar a Deus, ama
e simplesmente ao de Jesus? Seríamos tentado também a Jesus (8.42). Impossível separar o
a afirmá-lo, se nos baseássemos somente no tes- enviado daquele que envia. Jesus foi comissio-
temunho de Atos (4.30; 5.16, etc). Todavia, nado para salvar o mundo (3.17), por sua vez
seria errado afirmar que Pentecoste inaugura êle, para difundir a salvação, envia seus discí-
uma espécie de reino do Espírito Santo carac- pulos (20.21).
terizado por dons taumatúrgicos patentes, como No entanto, a união entre o Pai e Jesus é
a cura milagrosa dos enfermos. Embora a cura de ordem absolutamente diferente da que ha-
dos enfermos, ligada ao ministério de interces- via entre Deus e os seus profetas, porquanto
são, seja prometida e concedida à Igreja Deus está presente na pessoa de Jesus. Esta é
(—> Ministério), embora nenhuma restrição
deva ser feita às promessas do NT
relativas a
a realidade mais evidente em muitas afirmações
e orações de Jesus "A vida eterna é que te
:

oração e à ousadia da fé (Mt 17.19-21; 21.22. conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a
Tg 5.14-15), nem por isso a enfermidade e sua Jesus Cristo a quem enviaste" (17.3). O envio
sequela de sofrimentos revestem o caráter pu- de Jesus é absolutamente único, sem paralelo.
ramente negativo de um mal que se deva supri- Jesus é a Palavra de Deus. a Autoridade de
mir. O próprio ministério de Jesus, identifíj Deus, a Vontade de Deus não apenas mero por-
;

cando-se à humanidade de enfêrma e decaída, tador, mas expressão destas realidades.


Je- Em
expressa claramente que a enfermidade encerra sus a pessoa do enviado não desaparece por de-
para a Igreja um magnífico caráter positivo: trás do enviante, mas funde-se com êle.
96 ESCÂNDALO

O autor da Epístola aos Hebreus usa uma mar parte do povo de Deus. Deus, em suma.
expressão que lhe é própria: Jesus é o "após- envia seus servos para congregar os homens
tolo", o enviado; e logo, comparando Jesus destinados a formar o seu Israel, ou seja a.
com outro enviado ilustre, Moisés, insiste na sua Igreja.
diferença abismal entre ambos Moisés era o
:
A
imagem de congregação ou de ajuntamento
servo, Jesus é o Filho de Deus (3.2). foi frequentemente usada para descrever o fim
Jesus, único plena e totalmente apóstolo de do exílio e a reconstituição na Palestina do
Deus, tomará iniciativas reveladoras de sua povo de Israel. Progressivamente porém esten-
onipotência "Eu vos enviarei o Consolador da
: deu-se e designou uma nova esperança de ordem
parte do Pai" (Jo 15.26), credenciando assim diferente, a esperança do reino de Deus por fim
a sua autoridade divina. instaurado e ajuntando todos os homens dos
Jesus o enviado por excelência envia por sua últimos tempos, ou para os julgar (Sf 3.8; Jl
vez os seus discípulos "como cordeiros em
: 3.2), ou para os tornar participantes da salva-
meio de lobos, sem dinheiro, sem abastecimen- ção (Is 56. 7s).
tos, sem calçados, sem mudas de ropa, estes vão O
apóstolo de Deus em pessoa, Jesus, é ouem
dois a dois proclamar o reino de Deus. As nar- ajuntará. Ajuntou já, quando enviado à terra
rativas não deixam de contar os fracassos dos por primeira vez fêz a nossa salvação; ajun-
mensageiros esquecidos do sentido de sua mis- tará porém com plena perfeição nos dias de
são (Ale 9.14-29), os corretivos que Jesus in- sua segunda vinda (Mt 25.32: "serão reuni-
troduz na sua maneira de ver errada "Não :
das tôdas as nações"; e Mt 22.10: os servos
vos alegreis porque os espíritos se vos subme- reúnem a quantos encontram e introduzem-nos
tem, mas alegrai-vos porque os vossos nomes à sala das bodas). Também êste derradeiro
estão escritos nos céus" (Lc 10.20) quer di*-:
ajuntamento responderá a uma dupla finali-
zer, não olvideis que o vosso poder vos é dado dade manifestar os crentes autênticos e apo-
:

por Deus (ICo 1.1 etc). sentá-los na glória do reino (Mt 25.34; 13.30:
As
Igrejas também têm os seus enviados (At "recolhei o trigo no meu celeiro") eliminar;

13.2; 2Co 8.23). Sua missão, embora tempo- os demais (Mt 25.41; 13.30: o joio será quei-
rária e limitada, possui grande importância, pois mado). Oferece-se a todos os homens a alter-
o apóstolo os chama de "a glória de Cristo". nativa de serem trigo ou joio no último dia.
Esta advertência misericordiosa deve nos levar
2. De tudo quanto antecede, consta que nun-
ao arrependimento na hora presente, para evi-
ca é questão no NT
de uma Igreja a de suas
tarmos o castigo na hora do supremo ajunta-
missões. A Igreja é missionária, enviada, e com-
mento. Mais uma vez encontramos pois o aspec-
posta de homens cônscios de ser, cada um a
to feliz e positivo do envio de Jesus: salvar os
seus modo, os enviados de Cristo. Irradia es-
pontaneamente em torno de si e espalha sua
pecadores para dêles fazer um povo resgatado.
luz. Recebe de graça e de graça dá (Mt 10.8). Esta é a razão porque, entre o advento e a
O Evangelho não é para ser guardado mas para vinda final de Jesus, entre o ajuntamento par-
ser transmitido e a Igreja não possui uma exis- cial feito por Jesus na Palestina e o ajunta-

tência autónoma nem vive para si própria, mas mento final por vir, coloca-se o envio e o
sua razão de ser é transmitir. Envia-a Deus e ajuntamento da Igreja, povo de Deus. pecador
ela anuncia o reino de Deus. Tampouco absorve e resgatado.
em benefício próprio as forças dos mensageiros Resumamos dizendo que o envio e o ajunta-
de Deus, mas envia-os por sua vez pelo vasto mento são os dois poios da mesma relação, os
mundo (At 13.2). Eis porque o NT
não co- dois aspectos da mesma ação : levar a salvação
nhece o problema da Igreja e da missão, pois aos homens.
conhece apenas uma Igreja essencialmente mis- M. CARREZ
sionária a qual, após acolher a Cristo, enviado
:

de Deus, procura que todos os demais também ESCÂNDALO


o acolham (Rm 15.7) e neste intuito envia
seus servos a anunciarem o evangelho aos pto- 1. No VT, esta palavra significa armadilha
vos. ou obstáculo causando a queda ou a morte
(sentido próprio, Lv 19.14; Am
3.5, nossa
3. Entretanto não devemos esquecer o pro- versão usa várias expressões como tropêço,
fundo significado dos envios sucessivos (pro- pois escândalo não guardou entre nós êste sen-
fetas, Filho, Espírito Santo, apóstolos) me- tido primordial).Passou a significar figurati-
diante os quais Deus interpela cada indivíduo vamente qualquer meio de perdição (Js 23.13) ;

e cada povo da terra: propósito de todos


o ISm 18.21; SI 106.36), especialmente na lin-
êstes envios é reunir, em nome de Deus, o povo guagem realista dos profetas que, aludindo à
de Israel, a Igreja. Os que recebem os men- intervenção justiceira de Deus (Is 8.14), nos
sageiros, recebem ao Senhor e entram a for- representam a êste colocando um tropêço, uma
ESCRAVO 97

armadilha no caminho dos que violam sua alian- 3. Com "escândalo" designa-se também o pe-
ça para que, perecendo êles, fracassem suas cado, armadilha natural que faz tropeçar o ho-
empresas. mem incrédulo, bem como as causas exteriores
de tal pecado. Neste sentido se referem Mt
2. No NT, Jesus Cristo é Chamado "escân- 5.29ss; 13.41; 18.7ss; ljo 2.10. (Também ICo
dalo", de conformidade com a profecia de Si- 8.13 e Rm
14.13, onde "os fortes" na fé são
meão (Lc 2.34). Com longe de satisfa-
efeito, convidados a não induzirem os "fracos" em
zer os desejos judeus e universais de redenção tentação).
nacional e mundial (embora só êle os satis- C. BIBER
faça na realidade profunda), Jesus penetra no
mundo dos homens como uma graça que lhes
parece inaceitável, suscitando destarte entre êles ESCRAVO
uma divisão profunda, dolorosa e encarnecida.
Sua vinda revela-se como um julgamento divino
1. O número dos escravos parece ter sido
menor em Israel do que nos outros povos da
sõbre os pensamentos dos homens. Seu minis-
antiguidade (Ne 7.67 acusa uma sexta parte
tério da palavra e dos atos de poder, acolhido
da povoação). Provinham na sua maioria de
por muitos como a liberação messiânica, choca
terras estrangeiras, comprados a dinheiro ou
contra a reprovação dos outros que vêem lá
presos de guerra (Gn 17.12; Xm 31.11). O
apenas blasfémias insofríveis e dedicam-lhe uma
seu estatuto diferia do estatuto dos israelitas
indignação sagrada (Mt 13.57; 15.12; 17.27).
caídos em escravidão apenas num ponto so- :

Jesus bem sabe que qualquer um de seus ouvin-


mente a morte punha fim à sua escravatura,
tes que não lhe der sua fé plena, corre o risco
pois a sempre rara, teoricamente
libertação,
de afastar-se da salvação, animado de ira apa-
possível,não era obrigatória em nenhum caso.
rentemente religiosa e meritória; repetidas vê-
zes previne-os contra esse perigo (Mt 11.6;
No entanto, a condição do israelita caído em
escravidão por causa de roubo, de dívidas ou
21.44; Jo 6.61; 16.1-3). Sua pretensão mes-
voluntàriamente para fugir da indigência (Ex
siânica, no mesmo momento em que se realiza
mais autenticamente com a rejeição de Israel 21.7ss; 21.2; Am
2.6; 8.6) era teoricamente
e das nações, e com o reconhecimento triunfal
mais suave. A sua sorte melhorou progressiva-
de Deus, único presente no abandono universal, mente, notando-se na legislação post-exílica a
— encontrará a reprovação e provocará a dis-
tendência a abolir a escravidão. As leis mais
persão de seus próprios discípulos (Mt 16.23; antigas estipulavam que fôsse libertado o ho-
26.31) e seguidores mais entusiastas. Ninguém mem seis anos depois de perdida sua liberdade
chegará ao Messias Jesus sem antes tropeçar (Ex 21.2), medida que se tornou logo exten-
e mortificar-se com quanto há na sua aparição siva à mulher (Dt 15.12). Como estas dispo-
de sições legais se revelassem insuficientes, os le-
desprezível e contingente (Mt 16.25.
—> Crus) .
gisladores post-exílicos instituiram o ano sa
bático, incidente cada 49 anos (Lv 25.8-12).
O escândalo — Jesus Cristo — além de ter
que trazia a liberdade a todos os escravos israe-
sido o efeito histórico da luta entre duas concep-
litas, fôsse qual fôsse a data de sua escravi-
ções opostas do messianismo no seio de Israel zação.
(e o próprio VT), persiste através da prega- "Escravo" designa amiúde o servo de algum
ção do Evangelho por todo o mundo: como particular,ou o doméstico do rei (lRs 9.27) ;

seria evitável o escândalo num mundo que só eventualmente um servidor ou um doméstico de-
de si próprio e dos próprios êxitos sabe gloriar- clara-se o escravo de fulano, maneira cortês de
se? A cruz é para os judeus tropêço fatal à manifestar a sujeição e devoção ao soberano ou
sua salvação, e para os não judeus "loucura" amo (Gn 20.8).
(ICo 1.23); a mesma Igreja ver-se-á tentada Por uma extensão de sentido, fàcilmente inte-
constantemente a "desvirtuar" (ICo 1.17)
a
cruz, a silenciar o obstáculo-histórico-Jesus, a
ligível, —>"servir" traduzirá igualmente a
submissão do crente ao Senhor (p. ex. "Davi,
abandonar a fé em benefício da moral ("as o meu servidor" Is 37.35). A
escravidão de
obras") eis porque os apóstolos vêem-se cons-
; Israel no Egito, assim encarada, era duas vêzes
trangidos renovadamente a lembrar, nas suas escravatura, porquanto acarretava também a
epístolas, a realidade do Cristo que excede os privação da liberdade, a impossibilidade de "ser-
pensamentos humanos e só é acessível à obediên- vir" a Deus. Eis porque o Egito aparece na
cia da fé (Rm 9.33; 16.17; Gl 5.11; IPe 2.8, Escritura por antonomásia como a terra, da
textos que citam Is 28.16 e SI 118.22). O após- servidão (Ex 1.13; 2.23; etc).
tolo São Paulo frisa mesmo o lugar relativo Antes de passar a examinar a posição de
mas necessário, do "escândalo" dentro no con- Jesus e da Igreja primitiva com respeito a
junto do plano da divina salvação (Rm 11.9; cf escravidão, observemos que a literatura do NT
SI 69.23). distingue várias formas de "servir" designadas
: . ;

98 ESCRITURA

por termos diferentes escravidão ou servidão


: palavra, e nem tampouco um conservador. Acha
implica na privação total da livre disposição de que é necessário valorizarmos, em nossa vida
si em virtude da absoluta sujeição ao amo (Mt diária, o fato incomensurável de todos os ho-
6.24: "ninguém pode servir a dois amos") mens, quer escravos ou amos, formarem uni-
Servir no sentido religioso significa simulta- dos em Cristo um só corpo com Cristo esla :

neamente honrar, trabalhar por e devotar-se a realidade possui dinamismo ilimitados, ultra-
(Rm 1.9; Fp 3.3; Lc 2.37). Serviço oficial. passando tôda e qualquer reinvidicação humana
civil ou religioso, haverá cada vez que o ser- portanto não deixará de trazer a resposta. Pau-
vidor é funcionário ou ministro do rei ou de lo, sem negligenciar o problema, coloca-o no
Deus (Rm 13.6; 15.16). Há finalmente um seu contexto verdadeiro as reivindicações ime-
:

serviço pessoal e voluntário (com ou sem retri- diatas pertencem ao mundo das coisas passa-
buição :Mt 8.15; 20.28; Rm
15.25). geiras (ICo 7.31).
Embora não indiferente à situação social dos A primeira epístola de Pedro denota idêntica
escravos (as parábolas aludem à cruel arbitra- posição.
riedade dos amos), Jesus não aparece como o Ler-se-á com proveito Théo Preiss, Vie cm
libertador de determinado tipo humano em par- Christ et éthique sociale dans 1'épitre à Philé-
ticular ou de alguma classe social. Em tudo. mon, em La vie em Christ, Neuchâtel et Paris,
Jesus proclama a vontade do Pai. Veio para 1951, pp. 65-73).
servir e entregar a vida por muitos (Mt 20.28). M. CARREZ
A missão do Filho do homem é esta libertar
:

e salvar todo homem sem distinção de condi- ESCRITURA


ções, tempos ou raças. Jesus toma a iniciativa
de dar ao serviço uma dignidade relevante
O verbo "escrever' 'e o substantivo "escritu-
ra" encontram-se com frequência no NT. Jesus,
"Quem quiser tornar-se grande entre vós, seja
literalmente, escreve na terra com o dedo (Jo
vosso servidor". Assim veio o Filho do Ho-
8.6-8). Fala-se-nos de cartas escritas (literal-
mem, não para ser servido mas para servir
mente: gravadas), de escrever e de mandar
(Mt 20.25-28; 23.8; Lc 22.24-30). O escravo
deixa pois de ser uma criatura inferior, inter-
epístolas,documentos ou depoimentos (Lc 1.63:
mediária entre o bruto e o homem, mas é
Rm 16.22; e 2Ts 3.17; Jo 20.30s; Ap 1.11,19
etc), disposições ou mandatos por escrito (Mc
homem, alma, digno da salvação divina com o
10.4s; Lc 20.28 etc. Ver, en sentido derivado,
mesmo direito que seu amo. Ambos mergulham
Gl 3.1).
na mesma perdição, ambos também podem e
devem ser salvos. Expressões como "o que está escrito", "tudo
que está escrito" (subentendido: nas leis ou
As comunidadesprimitivas tinham diante de si
recopilações de preceitos) eram de uso cons-
problemas delicadíssimos escravos tornavam-se
:

tante no mundo antigo. Nos textos neo-testa-


cristãos enquanto seus amos permaneciam pa-
mentários elas dizem respeito sempre ao VT.
gãos. Qual seria a atitude dos convertidos?
Paulo eleva a questão à alturas superiores: Lucas, em particular, serve-se delas para afir-
"Cristo morreu por todos, para que os que mar que todo o Antigo Testamento (literalmen-
te: tudo quanto está escrito) dá testemunho de
vivem não vivam mais para si mesmos, mas pa-
Jesus Cristo (Lc 18.31; 21.22; 24.44 etc).
ra aquele que por êles morreu e ressuscitou
í2Co 5.15). A meta da vida é, doravante, a O uso que Paulo faz do têrmo "A escritura" de-
comunhão com Cristo (Rm 10.10-13). A liber- nota idêntica preocupação por sublinhar a una-
tação da escravidão não passa de ser um pro- nimidade do testemunho dado pelo VT
a Cristo
blema secundário. "O que foi chamado no Se- Jesus (Gl 3.8; 3.22; Rm11.32), aparecendo,
nhor, sendo escravo, é um liberto do Senhor, nestes dois últimos textos, a Escritura personi-
mas também, o que foi chamado sendo livre, ficada. Personificação que não significa que
é um escravo de Cristo... cada um permaneça Paulo aceite certas especulações judaico-helêni-
no estado em que foi chamado" (ICo 7.17-24). cas fazendo do VTuma "hipótese" semelhante à
Que o amo lembre o Amo celestial, e tenha o "Sabedoria" do baixo judaísmo. Paulo fala da
escravo postos os olhos no exemplo de Cristo, Escritura como de uma pessoa, porque, atrás
o verdadeiro escravo e —> servo (Fp 2.5-11).
Esta não é absolutamente indiferença social os :
dela, dominando-a e dando-lhe o seu significado
e autoridade, vê "ao Senhor", "ao Espírito de
escravos não menos que seus amos hão de Deus". Na realidade, como consta da compa-
viver em Cristo (Cl 3.22 até 4.1; Ef 6.5-9) ;
ração entre Gl 3.22 e Rm
11.32, pela Escritura
a solução está em traduzirmos na vida social o é que Deus encerrou tudo sob o pecado, para, em
amor do Pai (único e verdadeiro Amo) para
o Filho (único e verdadeiro servo) e o amor
breve, conceder graça a todos (
No
—>Lei)
entanto, raros são os textos onde "a Es-
do Filho para o Pai. Paulo abstém-se de dar critura" designaum trecho determinado do VT
preceitos, mas não se priva de exortar. Êle não (Mc 12.10; Lc 4.21; Jo 19.37; At 1.16; 8.32;
é um revolucionário no sentido moderno da e também quiçá: Mc 15.28; Jo 7.38; 13.18;
:

ESCRITURA 99

19.24,36). Fato, aliás, bastante significativo: o feiçoar, de levar à sua mais alta perfeição não :

cristianismo primitivo não tinha especial preo- veio Jesus para "melhorar" a lei de Deus con-
cupação por assinalar correspondências parti- signada no VT
mas foi enviado para dar à
;

culares entre tal ou qual texto vetero-testamen- lei o coroamento, a realização histórica, inau-

tário e a História de Jesus, mas, em compensa- gurando o


VT
—>
reino de Deus prometido no
(ver Lc 4.21, por exemplo, a realização, o
ção relevava a correspondência básica e universal
entre o VT
e os acontecimentos da nova aliança. cumprimento das promessas) e para dar aos ,

Importa, pois, que analisemos com predileção os homens o sentido da lei de Deus convidando-os
caracteres desta correspondência geral, toman- a se submeterem a ela incondicionalmente (Mt
do-se em conta a maneira e a forma próprias 5.7) e para sujeitar-se pessoalmente também
da época. ^cumprimento da Lei).
Assim, os primeiros cristãos podiam encon-
1 .Jesus e os primeiros cristãos compartiam as trar nas Escrituras, não apenas tal ou qual
ideias de seus contemporâneos judeus, para os palavra e gesto de Jesus, mas toda a vida e
quais o VT
constituía a autoridade única em todo o destino de Jesus, todos os acontecimen-
matéria de doutrina e vida religiosas. Quem não tos que marcaram a fundação da primeira co-
tomasse em conta êste fato, nada comprenderia munidade cristã (por exemplo: At 2.14-41;
na realidade neo-testamentária. O cânon do VT, 3.19-26).
em tempos de Jesus, ainda não estava total-
b) No entanto cumprimento
esta idéia de
mente fixado, porém, as hesitações relativas aos
Livros de Daniel, de Ezequiel e dos Cantares,
limita essencialmente do VT.
a autoridade
não acarretavam consequências algumas. di- A Sendo o evento decisivo da História da Sal-
visão (Lc 24.44) em Lei, Profetas e Salmos, vação já não a saída do Egito, nem o reino
era muito corrente, não se fazendo diferençai dayídico, nem
a figura de Elias, mas o acon-
entre os diversos Livros da coleção, porquanto tecimento, totalmente nôvo, resumido todo
todos gozavam da mesma autoridade indiscuti-
da. As divergências sérias ocorriam no campo
inteiro no nome de —>
Jesus Cristo. Dora-
vante Jesus Cristo apresenta-se como o intér-
da interpretação. A
autoridade do VT
tinha prete messiânico da Lei (Mt caps. 5, 6, 7),
encontrado já os seus teóricos: A) entre os que denuncia a interpretação falsificada, até em
judeus de Alexandria que a baseavam no con- afirmações básicas, dos textos da Escritura, e
ceito grego da inspiração divina entendida co- que apela para o NT, inimigo das deturpações
mo um "êxtase" ou invasão do escritor pelo (ver Mt 5.3 que opõe Gn 2.24 a Dt 24.1).
Espírito de Deus. e B) entre os doutores pales- Assim fazendo, Jesus varre o literalismo estreito
tinianos que ligavam mais importância ao con- dos rabinos e os comentários alegóricos, arbi-
ceito de "tradição" quer a favor dos mesmos trários da escola alexandrina. Jesus eleva às
textos sagrados, quer a favor de seus comen- máximas alturas a fidelidade ao VT, porquanto
tários. A
doutrina da inspiração do VT
(=do possui a inteligência da mensagem essencial
texto original e da versão dos Setenta) foi ple- contida na antiga aliança. Nos escritos pauli-
namente aceita, segundo parece, por Jesus e nos também o VT
está a serviço de Jesus
pelos primeiros cristãos, pois a ela alude fre- Cristo que morreu e ressuscitou "segundo as
quentemente o NT
(Jo 5.39; Mt 22.43; Mc Escrituras" (ICo 15. 3s) o VT
deixa de ser
;

12.36; At 1.16s; 28.25; IPe 1.21; Hb 3.7: o objeto da fé, o qual passa a ser doravante
9.8; 10.15; 2Tm 3.16, etc). Consta também Jesus Cristo. Paulo encontrará em abundân-
que o NT
cita com maior frequência os autores cia no VT
tipos e figuras, não tanto do pró-
do VT —
o que costumavam fazer os rabinos prio Jesus quanto da condição do nôvo Israel
— talvez porque, melhor que os rabinos, sentiam de Deus. Assim, por exemplo, as aventuras
o caráter histórico e
vetero-testamentário.
humano do testemunho dos israelitas no —>
deserto "sobrevieram-lhes
como exemplos, e foram escritas para advertên-
cia nossa que tocamos ao fim dos tempos"
2. Mas os primeiros cristãos edificaram, sobre (vers. 11; comparar Nm
25.1-9; Ex 32.6).
esta base comum, uma doutrina cuidadosamente Para Paulo, o VT
com tudo quanto relata
matizada das relações entre antiga e nova alian- não tem outra aplicação definitiva, nem outro
ça. Esta poderia ser resumida em três pontos destino senão a nova Igreja de Deus portanto. ;

a) Reina a convicção de que Jesus e a Igreja Abraão (Rm 4; Gl 3.8ss; ver Tg 2.14-26).
dão Velho Testamento
cumprimento
ao Sara e Agar (Gl 4.21-31), os israelitas no
( —>
clarava
Segundo Mt 5.17, Jesus de-
cumprir).
"Não penseis que vim revogar a lei
:
deserto, nos são dados, não como exemplos que
devamos ou não devamos seguir, mas como
ou os profetas não para revogar, vim para
:
eventos-tipos da velha aliança escritos para
cumprir" (ver análogas declarações: Mc 14.49; iluminar a aliança nova.
15.28; Mt 26.54-56; Lc 4.21, etc). O verbo Eventos e situações que, de uma para outra
"cumprir" não tem o sentido moderno de aper- aliança,nunca se repetem, porquanto a História
: ::

100 ESPERAR

da Salvação caminha para a sua meta, mas que, de angústia (Jó 5.16). É verdade também que
em seu lugar e tempo respectivos, iluminam a divina esperança, em todos os casos, é ofe-
eficazmente e advertem os beneficiários da recida a um condenado. Frequentemente, po-
aliança nova. A epístola aos Hebreus, embora rém, êste condenado ignora sua condenação,
em têrmos nitidamente evocadores da alegorese pois nem sempre experimenta na carne sua con-
alexandrina, afirma uma doutrina idêntica dição desesperada: aparentemente tudo está
sua demonstração contenta-se em permanecer correndo bem e a esperaça bíblica não faz falta.
histórica e cristocêntrica, procurando no VT Alas a tal esperança não depende dos nossos
apenas "figuras" aptas a salientar a superiori- estados psicológicos, não é ocasional, e sim
dade e unicidade da obra de Cristo. essencial à vida do crente, porquanto não pos-
tula um auxílio confuso, mas a salvação neces-
3. Têm-se coisas erradas com
escrito muitas
sária. A
Palavra de Deus declara que o ho-
respeito oposição paulina entre a letra
à
mem não cria, mas recebe a sua esperança.
(grego: gramma) e o —>
Espírito (Rm 2.27;
7.6; 2Co 2.6; 3.14-16). Paulo não preconiza A esperança é uma dádiva de Deus.
2. A
em absoluto a inspiração individual, nem tal esperança bíblica é a expectativa de um porvir
ou qual concepção espiritualista da verdade dado por Deus. Não nos pertence determinar
contra os partidários da "religião do Livro e ou imaginar o objeto desta esperança, porque
das regulamentações legalistas". Pretende ape- não somos os senhores da mesma. Quando a
nas aclarar que, aos tempos da antiga aliança esperança deixa de ser o apanágio de -Deus, a
dominada pela Lei mosaica (gravada em tábuas surprêsa que ela promete torna-se-nos u'a mera
de pedra), sucedeu agora, por Cristo Jesus, o idolatria, pois o homem vem a esperar, então,
tempo da fé e da liberdade cristã tornadas pos- alguma coisa que é apenas a projeção ideali-
síveis por meio da pregação e da efusão esca- zada de seus sonhos e ambições humanas. Eis
tológica do Espírito Santo. A
pregação apos- porque a Palavra de Deus, no seu afã por des-
tólica, em breve fixada na coleção das Escri- pertar a esperança verdadeira, denuncia impla-
turas canónicas do NT, será doravante para a càvelmente qualquer confiança falaz, quer no
Igreja, com ajuda do Espírito Santo, a fonte homem (Jr 17.5), nas riquezas (Jó 11.20), na
e a garantia da liberdade evangélica (observe-se própria justiça (Ez 33.13), na morte (Jó
que já 2Pe 3.16 menciona as epístolas de Paulo 11.20), ou em determinada segurança religiosa:
ao lado das "outras Escrituras" do Cânon) .
"Não confieis em declarações falsas, dizendo
Templo do Senhor, Templo do Senhor é êste"
P. BONNARD (Jr 7.4).

ESPERAR É próprio da esperança escapar à nossa ini-


ciativa não dispomos dela, pois ela não se
:

É impossível viver sem um porvir à frente, inscreve na esfera das coisas visíveis relativas

embora incerto e sombrio. Ter um porvir é


ao mundo carnal. A
esperança que podemos
ver e tocar, não é mais esperança: "pois o que
tão valioso quanto ter uma esperança, boa ou
alguém vê, como o espera?" (Rm 8.24).
má. Esperar faz parte da vida: as coisas, que
ainda não são, condicionam em grande parte as Aqui está o paradoxo essencial da esperança
bíblica ela é absoluta insegurança e, simultâ-
que hão de ser. Desta maneira as coisas que :

esperamos, e até o modo de as esperarmos, rea- neamente, total segurança. Não se apoia em
lizam parcialmente o nosso ser. qualquer coisa ao nosso alcance, foge de tôdas
as nossas previsões e pretensões, é "esperança
Enquanto há, para a sabedoria grega, uma
contra tôda esperança" (Rm 4.18). Porém,
esperança boa e outra má, a Bíblia só espera
sendo Deus o seu dispenseiro e a sua garantia,
um acontecimento feliz e favorável, e a êste
ela excede em segurança tôda certeza humana
reserva a palavra "esperança". Esperar signi-
"não confunde" (Rm 5.5), é "firme" (lTs 1.3),
fica, pela fé, apoderar-se de uma promessa de
"livre de inveja e de temor", "temerosa só de
vida e de salvação. Quem tiver esperança es-
Deus" (Pv 23.17-18), repousa tôda inteira
tará na posse de um porvir que, mesmo com-
sôbre a fidelidade daquele que fêz a promessa
portando provações, será feliz.
(Hb 10.23).
1 A
esperança do crente não provém dele Evidencia-se assim que a esperança é uma
—>
.

mesmo. A esperança cristã, herdada da espe- decorrência da fé. Fé e esperança vão


rança de Israel, não nasce de um fenómeno juntas (Hb 11.1) e a fé encontra alegria e
psicológico. O crente espera não tanto porque paz na firme esperança (Rm 15.13). Não é
necessita de uma esperança ou porque seu atual acaso a esperança que descobre para a fé as
infortúnio leva-o a refugiar-se na expectativa perspectivas gloriosas dos últimos cumprimen-
de um porvir melhor. Não deixa de ser ver- tos? (Tt 2.13).
dade que os gritos de esperança alternam, mui- Ligada à fé, a esperança é também unida
tas vezes, com os gemidos de dor e as chamadas ao —> amor. A Bíblia não conhece esperan-
ESPERAR 101

ças egoístas. O que esperamos, esperamos b) Em Jesus Cristo a esperança é viva.


para os demais (2Co 1.7). Nós nos recusa- Não uma coisa tecida de morte, de vazio e de
mos a deixar nossos irmãos entregues à sua nada, ou corrompida pela fatal concatenação das
sorte e prisioneiros de um destino fatal. O leismecânicas, à imagem das esperanças não
bom samaritano fêz prova tanto de esperança fundadas sôbre Cristo Vivo semelhantes pre- :

quanto de amor para com o viajor caído nas sunções em nada diferem da desesperança (lTs
mãos dos ladrões. Não é possível amar ao 4.13), mesmo quando fomentam alguma idéia
próximo sem nada esperar para êle e com ele, de sobrevivência. Mas, justamente, a esperança
implicando isso que a esperança seja ativa por cristã não repousa sôbre uma idéia, mas sôbre
meio da caridade. a pessoa viva de Jesus Cristo, ressuscitado dos
Fé, esperança e caridade constituem, portan- mortos. Exclusivamente êle é a garantia da
to, a essência do ser cristão. Exigem-se mu- herança incorruptível (IPe 1.3-4). Mediante
tuamente, apoiam-se mutuamente as três per-
: sua ressurreição, Cristo funda a esperança na
manecem (ICo 13.13), emanadas por igual da vida eterna, salvando-nos das esperanças vazias
misericórdia de Deus em Jesus Cristo. e infelizes, limitadas apenas a esta vida (ICo
15.19).
3. A esperança em Cristo. A Bíblia inteira
Em
c) Jesus Cristo a esperança é escato-
é o livroda esperança, de u'a mesma esperança.
lógica: o objeto esperado é futuro portanto,
Mas, enquanto no AT a esperança fica velada,
e,

em Jesus Cristo aparece ela sob seu nome ver-


já presente. O
porvir do cristão não vai de
encontro a um objeto imóvel e inalcançável. O
dadeiro e com sua perfeita clareza doravante, :

porvir vem a nós. Enquanto avançamos para


para quem se converter a Cristo, o véu é tira-
êle. êle avança para nós.
Pois Cristo é tam-
do (2Co 3.1-18).
Todavia, na esperança não acharemos argu-
bém aquêle que vem.
Nele, tudo quanto espe-
ramos está marchando ao nosso encontro, inse-
mentos para dissociar os dois Testamentos;
rindo-se já definitivamente no presente.
pelo contrário, para ambos a esperança é idên-
tica. Apenas difere a situação de um e de É o poder do Espírito Santo que se torna a
outro com respeito à única esperança. O AT esperança confiante, viva, garantia desde já do
está na expectativa do que há de vir. O NT mundo por vir (Rm 5.5). Desta maneira não
espera naquele que já veio e que
A
—>
voltará.
esperança cristã funda-se, pois, sôbre o co-
apenas as esperanças dêste mundo têm a pro-
messa da vida eterna, mas, desde já, o reino
nhecimento histórico de seu objeto, e alimen- esperado inaugura-se e toma vida na economia
ta-se de um fato passado do qual tira sua segu- do presente século, inspirando o comportamen-
rança. O paradoxo é, desta maneira, justificado: to do crente e baseando a moral cristã.
em Jesus Cristo, o cristão possui a certeza das
coisas que espera, a "demonstração" (!) das 4. A moral cristã é ua moral de esperança.
que não vê (Hb 11.1). Quem imaginaria de- É cristão aquêle que, libertado do passado pe-
finição mais adequada mais audaz? Numa
e caminoso, vive conforme sua esperança. Adere
frase maravilhosamente concisa, Paulo resume à pessoa do Cristo que vem ; utiliza-se do mun-
o mesmo paradoxo "Na esperança somos sal-
: do como se dêle não usasse, porque a figura
vos" (somos =não seremos, nem fomos), tor- do mundo passa (ICo 7.31). Quem espera
nando a esperança sinonimo do próprio Cristo não mais pode instalar-se nas moradas terre-
(Rm 8.24). De fato, Jesus Cristo é a nossa nas (Hb 13.14), pois repudia a segurança ofe-
efetiva esperança (lTm 1.1): "Cristo em vós.
a esperança da glória" (Cl 1.27).
recida pelas coisas visíveis. Todavia a espe-
Em rança não é a evasão para fora do mundo ;
pelo
a) Jesus Cristo a esperança é confiante:
o cristão tem um porvir à frente precisamente contrário, ela toma a sério as realidades dêste

porque tem um passado. Ora, o seu porvir não mundo, preserva-as de naufragar do nada.
é alguma coisa desconhecida e inimiga, mas, Exatamente porque pôs tôda a sua esperança
pelo contrário, conhecida já na fidelidade da- no Deus Vivo é que o crente pode trabalhar
quele que é o mesmo ontem, hoje e eternamen- e lutar na terra (ÍTm 4.10).
te (Hb 13.8). Tal porvir, despojado de seu É cristão aquêle que aguarda a realização
poder assustador, vem a ser uma constante es- de sua esperança, a segunda vinda do Senhor
perança e refúgio (Hb 6.18), certamente não
em virtude de alguma ilusão otimista, mas em
(—> Advento) Portanto, o tempo da espe-
.

rança é necessàriamente o tempo da vigilância


virtude de conhecermos aquêle que, pela sua (Mc 13.33-37). Não apenas para cada indi-
morte, garante nosso porvir feliz. O que deu víduo, mas para todo o povo de Deus. Não
a vida por nós pode ansiar somente o nosso convém esquecer nunca que o indivíduo par-
bem. Êle é que nos libertou... dêle esperamos ticipa da esperança somente enquanto membro
que ainda outra vez nos há de libertar (2Co da comunidade pois é a todo o Israel de Deus,
:

1.10). a tôda a Igreja, e mesmo a tôda a criação que


102 ESPÍRITO SANTO

é feita a promessa. Numa palavra: a vida relacionada a ação do Espírito com a dádiva
cristã é o exercício de uma esperança vigilante da Lei no Sinai. A antiga aliança é a aliança
e comunitária. da — ^> Lei e da —>
promessa; nela conserva
/. Ph RAMSEYER sempre o Espírito o caráter de interventor oca-
sional. Foi Êle, porém, quem falou pelos pro-
fetas, confirmando o NT neste particular a afir-
ESPÍRITO SANTO mação do VT. Os profetas têm falado pelo
Espírito: Davi (Mc 12.36; At 4.25), Isaías
Quem lê os textos do NT relativos ao Espí-
(At 28.25), os profetas em geral (2Pe 1.21),
rito Santo, experimenta embaraço.
certo
recebendo portanto as suas palavras, o caráter
"Ainda não existia o Espírito porque Jesus
de inspiradas, mesmo quando vertidas nas
ainda não havia sido glorificado". (Dêsse em-
baraço procura fugir a nossa versão brasileira,
—> Escrituras Nas Escrituras é o Espírito
.

quem fala (Hb 3.7; 9.8; 10.15).


glosando "Até êsse momento não fôra dado
:

o Espírito" (Jo 7.39). No entanto, o quarto 2. O Espírito, poder de Deus em Jesus. Nis-
evangelho acaba de narrar como João Batista to Jesus distinguiu-se dos profetas e do Pre-
viu o Espírito Santo descer sôbre Jesus (1.32), cursor aparece revestido da plenitude do Es-
:

e o Livro dos Atos (4.25) afirma que Davi pírito. Os quatro Evangelhos mostram o Espí-
escreveu o Salmo 2 inspirado pelo Espírito rito descendo e repousando sôbre Jesus (Jo
Santo. Estas contradições são mais aparentes 1.32-33; Mc 1.8; Mt 3.11; Lc 3.16). João
que reais devem-se ao fato de que, nas Escri-
: especifica que o Espírito desceu sôbre Jesus e
turas, o Espírito não age com a mesma força, permaneceu em Jesus "Deus não lhe deu o Es-
;

nem com a mesma finalidade através das diver- pírito por medida" (Jo 3.34) Doravante o Es-
.

sas épocas e fases da História salvadora. Só pírito está ligado a Jesus, à sua pessoa e obra,
seguindo passo a passo a marcha desta Histó- tão intimamente que parece não mais existir
ria é que perceberemos, coesa e unida, a ação fora de Jesus. Êste é o pensamento de João
do Espírito, tanto nos tempos da velha aliança, 7.37: o Espírito ainda não existia como poder
quanto nos dias da encarnação e na vida da ligado a Jesus. O testemunho é ratificado pelas
Igreja. afirmações tôdas dos três primeiros Evangelhos.
Com efeito, os sinóticos mostram-nos no minis-
1 . O Espírito, poder inspirador no VT. De-
tério de Jesus o Espírito vitorioso das potesta-

——>> —>
clara a própria Escritura que Deus age pelo
des inimigas, dos demónios, das en-
poder do Espírito. O Espírito age na criação
fermidades e da morte. Tóda vez que Je-
(Gn 1.2) e na conservação da vida humana
sus age contra alguma dessas potências, é de
(Jó 33.4; Is 42.5). Desce e repousa mais par- fato o Espírito de santidade e de vida quem obra
ticularmente sôbre aqueles que são chamados
pela sua pessoa. Eis porque Jesus pode dizer:
a chefiar o povo de Deus (Gn 41.38; Jz 3.10)
e sôbre o —>
"Servo de Iavé" (Is 42.1). A
sabedoria e o discernimento são dons do Es-
"Se, porém, eu expulso os demónios pelo Espíri-
to de Deus, evidentemente é chegado o reino de
Deus para vós". (Mt 12.28). Atos 10.38 re-
pírito (Is 11.2; Pv 1.23). Sobretudo, o Espí-
sume o ministério de Jesus, de um ponto de
rito aparece como energia e inteligência divinas
vista idêntico: "Jesus, ungido por Deus, do
animando os profetas e colocando-os acima da
Espírito Santo e poder, andou por tôda parte
prudência e dos cálculos de seus contemporâ-
fazendo o bem e curando a todos os oprimidos
neos (Mq 3.8; Is 61.1, etc). Todavia, con-
do diabo, porque Deus era com êle". João insis-
forme o VT, o Espírito apenas repousa sôbre
te na idéia-corolária, que as palavras de Jesus
:

determinados indivíduos, e só esporàdicamente,


são "Espírito e Vida" (6.63). É uma idéia
em virtude de alguma missão definida confiada
realmente muito próxima tôda vez que as pala-
a êles. A
antiga aliança vive na esperança de
vras de Jesus têm o mesmo poder que as suas
que Deus derramará o seu Espírito sôbre todos
obras, e santificam da mesma maneira. Acaso
os homens ao amanhecer dos novos tempos (Jl
não disse êle próprio "Vós estais limpos em
:

2.28; Ez 37.1-14). João Batista explica bem


virtude das palavras que vos tenho falado?"
este anúncio profético quando promete que ao
(Jo 15.3).
seu batismo de água se seguirá o batismo do
Espírito Santo, conferido por Cristo, o qual
Os relatos do nascimento (Mt 1 e Lc 1.),
virá revestido também do Espírito de Deus mostrando o Espírito ativo na concepção de
(Mc 1.8; Lc 4.18). Jesus expressam exatamente a mesma realidade
Em
suma, no VT
o Espírito intervém ape- que o relato da unção pelo Espírito no batismo.
nas acidental e raramente, animando certos ho- Ambos visam expressar, a seu modo, que Jesus
mem escolhidos para conduzir Israel a seus é uma criatura direta do Espírito divino ; é
destinos providenciais. Ainda não age como um como o primeiro Adão, um nôvo comêço da hu-
poder de regeneração e nova vida. Muito signi- manidade. Êste pensamento é expresso preci-
ficativo a êsse respeito, é que não tenha sido samente pelo nome de Filho (lo Homem que
:

ESPÍRITO SANTO 103

—> Jesus elege para designar-se a si mesmo, absoluta entre Cristo e o Espírito: Cristo é um
bem como pelo título de segundo Adão que ser pessoal que se encarnou em Jesus de Na-
lhe dá Paulo. A novidade e unicidade de Jesus zaré e agora reside no céu é verdade que o
;

está nisto o Espírito nêle encontra uma natu-


: crente está ainda longe de Cristo (2Co 5.6).
reza que não oferece o menor obstáculo. Êste embora possua o Espírito e pertença ao Espí-
é precisamente o sentido mais íntimo da afirma- rito (Rm 8.9, etc). Entre o Espírito e Cristo,
ção evangélica, que, após o batismo, Jesus e o Paulo vê uma identidade de função redentora.
Espírito formam uma pessoa e um poder que Cristo e o Espírito são a mesma energia divina
vivem e obram em perfeita unidade de vontade. que forma, transforma e recria a alma crente,
renovando-lhe o ser interior e encaminhando-a
3. O Espírito, poder de regeneração na Igreja. à obediência da fé (Rm 6.11-14; 2Co 4.16;
A ressurreição de Jesus desencadeia o cumpri- Gl 5.22-25, etc). A verdadeira recriação sobre
mento das promessas proféticas relativas à efu- o plano místico será seguida, quando vier o
são do Espírito sobre a humanidade. Jesus res- reino, de uma recriação sobre o plano físico
surreto envia aos apóstolos o Espírito que lhes (corporalmente nova, espiritualizada e, final-
havia prometido (Jo 14.16). Desde já o Espí- mente, depois da ressurreição, gloriosa e incor-
rito está presente neste mundo como o poder ruptível : Rm
8.11; ICo 15.42-50). Leva-nos
de vida que tirou Jesus do sepulcro; está ope- isso a considerar a ação do Espírito, na Igreja
rando na Igreja, e mediante ela faz os crentes e no crente.
serem novas criaturas, tiradas do mundo que
passa e ordenadas ao reino que vem. Eis três
b) O Espírito e a Igreja. O dom do Es-
pírito provoca a aparição da Igreja. A nova
aspectos do reino do Espírito que devemos sa-
era, inaugurada pela entrada de Cristo à sua
lientar, porquanto são a marca da nova aliança
glória, é chamada indiferentemente o tempo do
a) O Espirito c o Senhor. No intervalo Espírito ou o tempo da Igreja. O Espírito
entre a gloriosa ascensão de Cristo e sua volta sem a Igreja seria uma fôrça sem instrumento
nos últimos tempos, nós não estamos sós. É-nos de ação, e a Igreja sem o Espírito seria um
conferido o Espírito (Jo 20.22; At 2.1-2). Re- corpo sem ânimo. Eis porque no o Espí-NT
petidas vezes, João chama o Espírito de "o Pa- rito e a Igreja são sempre ordenados um para

ráclito" (Jo 14.16-26; 15.26; 16.7), isto o o outro e inseparáveis um do outro. Ambos são
é,
protetor, o amparador (mais do que o Consola- anunciados e prometidos por Jesus (Jo 7.39:
dor). Sua ação não foi de impedir que os após- Mt 16.18). Após a ressurreição de Jesus, am-
tolos mergulhassem na tristeza, mas de assisti- bos aparecem simultâneamente na História da
salvação, culminada pela ação comum dos dois
los positivamente, e de robustecê-los na sua mis-
são de testemunhas do Cristo e da boa nova. O
(At 2). Ambos seguem unidos na mesma espe-
Espírito-Paráclito conduz os Apóstolos à ver- ra do advento de Cristo (Ap 22.17).

dade tôda. Sendo Jesus Cristo a verdade, o Es- O Espírito dirige a Igreja, agindo nela e
pírito lhes dá a plena inteligência da revelação por ela. Repetiu-se amiúde que o ator principal
de Deus em Jesus Cristo, juntamente com a dos Atos dos Apóstolos não é Pedro, nem Pau-
perfeita capacidade de anunciá-la ao mundo. lo, mas o Espírito que acrescenta e fortalece

Por meio dos apóstolos, o Espírito difunde a a Igreja (At 9.31), quem guia os apóstolos e
obra redentora, iniciada por Jesus encarnado, evangelistas nas suas carreiras missionárias (At
através do tempo e do espaço. O Espírito, ou- 4.8; 6.10; 8.29; 10.19; 13.2-4; 20.24), quem
trora ligado à pessoa de Jesus durante o lapso inspira as decisões aptas a fomentar a unidade
histórico da encarnação, e desta maneira con- (At 15.28), quem estabelece nas Igrejas os
fiado à Palestina para um determinado número ministérios necessários (At 6.6; 20.28) e dis-
de anos, é, doravante, presente e operante pela pensa as advertências proféticas (At 11.28;
instrumentalidade apostólica, em todo o uni- 21.4.11). Essa doutrina tem, nas Epístolas
verso. Porém, sob esta nova modalidade, opera paulinas uma ampla confirmação. Tôda vez que
o mesmo poder de vida e oferece a mesma sal- a mensagem redentora é proclamada, germinan-
vação. Acha-se, dêste modo, realizada no dia de do uma nova comunidade, torna-se manifesto o
Pentecostes a promessa de Jesus (At 1.8): poder do Espírito (Gl 3.3-5; lTs 1.5, etc).
"Recebereis poder, ao descer sobre vós o Espí- Suas manifestações são idênticas em tôda par-
rito Santo, e sereis minhas testemunhas... até porque há um só Espírito portanto, um
aos confins da terra".
te,

só corpo, uma só — ;

^Igreja (Ef 4.4). A


Também Paulo vê a estreitíssima relação en- Igreja é o templo do Espírito (ICo 3.16) sem-
tre o Espírito e Cristo glorificado. O
Espírito pre mais enriquecida de dons espirituais (ICo
divino Espírito de Cristo (Rm 8.4; 2Co
é 12).
3.18; Gl 4,6, etc), e é por êle que Cristo age. O Espírito de Cristo não é uma fôrça cega
Paulo ousa escrever "O Senhor é o Espírito"
: e fatal, mas um poder que obra dentro dos
(2Co 3.17), mas sem pretender a identif cação planQs que estabeleceu livremente : somente den-
: :

104 EUCARISTIA

tro dos limites destes planos, alimentará e de- O Espírito que procede de Deus refere-se
senvolverá o crente a sua vida espiritual. invariàvelmente à revelação de Deus em Jesus
Cristo, conforme ensina a tradição apostólica. O
c) O Espírito e o crente. O crente é bati-
Espírito divino é a verdade, como o próprio
zado em "o nome de Jesus", mas, uma vez in-
Deus é a verdade (Jo 15.26; 16.13; ljo
corporado à Igreja, êle recebe o Espírito Santo
4.6).
(At 2.38; etc). Acontece, porém, que o Es-
pírito desce sobre os crentes para revelar-lhes
PH.-H. MENOUD
que devem ser incorporados à Igreja, pelo
—> batismo (At 10.44-48). De todas as ma-
neiras, é na Igreja que o crente participa da
EUCARISTIA
vida do Espírito (Ef 3.20-21). Quem pudesse
O
mistério da santa ceia é da alçada da His-
tória sagrada, não da filosofia. Pretendermos
descrever esta vida, teria descrito a vida cristã
desvendar o seu significado mediante considera-
totalmente. Limitar-nos-emos a lembrar os tra-
ções ontológicas sobre as substâncias, levar-
ços-mestres. O crente é uma "nova criatura"
nos-ia a um beco sem saída. Ver-se-á conde-
— (2Co 5.17, etc), um ser nascido de nôvo
nada ao fracasso toda especulação que pretenda
(João 3.3.8, etc). Como poder de regeneração,
atingir o que pertence àordem da fé, tentando
o Espírito faz o crente viver na comunhão do
submeter a exame de laboratório uma vida
Pai e do Filho, como um filho de Deus (Rm
que escapa ao controle humano.
8.14-17; ljo 3.1) e na comunhão com os de-
Mas, em focalizando o problema da santa
mais fiéis (Fp 2.1-5; ljo 2.20). O Espírito
ceia dentro da perspectiva da História salva-
revela sua presença e ação na Igreja pelos ca-
dora, empenharemos nossa reflexão dentro de
rismas que reparte entre os crentes para a edi-
um movimento e de uma vida. E, ipso jacto, as
ficação comum (ICo 12.7;
4.10, etc). Fi-IP
realidades terrenas serão alçadas à escada do
nalmente êle certifica para os crentes a vera-
reino de Deus, expostas à luz reveladora do
cidade do testemunho apostólico, em relação a
Espírito Santo.
Jesus (ljo 5.6-12; comparar ICo 12.2-3; Êle
convence o mundo incrédulo do pecado perante O mistério eucarístico insere-se numa His-
a revelação (Jo 16.8-10; comparar ICo 14. tória de índole peculiar : embora terrestre, ela
desemboca no céu. Dela é que recebe a Euca-
22-25).
ristia seu verdadeiro sentido. As coisas presentes
Emborajá salvo por Cristo, cuja obra está
são ordenadas a um destino sobrenatural por ;

feita,o crente permanece neste mundo que du-


rará até o final dos —>
tempos, ainda ex-
postos a todas as misérias da carne e do san-
sua vez, as realidades vindouras tomam, desde
já, corpo e figura em eventos e pessoas pre-
sentes. A História antecipa as realizações esca-

— —>
gue ( homem) terá que passar pela
;

y> morte. Porém, o Espírito que êle desde


tológicas, e os cumprimentos finais prometidos
para o Reino de Deus, cobram, já nesta terra
já possui impele-o a ir avante, rememorando- uma realidade atual e presente. É próprio da
lhe sem cessar que Cristo venceu a morte, e fé reconhecer e aprender as realidades derra-
nenhum no mundo há
certificando-lhe que poder deiras nas suas manifestações sensíveis e atuais,
de separá-lo do amor de Deus manifestado em de alimentar assim a nossa esperança à luz da
Jesus Cristo (Rm 8.31-38). encarnação de Cristo.
É, portanto, comprensível que Jesus, anun-
4. O Espírito Santo e os outros espíritos. O ciando as realidades futuras, não tenha pro-
Espírito que procede do Pai e do Filho é um
posto à fé uma imagem celeste, mas terrestre
Espírito, santo na sua essência, e santificante
a imagem duma ceia, e que tenha instituído um
na sua ação. Êle é o Santo Espírito, sendo o
memorial que encarnasse e figurasse as suas
adjetivo não apenas qualificativo, mas também
promessas. Jesus de fato retoma um rito histó-
adversativo, pois o Espírito Santo não deve ser
rico a ceia pascal, por cujo meio nos é dada
com alguma forma qualquer do es-
:

confundido
a Eucaristia, imagem antecipada da derradeira
pírito mau, seja ela o espírito do mundo (ICo
realidade prometida: o banquete messiânico.
2.10), ou o espírito de escravidão (Rm 8.15),
ou, seja o espírito enganador que suscita a he- 1. A ceia pascal. A saída do Egito foi para
resia (lTm 4.1). Daí Paulo emite o voto de os Israelitas o auge de eventos tão importantes
que sejam os crentes guardados na comunhão e. teologicamente tão significativos, que pas-
do Espírito Santo (2Co 13.13), exortando-nos saram a instituir um ato litúrgico solene a :

a discernir os espíritos "Amados, não deis cré-


: ceia pascal, para perpetuar a memória e incen-
dito a qualquer espírito" —
repete também João tivar as reflexões teológicas. Poderia bastar
"Antes, provai os espíritos se procedem de uma simples recordação auditiva, uma leitura
Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pública dos fatos. Por que, pois, esta ceia?
pelo mundo afora... e o anticristo presente- porque o ritual de uma ceia, melhor e mais
mente já está no mundo" (ljo 4.1-4). concretamente que outro, permitia aos convi-
EUCARISTIA 105

dados associarem-se intimamente às realidades rança. Pelo contrário, a santa ceia é essencial-
passadas, figuradas nos alimentos comendo a
: mente um ato presente, propriamente um rito de
carne do cordeiro, o pão sem levedura e as er- atualização. Portanto, cuidemos de não disso-
vas amargas, e bebendo dos cálices, além de ciar e imobilizar os diferentes aspectos, mas de
suscitar a lembrança, os crentes atualizavam os comprendê-los no movimento e no dinamismo
prodígios de Deus, nêles incorporavam-se e da História sagrada.
beneficiavam-se da graça libertadora que ar- Arecordação do passado virá a ser, para a
rancou Israel da casa de servidão (Ex 13.8-9). mente, como a infusão do passado dentro da
Ademais, a reflexão teológica percebeu que: vida presente e a esperança do reino vindouro,
;

o passado vem a ser a garantia do porvir. A como o penhor atual da felicidade por vir. As-
atualização da libertação histórica vinha pois a sim, não há lugar para separar os diferentes
ser a antecipação da liberdade messiânica. As componentes da realidade sacramental (recor-
coisas feitas por Deus eram apenas um sinal, um dação, atualização, e antecipação) e para con-
início e garantia das que Deus terá que fazer. siderá-las como três etapas sucessivas da sal-
A libertação do Egito autorizava a esperança vação. Na santa ceia o Espírito Santo opera a
da gloriosa manifestação de Deus no reino ce- fusão milagrosa dêstes elementos, alimentando
leste. o presente pela contribuição do passado e do
Deste modo, a ceia pascal comprometia e futuro, e tornando tudo atual.
empenhava os convidados na História da sal- APáscoa Judaica tem na vinda, morte e res-
vação, preparava-os a esperar e acolher o Sal- surreição de Jesus Cristo o seu cumprimento e
vador, suscitando a perspectiva da ceia mes- fim o cordeiro pascal é substituído pelo Cor-
:

siânica. deiro de Deus; a libertação do jugo egípcio


corresponde à libertação da escravidão do pe-
2. A ceia messiânica. Aqueles que persevera- cado. Doravante, ser-nos-á dado o corpo de
rem com Cristo nas provações, comerão e be- Cristo por alimento preservar-nos-á dos fla-
;

berão à sua mesa no reino (Lc 22.28-30). Esta gelos do anjo exterminador o sangue de Cristo.
ceia será diferente de todas quantas a precede- "Cristo, nossa Páscoa, foi imolado" (ICo 5.7).
ram e se prepararam na terra: realizar-se-á Cristo carrega sobre si todo o passado, revifi-
uma plenitude de comunhão direta com Cristo cando-nos. O passado de morte é tornado vida
como nunca em outra ceia na terra. Aí estarão em Cristo. Bem pode então a recordação subli-
reunidos com Cristo vivo, Abraão, Isaque e mar-se em esperança. "Anunciareis a morte do
Jacó, e todos os eleitos (Mt 8.11). Além de Senhor até que Êle venha" (ICo 11.26).
marcar o cumprimento da esperança de Israel, Por outra parte, o reino já se aproximou.
coroará esta esperança com um fim material, O banquete celeste e seus convidados sentados
fraternal e alegre. Bom será estarmos no reino à mesa com o Esposo, alegres na sua presença,
dos céus, porque estaremos à mesa, comendo já é figurado na terra pela ceia que comemos
e bebendo com o Senhor: "Bem-aventurado à mesa do Senhor, comungando da sua presença
aquêle que comer pão no reino de Deus" (Lc invisível e aguardando sua vinda gloriosa (Lc
14.15). 22.16 e 18). Pois Cristo carrega também o
É significativo que a esperança do crente porvir sôbre si juntando-o com o passado. A
venha a concretizar-se na imagem de uma ceia. nova —> aliança, que nos abriu a sala do
banquete nupcial, tem sido selada pelo sangue
Evidencia isso que as realidades do mundo vin-
douro, embora novas, não carecerão de analo- de Cristo, derramado por nossos pecados. Do
gia com as realidades presentes. E, assim como preço, jamais poderá esquecer-se aquêle que
nossas —> ceias na terra têm a virtude de
prefigurar o banquete celeste, assim também
toma a ceia com a mente posta na realidade
do banquete vindouro pois mesmo quando
:

o banquete dos céus projeta sobre as ceias da a ceia é tomada na luminosa perspectiva da
terra a imagem perfeita da verdadeira comu- redenção final, a mesa não deixa, pelo menos,
nhão fraternal, na alegria da presença do Se- de ser posta à sombra da cruz. Sombra tanto
nhor, em tôrno da sua mesa. Somos instruídos
mais forte, quanto mais viva a luz. Tanto mais
real será a presença do Cordeiro imolado, quan-
pelas coisas vindouras, pois, aqui o objeto espe-
to mais viva a ação do Senhor glorioso. Eis
rado é o modelo, precede o futuro.
porque a ceia do Senhor deve ser tomada na
3. A Ceia do Senhor. Situa-se entre a ceia alegria, por causa da comunhão viva com aquêle
pascal e o banquete messiânico. Tira seu signi- que vem (At 2.46). É uma alegria certamente
ficado de um e de outro, sendo simultâneamente impregnada de gravidade, por causa da comu-
recordação e esperança, memorial (ICo 11.24) nhão com aquêle que padeceu e deu a vida
e antecipação (Mt 26.29) Todavia não acarre-
.
por nós.
ta isso que ela não ocupe o presente, como se 4. Presença real. O crente, pela santa ceia,
fôsse unicamente uma volta ao passado pela é feito beneficiário, a um
tempo da morte reden-
recordação e um compromisso futuro pela espe- tora de Cristo e da bem-aventurança futura.
:

106 EUCARISTIA

Porém, o "como" desta divina operação é u o Espírito são os dois poios entre os quais
segredo do Espírito Santo. Não nos pertence brota a chispa da vida eucarística. Espí- O
penetrar êste segrêdo : contentemo-nos em for- rito opera, na mesa sagrada, através dos ele-
mular o mistério.Os textos, tanto os sinóticos mentos carnais (materiais) presentes, sendo
como os joaninos e paulinos, concebem a pre- sua intervenção essencialmente dirigida a atua-
sença do Cristo na Eucaristia com o maior rea- lizar e incorporar a presença de Cristo : pois.
lismo. não apenas atualiza a presença de Cristo, mas,
As palavras com que definiu Jesus o sacra- mediante o pão e o vinho, torna possível a
mento, a repetição do verbo "ser" em tempo incorporação do Cristo, feito realmente presen-
presente no texto da instituição (Mt 26.26-29 te no crente e na Igreja.
par) salientam nitidamente êste realismo: "Isto A
expressão paulina segue a mesma linha de
é o meu corpo; isto é o meu sangue". realismo, em têrmos particularmente adequados
Todavia, não se deve dar a êste "é" o sen- "O cálice de bênçãos que abençoamos, não é
tido de uma identidade, pois não cabe aqui mais a comunhão do sangue de Cristo? O pão que
identidade do que em outras expressões, "eu partimos, não é a comunhão do corpo de Cris-
sou a porta" (Jo 10.7), "eu sou o caminho" to?" (ICo 10.16). Pão e vinho não são aqui,
(Jo 14.6), "a rocha era Cristo" (ICo 10.4), etc. como não são em outro lugar, idênticos ao
Quando pronuncia todas estas declarações, Jesus corpo e ao sangue de Cristo (relacionar assim
ainda está presente corporalmente, excluindo seria trazer para um plano racional as coisas
isso tôda possível confusão e qualquer idéia de
que são da ordem do Espírito) Mas, são.
.

mudança de uma substância em outra. pela virtude do Espírito Santo, comunhão com
"é"
Aías, também não deve ser tomado êste o corpo e com o sangue, quer dizer, são os
no sentido de "figura", como se intentou fazer meios conjuntos da atualização, no crente e na
no afã de salvar o caráter espiritual da santa Igreja, da História da salvação cumprida na
ceia pois por salvar a espiritualidade, debi-
;
morte, ressurreição e ascensão (a que implica
lita-se excessivamente o laço íntimo que na segunda vinda) de Jesus Cristo.
Cristo procurou salientar entre sua pessoa e
Mediante a comunhão é o crente introduzido
os elementos materiais do sacramento. Cer-
na nova aliança, enxertado numa linha cujos
tamente não devem ser confundidos numa só
pontos extremosos são, de um lado, terrestre
identidade o corpo e o pão, o sangue e o
e carnal, e de outro, celeste e espiritual. É o
vinho, mas, tampouco podemos dissociá-los,
caminho que vai da libertação à promessa, da
pois Cristo na eucaristia nos é não apenas re-
salvação recebida à salvação esperada caminho
—>
:

presentado, mas também apresentado. É-nos


da Igreja.
não apenas lembrado, mas também comuni-
cado. Sua presença não é meramente espi- 5. O corpo de Cristo. Desde os exórdios da
ritual, uma vez que é ligada aos elementos Igreja, os cristãos só sereuniam na casa de
materiais do pão e do vinho. algum irmão para uma ceia, em cujo transcurso
No Evangelho de João é que o realismo o que presidia pronunciava uma oração de ações
sacramentário acha sua mais audaciosa for- de graça (eucharistia), partia o pão e distri-
mulação. "Eu sou o pão vivo que desceu do
buía o cálice a todos os participantes, conforme
céu ;se alguém dêle comer viverá eternamen-
o preceito do Senhor. Esta refeição eucarística
te e o pão que eu darei pela vida do mundo,
constituía o centro do culto. Não cabe a me-
;

é a minha carne" (Jo 6.51). Bem compreen- nor dúvida a respeito da sua importância na
demos que os judeus disputassem entre si: vida da Igreja nascente (At 20.7). A
f ração do
"Como pode êste dar-nos a comer a sua pró-
pão é uma das marcas da Igreja (At 2.42) e
pria carne?"... Jesus, porém, contesta, sem
um dos pilares essenciais de todo o edifício
levantar a dificuldade, mas recalcando ainda
cristão.
mais radicalmente o paradoxo: "Em verdade
vos digo que se não comerdes a carne do
É inconcebível que uma Igreja, fiel às suas
origens e dócil à Palavra de Deus, possa dimi-
Filho do Homem e não beberdes o seu sangue,
nuir a importância vital da eucaristia e deslocar
não tendes vida em vós mesmos" (Jo
6.52-58). Todavia, neste mesmo capítulo, e a santa ceia do centro de suas preocupações. A
continuando as declarações mais absolutas celebração da santa ceia é parte da vida normal
sobre o caráter material da comunhão, vem da Igreja: a eucaristia é o alimento normal
esta declaração peremptória "O Espírito é
:
e indispensável de qualquer vida cristã cuida-
o que vivifica, a carne para nada aproveita" dosa por estar em comunhão com Cristo e com
(Jo 6.63) advertência que deve precaver-nos
: o próximo. No intervalo que separa a ascensão
contra a tentação de raciocinar filosoficamente de Jesus da sua parusia, a Eucaristia é a marca
sobre as substâncias, num intento de forçar a da presença e da ação de Cristo, o ponto deci-
compreensão dum mistério que deve perma- sivo em torno do qual ordena-se a vida e a
necer no apanágio do Éspírito. A
carne e estrutura da comunidade.
EVANGELHO 107

É no seio da Igreja que o Espírito Santo Lucas, (ascendente) remonta as gerações até
atualiza o —>
Reino, dispensando, desde já a
todos que se congregam em torno da mesa eu-
Adão,
de Israel
Deus, e mostra Jesus, o Cristo
filho de
todos os homens herdam da pro-
;

carística, as forças do mundo futuro, as facul- messa e são conduzidos de volta a Deus (Rm
dades de
vidados
—>
perdão e de amor. Os con-
a formar um corpo que testemunha
vêm
—> 1.6). Igualmente esforçam-se por provar que
Cristo é o cumprimento das promessas, as inú-
neste mundo a realidade de um outro mundo. meras citações bíblicas, em particular as nar-
Porque a comunhão de muitos comendo de um rações da paixão, bem como os discursos de
mesmo pão cria na terra uma comunidade fra- Atos dos Apóstolos e tôda a Epístola aos He-
ternal (ICo 10.16-17), paradoxo vivente: pois breus, a cujo propósito convém notar: a) que
as coisas que ainda são prometidas, aí já são para entender o NT, é indispensável conhecer
dadas, e as coisas já dadas aí são prometidas. e entender a História Sagrada, isto é, promessa
e forma do Evangelho; b) que, na realidade,
J.-PH. RAMSEYER o próprio VT é parte integrante do Evangelho,
e não, em forma alguma (como as rotinas can-
EVANGELHO tam), parte inferior e rudimentária. Moisés
escreveu de Jesus (Jo 5.46) Abraão viu o :

1 . Evangelho boa nova. Nossas ver-


significa dia de Jesus e regozijou-se (Jo 8.56), os pro-
sões guardam geralmente o termo grego, sim- fetas meditaram sôbre a salvação e dela foram
plesmente transcrito às vezes, sem razão apa-
;
os mensageiros (IPe 1.10-12). O fato de Je-
rente, modernas traduções intentam dar prefe- sus ser o Cristo, funda a unidade do Antigo e
rência a "boas novas" (Mt 4.23; 11.5; Mc do Nôvo Testamento.
10.20; Rm 2.16).
5 . Em
Mateus, Marcos e Lucas, o Evangelho é
2. O têrmo
encontra-se exclusivamente no
o anúncio da vinda iminente do reino de Deus.
NT designa uma realidade ainda não apare-
:
Deus vai estabelecer seu reino e pôr fim ao
cida nos tempos da antiga aliança. novi- A mundo presente aniquilará tudo que se opuser
;
dade da Boa Nova não reside tanto em deter-
a êle o poder de Satã, da enfermidade e da
:

minadas matérias Deus Pai, Deus amor, Deus


:
morte e dará a salvação a seu povo que aguar-
;

perdão, universalidade da salvação, etc, pois


da o cumprimento das profecias. Esta mensa-
nenhuma delas está ausente no nem na VT ;
gem tem seu corolário na pregação da peni-
ênfase dêstes elementos (no VT, êsse destaque
tência (Mt 4.17; Mc 1.15): deve o homem
dá relevo à santidade de Deus; o ao seu NT renunciar as suas seguranças religiosas, subme-
amor, e outros exemplos ecoados pela rotina ter-se ao juízo de Deus e obedecer sua vontade.
mais gratuita) reside antes no fato do cumpri-
mento e da realização (
;

cumprir) cumpri- :
Os sinais precursores do reino são os mi-
lagres, sinais de Jesus, as curas, em particular
—>
do está, no NT, realizado e atingido, tudo que
prometia o VT a meta tôda visada pela histó-
:
dos endemoniados, bem como o perdão
que Jesus dispensa: em Jesus o reino já está
—>
ria de Israel, o designo de Deus. O não NT secretamente presente, atacando o poder do Ma-
diz coisa alguma ignorada do VT a respeito de ligno e restaurando a ordem de Deus (Mt
Deus, mas diz que Deus cumpriu as suas pro- 12.28; 11.2-6).
messas (Mt 1.22-23; 3.3; 8.17; Mc 15.28; O mensagem e dos milagres
significado da
At 2.16-17; Rm 1.1; Gl 4.4, etc). de Jesus aparece claramente só na sua morte
e ressurreição, ponto de convergência de todos
3. A
palavra Evangelho é acompanhada de
os demais. Aquêle que perdoa e cura não é
atributos diversos que determinam o seu sentido.
Os mais importantes são Evangelho de Cristo:
um mestre de técnicas psicológicas, um ben-
feitor ilusório que salva o homem da maneira
(Mc Rm
15.19; 2Co 2.12), do reino
1.1;
pela qual o homem deseja ser salvo, fora de
(Mt 4.23; 24.14), de Deus (Mc 1.14; Rm
1.1; lTs 2.8, etc). Paulo costuma escrever qualquer confronto com Deus, sem humilhação
"o Evangelho" por excelência e sem qualquer
nem morte; mas êle é o homem de dores, rejei-
adjetivo.
tado e odiado, em cuja morte há de ser reve-
lado o pecado, a decadência e a perdição do
4. O Evangelho é a boa nova de Jesus Cristo: homem êle é o varão de dores que toma sôbre
;

proclama que Jesus é o Messias, o Cristo de si todo o pecado, deixando imprimir em si mes-

Israel; nêle estão cumpridas as promessas fei- mo a marca do pecado, para ser golpeado em
tas por Deus a Israel. Afirmação íntima das lugar daqueles que têm golpeado a Deus (Mt
duas genealogias evangélicas (Mt 1.1-17 e Lc 26.26-28; At 8.32ss; 2Co 5.21; Gl 3.13). Em
3.23-38). A
genealogia (descendente) de Ma- compensação êle será revelado por Deus, na
teus de Abraão, patriarca das promessas,
vai sua ressurreição, como o Senhor e o Salvador
passando por Davi, o rei segundo o coração (Mt 28.18; At 2.32ss; 3.13ss; Rm 1.4). O
de Deus (ISm 13.14) até Jesus Cristo; a de Evangelho centraliza-se na cruz ( cruz) —> ;
108 EVANGELHO

de modo especial em Paulo, que "decidiu nada 15.1 e 2) o perdão torna o homem uma nova
:

saber, nem anunciar, senão a Jesus Cristo, e criatura e restabelece entre Deus e êle relações
este crucificado (ICo 2.2), e que vê na cruz, normais: doravante podemos considerar o juízo
não apenas, como outros antes dêle, o evento sem espanto. Porquanto seja mensagem de juízo
salutar, mas também vê a natureza do pecado, e da graça, o Evangelho é válido para todos
a forma necessária da revelação e do conheci- os homens (Rm 3.23-24;
3.29-30), procla-
mento de Deus, da pregação e da salvação (ICo mando que o Cristo de Israel é o Senhor tam-
1.17.25). Aliás uma visão idêntica inspira bém dos gentios (Rm 1.1-7), o Senhor de to-
incontestàvelmente os quatro Evangelhos (que dos (At 10.36). Pela sua morte (manifestação
mui justamente têm sido chamados "narrativas do pecado de Israel e do pecado dos gentios, e
da paixão com introdução prolixa" (Kahler) e também revelação da salvação gratuita sem mé-
os demais livros do NT. Na cruz, Deus e os rito pessoais e sem glória própria), Cristo der-
homens defrontaram-se mutuamente para o jul- rubou a parede separatória entre Israel e os
gamento e a salvação uma vez que a ressur-
; gentios (Ef 2.11-12; 3.6). O Evangelho está
reição tenha revelado o sentido da morte de no universo (Cl 1.6), sendo uma só e a mesma
Jesus, a cruz será o princípio do fim para êste
século, a inauguração do —> tempo da reali-
—> fé (Rm 1.16-17; 3.30) a condição para
salvar-se tanto Israel como o gentio.
zação, o fundamento da vida do crente, bem
como da Igreja. 7. Não sendo o Evangelho uma criação do
espírito humano, nem algum sonho da sensi-
6. O Evangelho proclama que Jesus é o Se- bilidade ou da sentimentalidade religiosa, mas
nhor (ICo 12.3; At 2.36; Fp 2.11); o pró- revelação de Deus, resulta que êle não é uma
prio Cristo ressurreto declara "Todo o po-
:
verdade evidente (ICo 2.9) nada surpreen-
:

der foi-me dado no céu e na terra" (Mt 28.18). dente, pois que êle permaneça velado para
Elevado à destra de Deus (At 2.33), Jesus é aquêles que o Deus dêste século tem cegado
rei com a própria autoridade de Deus e na ple- (2Co 4.3-4). Paulo não opina de jeito nenhum
nitude do divino poder. Êste poder é fundado que o Evangelho seja em si mesmo obscuro ou
sôbre a obra redentora realizada na obediência absurdo; até lhe dá o título de sabedoria (ICo
até a morte de cruz (Fp 2.8), e portanto, sôbre 2.6), mas o Evangelho é escândalo para os
o próprio Deus que decretou esta obra e a rati- Judeus, que exigem milagres e não admitem
ficou publicamente, ressuscitando o Crucificado que um Deus se rebaixe loucura e disparate
;

(At 3.15; Rm 1.4; 6.4). O Evangelho não para os gentios, que procuram a Deus no pró-
é, pois, uma palavra vazia (lTs 1.5), mas o prio pensamento e ignoram o pensamento divino,
poder de Deus que realmente salva dêle não
; que excede o entendimento humano é o único
;

se envergonha Paulo (Rm 1.16); pelo con- que ilumina a inteligência. Entretanto o Evan-
trário, anuncia-o não obstante ultrajes e lutas gelho é poder e sabedoria de Deus para os
(lTs 2.2). O Evangelho é a palavra devida chamados que se submetem ao juízo e à graça
(Cl 1.5), isto é, a autêntica revelação de Deus (ICo 1.22 ss).
e dos intentos divinos com respeito a nós ; o Para que o Evangelho não fôsse tido por
Evangelho da glória do Deus bem-aventurado algumas dessas doutrinas, que os sábios não se
Cl Tm 1.11, ou conforme outra leitura: o glo- cansam de imaginar para resolver os problemas
rioso Evangelho do Deus bem-aventurado), ou da existência, Paulo renuncia deliberadamente
seja, a manifestação do seu poder vitorioso. Pau- a sabedoria da linguagem, a habilidade da pala-
lo chama-o também "o Evangelho da glória vra que convence lisonjeando (ICo 1.17; 3.13;
de Cristo que é a imagem de Deus" (2Co 4.4), 2Co 10.5); o Evangelho há de permanecer,
a palavra na qual está Cristo presente em poder ostensivelmente, a palavra da irredutível con-
e verdade, palavra fundada e eficaz. Portanto, tradição entre a sabedoria de Deus e a sabe-
é muito natural que o chamemos também o doria humana. Não poupa Paulo aos Atenien-
Evangelho de Deus pois êle é a boa nova da
:
ses os apelos à penitência nem a mensagem da
qual Deus é o autor, e pela qual Deus atinge o ressurreição (At 17.18, 30, 31). Guardemo-nos,
homem, modificando-lhe a existência. porém de afirmar que crer é subscrever cega-
Por estar fundado sôbre a morte e ressur- mente afirmações ininteligíveis "Arrependei-
!

reição de Jesus Cristo, o Evangelho é a pala- vos e crêde no Evangelho" (Mc 1.15): a fé
vra da —> reconciliação (2Co 5.19), por cujo
intermédio, Deus retira o obstáculo que man-
é condicionada pelo arrependimento (
pendimento). Quando Deus implacàvelmente
—>
arre-

tém, o homem afastado de Deus e prêso de- projeta sua luz sôbre nossa vida pecadora e
baixo do juízo e do temor; o Evangelho é a rebelde e que nós aceitamos o veredito que nos
revelação da —> justiça de Deus que salva o
homem (Rm 1.16), fazendo-o morrer com Cris-
condena, então brota a fé, como uma resposta
nossa e um movimento nosso impulsionando-nos
to; o Evangelho da paz (Ef 6.15), da —
^gra- a dar razão a Deus. Afé forma-se, cresce e
ça (At 20.24), da—> salvação (Ei 1.13; ICo fortalece-se através duma vida clara e conscien-
:

FACE 109

temente levada. "Vivei por modo digno do Evan- Jesus à "dogmática" dos apóstolos. Os quatro
gelho de Cristo... para que vos acheis firmes Evangelhos não estão menos carregados de
em um só espírito como uma só alma, lutando reflexão teológica do que as Epístolas. Re-
juntos pela fé..." (Fp 1.27.28): a vida da servou-se o título de Evangelho às quatro
Igreja, sua unidade, o nítido testemunho e fir- narrativas de Mateus, Marcos. Lucas e João,
me obediência dos fiéis, hão de manifestar a para isolar-se a História dos fatos básicos da
verdade do Evangelho, bem como profetizar a nova aliança, como no Pentateuco estão isola-
perdição daqueles que resistem à boa nova. dos os fatos básicos da antiga aliança; e de
fato. os Evangelhos e o Pentateuco possuem
8. A
em Romanos
—>Lei e o Evangelho. Principalmente
e Gálatas (um eco também em
entre si os suficientes elementos para, respecti-
vamente, afirmar o caráter definitivo e nor-
Jo 1.17), aparecem opostos: não significa que mativo da velha e da nova aliança.
há, no VT e NT, duas revelações diferentes
e dois caminhos de salvação o VT, colocando
:
CHR SENFT
o homem em frente das divinas exigências para
que, aceitando-as, fôsse tornado justo; e o NT- FACE
constatando o fracasso dêste primeiro ensaio
de Deus e instaurando como remédio uma eco-
Face designa geralmente o lado visível de
qualquer realidade, por exemplo, da terra (Gn
nomia de indulgência. Não, o Evangelho não
2.6; Lc 21.35), dos campos (Ez 32.4), das
representa uma nova atitude de Deus para com
o homem, como se, renunciando às exigências
águas (Ec 11.1), dos céus (Lc 12.56) etc. O
primeiras de justificação pelas obras da Lei,
mesmo acontece com os têrmos sinónimos
"rosto", semblante" e "cara".
propusesse agora a justificação pelo Evange-
lho da graça gratuita. A
Lei não é contrária 1. A face do homem A Escritura fala com
à promessa da graça (Gl 3.21), nem o Evan- frequência da face do homem, porquanto na
gelho destrói a Lei, mas, pelo contrário, con- face é que se revelam as emoções da alma
firma-a (Rm 3.31). Paulo demonstra que a "Um coração alegre aformoseia o rosto" (Pv
graça é anterior à Lei (Gl 3.17), sendo, to- 15.13) no entanto, a inquietação torna o sem-
;

davia- introduzida a Lei como parte do primeiro blante triste (Gn 40.7). A Caim descaiu-lhe
e único plano de salvação. A
Lei deu ocasião o semblante (Gn 4.5) e Labão, mudando de
à transgressão (Rm 7.7ss), e serviu para evi- parecer, muda de semblante (Gn 31.2). Tor-
denciar que o homem não quer receber a graça, na-se pálido o rosto do homem apavorado (Jr
mas gloriar-se ante Deus, de sua própria jus- 30.6). Decidido, o homem faz o seu rosto
tiça (Rm 10.2-3; Lc 18.11-12) desta maneira ;
"como um seixo" (Is 50.7), duro (Ez 3.8).
a Lei cumpre sua finalidade mantém o homem
:
Para manifestar sua resolução de subir a Je-
na sua situação real ante Deus, única situação rusalém, Jesus literalmente (Lc 9.51) "endu-
onde a graça de Cristo o possa encontrar e
rece o seu semblante". A
"confusão do sem-
salvar (Gl 3.23-24).
blante" revela a vergonha- e esta, por sua vez,
9. Nos escritos de João (Evangelho, Cartas "faz corar o semblante" (Dn 9.7; SI 34.6),
e Apocalipse), o têrmo Evangelho nunca é obrigando a esconder o rosto (Mq 3.7: "os
usado na sua significação específica de Boa falsos profetas se confundirão, todos êles co-

Nova aliás, encontra-se apenas uma vez e


;
brirão os seus bigodes") Para esconder as
.

lágrimas, Ezequias vira o rosto para a parede


com outro sentido (Ap 14.6-7) o Evangelho :

eterno, proclamado pelo anjo, não é o de Cristo,


(2Rs 2Ò.2) em sinal de desprêzo, a gente
;

afasta o seu rosto do varão de dores (Is 53.3)


mas uma advertência última que Deus, antes do ;

juízo dirige à humanidade. É declarado outros, quando oram, postram-se, a face contra
"eterno", por ser o apêlo que as obras de Deus a terra (Gn 17.3; Mt 26.39). A face do
lançam desde a criação do mundo (Rm 1.20). homem é o espelho (=o semblante) dos sen-
timentos ocultos.
10. Os escritos do NT nunca usam a palavra É também o elemento mais pessoal do ser
Evangelho para designar os quatro primeiros humano : quemda face, fala da pessoa
fala
livros do Canon Neo-testamentário qualquer : (Is 3.15: "que há convosco que moeis a face
pregação proclamando que Jesus é Cristo e dos pobres?"). Torna-se maior o interêsse
Senhor, tanto a mensagem de Paulo, quanto desta observação quando se trata do semblante
a carta aos Hebreus e as narrativas dos evan- Jesus: o rosto de Jesus transfigurado (Mt 17.2)
gelistas- constituem o Evangelho. Somente a manifesta a glória de Jesus, assim como os
partir do segundo século constatamos o uso golpes que lhe dão na face manifestam a hu-
atualmente corrente, o qual, aliás, nunca pre- milhação inflingida à sua pessoa tôda (Mt
tendeu estabelecer uma diferença entre as pró- 26.67: compare-se Mt 5.39). Na linguagem
prias palavras de Jesus e as doutrinas apos- bíblica "face" torna-se frequentemente sinónimo
tólicas, e, menos ainda, opor a "religião" de da própria pessoa "eu enviarei o meu mensa-
:
110 FAMÍLIA

geiro diante da tua face" (Mt 11.10 =


Ml 3.1), da presença do Senhor. Caim esconde-se e
isto é, diante de ti. A
expressão de Paulo: foge da face do Senhor (Gn 4.14-16); Jonas
"a glória de Deus resplandece na face de Cris- foge da face de Iavé (Jn 1.3,10). E Deus
to" (2Co 4.6) designa tôda a pessoa e até a mesmo expulsa os ímpios longe da sua face
obra de Cristo. (Jr 15.1). Todavia, na afirmação do Salmo
(139.7) ninguém pode fugir da face divina.
2. A face de Deus. O VT, antropomorfista, Portanto, todo homem encontra-se na presença
que representa Deus à imagem do homem, dá de Deus. Precisamente neste "face-a-face com
a Iavé um semblante. Às vêzes —
como sim- Deus" é que consiste a atual condição do ho-
ples metáfora para evocar os sentimentos de ira mem, sua condição de interlocutor de Deus que
ou de benevolência de Deus para com os ho- êle pode aceitar ou rejeitar.
mens — Deus mostra um semblante irado Além desta presença geral de todo homem
(Lm 4.16; SI 80.17). ou luminoso (SI 4.7): perante Deus, Deus concede a seus servos re-
mais frequentemente —
como metonímia para velações particulares, dá-lhes o seu rosto a
designar a pessoa de Deus entrando em contato contemplar Assim Jacó declara ter visto em
com os homens —
Deus vira o rosto para o
.

Peniel "a Deus, face a face" (Gn 32.30; 33.10).


homem (Nm 6.26), ou seja, revela-lhe sua Também Moisés, no Sinai, falou com Deus face
graça; ou, pelo contrário, "a face de Iavé está a face (Ex 33.11 Dt 34.10; 5.4)
; Não viram
.

contra aquêles que praticam o mal" (IPe 3.12), a Deus com seus olhos carnais, porquanto na
isto é, Iavé manifesta-lhes sua ira. O rosto presente economia o homem não pode contem-
do Senhor indica, pois, o que Deus, abrindo plar o rosto de Deus sem morrer (Ex 33.20.23).
parcialmente
invisível,
o mistério de sua personalidade
quer revelar aos homens. Revelação
Mediante os verbos —>
ver e contemplar, a
Escritura expressa que os servos de Deus en-
parcial que diz respeito em particular ao seu tram em contato direto com a própria pessoa
amor e graça. É manifesta bênção para o de Deus, invisível, mas revelada a êles (Jó
fiel, ver o rosto do Senhor resplandecer sôbre 33.26: SI 11.17; 17.15).
si (Nm 6.25) no entanto, castigo e maldição
;
Aesta contemplação parcial no espelho da
para o homem pecador será esconder-lhe Deus
fé. haverá de suceder, no último dia,, a visão
o seu rosto (Dt 31.18), abandonando-o à mor-
de Deus face a face, quer dizer, o conhecimento
te (SI 30.8; 104.29).
total e perfeito de Deus no amor eterno (ICo
Como o — ]> anjo de Deus, a —> glória 13.12) do qual gozam já agora os anjos no
de Deus e o — > nome de Deus, a face de céu (Mt 18.10). Dessa esperança temos re-
cebido já o penhor na presença de Cristo pe-
Deus é personificada amiúde pelo VT, signi-
ficando então a função intermediária da reve- rante a face de Deus (Hb 9.24).
lação entre Deus e o homem. A
personifica- S. AM S LER
ção do rosto divino permite aos israelitas mis-
turar com exagerada familiaridade a pessoa FAMÍLIA
divina com a História humana. Tomemos por
exemplo o texto de Dt 4.37: "...te tirou do
Para a família no VT —> Matrimónio
Egito pela sua face" (imperfeitamente tradu- NT
zido na nossa versão revisada por: "...te
tirou do Egito, êle mesmo presente"), ou êste
1. "A ninguém
sôbre a terra chameis vosso
texto de Is 63.9: "o anjo do seu rosto os sal-
pai porque só um é vosso pai, aquêle que
;

está no céu" (Mt 23.9), declara Jesus. Efe-


vou" (nossa versão: "o anjo da sua presença
tivamente. com a vinda de Jesus, o marco
os salvou"; ou ainda, 2Sm 17.11: "Teu rosto
vetero-testamentário da família foi quebrado e>
irá para o combate" (nossa versão: "Tu em
pessoa irás no meio dêles") Todo leitor ini-
.
como tôda a primeira criação de Deus, chegou
a seu fim. Jesus é o fim de um mundo. Assim
ciado compreende que se trata, nos textos cita-
dos, de uma maneira respeitosa de falar de se compreende que "veio causar divisão entre

Deus. o filho e seu pai, entre a filha e sua mãe, entre


a nora e sua sogra", tendo o homem por ini-
3. Deus e o homem face a face. Precisamente migos os da sua própria casa (Mt 10.35s).
porque Deus se revela, mostrando-nos o seu Jesus não tolera que motivos de família venham
rosto, é que devemos buscar a face de Deus. a pesar mais, na eleição do reino, do que o
Esta expressão muito usada define bem a ati- apêlo de Deus (Mt 8.21). Chegou o tempo
tude do peregrino em marcha para o Templo, em que, por causa do reino presente, o marco
em procura da vontade divina (2Sm 21.1), ou, da família natural deixa de ser determinante
por extensão, a atitude do fiel atento a viver (ver Mt 10.21 par). O próprio Jesus conhe-
na presença do Senhor, "sob o olhar do Se- ceu os desprendimentos implicados pelo amor
nhor" (lCr 16.11). O infiel' no entanto, o do reino (Mc 3.21,31ss par; Mt 13.51; Mc
homem de consciência perversa, procura escapar 6.4 —>
Maria em Nomes próprios). No
;

FAMÍLIA 111

entanto o rompimento do marco familiar não toda a casa recebe o nome déle, sendo uma
comporta um parcelamento da sociedade, ou célula social totalmente dependente dêle até o
uma atomização no individualismo pelo con-
;
ponto de poder tomar o pai decisões em nome
trário, da morte da família natural surge uma de todos e que a todos comprometem perante
nova família sobrenatural, a
lia e casa de Deus
—>
Igreja, famí-
(lTm 3.15; Hb 3.6).
Deus. O fato consta especialmente nas narra-
tivas de conversão ou de —>
batismo (At
Nesta nova família- milagrosamente oferecida 10.2; 11.14; 16.31; 18.8; ICo 1.16; Jo 4.53;
aos que renunciarem à família carnal (Mc Mt 18.25). Vemos que há, na casa de Deus
10.30 par), haverá novos laços de parentesco: — provavelmente como células de base, ori-
Paulo gerando Igrejas, torna-se um autêntico ginais — famílias inteiras, cristãs, honradas e
pai de família (ICo 4.15; 2Co 6.13; lTs 2.11), abençoadas, a cujo respeito não cabe a pergun-
e, tal qual u'a mãe dando à luz, sofre as dores ta, para afirmar sua integração na família de

do parto (Gl 4.19; compare-se lTs 2.7). Deus, se devam se dividir ou atomizar humana-
Timóteo, Tito, Filemom são seus filhos verda- mente (At 21.5; ICo 16.15; 2Tm 1.16; 4.19.
deiros (ICo 4.17; Fp 2.22; lTm 1.2,18; 2Tm Coisa digna de nota: é também na qualidade
1.2; Tt 1.4; Fm
10). Anuncia aos gentios de famílias unidas que correm o perigo de
batizados que êles daí em diante formam parte heresia todos juntos: Tt 1.11). Verossimil-
da família de Deus (Ef 2.19; Gl 6.10). Su- mente foram as famílias, no interior da Igreja,
plica a Timóteo que considere os membros da os centros de culto (At 2.46; 5.42; 20.20);
Igreja como membros de sua família (lTm precisamente como unidade familiar, devem
5. Is). Compara os bispos a pais dê família elas desempenhar um ministério de testemunho
(lTm 3.5). Cumprimenta a certas mulheres, público, exemplo vivo da família humana ideal
verdadeiras mães para a Igreja (Rm 16.13). eis porque tanto importa sejam elas exempla-
Aliás, a mesma Igreja é tida, na expressão de res (lTm 3.4; 5.14; Tt 1.6) .

Calvino, como a mãe de todos os que têm Surge assim uma ética de linhas
familiar
Deus por Pai (ver Gl 4.26ss; 2Jo 1.4,13). bem traçadas. Antes de mais nada. seja pura
No cristianismo antigo era tão forte o "sentido a fonte : celebre-se o matrimónio "no Senhor"
familiar" da Igreja, que era imputação corren- (ICo 7.39; ler, para contraste, ICo 5.1ss).
te entre os pagãos hostis- que a Igreja fomen- isto é, entre cristãos, com a exigência da indis-
tava os incestos... Como podiam casar entre solubilidade. Assim serão santos os filhos por
si gentes que se chamavam mutuamente irmão nascer (ICo 7.14, mesmo quando só um dos
e irmã, pai ou mãe? esposos casado no paganismo se converter ao
cristianismo), afirmação importante pela sua
2. Uma família dividada contra si mesma por profunda significação: doravante a vida conju-
causa do reino não subsistirá (Mt 12.25 par). gal e toda sua implicação familiar situam-se
Cuidemos, porém, de não afirmar que a irrup- não apenas na ordem da primeira criação, mas
ção do reino suprime, necessariamente, as fa- no nível da salvação. O pai, reflexo da pater-
mílias naturais. A Jairo e a sua esposa de- nidade divina (Ef 3.15), terá para sua casa
volve Jesus a filha ressuscitada; a Marta e a firmeza e a atenção assegurando-lhe unidade,
Alaria devolve o irmão (Mc 5.4; Lc 7.11ss; providenciará alimento e vestido (Ef 5.29).
Jo 11) a seus pais, um menino lunático (Mc
; amará a esposa como Cristo amou a Igreja
9.21ss) o filho ao capitão romano (Jo 4.46ss),
; (Ef 5.25), educará os filhos para que saibam,
a filha à sua mãe cananéia (Mt 15.21). A na alegria de coração, amar e servir o Senhor
rogo das mães, Jesus abençoa as criancinhas (Ef 6.4; Cl 3.21), nunca esquecerá que tam-
(Mt 15.21), admite na sua própria companhia bém os domésticos têm a Deus por Pai pelo
as mães de certos discípulos (Mt 27.56), cura mesmo motivo que êle próprio (Ef 6.9; Cl
a sogra de Pedro (Mc 1.29ss; compare-se At 4.1, etc). A mãe reconhecerá a autoridade
28. 7s) No seio da família de Deus cabe, pois,
.
do esposo (Ef 5.22s; Cl 3.18; IPe 3.1-6). e
lugar para as famílias humanas- e Jesus não juntamente com êle preparará o porvir, tempo-
deixará de legislar acerca do —
y> matrimónio ral e eterno, dos filhos (2Co 12.14). Que
e do divórcio. torne sua casa respeitável (lTm 5.14), acolhe-
Era costume, e contra ela não protesta o dora (lTm 5.10; Rm
16.3; At 18.26), que
NT, que a família, conhecida também pelo su- lembre que o fundamento de sua feminilidade
gestivo têrmo de casa, abrangesse também os não é primàriamente ter filhos, mas ter ma-
parentes, filhos, enteados e domésticos (os ser- rido (ICo 11.8-9). Portanto, na estrutura
vidores eram designados em grego com têrmos neo-testamentária da família, o casal precede
indicando que êles faziam parte da casa, exa- a maternidade em relação ao casal, unidade
;

tamente como o latim domesticus derivado de dos pais, aprenderão os filhos seus deveres bem
rfom«j=casa: Mt 10.25,36; 24.45; Lc 16.13; como seus direitos (Ef 6.1-2; Mt 15.4ss par;
At 10.7; Rm
14.4; Fp 4.22; IPe 2.18). En- 19.19 par). Seus deveres: saibam que é grato
quanto o pai vive —
ou quando é cristão — a Deus obedecer aos pais em tudo (Cl 3.20),
:

112 FÉ

considerar nêles os mandatários da autoridade encontram, na sua comunhão com Deus, força
divina, os representantes do Senhor. (Muitos e coragem em meio das provações (Ver os Sal-
opinam que o primeiro mandamento pertencia mos, em particular 73, e o Livro de Jó). A
à primeira tábua da lei, referente ao próprio fé pessoal arraiga-se na certeza de ser Deus o
Deus: ver Hb 12.9). Saibam, agradecidamen- soberano, e inscreve-se, assim, na fé coletiva
te, cuidar dos pais avançado em idade (lTm no Deus do povo.
5.4). Os direitos: acharem-se capacitados, me-
diante a educação cristã, para estabelecer a
A fé, certeza de que o Deus da aliança go-
verna o universo e dará cumprimento às suas
coincidência entre sua vocação e sua vontade,
promessas, e a fé, confiança pessoal do justo
descobrir assim o sentido de sua vida (Ef 6.4).
num Deus que cuida dêle, juntam-se no retrato
Os servidores, (os domésticos =
que também
do justo Abrão, do pai dos crentes, tal como
são da cosa), reconheçam no seu amo um de-
=
implica boa
o pinta o VT
(Gn 15.6, etc). Abrão revela-se
legado do Senhor (reconhecer
crente nas provações a que é sujeito; assume
vontade) (Ef 6.5ss; Cl 3.22ss; IPe 2.18-25): uma atitude de fé quando é convidado a deixar
serão dignos de um justo salário ( —>
dinhei-
ro) e repartirão com seus amos a alegria da
sua terra pátria e quando recebe a promessa
de uma descendência a despeito de sua idade
salvação (Mt 25.21-23; At 10.2ss).
avançada persevera crente quando é intimado
;

Ademais, para descobrir o código da moral a imolar Isaque. Sabe pela fé que Deus não
familiar do NT, será muito proveitoso reler deixará de cumprir suas promessas confiada- ;

as numerosas parábolas que têm por protago- mente coloca nas mãos de Deus seu destino que
nista um pai de família (Mt 21.28ss; Lc 11.11 se identifica com o destino do povo de Deus.
15.12ss; etc.) ou um chefe da casa (Mt
13.27,52; 20.1; 24.43 par; Lc 13.25; 14.21. NT
etc). É pouco provável que a visão bíblica
da família dependa essencialmente das condi- 1. Definição da fé. O têrmo escolhido pelos
ções sociais do mundo antigo, porquanto é primeiros cristãos para designar-se a si mesmos,
intimamente ligada à doutrina da paternidade era "os crentes" (At 2.44, etc). As palavras
de Deus, e, logo, à consideração do corpo mís- "fé" e "crer" estão escritas em quase todas
tico de Cristo que tanta luz derrama sôbre a páginas do NT. Todavia, apenas uma só vez.
unidade indissolúvel entre Jesus e todos os encontramos uma definição formal da fé a fé, :

membros da Igreja. Mudadas as condições conforme Hb 11.1, "é a garantia (hiposta-


sociais, a Igreja terá que inventar, dentro de sis =
substância) dos bens que se esperam, e a
novos ambientes, um estilo de vida familiar prova das realidades que se não vêem", ou seja,
que permita a todo o essencial da mensagem pela fé o crente tem por certas as realidades
bíblica acêrea da família desabrochar-se sem que ainda não se vêem, quer porque elas estão
alteração. =
por vir (em cujo caso, fé esperança), ou por-
/. /. Von ALIMEN que escapam do conhecimento experimental em
virtude precisamente de sua própria natureza.
FÉ Quais são estas realidades? Os capítulos 11 e
12 de Hebreus especificam que a fé é, antes de
VT mais nada, fé em Deus ("é necessário que aquê-
A religião de Israel baseia-se na
celebrada por Deus com o seu povo no Monte
—>
aliança
le que se aproxima de Deus creia que êle existe
e que é remunerador dos que o buscam", 11.6),
que criou o mundo pela palavra de sua bôca
Sinai. A
aliança é o fundamento da fé israelita.
(11.3) e preparou, na antiga aliança, uma sal-
Crer é aceitar como certa a existência do Deus
vação agora realizada em Jesus Cristo. Jesus é
que falou a Moisés revelando-se como o criador
o "chefe de nossa fé e a leva à perfeição" (1.2).
do mundo e o chefe de Israel crer é reconhe-
;

cer a soberana autoridade da —> Lei dada por


êle e esperar confiadamente a realização das
Noutras palavras, Cristo, o centro dos dois
testamentos, é a cabeça de todos os crentes do

promessas
rentes à
(
— > Em
cumprir
aliança.

]> promessa) ine-
suma, para Israel, crer
passado e do futuro, de Israel e da Igreja:
"Cristo toma a carga de todos os fiéis, desde o
princípio de sua carreira até levá-los à meta
é aceitar a existência e a obra de Deus, no
final" (C. Spicq) Os crentes terão a salvação
.

passado, no presente e no futur é viver con-


,

exclusivamente mediante sua união de fé com


fiando neste Deus que dirige a História e go-
aquêle que é "o chefe da salvação" (Hb 2.10).
verna seu povo. Sem esta fé em Deus, não sub-
sistiria o povo de Israel (Is 7.9; 30.15). É
na fé que Israel vive os seus destinos.
2. O objeto
área judaica a fé
da fé: —>
em Deus
Jesus Cristo. Na
dá-se por pressu-
Paralelamente a esta expressão coletiva. a fé posta. Em' Jo 14.1, lemos: "Credes em Deus
encontra em Israel uma expressão individual na (coisa absolutamente natural para vos que sois
atitude segura e confiante dos justos; pois êstes israelitas!), crede também em mim". No en-
: ;

FÉ 113

tanto, os pagãos devem dar um primeiro passo obediência dos fiéis ao Cristo com o qual vivem
"crer em Deus vivo e verdadeiro" (lTs 1.9), em comunhão pessoal.
e, a seguir, "em seu Filho, a quem êle ressus- Em suma, crer, conforme ensina o NT, é
citou dos mortos, Jesus, que nos livra da ira admitir como verdadeiras as declarações de
vindoura" (lTs 1.10). O objeto próprio da fé, Jesus acerca de si mesmo, e o testemunho apos-
segundo o NT, é Jesus Cristo, revelador de tólico o qual, depois da morte e da ressurreição
Deus, por cujo meio Deus obra a salvação; de Jesus, proclama ser êle o Senhor e o Cristo.
Jesus Cristo que, incorporando-se aos crentes, A fé autêntica compromete o homem
cristã
une-os a Deus e os salva. inteiro,atando-o àquele que é doravante seu
Conforme o depoimento dos três primeiros Senhor e do qual recebe uma nova vida. Por-
evangelhos, crer consiste em aceitar como ver- tanto, em todo tempo e lugar, a fé comporta
dadeiro o Evangelho anunciado por Cristo e simultaneamente, uma confissão de bóa e uma
reconhecer em Jesus o Salvador messiânico, o vida renovada na obediência a Cristo, crido e
qual, assistido da divina onipotência, age tendo confessado.
em vista a salvação dos homens. A
fé é con-
fiança em Jesus Cristo e na veracidade de sua 3. Os efeitos da
fé. O
crente fiel responde:
mensagem, adesão de todo o ser à pessoa e à "sim, amém"
à mensagem pregada por Jesus
mensagem de Cristo porquanto elas têm vindo e seus apóstolos. Reconhece que Jesus veio
de Deus. Crer é admitir que a pregação e os para celebrar uma nova aliança e dar cumpri-
milagres de Jesus revelam nele o Libertador mento à redenção anunciada na primeira alian-
esperando (Mt 11.4-6), confessá-lo como o ça. Sabe que a História da salvação entrou na

Cristo (Mc 8.29). Crer em Jesus é crer no sua fase última com a vida, morte e ressurrei-
—> Evangelho (Mc 1.15). ção de Cristo e com a pregação apostólica, difu-
sora dêstes acontecimentos e sabe que no der- ;

João redigiu seu evangelho "para que creia- radeiro dia a segunda vinda de Cristo coroará
mos que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e esta maravilhosa História; no entanto, Cristo
para que, crendo, tenhamos vida em seu nome" está entre os seus, pelo Espírito Santo, congre-
(Jo 20.31) Crer é admitir que Jesus é o filho,
.
gando todos quantos lhe pertencem. Assim a
não de José de Nazaré (1.45; 6.42), mas o fé entrega-nos uma nova visão da História e
Filho enviado do Pai ao mundo, para dar vida do mundo.
ao mundo. O pensamento do quarto evangelho O crente, entrementes, participa pessoalmente
é essencialmente o mesmo, embora, João, me- da última fase da História redentora. Em vir-
lhor que os três sinóticos, saliente ser Jesus o tude de sua fé, acha-se incluído nesta grande
revelador saído do Pai (8.23) para manifestar- aventura convertida no seu próprio destino.
nos o Pai (1.18) o caminho único levando
;
São Paulo, em têrmos incomparáveis, celebra
ao Pai (14.6) a ressurreição e a vida ( 1 1 25 )
; . : a solidariedade entre o crente e Cristo : "aquele
o doador da vida eterna, o profeta da ressur- que crê em Cristo está morto com êle (2Co
reição no último dia (6.40, etc.) para os que com (Rm 6.4), vive com
7.3), sepultado êle
crêem nêle como seu único Salvador ( 6 68 ^ .
êle (Rm 6.8), para ser glorificado com êle
e perseveram unidos a êle (8.30.31, etc).
(Rm 8.17) e reinar com êle (ICo 4.8). A fé
Já no dia do Pentecoste, Pedro e os apóstolos
ensina ao crente que a obra de Cristo foi feita
pregam a fé em Jesus, o Cristo, o enviado de para salvar os pecadores logo, Cristo salvará
;

Deus, morto e ressuscitado (At .36; 10.40-42) ;

logo que crê, a pessoa deve ser batizada em


também a êle, um pecador. O crente portanto

nome de Jesus para receber o Espírito Santo sabe-se salvo, a condição de crer em Cristo e

(At 2.38), pois êste Jesus. Cristo e Senhor, é de perseverar unido a Cristo "na obediência
"o único nome" concedido aos homens, que os por fé" (Rm 1.5: literalmente "na obediência
possa salvar (At 4.12). da fé"). A fé confere vida e salvação.
São Paulo também define identicamente o
objeto da fé, como vemos no texto lapidário de
4. A incredulidade aparece em todo o co- NT
Romanos 10.9-10: "Se com os teus lábios con-
mo o mal supremo. Quem não crê, anula pra-
ticamente a obra de Cristo e permanece pessoal-
fessares a Jesus como Senhor, e em teu coração
mente em pecado, afastado de qualquer espe-
creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos,
rança de salvação. Eis porque os fiéis são exor-
serás salvo, porque a fé sincera leva à justiça
tados incessantemente a "permanecerem" na fé
e a confissão da bôca leva à salvação". Por-
eis porque a propagação da fé aparece como
tanto, segundo Paulo, crer é admitir ser Je-
o único dever da Igreja para com o mundo
sus o Senhor que reconciliou os pecadores, em
nome de Deus (2Co 5.19), e criou um novo (Mc 13.10; Jo 20.31; At 1.8; ICo 9.16.
etc).
meio de salvação. A
nova ordem clausura o
reino da Lei funda-se sobre a fé, realiza-se na
: PH.-H. MEXOUD
114 FESTAS

FESTAS As festas lunares, mensais, que coincidem es-


sencialmente com a lua cheia e com a lua nova,
VT tão importantes para a vida agrícola, remontam
Menos ainda que noutrosassuntos, é impos- quase seguramente da mesma época.
sível História, pois o mesmo
abstrair aqui da O
laço estreito entre certas festas e a_ vida
desenvolvimento das festividades ajuda a com- agrária dos camponeses palestinianos é claro
preender tudo o que as festas representaram indício de sua origem. A
festa dos pães sem
nas diferentes épocas para os israelitas, e expli- levedura, que se celebrava na primavera, na
ca as modalidades de sua celebração no início época da Páscoa, marcava o início das colheitas.
da era cristã. As festas, segundo consta, pas- Come-se a farinha nova; nada sobrado da co-
saram por uma grande evolução, não sendo, lheita anterior devia ser misturado a ela; daí

porém, sempre possível seguirmos pormenori- a exclusão da levedura na confecção do nôvo


zadamente as diversas fases desta marcha, mes- pão. Outras cerimónias vêm juntar-se às pri-

mo quando em conjunto estejam relacionadas meiras oblação dos primogénitos do rebanho


:

com flutuações de todo o desenvolvimento


as
para garantia da fertilidade dos campos e da
religioso de Israel. Ocorre com frequência que
fecundidade dos animais.
os documentos mais recentes são os que melhor Cinquenta dias depois, celebrava-se a festivi-
têm guardado as lembranças das primeiras eta- dade das Semanas (Pentecostes), que marcava
pas.Mas, nem por isso deixaremos de pontuar o fim da ceifa. No outono festejavam as co-
com muitos pontos de interrogação o intento lheitas; cada um instala~a-se em meio das
de historiar êste desenvolvimento, pois é grande vinhas, vergéis e pomares num abrigo de ramas
a inclinação de escutar amiúde a nossa lógica e folhagem (latim tabcrnaculum, tenda). Daí o

mais do que o conteúdo exato do texto. nome de festas dos Tabernáculos. Autores há
que, à luz dêste traço, opinam que os Taber-
1. Devemos, como é remontar à época
justo, náculos (na cidade estas tendas eram de tela),
nómade de para com-
Israel, anterior a Moisés, eram apenas a festa posteriormente instituída
preender certos elementos, uma vez que as para rememorar o uso primitivo. Mas, Jz 9.27,
festas pontuavam os grandes momentos da vida atesta que os próprios cananeus já celebravam
pastoril. Posteriormente a instalação em Canaã esta festa.
trouxe consigo grandes modificações os mo-
: As festas lunares também eram comuns. Mui-
mentos essenciais da vida agrária são diferentes tas vêzes os profetas mencionam a lua nova
dos da vida nómade, e, portanto, outras festas associada ao sábado, dando margem para per-
aparecerão. Mais tarde, ainda, as reformas deu- guntarmos se o sábado era já a festa semanal
teronômicas e sacerdotais introduzem grandes ou simplesmente a festa da lua cheia (Is 1,13;
modificações na própria concepção das festas Os 2.13). Os dias da lua cheia eram ocasiões
mais arcaicas. de festas domésticas ou tribais (ISm 20.18,29),
É provável que duas festividades anuais da- tinham pois mais relação com os pequenos san-
tem da época nómade Páscoa na primavera,
:
tuários do país; davam lugar a regozijos e até
Expiação no outono. Os traços arcaicos destas a licenças que os profetas severamente conde-
festas nos têm sido conservados pelos relatos nam e que o próprio Deuteronômio desacre-
sacerdotais. A Páscoa é caraterizada pelo sacri- dita. A
festa dos Pães sem levedura uniu-se
fício de um cordeiro no marco familiar, e pelo fàcilmente com a da Páscoa, enquanto que a
simbolismo do sangue (na noite do êxodo do festa da Expiação juntou-se com a dos Taber-
Egito, o sangue preservará os Israelitas do anjo náculos, pois celebravam-se na mesma estação,
exterminador). Somente no marco da vida na primavera e no outono, respectivamente. A
pastoril nómade, é que se tornam inteligíveis legislação antiga, da qual só temos poucos frag-
muitos ritos aparentemente de reconsagração mentos, nos dá uma pintura incompleta destas
dos rebanhos à divindade, a fim de conseguir a celebrações anuais. O fragmento "iavista" (Ex
renovação da aliança entre esta e o povo. Pos- 34.18-26) bem como o "elohista", dão escassa
teriormente, com a maior naturalidade, a ma- importância à Páscoa, mas descrevem prolixa-
tança dos primogénitos será concebida como mente a festa dos pães asmos. Embora os pro-
uma entrega à divindade da parte que lhe per- fetasmencionem frequentemente as festas da
tence por direito, petra que Deus continue as- lua e do sábadom nunca deixam delas
cheia
segurando a fecundidade dos rebanhos. festaA alguma descrição. Finalmente, existia outra fes-
das Expiações remonta quiçá da mesma época ta anual: a da entronização de lave, da qual
distante; seja o que fôr, o rito do bode devo- ignoramos quase tudo, pois encontramos ape-
tado a Azazel (Lev. 16.20-28), carregado ma- nas alusões a ela, muito tardias. Remontava,
terialmente dos pecados do povo, foge bastante quiçá, dos tempos dos primeiros Reis, corres-
do quadro mais espiritual da piedade sacerdotal. pondia, sem todavia ser idêntica às solenidades
Ignoramos, porém, quais foram os ritos primi- alhures (como a entronização de Marduk na Ba-
tivos desta festividade. bilónia) conhecidas.
:

FESTAS 115

2. A Reforma de Josias não pretendeu inovar, 16.27-30; 31.12-17) juntamente com a circun-
;

mas purificar animar as manifestações da


e cisão, a observância sabática será o distintivo
vida religiosa mediante a mensagem altamente dos Judeus dispersos no meio dos pagãos. Medc-
moralizadora da mensagem profética. Como em se a importância das festas pela sua duração
tôda reforma, os novos elementos foram impor- sete dias são atribuídos à Páscoa (e à festa dos
tantíssimos. Centralizando o culto em Jerusalém, asmos, que foi unida a ela), e sete dias à Festa
a reforma modificou a celebração das festas dos Tabernáculos, mas um só dia é reservado
tirando-lhes o caráter de orgias que tinham para a celebração das Semanas (Pentecostes).
com excessiva frequência quando eram cele- A Festa dos Tabernáculos comemora doravan-
bradas nos pequenos santuários locais. Os re- te o tempo feliz e abençoado do Israel antigo,
gozijos continuaram naturalmente, porém já to- nómade nos desertos não um determinado
;

talmente dissociados do culto e secularizados. evento, proeza ou façanha, mas uma vida, ou-
Também as festas separaram-se da vida coti- trora muito fiel e fervorosa que, por espaço
diana, pela impossibilidade de irem todos a de uma semana, torna a ser realidade. Pás- A
Jerusalém. O caráter agrário de muitas festas coa conserva ou restaura antigos traços silen-
atenuou-se cada vez mais na elegante capital. ciados nos documentos "iavistas, elohistas ou
Aliás, já Deuteronômio 16.1-8, integrou à gran- deuteronômicos" e que aparentemente sempre
de festa da Páscoa os seus eWnentos caracte- persistiram na celebração da festa (Lev 23.
rísticos. 1-14, e o relato da saída do Egito, Ex 12). As
As grandes festas, celebradas doravante em outras festas denotam uma unificação do ritual,
Jerusalém, receberam naturalmente um renovo à base de holocaustos, —>
sacrifícios pelo
pecado, descanso sabático e confluência de tódas
de esplendor e importância. Paulatinamente es-
quecido o seu caráter agrário, predominou o as aldeias da Judéia para o santuário de Je-
aspecto de comemoração dos grandes eventos rusalém. As ofertas não mais eram oblações
religiosos de Israel. Provàvelemnte a esta épo- espontâneas, mas imposições fixadas pela Lei
ca de grandes sistematizações, começaram a se e tornadas um dever para a comunidade, e um

fixar as festividades, já não mais segundo o ato benéfico para todo o povo presente, ou
ritmo das estações, mas segundo um calendário ausente.

oficial. Antes do Deuteronômio várias destas


3. A evolução posterior no seio do judaísmo
festas tinham-se tornado verdadeiras festas na-
continua no espírito do código sacerdotal. As-
cionais foi, porém, o Deuteronômio que lhe
;
sim, para o sábado, as regras prescritas e sua
conferiu êste caráter próprio de comemoração interpretação tendem a maior severidade dia
do passado religioso de Israel, acusando mais
após dia. O caráter de comemoração, dado às
um traço já presente desde os princípios. ex- A grandes festividades, estende-se progressivamen-
cessiva alegria camponesa veio a ser substi-
te a tôdas demais. Assim, depois da destruição
tuída pela grave majestade, própria da cele-
do templo, o Pentencostes vem a ser a come-
bração de um heróico aniversário.
moração da dádiva da Lei no Sinai. As festas
Verossimilmente nesta mesma época, em e todo o conjunto do calendário eram regulados
virtude de uma evolução, para nós bastante des- segundo a lua, cujas fases e alternâncias estu-
conhecida, o sábado passou a ser uma festa se- davam-se em Jerusalém com a suficiente ante-
manal já não mais mensal, expressão do caráter cipação para noticiar oportunamente aos Ju-
muito humanitário próprio do Deuteronômio, deus da Diáspora : podia suceder em deter-
pois o sábado concedia um descanso benéfico minados casos que, pelo atraso das comunica-
depois do trabalho (Ex 23.12; Dt 16.9 ss), ções, determinadas festas fossem celebradas
cada semana. duas vêzes, com um intervalo de um mês, de
Na mesma linha reformatória procedeu-se à maneira que a data calculada por Jerusalém
renovação sacerdotal a reforma sacerdotal, obra
; fôsse observada pelo menos na Capital. Assim
mestra do Deuteronômio, não deixa de afastar-se mesmo, quando havia um mês ou
intercalado,
amiúde da vida real, em virtude precisamente seja, a repetição do último mês, a festa de Pu-
de ter sido planejada, na sua maior parte, du- rim, afeita a êste. era celebrada duas vêzes em
rante o exílio. As festas permanecem sem modi- tôda parte.
ficação, embora fixadas em dias e meses exa- Comemorava-se a destruição do templo com
tos. (Lev 23.5 ss; Nm
28.16). Aparecem uns dois de jejum. O caráter comemorativo-
dias
poucos elementos novos a festa da lua nova,
: históricodas festas israelitas aparece nitida-
descuidada pelo legislador, recebe nôvo vigor mente na atitude do povo, nos anos das lutas
(Nm 28.11.15), indicando isso que, no fundo promovidas pelos Macabeus em prol da inde-
ela nunca deixara de ser popular em extensos pendência religiosa e política da Judéia. As
círculos. O sábado semanal não mais é mera grandes libertações conseguidas pelas armas
cessação de trabalho vem a ser total inativi-
: comemoram-se com festas especiais, destinadas
dade, com caracteres de serviço ascético (Ex a conservar a memória dos eventos assim apa-
:
;
: . ;

116 FESTAS

rece o dia de Nicanor (lMc 4.48), vitória de Gl 4.10-11). Noutras palavras, em virtude da
Judas sobre Nicanor, o sírio a dedicação do
; vinda, da morte e da ressurreição de Cristo, as
templo (Mc 5.59), reconquistado, purificado, festas da antiga lei estão agora realizadas por- ;

devolvido ao culto conforme os ritos ances- tanto, observá-las" significa recair na antiga
trais. A queda de Akra, cidadela síria de Jeru- aliança, como se Cristo não tivesse vindo" (O.
salém, depois de vinte anos de combates, é Cullmann)
comemorada com uma celebração anual, em-
bora efêmeramente, pois, em tempos do his- 1 Até sua ressurreição, Jesus
. e os discípulos
toriador Flávio Josefo, não mais é observada. guardam normalmente as festas de culto e dias
Para a festa de Purim não temos indicação dos Judeus (Mt 26.18 ss par; Lc 2.41-42:
certa sobre suas origens, mas aparentemente 4.16; 23.54-55). O quarto Evangelho insiste
ela aparece no Livro de Ester, que a relata muito no fato de Jesus cuidar em comparecer às
com um caráter assaz profano. festas judaicas: sobe a Jerusalém para a Páscoa

Em todas as religiões vizinhas de Israel, as (2.13 ss 12.12 ss; 11.26), para outra festa
;

festas acabaram perdendo parte de seu caráter (Purim? 5.1), para os Tabernáculos (7.2 ss) e
naturalista e agrário, para revestir e atualizar para a dedicação (10.22). Por esta tenacidade
os grandes mitos religiosos locais. Em
Israel, em estar presente, Jesus manifesta de certa ma-
pelo contrário, os mitos propriamente ditos têm neira que êle é a "realidade" destas festas, e
sido repudiados quase totalmente, para dar lu- que tem vindo para cumpri-las como tem vindo
gar, nas festas, aos acontecimentos anteriores, para cumprir tôda a justiça e tôda a Lei (Mt
anualmente rememorados. Alas, não são êstes 5.17). Nesta perspectiva, convém estabelecer
sucessos, lembrados apenas como façanhas glo- o paralelo entre êstes relatos e o comporta-
riosas, mas como memória de tal ou qual proe- mento de Jesus no que diz respeito ao
za divina, a favor do povo, e, sobretudo como —> templo de Jerusalém.
lembrança da ação, sempre presente e sempre
a) Os relatos que nos mostram Jesus fren-
pronta de Deus, que outrora salvou milagrosa-
mente seu povo da escravidão do Egito, levan-
te ao sábado são bem significativos. O sétimo

do-o para Canaã, e que hoje ainda pode e quer dia da semana é o dia predileto para a obra de
salvá-lo de tôdas opressões reais ou possíveis. Jesus: além de pregar nas sinagogas (Mc
Êste aspecto histórico-religioso integrará as fes- 6.2ss par; Mt 4.23 par; 9.35; Lc 4.15; Jo
tividades instauradas pelos Macabeus, imediata- 6.59ss; 18.20), Jesus opera de preferência seus
mente após os acontecimentos. Não são as fa- milagres aos sábados (Mt 12.9-14 par; Mc
çanhas de Judas o objeto da celebração, como 1.21ss par; Lc 13.10ss; 14. lss ; Jo 5.1ss);
acontece com o nosso Tiradentes, no 21 de êste é o dia por excelência para Jesus traba-
abril, mas a obra direta de Deus pela mão de lhar, a exemplo do Pai (Jo 5.17), para mani-
Judas,cada ano lembrada para os Israelitas.
festar a irrupção, neste mundo que passa, do
É um sentimento claramente salientado na obra
do segundo Isaías, embora sem conexão com
mundo que vem. Jesus realiza a promessa
as celebrações festivas. Para Isaías, a libertação do —> descanso e da presença de Deus, sim-
do Egito permanece como a máxima garantia bolizada no sábado : faz dêle "seu" dia, o dia
da libertação, ainda mais maravilhosa que em reservado para sua obra, o dia do qual êle é
breve Deus concederá a seu povo exilado o "senhor" (Mt 12.1-8 par). Mas a liberdade
mais frequentemente ainda, como a garantia de que toma Jesus com respeito ao sábado não
tôdas as libertações que Deus concederá aos deve ser interpretada como a manifestação de
seus filhos. Os cristãos assumirão muitos ele- antiformalismo em princípio é o sinal da mes- :

mentos das festas judaicas, substituindo as re- sianidade. Para salvar os homens (Lc 13 15ss .

cordações da História dos Judeus pelas lem- 14.5, etc), é que Jesus reina, especialmente
branças ainda frescas da vida de Jesus, ou seja, sobre o sétimo dia, não tendo, portanto, o sá-
vistas as coisas na perspectiva justa, os cristãos bado sua razão de ser em si mesmo, mas em
continuam celebrando as festividades de Israel Jesus, o Messias. Por êste motivo, quem vio-
no mesmo espírito. lasse o sábado, não por causa da vinda de
G. NAGEL Cristo, seria "maldito e transgressor da Lei"
(como declara uma tradição textualmente re-
FESTAS ferida por Lucas 6.5), mas, quem sabe que
Jesus é o Messias e obra pela presença de
NT reino de Deus, êsse é dispensado das leis sabá-
O apóstolo São Paulo escreve aos cristãos ticas (Mt 12. lss par): não é mais sujeito a

"Ninguém vos julgue por causa do dia de festa, elas. Achará para o seu culto um outro dia,
ou da lua nova, ou do sábado tudo isso é ape- tão legitimamente como abandonará o Templo

:

nas sombra das coisas que haviam de vir, po- e a > circuncisão : pois êle pertence ao
rém a realidade está em Cristo" Cl 2.16-17; nôvo —> Israel.
.

FESTAS 117

b) Mas
Jesus não apenas realiza o sábado: nhor, como na noite da Páscoa (Mc 16.14;
cie cumpre
e celebra igualmente a Páscoa ju- Lc 24.30ss, 41ss), o próprio Jesus preside a
daica, que nada mais era do que a sombra da mesa dos fiéis (At 10.41).
paixão do Cristo, "nossa Páscoa" (ICo 5.7) ;
Além de ser a comemoração da Ressurrei-
este é o motivo porque os evangelistas tão ção (biblicamente, comemorar implica muito
fortemente sublinham a relação entre esta fes- mais do que lembrar mentalmente!), o primeiro
tividade judaica e a morte de Jesus (Mt 26.2 dia da semana baseia outro princípio essencial
par; Jo 11.55ss; 12.1-8; 13.1); motivo por da teologia do domingo e do culto por ante-
:

que, também para salientar ainda mais esta cipação é realizada, cada domingo, a esperança
relação, o quarto Evangelho não fixa a morte cristã do advento glorioso de Cristo, do "dia
de Jesus no momento indicado pelos sinóticos.
do Senhor" (Ap 1.10), ou seja, daquele último
Ademais, os quatro Evangelhos declaram dia anunciado pelos profetas (Is 2.12; 13.9;
explicitamente a significativa relação entre a
Jl 2.31, etc.) dia da esperança e de espanto,
:

imolação do cordeiro pascal e a instituição da


dia das bodas do Cordeiro e da condenação dos
santa ceia (
par Jo 6.4)
—>
Eucaristia) — Mt 26.17ss maus, dia em que beberá Jesus o nôvo vinho
;
(Mt 26.29), em que será excluído aquele que
2. Depois de constituída, a Igreja de Cristo não tiver a —> veste nupcial (Mt 22.11ss).
necessitou de certo tempo para compreender Quem recordar o quanto a esperança do ban-
todo o alcance do cumprimento, em Jesus, das quete messiânico importa para a noção bíblica
festas e ritos da antiga lei:consta que alguns
da eucaristia compreenderá até que ponto êste
judeus-cristãos desejavam que a Igreja guar- sacramento estava no centro, não apenas da
dasse o conjunto dos usos judaicos (Cl 2.16: teologia, mas da realidade do culto dos primei-
Gl 4.10) e que muitos cristãos-gentios, mor- ros cristãos (At 20.7, etc), fazendo do pri-
mente São Paulo, recusando semelhante jugo, meiro dia da semana um dies dominicus, um
esforçaram-se por aplicar a doutrina do nôvo domingo.
Israel já confessada unanimemente pela Igreja, Como um memorial da Ressurreição e ante-
e também manifesta unanimemente por ela, me- cipação da Segunda Vinda, o Domingo é o
diante a substituição do sábado pelo domingo. dia, excelente entre todos, para realizar a obra
Na verdade, sendo o sábado o dia da reunião da salvação, enquanto marcha a humanidade
dos judeus nas sinagogas, êste dia permaneceu entreambos os acontecimentos celebrar o do-
:

o mais indicado, tanto em Jerusalém, como em


mingo cristãmente significa, pois, para o cris-
toda parte, para a evangelização dos judeus
tão, receber a graça do mistério redentor de
(At 9.20; 14.42-44;
13.5; 14.1; 16.13;
Deus. Tudo o que acabamos de dizer com res-
17.1,10,17; 18.4,19,26; 19.8). Neste sentido é
possível afirmar que os primeiros missionários peito à eucaristia, deve ser dito também da

continuavam guardando o sábado, bem como pregação que acompanhava ou preparava a


subindo ao Templo (At 3.1; 5.20,25, etc). Santa Ceia (At 20.7ss, etc), pois a pregação,
porém, conscientes de uma nova realidade sob o mesmo título que a eucaristia inscreve-se
(
—> Igreja) .

Esta nova realidade explica que, embora se


na obra escatológica de Jesus (At 2.24ss, etc.)
lembra a Ressurreição e, congregando os elei-
:

reunissem diàriamente, nos exórdios, os primei- tos (Lc 5.10; Mt 9.37ss) antecipa a volta do
ros cristãos celebraram seu culto não mais no Senhor (Mt 24.31). Afirmaremos, portanto,
sétimo, mas no primeiro dia da semana (At muito legitimamente, que o domingo é consti-
20.7; ICo 16.2), em breve chamado "dia do- tutivo da Igreja, e, corolário lógico, os que se
minical, dia do Senhor, domingo" (At 1.10). crêem autorizados a celebrar o sábado em vez
Êste dia foi escolhido, porque Jesus ressuscitou do domingo, negam em princípio a passagem

—> >
(Mt 28.1 par; Jo 20.1) e apareceu aos discí- da antiga para a nova aliança, e, portanto,
pulos no primeiro dia da semana. Fazendo a messianidade de Jesus.
de cada dia da semana, a festa da ressurreição surpreender que o NT não
Não deixa de
de Cristo, os primeiros cristãos assentavam um transfere nunca sobre o domingo as leis que
dos princípios básicos de uma teologia do do- definem o descanso sabático. Atos 20.7 relata
mingo e do culto: o domingo é o dia da pre- que a Igreja congrega-se de noite, certamente
sença do Ressuscitado no meio dos "seus", o depois de um dia de trabalho, de trabalho duro
momento em que a data principal da História para o jovem que adormeceu, implicando isso
da Salvação é re-presente, atualizada, o mo- que não é forçosamente deixando de trabalhar
mento em que o Senhor, respondendo ao cha- que devemos santificar o dia do Senhor. A
mamento da Igreja (Maranatha, vem Senhor! Igreja, aliás, esperou três séculos
para tornar
— ICo 16.22; Ap 22.20), vem unir-se a ela. o domingo feriado. É, o culto
portanto,
O ponto culminante deste encontro e desta com seus elementos normais que santifica o dia
união está na —
^> eucaristia: na ceia do Se- do Senhor,
118 GEENA

3. Cada domingo é de certo modo uma festa perguntar se não vem contrariar o ensino
de Páscoa ;
porém, não há sérios indícios de neo-testamentário o fato de nós introduzirmos
que as festividades pascais tivessem sido con- as festas na vida da Igreja. Lembremos que
vertidas, já nos tempos apostólicos, no centro- Paulo não protesta contra a introdução de fes-
cíclico primeiro e essencial do ano litúrgico. tividades cristãs, mas contra a conservação das
Apenas notaremos que, iniciadas as controvér- festas judias. Decorre, pois, a regra seguinte:
sias sobre a data da Páscoa, alegar-se-iam é legítimo celebrar festas na Igreja, sempre
tradições apostólicas. Textos como Cl 2.16; que denotem que, com Jesus, vieram o reino
Gl 4.10-11; Rm 14.5 sugerem que certos cris- de Deus e a salvação messiânica; tornam-se
tãos desejavam transferir para a vida cristã, ilegítimas quando deixam de rememorar a obra
outras festividades judaicas. A
unanimidade salvadora de Jesus (entende-se Pentecoste
veio a ser completa com respeito ao Pcntecoste. como obra de Jesus enviando o Espírito Jo —
Os judeus contemporâneos celebravam-no em 15.26) ou
de anunciar sua vinda gloriosa.
memória da Lei dada no Sinai para constituição Noutros têrmos, as festas cristãs devem ser
do povo de Deus os cristãos vão celebrar agora
; primeira e primordialmente cristológicas elas ;

a constituição do nôvo Israel, mediante a efu- se tornam parasitárias tôda vez que se afas-
são do Espírito Santo (At 2) Paulo anuncia
. tam da pessoa e obra de Cristo, a fé e alegria
literalmente "Ficarei em Éfeso até o Pen-
: da Igreja: regra tão importante que, num
tecoste" (ICo 16.8), significando isso que Pen- futuro próximo, terão de ser definidas as inten-
tecoste era conhecido fora dos círculos judeus: ções e os limites de celebrações que, direta ou
pois tanto os coríntios, como os efésios, eram indiretamente, pretendessem apoiar-se sobre
pagãos convertidos. Com mais razão podemos textos como Hb 11 ou Mt 26.13.
opinar que o Pentecoste cristão era celebrado Notemos principalmente que a utilidade das
em Jerusalém, "porquanto Paulo se apressava festas cristãs reside no fato de que elas sa-
com o intuito de passar o Pentecoste em Jeru- lientam a verdade essencial do cristianismo:
salém caso lhe fósse possível" (At 20.16) ;
que a salvação não é uma idéia, mas uma His-
êste texto autoriza várias suposições Pente-:
tória que tem seu centro e sentido na pessoa
coste lembrava aos fiéis o famoso dia em que e obra de Jesus Cristo.
"homens piedosos, vindos de todas as nações
debaixo do céu" (At 2.5), "ouviram falar, em
/./. VON ALLMEN
suas próprias línguas, das grandezas de Deus"
(At 2.11). Na idéia de Paulo, Pentecoste GEENA
era, além de comemoração da vinda do Espí-
rito Santo, a afirmação da unidade e da uni- 1. Geena (gehenna), transcrição do hebreu
versalidade da Igreja: ora, era precisamente "gehinnom = vale dos filhos de Hinnom" (Js
para manifestar esta unidade da Igreja uni- 15.8; 2Rs 23.10), era uma profunda depressão
versal que o Apóstolo subia a Jerusalém le- situada ao sul de Jerusalém. Celebravam-se aí
vando as coletas reunidas em suas Igrejas os cultos de Moloc, a quem os reis Acabe e Ma-
(ICo 16.1-4; 2Co 8.9; Rm
15.25-28). nasses sacrificavam seus filhos (2Cr 28.3; 33.6).
Josias, o rei reformador, converteu o vale em
4. Enquanto a memória da morte e ressur- lugar impuro (2Rs 23.10) onde se queimava
reição de Jesus, e da efusão do Espírito Santo, o lixo e atiravam-se os cadáveres (Jr 31.40;
achou sua expressão normal na celebração de Is 66.24). Os profetas lançaram condenações
festas regulares já na época apostólica, o ani- contra êste vale e, em suas pregações, a geena
versário do nascimento de Jesus não era obje- tornou-se o lugar do castigo vindouro (Jr
to de qualquer celebração. Orígenes dirá mais 7.31-32; 19.6; Is 31.9). Para o Apocalipse
tarde que a Bíblia desconfia dos aniversários judeu de Enoc, a geena é o lugar onde Deus
natalícios, mencionando apenas os de Faraó castigará os maus, sob o olhar dos justos reu-
(Gn 40.20) e de Herodes (Mt 14.6). Por nidos no monte de Sião (Ver Lc 16.23-26).
outro lado, contràriamente à Páscoa e ao Pen- No NT "geena" significa o castigo eterno já
tecoste,a data do nascimento de Jesus é indi- não localizado no vale de Hinnom.
cada apenas aproximadamente foi na época
:

em que Quirino governava a Síria (Lc 2.2). 2. Geena possui muitos sinónimos e equivalen-

Serão necessários muitos séculos para que a tes : o fogo eterno (Mt o fogo
18.8-9; 25.41) ;

Igreja reconheça, quase unânimemente, o 25 de inextinguível (Mt 3.12; Mc 9.44ss)


o fogo ;

dezembro como data-memorial do nascimento e o verme (Mc 9.48; comparar Is 66.24); a

de Jesus (O. CULLMANN —


Noel dans fornalha acesa (Mt 13.42) o lago de fogo
;

VÉglise ancienne, Neuchâtel et Paris, 1949). e enxofre (Ap 14.10; 19.20; 20.10. Lem-
bre-se o castigo de Sodoma e Gomora Gn :

5. Considerando o texto de Colossenses, ci- 19.24; SI 11.6; Ez 38.22) os tormentos (Ap


;

tado no início dêste artigo (Cl 2.16), cabe 14.10-11; Lc 16.23,28); o abismo (Ap 20.3;
GERAÇÃO 119

ver Mt 25.41) o castigo eterno (Mt 25.46)


; ; mas também aos discípulos que não perseveram
as trevas exteriores (Mt 8.12; 22.13; 25.30). no testemunho de bôca e de obras devido a
Como pode ser a geena fogo e trevas? fogo O Jesus Cristo 10.28; Mc 8.38; Lc 12. 4s;
(Mt
significava para Israel a presença de Deus (Ex 8-9). Osdevem romper com qualquer
crentes
10.18; 40.38; Dt 4.12; 5.4) e a santidade forma de pecado (ICo 5.9-10; Gl 5.19-21;
que não tolera o mal. Deus destrói pelo fogo Fp 3.18-19; ljo 3.14-15; Ap 21.8; 22.15);
tudo que não lhe aprouver (Dt 32.22; 2Sm nenhum sacrifício é demasiadamente grande pa-
22.9; Jr 5.14; 15.14; Hb 12.29). A geena ra sua consecução (Mc 9.43-49), em vista da
carece de poder em si, porém, Deus castiga severidade do julgamento de Deus diante do
mediante seu fogo. As trevas exteriores são o pecado (Mt 5.22). Os "filhos da geena" são
oposto da —>luz, figura da salvação e da vida
eterna (Jo 8.12; Ap 21.23) fora do banquete
;
os escribas e fariseus hipócritas
seus sequazes (Mt 23.15) são os filhos do ;
bem como os

do reino celestial, há, portanto, exclusivamente diabo mentiroso e homicida (Jo 8.44), em vir-
trevas (Mt 22.13). tude a atitude que assumiram diante de Cristo.
São João não da geena, mas da per-
fala São Tiago adverte contra o poder infernal
dição (3.16); da — > cólera
de Deus que da língua (3.6).
permanece (3.36), da —>
morte (6.50; 8.21;
11.25; ljo 3.14s), do juízo entendido como
Em
e a perdição,
NT fala sobre a geena
resumo, quando o
no sentido de destinar alguns
não é
condenação final (5.24,29), das trevas (12.46), homens a uma sina inevitável, porém no de
do ser cortado (15.2) e lançado fora (15.6), advertir e exortar à procura da salvação e da
afastado de Cristo quando da sua vinda (ljo vida eterna na fé em Jesus Cristo.
2.28).
São Paulo também não usa a palavra geena; F. BAUDRAZ
mas fala da ira (Rm
2.5; 5.9), da irritação e
da cólera, da tribulação e angústia (Rm 2.8s),
da perdição (Rm 9.22; Fp 3.19), da corrupção
GERAÇÃO
(Gl 6.8) e da rejeição (ICo 9.27).

a
As
— antíteses da
y> vida eterna, e
geena são a
— > cidade
—> salvação,
celestial.
— >Ato
1 . de
Família.
gerar, prosápia, descendência

2. Visto que indica usualmente a duração de


3. Deve-se distinguir entre geena e "morada uma vida humana, "geração" serve para mar-
dos mortos" ou "infernos" (Hades) (Ver car o tempo; os tempos passados (At 14.16;
— 2> Mundo NT), porquanto vão para a mo-
rada dos mortos, ou hades, todas as almas de-
15.21) o tempo do castigo de Deus que atinge
;

até a quarta geração (Ex 20.5; Dt 5.9); o


pois da morte, na espera da ressurreição no en- ;
tempo da misericórdia, infinitamente maior que a
tanto, a geena recebe os perversos depois do ira (Ex 20.6 =
Dt 5.10; lCr 16.15; SI 105.8).
juízo último, para castigo dêles a geena é a :
"De geração em geração", ou também "de ida-
"segunda morte" (Ap 20.6,14). de em idade" significa para sempre, perpètua-
mente, referindo-se à fidelidade, ao reino ou ao
4. Contrariamente aos apocalipses do judaís-
amor de Deus (Ex 3.15; SI 33.11; 90.1; Dn
mo, o NT não se compraz na descrição das pe-
4.3; Lc 1.50).
nas da geena. Não veio Cristo para instaurar
um juízo final imediato, nem para dar uma 3. Geração significa, noutros contextos, os ho-
sentença definitiva, mas para oferecer a própria mens de uma determinada época (Ex 1.6; Nm
vida em resgate a fim de arrancar os homens 32.13; Ec 1.4; Dt 2.14; Jó 18.20; SI 22.31;
da perdição (Mc 10.45; Jo 3.16; 6.23). Rm 48.14; 78.4; Lc 1.48) os contemporâneos (Is
;

Quem crer nêle, passa da morte para a vida, 53.8; Lc 16.8).


da perdição para o reino de Deus (Jo 5.24; Neste sentido, "geração" é o objeto das con-
Cl 1.12-14). denações severas que lançam os profetas contra
Todavia pode ter a vinda de Jesus efeitos seus contemporâneos e contra o conjunto do
negativos: aqueles que não crerem e rejeitarem povo de Israel geração perversa e falsa (Dt
:

suas palavras, condenam-se a si mesmos (Jo 32.5,20), geração de malignos (Is 1.4), gera-
12.47-48). Todo homem é colocado por Jesus ção da adúltera e da prostituta que ama a outros
Cristo numa alternativa de vida ou de morte, deuses (Is 57.3; Jr 2.20; 3.1-5) traindo a
determinando pessoalmente com respeito à sua lavé; geração da falsidade (Is 57.4).
eterna sorte. Os homens, entregues a si mes- Jesus, por sua vez, aplica aos seus contem-
mos, vão direto ao inferno exclusivamente a
;
porâneos os julgamentos dos profetas geração :

intervenção de Deus, a obra de Cristo aceita maligna e adúltera (Mt 12.39 Is 57.3; Tg =
pela fé, é que pode mudar-lhes o destino. 4.4) adúltera e pecaminosa (Mc 8.38), in-
;

A geena ameaça a todos quantos a priori crédula (Mc 9.19), incrédula e perversa (Mt
se afastam de Cristo (Mt 23; Jo 8.44-47), 17.17; Lç 9.41). Os escribas e fariseus mere-
120 GLÓRIA

cem ouvir da bôca de João Batista e de Jesus, santificação de si mesmo (ou "do seu nome"
o qualificativo de "raça de víboras" (Mt 3.7;
12.34; 23.33); êles porém não são os únicos
— > Nome — >com
Isaías salientam
Santo)
Ezequiel e o Deute-
.

predileção o teocentrismo
julgados, pois Jesus não faz exceção individual das intervenções de Deus (Ez 20.9; 20.14;
e considera o povo na sua totalidade. Os homens 36.21-23; etc. Is 42.8; 48.9-11; SI 79.9, etc).
de outras gerações não eram melhores (Mt Conforme uma concepção arcaica, a glória de
23.29-37), mas a geração contemporânea de Iavé associa-se a fenómenos naturais, como à
Jesus, visto que matou a Jesus, sobressai, ex- tempestade, trovoada, erupção vulcânica. Iavé,
tremando o pecado e merecendo castigos mais de certa maneira Deus da tormenta, espalha
terríveis (Mt 23.36). espanto entre os homens e os animais, lançando
Os
crentes são retirados de sua geração per- seus raios e falando pela voz do trovão. Faz
versa e corrompida, apegada à sua rigida reli- fulgurar as chamas, seus clarões iluminam o
giosa e à sua corrupção moral (At 2.40; Fp mundo e a terra treme a seu passo. O Sinai,
2.15) para formar um nôvo — > povo (IPe onde Moisés está conversando com Deus, apa-
2.9; Tt 2.14). Esta separação é o dom de Jesus rece circundado da glória de Iavé como de um
Cristo e a sua exigência. fogo devorador (SI 29.3; 97.3-4; Ex 24.15-18;
19.16, etc).
4. Mencionemos aqui um problema particular:
o problema da diferença numérica nas genea-
A
glória de Deus aparece pois, antes de mais
nada, (e êste traço não se perderá), como uma
logias de Jesus: Mt 1.17 e Lc 3.23-38. Ambas
realidade simultâneamente luminosa e terrível
as narrativas obedecem a objetivos diferentes
profundamente misteriosa e inatingível, tão po-
e os nomes mencionados coincidem apenas em
derosa e rápida, intervindo na terra como raio
dezessete casos possuem em comum certo es-
;
fulminante.
quematismo Mateus refere seis vezes sete gera-
:

ções, Lucas onze vêzes sete. Cifras aparente- 2. Ulteriormente, a glória de Iavé evocará
mente relativas a determinados cálculos sobre para Israel a majestade do Ser supremo infi-
a vinda do Messias assim, conforme Enoc, o
:
nitamente superior ao homem. Iavé é "o-abso-
Messias havia de vir depois de nove semanas lutamente-Outro" que ninguém pode livremente
de gerações conforme o quarto Esdras, depois
;
abordar e cujo poder, dinamismo e essência
de onze. Cada genealogia, a seu modo. dá tes- escapam de qualquer compreensão. Tal é o seu
temunho da messianidade de Jesus. brilho que não pode ser contemplado de frente,
As genealogias visadas em lTm 1.4 e Tt e tal a magnificência de Iavé que o próprio
3.9 não são as de Jesus, mas dos patriarcas do Moisés somente a verá de costas, às avessas, ou
VT que os rabinos utilizavam e interpretavam pelo reflexo (Ex 33.17-23). Entre a grandeza
ocasionando discussões sem fim contra as quais de Deus e a fragilidade do homem, (ou, na
Paulo nos precave. expressão mais ética de Isaías "entre a santi-
F. BAUDRAZ dade de Iavé e a impureza da criatura"), há
uma distância tão incomensurável, que treme
qualquer criatura posta repentinamente em pre-
GLÓRIA sença do Altíssimo (Is 6.1-7).
VT
3. O VT oferece-nos ainda outra concepção,
Acorrespondente palavra hebraica implica a cara aos sacerdotes conforme esta, a glória de
;

idéia de peso ou gravidade conservada na ex- Iavé, deixando de pairar nas alturas celestes,
pressão paulina "um eterno pêso de glória" desce e mora entre nós. Na sua condescendên-
(2Co 4.17). O têrmo grego clássico "doxe", cia, Iavé descansa e faz^descansar sua glória no
significa apenas a opinião e, extensivamente, a
meio de Israel. Faz do Tabernáculo o lugar
fama. As coisas que pesam, que possuem pêso, privilegiado de sua morada "A nuvem cobriu
:

são tidas entre os semitas por importantes e


a tenda da congregação e a glória do Senhor
valiosas. Na língua profana, glória é sinónimo
apareceu no tabernáculo" (Ex 16.10; 29.43:
de riqueza, de fazenda (Gn 31.1; Is 10.3), de 40.34s; Lv 9.6,23s; Nm
14.16, etc).
êxito e poder (Gn 45.13; lRs 3.13), e ainda
Iavé confia sua glória a Israel, sem deixar
de honra, de esplendor e grandeza.
de velar sobre ela com uma nuvem vedando sua
1. A
noção de glória alcançou grande rele- presença aos olhos profanadores e sacrílegos, e
vância na teologia do VT, em particular tratan- guardando-se perfeitamente livre entre os seus
do-se da "glória de Iavé". Tôda a História co-moradores . Pois a glória de Iavé perten-
Bíblica tende a manifestar a glória de Iavé, a ce-lhe sempre em propriedade, mesmo quando
qual constitui, em última análise, o conteúdo ela habita entre nós.
íntimo da revelação. Com efeito, Iavé age para Depois da Arca (Ver ISm 4.21s; SI 24.7-10)
sua própria glória e, quer crie, castigue ou
salve, seu motivo profundo é a glorificação, a
o — > Templode Jerusalém edificado por Sa-
lomão tornou-se o lugar por excelência esco-
: : : :

GLÓRIA 121

lhido por Deus para descanso de sua glória NT


(lRs 8.10s). "Eu amo a morada de tua casa
e o lugar onde habita tua glória" (SI 26.8). A
palavra "glória" é de uso corrente, em-
O reflexo da glória de Deus foi visto por Eze- bora revestida de três sentidos diferentes con-
quiel no desterro, em meio dum estrépito fra- forme os contextos
goroso, com esplendorosa luminosidade e torve- a) Um sentido dinâmico, herdado do VT
linhos formas extraordinárias (Ez 1). O
de (tradições iavistas, profetas, em particular
profeta, porém, não esquece que Sião é a mo-
Isaías, etc) presença ativa e luminosa de Deus
:

rada normal da glória de Deus (Ez 8.4; 9.3). e do Senhor. Mencionemos três aspectos ativos
A tragédia eclode precisamente quando a gló- da divina glória que influenciaram o pensamen-
ria do Deus de Israel, orgulho de Jerusalém,
to dos evangelistas e dos apóstolos; 1.° Deus. —
abandona a cidade saturada de crimes e sacri- mediante sua glória, acompanha e socorre o
légios. Ezequiel presencia, horrorizado, a par-
crente e o povo fiel. bem como castiga os ini-
tida dos querubins que sobre suas asas estendi-
migos de seu povo e também o povo infiel
das arrebatam a glória de Deus (Ez 10). No 2.° —Deus, mediante ela, conduz à terra pro-
entanto pressente o profeta que esta partida
desoladora será seguida de um dia solene, pro-
metida 3.° ;

Deus, mediante ela, se revela.
Êste sentido dinâmico encontra-se nos evan-
fetiza o retorno da glória divina a uma Jeru-
gelhos sinóticos, porém, especialmente nas epís-
salém purificada, ouve à distância aproximar-se
tolas de Paulo, para expressar "a vida de Cristo
já o cortejo grandioso (Ez 43.1-7; 44.1-4).
ressuscitado". No evangelho de João, a glória
Nesta partida e neste retorno da glória de
de Deus acompanha todo o drama redentor,
Deus evoca-se todo o drama do povo esco-
lhido.
apontando principalmente para seu resultado.
b) Um
conteúdo visual, reservando-se à luz
4. Assim como a Teologia sacerdotal gosta um papel principal. Ezequiel deu à divina gló-
de unir a glória de Deus a determinados luga- ria esse manto de luz e de esplendor maravi-
res, os hinos e profecias gostam de associá-la a lhoso que vemos em quase todo o NT, quer asso-
determinados momentos. A liturgia celebra o ciado com o dinamismo do § a), quer isolada-
passado de Israel cheio dos portentos de Iavé mente.
a favor de Israel. A glória divina resplandece
na criação, brilha nos dias do Êxodo com a c) Um
sentido muito atenuado no uso litúr-
derrota do tirano. Os videntes não se cansam de gico (Salmos, cânticos e fórmulas litúrgicas).
anunciar o triunfo universal da glória de Deus O judaísmo ideou paulatinamente determinadas
fórmulas doxológicas nelas, dois, três ou qua-
do oriente ao ocidente temer-se-á o nome do ;

Senhor tro têrmos entram em combinação com a pala-


e reverenciar-se-á a sua glória (Is 59.
19). Noite e dia os céus narram a glória de vra "glória", numa espécie de paralelismo sino-
Deus e as nações serão associadas a este con- nímico. Dêste uso conserva o NT vários exem-
certo de louvores (SI 8; 19; 24; 104; etc). plos (Fp 1.11; IPe 1.7; Ap 4.9,11; 5.12s:
7.12, etc).
Tóda a terra está cheia da glória do Senhor,
repetem os serafins lá nos céus. Esta verdade,
2. Que papel desempenha a "glória de Deus"
patente para os moradores celestiais, é para nós,
mero objeto de esperança enquanto não ressoar no NT ? Ocupa ela maior lugar no pensamento

a hora em que tóda carne verá a glória de Iavé de Paulo, cuja esquematização pode ser for-
(Is 6.3; 40.5; 60.1-5). mulada como segue: 1.° Originalmente o —
Conclui o VT sobre a visão misteriosa de um homem sujeito a Deus percebia a glória de Deus
ser "como um Filho de homem a quem o An- (Rm 1.21-23); 2.° — Caído e submetido ao
cião de dias dá o domínio, a glória e o reino" pecado, torna-se-lhe estranha e temível a divina
(Dn 7.14s). O
povo escolhido acompanha Eze- glória (Rm 3.23; 2Ts 1.9) 3.° Depois de ;

quiel em sua meditação sôbre o inquietante des- Cristo vencer a morte e ressuscitar, o homem
tino desta glória de Deus que, convertida em é arrancado ao poder exclusivo do pecado, em-
uma "shekina" (=hispótase: pessoa encarnada), bora continue ainda sujeito a morrer; contem-
vai a caminho do destêrro no meio dos judeus pla a glória no semblante de Cristo (2Co 3.18:
exilados. No entanto, o NT
anuncia para todos 4.6). 4.° —
Mas quando se acabar a redenção
os cumprimento e a concretização das realida- com a segunda vinda de Cristo, o homem não
des que a antiga aliança apenas esboçava e figu- mais poderá morrer nem pecar verá então ;

rava: "A palavra se fêz carne e habitou entre não apenas a glória de Deus, mas o próprio
nós, cheia de graça e de verdade, e vimos a sua corpo glorificado, pois tornar-se-á um ser glo-
glória, glória que recebe do Pai na qualidade rioso em um corpo de glória (ICo 15.43; 2Co
de Filho unigénito" (Jo 1.14). 3.18; Fp 3.21), dócil ao poder ativo e lumi-
noso do Senhor. Cumpre aqui sublinhar três
R. MARTIN-ACHARD aspectos importantes dêste pensamento
;: ;

122 GLÓRIA

a) O crente vive, de fato, num mundo onde ção, portadora da glória.Se Cristo não tivesse
continua obrando o pecado. A presença de Cris- ressuscitado,ninguém jamais teria presenciado
to constitui portanto uma fonte de esperança a glória de Deus ou compreendido sequer o que
e uma causa de sofrimento (Rm 8.17-30) se : é a glória. Pela ressurreição, a vida de Cristo
bem que a glória de Cristo ressurreto nos li- "foi em um "corpo glo-
glória", Cristo obteve
berta, torna-nos por contraste mais sensíveis rioso" e tornou-se um "ser glorioso". Por sua
à atividade do pecado no mundo. Os sofrimentos vez os crentes, pela comunhão atual com Cristo,
consecutivos tomam contudo um significado bem são introduzidos a contemplar a glória porém, ;

claro dão-nos a certeza de pertencermos a


: quando finalmente conseguirem "estar com Cris-
Cristo e nos fortificam na esperança da glória to", então serão feitos inteiramente sêres glo-
(2Co 4.17; Cl 1.27-28). riosos à imagem de Cristo.

b) O
papel da glória, na conduta cristã, é 3. O
quarto evangelho mostra-nos a glória co-
de importância.
capital O
crente e a Igreja mo um atributo do Filho, a) Antes da criação,
estão rodeados de dificuldades de todo género a glória lhe pertence (17.5). b) Descendo à
(divisões doutrinais, ICo 3.1-9, litígios, ICo terra, o Filho manifesta a glória, e, vice-versa,
6.1-9, sensualidade, ICo 6.12-20, espírito crítico. a glória manifesta o Filho (1.14) salientando
Rm 14 e 15; ICo 8.1-13, etc). Em
face delas sua condição de enviado do Pai (11.4), apare-
deve ser Deus glorificado, porquanto a glori- cendo quando Jesus obra prodígios (11.4; 2.11
ficação convém mais onde há mais pecado. 11.40), quando em Caná muda a água em vinho
Quando um cristão comete um ato que compro- ou, em Betânia, ressuscita a Lázaro.
mete a vida espiritual do próximo, crente ou O evangelista afirma, pois, que Jesus foi glo-
não, êle é requerido pela glória de Deus a não rificado através de seu ministério terrestre, que
justificar os motivos de seu comportamento o Pai foi glorificado através de Jesus Efeti- :

por muito bons que possam parecer pois glo- ; vamente foi durante este ministério que foi re-
rificar a Deus obriga a fazer tôdas as coisas velado Jesus como o enviado do Pai (13.31.32).
para a glória de Deus (ICo 10.31 ; Rm
15.6-7). A mesma ambiguidade dos sinais, reconhecidos
Eis porque a glorificação de Deus (1.°) nos como tais apenas pelos crentes, acompanha esta
leva a não mais considerar os próprios motivos manifestação da glória de Deus, unicamente
de obrar, embora fossem excelentes em princí- perceptível aos crentes (11.40). Os sinais são
pio, mas a discernir as consequências de nossos reconhecidos somente pelos crentes, a glória é
atos e gestos sôbre a relação entre o Senhor vista somente por êles! Êste traço é fielmente
e os irmãos nossos; (2.°) torna-se o motivo conforme a certas tradições do a mesmaVT :

das ações dos crentes as quais, aliás, afinal de glória de Deus que socorre o crente, cega e
contas, emanam do Senhor glorificado. castiga o incrédulo. Neste aspecto o quarto
Podemos portanto formular a seguinte proposi- evangelho conserva claramente o caráter semí-
ção assim como a glorificação do Cristo criou
: tico, até na expressão.
uma nova união entre Deus e os homens, a c) Frequentemente o quarto evangelho es-
glória de Deus cria sem cessar a mútua união
creve: "Jesus foi glorificado" para afirmar que
entre os homens (Rm 15.6: "...vos dá o mes-
A "foi morto e ressuscitado". A
glorificação de-
mo sentir, concordementc, a uma voz, etc). signa pois todo o conjunto do drama redentor,
glória de Deus vence tudo que se opuser a ela
cujo resultado final, ou seja a glória, recebe
Não somente constata a existência das dificulda-
particular relêvo por meio desta expressão a :

des e as consequências desastrosas do pecado,


glorificação de Jesus torna-se manifesta por
mas triunfa delas e acabará por eliminá-las.
sua vitória sôbre os inimigos de Deus repre-
c) A glória a aliança de Deus
manifesta sentados pela morte, e resplandece no seu triun-
(2Co 3 e 4.1-6). Na aliança dada a Moisés, o fo de ressuscitado. Além disso, todo o desígnio
homem refletia apenas esporàdicamente a glória. salutar de Deus revela-se nesta glorificação
No entanto, o homem da nova aliança contem- (7.39; 12.16,23,28; 17.5).
pla-a permanentemente no semblante de Cristo
d) Pelos seus conhecidos os
frutos serão
agora a glória de Deus cria. motiva e garante
discípulos ; êsses mesmos
a seu modo,
frutos,
o laço que une Deus e os homens entre si.
glorificarão o Pai (15.&; 14.12-14). Até mes-
Em suma, como a própria ressurreição de mo a morte dos discípulos se tornará signifi-
Cristo, a glória de Deus ocupa o centro do pen-
cativa (21.19).
samento de Paulo Deus é o pai da glória, que
:

destina todos os crentes a compartilhar a gló- e) O Espírito não fica ausente desta obra
ria. Desta maneira, ressurreição e glória apa- de glorificação, porquanto sua missão (como a
recem quase totalmente identificadas. Quem pen- missão da própria glória) é guiar para a ver-
sa na ressurreição (seja de Cristo ou nossa) dade, anunciar o futuro e revelar o Filho o :

evoca necessàriamente a glória consecutiva e ; Espírito desta maneira glorifica o Filho (16.
quem evoca a glória pensa também na ressurrei- 13-15).
:

GRAÇA 123

4. Exceto nos escritos de Paulo e no quarto NT


evangelho, a "glória' nem sempre se inscreve
1 Visto que significa o próprio Deus aproxi-
.

num esquema de pensamento constante e origi- mando-se do homem para o favorecer, a pala-
nal. Numrosos textos expressam aspectos se-
vra vetero-testamentária "graça" é bem apro-
cundários e derivados: 1.° —
aparições lumi-
priada para designar o evento principal do NT
nosas revelando a proximidade de Deus e sua
a vinda de Deus em Jesus Cristo. Median-
intervenção direta ou mediante um anjo (Lc
te o Cristo, Deus pessoalmente desce à terra
2.9; 9.31; Ap 18.1). 2.° —
Glória fama. Ce- = doravante a graça fica ligada tão iintimamente
lebridade dos lugares onde Deus reina templo :

(Ap 15.8) nova Jerusalém (Ap 21.10). 3.°


;
— a Jesus Cristo que poderemos afirmar indife-
rentemente que Jesus é a graça de Deus, ou que
Característica da era messiânica ou da esfera
a graça de Deus está em Jesus Cristo, ou tam-
celeste (Mc 8.38; 13.26; 10.37; Mt 25.31-46).
bém que Cristo dá a graça.
Resumamos. Salvo nalgumas fórmulas litúr-
Graça e verdade são consequências da encar-
gicas, a "glória" significa a presença operante nação (Jo 1.14-17): todo o amor de Deus.
e luminosa de Deus, manifesta nas mais diver- doador e perdoador, tôda a revelação e conhe-
sas formas. Sensível já agora no mundo pre- cimento de Deus concentram-se em Jesus Cristo
sente, tornar-se-á visível no mundo vindouro.
para ser comunicados aos homens e tirar a
Mediante a glória, todo o ser nosso será trans- humanidade das trevas. Em Jesus Cristo temos
formado. uma inesgotável capacidade de dar, sem outra
M. CARREZ medida a não ser a plenitude de Deus. A graça
e a verdade, objetos da revelação da antiga
GRAÇA aliança, acham-se totalmente reveladas e plena-
mente dadas em Jesus Cristo. Com a presença
VT de Jesus, o VT e todo o judaísmo apagam-se
1 . A graça não é uma realidade em si, mas dando lugar a outra religião, já não imperfeita
significa essencialmente o próprio Deus benevo- e suscetível de ser substituída por outra melhor,

lente para com os homens. A graça de Deus


mas verdadeira e definitiva: a religião do dom
e da comunicação plenos e decisivos de Deus na
não é separada de Deus, mas é o próprio Deus
pessoa do Unigénito. É esta a verdadeira "gra-
relacionando-se com o homem e relacionando o
ça" (IPe 5.12: a genuína graça de Deus).
homem consigo ; é o próprio Deus olhando para
nós com amor e indulgência (SI 31.17; 33.22;
42.9; 90.17; Nm
6.24-26; 2Sm 7.15).
Esta relação deve-se à iniciativa divina Deus
— >A
2. graça significa, portanto, todo o
Evangelho, "a boa nova da graça de Deus"
(At 20.24), "a palavra de sua graça" (At
:

ama Israel gratuitamente, sem qualquer mere- 13.43; 14.3; 2Co 6.1; Cl 1.6). O Evangelho,
cimento do povo (Dt 4.37; 10.15; Os 3.1; contudo, não se tornou um objeto nas mãos do
11.1). A —>
eleição de Israel descansa sôbre
a graça de Deus (Dt 7.7s; 9.5s).
homem a graça fica em poder do Senhor,
:

sendo êle quem difunde e torna fecundo o


Evangelho (ICo 15.10; 2Tm 2.1); os pró-
2. Para os pecadores a graça de Deus con- prios missionários necessitam que a Igreja os
siste no —>perdão dos pecados (Ex 34.6-7; encomende à graça do Senhor (At 14.26;
SI 32.1-5; 51; 103.8; 130.4). Deus pode renun- 15.40; 20.32).
ciar, se tal fôr o seu agrado, ao exercício do jus-
As saudações, cumprimentos e bênçãos das
to reconciliando consigo os pecadores
castigo,
epístolas devem compreender-se em relação ao
pela livre decisão de sua graça (Os 11.9-10; Is dom de Jesus Cristo. A
saudação "Misericórdia
43.25; 44.22; 48.8-11; Mq
7.14,20). Outorgar e paz" existia entre os judeus. "Graça" toma
graça significa portanto perdoar (Ex 33.19; Pv um sentido mais extenso, implorando a totali-
3.34;; Is 30.18). Deus fundará mediante sua dade da ação salvadora e protetora de Deus
graça uma nova aliança, baseada no perdão dos
pecados (Jr 31.31-34; Ez 34.25; 36.26-27).
sôbre a Igreja. A —>
paz é o efeito da ação
salvadora, da salvação na sua realidade pre-
Também são graças todos os favores concedi- sente e futura. As saudações típicas que enca-
dos por Deus, porquanto são imerecidas mercês beçam as epístolas lembram que a ação de Deus
de seu amor (Gn 32.10; Is 63.7). Qualquer e os dons do Espírito Santo comunicam-se por
dádiva e qualquer libertação particular merece Jesus Cristo: esta é a grande novidade desco-
pois o nome de "graça" (Ed 9.8). Pedir graça nhecida pelo —>
judaísmo. Assim também,
é sinónimo de suplicar (Gn 42.21; Et 4.8). na conclusão das epístolas, a bênção de Arão
Em certos textos, porém, "graça" significa o (Nm 6.24-26) é substituída por diversas fór-
atrativo, o encanto da beleza que passa (Pv mulas atribuindo a Jesus, ou dêle esperando a
31.30). Achar graça, encontrar graça significa divina graça (Ler em particular Cl 4.18; lTm
agradar a Deus ou aos homens mediante a con- 6.21 a "graça" evidentemente é aquela que
:

fiança ou a submissão (Pv 2.4). Jesus dá).


124 GRAÇA

3. Quando a graça de Deus em Jesus Cristo Assim como a vocação inicial (ICo 15.9),

——> >
visita os pecadores, faz-se perdão dos peca- tôda a atividade ulterior é obra da graça não
dos, —> justificação, redenção (Cl 2.13;
Rm 6.1). Para conseguir-nos êstes benefícios é
é o homem ativo junto à graça, mas é a graça
ativa no homem e pelo homem (ICo 15.10;
;

que Jesus ofereceu sua vida (2Co 8.9; lTm 2Tm 2.1; At 18.27). Deus é quem opera atra-
1.14). A graça, assim entendida, figura freqúen- vés de seus servos (ICo 4.7), e tôda sua obra
tamente em oposição à circuncisão e à fidelidade é graça (At 11,23).
à LEI (At 15.11), às obras da Lei (Rm 11.6;
Gl 2.21; Ef 2.5,8; Tt 3.7). Paulo dá o máximo
relêvo ao caráter gratuito, "gracioso", imere-
5. Os dons do —> Espírito Santo são dons
da graça, "carismas" são graça de Deus, ou
:

cido, da justificação (Rm 3.24; Ef 2.5-8). A seja, o próprio Deus obrando por Jesus Cristo
fé, condição para nossa justificação, não res- na Igreja e comunicando-lhe tôdas as funções
tringe nem contra diz antes, bem confirma esta
;
e serviços necessários a sua vida (Rm 12.6-8;
gratuidade esta é a graça outorgada por Deus",
: ICo 12.1,7; lTm 4.14; 2Tm 1.6; IPe 4.10;
"de nos justificar pela fé" (Rm 5.2). O pró- Ef 4.7-13). Os carismas diferem em impor-
prio da fé é simplesmente receber (Rm 4.16). tância (ICo 12.28; Ef 4.11), sendo o amor o
sem ser ela jamais um merecimento, pelo con- dom supremo reservado para cada fiel (ICo
trário também ela é um dom de Deus, uma 12.31 e 13). A palavra "carisma" (=graça,
graça (Fp 1.29). A justificação graciosa me- favor) salienta bem o caráter gracioso do dom
diante a fé, é um
extraordinário dom de Deus recebido em Deus é que radica a capacidade
:

que ninguém poderia pretender ou merecer. Não (2Co 3.5-6).


há pois absolutamente nenhuma possibilidade
para o homem gloriar-se (Rm 3.27; 5.11; ICo 6. Dar graças significa agradecer. Jesus dá
1.31; Ef 2.9), mas exclusivamente a obrigação graças, à maneira judaica, antes de comer (Lc
de dar glória a Deus pela gratuidade da sal- 24.30) dá graças antes de multiplicar os pães
;

vação. (Mt 14.19; 15.36), antes de ressuscitar a Lá-


zaro (Jo 11.41), no ato de instituir a santa
Se nós não podemos nos salvar pelas obras —> ceia (Mt 26.26; ICo 11.23-24), a qual não tar-
ou pelo próprio esforço, deve-se isso a Jesus
dará em receber o expressivo nome de "euca-
Cristo que, única e exclusivamente, venceu o
ristia" =ação de graças.
pecado e a morte que subjugavam todos os
Paulo dá graças por si mesmo (At 28.15; Fp
homens (Rm 5.12-21). Inaugura Jesus Cristo
1.3), pela obra de Deus nos crentes, pela difu-
uma nova era quem crer nele terá parte no
:

são do Evangelho (Rm 1.8; lTs 2.13; Ef


mundo nôvo, onde a morte está vencida pela 1.16; 2Co 2.14), pela vitória de Cristo sôbre
vida e o pecado pela justiça. Há doravante a morte e o pecado (Rm 7.25; ICo 15.57).
um reino de graça que sucede ao reino do pe- O cristão intenta "devolver as graças recebi-
cado (Rm 5.21), que era o reino da Lei (Rm das" (SI 103.1-2), reconhecendo os benefícios
6.14). Portanto, não mais voltem os crentes vindos de Deus. Não deve ser ingrato mas dar
às obras da Lei (Gl 2.21), às abstinências ali- graças (Lc 17.16-19; Ef 5.20; Fp 4.6; lTs
mentares (Hb 13.9), nem aos pecados de ou- 5.18). É justo que demos graças àquele que
trora (Hb 12.15), pois assim fazendo separar- nos deu tôdas as coisas (Ap 4.9; 7.12).
-se-iam do Cristo, recaindo do reino da graça
ao do pecado (Rm 6.12-14; Gl 5.4). Estar 7. O têrmo graça recebe várias outras cono-
submetido ao reino da graça significa viver "na tações mais ou menos relacionadas ao sentido
obediência da fé" no intuito da santidade (Rm primeiro de mercê divina gratuita: o) favor
6.15-22). de Deus reconhecido pelos homens (At 4.33;
"O tempo da graça", da oportunidade, é o 6.8; ler também Lc 2.52 à luz de 2.40; com-
tempo da salvação (2Co 6.2 citando Is 49.8) .
parar v 2.4; At 2.47; o favor divino atrai-nos
o tempo presente porém ainda não é o tempo da o favor dos homens), b) Achar graça diante de
salvação inteiramente acabada Jesus Cristo, o ;
Deus (Lc 1.30; Hb 4.16) significa ser objeto
depositário da plenitude da graça, (IPe 1.13). de uma decisão favorável de parte de Deus. c) O
levará a cabo no último dia a obra iniciada. auxílio de Deus, no sofrimento e na fraqueza
humana (2Co 12.9) no ministério (2Co 1.12).
;

4. "Graça" às vezes ministério, ati-


significa d) Libertação, ou favor especial a Isabel (Lc
:

vidade ao serviço de Deus, em particular minis- 1.25), a Maria (Lc 1.28); vida eterna (IPe
tério apostólico ("a graça que me foi dada". 3.7) o sofrimento em vista de um bem (IPe
;

Rm 12.3; ICo 3.10; Gl 2.9; Ef 3.2 e 7-8): 2.20) ou por causa de Jesus Cristo (Fp 1.29:
designa também os diversos ofícios confiados Mt 5.11-12). e) Qualquer benefício, material
aos crentes (Rm 12.6; Fp 1.7). Todo serviço ou espiritual (2Co 9.8; Ef 4.29), pois Deus de
é dom de Deus, concedido até a indignos (Lc tôda graça (Tg 1.17; IPe 5.10). /) A ressur-
5.8-10). reição de Cristo (At 13.34). g) A coleta a
; ;

GUERRA 125

favor da igreja de Jerusalém ICo 16.3; 2Co


( rante sua conquista, ou durante as expedições
8.6-7) é obra da graça de Deus o qual inspira reais para a libertaçãodo território e a inde-
a liberalidade dos crentes. pendência nacional. Quando, porém, Iavé cas-
seu povo mediante uma guerra, não será
F. BAUDRAZ tiga
lícito a Israel defender-se com as armas, pois
isso se oporia à realização da salvação que
GUERRA Deus intenta para seus filhos (Jr 21.1-10;
comparar com 27.6).
VT
2. A guerra É sempre unanime-
fratricida.
Embora ao tempo de guerra suceda sempre mente que combate pela causa do Senhor.
Israel
o tempo de paz (Ec 3.8), a paz não tem ja- Xa era dos juízes, mesmo quando lutam deter-
mais longa duração o autor sagrado conta
; minadas tribos, ajuntadas com apenas uma f ra-
que "houve ainda outra guerra, e logo depois ção da família eleita, elas atacam estrangeiro^.
ainda outra" (lCr 20.5). Na realidade, o povo Cananeus, Medianitas ou Filisteus. Mas. en-
de Deus fêz a guerra tão bem e tão amiúde trando uma tribo ou f ração de Israel contra
como qualquer nação circundante o : VT
está outra tribo, deixa de ser guerra santa, torna-se
cheio de relatos guerreiros. Estudaremos três guerra fratricida, estigmatizada pelos profetas .

espécies de guerra a guerra santa, a guerra


: "Ninguém poupa a seu irmão, cada um come a
fratricida e a guerra escatológica. Acerca da carne do seu próximo Manassés a Efraim, e
:

primeira possuímos incontestàvelmente maiores Efraim a Manassés. e ambos a Judá" (Is 9.


e melhores documentos. 19-20; IRs 12.21-24).

1. A guerra santa. O sexto mandamento não 3. A guerra escatológica. O fim dos tempos
há de presenciar a vitória de Iavé sôbre as na-
condena de modo nenhum a guerra santa (Ex
ções coligadas contra êle e contra o seu Mes-
20.13; Dt 5.17; Jr 7.9), pois significa que do sias (SI 110.5-7; Jl 3; SI 2.1-2). Aspecto par-
ato de matar deve ser excluída a premeditação ticular da guerra que salientarão em breve os
aliás, quem considerar os textos nos quais figura
livros apócrifos e pseudo-epigráficos.
o verbo, ver-se-á obrigado a traduzir :"Não
assassinarás". Ademais, mesmo que o verbo 4. As armas. As armas de guera, literalmente
fósse ambíguo, o conjunto de depoimentos bíbli- os "objetos de combate" (Jz 18.11; Jr 21.4).

cos relativos à guerra santa resultaria determi-


são variadas, tanto na sua forna como no ma-
nante. O povo escolhido para realizar o desígnio
terial de que são feitas : silex, bronze, ferro. Há
de Iavé num mundo armado e pelejador, vê-se armas defensivas e ofensivas. Defensivas : o pe-

na precisão de tomar as armas, e por sua vez, queno escudo ou rodela, c o grande escudo
combater. Seu chefe é Iavé, pois Iavé é guer- oblongo, feitos de madeira coberta de couro
reiro muito valente (Ex 15.3; SI 24.8), pre- (Jr 46.3); os escudos de ouro (IRs 10.16)
sente em meio dos seus na arca santa (Nm 10. usavam-se apenas nas cerimónias aparatosas
35-36; ISm 4.3-8) combate em lugar dos sol-
;
o capacete, pouco usado em tempos de Saui

dados e através dêles (Ex 14.25; Js 10.14, 42; (ISm 17.38), e tornado comum a partir de
ISm 25.28; Ne 4.14), merece o nome de Iavé Uzias (2Cr 26.14); a couraça, apanágio dos
dos Exércitos (ISm 17.45). Portanto, os comba- chefes (ISm 17.5,38; IRs 22.34). As ofen-
tentes são os santificados de Iavé (Is 13.3) o;
sivas eram: a funda, (ISm 17.40) comprida,
acampamento é um lugar santo (Dt 23.14). pesada, capaz de transpassar dois homens de
Quer ofensivas, quer defensivas, as guerras de uma vez (Nm 25.7-8) o punhal ou espadim
;

Israel são as próprias guerras de Iavé (ISm (Jz 3.21), difíceis de distinguir, pois existe no
18.17; 25.28). A
lembrança das lutas passa- original só uma palavra para ambos os casos
das conservou-se num livro que não chegou até a lança pequena e fácil de manejo (ISm 18.10) ;

nós, intitulado "Os livros das batalhas de Iavé"


:
o arco e as flechas (2Rs 9.24) sendo às vêzes,
(Nm 21.14). as flechas habilitadas para levar matérias in-
candescentes e incendiar as instalações inimigas
Se o povo instrumento dos divinos de-
eleito,
(setas inflamadas de SI 7.13.14); as tochas,
sígnios, cai em
pecado, o próprio Iavé avança
para igual fim; a maça (Pv 25.18; Jr 51.20),
na frente dos exércitos inimigos para castigar
menos frequente.
os seus (Is 5.26-30; Jr 5.15; Am
5.27; 6.14).
Oscarros de guerra, puxados por cavalos e
embora mais tarde êle extermine a força ini-
montados por três homens, só aparecem na épo-
miga (Is 10.5-19; 14.24-27; Jr 51.59-64).
ca de Salomão (2Cr 9.25). As máquinas de
Haverá guerra santa tóda vez que o povo assedio, tipo catapulta, de que fala 2Cr 26 AS,
eleito obedeça seu Deus para realizar os planos são tanto defensivas como ofensivas.
divinos da salvação quer após a saída do Egito,
:

durante a longa caminhada no deserto, quer no 5. Os guerreiros. Diante da variedade de ar-


momento da entrada no país da promessa e du- mas e das suas diversas possibilidades de pene-
: ;

126 GUERRA

tração e manejo, veremos as funções guerreiras comumente, o combate era, como nós o enten-
especializarem-se parte, armada de lança com-
: demos, arremetida de surpresa, ou batalha or-
prida e de escudo oblongo (2Cr 26.14), for- ganizada. Combateu-se durante muito tempo, de
mará unidades de choque, relativamente rápi- pé, preferentemente em lugares montanhosos
das e muito resistentes, ulteriormente apoiadas (ISm 14.4, 13-14; lRs 20.23). A
ocasião de
por carros parte formará batalhões de arquei-
;
defrontar-se com inimigos montados deu ori-
ros com seus arcos, rodelas e punhais (lCr gem à cavalaria, não obstante as advertências
5.18), unidades de tiro, às quais se incorpo- da Lei e dos profetas contra o uso do cavalo
ram os fundibilários. Verossimilmente, a par- (Dt 17.16; Is 30.16; SI 20.8; 33.17-18). Os
tir de certa época, a couraça passou a ser usada arqueiros formaram-se em corpos de cavalaria
também por unidades especializadas (2Cr 26. foram introduzidos também os carros de com-
14). bate, aperfeiçoando-se a estratégia até culminar
Cada chefe tinha seu escudeiro que levava nos triunfos dos Macabeus (disso dão teste-
suas armas, protegia-o durante a batalha, e, no munho umas páginas encontradas entre os ma-
caso de derrota, matava-o (ISm 31.4) para nuscritos de Qumram, no Mar Morto, e desig-
que não sobrevivesse à vergonha do desbarato. nadas como "Guerra dos filhos da Luz contra
(lRs 9.22). os filhos das trevas".

6. O exército. São mobilizados todos os ho- A estação propícia para as expedições mi-
mens acima de vinte anos (Nm 1.3, 2Cr 25.5). litares era a primavera (2Sm 11.1). Anuncia-
va-se a guerra a toque de trombetas (Jz 3.27;
No deserto, falava-se de exércitos de mil ho-
mens por tribo (Nm 31). Josué aumenta os
2Sm 2.1; Jr 42.14). Revestindo o combate um
caráter sagrado, nunca é iniciado sem prévio
efetivos até quarenta mil (Js 4.13). Mais tarde
sacrifício a Iavé (ISm 7.9; 13.9-12) ou voto
o número de guerreiros vem a ser impressio-
nante (lCr 27.1-5; 2Cr 14.8; 17.14-18). Quan- (Jz 11) daí a expressão: "consagrar um com-
;

do Iavé quer declarar a necessidade de confiar bate" para "livrar a batalha" (Jr 6.4; Jl 3.9;
menos no poderio militar e mais no auxílio di- Mq 3.5: nossa versão não conserva mais êste
matiz do hebraico). Enquanto durava a guerra
vino, ordena que se faça uma seleção : Gedeão
reduz assim seu exército de trinta e dois mil o soldado permanecia em estado de santidade
para apenas trezentos soldados (Jz 7). ritual motivo pelo qual Urias, de volta a Je-
:

rusalém, não aceita tocar sua mulher e dorme


No deserto o exército era recrutado mediante
fora de casa (2Sm 11.11-13). No fervor da
um levantamento feito em cada tribo (Nm 31).
luta, invocavam a Iavé aos gritos, para forçá-lo
Lemos com interêsse os casos de isenção do
a intervir (lCr 5.20) amiúde, tôda a tática
serviço militar previstos pela Lei (Dt 20.1-9).
;

cobrava valor exclusivamente em virtude da


As incessantes guerras dos reis contra as na-
intervenção divina assim nos dias de Débora,
:

ções vizinhas obrigarão a remodelar o exército


Iavé, provocando a cheia das torrentes, fêz com
o rei Davi, por exemplo, forma uma guarda
que os carros inimigos enlameados entregassem
de escol para o serviço imediato do rei (2Sm
seus ocupantes aos combatentes de Israel (Jz
10.7; lCr 19.8), um corpo de mercenários
permanente, sempre pronto para responder ata-
5.20-21). A
tática clássica consistia em rodear
o inimigo por trás (2Sm 5.22-25) ou atravessá-
ques imprevistos (2Sm 8.18) e, finalmente,
lo entre tenazes desta maneira foi colhido Joa-
tropas mobilizáveis em caso de guerra por sim-
;

ples convocação apregoada por tambor (2Sm


ge entre os Arameus e os Amonitas (2Sm
10.9-14).
20.4,23).
O
exército era dividido em regimentos de
8. Um aspecto do combate, o assedio das ci-
mil, batalhões de cem e companhias de cin-
dades fortalecidas. As cidades cananéias, estra-
quenta soldados, comandados respectivamente tègicamente interessantes, foram rodeadas de
por capitães de milhares, de centenas e cin- muralhas espessas e elevadas, não raras vezes
quentenas (Nm 31.14,48; lCr 26.26; 2Cr 25.5; geminadas. A batalha ficava indecisa enquanto
2Rs O mando supremo pertencia, no de-
1.9).
resistiam núcleos armados era portanto neces-
;

serto, Moisés ou a algum sacerdote (Nm


a
sário reduzir as cidades fortes mediante o asse-
31.6); na época real, a um oficial superior
dio. Os hebreus, antes de proteger-se a si pró-
quase tão poderoso como o rei (2Rs 4.13).
prios elevando muralhas de circunvalação, tivp-
Durante o reinado de Davi, houve um chefe das
ram de apoderar-se de fortalezas cananéias
tropas permanentes e outro das reservas (2Sm
reputadas invencíveis, como Jebus-Herusalém
8.16-18). Porém, o chefe verdadeiro era em
(2Sm 5.6-7) podiam estas resistir muitos me-
;
qualquer hipótese o próprio Deus, e seu lugar-
ses graças aos silos bem providos, aos subter-
tenente o rei (Ex 7.4).
râneos adutores de fontes e inatingíveis aos
7. O
combate. Consiste, não raras vezes, na inimigos (2Cr 32.2-4), e finalmente à cida-
simples invasão dos nómades cobiçosos de saque dela, reduto íntimo da resistência (Jz 9.51}.
sem efusão de sangue (Gn 34.27-29). Mas. A cidade assediada acaba vencida como conse-
:

GUERRA 127

qúência duma intervenção milagrosa de Deus Nos últimos dias acontecerá...


(Jericó: Js 6), dum estratagema (Ai: Js 8), Converterão as suas espadas em relhas.
duma traição (Jz 1.24) ou dum ataque clás- E suas lanças em podadeiras.
sico (2Sm 12.26-29), isto é, depois de aberta Uma nação não levantará espada contra
uma brecha nas muralhas, queimada a porta [outra nação,
ou levantando um
aterro alto como o muro para
Nem apreenderão mais a guerra". (Is 2.
o assalto (2Sm
10.15). Se a cidade se entre-
2-4; ver SI 46.10. Os 2.18; Is 9.4; Zc 9.10).
gava sem combater, seus habitantes não sofriam
o tributo e a corvéia (Dt 20.10-11) mas quan- ;
Esta era nova que os videntes entreviam desde
do resistiam, os sitiadores destruíam as colhei- o mais profundo das provações bélicas, é a era
tas, ceifando apenas o necessário para manu-
do Messias.
tenção das tropas (ISm 23.1), porém, raras H. MICHAUD
vêzes, eram cortadas árvores frutais (Dt 20.
19-20, comparar com 2Rs 3.25).
NT
Terminada a batalha, dava-se sepultura aos 1 Parao NT, unicamente Jesus Cristo é 3
.

mortos (lRs 11.5); o saque e despojos de- nossa paz (Ef 2.14); o é porém num
clarados anátema ou devotados ao Senhor, iam mundo que não o recebeu (Jo 1.11). Êste
para o tesouro de Iavé (Js 6.18-19,21,24), ou mundo, na realidade, afasou-se de Deus. Nada
eram repartidos entre os guerreiros (Nm 31. se estranha, portanto, se nele há guerras e
25-30; Js 22.8; Jz 5.30). Saía-se ao encontro rumores de guerras (Mt 24.6 par).
dos vencedores com instrumentos musicais, adu- A existência quase normal de guerra no mun-
fes, tambores, dançando e cantando poemas (Jz do pecador acarreta, para a observação neo-
11.34; ISm 18.6-7). Certos salmos vieram a testamentária, duas consequências imediatas
ser cantados precisamente por ocasião destas
vitórias (p.ex. SI 68; 76). Ritos purificató-
Não se discute a necessidade de exérci-
a)
tos, de guarnições, de forças policiais; salien-
rios permitiam sair do estado de guerra santa e
ta-se sem sombra de paixão a maneira como os
reingressar na vida civil (Nm 31.24).
soldados cumprem seu dever (At 5.26; Mt
9. A guerra e a linguagem do VT. As figu- 27.27; At 12.4,6,18; 27.31ss, etc.) êles são
—>
:

os agentes das autoridades que, não sem


ras e expressões relativas ao combate entraram
motivo, trazem a espada (Rm 13.4). Embora
a influenciar profundamente a linguagem bíbli-
aconteça que se excedam no cumprimento de
ca. Basta ler os livros sagrados para constatá-lo.
seu dever extra-limitando-se em atrocidades inu-
Tão impossível como inútil seria citar um con-
manas (Lc 23.36; Jo 19.2,23ss; At 16.20ss),
junto interessante de textos, pois êles supera-
os solados garantindo a ordem, protegem a
bundam. porém, algumas expressões bem
Eis, Igreja e seus ministros (At 21.32-35; 23.10,
típicas. A Iavé é comparada ao
proteção de 23,31; 27.42-43, etc).
escudo: "Tu Senhor... como escudo, cercas o
b) O mundo da guerra fornece maior núme-
teu justo com tua benevolência" (SI 5.13;
ro de comparações a todo o NT. O Apocalipse
enquanto sua ajuda honra os ímpios é figurada resume tôda a História, que corre da Ascenção
pejo poder penetrante da espada : "Feliz és tu à segunda Vinda do Cristo, como uma sequela
Israel ! Quem é como tu ? povo salvo pelo Se- de batalhas de uma guerra tanto física como
nhor, escudo que te protege, espada que te dál metafísica (Ap 2.16; 9.16ss; 11.7; 12.7 16.14;
triunfo". (Dt 33.29). O poder de Iavé con- 17.14; etc). O próprio Jesus usa continua-
funde os inimigos que "armam o arco e dispõe mente essas comparações (Mt 22.7; Lc 11.
a flecha na corda" (SI 11.2). A aljava cheia 17ss; 14.31; ver ICo 9.7; 14.8) e Paulo tam-

de flechas deu lugar a uma imagem cara aos


bém: o combate o bom combate (lTm 1.18),
exorta a Timóteo para que se faça um bom
oradores que tratam da família, da riqueza que
soldado de Jesus Cristo (2Tm 2.3), pois a
são os numerosos filhos "Herança do Senhor
:
vida cristã é uma aventura militar que exige,
são os filhos. como flechas na mão do guer-
. .
como o serviço do guerreiro, um compromisso
reiro, assim são os filhos da mocidade... feliz
incondicional (2Tm 2.4). Certamente o nosso
o homem que enche deles a sua aljava!" (SI combate não é carnal (Ef 6.12); logo, para
127.3-5). vencer é preciso receber de Deus cuja pala- —
vra é uma espada de dois gumes (Hb 4.12) —
10. a guerra a última palavra do VT? Em-
É as armas ofensivas e defensivas (Ef 6.13.17;
bora sua linguagem veio a impregnar-se do ba-
2Co 10.4ss; lTs 5.8).
rulho das batalhas, o VT
anuncia que, termi-
nada a guera escatológica amanhecerá um tem- 2. vez que um militar surge no cenário,
Tôda
po de paz, uma era de felicidade sobre a qual o NT
constata que sua profissão não é obs-
encerram-se anúncios dos profetas: táculo à salvação: os que João batiza não rc-
: !

128 HERANÇA

cebem preceito de deserção, mas de não maltra- ser defendido pelas armas, como também recusa-
tar, de não denunciar falsamente, e de conten- rá o auxílio de doze legiões angelicais. (Mt
tar-se com seu sôldo (Lc 3.14); o centurião 26.53). Dos comentários consultados nenhum
de Cafarnaum não é apenas atendido por Jesus, fornece-me uma solução satisfatória (de modo
mas dá o exemplo de fé (Mt 8.5-10 par) ;
nenhum a de Bonifácio VIII que, na Bula Unam
entre os pagãos quem primeiro confessa a di- sanctam, tem apoiado sobre êste texto a pre-
vindade de Jesus, é um oficial (Mt 27.54); tensão romana ao poder civil e religioso). Apa-
também o primeiro entre os pagãos, Cornélio, o rentemente, Jesus indica (ver Jo 15.18-23) que,
capitão, é incorporado à Igreja (At 10.1-22: desde já, a tarefa apostólica vai acompanhada
tinha sob seu mando "um soldado piedoso" de perigos mortais (ver 2Co 11.23-28; Jo 15.
10.7). Êstes exemplos indicam que, para os 36), devendo os apóstolos defender suas vidas
autores neo-testamentários, não há forçosa- contra emboscadas, das quais bom será escapar
mente incompatibilidade entre a profissão das (ver At 9.23-25), e logo, não sem certa ironia
armas e a fé cristã os soldados são um instru-
:
muda de tema (v. 38).
mento indispensável nas mãos do Estado.
/. /. VON ALLMEN
3. Neste "mundo" de guerras e rumores de
guerra —
onde o mesmo Jesus é uma causa de HERANÇA
guerra e de divisão, por exigir escolha mais
perentória que outra qualquer (Mt 10.34; Lc A noção bíblica de herança ocupa um lugar
12. 51ss) —
há contudo um lugar vedado à relevante na História da salvação. Estreitamen-
guerra, e ai daquele que pretende introduzi-la te relacionada com a noção de promessa,
ela possui um valor teológico essencial, mesmo
—>
(Tg 4.1-10; IPe 2.11; 2Co 12.20). Êste lugar
é a Igreja, cuja missão é de ser, neste mundo, quando seu aspecto jurídico não passe de ser
um oásis, ou melhor, uma porção, encravada na bem secundário. Herança, nos textos bíblicos,
terra, daquela pátria onde não mais a morte não significa apenas, como na jurisprudência
existirá, nem o pranto, nem a dor (Ap 21.4). moderna, a transferência ou aquisição por via
A Igreja é o lugar onde a —>
paz é procla-
mada e vivida (Ef 2.11-22; ver Mc 9.50-51;
de sucessão, ou o domínio de bens legados pe-
los antepassados, mas implica sobretudo na
lTs 5.13) porque a Igreja anuncia Jesus Cristo idéia de uma atribuição ou repartição feita por
o príncipe da paz (Is 9.5), porque a Igreja Deus : esta idéia se estriba, em particular no
vive de Jesus Cristo. Esta paz é o fruto da VT, em uma concepção bem definida de filia-
reconciliação feita na —>
cruz sendo portanto ção.

fundada esencialmente em Jesus Cristo, e dura- Resulta pràticamente impossível uma estatís-
doura somente enquanto êle a garantir. Daí os tica exata dos textos vetero-testamentários onde
dois corolários seguintes figura a palavra "herança". Tanto mais que

a) Importa mais a salvação do que a guerra nossas neo-latinas nem sempre utili-
versões
ou a paz deste mundo (Mc 13.7), que, aliás, zam têrmo explicitamente como êle figura
êste

não são, em suma, bastante poderosas para no original, e não poucas vêzes alteram o ma-
tiz que êle tem no original. Nós nos limitare-
tirar a verdadeira paz daqueles que crêem (Mc
13.20; Rm 8.35). mos, portanto, a indicar os Livros que forne-
cem a documentação mais sugestiva sobre o
b) os cristãos serão "agentes da paz", pací-
tema: o Hexateuco (ou seja, os seis primeiros
ficos,não a partir de utopias filantropias ou de Livros da Bíblia), Jeremias, Ezequiel e Sal-
programas políticos, mas do Evangelho e do mos.
reino de Deus esboçado já na Igreja (Mt 5.9).
Seja portanto a nossa luta contra a guerra e O NT contém treze vêzes a palavra "heran-
ça" e trinta e duas vêzes seus derivados ime-
suas tremendas sequelas, paralela à nosa luta
diatos herdeiro (10 vêzes), co-herdeiro (4
contra a enfermidade (Tg 5.13ss) e o pecado
:

(Mt 19.15-20). Nossa melhor maneira de des- vêzes), herdar (17 vêzes), dar em herança (1
qualificar a guerra será demonstrando, pela
vez). Os textos capitais encontram-se nos evan-

nossa união e amor mútuo (Jo 13.34-35), que a gelhos sinóticos, nos escritos paulinos e na
guerra não tem futuro (Mt 26.52; Ap 13.10). epístola aos Hebreus.

4. Existe alguma dificuldade em Lc 22.36-38: AT


Jesus, depois de indicar a seus discípulos que
vendesem suas túnicas para comprar armas, 1. Em diversos lugares do VT, "herança"
concede que as duas espadas que com êles es- guarda seu sentido vulgar de propriedade here-
tão, bastarão. Com uma delas Pedro intentará ditária (a vinha de Nabote, lRs 21.3-4), ou
defender seu amo no Getsêmani (Jo 18.10; de bens em geral (Pv 13.22; 19.14) transfe-
Mt 26.51 par). Entretanto Jesus recusará o ríveis aos filhos (Gn 21 10 Dt 21 16 Jz 11.2)
. ;
.
;
HERANÇA 129

e certos casos às filhas (Nm 27. lss; 36.2ss.


em do Senhor: Dt4.20; 9.26-29; 32.9; ISm 10.1;
No caso de Jó 42.16, a herança dada às filhas 2Sm 14.16; lRs 8.51-53; 2Rs 21.14; Is 19.25;
salienta, na intenção do autor, a riqueza fabu- Jl 2.17; SI 28.9; 33.12, etc).
losa do santo). Neste sentido, também os es- Decorre, pois, que, sendo as parcelas e limi-
cravos fazem parte da herança (Lv 25.46). tes da herança fixados pelo Senhor, a ninguém
compete modificá-los. Possuem um caráter sa-
2. Geralmente, no VT, a idéia de herança se grado, inalienável e definitivo. O "para sempre"
revestia de uma significação mais profunda e da promessa divina (Gn 13.15) recai tanto so-
de grande alcance teológico. Esta idéia rela- bre a atribuição do país à descendência de
cionava-se, na maioria dos textos, à posse do Abraão, como sobre a distribuição do país entre
solo, de tôda a Terra Prometida ou parte dela tribos e famílias. Nenhuma porção da herdade
(conforme vise o texto a herança de todo Is- pode ser transferida de uma tribo para outra
rael, ou a herança parcelada entre tribos, famí- (Nm 36.1-12) é proibido cobiçar a porção do
;

lias ou particulares). Os israelitas ocuparam a próximo (Ex 20.17; Mq 2.2) é delito mudar ;

terra de Canaã em virtude exclusivamente de os marcos de um campo (Dt 19.14; Os 5.10).


uma graça de Deus. Deus cumpre a seu favor Esta concepção explica-nos a existência da lei
a promessa feita outrora aos Patriarcas de lhes surpreendente estipulando que qualquer pro-
dar uma terra para êles e seus descendentes. A priedade retorne a seu primeiro dono, cada ano
promessa foi feita em primeiro lugar a Abraão jubilar (Lv 25.8ss). Por muito que na prática
(Gn 12. lss; 13.14-17; etc), foi confirmada a esta disposição fôsse violada, ela atestígua bem
Isaque (Gn 26.3-5) e a Jacó (Gn 28.13; 35.
o caráter sagrado e inalienável da herança po-
12), e renovada a Moisés (Ex 3.8, 17; 6.8). A
:

dem-se vender as colheitas de uma determinada


terra de Canaã era pois, além de um patrimô-
terra (Lv 25.16), esta terra porém não pode
nio transmitido de geração em geração, a he-
ser vendida, porquanto pertence a Deus (Lv
rança que o próprio Deus (exclusivamente
25.23).
Deus) tinha outorgada a seu povo (lRs 8.36;
Entretanto, a posse definitiva da herança é
Nm 34.2; Dt 4.21; 12.9-10; 15.4; SI 105.
9-11; 47.5), e cujos limites êle mesmo tinha
condicional depende da fidelidade de Israel à
!

aliança outorgada por Iavé, ou, em têrmos prá-


fixado (Nm 34.1-12). Se Josué logrou tomar
posse da terra prometida, foi porque Deus o
ticos, de sua fidelidade aos divinos manda-
comissionou para isso (Dt 1.38; 31.7; Js 1.6)
mentos (lCr 28.8; Dt 4.1; 11.8ss; 19.8-9;
Js 1.7; 2Rs 21.8; Ne 9.8; Jr 7.5-7; 25.5;
e o ajudou entregando "todos os inimigos nas
suas mãos" (Js 21.43-45; Dt 9.4-5; 11.25;
SI 37.18). O
castigo prometido a Israel infiel

SI 44.2-4). aos mandamentos, é a perda do país (Dt 4.


25-26; lRs 14.15; Jr 12.7-10; 17.4; Mq 2.4)
O Deus que ocupação do país
presidiu à
enquanto não se reconciliar com seu Deus, me-
concedido a Israel, igualmente à re-
presidiu
diante o arrependimento e a sujeição, plena e
partição das províncias entre as doze tribos. As
renovada, a Iavé (Is 57.13; 58.13-14). tre-
Fêz-se esta "lançando as sortes", isto é acei- mendas catástrofes nacionais rematando no fa-
tando a decisão de Iavé (Js 18.4-10. Ver tam- moso destêrro comprovam-no tràgicamente. In-
bém Nm 26.52ss; 33.54; 34.13ss; Js 13.6-7; versamente também, a volta para o país e a
14.2). Cada tribo recebeu assim a sua sorte restituição da herança, são o sinal da renova-
(Js 15.1), a sua parte da herança (Js 23.4; ção do divino favor a Israel, como consta nos
Gn A
repartição feita por Deus não se
48.6). textos profetizando o regresso de Babilónia
restringiu a designar
sua parte a cada tribo, bem como nos anúncios messiânicos (Ez 36.
mas também a cada família, casta, e indivíduo 8-15; 37.21-28; Is 49.8-9; SI 69.37).
em particular (Js 15.1,20: às famílias de Judá. Durante o cativeiro de Babilónia, dá-se um
15.13: a Calebe. 19.49s: a Josué). Deus é, em passo importante doravante, a noção de he-
:

última instância, o verdadeiro proprietário do rança reveste explicitamente um valor escato-


país. Usa-o livremente para dá-lo por morada lógico os elementos assimilados pela teologia
;

ao povo de sua preferência ("a terra é minha anterior projetam-se para o futuro. Não so-
e vós sois estrangeiros e peregrinos na minha mente as tribos, famílias e indivíduos receberão
terra" (Lv 25.23; Js 22.19). É simplesmente sua parte da herança nos limites e na repartição
este fato, e não uma nova ideologia, que expres- de outrora, conforme a promessa feita aos pa-
sam numerosos textos quando mencionam a ter- triarcas (Ez 47.13-14; 48.29); não somente
ra ou o povo como a herança do Senhor. (Evi- será, comoantes, intangível a sorte de cada
dentemente o Senhor de ninguém recebe essa um (Ez 46.16-18). Além da simples restaura-
herança, mas escolhe e assume um país ou um ção do passado, a reflexão exílica discerne um
povo por sua terra e sua propriedade. Assim sentido universalista e messiânico nas promes-
vemos o país-herança do Senhor: ISm 26.19; sas da herança o estrangeiro estabelecido em
—>
:

2Sm21.3; Is 47.6; SI 79.1; — o povo-herança Israel e até as nações entrarão a formar


: — ;

130 HERANÇA

parte da herdade do Senhor e de seu Cristo (SI também os crentes serão herdeiros (Rm 8.17:
2.8; 82.8; Is 19.25). Gl 4.7), embora apenas por participação, isto
é, somente mediante Jesus Cristo, "herdeiros
3. Êste enriquecimento e ampliação da visão com Cristo" (Rm 8.17), o qual, morrendo e
teológica efetua-se ainda em outra direção.
ressuscitando, relaciona-os filialmente com
Aparecem textos afirmando que o próprio Deus
Deus. Eram
escravos, Jesus Cristo fê-los fi-
é a herança de seu povo (Jr 10.16) e de cada
lhos e herdeiros (Gl 3.26-29; 4.1-7): por
crente em particular (SI 16.5-6; 73.26; 142.6).
Cristo "fostes selados com o Espírito Santo,
Certos autores opinam que esta linha de pen-
penhor da nossa herança" (Ef 1.4; ver At
samento origina-se em certos textos concernen-
tes aos levitas êstes não receberam parte al-
:
20.32. Consultar ^>adotar). A morte de
Cristo franqueou-lhes o acesso à "eterna he-
guma na distribuição da terra nacional (Nm
rança" (Hb 9.15).
18.20ss; 26.62), dando-se-lhes em compensa-
ção o mesmo Iavé por herdade (Dt 18.2; Js Os
capítulos 3 e 4 de Gálatas são particular-

13.33; Ez 44.28). Aparentemente êstes tex- mente sugestivos a êsse respeito, porquanto
estabelecem a relação entre a nova condição
tos eram compreendidos com muito realismo.
do crente e a promessa feita a Abraão. Paulo
Assim, por exemplo, Js 18.7 e Dt 18.1 deter-
declara, contra as pretensões dos judaizantes,
minam muito claramente que os levitas terão
que a descendência de Abraão opera-se na fé
a sua parte no sacerdócio e nas oferendas dià-
e não na circuncisão pertencemos à descen-
riamente feitas a Iavé. Aliás, os Salmos 16 :

dência de Abraão, herdeira das promessas (Gn


e 73 revelam uma concepção mais profunda
13.15), mediante a fé em Jesus Cristo (Gl
a herança refere-se à plenitude que experimen-
ta o crente na comunhão com Deus.
3.7-9,14,22ss ver ; Rm
4.13-16), e não mediante
a Lei (Gl 3.10-18). Na realidade Jesus é a
4. Mencionemos, à guisa de conclusão, certas verdadeira descendência de Abraão (Gl 13.16),
particularidades interessantes. Em Dt 33.4, com todos quantos somos de Cristo (3.29).
herança designa a Lei (ver também SI Portanto, a verdadeira posteridade de Abraão,
119.57,111). Em
Jó, herança significa a sorte fundada em Jesus Cristo, deixa de ser carnal
de um determinado indivíduo (20.9; 27.13). (ICo 15.50: "carne e sangue não podem her-
No Salmo 127.3, designa os filhos. dar o reino de Deus) é puramente espiritual.
:

O fato é da maior importância, por implicar


NT em universalismo, não apenas futuro, mas atual.
Em Jesus Cristo a promessa alcança, muito
Aolado de textos onde a palavra "herança" além do povo escolhido, todo homem que crê
guarda seu sentido usual, como Lc 12.13 em Jesus Cristo, os próprios gentios são
("Mestre, ordena a meu irmão que reparta co- "co-herdeiros... co-participantes da promessa"
migo a herança"), ou refere-se à posse da (Ef 3.6; Gl 3.28; Mt 8.10ss).
terra prometida (At 7.5; Hb 11.8), o NT
fornece precisões novas tornando explícita a 2. A Herança-Reino toma, no
equivalência
teologia bíblica em dois aspectos 1.° a :
— NT, o da equivalência Herança-Terra
lugar
herança relaciona-se com a pessoa do Cristo Prometida do VT. A herança, a vinha da
(o Filho é o Herdeiro; a filiação torna-nos

com o reino que Cristo
parábola, é o —>
Reino (Mt 21.43), cuja
co-herdeiros), 2.° proximidade anuncia Jesus desde o exórdio de
inaugura.
seu ministério (Mc 1.15 par). Jesus, enquan-
Nos evangelhos sinóticos, a parábola dos la- to Filho, Herdeiro (Mc 12.7); êle com-
é o
vradores esclarece nitidamente ambos os aspec-
partirá a herança com os "seus" ("entrai na
tos (Mc 12.1-12; Mt 21.33-46; Lc 20.9-19),
herdade do reino que vos está preparado desde
mostrando a nova relação Filho-herdeiro
a criação do mundo" Mt 25.34; comparar ICo
("Êste é o herdeiro, matemo-lo" Mc 12. 6s) e
6.9-10; Gl 5.21; Ef 5.5; Tg 2.5).
Reino-herança (a herança é o Reino, Mt 21.43).
Parece ser intenção exclusiva de todo o NT O
verbo herdar de ICo 6.9-10 e de Gl 5.21
deixar bem elucidada esta dupla relação. está no futuro ("os injustos não herdarão o
reino" os que tal e tal pecado cometem "não
;

1. A relação jiliação-hcrança. Teologica- herdarão o reino de Deus"). Clara indicação


mente considerada, pouco interesse despertou de que o Reino é ainda o objeto da esperança:
no Antigo Testamento (encontramo-la apenas embora iniciada já na terra, sua posse completa
implicitamente os israelitas são herdeiros
: em e definitiva reserva-se para o céu. Na pará-
virtude da promessa feita aos patriarcas : Ex bola dos lavradores, vemos que o próprio Filho
13.5; Dt 1.8). No NT, ela ocupa o próprio ainda não é dono da herança, pois os lavrado-
centro da Teologia. res infiéis alentam a pretensão de roubá-la
Enquanto Filho, Jesus é o Herdeiro nato (Mc 12.7). Somente depois da ressurreição
(Mc 12.7 par; Hb 1.2). Enquanto filhos, entrará Jesus na posse da herança (Mt 28.18;
. : : .

HINO 131

Fp 2.9-10). Por outro lado, o texto já citado de Canaã) O aspecto temporal, que toma o
.

de Alt 25.34, tirado da grandiosa descrição do conceito de herança em virtude da progressão


juízo final, acusa evidentemente o caráter es- histórica da salvação, é, portanto, essencial.
catológico da herdade esperada pelos discípu-
c) O valor universalista e escatológico da
los de Cristo (ver também IPe 1.3-4). Tòda herança, afirmado já por alguns textos vete-
a epístola aos Hebreus salienta o caráter fu- ro-testamentários, declara-se com intensa ple-
turo do reino, não obstante existir textos que nitude no NT na realidade, os últimos tem-
:

reconhecem na herança valores já presentes e pos estão mais próximos, os pagãos são evan-
inclusive já realizados a favor dos crentes de gelizados e integrados à herança (Ef 3.6) e, ;

épocas passadas (p. ex. 6.2: as promessas


:
pela virtude do Espírito Santo, penhor da he-
realizadas já antigamente; ou 11.7, a justiça, rança, os crentes experimentam já um ante-
no caso de Noé) Na perspectiva do capítulo
.
gozo do reino vindouro (Ef 1.14).
11, por muito que os antigos crentes (Abraão
e os seus co-herdeiros Isaque e Jacó) tenham
d) A projeção escatológica da herança não
deve dar lugar a uma interpretação meramente
sido os herdeiros da promessa, "todos estes
espiritualista ou idealista. Guarde-se-lhe seu
morreram na fé, sem ter obtido as promessas"
caráter concreto cuja agudeza salientam nu-
(Hb 11.13ss,39). O capítulo 6 insiste no ca-
merosos textos ("herdarão a terra" de Mt 5.5;
ráter condicional e escatológico da promessa
"a cidade de sólidos fundamentos" de Hb
ela exige a f é e a paciência dos fiéis (vers. 12),
11.10).
o fervor em aguardar até o fim (expressão bem
escatológica, vers. 11 ; ver também vers. 19-20)
J.C. MARGOT
o objeto da esperança. Porém, a esperança
funda-se solidamente sobre a promessa que fêz HINO
com juramento (vers. 13ss)
Seria errado pensar que os filhos de Israel
O
quê comporta, finalmente, êste Reino, he- consideravam a música como uma arte, no sen-
rança esperada dos fiéis? Consiste na nova ci-
tido moderno da palavra, com o seu fim em si
dade ( —>
cidade) criada por Deus para os
"seus" (Hb 11.10,16), no céu nôvo e na nova
mesma. Para êles a música, além de privile-
giada entre as demais artes, era uma dádiva
terra, na cidade santa do Apocalipse (21 ver ;
sobrenatural
2Pe 3.13). Aí reinarão para sempre com A música não é necessariamente ligada a
Deus os que creram nêle (Ap 22.5; Rm 5.17). palavras por sua própria virtude, ela exalta e
;
Mateus, falando dos mansos, declara que eles
modera, causa êxtase (2Rs 3.15) criando um
"herdarão a terra" (5.5), aludindo precisamen- estado semelhante à embriaguez. Consegue
te a êste reino com Deus (ver Rm 4.13; Ap
expulsar os demónios, ou despertá-los (ISm
5.10): aí os resgatados gozarão os muitos 16.16 e 23; 18.10). O "bom" músico (igno-
bens do Reino, sua herança: o "tauta" todas — ramos, porém, o critério usado para classificar
estas coisas do Apocalipse (21.7), a vida eter- o "bom" músico) é inspirado, capaz de comu-
na (Tt 3.7; ver Mc 10.17 par; Lc 10.25; nicar, mediante sua arte, a inspiração aos ouvin-

——>>
:
e vida), a graça da vida (IPe 3.7),
,
tes. Observemos que essa inspiração tem en-
a glória (Rm 8.17-18; Ef 1.18: literal- tão um caráter acidental e passageiro.
mente "a riqueza da glória da sua herança"), A solicita e merece a atenção de
a —>
benção (IPe 3.9), a incorruptibilidade
(ICo 15.50ss; ver IPe 1.4).
música
Deus, torna-se agradável a Deus (ver: as
trombetas de Nm
10.9-10). Existia grande
Para resumir, acentuemos os aspectos fun- diversidade de instrumentos musicais (Salmos
damentais da noção de herança 149 e 150), uns, próprios para louvar o Senhor;
outros, capazes de expressar o canto da cria-
a) No Nôvo e no Velho Testamento, a
ção inteira (SI 150.6) outros, aptos para
posse da herança depende do cumprimento das ;

transmitir o poder de Iavé (Js 6.20) outros,


promessas divinas. A
herança é uma dádiva
finalmente, anunciadores do sábado e das fes-
;

da graça soberana de Deus. Cuidemos, portan-


to,de não dar ao têrmo bíblico o sentido mo-
tas
—> (Jl 2.1ss; Ap 8.6-9,21).
festa).
( —>
sábado

derno de coisa devida cuja posse nos é juridi-


camente garantida.
No transcurso do tempo, e cada vez mais,
a música alia-se à poesia, e ambas juntas fa-

vou
b) Desde a criação do mundo, Deus reser-
uma herança para
os seus escolhidos (Mt
zem-se as servas da —>
oração, dando-lhe
maior agressividade, ou seja, tornando-a mais
25.34). Êste eterno desígnio de Deus recebe expressiva e mais grata a Deus, mais apta
um cumprimento inicial e profético na ocupação para os divinos louvores. A música faz-se
da terra de Canaã, e realizar-se-á plena e de- "acompanhamento" os instrumentos músicos
;

finitivamente com a vinda do Reino (Hb 11, passam a ser "os instrumentos do canto"
dá de fato êste significado típico à ocupação (Am 6.5).
; . : .:

132 HOMEM

Israel procurará não apenas uma oração per- expressa a limitação sociológica do homem.
feita, mas u'a música perfeita (aos ouvidos (Adão designa neste caso a espécie humana
modernos quiçá pareceria singularmente caco- coletivamente)
fônica a música de Israel) .

Cumpre lembrar que Salmos eram can-


os
2. Todo o ensino do VT
acêrea do homem

tados. Cantores profissionais integravam o


concentra-se nos relatos da criação. defi- A
nição mais completa acha-se no texto iavista
serviço do Templo (coros de Coré e de Asaf). "Iavé-Deus formou, pois, o homem do barro
Também consta que, no NT, se canta com fre- da terra, soprou-lhe nas narinas um sôpro de
quência (Mt 26.30; At 16.25) e que Paulo vida, e o homem passou a ser um ser vivente"
via no canto um poderoso meio de edificação (Gn 2.7). Êste texto afirma categoricamente
para a Igreja (Cl 3.16; Ef 5.19). que a vida é o apanágio exclusivo de Deus.
que o homem existe somente na medida que
A. MAILLOT recebe o sôpro de vida, que Deus lhe insufla
num gesto soberano de sua graça (ver SI
HOMEM 104.29-30). Tudo provém de Deus, o corpo
e o sôpro de vida, sendo, portanto, impossível
VT dissociar e isolar ambos os elementos. vida A
divina penetra a totalidade do ser humano até
1. O homem ê uma
Esta afirmação
criatura.
o ponto de cada órgão corporal poder expres-
é a base de todo o ensino do VT acerca do
sar a vida de todo o conjunto. O corpo, longe
homem. Êste leva, portanto, a marca da fra- de ser um envoltório que cobre e esconde a al-
queza e da mortalidade. A força e a vida ma, é, pelo contrário, a expressão indispensável
eterna pertencem exclusivamente a Deus (Jó da realidade imaterial que constitui seu prin-
14.1-2; SI 103.15-16). O homem foi criado cípio de vida. Decorre daí que as funções psí-
mortal, nada modificando o pecado de Adão na quicas e espirituais encontram-se sempre liga-
sua natureza humana. O pecado simplesmente das a um órgão corporal. (Ver: DHORME,
tornou definitiva uma condição que Deus se Ucmploi métaphorique des noms de corps en
reservava quiçá de modificar se Adão perseve- hebreu et en akkadien, Paris, Gabalda, 1923)
rasse na fidelidade (Gn 3.22). Esperar do Conforme o VT, o homem não tem uma alma,
homem a salvação e a vida, equivale, pois, a pois o têrmo que nossas versões populares tra-
uma ilusão (Is 31.3; Jr 17.5). A condição duzem por "alma", NEPHESH,
designa o con-
de criatura é comum ao homem e ao animal junto psico-físico equivalente àquilo que nós
a mesma sorte espera a ambos (Ec 3.19; SI entendemos por "o ser vivo", "viver" e suas
49.12). Alas, por ser o homem criado à ima- diversas formas de expressão. Nephesh encon-
gem de Deus que lhe insuflou um sopro de tra-se na Bíblia com os seguintes sentidos
vida, êle goza de uma dignidade eminente. No
a) a vida em geral assim, a expressão
:

seu campo próprio, o homem é capaz de força


"vida por vida" dos textos jurídicos (Ex 21.23;
e de domínio sôbre a natureza circundante (Gn Dt 19.21), a vida que os perversos pretendem
1.27; SI 8.6ss). O laço que une o homem matar, e que todos devemos respeitar (lRs
com Deus constitui a base de tôda a antropo- 19.2; Ex 4.19; Jó 2.6).
logia porém, é também importantíssima a re-
;

lação do homem com os seus semelhantes. Na b) A vida tal como se manifesta em deter-
minadas funções corporais particularmente vi-
mentalidade vetero-testamentária, a realidade
síveis em virtude de seu caráter animado, como
primordial não é formada pelo indivíduo, mas
na respiração e no sôpro (Jó 41.13; Ex 23.12;
pelo grupo humano êste é a realidade perma-
;

nente na qual mergulha o indivíduo suas raízes


31.17; Gn 35.18) ou também o
(Gn 9.4; Lv 17.11,14;
sangue
Dt 12.23;
—>SI 141.8).
e sente o seu próprio prolongamento os indi- :

víduos passam, a comunidade permanece. Isso c) A


vida tal como se manifesta em deter-
não impede que possa concentrar-se num só minadas funções mais caracterizadamente psí-
indivíduo a substância da comunidade inteira: quicas, como o anseio, o desejo (2Sm 3.21;

idéia que acha sua expressão máxima na figura SI 24.4; 41.3; Pv 23.2; Ez 24.25).
do —> servo de lave (Is 40.55). d) A
vida tal como se manifesta no con-
junto dos fatôres constitutivos da pessoa hu-
O nomeusualmente dado ao homem, no ori-
ginal hebraico, expressa perfeitamente êste mana (Gn 14.21; 46.18; Nm
5.6; Ez 33.6.
laço duplo Adão é aquêle que foi tirado da
:
Usado com o sufixo da primeira pessoa,
adamah, da terra; um ser frágil e efémero. nephesh corresponde ao eu, podendo traduzir-se
Adão considera-se como o nome próprio do pelo pronome pessoal eu).
primeiro homem (nesta qualidade aparece pela A vida tal como aparece no cadáver
e)
primeira vez em Gn 3.17). O têrmo ben-adão, antes da putrefação (Lv 19.28; 21.1-11; Nm
filho de homem ou filho da humanidade, 6.6; Ag 2.13).
. :

HOMEM 133

3. Os diversos elementos constitutivos do ser ções (Ez 35.21; SI 78.8); todavia, quando a
vivo só funcionam na medida que os anima a antropologia cuida de encarar o homem como
fôrça de vida. uma realidade autónoma e independente, distin-
gue-os um do outro, reservando ao coração,
a) A carne, chamada "pó" na linguagem órgão interior e escondido, as funções da per-
mítica e poética, é o elemento que radicalmen-
sonalidade e da consciência, e guardando para
te distingue o homem de Deus (Gn 6.3; 2Cr
o espírito o privilégio de servir de sede à
32.8; SI 145.21; Is 31.3; 40.6; Jr 17.5; etc.)
a carne, contudo, a despeito de sua materiali-
;
fôrça de Deus. O coração é, ademais, o órgão
da inteligência e do conhecimento (ISm 24.6;
dade, pode ser a sede de funções superiores
25.31; 2Sm 24.10; lRs 2.44; Jr 17.1; Pv
a todas quantas costumamos designar pela pa-
23.12; Ec 7.27): pensar, na língua hebraica,
lavra carnal (P. ex.
: "a minha carne suspira
:

é "falar em" ou "falar para seu coração" (Gn


pelo Deus vivo" do Salmo 84.3. Ver também
24.45; 8.21; ISm 1.13; Ec 1.16). O indi-
SI 16.9; 119.120). A
idéia paulina de carne,
víduo sem coração é, portanto, um ser sem
princípio de pecado, fôrça inimiga de Deus, é
inteligência (Pv 6.32; 7.7); roubar o coração
totalmente desconhecida do VT, encontrando-se
a alguém significa enganar sua inteligência
apenas por primeira vez na Sabedoria de Sa-
privando-o momentaneamente de suas faculda-
lomão, Livro manifestamente influenciado pelo
des intelectuais (Gn 31.20; 31.26; 2Sm
helenismo (9. 15)
15.6,13). É no coração que residem as facul-
b) O espírito, essencialmente característica dades da atenção (Ez 44.5; Ex 7.23) ; o co-
de Deus, manifesta-se nesta qualidade em ho- ração é quem dita nossa conduta moral (Is
mens que o VT
apelida de "homens de Deus", 57.17; Ec 11.9) dirigindo nossa vontade e
como, por exemplo,nos heróis do Livro de nossos desejos. Em suma, com a ressalva de
Juízes. Êstes se manifestam capazes de reali- que o papel afetivo do coração é bem menor
zar façanhas sôbre-humanas, embora muito que sua função de discernimento, podemos lici-
pouco espirituais em nossa maneira de com- tamente afirmar que, na perspectiva do VT,
preender a espiritualidade (Jz 3.10; 6.34; tanto vale o homem quanto vale seu coração.
11.29; 14.6; 15.14). Em
Sansão a ação do
espírito mostra-se apenas através da sua fôrça
4. O autor do relato sacerdotal da criação
usa a expressão "à imagem e semelhança de
física prodigiosa.
Deus" para definir a natureza e as funções do
Também o rei é
momento da sua unção por Samuel, Saul
um homem do espírito : no
é
homem
idéia
(ver
se
—> imagem). Embora esta
encontre exclusivamente na camada
visitado pelo espírito e transformado em outro
sacerdotal do Pentateuco (Gn 1.26-27; 5.1-3;
homem (ISm 10.6ss). O
espírito é igualmen-
9.6), ela condensa em uma fórmula lapidária
te a fôrça que capacita o profeta para sua
a suma doutrinal do homem, espalhada através
missão, embora os profetas post-exílicos a men-
cionem raramente (Os 9.7; Mq 3.8; Ez
do VT. A
imagem de Deus refere-se não ape-
nas a tal ou qual função, espiritual ou moral,
ll.lss).
do homem (como seria a perfeição, a razão, a
Todavia, em outros contextos, o espírito de- liberdade, etc), mas à totalidade psico-física
signa uma realidade de ordem mais psicológica,
da natureza humana. O têrmo hebraico tra-
frequentemente confundida com a nephesh, com
duzido por imagem designa sempre uma ima-
a única diferença de que a nephesh é a vida
gem plástica, efígie ou estátua. Ora, no mun-
em procura de manifestações concretas, enquan-
do oriental antigo, a imagem era a manifesta-
to o espírito (ruach) designa a vida no seu
ção e quase a encarnação do ser representado
aspecto interior e oculto, e traduz melhor a
a imagem do deus ou do soberano manifestava
nossa palavra "alma" (Gn 41.8; Jz 8.3; lRs
a presença do deus ou do soberano, e seu do-
21.5; Is 25.4; SI 76.13; Pv 16.32). O espí-
mínio sôbre o lugar onde estava colocada.
rito, ademais, é a sede do pensamento (Ez
Desta maneira, o homem, por ser à imagem de
11.5; 20.32) e o órgão religioso por excelên-
Deus, é feito o representante de Deus deve
;

cia da comunicação com Deus. Conforme o exercer sua função de representante dominando
Salmo 51.12-14, o espírito do homem é que sôbre o mundo animal (ver Gn 1.27ss). O
pode receber o Espírito Santo de Deus e re- Salmo 8 comenta perfeitamente o tema da
novar-se mediante êle. imagem de Deus, sem usar explicitamente o
c) O coração, ainda mais que o espírito têrmo "imagem": insiste sôbre o império con-
responde ao conceito nosso de alma. Êle é o ferido por Deus ao homem delegando-lhe real-
supremo regulador que canaliza a ruach a fim mente parte de sua soberania. É por ser ima-
de normalizar a nephash. É do coração que gem de Deus que o homem se distingue do ani-
partem as fontes da vida (Pv 4.23), nêle se mal pois, do ponto de vista simplesmente bio-
;

enraíza o espírito gerador da vida. Coração lógico, o animal e o homem pouco se diferem,
e espírito têm frequentemente as mesmas fun- se excetuarmos no animal a ausência de sen-
— :

134 HOMEM

timentos. Contudo, na hierarquia das criatu- NT


ras, ocupam lugar bem diferente. A legisla-
ção velará por fazer respeitar o limite entre Tendo-se em vista a intenção daqueles que
o mundo animal e o mundo humano (Lv 18.23).
pretendem definir a imagem que o NT nos dá.
faz-se necessária uma observação preliminar
Em
virtude de a imagem de Deus ser parte
os autores neo-testamentários enxergam o ho-
integrante da própria natureza humana, ela
mem somente e sempre na sua condição pe-
não é aniquilada pelo pecado original e subsiste
rante Deus. Inutilmente procuraremos nêles
mesmo depois do dilúvio. O homem continua um conhecimento do homem em si. Não es-
sendo o representante de Deus esta função, ;

boçam qualquer imagem do homem de confor-


aliás, não é contraditória quanto ao que afirma
midade com determinada "natureza" humana,
o YT acerca da fraqueza e da dependência do
de essência definida e de elementos bem divi-
homem na realidade êste será o representante
:

didos, de carateres e manifestações susceptíveis


de Deus apenas na medida que guarda súã re-
lação com seu representado. Tôda vez que
de análise. O homem que o NT
procura e
conhece é exclusivamente o protagonista da
pretende ser igual a Deus (como lhe insinuou
História Santa. Não existe nenhuma antropo-
o tentador do Eden), extra-limita-se e, de ima-
logia bíblica que não seja solidária da Teolo-
gem, faz-se caricatura.
gia apenas em função da teologia é que existe
:

Na noção vetero-testamentária do
base da uma antropologia do NT.
"homem" achamos a afirmação de sua relação
com Deus e de sua autonomia face ao mundo, 1 . As
estruturas do ser humano. caráter O
relação e autonomia que se manifestam, por dependente da antropologia evidencia-se par-
exemplo, na piedade alegre e aberta do YT, ticularmente com as noções que definem no NT
ou na sua atitude positiva e decidida frente ao as estruturas do homem. Dêste quadro os es-
trabalho e à cultura. Cabe mesmo a pergunta critos paulinos fornecem os traços mais impor-
se não é o tema da imagem de Deus que explica tantes, porém confirmados pelos evangelhos si-
êste humanismo judeu que alcançou nos Livros nóticos e pelos textos de João nas linhas domi-
Sapienciais uma expressão sem paralelo em nantes.
outras literaturas.
A
noção de corpo, frequente no NT, de-
a)
5 . O mesmo autor sacerdotal continua : "ho-
fine homem como um organismo constituído,
o
mem mulher
como um todo e uma unidade. O corpo não de-
e os criou" (Gn 1.27). Êste
fine apenas a "forma" do organismo humano
texto proíbe interpretar a criação de Adão ou o vaso que contém a substância espiritual
como de um ser andrógino (opinião da tradi- (alma), pelo contrário, o corpo define o modo
ção hagádita judaica que intentava conciliar os de ser essencial e constitutivo do homem. Não
elementos de Gn 1.27 com os de Gn 2.18ss. há existência humana que não seja corporal
Pois, conforme êste último contexto, a mulher (Ver ICo 15.35ss). Nossa corporalidade ma-
é tirada do homem mergulhado num sono pro- nifesta-se imediatamente em nosso corpo hu-
fundo deve sua criação exclusivamente a
: ela mano, unidade onde se enlaçam os diferentes
Tavé, pois Adão é totalmente passivo) Se o .
membros formando um todo harmonioso e coor-
mito da criação de Eva a partir de uma cos- denado (Mt 5.30; 6.25; Rm 12.4ss; ICo 12.
12-26). Porém, contràriamente à ideologia gre-
tela de Adão tende a explicar as particularida-
ga, nosso corpo compreende uma realidade mais
des físicas do varão e da mulher, sua primeira
extensa do que a nossa unidade biológica e
intenção é de explicar a mútua atração de am- mais ampla do que o nosso corpo, tangível e
bos os sexos que varão e
e de expressar sensível abarca o homem total, tôda a nossa
:

mulher realizam plenamente sua vocação pessoa na sua complexidade. Tanto é assim que
no —>
matrimónio. A mulher, sem dúvida, é
marcada pela sujeição devida ao marido; os
Paulo não concebe uma existência futura, de-
^>mortc e da ressurreição, sem corpo;
pois da
usos matrimoniais do VT apresentam-na como embora não mais carnal, mas espiritualizado, o
a propriedade que o marido adquire a dinheiro. corpo é essencial mesmo na vida futura (ICo
No entanto, o homem, deixando pai e mãe para 15.35-49; Fp 3.21).
unir-se a sua mulher (Gn 2.24), afirma que
Da mesma maneira, a alma nunca desig-
b)
esta é verdadeiramente um ser semelhante a si.
na uma parte do homem, mas o homem total,
A
atração sexual encontrou uma expressão embora sob um aspecto determinado de sua
poética muito notável nos Cantares. mesma A manifestação vital. Pois alma, como no VT,
realidade conjugal tornou-se no conjunto da expressa mais precisamente, no homem, as mo-
tradição profética a imagem mais comum dalidades de ser vivo. O NT, neste tópico tam-
da —>aliança de Iavé com seu povo. bém, ultrapassa as nossas definições biológicas
e naturalistas. A
alma é a vida humana enquan-
ED. JACOB to vida individual de tal sujeito consciente e
:

HOMEM 135

voluntário (Mt 10.28; 16.26; Lc 9.56; 12.19. ção dentro da História humana cujos contra-
20; Jo 12.27; 2Co 1.23; 12.15; Fp 1.27; lTm golpes êle sente e cuja marcha empenha sua
2.8) no entanto, o homem vivo não possui em
;
responsabilidade. O homem não pode ser isolado
si próprio a fonte da vida e a capacidade de da comunidade a que pertence quer no espaço,
subsistir. Adão tornou-se um ser vivo somente quer no tempo. O NT coloca o homem inevità-
quando Deus lhe insuflou nas narinas um sopro velmente dentro da perspectiva comunitária e
de vida. Deus determina os limites da vida de histórica.
todos nós (Mt 6.26-30; ICo 15.45).
3. O homem c sua relação com Deus e com
c) O homem, além de ser vivo, é inteligente. Jesus Cristo. Prolongando a visão do VT, o
sabe, compreende, conhece, orienta-se, quer, to- NT nunca considera o homem fora da sua rela-
ma posição.Na inteligência está sempre incluí- ção e comum História com Deus. Pois, somente
do o elemento volitivo. Inteligência e coração por Deus e perante Deus torna-se efetiva a
designam portanto no NT as manifestações existência humana. Sua relação com Deus apa-
mais interiores da pessoa humana. É pelo seu rece-nos bem caracterizada à luz do NT
querer inteligente e cônscio que o hemem co-
nhece e aprecia, aceita ou rejeita, julga e esco-
a) O homem, por ser depende de
criatura,
Deus (Mt 6.26-30; 10.28; At 17.25ss). Per-
lhe (Ver, a propósito do coração: Lc 2.19;
tence, corpo e alma, a Deus. Exclusivamente a
8.15; Mt 6.21; 15.8; Jo 12.40; Rm 2.15;
6.17; Fp 1.7; Ef 3.17. E, a propósito da inte- Deus deve sua perseverância na existência. Se
êle é, por outra parte, uma pessoa, cônscia, livre
ligência: ICo 1.10; Rm 12.2; 14.5; 7.23).
disponível de si próprio, isso se deve unicamente
Notemos que êste EU interior, em particular
a Deus, o qual, de uma ou de outra forma, in-
na ideologia de Paulo, nunca aparece na exis-
tência do homem como capaz de independência.
terpela-o depois de tê-lo feito um ser respon-
sável perante
A argumentação de Rm 7 conclui que o homem si.

não pode obrar o bem apenas pode pensar e


;
b) Mas o homem recusa reconhecer sua rela-
querer, mas não ultrapassar esta fase represen- ção com Deus. De fato, êle existe por Deus e
tativa, intencional e efetiva. Toda vez que se na presença de Deus, mas repudia esta evidên-
trata de realização prática, o homem é um ser cia existencial e. abusando de sua liberdade,
dependente, agente e servo de um poder alheio. desvia-se do Criador (Rm 1.19-21). Assim é
d) Êste poder alheio, que não é dele en- que perverteu sua vida, levando uma existência
quanto vive o homem natural, é aquilo que Pau- carnal, sujeita ao pecado. O NT proclama a
lo designa com o têrmo "carne". Carne, na
ideologia grega, designa estritamente a subs-
universalidade dêsse —>
pecado o qual apare-
ce como a tara da humanidade inteira e, simul-
tância ou matéria corporal do homem sentido ;
taneamente, como a responsabilidade de cada
próprio e físico, sem interêsse para o NT. Para
indivíduo. (Observemos que, nos sinóticos, a
o NT, herdeiro da acepção mais ampla do VT,
universal necessidade da penitência implica na
carne designa a maneira como vive perante
universalidade do pecado; ver igualmente Jo
Deus o homem ainda não definitivamente salvo,
criatura fraca e limitada.
7.19; 9.34; 16.8; Rm
7.14-24).

Os escritores usam pois


neo-testamentários Tal estado pecaminoso determina certo
c)
esta palavra para pintar o homem
natural tal número de consequências para todos nós, que
como êle é na sua totalidade, fraco, incapaz, o NT especifica e que podemos resumir nesta
caduco, e traço muito acentuado no NT simples afirmação o homem pecador deixa de
:

— estreitamente solidário com o pecado (2Co ser o homem autêntico, criado por Deus ; à luz
1.12; Rm
6.19). do pecado não há mais no mundo natural o ho-
O leitor atento não deixará de ver que esta mem verdadeiro, completo e livre; mas, desvia-
noção abarca, além do próprio ser humano, to- do de seu Criador e inimigo dêle, êsse homem
da a esfera do humano, todas as coisas marcadas tornou-se um ser profundamente alienado. De-
do sêlo ou domínio do homem e até a História cadência progressiva bem descrita por Rm
e o ambiente modelados por êle extensão de :
1 . 18-32, onde vemos como, por causa do pe-
sentido particularmente sensível em expressões cado, tôdas as relações humanas pervertem-se
como "na carne", "segundo a carne" e outras e como a existência humana criada para a vida
familiares a Paulo (Rm 1.3; 8.13; 9.5; ICo acaba devotada à —> morte.
1.26; 10.18; 2Co 5.16; 11.18; Gl 2.20; 3.3; Quando Deus
coloca êsse pecador diante do
Fp 1.22,24). Decorre pois que, para se conhe-
cer o homem, não é suficiente descrevê-lo como
imperativo de sua —>
Lei, êste manifesta-se
incapaz de cumprí-la por si mesmo e de assim
um fenómeno natural, um processo biológico ou ressuscitar. Apenas pode reconhecer-se escravo,
uma individualidade psicológica. Mas o homem dividido em si mesmo, vendido ao pecado, sujeito
é uma pessoa que precisa ser conhecida nas à carne por causa desta escravidão, condenado
suas relações com outras pessoas, na sua coloca- (Mc 14.38; Jo 8. '34; Rm
7.14-24). Assim a
136 ÍDOLOS

imagem de Deus, projetada pelo Criador, acha- las em certa forma. Tais pseudo-representações
se profundamente alterada. transformaram-se paulatinamente, e, sobretudo
Contudo, o NT nos apresenta o homem auten- entre os sedentários, em figuras um pouco mais
tico na pessoa de
Pilatos, sem

^> Jesus Cristo, de quem
saber, profetizou: "Eis o homem!"
civilizadas, como cones de pedra ou troncos de
árvores sem galhos, erigidos no centro de um
(Jo 19.5). recinto sagrado ou santuário. Ainda no declí-
Os sinóticos intentam dar vulto à excepcional nio do império romano circulavam moedas que
qualidade dêsse homem, o qual impressionou representavam o templo de Biblos, com seu
parte considerável de seu séquito. Insistem, em recinto sagrado e sua pedra cónica, rodeado na
particular sobre o caráter único do encontro realidade por uma colunata moderna, sendo po-
com Jesus Cristo (Mt 1.17-18,22,27 par) e rém a pedra sagrada ainda o centro do lugar
esforçam-se por estabelecer o laço estreito en- santo. Nas narrativas dos patriarcas, distin-

tre a aparição de Jesus e a instauração do reino guimos nitidamente o papel desempenhado pe-
de Deus (Mt 12.28; 11.27; 10.32; 26.63ss). las árvores sagradas e pelas fontes. A
pedra
Com sôbre a qual Jacó adormeceu em Betei e que
especial evangelho de João
nitidez o
erigiu em memória da aparição de seu Deus
declara que Jesus é em verdade o que não são
os demais: o Filho de Deus (Jo 8.41-47) e (Gn 28.11-22) é uma de tantas pedras que con-
que, por meio do Unigénito, vida nova se abre
tinuam de pé na terra de Canaã. O exemplar
à humanidade (Jo 3.14-16; 12.31; 16.23). mais formoso conservado até hoje é o lugar
santo da cidade de Guezer, a sudoeste da Pa-
Em Paulo, a imagem do homem é descrita lestina, com seu alinhamento de pedras sagra-
sempre e exclusivamente em função de Jesus
das, bem impressionante mesmo para nós que
Cristo o homem pecador, alienado e decaído,
:

ignoramos a que data da pre-História perten-


é visto em confronto com o Filho do Homem,
contemplado no espelho do homem ideal que cem. O episódio de Jz 6.25-32 menciona um
devia ser a realidade nossa; também em Jesus exemplo típico dos postes-ídolos, representações
Cristo pinta-se-nos o homem —>
nôvo, ontem
pecador, agora colocado em face de uma vida
de madeira. As representações humanas ou ani-
mais parecem ter sido desconhecidas em Canaã,
pois, depois das impressionantes e repetidas es-
nova à imagem de Deus (Rm 8.29; 2Co 3.18).
cavações, ainda não apareceram testemunhas
Jesus Cristo é o tipo, o representante, mais
fidedignas ;tudo que se achou é material evi-
ainda, o primogénito, as primícias da humani-
dentemente egípcio, importado pelos conquista-
dade renascida de conformidade com o desíg-
dores.
nio do Criador (ICo 15.20-23; Cl 1.18; Ef
4.15-16). 2. Nas raras narrações do VT mencionando
ídolos no culto de Iavé, não está ausente a nota
O nôvo tipo de homem, revelado e tornado
de reprovação embora não pareça ser primitiva.
possível em Jesus Cristo, é a obra do Espírito
Santo. O —>
Espirito nos é infundido para
declarar-nos que não somos mais escravos, mas
Por exemplo, os dois grandes bezerros de ouro
erigido por Jeroboão em ambos os templos do
norte e do sul de seu país (lRs 12.26-33), apa-
filhos de Deus não somos mais condenados à
;

morte, mas prometidos à vida eterna, à ressur-


rentemente não causaram espécie entre os israe-
litas contemporâneos, muito pelo contrário. O
reição e ao reino de Deus (Rm 8.16-17). O
espírito de Deus é quem cria no homem a vida
bezerro de ouro do deserto (Ex 32. 1-6 ^cons-
truído por Arão, só foi reprovado vários sé-
nova, transformando-o de glória em glória, co-
culos depois. Nestes bezerros os críticos sus-
locando-o perante Deus na sua verdadeira situa-
peitaram durante muito tempo uma influência
ção de filho (Lc 20.36; Jo 1.12; 8.14). Rm
«gípcia. Os paralelos sírios que hoje possuímos
Ser plenamente filho de Deus, eis, de fato, a
realização e a plenitude da personalidade hu-
indicam outra coisa. O bezerro não representa
mana, a perfeição autêntica tornada possível de forma alguma a divindade, como no caso
por Jesus Cristo. do Egito, mas êle é o trono sôbre o qual tro-
veja o deus. Resulta assim compreensível que
H. MEHL-KOEHLEIN os contemporâneos não repugnassem tais figu-
ras, mas as considerassem como obras de arte
ÍDOLOS que enfeitavam e modernizavam o santuário.
Todavia, para a gente simples o bezerro repre-
VT sentava em verdade a Deus. Na História de
1 .Parece que, primitivamente, não existiam Mica (Jz 17-18) relata-se-nos como uma ima-
representação da divindade entre os semitas, se- gem de escultura (e outra de fundição) foi
dentários ou nómades. Os semitas da Mesopo- roubada e levada ao santuário de Dan, ao norte
tâmia, porém, costumavam adorar as montanhas, do país. Verossimilmente ela tinha a forma de
as fontes, as árvores, e até blocos de pedra. Não bezerro. Êstes exemplos provam que houve ído-
constituíam estas coisas qualquer representação los de Iavé, embora considerados com certa
da divindade, mas os deuses encarnavam-se ne- reprovação e excepcionais.
ÍDOLOS 137

3. Houve ainda outros ídolos que chamaremos rendido ao bezerro de ouro, mencionam-se só
de os "deusinhos" familiares. Ignoramos qual danças c júbilos (Ex 32) perante a imagem.
foi a sua forma, mas o YT documenta-nos Em outras ocasiões, porém, presenciamos cuida-
acerca de seu comprimento. Raquel furta os dos tenros dedicados ao ídolo. Quando Jacó, em
terapkim de seu pai Labão e esconde-os na sela Betei, erige seu memorial de pedra, derrama
de seu camelo assentando-se sobre eles (Gn azeite sóbre ela (Gn 28.18). Consta que alhu-
31.31-35); em compensação, Mical, filha de res beijavam os ídolos (lRs 19.18; Os 13.2),
Saul, deita seu teraphim na cama para deixar uso cuja existência nos é até hoje testemunhado
crer que Davi seu esposo está acamado (ISm no santuário de Guezer uma das pedras eri-
:

19.11-17) quando acaba precisamente de lhe gidas, a menore talvez a mais santa, ficou qua-
facilitar a fuga. Era pois bem variado o tama- se polida pelos beijos dos fiéis. Os nossos tex-
nho destes ídolos. As escavações de Palestina tos nada dizem no tocante ao culto dos deusi-
entregaram-nos uma grande quantidade de esta- nhos domésticos.
tuetas de mulheres nuas e outras que permitem Na
guerra contra os ídolos adorados em Is-
imaginar o que eram os "deusinhos" domésti- rael,parece que, de início, condenavam-se ape-
cos que os israelitas guardaram certamente du- nas os ídolos de fundição, feitos com maior es-
rante muito tempo. mero e de material mais precioso (Ex 34.17).
4. Se exceptuarmos esses deusinhos familia- Muito mais tarde, uma condenação radical atin-

res, podemos afirmar que o iavismo alimentou giu tôda e qualquer representação considerada
reserva e mesmo aversão para com as represen- como idolátrica, e mesma todas as representa-
tações humanas e animais. Estas introduziram- ções proibidas do Deus verdadeiro (Ex 20.4;
Dt 4.16,23; 5.8; 7.25 etc).
se possivelmente sob influências cananéias as- ;

sim se explicaria sua reprovação, cada dia mais


G. NAGEL
generalizada, nos círculos dos fervorosos que
pregavam a volta à simplicidade do culto primi-
NT
tivo dos dias do deserto. Mais tarde os ídolos 1. "ídolos" designa, no Nôvo como no Velho
penetrarão novamente na religião de Israel, de- Testamento, as divindades pagãs e suas repre-
vido a influência estrangeiras e sob formas ar-
sentações. Os ídolos são vazios, não contêm
tísticas as mais refinadas. então a
Iniciou-se
nenhuma realidade : nada se compara ao Deus
luta contra os deuses estranhos porquanto o
povo reconhecia-lhes um poder antagónico ao vivo, que fêz os céus e a terra, o mar e todos

poder de Iavé. Mas somente depois do des- os sêres (At 14.15; Gl 4.8), ao Deus vivo e
têrro aparece a afirmação categórica de que verdadeiro (lTs 1.9; ljo 5.20-21). Os ídolos
os ídolos não passam de pedaços de madeira, são mudos, não formam o verdadeiro interlo-
de pedra ou de metal, não sendo de forma algu- cutor do homem e deixam sem resposta a seus
ma verdadeiros deuses. Coincide com esta época servidores, abandonando-os em sua solidão. Os
o monoteísmo autêntico e absoluto de Israei. pagãos deixam-se arrastar a êles, levados pelo
Outros deuses rivais de Iavé já não reinam obscuro instinto religioso, comum a todos os
sobre as regiões fronteriças ou as nações (por povos, ao azar dos usos e costumes (ICo
ex. "Kemosh é o deus de Moabe, como Iavé é o 12.2).
deus de Israel" Jz 11.24). Pois a êstes não se
idolatria, uma explicação
Paulo deixa-nos, da
lhes presta já realidade alguma. Iavé é o Deus
digna tôda a atenção (Rm 1.18-25). A
de
único; os deuses dos impérios mais poderosos
idolatria não é, como acreditam muitos, uma
são apenas vulgares tocos de madeira. Os pro-
fase primitiva ou uma infância da religião, evo-
fetas não poupam os sarcasmos a tais preten-
luindo progressivamente para formas superio-
sos deuses de pau, incapazes de nada (Is 40.
res, espiritualistas e monoteístas pelo contrá- ;

19-20; 41.7; 44.12-20; etc), repertório do qual


rio, ela é o ponto de chegada de uma queda, a
os Padres da Igreja tirarão seus argumentos
perversão do conhecimento original e autêntico
na guerra aos ídolos de seu tempo.
de Deus. Deus faz resplandecer, realmente nas
A Bíblia conta que Ezequias fêz em pedaços suas obras, suas perfeições divinas invisíveis,
a serpente de bronze, chamada Nehastan que
seu poder eterno e sua divindade mas os ho- ;

Moisés fizera, porque queimavam-lhe incenso


mens, depois de conhecer a seu Criador, de-
os filhos de Israel (2Rs 18.4). Os cananeus
pois de terem sido postos enquanto criaturas na
possuíam imagens culturais de serpente; o con-
presença de Deus, recusaram orgulhosamente
tato prolongado com êles originou, aparente-
glorificá-lo como Deus e dar-lhe graças em ;

mente, êste ato de idolatria entre os israelitas,


outros têrmos, negaram-no comoseu Deus.
pois o texto indica claramente que Ezequias
quis debelar uma verdadeira idolatria.
ignorando que a vida é uma dádiva recebida de
sua mão (Ver ICo 1.21). Negando serem cria-
5. Os ídolos, imagens sensíveis da divindade, turas de Deus ("Sereis como deuses" do Gn
recebiam as honras devidas a um deus. No culto 3.5), romperam e corromperam a relação única
:

138 IGREJA

sobre a qual c possível o conhecimento verda- ticipar dos banquetes de sociedade ordinària-
deiro de Deus, e caíram nas extravagâncias e mente precedidos de um ato ritual (ICo 8.10)
confusões pecaminosas da idolatria. e, portanto, revestidos na aparência de certo
caráter cultual. Não faltaram cristãos, "os
2. Precisamente por esta razão (a idolatria fortes", para comprar e comer sem escrúpulo
não é uma religião primitiva em via de ascen- tais carnes. "Os ídolos de si mesmo nada são",
são, mas essencialmente uma religião perverti- diziam êles, portanto não podem contaminar.
da), a crítica racional nunca poderá vencer a Mas outros, "os fracos", tropeçavam levados
idolatria. Atenas, capital da razão e dos filó-
pelo exemplo e as ponderações dos fortes, co-
sofos, está cheia de ídolos (At 17.16). A miam e "sua consciência, por ser fraca, vinha
idolatria será vencida exclusivamente pela re-
a contaminar-se". Paulo, teoricamente, dá razão
velação de Deus em Jesus Cristo Para os "para nós há um só Deus e um
.
aos fortes :

Gálatas, a idolatria pertence às coisas passadas


só Senhor a terra com tudo quanto encerra
;

e superadas, pois agora êles conhecem a Deus.


é do Senhor convém portanto não preocupar-se
;

ou mais exatamente (consta que nada devem


com a proveniência das carnes servidas na
às luzes emanadas da razão!), são conhecidos
mesa (ICo 10. 25-27) e comer de tudo com
de Deus, porquanto Deus se aproximou deles
ações de graça (ICo 10.30). Todavia, a êstes
declarando-se o seu Deus em Jesus Cristo (Gl
rortes opõe Paulo dois argumentos bem sérios
4.8-9).
a) Os ídolos nada são, porém expressam a
Coisa passada também para os coríntios ! Os realidade tangível escondida atrás êles, os de-
coríntios aprenderam, pelo Espírito de Deus, a mónios, os quais dêles se valem para desviar o
confessar que 'Jesus é o Senhor' (ICo 12.2-3; culto devido ao Senhor. Impossível, pois, par-
ver 6.9-11). No entanto, e sempre pela mesma ticipar frivolamente da mesa dos demónios, sem
razão, a idolatria não é, como presumem alguns, que os zelos do Senhor despertem (ICo
um risco definitivamente superado para o cren- 10.14-22). b) Sobretudo, é preciso não escan-
te ela reaparece cada vez que o crente es-
:
dalizar e induzir a pecado os fracos. Não é
quece a soberania e a graça de Jesus Cristo. justo que "por causa do teu saber, pereça o
Paulo coloca-a expressamente na lista de peca- irmão fraco, pelo qual Cristo morreu" (ICo
dos contra os quais devem ser alertados os 8.11) fazer ostentação dêsse saber superior e
:

cristãos (Gl 5.20; IPe 4.3); ela renasce co- dessa fé esclarecida resulta pois na ruína da
mumente sob a forma da cupidez, da sede insa- comunidade. E Paulo conclui firmemente "Se :

ciável de possuir (Ef 5.5; Cl 3.5): Mamon a comida serve de escândalo a meu irmão, nun-
é o ídolo-tipo impossível serví-lo ao mesmo
; ca mais comerei carne" (vers. 13).
tempo que a Deus (Mt 6.24). A
idolatria sem-
Cumpre observar que a argumentação de
pre está a irromper novamente quando, orgu-
Paulo usou-se sempre, com muita razão, na
lhosos de
sua e nova fé dadaslibertação luta anti-alcoólica e outras, cujos problemas
superstições antigas, os coríntios gabam-se de se nos apresentam em têrmos análogos.
sua força e imiscuem-se na atmosfera das ce-
rimónias pagãs, pois estas os contaminam (ICo
CHR. SENFT
10.6,14; ver mais abaixo § 3).
OApocalipse previne-nos contra um perigo
específico de idolatria o culto da Besta e da
:
IGREJA
sua imagem (Ap 13.14-15; 14.9-11; 15.2; A
1 . palavra "Igreja" e seus sinónimos. As
etc), deve ser entendido como o culto do im-
Escrituras designam a Igreja ora com o têrmo
perador romano representado em suas imagens
cultuais, o culto do Estado e do chefe-encar-
grego ecclesia (do qual o nosso igreja é um
simples decalque), ora com expressões figura-
nação do Estado. Sob pretexto de lealdade e
de o Estado totalitário e seu chefe
civismo,
das. O mundo helénico entendia por ecclesia
as assembléias, regularmente convocadas, de de-
divinizado, usurpando o lugar de Senhor e
terminados grupos sociais, e mesmo de todo
Providência, exigem culto e sujeição total: ne-
nhum cristão deve prestá-lo, mesmo quando sua o povo (ver At
19.39-40). Os gregos não
davam ao têrmo qualquer significação religiosa
fidelidade ao único Senhor, Jesus Cristo, lhe
e, para designar suas reuniões cultuais, usavam
deva custar a vida (Ap 20.4).
outras palavras, das quais nenhuma foi ado-
3. Um
problema particular surgiu a propósito tada pelo NT
para qualificar a Igreja. pa- A
das carnes imoladas aos ídolos (At 15.29; lavra ecclesia, formalmente grega, tem no en-
ICo 8.1-11; Ap 2.14,20). Vendia-se no mer- tanto, suas raízes significativas na tradição
cado público carne provinda dos sacrifícios judaica. Entre os judeus usava-se um têrmo
(ICo 10.25) ocorria que pagãos convidassem
; cujo significado geral é "convocação", exata-
seus amigos ou familiares cristãos e servissem mente como ecclesia para os gregos no en- ;

esta carne; cristãos viam-se na ocasião de par- tanto, o têrmo hebraico tinha uma vibração
; ;

IGREJA 139

bem religiosa em virtude de ser Deus o convo- comportamento pagão, anunciando castigos e de-
cante. O povo escolhido denominava-se "con- sastres. Isaías declara que apenas os verdadei-
vocação de Deus =
Igreja", ressaltando-se assim ros fiéis acederão às promessas de Deus, ape-
que êle deve sua existência à divina convoca- nas "o —> —
remanescente" da grande apostasia
ção (= vocação eleger). Da mesma for- será chamado > santo, isto é, reconhecido
ma, na nova aliança, a Igreja é a assembleia como o povo de Deus (Is 4.3; 10.21). Jere-
dos crentes constituída pelo apêlo de Deus em mias anuncia a vinda de dias em que Deus
Cristo; ela é, portanto, Igreja de Deus ou celebrará uma "nova aliança" com o seu povo
Igreja de Cristo. O acento da palavra ecclesia (Jr 31.31-34).
é sempre positivo salienta o conceito de con-
:
Ambas as idéias, de "remanescente" ou "res-
gregação dos que obedecem ao apêlo divino tos de Israel", e de "nova aliança", firmam-se
nunca é negativo a Igreja não é simplesmente
:
cada vez mais nos séculos post-exílios, alimen-
uma congregação de homens tirados fora do tando a esperança messiânica. O libertador, es-
mundo. A Igreja tem por missão estar pre- perado para o fim dos tempos, receberá missão
sente no mundo para transmitir-lhe o chamado de reagrupar em torno de si os autênticos fiéis,
de Deus não pode ausentar-se do mundo. Por
;
em uma comunidade distinta do povo incrédulo.
definição, ela é uma instituição totalmente con- Notemos a éste vários fatos caracte-
respeito
trária à seita farisaica.
rísticos : a visão de Daniel (Dn
A) segundo
O NTdefine a Igreja exclusivamente em re- 7,13-27), o Filho do Homem representa "o
lação à obra redentora realizada por Deus em povo dos santos do Altíssimo" e aparentemente
Jesus Cristo e tornada visível nos frutos dos identifica-se com êle; B)
no segundo século

crentes os crentes incorporam-se, enxertam-se
: antes de Cristo, aparecem em
pleno judaísmo
em Deus e em Jesus Cristo, fundindo-se em um agrupamentos como esta "Comunidade da Nova
só corpo, em uma unidade inteiramente orde- Aliança", nascida na Palestina e logo dester-
nada a Deus e a Jesus Cristo. Fusão que ex- rada a Damasco. Os documentos do Mar Mor-
plica bem
o fato seguinte embora apareça ra- : to atestam a importância de tais comunidades
ramente o têrmo ecclesia nos escritos neo-tes- C) no limiar do Evangelho, João, o Batista,
tamentários (presente apenas num evangelho, prega o arrependimento aos filhos de Abraão e
ausente em oito epístolas), a mesma realidade oferece seu batismo a todos, mesmo aos já
da Igreja está constantemente em todas as circuncisos, declarando-lhes que não basta per-
suas páginas, expressa mediante imagens que tencer ao povo escolhido ou levar a marca da
ilustram perfeitamente a definição da Igreja tal circuncisão para que o Messias prometido re-
como acabamos de formulá-la. estudo da Um conheça em todo israelita o bom trigo, digno de
Igreja não deve, portanto, considerar apenas o entrar nos celeiros celestiais.
vocábulo ecclesia, mas meditar e analisar ex- As "remanescente" e de "aliança
pressões tais como o povo de Deus, a
de Deus, a —>
casa
edificação (edifício) de Deus,
—> idéias de
nova" devem-se evidentemente à mensagm
profética, como bem o denota o fato de elas
a lavoura de Deus, a vinha de Deus, nada terem de fanatismos sectários elas não :

a verdadeira videira, o rebanho cujo significam que a salvação seja um privilégio


—> pastor é Deus ou Cristo, a esposa de de alguns poucos escolhidos anunciam, pelo
;

Cristo, o corpo de Cristo, etc. Encontraremos contrário, que o povo de Deus é formado nova-
êstes títulos ao estudar a realidade e a teologia mente a partir desse resto, mediante uma nova
da Igreja através dos depoimentos da Escritura. aliança firmada pelo libertador anunciado. O
Salvador e a comunidade, que se formará em
2. A
realidade da Igreja, a) Velho Testa-
torno dêle, levarão a salvação a um grande
mento as expressões "a Igreja de Deus" ou
número. A idéia judaica de resto ou de rema-
:

"a Igreja de Israel" designam o povo eleito da


nescente possui, como a idéia cristã de Igreja,
aliança, instrumento humano da História da um sentido inclusivo e não exclusivo.
salvação. Deus no monte Si-
aliou-se a Israel
nai. O povo preferido dentre todas as nações b) Jesus: a dupla idéia de comunidade e de
para publicar o nome de Deus (Ex 19) é esta aliança domina tôda a pregação de Jesus. Je-
"Igreja tôda dos filhos de Israel, homens e sus mesmo apresenta-se como o Filho do Ho-
mulheres, meninos e estrangeiros que andam mem que veio para buscar e agrupar em seu
com êles" (Js 8.35). Originariamente a comu- redor o povo de Deus reconstituído para o
nidade religiosa confundia-se com a comunidade Reino de Deus próximo. Não se contenta com
civil ambas eram constituídas pela mesma
; ensinar às turbas mas se liga estreitamente a
;

aliança e governadas pela mesma lei. Mas, no um círculo privilegiado de discípulos, dos quais
transcurso dos séculos, a infidelidade de muitos, os Doze são o centro e formam sua "família"
violando a Lei e a aliança, quebra esta_^uni- (Mc 3.33-34; ver Ef 3.15). esta "pequenaA
dade. Os profetas multiplicam as advertências grei" (Lc 12.32; Mt 26.31; Jo 10.1-18) o
aos israelitas seduzidos pela idolatria e pelo Pai dará o —>
Reino. Para designar os "seus"
:

140 IGREJA

e para definir-lhes as relações que haverão de uma herança recebida do judaísmo, como já
ter com Deus e com êle mesmo, Jesus lança anotamos.
mão de outra imagem, também vetero-testamen- c) A Igreja de Jerusalém tôdas as coisas
:

tária, a imagem da edificação ou do Templo.


anunciadas e prefiguradas nos dias de Jesus te-
O nôvo templo a ser edificado por Cristo (Mc
13.2; 14.58. Ver —>
Templo) é a comu-
nidade dos que nêle crêem, a qual será usada
rã ;o de realizar-se historicamente depois da res-
surreição e do Pentecoste. A pregação apos-
tólica terá, por consequência, uma novidade
por Deus para manifestar sua presença entre os
homens. Será com sua morte que Jesus rea-
inaudita : suscitará uma realidade teológica e so-
ciológica sem precedentes, pois reunirá "ir-
lizará sua obra profèticamente anuncia sua
:

mãos" (At 1.15, etc), "crentes" (At 2.14.


morte próxima, sua ressurreição e seu retorno
etc), "discípulos" (At 6.1, etc), "proclama-
à glória do Pai. Anúncio êste que receberá
dores do nome de Jesus" (At 2.22, 9.14, etc),
da instituição da Santa Ceia ( Eucaristia) —> numa palavra, "a Igreja" (At 5.11; 8.3, etc).
o seu significado integral
será
a morte de Jesus
morte expiatória seu sangue derramado
;
:

A Igreja levanta-se como o povo de


Deus, como prolongamento do Israel da antiga
—>
criará nova aliança em substituição à aliança aliança, pois em Jesus cumpriram-se as pro-
do Sinai os discípulos, por sua vez, deverão
;
messas (At 2.25, etc), mediante o Espírito
renovar êste ato máximo da comunhão, a San- (At 2.16-17), Levanta-se, todavia, em atitude
ta Ceia, e anunciar o Evangelho por todo o
de cisma com o judaísmo incrédulo: cisma ape-
mundo, até que o Mestre venha com poder e nas aparente, porquanto, na realidade, são os
glória (Mc 13.10). Em outras palavras, é a
judeus que deixam de ser o povo de Deus, por
missão terrestre de Jesus, em particular sua
sua contumácia na incredulidade. A Igreja
morte e ressurreição, que formará a Igreja, co- distingue-se do judaísmo apenas porque con-
munidade de fiéis destinada a durar e estender-
fessa como "Senhor e Cristo" a êste Jesus que
se no lapso histórico que vai do primeiro ad-
os judeus crucificaram (At 2.24, etc). Esta
vento de Jesus até sua aparição gloriosa nos
confissão, no entanto, é a marca da autenti-
últimos dias. Mesmo quando a falta de nome
cidade do nôvo povo de Deus.
a Igreja designada apenas sob as imagens de
Entra-se na Igreja pela fé em Cristo, pelo
um rebanho, de um edifício ou do templo, a
batismo no seu nome, pela recepção do Espírito
idéia de Igreja ocupa o centro dos pensamentos
(At 2.38). Em Jerusalém e alhures, todos são
de Jesus, motivando todos os seus atos e tôda
batizados com seus descendentes e família (At
a sua pregação o nome de "Filho do Homem"
2.38). A Igreja vive na espera da volta de
:

reivindicado por Jesus (e que, na tradição


Cristo, anunciada para o fim dos tempos (At
judia, bem como na mente de Jesus, é insepa-
3.20-21). Mas, no intervalo, os apóstolos e, em
rável da comunidade dos últimos dias), a vo-
breve, muitos outros com êles, trabalham para
cação dos discípulos, a instituição da Eucaris-
firmar a Igreja mediante seu ensino, e difun-
tia, a missão dos apóstolos, as parábolas e
di-la mediante suas missões (At 6-11), enquan-
profecias.
to que os fiéis dedicam-se à vida renovada (At
Nesta perspectiva, os dois textos em que
2.42, etc.) cujo centro é a comunhão no sen-
Jesus emprega a palavra Igreja, deixam de
tido específico, a Santa Ceia (Eucaristia, At
parecer isolados. Conforme Mt 16.16-18, Je-
2.46 etc).
sus, contestando à confissão de Pedro, declara
Todos êstes traços conferem à Igreja uma
que sôbre o mesmo Pedro edificará a sua Igre-
grandeza histórica e escatológica sem paralelo
ja. Não há nada mais conforme com a ati-
ela aparece como o povo de Deus reconstituído
tude geral do Senhor sempre há vocações pes-
:

soais, quer a Pedro, quer a Paulo. Jesus deve


em Jesus Cristo, e não como uma sinagoga
entre tantas outras. Êste povo aparece p*e
reinar sôbre um povo e êste povo será for-
sente nos lugares mais diversos, em Jerusalém
mado por sua Igreja, pela Igreja nascida da
(At 8.1; 9.31; 11.22), na Galiléia e na Sa-
sua redenção e da efusão de seu Espírito sô-
maria (At 9.31), em Antioquia (At 11.26;
bre os apóstolos. (Consultar acêrca dêste tex-
13.1, etc), na Síria e na Cilicia (At 15.41), e
to O. Cullmann, Saint Pierre, disciple, apòtre,
alhures ainda devido às missões paulinas (At
martyr, Xeuchâtel et Paris, 1952, pp. 143-191).
15.5, etc). Em todos êstes lugares, êste povo
No texto de Mt 18.16-17 ("Se teu irmão pe-
é a Igreja na plenitude da sua significação.
car, vai argúi-lo..., se não te ouvir, dize-o à
Igreja"), a palavra Igreja significa a assem-
A dispersão da Igreja, longe de alterar seu
caráter, confirma sua qualidade de povo de
bléia fraternal local, sinagoga judia dos tem-
Deus destinado a estender-se, como a pregação
pos de Jesus ou comunidade cristã da era
evangélica, desde Jerusalém até os confins do
apostólica. Não tem aqui qualquer sentido es-
mundo (Ver At 1.8).
pecífico como no texto precedente. Confirma-
se porém, com êste exemplo, que a palavra d) Paulo. Paulo tem, da Igreja, a mesma
Igreja não é uma criação do cristianismo mas visão que os apóstolos de Jerusalém. Para
IGREJA 141

ele também, a Igreja é o povo que Deus con- manifesta-se doravante com o "Senhor" ao
grega em Jesus Cristo, e cujo ponto de partida qual foi dado todo o poder e tóda a soberania.
histórico está em Jerusalém (At 8.1; 9.31;
11.22), ai precisamente onde Cristo foi pregado
e) Ensino de João: A
palavra Igreja não
se encontra nos escritos joaninos, mas a reali-
e crido pela primeira vez (Rm 15.19). Daí dade da Igreja transparece em cada página. Os
em diante, onde quer que penetre a pregação discípulos que o Cristo do quarto Evangelho
apostólica, a Igreja surge à existência. Paulo, reúne durante seu ministério são os primeiros
entrando no apostolado, pregará o mesmo evan-
gelho que seus antecessores no ministério
elementos da "grei única" do "verdadeiro
pastor": Jesus reunirá as ovelhas de Israel e
>
(ICo 15.11; Gl 1.17). A mensagem salvadora "também as que não são dêste redil" também
é destinada a todos, judeus e pagãos (Rm "por aquêles que vierem a crer por intermédio
1.16, etc.) todos quantos crêem no mesmo Se-
;
de sua palavra" (Jo 17.6) pois Jesus sabe
nhor Jesus Cristo formam uma Igreja única de
muito bem que, uma vez glorificado, atrairá a
judeus e gentios (Ef 2.11-22).
si todos os homens (Jo 12.32). Roga para que
Como no Livro de Atos, as Epístolas de
Paulo dão o nome de "Igreja" ao povo de
todos sejam —>
um, como o Pai e o Filho
são um (17.20-23). Esta unidade é repre-
Deus em sua totalidade, embora concretamente
parcelado em pequenos grupos e geografica-
sentada pela imagem da —>
videira: como os
ramos vivem apenas quando unidos ao tronco,
mente dispersado em muitos lugares. Êstes gru-
assim a comunhão com Cristo faz dos fiéis um
pinhos receberão também, cada um, o nome de
só organismo, o qual tira desta união vital a
"igreja"; assim, os crentes de Corinto são a
força para crescer e frutificar (Jo 15) Esta .

"Igreja de Deus que está em Corinto (ICo


idéia é equivalente à doutrina paulina de Igreja,
1.1-2) êles constituem, em terra pagã, a mes-
:

corpo de Cristo e a "grei única" traduz o


;

ma e única realidade que existe já entre os mesmo ensino desenvolvido por Paulo acêrea
judeus de Palestina e que Paulo perseguia an-
da Igreja única, congregando judeus e gentios.
tes de converter-se (Gl 1.13; ICo 15.9). Em
Paulo lemos constantemente "as Igrejas de
Acerteza de que a Igreja deve a Cristo sua
existência, sua unidade e sua universalidade,
Deus", em forma plural (lTs 2.14; Gl 1.22;
expressa-se ainda mediante outras imagens,
ICo 16.1; 2Co 8.1), coisa desconhecida em
mencionadas antes como sinónimas de Igreja:
Atos. O apóstolo menciona Igrejas locais e consultem-se os textos que fazem da Igreja a
provinciais (Rm 16.1; lTs 1.1; Cl 4.16, etc).
até mesmo Igrejas domésticas (ou seja de tal esposa de Cristo (Jo 3.29; 2Co 11.2; Ef
5.32-33; Ap 21.2,9; 22.17) ou o edifício cons-
casa particular: ICo 16.19; Cl 4.15, etc).
truído sobre a pedra angular, Cristo (IPe
Mas "todas as Igrejas" (Rm 16.16; ICo 7.17;
2.6-7; ICo 3.9; Ef 2.20).
etc.) são realizações vivas da única "Igreja",
o plural indicando apenas a multiplicidade de 3. A teologia da Igreja. Esta breve resenha
lugares nos quais existe a Igreja, devido a histórica autoriza-nos a formular as teses se-
dispersão geográfica dos crentes êstes vivem,
;
guintes, síntese do pensamento comum aos au-
de fato, isolados uns dos outros nas províncias tores do NT.
do império e nos bairros das urbes.
A despeito desta dispersão, a Igreja é uma a)Dejinição da Igreja. A
Igreja é o povo
de Deus, o povo da nova aliança, formado por
e sua unidade é sublinhada por Paulo com ex-
homens de tóda raça e língua que, com sua fé
pressões totalmente originais. A Igreja forma em Jesus Cristo, correspondem à pregação do
um só corpo (ICo 12.12-13; Rm 12.5-6, etc.) .

Evangelho. A
Igreja, por ser o povo que Deus
sua cabeça é Cristo e os crentes são seus mem-
bros (Cl 1.22-24; Ef 1.22-23, etc.) expressão,
:
ajunta a Cristo, participa da unidade do seu
para Paulo, de profunda realidade, não simples Senhor. Há um só Deus, um só Senhor, uma
figura. A
Igreja é o organismo pelo qual Cris- só Igreja (Ef 4.1-6), que é a Igreja de Deus
to vive na humanidade, presente e ativo, du- ou de Cristo. A
Igreja não pertence aos cren-
rante todo o lapso que vai desde a ressurreição tes. "Minha Igreja" ou "nossa Igreja" são
até a parusia. Cada vez que os crentes se con- expressões vazias de sentido na perspectiva do
gregam para d culto, em presença de seu chefe, NT.
e celebram a Santa Ceia (ICo 10.16-17), toma b) Composição da Igreja. Deus em pessoa
forma o corpo de Cristo. congrega sua Igreja, com sua palavra, tornada
Ambas as expressões "corpo de Cristo" e eficaz em
virtude de, o Espírito obrar através
"Igreja de Deus" significam, reunidas, tudo da pregação apostólica. Em
consequência, de-
quanto a Igreja é aos olhos de Paulo: ela é nominam-se os fiéis com nomes alusivos a esta
o Israel que Deus reúne sobre o fundamento ação de Deus incorporando-os à Igreja: êles
da confissão de fé em Jesus, Senhor e Cristo; são "os chamados" (Rm 1.6), "os santos" (At
pois Cristo é quem realiza as profecias da 9.13; Rm
8.27), "os santificados em Cristo
antiga aliança e quem, mediante seu povo, Jesus" (ICo 1.2), "os que creram" (At 2.44).
.

142 IMAGENS

Êles pertencem Igreja a partir do instante


à ca-se somente às imagens cultuais. Não há in-
em que creram receberam o batismo em nome
e dício de proibição das representações profanas.
de Jesus ( —>
batismo) não há crente que
:

não seja batizado (At 2.41; 10.48; Gl 3.27).


O depoimento irrecusável das escavações ar-
queológicas na Palestina coincide ao negar a
Pelo batismo o crente se une ao Cristo morto israelitas e cananeus qualquer paixão específica
e ressurreto, torna-se beneficiário da obra re- pelas artes. Foram encontradas em quantidades
dentora, membro do corpo e ovelha da grei, impressionante estatuetas figurando deusinhos
participante dos dons do Espírito, renascido familiares, e outras de nenhum interesse, incen-
para uma vida nova (Rm 6.2-11; Jo 3.2-16). sários e candelabros adornados com figuras de
A Igreja é o lugar onde o cristão perseguido animais e de divindades ( ?). Na Samaria e em
permanece fiel (At 2.42) é na Igreja que ;
Jericó, descobriram-se preciosas peças demar-
pode crescer a nova criatura, por obra do Es- fim que eram partes decorativas de móveis tal-
pírito Santo (ICo 3.1, etc). O batismo, assim vez régios foram desenterradas também gran-
;

como une os crentes a Cristo, também une uns des séries de personagens e criaturas compó-
aos outros todos os que foram batizados em sitas cuja arte revela influências estrangeiras,
nome do mesmo Senhor e chamados a viver em Esteias que remontam
particular egípcias.
juntos a mesma vida espiritual: na Igreja, vi- à maior antiguidade não são tributárias da
rão a ser "um coração e uma alma" (At 4.32) arte indígena, mas foram talhadas por egípcios
"levando as cargas uns dos outros" (Gl 6.2). estabelecidos na Palestina, por soldados ou ad-
Numa palavra, a vida dos fiéis é comunitária e ministradores (p. ex. as esteias de Beisã).
desenvolve-se na Igreja.
2. Ocasionalmente certos textos do VT men-
Missão da Igreja. Embora viva no mun-
c) cionam imagens e representações diversas. Em
do, a Igreja não é do mundo (Jo 17.14-15). primeiro lugar, os querubins (que não se devem
Ela proclama sua fé no Senhor que se encar- confundir com os querubins-anjos. Ex. 25.18-
nou, que reina e que há de vir (Fp 2.6-11; -22; 37-7-9; lRs 6.23-28), colocados sóbre a
3.20-21, etc.) Anuncia ao mundo o
. Evan-
gelho da salvação que Deus oferece em Jesus
—> tampa ou propiciatório da Arca e no santo dos
santos. Não se nos dá qualquer descrição de-
Cristo (At 1.8; Rm 10.14; Jo 17.18). E, pes- les sabemos contudo que eram considerados
;

soalmente, dá a prova do poder do Evangelho, como o trono da divindade ("tu assentas sobre
vivendo na unidade e na caridade (ICo 1.13; os querubins", 2Rs 19.15; Is 37.16; SI 18.11;
Jo 17.21-23; 2Co 5.14; Jo 13.34-35). 80.8; 99.1) e representados sob forma humana
Enfim ( a Igreja é o meio com o qual Deus com aditamento de asas. Desenterraram-se no
continua e leva a seu termo a obra da reden- Egito deusas com esta forma, (em particular
ção, foi profetizada na aliança antiga e reali- nos quatro cantos de sarcófagos com as asas
zada agora em Jesus Cristo. A Igreja é a estendidas sóbre o morto). Os querubins bí-
presença de Cristo entre os homens até a con- blicos, verossimilmente, não eram formas intei-
sumação dos séculos. ramente humanas, mas elementos animais e
humanos combinados em conjunto bastante he-
Ph.-H. MENOUD teróclitos, como os achamos alhures.
IMAGENS O VT menciona ainda outras imagens. Na
decoração das paredes interiores do Templo apa-
VT recem, motivos geométricos e florais,
entre
semi-homens e semi-animais (lRs

1
Aspecto do culto idolátrico
Quem lê o VT
— > ÍDOLOS
superficialmente, tem a
criaturas
6.29-35; Ez 41.18-20). O Livro dos Reis é
.
muito parco de detalhes mas Ezequiel, na sua
;

impressão de que existia entre os israelitas, famosa visão, é bem explícito comprazendo-se
para qualquer representação de seres animados, em descrever esta decoração que, embora vista
a mesma instintiva repulsão que muito mais por um visionário, deve ser substancialmente
tarde encontramos entre os puritanos da orto- fiel. Os sêres de Ezequiel são compósitos, se-
doxia islâmica. Um
exame mais minucioso di- mi-humanos, semi-animais. A
arte mesopotá-
ta-nos uma conclusão mais matizada. Nas mica legou-os uma grande abundância de seme-
épocas mais remotas não existia de maneira lhantes figuras génios guardiães das portas
:

alguma a severa reprovação que posteriormente de templos e palácios. Oriundas provàvelmente


caracteriza o término da evolução religiosa de da Síria setentrional, estas talhas foram apreen-
Israel. O mandamento de Ex 20.4-5: "não fa- pidas pelos moradores do Tigre e do Eufrates,
rás para ti imagem de escultura, nem seme- e logo pelos israelitas e egípcios. As figuras
lhança alguma do que há em cima nos céus, de marfim encontradas em Megido e na Sama-
nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo ria oferecem a mesma extravagância e parecem
da terra. Não te inclinarás diante delas nem fortemente influenciadas pelo Egito. As pare-
lhes darás culto" —
é de data recente e apli- des do Templo pareciam animadas por êste es-
:

IMAGENS 143

tranho inundo no qual enlaçavam-se fantastica- divina a u'a mera semelhança de caráter moral.
mente homens, pássaros, leões e sem dúvida Perdendo de vista a simplicidade da afirmação
réptis. Evidentemente estas representações não bíblica original, ultrapassaram-se para extremos
se destinavam a qualquer adoração ;simboli- onde nada bíblico sobreviveu.
zavam apenas como na Assíria uma função, p.
ex. o papel de guardião. Delas derivam prova-
G. NAGEL
velmente os serafins. Também os serafins
são descritos numa visão, a visão inaugural do
NT
ministério profético de Isaías contempla-os em Apalavra "imagem" de nossas versões neo-
torno da divindade cujo manto enche o templo -latinas serve para traduzir três palavras gre-
com suas franjas (Is 6). Embora sem des- gas diferentes e mesmo opostas de sentido
crevê-las, menciona as asas dos serafins A 1.° — cikoon (daí ícone) que insiste sôbre o
cobra de bronze que se conservou no Templo caráter autêntico e realista da imagem cikoon;

até o reinado de Ezequias (2Rs 18.4) mencio- é a própria realidade tornada presente, mani-
na-se entre os ídolos, porquanto era certamente festa e visível. Por exemplo, Cristo é a cikoon
objeto de culto. Era considerada como a ser- de Deus (2Co 4.4), a expressão autêntica e
pente de bronze feita por Moisés no deserto adequada de Deus. (Nossa palavra "imagem"
(Nm 21.8-9) e que salvava da morte as vítimas insinua, pelo contrário, irrealidade e ausência;
das serpentes que alçavam os olhos para ela. a imagem, para nós, guarda apenas um caráter
Era pois, com aparente razão, objeto da vene- derivado relativamente ao original), 2.° Ty- —
ração pública. pos (tipo), em compensação, salienta bem êste
caráter irreal, derivado, não original e figura-
3. A imagem de Deus. Mencionada unica- tivo. O
typos é a figuração de uma coisa
mente no Gn 1.26-27 (pois os textos de Gii mediante outra não adequada. Por exemplo o
5.1 e 9.6 dependem estreitamente do 1.26-27). culto e os sacrifícios da velha aliança são a
A criação do homem à imagem e semelhança imagem (typos, figura) das coisas celestiais
de Dens é relatada somente na versão sacerdo-
tal da criação. Esta afirmação não se repete
(Hb
treita
8.5). 3.° — Omoioôsis significa uma es-
semelhança, uma próxima relação, po-
em nenhum outro lugar do VT. Mas os escri- rém, não uma identidade substancial : assim,
tores judeus posteriores, a despeito do laconis- o homem é feito à omoioôsis de Deus (Tg 3.9
mo bíblico, escreveram copiosamente para de- citando Gn 1.26-27).
terminar o sentido da expressão feito à ima-
:

gem de Deus. Os autores cristãos aprofunda- 1. Imagem-rcvclação. a) Jesus


Cristo c a
rão ainda mais o tema. A expressão " à ima- imagem de Deus (2Co 4.4; Cl 1.15; 3.10).
gem de Deus", entendida conforme a intenção No sentido de "Cristo é a revelação de Deus",
do Génesis, salienta a analogia física entre a a Pessoa na qual Deus é representado adequa-
divindade e o homem e também a radical opo- damente, na qual o desígnio divino acerca do
sição entre o homem e o animal. Esta idéia mundo aparece e transparece. Dizer que Cristo
opõe-se totalmente aos conceitos expressos por é a imagem do Deus invisível, não acarreta ne-
outras religiões que davam à divindade formas nhuma contradição, toda vez que por "invisível"
animais ou semi-animais. Mas, se bem que re- não entendemos uma propriedade física de Deus.
calca a analogia entre Deus e o homem, não mas afirmamos simplesmente o fato de não ser
deixa de marcar a distância que separa o ho- Deus uma realidade do mundo e sim o ser
mem de Deus o homem não é como Deus, mas
: transcendente, Criador do mundo. Deus reve-
simplesmente à imagem de Deus, segundo a se- la-se autênticamente em Jesus Cristo. Encon-
melhança de Deus. Entre Deus e o homem não tramos um sentido idêntico (Cl 1.19) na decla-
existe uma graduação de seres cada vez me- ração que toda a plenitude da divindade habita
nos divinos. Há apenas por um lado Deus, e, em Cristo (plenitude é um termo usual da ve-
por outro lado o homem, sendo êste não idên- lha teologia para designar o mundo das coisas
tico, nem oposto a Deus, mas simplesmente "à de Deus) e na afirmação que Cristo é a exata
imagem de Deus" (Ver P. HUMBERT, Etude expressão (o cunho) do Pai (Hb 1.3). Mas
sur le récit du paradis et de la chute dans la geralmente Jesus é declarado o Filho de Deus
Genèse, Neuchâtel et Paris, 1940, pp. 153-175). ou mais brevemente o Filho. Todas estas ex-
Sôbre esta base, apenas aparentemente estreita, pressões são equivalentes. Quando Paulo es-
construíram os teólogos judeus e cristãos suas creve '"Vós vos revestistes do nôvo homem,
:

magníficas especulações que ultrapassam sem- que não cessa de se renovar à imagem daquêle
pre e não raras vêzes desviam o sentido *do re- que o criou a fim de atingir o pleno conheci-
lato bíblico
;
pois, uns e outros esforçaram-se mento (de Deus)" (Cl 3.10), êle recalca que
por definir, a partir dela, as relações Deus-ho- êste renovo se faz na comunhão com Cristo,
mem filosoficamente. Em consequência, caíram porquanto Cristo é a revelação de Deus e da
muitas vêzes em teorias rebaixando a imagem divina vontade criadora e redentora.
:

144 IMPOSIÇÃO DAS MÃOS

b) Consiste a nova vida na transformação 2. Imagem-jigura. Citando a ordem dada por


do homem conforme a imagem que é Cristo Deus a Moisés de executar tudo conforme o
(Rm 8.29; ICo 15.49; 2Co 3.10). Esta fór- modelo que lhe foi mostrado no Sinai (Ex
mula lapidária necessita ser explicada. A nova 25.40), a epístola aos Hebreus (8.5; 9.23;
vida é a realidade divina, manifesta em Jesus 10.1) chama o culto da antiga aliança de "a
Cristo, atuando e mostrando-se em nós. A imagem e a sombra das realidades celestiais",
finalidade da eleição e do plano salvador é tor- e o templo de "a imagem do santuário celes-
nar-nos conforme à imagem do Filho de Deus, tial". Culto e templo mosaico são apenas a fi-

de manifestar em nós, mediante a justificação, gura terrena do culto e do templo verdadeiros,


o poder de redenção e de transfusão da vida, embora não desprovidos de certa realidade já
e finalmente de fazer de nós, pela obra do Fi- que são ordenados à realidade celestial. A esta
lho, outros tantos filhos nos quais possa o Pai realidade celestial referem-se, porém, como a
reconhecer-se a si mesmo (Rm 8.29-30). Essa sombra a seu objeto e como a promessa a sua
maravilhosa transformação nossa, por estar ba- realização. Todos quantos crêem em Jesus
seada sobre a obra redentora de Cristo que é Cristo não deixam de comprovar o caráter me-
perfeita, deve ser considerada como um fato ramente figurativo do culto e do templo de
realizado: "aos que justificou, a estes tam- Israel : em Jesus Cristo manifesta-se-lhes o
bém glorificou" (Rm 8.30). Mas, porquanto Sumo-Sacerdote verdadeiro que entrou no san-
ela se manifesta em nosso mundo de pecado tuário verdadeiro. Em Jesus Cristo a realidade
e de morte, deve ser considerada também como sucede à sombra.
futura: "Como reproduzimos (agora) em nós
os traços do primeiro homem terreno, devemos CHR. SENFT
também trazer a imagem do segundo que é ce-
lestial" (ICo 15.49; ljo 3.2). Paulo dirá pois
acertadamente que nós, que contemplamos a
IMPOSIÇÃO DAS MÃOS
glória do Senhor e o próprio Deus manifestado 1 No VT, a imposição das mãos primor-
.
é,
em Jesus Cristo, transformados somos nesta dialmente, um gesto ritual pelo qual um homem
mesma imagem de glória em glória. A salvação transmite a outro o seu caráter, ou delega so-
está em via de realização, atualizando-se cons-
bre um animal a sua personalidade (Lv 1.3-4;
tantemente vivendo pela fé, estamos nos tor-
;
Ex 29.10, etc. Ver o exemplo dos levitas em
nando o que somos já pela graça (Co 3.18).
Esta maravilha não acontece por via de ma-
Nm 8.19) de modo que se efetue uma substi-
tuição de pessoas o animal ou os levitas pas-
:

gia; manifesta-se pelo contrário concretamente


sam a representantes válidos, sacrificados
ser
através de uma vida tôda ajustada aos divinos
ou sacrificadores, para os efeitos do culto di-
mandamentos (Cl 3.5-10.
vino em Israel. A
êste primeiro significado
c) Quando Paulo chama o homem "a ima- acrescenta-se outro estreitamente ligado ao pri-
gem c a glória de Deus' (ICo 11.7), esta de- meiro impor as mãos significa consagrar, se-
:

finição não tem evidentemente o mesmo alcan- parar e reservar para Deus. E, finalmente,
ce que quando o Cristo é chamado "a imagem quando Moisés impõe as mãos em Josué (Nm
e a glória de Deus". Algumas mulheres de Co- 27.18; Dt 34.9), temos um caso, não apenas
de transmissão de poderes, mas de transmissão,
rinto, autorizando-se das declarações paulinas
por parte de Deus, de uma -vocação e de um
("em Cristo mais nem homem nem
não há
espírito de sabedoria vindos do alto.
mulher", Gl 3.28), intentam abolir, na sua ati-
tude no culto, a diferença entre homem e mu- 2. Sinal visível e gesto humano por cujo meio
lher, e, contrariando as prescrições do apóstolo, Deus quer comunicar o seu Espírito e determi-
não usam véu para orar ou profetizar ICo nados dons, êste conceito passa do Velho ao
11.5). Quebram assim a ordem estabelecida por Nôvo Testamento imposição das mãos, o
: a
Deus, saem de seu lugar e recusam ser mulhe- gesto, na concepção do NT, é eficaz, não
realista
res. Paulo chama-as à ordem mostrando-lhes por arte de magia, mas porquanto é o instru-
no homem o elemento que explica a colocação mento da divina ação ou da graça de Cristo.
da mulher dentro do plano criador "Cristo é
: O NT conhece uma tríplice prática da impo-
a cabeça do homem, e o homem a cabeça da sição de mãos
mulher, e Deus a cabeça de Cristo" (ICo 11.
1-17). Ver —>
matrimónio .
a) Na cura de enfermos. Jesus, embora não
ligado a gesto nenhum, aparece com frequên-
d) A (Ap 13.14-15;
besta e sua imagem. cia impondo as mãos quando cura ou obra mi-
14.9-11, Réplica monstruosa de Deus e
etc.) lagres (Mc 6.5; Lc 13.13; etc: a imposição
de sua imagem o Estado-deus e o chefe-en-
: de mãos torna-se o sinal e o instrumento da
carnação do Estado, com suas pretensões à ado- poderosa palavra do Senhor). Êste gesto re-
ração e ao culto supremo ( —
^> ídolo) . vela muito bem que Jesus não é curandeiro
: :

ISRAEL 145

vulgar ;pelo contrário que, obrando


salienta têrmo sara, lutar, combater, e cl, Deus. Etimo-
em nome do Pai e na plenitude do Espírito, Je- logia confirmada por Oséias 12.4-5: "... lutou
sus transmite aos doentes o Espírito de vida com Deus. lutou com o anjo, e venceu". Mas
do qual era a cura n'a manifestação. esta explicação bíblica não deixa de suscitar

Isso que Jesus, com a soberana autoridade problemas gramaticais nos nomes compostos
:

de Filho de Deus, obrava enquanto vivia en- de um verbo e de um substantivo próprio, o


tre nós, prolongar-se-ia pelo ministério dos dis substantivo é sujeito, nunca complemento, sen-
do, portanto, o significado natural de Israel
cípulos e da Igreja, conforme o mandamento e
a promessa de Jesus Cristo ressuscitado "Im- :
Deus luta. Deus combate. Também é possível

porão as mãos nos enfermos e êles ficarão cura- que o verbo não seja precisamente sara, suge-
rido pela afirmação bíblica. De fato, durante
dos" (Mc 16.18).
séculos, exegetas judeus e cristãos propuseram
b) Concomitante ao batismo. Fazendo su- as mais diversas etimologias (mencionemos:
mariamente o censo dos elementos primordiais "Deus é quem lutou" "o homem que viu a;

da mensagem cristã, o autor da epístola aos Deus =


isch raha cl"; "o justo de Deus =
Hebreus justapõe batismo e imposição de mãos yachar cl" "Deus ilumina" "o homem de Ra-
; ;

(6.2), evidentemente não por casualidade: o quel =


isch Rahcl" "o cabeça de Deus
; sar =
Livro dos Atos elucida claramente que a im- cl" etc). A única coisa certa é que Deus ocupa
posição de mãos era concomitante ao batismo: o lugar central na palavra Israel, sendo mais
a imersão realiza a purificação dos pecados conforme com o contexto bíblico a explicação
enquanto a imposição de mãos transmite visi- que acentue mais a idéia do domínio de Deus,
velmente o Espírito Santo (At 8.14-17; 19. da vitória de Deus, como é, por exemplo, o
1-7). O gesto de Jesus impondo as mãos nas "Deus reina" proposto por certos autores (do
criancinhas deve também ser compreendido em verbo sara ou sarar =
ser chefe, reinar). No
relação ao batismo, e como figura deste sacra- uso bíblico, Israel corresponde geralmente a
mento (Mc 10.13-16 par). esta significação.

c) Xa consagração para um ministério. Dois


relatos de Atos (6.1-6: instituição dos Sete;
2. É impossível determinar a que época o
13.1-13: missão de Paulo e de Bernabé e di-
nome Israel foi aplicado ao povo hebreu, cha-
versos textos das epístolas (lTm 4.14; 2Tm
mado doravante essencialmente o povo de Is- :

1.6 e, talvez lTm 5.22) evidenciam-nos que a


rael. Porém, foi achado um depoimento, muito
importante por ser antigo e extra-bíblico, numa
imposição de mãos é o gesto pelo qual a Igre-
inscrição do Faraó Merneftah encontrou-se :

já, personificada nos seus ministros, transmite


uma estela que leva gravado um hino de vitó-
a determinados homens o ministério eclesiás-
ria entre os nomes das nações vencidas nas
;
tico com seu conteúdo indissolúvel de cargos
expedições de Merneftah figura Israel (a estela
e de carismas. Perdura aqui uma das signifi-
chama-se. por êste motivo", "a estela de Is-
cações vetero-testamentárias da imposição de
rael"), descrito como um povo nómade e não
mãos consagração a Deus e delegação da
:

Igreja.
como uma nação formada. A estela data. apro-
ximadamente, de 1230 antes de Cristo, pouco de-
Todos estes textos atestam que a Igreja não
pois da saída do Egito. Consta, pois, que, entre
tem o direito de obrar por conta própria, mas
os pagãos, conhecia-se o nome de Israel como
deve obedecer ao Espírito Santo e contentar-se
próprio dos hebreus, treze século antes de
com simplesmente reconhecer as vocações (Ver
—> eleger) A
imposição de mãos, exclusiva-
.
Cristo.

mente nesta base, será o meio visível e eficaz 3. Encontramos a palavra Israel, usada em
da ação divina e da efusão do Espirito Santo mentidos diversos, nos textos sagrados cumpre ;

distinguí-los conforme as diversas épocas da


M. BERXOULLI História :

a) Antigamente, sendo os hebreus ainda uma


ISRAEL família nómade no deserto, e na época da ins-
talação na terra de Canaã, anterior aos reis.
VT dava-se o nome de Israel ao conjunto das doze
1 .Xa História do patriarca Jacó encontramos tribos, sem dúvida para rememorar o caráter
a primeira menção do nome de Israel. Jacó, en- religioso do laço que as vinculava na comunhão
quanto trava sua luta misteriosa com o enviado de um mesmo culto a lave. Nunca aparece
de hjvé, recebe de Deus o nome de Israel cuja "Israel" como nome dado a uma tribo em par-
significação nos é dada pelo texto sagrado ticular, ou a um homem determinado (com
"Teu nome não será mais Jacó, mas Israel, por- exceção de Jacó, quando ainda não existia o
que lutaste com Deus e com os homens, e ven- povo de Deus), sempre, porém, como apelativo
ceste" (Gn 32.28). Israel derivaria, pois, do aplicado ao grupo das doze tribos salienta-se. ;
.

146 ISRAEL

assim, que a unidade dos hebreus descansa so- ria, chamar-se-á, então, Israel, enquanto que o
bre um mesmo culto, e não sobre uma mesma reino do Sul, governada pela dinastia davídica.
consciência nacional, ou sobre uma realidade chamar-se-á Judá (notável é a expressão todo
política qualquer (Jz 5.2,7-11: antigo poema o Israel, por oposição à tribo de Judá, lRs
de Débora, indicando que algumas tribos se 12.20). Geograficamente falando, Israel abarca
unem, cônscias de sua integração, numa comu- a região da montanha de Efraim (=a monta-
nidade sagrada). O laço que liga fortemente nha de Israel, Js 11.16-21). A dinastia fundada
entre si as doze tribos nascidas do patriarca por Jeroboão sucede-se no reino nortista de
Jacó-Israel, é constituído pela mesma fé no Israel durante aproximadamente duzentos anos,
Deus dos Pais, no Deus que prometeu a terra até que os assírios invadem o país e, destruindo
de Canaã à posteridade de Abraão, de Isaque a capital, Samaria, acabam com o reino de Is-
e de Jacó, que libertou o povo da servidão do rael (722-721 antes de Cristo).
Egito e levou-o para o deserto, que lhe entre-
c) Desaparece a realidade política do reino,
ga, agora, a terra prometida. O novo nome do
mas não o nome de Israel. Antes pelo contrário,
pai das doze tribos salienta o caráter santo da
o sentido religioso da palavra recupera nôvo vi-
grande família herdeira dêste nome Israel. O :
gor, passando a designar o reino sulino de Judá,
Livro de Josué, cap. 24, conservou aquilo que
chamaríamos de confissão de fé comum às doze-
único sobrevivente e verdadeiro
povo de Deus, agrupado doravante em torno
—>
resto do

tribos, feita na presença de Josué em plena da dinastia de Davi. Em lugar da palavra Judá,
terra de Siquém. O povo de Israel é, portanto, que nunca teve um significado religioso, os pro-
uma coletividade assentada, não como os demais fetas usarão a palavra Israel ao mencionar o
povos, sôbre uma base nacional ou política, mas povo da obediência de Jerusalém, o qual, antes
sôbre alicerces religiosos e cultuais. Israel de seu destêrro na Babilónia e da destruição do
existe unicamente porque Deus o quis e porque Templo, ainda teria um longo século de exis-
Deus lhe confiou u'a missão. mesma A
— ]> aliança que une o povo a seu Deus, une os
tência. Os profetas já falavam, a modo de pro-
testo contra o cisma, "das duas casas de Israel"
membros do povo entre si e cimenta coerente- (Is 8.14) ; uma
vez desaparecida Samaria, uti-
mente as partes da coletividade. Êste é o sen- lizarão o têrmo
Israel exclusivamente para
tido das expressões : "povo de Israel", "casa determinar o reino do Sul (Is 5.7; Mq 3.1;
de Israel", "filhos de Israel", que designam Jr 2.4; 10. 1; Is 41.14). Assim fazendo, inten-
usualmente a comunidade hebréia. (Ex 40.38: tam rememorar a aliança de Deus com seu
Dt 6.4; Jz 1.1. etc).
povo, a eleição e vocação de Israel, cuja ex-
b) Logo que o povo consegue organizar-se pressão autêntica e verdadeira está ligada às
politicamente sob a direção do rei, o caráter grandes recordações do deserto e do Sinai (Is
religioso do vínculo nacional tende a apagar-se 41.8; 44.1-2).
progressivamente, modificando-se, então, o sen-
d) Depois da ruína de Jerusalém em 586
tido de "Israel" o nome santo tomará uma
:

a.C,. edo exílio do povo para a Babilónia,


coloração política e mesmo geográfica, antes sobrevêm a restauração de Neemias e de Es-
totalmente desconhecida. Acrescente-se o fato dras. Restaura-se também, então, o conteúdo
de que, no seio das tribos sulinas (Judá e Si- religioso da palavra Israel, a qual passa de
meão) está latente o germe de uma separação nôvo a significar plenamente a comunidade re-
das demais tribos. ligiosa das doze tribos, sem qualquer impli-
A
própria Débora não conseguirá reunir to- cação política ou nacional. Os têrmos "hebreu"
das tribos de Israel em defesa da comunidade e "judeu" designavam a raça e a nação, mas
tampouco Saul, o primeiro rei, logrará a uni- "Israel" tem um sentido ideal e se aplica ao
dade nacional (ISm 11.8) e Davi, proclamado; povo crente e fiel, tanto do passado como do
rei de Judá em Hebrom (2Sm 2.1-4) en- — presente e do futuro. O interêsse capital dado
quanto Is-Bosete, o filho de Saul, é proclamado ao culto, às prescrições rituais e sacerdotais,
rei de Israel (2Sm 2.8-11) —
levará sete anos às estatísticas e genealogias (interêsse bem evi-
e meio para ser reconhecido rei de Israel e de dente nos escritos sacerdotais, em particular
Judá (2Sm 5.5) Surge, progressivamente, uma
.
nas Crónicas), manifesta-se nesta volta à no-
divergência entre Israel e Judá, no campo po- ção do "Israel de Deus", constituído pelas doze
Foi mérito de Davi a unifica-
lítico e nacional. tribos, cujas genealogias estudam-se cuidadosa-
ção do país. dando-lhe uma capital, Jerusalém, mente (lCr 2-9). Mais uma vez, Israel é, em
e sua organização administrativa e militar fir- verdade, a comunidade cultual, congregada ao
memente estruturada. Mas, por contragolpe. redor do Templo, guardando o depósito da re-
perdeu-se por completo o significado religioso ligião dos patriarcas, reavivando a consciência
primitivo do termo Israel e, logo após a morte
;
de sua vocação específica. Os fiéis serão os
de Salomão, a fisura entre norte e sul trans- que maior uso farão da palaVra "Israel" no
formou-se em cisma o reino do Norte, Sama-
: judaísmo tardio, pois êles adquiriram agora
:

ISRAEL 147

plena consciência de ser o povo de Deus. No NT


entanto, o termo "judeu" é utilizado preferen-
temente pelos estrangeiros, para designar a pes- Como no VT, também no NT, Israel é o
soa que pertence à raça ou à nação judia. O nome do povo de Deus, e sua presença atesta a
mundo greco-romano aparentemente ignorou continuidade e unidade da revelação em ambas
a
palavra Israel, usando apenas a palavra "ju- alianças. Israel designa o povo judeu na sua
relação específica com Deus, o qual sempre ex-
deu". Com o correr dos anos, esta última pa-
plícita ou implicitamente o separa dos demais
lavra "adquiriu um matiz pejorativo, já bem
povos.
perceptível em determinados ambientes cristãos
dos primeiros séculos. 1 Nos evangelhos. Nos evangelhos sinóticos,
.

Jesus não se defronta com os judeus, mas com


4. Ao
lado da noção do Israel genuíno, que
Israel. Mateus e Lucas, intérpretes fiéis da tra-
gerou, não raras vezes, sentimentos de supe- dição mais antiga, salientam magnificamente
rioridade e de orgulho observados pelos pró- êste aspecto do ministério de Jesus. Marcos,
prios pagãos, cumpre apontar outro uso muito que escreve para os gregos, recalca-os menos.
interessante da palavra embora raro. A intenção O evangelho de João, pelo contrário, apenas
religiosa do termo acentua-se pouco a pouco, quatro vêzes fala de Israel e de israelitas, men-
a favor de uma distinção peculiar e bem carac- cionando constantemente os judeus ( >
Ju-
deus). João sabe que Israel ficará incrédulo
terística : fala-se do Ismael verdadeiro, do ge- .

e hostil: a incredulidade dos judeus, não obstan-


nuíno Israel, com o fito de excluir dêle os po-
te serem os beneficiários da divina revelação
derosos, as autoridades, os sacerdotes e levitas
na Antiga Lei, parece-lhe a expressão mais tra-
(Ed 9.1; 10.5), os farsantes e os hipócritas.
gicamente perfeita da incredulidade do mundo.
Aponta, inclusive, o pensamento de que os pe-
Os primeiros capítulos dos evangelhos de Ma-
quenos e os pobres (os "pobres de Israel") en- teus e de Lucas narram o nascimento de Jesus,
contram-se mais perto da aliança divina do que o Messias de Israel (Mt 2.6; Lc 1.30ss; 2.11.
os grandes e os prepotentes que, com frequên- 25,34). Os milagres de Jesus são celebrados
cia, abusam de sua superioridade e poder, fa- como a reedição das graças de Deus a Israel
zendo-se indignos de sua missão. Contudo, êste (Mt 9.33; 15.31), e, como nos dias de Elias
uso pouco difundido da palavra não autoriza e de Eliseu, Israel não merece a visita de Jesus
(Lc 4.25-27). Jesus declara-se enviado exclu-
conclusões certas.
sivamente "às ovelhas perdidas da casa de Is-
5. Muito mais frequente da pala-
é outro uso
rael" (Mt 15.24). A
mulher cananéia e o cen-
turião de Cafarnaum sabem disso e invocam
vra Israel : na época post-
í/urante o exílio e
uma exceção (Mt 15.26ss; Lc 7.5; Mt 8.8).
exíliça, os videntes carregaram o têrmo de pers-
A em virtude de sua referên-
eleição dos Doze,
pectivas misteriosas de porvir : Israel represen-
cia evidente às doze tribos de Israel, inscre-
ta o grande ajuntamento de todos os membros
ve-se no ministério de Jesus entre os israelitas
dispersos de ambos os reinos, Jerusalém e Sa-
(Mc 3.13ss; Mt 10.2ss; Lc 6.12ss), e Jesus, de
maria, para formarem o genuíno reino de Davi.
fato, tem o cuidado de limitar exclusivamente
incluindo as doze tribos (Ez 37.21-25; 48.1-7).
aos israelitas (excluindo samaritanos e pagãos),
Êste Israel vindouro iniciar-se-á com a restau-
a missão temporal que lhes confia (Mt 10.5-6) ;

ração histórica do povo de Deus, após a tre- no mundo futuro promete-lhes o governo de
menda provação do exílio e o castigo das infi- Israel (Mt 19.28; Lc 22.30). Ahistória da
delidades cometidas nos séculos passados. Por paixão põe em relêvo como Israel rejeita a
outra parte, esboça-se um sentido escatológico
Israel será o povo de Deus restaurado, purifi-
Jesus, o Messias de Israel. A inscrição que
Pilatos fêz colocar sôbre a cruz continha estas
cado e santificado, que receberá, no fim dos
palavras: o rei dos judeus (Mt 27.37 par), por-
tempos, a plenitude da bênção de Deus, e será
quanto o governador romano estava sensibilizado
a testemunha do Senhor perante todas as na-
apenas pelo aspecto político de Jesus mas os;

ções, anunciando-lhes a salvação de Deus. "Êste


sacerdotes e escribas fazem troça de Jesus, sem
dirá Eu sou do Senhor o outro se valerá do
: !

cogitar que destarte se condenam a si mesmos


nome de Jacó, um terceiro escreverá sôbre sua
:

"Se êste é o rei de Israel, desça agora da cruz


mão Ao Senhor e receberá o cognome de
: !

e nós creremos nêle" (Mt 27.42; Mc 15.32).


Israel" (Is 44.1-5). Deus é chamado o Santo
de Israel (Is 43.3,14, etc). Êste aspecto esca-
No primeiro dia da semana, os discípulos de
tológico e missionário de Israel constitui o cume
Emaús continuam ainda tristemente a falar da-
quele que esperavam fôsse o libertador de Is-
do pensamento teológico do VT. onde vai de
rael (Lc 24.21).
encontro com o pensamento cristão.
2. Em
Aios dos Apóstolos. A
primeira pá-
F. MICHAELI gina do livro nos mostra os Doze ainda pre-
148 ISRAEL

ocupados com a restauração do reino de Israel tencer a Israel pelo sangue não significa per-
pelo Messias Jesus (At 1.6) porém, o desíg-
;
tencer ao Israel genuíno, recrutado mediante
nio de Deus é outro. Já no dia do Pentecoste, a eleição soberanamente, livre, de Deus (9.6ss).
os Doze, encabeçados por Pedro, pregam a Je- Por que, pois, Israel não crê em seu Messias
sus crucificado (2.36; 4.10), ao qual -Deus ele- crucificado? Porque êle é a pedra de tropêço,
vou à sua destra "para dar a Israel remissão colocado por Deus em Sião (9.33). Afanado
dos pecados e comunicação do Espírito Santo" na procura da própria justiça, Israel não per-
(2.38; 5.30-31), conforme a promessa de João, cebeu a justiça de Deus, dada gratuitamente
o Batista (13.24). Dando aos seus ouvintes o em Jesus Cristo crucificado (9.30-10.4). "Terá
nome de israelitas (2.22; 3.12; 5.35; 13.16), Deus, porventura, rejeitado o seu povo?" —
os apóstolos proclamam, sem ambiguidade, que "De modo nenhum !" contesta Paulo, o que tam-
a mensagem evangélica dirige-se a êles como a bém é israelita da descendência de Abraão e
membros do povo escolhido de Deus. Logo, ' da tribo de Benjamim (11.1). U'a minoria de
quando o Evangelho já tiver sido anunciado escolhidos, aliás, recebeu realmente a salvação
aos pagãos, Israel não se verá frustrado. Depois que Israel rejeitou, minoria prefigurada pelos
da conversão de Paulo, o Senhor revela a Ana- sete mil que não dobraram seus joelhos diante
nias que Saulo é o instrumento escolhido por de Baal, em tempos de Elias (11.7). No en-
Deus "para levar o seu nome perante os gentios tanto, a incredulidade da maior parte de Israel
e reis, bem como perante os filhos de Israel" serve aos divinos desígnios "pois, pela, sua
:

(9.15). Paulo dirige a mensagem primeiro aos transgressão veio a salvação aos gentios, para
filhos de Israel anunciando-lhes que, fiel à sua pôr os judeus em ciúmes" (11.11). E Paulo
promessa, Deus suscitou um Salvador para Is- termina comunicando a seus leitores um —mis-
rael, na pessoa de Jesus Cristo (13.23). Mais tério: um acontecimento referente ao plano re-
tarde, quando prêso em Roma, Paulo convoca dentor de Deus e revelado aos apóstolos pelo
ainda os chefes da sinagoga para lhes declarar Espírito Santo "Veio endurecimento parcial a
:

que "é pela esperança de Israel que estou prêso Israel, até que haja entrado a totalidade dos
com esta cadeia" (28.20). Sendo tão univer- gentios, e assim todo o Israel será salvo" (11.
salista, o próprio autor de Atos declara (1.8) 25-26). A certeza de Paulo não se baseia nas
estar convencido de que o Evangelho destina-se qualidades de Israel, e sim no fato de que os
aos judeus em primeiro lugar. dons e a vocação de Deus são irrevogáveis (11.
29). Ora, se Paulo estava tão convencido da
3. Nas epístolas de Paulo. Antes de mais na- salvação final de todo o Israel, é bem pouco
da, constatemos o seguinte paradoxo nas epís- : provável que êle tenha oposto (como tantas
tolas de Pedro, Tiago, Judas e João, não en- vezes se pretendeu) ao Israel carnal, a Igreja
contramos mencionados os termos "Israel" e de Cristo, como um Israel espiritual (expres-
"israelita", enquanto êstes desempenham enorme são totalmente ausente das epístolas) Na mente
.

papel nas epístolas de Paulo, o chamado após- de Paulo, o Israel segundo o espírito é preci-
tolo dos gentios (Rm 11.13). samente esta minoria de israelitas crentes que
Igualmente em Paulo, constante vítima do ocupa, na Igreja, o lugar que, por vocação, lhe
ódio judeu, é onde encontramos o mais ardente compete. Igualmente, o Israel de Deus, de Gl
6.16, não significa a Igreja, mas êste rema-
amor pelos judeus (Rm 9.1ss; 10.1), a mais
nescente do Israel fiel a sua vocação de crer
viva consciência dos privilégios espirituais de
no Messias, não um Israel delimitado pela
Israel (Rm.4-5) e de sua prioridade no plano
circuncisão apenas, mas pela fé que teve Abraão,
de salvação (Rm 1.16; 2.9-10). Ninguém res- isso é, pela fé imputada à justiça (Rm 4.12-13).
sentiu mais dolorosamente o escândalo da incre-
dulidade de Israel. Como esperar a fé de gen- 4. No Apocalipse. O Apocalipse menciona
tios, quando os israelitas ficam incrédulos? Co- apenas duas vêzes o nome de Israel, e outra vez
mo anunciar a gentios um Cristo crucificado, alude às tentações dos filhos de Israel contem-
quando Israel obstinadamente nega-o como o porâneos do êxodo (2.14). O texto de 7.4,
Messias? "Será que a Palavra de Deus fa- evocando "os cento e quarenta e quatro mil as-
lhou?" (Rm 9.6). Pergunta inquietante e ca- sinalados de tôda a tribo dos filhos de Israel",
pital, para a qual Paulo busca uma resposta convida o leitor a discernir o laço misterioso
nas Escrituras, meditadas à luz da revelação que une o povo de Deus, destinado a sofrer as
em Cristo e do Espírito Santo (Rm 9-11). provações escatológicas, às doze tribos de Israel
Destas reflexões daremos aqui apenas as con- que, nos exórdios da História da salvação, foram
clusões onde expressamente é mencionado o o povo de Deus, também purificado e provado.
nome de Israel. E o texto de 21 12, que descreve as doze portas
.

Paulo, antes de tudo, observa que na antiga da nova Jerusalém gravadas com os nomes das
aliança também, "nem todos os oriundos de doze tribos dos filhos de Israel, atesta a unidade
Israel são de fato israelitas" (Rm 9.6). Per- da obra divina, cuja coroação corresponde per-
,

JEJUM 149

feitamente a seu princípio, isto é, à eleição de ta, logicamente, a atitude e o comportamento do


Israel, e ficaria incompreensível sem êste prin- humilde e do aflito (lRs 21.27; Jl 2.13; Est
cípio. 4.3; Ne 9.1; Jn 3.5), não teme revestir-se
Portanto, tudo quanto o XT
afirma acerca de saco e de cinzas (Jr 14.12; SI 69.11; Ne
de Israel, constitui um testemunho a favor da 1.4). O jejum é, portanto, a expressão do arre-
fidelidade de Deus. "Declaro, pois, que Cristo pendimento profundo (lRs 21.27; ISm 7.6;
foi constituído ministro da circuncisão, para ma- Jn 3.5), bem como da espera do dia de Iavé
nifestar a veracidade de Deus e deixar estabe- (Jl 1.14; 2.12). Dá-se, assim, lugar à ilusão
lecida a validade das promessas feitas aos Pa- barata de ter o jejum o poder de exercer uma
triarcas" (Rm 15.8). pressão sóbre Deus, transformando-se em uma
espécie de mendicidade obsequiosa, como acon
CH. MASSON
teceu de fato no judaísmo popular e como acon-
tece em todo tipo de piedade mercantil. Os pro-
JEJUM fetas não deixaram de protestar, sem muito
êxito, contra essas maneiras espúrias de jejuar.
A maioria das religiões antigas conheciam a
prática do jejum. Abster-se de alimentos con-
O verdadeiro jejum, ou seja, o autêntico modo
de se humilhar e de se preparar para o divino
siderava-se comumente como um meio de esca-
encontro, está em romper as cadeias injustas,
par ao poder do demónio, o qual penetra em
em conceder liberdade aos injustamente oprimi-
nós com a comida, e a fim de se preparar para
dos, em partir o nosso pão com os famintos, em
o encontro com a divindade e para receber for-
recolher os isolados, as viúvas e os órfãos (Is
ças extáticas, ou outras.
58.1-16; Jr 14.12; Zc 7.5ss; 8.16-19).

VT
No VT, o jejum, antes de tornar-se uma prá- NT
tica cultual oficialmente constituída, já era um
Nos tempos de Jesus, o judaísmo preconi-
ato de piedade individual ou coletiva pratica-
:
zava a prática dos jejuns. Os fariseus jejua-
va-se por ocasião de determinadas circunstân-
vam (Lc 18.12, nas segundas e quintas-feiras")
cias pessoais ou nacionais. A
Bíblia nos mostra
os israelitas jejuando depois da perda de um
bem como os discípulos de João. o Batista (Mc
2.18 par).
amigo ou de um chefe (ISm 31.13; 2Sm 1.12:
3.35), ou quanto estavam às voltas com uma Também Jesus praticou o jejum (Mt 4.2)
dificuldade gravesolicitavam o necessário
e antes da grande tentação. Porém, o jejum de
socorro de Deus (2Sm 12.16; lRs 21.27; SI Jesus, análogo ao de Moisés no Sinai em muitos
35.13). Oprofeta jejuava preparando-se para aspectos (Ex 34.28), não foi uma penalidade
receber as comunicações divinas (Ex 34.28; Dn de arrependimento, nem a expressão da espera
10.2-3), outros jejuavam para se dispor a uma de uma revelação divina, mas a maneira esco-
empresa difícil (Ed 8.21; Est 4.16). E, nas lhida por Jesus para manifestar sua total de-
horas críticas de sua História, todo o povo, cole-
tivamente, expressa com jejuns a sua confiança
pendência do Pai ( —> Deserto) No sermão
.

do Monte, Jesus admite expressamente que seus


no socorro divino (Jz 20.26; ISm 7.6; 2Cr discípulos conservem a prática do jejum, reco-
20.26; ISm 7.6; 2Cr 20.3; Jl 1.14; 2.12; Jr mendando, contudo, que jejuem em segrêdo (Mt
36.6-9). Havia dias oficiais de jejum. Ai da- 6.16-18), pois qualquer ato de autêntica humi-
quele que se atrevesse a transgredi-los Antes
! lhação deve ser feito exclusivamente diante de
do exílio conheciam-se como obrigatório ape- Deus. O jejum deve acompanhar a oração para
nas os dias das expiações (Lv 16.29ss; 23.27ss; conseguir certa classe de curas (Mt 17.21).
Nm 29.7) depois do destêrro, estabeleceram-se
; No entanto os evangelhos não mencionam ex-
quatro dias de jejum público cada ano (Zc 7. plicitamente nenhum jejum de Jesus durante sua
3-5; 8.19). vida pública, nem consta que Jesus exige o je-
O jejum nunca constituiu um método ascé- jum como prática de vida regular. O jejum é
tico, destinado a libertar nossa alma da escra- a espera da salvação (Lc 2.37) ora, estando
;

vidão do pecado pelo contrário, era o grito de


;
Jesus presente, o tempo não é de jejuar mas
confiança lançado a Deus, para lhe dizer que de se alegrar (Mc 2.18 par), excetuando-se os
tudo se esperava dele humildemente. É bem in- dias da Paixão, antes da ressurreição (Jo 16.
teressante que na Bíblia o têrmo técnico "je- 20; ver Mc 2.20).
juar" apareça frequentemente substituído pela A alegria da salvação manifestada, domina
locução "humilhar sua alma" (Lv 16.29-31 ; tôda a existência da Igreja primitiva; a certeza
23.27,32; Nm
29.7 30.14), sendo esta a per- da ressurreição não deixa lugar à tristeza. Eis
feita equivalência e, portanto, a perfeita explica- porque os apóstolos não instituem prática algu-
ção do primeiro (consta, em particular, no Sal- ma de jejum. Todavia, para preparar certas de-
mo 35.13 e em Isaías 58.3-5). Quem jejua ado- cisões importantes — e para "fazer o vazio" e
: :
;

150 JESUS

encher-se ao máximo do Espírito Santo je- — me era norma nas


famílias israelitas (Compa-
juava-se (At 13.2-3) antes de sair à missão;
: rar etc). Jesus é, pois, um menino
Lc 1.63,
At 14.23: antes de escolher os ministros para judeu entre outros meninos judeus, b) que o
as igrejas). O jejum acompanhava as orações filho por nascer não será um prodígio, uma
e confirmava, de certo modo, a disponibilidade exceção, mas o último elo da longa História
para as ordens do Senhor. Lembremos ainda das "salvações" outorgadas por Deus a seu
que, "por causa do Evangelho" (ICo 9.23), povo. c) que êste salvador será o Salvador
Paulo praticava pessoalmente, e recomendava anunciado pelos Patriarcas e esperado pelo po-
às igrejas, certas abstinências e disciplinas. Co- vo êle não o livrará apenas da fome. da opres-
:

mo os que correm no estádio, Paulo sabia tra- são, das zombarias inimigas, mas "dos seus
tar duramente seu corpo, impondo-lhe tôda es- pecados". O XT
indica, assim, que a salvação
pécie de abstinências, para alcançar o prémio da qual precisamos não incide apenas na condi-
sabia perfeitamente que a renúncia própria, "por ção terrena, política, social ou individual de
causa da fé e da confissão de Cristo", compor- todos nós, mas antes de tudo, em nossa relação
taria exigências extremas e jejuns de tôda classe com Deus, tão precária que terá de ser restau-
(ICo 9.15-27; 2Co 6.5 e 11.27): quer disci- rada por Jesus.
plinas livremente aceitas, quer imposições das O nome de Jesus, mil vêzes mencionado no
circunstâncias :fome, sêde, naufrágios, golpes, Livro de Atos e nas epístolas, adverte-nos cons-
etc. tile mesmo conta que passou dias sem co- tantemente que o Cristo- Salvador não é uma
mida. personagem mítica nem uma figura celestial,

O porém, de o mesmo Paulo precaver-


fato,
mas um homem de carne que viveu en-
e ossos,
tre nós num passado muito próximo. Os primei-
nos repetidamente contra certas tendências as-
céticas —que fazem de jejuns e outras absti-
ros discursos de Atos, em particular, dão espe-
cial relêvo à humanidade histórica de Jesus:
nências a expressão de um dualismo "Homem
'versus Mundo" —
prova que o jejum cristão
apresentam-no como "um homem de quem Deus
tem dado testemunho diante de vós" (2.22), "a
não visa desacostumar a alma de seu cárcere
êste Jesus (não a um fantasma) Deus ressus
corporal (como o pretenderá a tradição poste-
citou" (2.32). Se êste mesmo nome de Jesus
rior da Igreja), mas um exercício que nos per-
aparece menos frequentemente nas epístolas, não
mita medir o nosso auto-domínio e, sobretudo,
é pelo fato de Cristo ter-se tornado uma figura
entregar-nos plenamente à "única coisa neces-
"ideal" (como alegam os teóricos da escola
sária" (ver Cl 2.16-23; lTm 4.1-5, etc).
mítica). A pregação paulina está dominada pela
/. D. ROBERT certeza de que Cristo "nasceu de uma mulher,
sob a Lei" (Gl 4.4). Paulo não podia no con-
texto de seu pensamento, achar fórmula mais
JESUS adequada para indicar a historicidade de Cristo.
Transcrição grega de um nome derivado do Aqui entendemos por historicidade, não apenas
hebraico Jchoshua —
ajudar, salvar. Foi o nome a autenticidade das coisas realmente aconteci-
próprio de muitos judeus, mesmo contemporâ- das de fato, para o NT, não é Jesus apenas um
:

neos de Jesus Cristo, e menos freqiiente a par- homem aparecido em nossa História, mas êle
tir do segundo século de nossa era. Do mesmo assumiu, recapitulou e revelou, na sua pessoa e
radical deriva também o nome Josué (Xra 27; e no seu destino, tôda a significação trágica
ISm 6.14; 2Cr 31.15). O historiador Flávio desta História, diante de Deus e dos homens.
Josefo menciona vinte personagens com o nome Historicidade de Cristo inclui, pois, que em Je-
de Jesus. Do ano 35 antes de Cristo até o 63 sus conheceremos os verdadeiros componentes
depois de Cristo, conhecemos quatro sumo- sacer- da História humana, em suas misérias bem
dotes chamados Jesus. Atos 7.45 e Hb 4.8 como nas grandes promessas e esperanças que
escrevem Jesus falando de Josué. O mesmo Bar- a acompanham.
rabás teve por segundo nome Jesus (Mt 27. Os símbolos mais antigos da fé cristã decla-
16-17). Em Cl 4.11 temos um certo Jesus, com- ram que "Jesus é Senhor" Fp 2.11, etc), fór-
(

panheiro de Paulo. O mágico, mencionado por mula que destaca a historicidade e humanidade
At 13.6, era um Bar-Jesus =
filho de Jesus. do Cristo, como também o seu atual senhorio
Segundo Mateus (1.21) Lucas (2 21), este
e êste que agora reina é, realmente, o mesmo que
nome foi dado ao filho de Maria por indicação viveu, sofreu e expirou pela salvação do mundo
de um anjo, para expressar que "êle salvará o êle é o sujeito da esperança cristã; quem há
seu povo dos seus pecados". O nome de Jesus, de voltar não será para nós um desconhecido,
à luz dêste contexto, significa que o filho
: a) mas êste mesmo Jesus. Até nas visões mais
por nascer é, verdadeiramente, um filho do povo "espirituais" do Apocalipse, trata-se invaria-
judeu, no seio do qual êle será conhecido por velmente dêste mesmo Jesus de Nazaré. "O tes-
um nome familiar a seus contemporâneos José, ;
temunho de Jesus é o espírito da profecia."
seu pai legal, é quem lhe dará o nome, confor- (Ap 19.10). Todo o NT, inclusive o Apoca-
;

JESUS 151

lipse, visa, antes de mais nada, centralizar a pelo contrário, achamo-la em todo o reis, VT :

atenção e a fé da Igreja sobre a pessoa c a profetas e sacerdotes "representam" o povo pe-


obra histórica de Jesus, chefe e consumador da rante Deus por seu intermédio e por sua pes-
—>
;

fé (Hb 12.2). soa é que Deus faz aliança com Israel. A


recordação da aliança domina todos os relatos
1 Jesus, Servo de Deus.
. A
expressão Servo
de Deus, explicitamente aplicada a Jesus, apa-
da última ceia eucarística de Jesus ( Euca-
ristia). Entretanto, há um fato completamente
—>
rece só uma vez nos evangelhos sinóticos (Mt novo e exclusivo do NT na mesma figura
:

12.18, citando
42.1-4) e quatro vezes nos
Is histórica de Jesus, juntam-se a dignidade incom-
Atos (3.13,26; 4.27,30). No entanto, êstes tex- parável do Messias (Filho do Homem) e a hu-
tos são tão importantes e parecem tão antigos mildade sem par do Servo-mártir na cruz.
que não nos furtaremos à incumbência de anali- A reflexão cristão imediatamente posterior
sar seu conteúdo, o qual está, aliás, bem pre- não se apoiou particularmente na figura do
sente nas numerosas alusões feitas pelo à NT Servo humilhado. A idéia de sofrimento vicário
figura misteriosa do —>
Servo do .Segundo é familiar a Paulo êle, contudo, para ilustrá-la,
;

Isaías. não lança mão da imagem do Servo (mesmo


O contexto de Mt 12.18 permite ver clara- citando explicitamente Is 53, em Rm 4.25).
mente qual é a relação de Jesus com o Servo A
nossa impressão é que positivamente se evi-
de Isaías 42 : Jesus, a exemplo do Servo pro- tou mencionar Jesus como o Servo de Deus,
fético, si a mínima atenção
não reclama para com o fito de não prejudicar sua dignidade
e exerce o seu ministério na mais estrita humil- de Filho de Deus. Notemos que as versões
dade perante Deus. Depois de curar muitos mais antigas do NT
traduzem a palavra grega
enfermos, Jesus "proíbe-lhes firmemente falar "servo" por "filho" (Latim pucr) que é im- ,

disso" (vers. 16), e, para justificar esta proi- procedente tanto no contexto de Isaías como
bição,Mateus cita Isaías 42. As referências de do NT.
Atos encontram-se tôdas em discursos de Pedro,
claro indício de que Pedro, outrora tão escan- 2. Jesus , Filho de Davi. Não apenas "Jesus,
dalizado frente às da paixão de
perspectivas Filho de Davi", mas outras expressões também
Jesus (Mt 16.22), compreendeu antes que qual- relacionam Jesus a Davi "estirpe de Davi"
:

quer outro discípulo, e interpretou os sofrimen- (Ap 5.5); "o Senhor Deus lhe dará o trono
tos do Senhor à luz da figura profética do Ser- de Davi, seu pai" (Lc 1.32) "o Cristo há de ;

vo de Deus. De fato, os textos mencionados vir da descendência de Davi" (Jo 7.42). O


mostram que Jesus é chamado de Servo de título Jesus, Filho de Davi, encabeça o evan-
:

Deus a) porque nada foi e nada fêz fora do que


:

gelho de Mateus (1.1). Está na bôca da turba


Deus quis que fôsse e fizesse sua grandeza ;
implorando favores (Mt 9.27; 15.22; 20.30-31;
foi unicamente ser o Servo de Deus, não ser-
Mc 10.47-48; Lc 18.38-39), ou aclamando a
vindo a ninguém mais do que a Deus; b) por-
Jesus (Mt 12.23; 21.9,15, cujos paralelos de
que o serviço de Jesus foi de salvar e de "aben- Mc e Lc traduzem "Filho de Davi", para os
çoar" os homens (3.26) êle era Servo de Deus
leitores saídos do paganismo, por
:
"o rei que :

ao serviço dos homens; c) porque, em prémio vem em nome do Senhor") O texto bem mais
.

dêste "serviço", foi glorificado pelo próprio


difícil de Mt 22.41-46 e par, alude t.alvez a
Deus pois a sua glória lhe provém, como a
;
uma polémica entre Jesus e os escribas, acêrea
sua missão de servir, exclusivamentè de Deus
do sentido da expressão "Filho de Davi".
d) e, finalmente, porque seu serviço esbarrou
contra a hostilidade dos homens, em particular
A
convicção de que o Messias seria um des-
cendente de Davi formou-se tardiamente entre
dos poderosos dêste mundo, que se "ligaram"
os judeus (Salmo de Salomão 17.21), embora
contra Jesus (4.27). Foi um serviço doloroso,
que levaria Jesus à morte na cruz.
ela decorresse realmente do (2Sm 7.13-16;VT
Am 9.11; lCr 17.11ss; 28.5ss; 29.24ss; 2Cr
Esta última reflexão insinua que, para Jesus 9.8; 13.8). O NT
apresenta Jesus como o Rei
e para os primeiros cristãos, a figura do Servo por excelência. Cumpre lembrar aqui os gran-
(Is 42) foi, possivelmente, a chave do mistério des traços da teologia real do VT, tendo em
e a luz reveladora do sentidoda Paixão. Com conta matizes bastante diferentes conforme as
efeito,encontramos em o NT muitas alusões, épocas e tendências: a) O rei recebe exclusiva-
mais ou menos explícitas, a esta figura (Mc mente de Deus sua autoridade, não importando
8.31; 9.31; 10.33; 14.24; 26.28; Lc 22.20; o modo de ascender-se ao trono, se por força
ICo 11.24, etc), acompanhadas de uma resso- ou pela vonatde do povo. Iavé é o Rei dos reis,
nância comum o Servo sofre "por muitos", pois
: reina sôbre os reis com autoridade absoluta,
representa o seu povo inteiro e por êle morre não somente em princípio, mas de fato, porquan-
(morte vicária, em substituição). Esta idéia to sua autoridade é limitada apenas pelas pró-
de serviço substitutivo não é própria do NT; prias promessas a tal ou qual "casa" ou "povo"
152 JESUS

preferido, b) lavé faz aliança com todo o povo ria, ou de José (Mt 1.21,23,25 par; 13.55; Lc

através da pessoa do rei (2Sm 7; 23.1-7, etc). 3.23). Fala-se de filhos nas parábolas "fami-
O rei não é uma individualidade isolada, mas liais" (Mt 21.37; Lc 20.13; Mc 12.6; Lc 15.
é rei somente para e com o povo que representa. llss). Os israelitas, detentores da promessa
c) O rei nunca deixa, portanto, de ser um sim- do Reino, são chamados "os filhos do Reino"
ples ser humano, solidário e responsável pelos (Mt 8.12); no entanto, todos os crentes me-
pecados de seu povo. Não existe em Israel qual- recem o nome de "filhos do Reino" e os perver-
quer processo de divinização do rei, como na sos, figurados no joio, o nome de "filhos do
Babilónia e no Egito. (A "divindade" do rei, Maligno" (Alt 13.38; ver também Mt 17.25:
no SI 45, consiste apenas na adoção divina) ;
.Mc 3.17; Lc 10.6; 16.8).
d) Finalmente, o rei é o juiz e, simultaneamen- A antiguidade usava frequentemente a expres-
te, o libertador de seu povo. Será mediante um são "filho de Deus" ou "filho dos deuses" em
rei que Deus, nos últimos dias, restaurará sua três sentidos diferentes: a) personagens herói-
autoridade, justiça e paz sôbre tôda a terra cas e excepcionais, além da média, do comum
( —^> Reino) Os Salmos gostam de ponderar
.

acerca da importância do rei em Israel, relacio-


(por exemplo, os heróis, semi-deuses, reis, pon-
tífices,etc. da mitologia grega) b) príncipes ;

nando-a sempre com a realeza do próprio lavé formando o séquito do rei nas antigas cortes
(SI 2; 20; 45; 72; 101; 110; 132) ainda ouvi-
;
do Oriente (p.ex., da Babilónia) c) escolhidos ;

mos os salmos festivos litúrgicos ressoarem e formando o povo de Deus, e ainda, crentes
ecoarem jubilosamente a alegria de Israel, asso- exemplares dêste povo e relutantes contra a
ciando, em seu culto e em suas festas, o rei decadência comum. (Assim, no YT, Ex 4.22:
da terra e com o Rei do céu, jurando fidelidade "Israel, meu filho, meu primogénito"; Os 2.1;
a seu Deus e a seu rei, e cantando seu júbilo Jr 31.19; Dt 14.1; SI Sab 2.16).
73.14-15;
presente e sua esperança escatológica (SI 47; Igualmente o rei de Israel é filho de Deus por
93; 96; 97; 99). ser o escolhido de Deus e porque Deus o entro-
Tais idéias do VT passaram, indubitàvelmente, niza (2Sm7.14; SI 89.27; 2.7: "Tu és meu
a alimentar o ideal cristão primitivo de Jesus- filho, eu hoje te gerei") Sem lugar à dúvida,
.

Rei. Jesus é Rei, porém, diferentemente dos reis é dêste sentido vetero-testamentário que depende
diretamente o sentido vigente no NI'. Contudo,
terrenos (At 7.10; Mt 2.1; 3.9; Lc 1.5; Mt
a reflexão cristã primitiva enriqueceu o têrmo
14.9; etc; comparar SI 2.2 com Mt.18; Mc
"filho de Deus" com precisões tão notórias que
13.9; Lc 21.12: a oposição dos reis da terra
ao povo de Deus). Conforme Hb 7.1-2, o mis-
o VT ignorava o uso messiânico dêste apelido.
(Alas o judaísmo não ignorava a interpretação
terioso rei de Salém, Melquisedeque (Gn 14.
messiânica do SI 2, como vemos em Salmo de
18), foi o "tipo" de Jesus Cristo.
Salomão 17.23ss; At 4.25-26; 13.33, Hb 1.5).
Contudo, sendo tão grande a importância da
Nos evangelhossinóticos, Jesus não é apenas
ideologia real no pensamento judeu, cabe per-
//;;/ Deus, mas o Filho de Deus (Mc
filho de
guntar porque ela ocupa tão exíguo lugar
12.6-7; Aít 11.27-28; Ale 13.32, etc). Êle é
cm o NT . Autores chegaram até a pensar com (

base em Mc 12.35-37 e par, e Jo 7.42) que quem recebeu o Espírito conforme a promessa
Jesus repudiara a dignidade davídica. Mas os (Is 11.2; Sab 17.37; 18.7 Enoc 49.3; Alt
textos que alegam não autorizam tal conclusão, 12.28-29; Lc 3.18). Tal é, na realidade, o
embora possamos conceder que Jesus e os pri-
meiros cristãos não deram grande importân-
sentido do relato do —>
batisnw de Jesus. Je-
sus é, simultaneamente, aquêle que na sua pes-
cia à figura tradicional de um Messias-Fillio de soa representa todos os filhos do povo esco-
Davi. lhido, e também o Filho único (bem-amado,
escolhido), superior a todos os demais. Jesus é
3. Jesus. Filho de Deus. O termo de Filho o herdeiro, encarregado de negociar em nome
de Deus, aplicado a Jesus, aparece 31 vêzes nos do Pai: consequentemente, rejeitando a Jesus,
evangelhos sinóticos (11 vêzes em Mt), 23 no rejeita-se ao próprio Pai (Alt 21.33ss: pará-
quarto Evangelho, 42 nas epístolas, 3 em Atos bola dos lavradores infiéis). Jesus é o Filho,
e uma vez no Apocalipse, ora explicitamente depositário de tôda a autoridade sôbre o mundo
na forma Jesus, Filho de Deus, ora na forma
:
(Rm 1.1: na perspectiva de Paulo^em virtude
abreviada: Jesus, o Filho (subentendido: de da ressurreição). Jesus é, em suma, aquêle cuja
Deus). A forma abreviada é quase exclusiva intimidade com Deus foi única e criadora, po-
da epístola aos Hebreus e dos textos joaninos. rém, de uma nova filiação dos homens para
A frequência do título indica, evidentemente, a com Deus (= perspectiva comum a Paulo, Gl
importância cristológica que êle revestia aos 4.6, e a João). O quarto Evangelho insiste
olhos dos primeiros cristãos. sôbre o caráter particular da filiação divina
Observemos que o NT usa também o termo de Jesus, o "Filho único" (1.14,18; 3.16,18;
filho na acepção vulgar : Jesus é o filho de Ma- também ljo 4.9; Hb 11.7). Tal unicidáde
;

JESUS 153

manifesta-se na perfeita identidade entre o pen- Teoricamente, esta expressão do VT pode


samento de Deus e o ministério de Jesus, auto- derivar de três fontes literárias c religiosas.
rizando a afirmação da igualdade prática é. "Filho do Homem" pode significar o indivíduo
para nós, histórica, entre o Pai e o Filho (Jo humano considerado na sua limitação de cria-
10.30; 5.20; 1.51; 12.45; 14.9). Esta comu- tura transitória e efémera, em contraposição à
nhão das vontades e da ação sempre existiu en- onipotência e eternidade de Deus perspectiva
:

tre o Pai e o Filho (Jo 17.4-8; 14.7) e exis- familiar ao VT (ver, em particular, muitos
tirá sempre (17.9). A
igualdade histórica do textos dos Salmos, como 4.3; 8.6; 12.2,9;
Filho e do Pai, cujas consequências são deci- 21.11; 36.8; 58.2; 62.10; 66.5; 80.18; 144.3:
sivas para os homens, é afirmada em particular ou também Nm 23.19; Jó 25.6; Pv 8.31; Is
na oração do Filho (Jo 17; 11.41; 14.16, etc.) 51.12; 56.2; Dn 8.17). Neste sentido, Jesus
caracterizada pela mais soberana confiança usaria a expressão para declarar sua humani-
ela é expressa também na obediência do Filho dade, limitada, ameaçada e frágil. Mas a ex-
(5.30; 6.38), pois o conceito de João sobre a pressão pode também derivar da linguagem
obediência do Filho, longe de contradizer a religiosa contemporânea ( Síria, Irã, Babilónia.
filiação divina de Jesus, pelo contrário, funda- Ásia Menor, etc.) que, por "Homem", entendia
menta-a e a explica. Finalmente, a igualdade o Salvador enviado à humanidade (onde? quan-
entre o Pai e o Filho é expressa pelo mútuo do?) para reconduzí-la à sua vocação original.
— amor que une um ao outro: o Pai dá ao Nesta hipótese, os evangelhos aplicariam a
Filho tudo quanto possui, em benefício dos Jesus uma designação soteriológica assaz divul-
homens, e o Filho não tem nada próprio para gada, embora imprecisa e confusa, com o fito
dar fora daquilo que recebe do Pai. A
idéia de apresentá-lo, sem ulterior afã de precisão,
da geração do Filho pelo Pai, que em breve como o único Salvador da humanidade. Em
ocupará um lugar preponderante na reflexão terceiro lugar, a expressão se derivaria, atra-
cristã, não decorre necessariamente do conceito vés dos apocalipses judaicos, da misteriosa fi-
de "Filho único", mas é indicada indiretamente gura de Daniel 7.13. Com efeito, esta figura
por textos como os de ljo 5.18. O judaísmo tornou-se, na apocalíptica judia, bem caracte-
conhecia a idéia de um Messias gerado por Deus rística sob os traços do Juiz Celeste,, pré-exis-
(Pv 8.25, afirmação da Sabedoria). Aliás, não tente, universal, cósmico, dos últimos dias.
é emtôrno dela que versa o interêsse evan- Ora, o exame dos textos autoriza-nos, com
gélico o Evangelho pouco se interessa com
: certeza quase absoluta, a preferir a última in-
as relações mútuas entre o Pai e o Filho que terpretação. Jesus, designando-se a si mesmo
estas representam em si. O ponto capital é como "o Filho do Homem", escolheu o título
declarar que, no curso da História, unicamente messiânico menos contaminado de nacionalismo
Jesus, o Filho, revelou-nos perfeitamente o judeu e de esperanças guerreiras; adotou, ade-
Pai. mais, a opinião de muitos círculos palestinia-
nos, pouco conhecidos de nós, os quais espera-
4. Jesus, Filho do homem. Esta designação
vam o Homem dos últimos tempos, o Homem
aparece nos evangelhos como a mais importante
novo, o novo Adão (Rm 5.12-21; ICo 15.22;
de todas. Uma simples olhada na Concordância Fp 2.5-11), o iniciador da nova humanidade
grega revela-nos de imediato, três fatos impor- em contraposição ao velho Adão, pelo qual a
tantes a) A designação é própria dos evange-
: morte entrou no mundo. Segundo o NT, Jesus
lhos é encontrada apenas 4 vêzes nos demais
: é de fato o Homem entre todos os homens o :

documentos do NT, e, destas 4, 3 são citações Homem dos últimos dias, investido da autori-
do VT (Hb 2.6 citando SI 8.5; Ap 1.13 e dade judiciária sobre tôda a humanidade (Mt
31-46). Êste Homem do NT, confrontado com
14.14 citando Dn 7.13. A outra citação está
as concepções correntes revela, entretanto, as
nos Atos 7.56. De um total de 81 textos evan-
seguintes particularidades: a) cumpre sua obra
gélicos mencionando o "Filho do Homem", 25
terrestre na dor e na ignomínia (combinando em
estão em Lucas, 14 em Marcos, 30 em Mateus
sua pessoa figuras do Homem-Juiz e do
as
e 12 em João), b) A expressão designa, inva- Servo-Mártir de Isaías) b) cumpre sua obra
;

riàvelmente, a Jesus; salvo uma vez, no plural, não em um recuo tenebroso, indeterminado e
significando os homens em geral (Mc 3.28). c) confuso dos tempos, não através de um ciclo
Fato ainda mais surpreendente a expressão é
: perpétuo e cósmico, mas na pessoa bem histó-
usada exclusivamente por Jesus, falando de si rica e bem próxima de Jesus de Nazaré. Quem
mesmo. A locução grega "ó uios toú ânthropou" há de vir a julgar os vivos e os mortos, é
é a tradução do "bar anasa" aramaico que de- aquêle mesmo que os salvou morrendo por êles.
signa o indivíduo humano por oposição à cole- Morrendo para salvar Eis sua maneira de
!

tividade humana (como em Gn 49.22: "broto iniciar a nova humanidade, o nôvo mundo. Fi-
da árvore", ou em Ec 10.7: "Filho do nobre", nalmente c) Êle não vem arrancar o indivíduo
para designar a árvore ou o nobre) . das garras do tempo e da matéria, mas revelar-
154 JESUS

lhe responsabilidade para com os outros


sua cristã dos primeiros tempos. Os cristãos
homens, cm
particular para com os humildes e chamando a Jesus de "Senhor", acen-
primitivos,
os enfermos, porquanto Êle mesmo se declara tuavam a) que o próprio Deus foi quem. me-
solidário aos humildes, fracos e enfermos (Mt diante a elevou Jesus ao senho-
ressurreição,
25.31-46). rio supremo (Fp 2.5-11)b) que tal senhorio
;

consistia em uma autoridade que torna perfeita-


5. Jesus, Senhor. O termo grego "Kyrios", mente real a própria autoridade de Deus e
comumente traduzido por "Senhor" nas línguas identifica-se com esta até pràticamente formar
neo-latinas, aparece mais de quinhentas vêzes uma só e a mesma autoridade ICo 12.3; (

em o NT. Entre todos os nomes cristológicos, 8.5-6) e) que o senhorio de Jesus revela-se
;

éste devia ser o mais corrente nas comunidades


com o caráter de uma vitória já ganha sôbre as
cristãs. "Kyrios", não obstante, era apenas um
têrmo rotineiro da língua popular e designava
falsas —>autoridades que governam o mundo,
embora esta vitória ainda não esteja plenamente
qualquer pessoa profana, como também as enti- manifesta (Cl 2.6-10; IPe 3.22); d) que o
dades veneradas nos cultos. Importa, portanto,
"povo" do Senhor Jesus (=a
Igreja), con-
distinguir com cuidado as diversas acepções da gregando-se agora entre tôdas as nações, está
palavra dentro do contexto bíblico. absolutamente certo da vitória decisiva de seu
Nos evangelhos sinóticos nota-se imediata- rei não se trata de fazer Jesus um rei, mas
;

mente que nem Marcos nem os textos mais de lutar e de convencer a todos quantos ainda
arcaicos dão a Jesus o apelido de Senhor (Mc não reconheceram sua autoridade.
11.3 é uma exceção) que Lucas, pelo con-
;

Jesus exerce a autoridade divina o "dia do :

trário, usa-o frequentemente no sentido de rabbi-


Mestre (5.8; 7.13; 9.54; 10.1; 13.8; 14.21ss;
Senhor" ( =
de Iavé) esperado por Israel, é
o dia de Jesus (Mt 24.42; At 2.20; lTs 5.2;
17.37, etc.) e neste caso, "Kyrios" significa o
;

respeito profundo e a total submissão do dis-


2Ts 2.2). A
exemplo dos antigos soberanos do
Oriente, terá Jesus a sua parusia (em latim
cípulo para com seu mestre. Os rabinos da
Palestina rodeavam-se de discípulos e exigiam
adventus —>
advento), sua entrada triunfal na
terra submetida à sua obediência. Igreja sus- A
deles um respeito que, não raras vêzes, degene-
pira por êste advento: "Maran atha: vem, Se-
rava em servilissimo, estigmatizado pelo pró-
prio Jesus.
nhor!" (ICo 16.22). No VT
êste advento do
Senhor caracterizava-se por dois traços impor-
Aeste sentido de Senhor =
Mestre, cumpre
tantes: a) Êle é quem governa a História: a
acrescentar os sentidos de avio ou chefe (de
despeito das aparências, Iavé é quem conduz
família, Lc 1.43; Ef 6.5; IPe 3.6, etc), de
Israel ao destino que lhe reservou, quem estende
patrão (de uma empresa, Lc 16.3.5; etc), de
sua poderosa mão sôbre as nações da terra.
proprietário (de uma vinha, de escravos, Mt
b) O senhorio de Deus era, antes de mais nada.
13.27; Lc 13.8; Mt 9.38, etc), de superior
o senhorio de um rei- juiz, senhor exclusivo do
(de um soldado ou funcionário, At 25.26 o = perdão. Ambas as características passam para o
imperador romano), de governador (Pilatos:
Mt 27.63), de qualquer personagem misterioso NT e constituem a base da primitiva concepção
do senhorio de Jesus.
ou impressionante (At 16.30: Paulo e Silas),
etc. Estas diferentes acepções de "Senhor" lem-
O senhorio de Jesus Cristo se reveste de um
bram-nos que a sociedade antiga era essencial- caráter plenamente concreto, por dois motivos
mente hierarquizada a condição humana não
:
principais: a) o Senhor nosso é, e eternamente
se caracterizava pelas qualidades ou capacida- será, aquêle que sofreu e expirou na cruz por
des do indivíduo, mas só pelas relações de de- nossa salvação. Seu direito a reinar provém de
pendência e de liberdade mais uma razão para
:
seu aniquilamento total sôbre o patíbulo Jesus :

anotar que exclusivamente Jesus merece da fé é o Senhor por ter sido antes o Salvador do
primitiva o título de Mestre e Senhor. Rm
5.6-8; 6.4-9;_lCo
mundo (Fp 2.5-11;
Todavia, acepção corrente e profana
nesta 1.23-24). Ademais, b) seu senhorio se estende
do têrmo "Senhor", não está a raiz ou fonte não apenas sôbre a História em geral, derro-
literária e teológica da fórmula primitiva "o :
tando o pecado em geral, mas sôbre a História
Senhor Jesus". Os evangelhos sinóticos nos e o pecado de cada indivíduo. Portanto. Cristo
conduzem a outra interpretação, recordando-nos possui autoridade sôbre a vida pessoal, bem
que a versão grega, vulgarmente chamada dos como os principados dos céus e da terra (ICo
Setenta, traduz sempre por "o Senhor" o subs- 7.39; 11.27; Cl 3.22). Cristo governa a vida
tantivo hebraivo "Adonai", bem como o ideogra- interior da Igreja nos mais íntimos detalhes,
ma sagrado (grupo de letras intraduzíveis) cor- bem como o desígnio geral e universal da
respondente a Iavé, Deus de Israel (Ver Mc salvação (ICo 15.58; 4.17; 16.10). Para que
1.3 comparado com Is 40.3; SI 118.22ss; 12. venha a nós o seu senhorio, é que foi concedido
36; SI 110.1). Êste salmo 110, em particular, à Igreja o carisma da oração milagrosa, "pneu-
teve um papel evidente e importante na reflexão mática" (2Co 3.17; 12.8). suma. o senho- Em
;:

JESUS 155

rio de Jesus Cristo é a realidade mais íntima e .veio salvar um determinado povo, infeliz e
mais universal da vida dos povos e da existência oprimido, no caso, o gó-el judeu),, nem deter-
dos indivíduos (Fp 3.8; Rm 15.30; ICo 1.2). minadas almas preparadas para o seu encontro
Mesmo sendo um objeto perene de fé (e nunca veio libertar a humanidade inteira, considera-
de vista ou sentimento), êle governa o crente da global e totalmente perdida (Jo 4.42; ljo
com uma eficária irrealizável para qualquer 4.14; lTm 2.4, etc.) c) pela concepção radical
outro poder da terra.
;

do perigo que retém o homem cativo: o ^pe- —


0. Salvador. O qualificativo "Salva-
Jesus.
cado e a —> cólera vindoura (Mt 1.21 lTm
1.1; 2.3; 4.10, etc); d) pelo papel confiado,
;

dor" dado a Jesus aparece raramente em o NT nesta obra salvadora à pregação e ao ensino
(Lc 2.11; Jo 4.42; At 5.31; 13.23; Fp 3.20. apostólico (conferir os .numerosos textos das
Nas epístolas deutero-paulinas Ef e Pastorais,
:

11 vezes, e nas demais epístolas, 7 vezes). Ca-


epístolas pastorais:
caráter escatológico
—>Pregação) e) pelo
salvação anunciada
da
;

racteriza os escritos mais tardios do NT. De- o Salvador fêz a sua parte suficiente agora ;

vemos mencionar o fato com tanto mais razão êle reúne, mediante a pregação, o seu povo e,
que êste qualificativo era, então, muito usado posteriormente, voltará a julgar e salvar os
fora do cristianismo, e que, posteriormente, homens para. finalmente, entregar a Deus a
ocuparia um lugar capital dentro da própria humanidade tôda, e o universo inteiro reconci-
reflexão cristã. liado (Fp 3.20; Cl 1. onde o têrmo Salvador
No antigo paganismo, deuses salvadores não está implicado, embora não pronunciado).
deixaram de aparecer em grande número e di-
versidade, conforme as épocas e os lugares. Na 7. Jesus. Nôvo Adão. Sabemos, por uma
base destas especulações ou mitos, encontramos documentação abundante, que a figura do pri-
os diferentes conceitos de perigo, de ameaça su- meiro Adão prestou, antes mesmo da era cris-
posta contra os homens. A determinado perigo tã, para vastas especulações teológicas. Os
acidental (como guerra, revolução social, tem- rabinos usavam a expressão "o primeiro Adão"
pestade, flagelo, peste), corresponde um deter- mesmo ignorando a idéia de um Salvador, 'se-
minado deus "especialista" (Asclépias, Poseidon. gundo Adão". Em
compensação, o judaísmo
Artêmis, etc.) que socorre os mortais, se as- helénico, (da Diáspora), conhecia muito bem a
sim lhe aprouver, na hora da necessidade a :
idéia de que o Salvador esperado havia de ser
salvação do homem depende do arbítrio impre- uma réplica de Adão, ou talvez o mesmo Adão.
visível dos deuses salvadores. A mente helénica O conceito do Homem ideal, familiar a Filo.
concebe homens-salvadores, guerreiros, gene- acompanhava a idéia que se fazia do Salvador
rais, fundadores ou benfeitores de cidades, dan- como Homem original e nôvo.
do a idéia de salvar uma extensão comunitária Oapóstolo Paulo, aparentemente bem in-
ou história particular (tal cidade foi "salva" formado acerca destas especulações, deu-lhes
a tal data por tal herói-salvador). O império vida e precisão novas (Rm 5.12-21; ICo
romano respondeu, certamente, a uma sêde uni- 15.22, 45-49). Cumpre notar que Paulo não
versal de salvação, ou seja, essencialmente de se interessa pelo primeiro Adão em si (como
paz e de prosperidade económica (ver a 4. a églo- faziam os rabinos atarefados na descrição das
ga de Virgílio). Porém, mais tarde, a idéia de perfeições do Homem original ) , nem mesmo
salvação novamente se interiorizou e se indivi- para descrever a pessoa do homem em geral ou
dualizou e quando aparece o cristianismo, es-
;
do homem Jesus em particular nunca esboça ;

tão a circular numerosas técnicas religiosas ou qualquer paralelismo entre Adão e Jesus com
filosóficas, visando assegurar a salvação me- 0 fito de enaltecer a Jesus. Xo entanto, usa
diante o auto-domínio moral e a iniciação à a figura do primeiro Adão (para êle. certa-
imortalidade. A gnose pagã concebia a salvação mente histórica, segundo parece), para expli-
como uma libertação da alma cativa na matéria car a obra histórica de Jesus estabelece in-
:

corporal um mensageiro celeste, enviado para


: tencionalmente um paralelismo Adão-Jesus.
a libertar, trazia a salvação, resgatando a faísca para melhor ressaltar a diversidade de Jesus
divina encerrada como um germe de vida no Cristo. A obra de Deus em Jesus Cristo jaz
—> homem. Concebia-se a salvação e o sal- 1 mbrar sua obra em Adão, mas não é, de
vador em termos mais mitológicos e cosmoló- maneira nenhuma, idêntica. A História não
gicos do que pessoais e históricos. se repete, mas avança rumo à sua execução
OSalvador do NT caracteriza-se, pelo con- final, ou seja, rumo à salvação da humanida-
trário, a) por uma concepção histórica bem de- de inteira. Em outras palavras, Adão é o
finida o Salvador nasceu num lugar e num
:
tipo, a figura de Cristo.
tempo dados, ao cabo de uma longa espera, sus- Em Rm 5.1-21, São Paulo opõe Jesus Cristo
citada pela —>
promessa de Deus a seu po-
vo (Lc 2.11) b) por uma concepção universa-
ao primeiro Adão, para ponderar a vitória da
graça sobre a condenação e a morte. O têr-
;

lista da obra de Jesus, o Salvador êle não: mo principal da oposição é o 'muito mais' do
>

156- JESUS

vers. 15 ('se, pela ofensa do primeiro Adão. de mediação entre Deus e os homens. Pelo
a morte entrou na humanidade, muito mais a contrário, a mediação desempenha papel con-
graça de Deus reinará nela pelo dom de Jesus siderável na velha aliança, distinguindo-se niti-
Cristo'). Na base desta reflexão encontramos damente de idéia análogas de outros círculos
a idéia, fundamental na Bíblia inteira, que religiosos. Para outras ideologias, a mediação
Deus nunca 'trata' com a humanidade em ge- fazia parte representações cos-
das próprias
ral, mas com determinado homem ou povo. mológicas: aquilo que ocupa o centro do cos-
que a representa perante êle, arrastando-a para mos (da terra, do universo, da humanidade ou
a morte ou para a vida. Em ICo 15, a figu- do indivíduo) possui o poder de se comunicar
ra do primeiro Adão dá a Paulo ocasião de com o mundo celestial ou divino. Assim, o
fundamentar, por oposição, a certeza da res- Logos de Filo, por exemplo, sendo a razão di-
surreição corporal (= pessoal) dos crentes. vina, imanente no mundo, irradia o universo
A criação da humanidade foi feita por Deus desde o centro até as extremidades. Noutros
em dois tempos criou primeiramente a huma-
: ambientes, a idéia da mediação funda-se num
nidade terrena ou animal, representada pelo conceito panteísta da divindade: Deus está
primeiro Adão, e depois, a humanidade celes- difundido pelo universo, nas almas, no espirite»
te ou espiritual, representada pelo segundo humano, sendo fácil comunicar-se com Deus me-
Adão, Jesus Cristo. Êstes dois atos criadores diante certas práticas ou mediante determina-
do mesmo Deus não fornecem a Paulo qual- das pessoas (sacerdotes, profetas, heróis etc. ).
quer pretexto para formular juízos de walor ou cuja virtude específica é precisamente revelar
comparações curiosas, porém constituem, para valorizar o tesouro religioso comum a todos
êle, fatos históricos de incalculáveis consequên- os homens. Frequentemente, as doutrinas media-
cias, uma vez que o homem pode, pela fé em doras revestem de um caráter mítico bem pro-
Cristo ('os que são de Cristo', ICo 15.23), nunciado o povo relata as aventuras dêste ou
:

passar da humanidade proto-adâmica condenada daquêle enviado encarregado de reconduzir as


à morte, à humanidade deutero-adâmica des- almas a Deus, libertando-as da matéria e do
tinada à ressurreição final. Paulo não consi- corpo tais fábulas denotam uma espécie de
;

dera êsse trânsito de uma para outra humani- permanente vir-a-ser, seus enviados estão des-
dade, como um processo cósmico, mágico, im- ligados da realidade histórica, ou pertencem a
pessoal, mas como o ato pessoal da fé corres- um passado remotíssimo, envolto nas trevas
pondente ao Evangelho da graça. incontroláveis, ou a um futuro que nunca se
Não deixaremos de descobrir nos evangelhos aproxima.
vestígios de reflexões semelhants. O relato No VT, pelo contrário, Deus domina poi
da tentação de Jesus (Mc 1.13), por exemplo, inteiro o universo criou-o, conserva-o e gover-
;

apresenta o Salvador como 'o Homem fiel dos na-o com poder exclusivo. Deus não está no
últimos tempos' em contraste com a infidelidade centro das coisas,mas transcende-as, está além
do primeiro Adão. A genealogia de Lucas e acima Sua autoridade não provém
delas.
(3.39), propositadamente, afilia Jesus ao pri- do lugar que ocupa antes, certos lugares pos-
;

meiro Adão, "filho de Deus" conforme também suem uma importância mediadora exclusivamen-
o "Mediador-Homem" de lTm 2.5). O ape- te pelo fato de que Deus os escolheu para nê-
lido "Filho do Homem" que Jesus dá a si mes- les manifestar (p. ex. o tabernáculo, o al-
se
mo, sobretudo indica que êle é o inaugurador.
"as primícias" de uma nova humanidade, ou
tal, Jerusalém, etc. —>
Nomes geográficos)
Tais lugares tornam-se os centros do mundo
.

mais exatamente, de uma nova criação, na qual em um sentido absolutamente nôvo. Ademais,
doravante estão incorporados os fiéis mediante o mediador do VT
não deixa de ser uma figu-
a fé e a efusão escatológica do —
Espírito. ra solidamente histórica, um homem entre os
homens, e não um semi-deus ou um super-ho-
8. Jesus, Mediador. "Mediador" é um ter- mem êle é um homem autorizado unicamente
:

mo raro em o NT. Aparece apenas cinco ve- pela graça de Deus logo, representa a Deus
;

zes (Gl 3.19; lTm 2.5; Hb 8.6; 9.15;12.24): e também ao povo (Moisés, o profeta, os reis.
o verbo correspondente, uma só vez (Hb 6.17). e. num sentido mais íntimo e misericordioso, o
Parcimônia que corre paralela com igual dis- >
Servo de Iavé, do Profeta Isaías). Fi-
criação no VT (mesmo o "mediador" de Jó nalmente, êste mediador é encarregado de u'a
9.33 é uma tradução infiel do têrmo hebraico missão, ou "obra". Não é em virtude de suas
original). Tardiamente o judaísmo helénico e perfeições morais ou religiosas que o media-
rabínico inventará o têrmo "sarsur" para ex- dor comunica Deus aos homens profeta, rei :

pressas a idéia de mediação, sem, no entanto, ou sacerdote, êle exerce, simplesmente, um


aproveitar êste conceito para qualquer visão
teológica importante ou original.
— ^ministério. Antes de mais nada, êle fala
(pronuncia a palavra de Deus), êle sofre pelo
Mas esta pobreza de vocabulário da Bíblia pqvo (Moisés, o Servo de Iavé, Jeremias,
não significa contudo, a ausência do conceito Amós, etc), êle ora {— intercede: na inter-
: ;

JESUS 157

cessão se melhor manifesta a humanidade do 9. Jesus, Cordeiro de Deus. A palavra


mediador. Orando ,mostra-se "homem entre "Cordeiro" aplicada a Jesus, aparece somente
homens" e "homem perante Deus"). Falar, so- quatro vêzes em o NT
(Jo 1.29; 36; At 8.32;
frer, orar, eis as três formas principais de IPe 1.19). Em Jo 21.15 e em Lc 10.3, a pa-
sua ação: elas mostram, claramente, que o lavra 'cordeiro" tem outra aplicação, e tra-
mediador, na opinião do VT, sempre representa duz um térmo grego diferente (armion)- Esta
a Deus com encargo de comunicar uma vonta- palavra arnion aparece repetidas vêzes no Apo-
de divina aos homens, e representa sempre o calipse 5.6,8,13; 6.1,16; e em mais dezoito tex-
povo perante Deus, não em virtude de ritos ou tos), sendo esta palavra quase exclusiva dos

práticas mágicas, mas em virtude da vocação escritos joaninos.

divina (interpretação particularmente clara na A fonte literária e teológica desta expressão


obra de intercessão). deve ser buscada no VT. Comprovamos, com
todos efeito, referências seguintes: a) Jesus é <>
as
Êstes caracteres gerais encontram-se
Cordeiro de Deus no sentido do cordeiro pascal,
na ideia primitiva do "Cristo Mediador". Esque-
conforme Ex 12, "imolado por todo o ajunta-
matizando muito, poderíamos afirmar que os mento de Israel" (vers. 6). Oblação pascal
evangelhos sinóticos mostram em Jesus
cipalmente o Mediador Profeta, que fala, que
prin-
com a tríplice característica de ser: 1.° — um
rito instituído por Deus visando a salvação de
anuncia o Reino, que proclama a nova Lei, que Israel : o sangue do cordeiro é apenas o símbo-
opera os sinais precursores do Reino, perdoan- lo-sinal 13) e não o instrumento da li-
(vers.
do com o poder de Deus e realizando sua obra bertação tôda a iniciativa pertence a Deu.-,
e

;

"a favor" do povo (Mc 10.45), que permanece


2.° uma instituição perpétua (vers. 14.17.
fiel à humanidade e à obediência, até que estas
24), uma festa, uma cerimónia, que devia
renovar (e não apenas rememorar) a aliança
o levem à cruz.
e, numa
As epístolas de São Paulo
perspectiva diferente, a epístola aos de Deus com 3.° Israel ; —
antes de mais nad,a.
um de oblação e de ação de graças
sacrifício
Hebreus, mostram-nos em Jesus, o Mediador-
Sacerdote que, reduzido à condição do homem
(
—> sacrifício —>
Eucaristia) A festa pas-
cal assim celebrada, conferia a certeza reno-
.

mais vil, sofre "pelos pecados" e suporta por vada de que Deus novamente pouparia o seu
nós a divina maldição. O quarto Evangelho povo. É nesta perspectiva sacrificial que Pau-
nos mostra, o Mediador-Intercessor, que ora lo declara "Cristo, nossa Páscoa, tem sido
:

por aquêles que Deus lhe tem dado, que os ali- imolado" (ICo 5.7, texto corroborado por Hb
menta e os dirige, que se dá a êles e por êles, 11.28 e por inúmeros textos do Apocalipse)
agora durante seu ministério histórico, e logo b) Isaías 53.7 compara o Servo de Iavé ao
durante a vida da Igreja: no Evangelho de "cordeiro levado ao matadouro" e declara que
sóbre êle Deus fêz recair a iniquidade de todos
João aparecem, de fato, indissoluvelmente uni-
nós. Visto que a figura do Servo-Mártir ins-
das, as perspectivas atuais e futuras da ação
pirou intimamente a reflexão da Igreja primi-
de Jesus.
tiva, motivos há para opinar que se lhe ajun-
Esta suma doutrinal, mais ou menos ela- tasse também a imagem de "Jesus, Cordeiro
borada, está implícita no texto de lTm 2.5. de Deus, nossa vítima vicária", o nosso "cor-
que salienta, em particular, a humanidade de deiro sem mácula" (1 Pe 1.19), conforme a
Jesus Mediador :"há um só mediador entre ordenança pascal o nosso "cordeiro mudo e
;

Deus e os homens, Cristo Jesus, homem", para paciente na paixão, imolado por todos nós (Jo
fundamentar melhor o caráter da graça ofere- 1.29, 36; IPe 1.19-20), como o Servo de Iavé
cida aos "homens" por Deus ( =
o Mediador mencionado por Isaías. Cabe também opinar,
é "resgate por todos"). Gálatas 3.19 é um eco a despeito dos pareceres opostos, que a idéia do
das especulações judias sobre Moisés, media- cordeiro vicário do povo, em substituição a Is-
dor da Lei, mas com a intenção de desprestigiar rael, que Deus poupa, não está ausente nos
esta Lei, superada e realizada em Cristo. Os relatos evangélicos da última ceia de Jesus
textos da epístola aos Hebreus são bastante com os discípulos.
significativos por causa do paralelismo entre as
idéias de mediação e de aliança; confirmam 10. Jesus, Sunw-Sacerdotc. O NT aplica a
nossas reflexões anteriores, proclamando que Jesus, com
freqúncia, a idéia de vítima sacri-
a) é Deus quem guarda a iniciativa da me- ficial oferecida a Deus; no entanto, apenas He-
diação, sendo o mediador apenas um enviado, breus 2.17; 3.1; 4.14ss; 5.1,5; 6.20; etc.) vê
e, por outro lado, b) que o mediador está re- em Jesus também "o sacerdote" ou "o Sumo-
vestido de autoridade histórica e concreta, com Sacerdote", relacionando -o diretamente com o
poder de reconduzir os homens a Deus (pois, VT (particularmente Lv 16) e aplicando-lhe a
exclusivamente êle é o mediador "autorizado" função sumo-sacerdotal de entrar, uma vez por
por Deus). ano e por ocasião da festa das expiações, no
;

156 JESUS

Santo tios Santos ( Templo) —>Não se . Cristo, feito uma vez para sempre, ser perfei-
único e eternamente suficiente.
deve crer, contudo, que Hebreus se contenta to,

com aplicar a Jesus as funções e os caracteres


do Sumo- Sacerdote da Lei antiga; pelo contrá- 11. Jesus, Cabeça da Igreja. Efésios e Co-
rio, sua intenção é demonstrar a superioridade lossenses repetidas vêzes aplicam a Jesus o ape-
de Cristo-Sacerdote sobre o sacerdócio levíti- lido "cabeça" (Ef 1.22-23; 4.15-16; 5.23-24;
co superioridade em perfeição, porquanto Je-
:
Cl 1.18; 2.10, 19). É pouco provável que tal
sus leva à plenitude o que era imperfeito so- ;
modo de falar seja um mero desenvolvimento
bretudo, superioridade de iniciação, porquanto da imagem "Igreja-Corpo de Cristo" de Rm
ele instaura uma nova idade da História re- 12.4ss e ICo 12.4ss; também seria um êrro
dentora e revela uma nova intenção de Deus crasso interpretá-lo como uma versão cristã do
acerca da humanidade. conceito estóico do mundo "personalidade co-
Cristo nada é sem
letiva" pois, evidentemente,
a) Assim como o sacerdote da antiga Lei seu corpo (a Igreja) e a Igreja nada é sem
"representava" perante Deus o povo de Israel,
sua cabeça (Cristo). Os textos de Efésios e
Hebreus insiste primordialmente na humanidade Colossenses vão, para outra direção e emanam
dc Jesus, perfeita, não pecaminosa (7.26), mas
de fontes literárias gnósticas acêrea do papel
obediente. Jesus, o Sumo-Sacerdote, pode sal- do primeiro Homem na criação do mundo, ou,
var os homens, pois foi homem como êles co- ;
com maior probabilidade, do VT, que expres-
mo todos êles, foi tentado (2.18; 4.15) no so- sa com o têrmo "cabeça" a idéia de autoridade
frimento e até na cruz (5.7-10; 2.17). Êle é
diretora (Jz 10.18; 11.8-11; SI 18.44: "das con
sacerdote ao mesmo tempo que Filho submisso
tendas do povo me livraste, e me fizeste cabeça
e obediente. A
eficácia de seu sacrifício está
das nações povos desconhecidos me serviram".
;

fundada em sua perfeita humanidade.


Compare-se o curioso texto de Is 9.13ss).
b) O sacerdote da antiga Lei tinha necessi- Em Ef 4.15-16, domina a idéia de Cabcça-
dade de sacrificar, primeiramente, pelos pró- Antoridade (comparar a hierarquia de ICo
prios pecados (7.26-28). Jesus, santo, incul- 11.3). Os cristãos são exortados a crescer, li-
pável, sem mácula, sacrifica somente pelos ou- teralmente,rumo a Cristo. Seu crescimento não
tros. O seu sacrifício, está revestido, portan- se entende como um processo orgânico, impes-
to de muito maior eficácia. soal, mas como uma fidelidade à "verdade"

c) O sacerdote de Levi sacrificava cada evangélica e uma


"edificação" na caridade fra-
dia, renovando incessantemente o rito purifi-
terna. Em Cl 2.19, a perspectiva é também
polémica contra qualquer tipo de "crescimen-
:

cador. Jesus sacrificou uma vez por iodas


to espiritual", preconizado pelos hereges, Paulo
(7.27; 9.24-28; O sacrifício de
10.10,12,14).
proclama que a Igreja tem recebido já o seu
Cristo reveste-se, de um caráter que é
pois,
"chefe cabeça" e que assim importa e basta
eterno (é "da ordem de Melquisedeque"), êle
permanecer fiel submisso à verdade apostólica,
;

é constantemente satisfatório perante Deus, pa-


única maneira concreta e cristã de permanecer
ra o consolo dos crentes. Seu sacrifício não
"vinculado à cabeça".
pode ser renovado abre uma nova era na His-
:

tória das relações entre Deus e a humanidade, Cl 2.9-10, Ef 1.22 e 4.15 aplicam a idéia de
e permanece para sempre (7.24). atualidade A Cristo-Cabeça não somente à Igreja, mas a to-
do sacrifício de Cristo está fundada, portanto, do o universo. Cristo nos é apresentado como
o chefe-cabeça, o senhor de todas as autorida-
sobre sua própria eternidade, sendo esta eter-
nidade a característica e definição da obra úni- des e de todos os poderes. Tais —
^autorida-
ca, realizada na cruz. des e poderes são os anjos ou demónios que
presidem, aparentemente, os destinos humanos,
d) Logo, Jesus entrou para sempre na pre- sendo, destarte, merecedores de nossa venera-
sença de Deus mas, ao contrário do sacerdote
;
ção, conforme ensino de certas doutrinas (Ver
da aliança antiga, Jesus permanece na divina Cl 2.18-19). Paulo lhes opõe a autoridade
presença, revestido para sempre da autoridade única de Jesus Cristo, abarcando não apenas a
de Sacerdote-Rei. Seu sacrifício acarreta duas Igreja, mas o universo. Notemos:
consequências, uma para Jesus, que foi elevado,
de uma vez por todas à realeza sacerdotal, e a) que êste papel cósmico de Cristo deriva
outra para nós, que doravante temos aberto de sua missão de Salvador e Senhor da Igrejy
um acesso definitivo a Deus (6.17-20; 9.23; (Cl 1.20) o texto não explica a obra da cru/
;

10.19). pela autoridade cósmica de Jesus Cristo, mas.


pelo contrário, a autoridade cósmica de Jesus
Toda a demonstração de Hebreus, hoje para
pela cruz redentora
muita gente difícil de seguir, tira sua fôrça,
precisamente, de sua total simplicidade : para b) que a função do Cristo na criação do
robustecer nossa fé, ela dá, intencionalmente, universo ( —
criação contínua, uma vez que
grande ênfase ao fato de o sacrifício de Jesus "por êle subsistem as coisas", Cl 1.17) não é
:

JUDEUS 159

aqui mencionada para ressaltar a perfeição do conservando muitos ritos não ligados propria-
universo ou negar a existência das autoridades mente às cerimónias litúrgicas circuncisão,

:

celestes adversas, mas para sublinhar a suficièi* prescrições alimentícias, santificação do >*a-
cia perfeita da obra reconciliadora de Cristo bado. O NT designa-os, comumente, como
nunca atingiremos o Cristo criador, sem antes "helenistas" (At 6.1 9.29; 11.20, etc), porque
;

termos passado pelo Cristo crucificado (Cl falavam, quase todos, o grego, quer como lín-
1.22). gua única (como Filo), ou ao lado do ara-
maico (como o apóstolo Paulo). O quarto
c) que, embora seja Cristo o cabeça tanto
Evangelho, falando "da diáspora dos gregos",
da Igreja como do universo inteiro, nunca se
ou simplesmente "dos gregos" (7.35-36), men-
confundem estes dois domínios: a Igreja nunca
ciona os judeus falando o grego.
deve se confundir com o mundo, nem sequer a
pretexto de salvar o mundo mas deve crer uue
;
A extensão da Diáspora explica-se só em
parte pelas deportações praticadas pelos Assí-
Jesus Cristo venceu o mundo e o subjugou, e
deve anunciar Cristo a êste mundo; rios (722), Babilónios (597 e 587). Persas
(350), pois, o volume destas migrações for-
Xaépoca atual da História da salvação, não
çadas não se deve exagerar elas se faziam
;

nassa de um mero objeto de fé a reunião da


unicamente rumo à Babilónia, Média ou Hir-
Igreja e do mundo sob a autoridade do mesmo
cânia. O segundo capítulo de Atos menciona,
Senhor a despeito desta ser uma realidade,
:

presentes na Capital para o Pentecoste, visi-


falta ainda que seja uma realidade manifesta.
tantes partos, medos, elamitas, e outros vindos
A "recapitulação" (Ef 1.10) universal sob uma
da Mesopotâmia, da Capadócia, do Ponto, da
autoridade única é o termo final dos intentos Panfília, do Egito, da Líbia, da Cirenáica, de
divinos, realizada "radicalmente na raiz" = Roma, de Creta, da Arábia. Grandes colónias
pela morte e ressurreição de Cristo, porém ain-
de judeus residiam na Filistéia, na Fenícia, na
da não manifestada definitivamente, enquanto Síria, na Grécia, em Chipre, em Pompéia. No
Deus não fór "tudo em todos" (ICo 15.28).
segundo século de nossa era, encontram-se ju-
P. BO XX A RD deus em Cartago, na Numídia ( Algéria e —
Tunísia), na Mauritânia (= Marrocos), na
Espanha e na Gália. A situação social dêstes
JUDEUS transplantados variava muito, evidentemente.
1. Xoçõcs gerais. Quem pretendesse alojar Dedicavam-se preferentemente ao comércio,
na Palestina a maioria dos judeus contempo- juntando, às vêzes, fortunas consideráveis, mes-
râneos de Jesus erraria grosseiramente. Gran- mo nos países de deportação (ver a História
de parte dêles morava na Galiléia, eram israe- de Tobias).
litas judaízados, mais exatamente, descendentes Teológica e literàriamente. sobressaíram os
das tribos de Neftali, de Issacar, de Zabulom judeus da Babilónia, e mais ainda, os de Ale-
e de Asser, os quais, contràriamente aossama- xandria. Em Alexandria foi publicada a ver-
ritanos,aderiam ao culto de Jerusalém. Mas são grega mais importante da Bíblia, para uso
a grande maioria dos judeus vivia fora da Pa- não apenas dos pagãos prosélitos, mas sobretudo
lestina, constituindoa Diáspora. É difícil ava- dos judeus esquecidos do hebraico. Também
liar seu número, mas era indubitàvelmente nesta Alexandria cosmopolita Filo escreveu as
considerável (contavam-se de 6 a 7 milhões obras famosas, cujo conjunto forma a síntese
no Império Romano, dos quais um milhão no mais notável da filosofia grega, da teosofia
Egito. Na Roma de Tibério formavam uma oriental e da fé judaica.
colónia de 50.000, sóbre uma população global A situação dos judeus, dentro do Império
de 800.000 almas). Tanto os autores judeus Romano, foi privilegiada. Estavam eximidos
como os pagãos concordam em afirmar que o do culto imperial, mas deviam oferecer a Iavè
mundo estava "cheio de judeus". Acrescentem- um sacrifício cotidiano, no seu Templo, a fa-
-se os residentes fora do Império, em particu- vor do imperador. Estavam exonerados tam-
lar na Babilónia, onde prosperavam os estudos bém, do serviço militar. Os mesmos Césares
rabínicos. Na própria Palestina, o seu número (explicitamente César e Augusto) confirma-
diminuiu, sem dúvida, em razão das guerras ram-lhes o direito de julgar as suas próprias
de 70 e de 130, mas êste não foi de modo causas, excetuados, naturalmente, os delitos ou
algum, o caso das outras regiões, crimes contra os estranhos pagãos. A guerra
judaica da Palestina (66 a 70) trouxe, como
2. Os judeus da Diáspora. Folga dizer que repercussão, uma série de perseguições no Egi-
participavam apenas em escala reduzidíssima do to. em Damasco e alhures, provocadas muito
culto no —>
Templo. Com exceção de um
grupo de Judeus egípcios, que tinham seu templo
mais pela povoação do que pela autoridade ro-
mana. As vexações foram efémeras. O édito
particular em Elefantinas, a religião da Diáspora de Cláudio, expulsando os judeus de Roma (At
permaneceu centralizada sóbre o culto sinagogal, 18.2), teve apenas um alcance local transitório.
3 60 JUDEUS

Em tôda parte os judeus faziam "prosélitos", O NT conhece, não obstante, casos de fa-
ou convertidos (Mt 23.15; At 2.10; 6.5:
seja, riseus sinceros e simpáticos, como Nicodemos
13.43), c tratavam de ajuntar importantes gru- (Jo 3.1-2; 7.50-51; 19.39), ou Gamaliel, que
pos de simpatizantes, "temerosos de Deus", não preconizou a tolerância para com os apóstolos
sujeitos às práticas legais, como posteriormen- (At 5.34-38). Marcos 12.32-34 menciona, tam-
te os cristãos vindos do paganismo e parcial- bém um doutor da Lei bem caracterizado e
mente recrutados nas filas destes "temerosos sincero.
de Deus" (ver Atos, passim, cm particular
b) Os saduceus. Menos frequentes c mais
cap. 10, 13, 16, 18).
espetaculares foram os conflitos de Jesus com
os saduceus, palavra que designa os descenden-
3. O judaísmo palestiniano a) Os fariseus
tes do sacerdote "Sadoc" (lRs 2.35; lCr 20.22).
distinguiam-se, na Palestina e na Capital, por
detentores do privilégio de oficiar no Templo
seu fervor religioso. Seu nome, "os separatis-
(Ez 40.46; 43.19; 44.15-16; 48.11). Era a ca-
tas", lhes convinha muito bem, pois cuidavam
tegoria privilegiada, o partido dos sacerdotes, a
de manter-se separados dos pagãos, tidos por
casta sacerdotal superior, aliada aos aristocratas
absolutamente impuros, e dos próprios cor-
que a amparavam. Politicacamente. colabora-
religionários relaxados. Observavam, com
vam com o poder ocupante, pelos quais eram
exemplar meticulosidade, as leis mosaicas e
protegidos. Formavam a maioria no Sinédrio
as prescrições acrescentadas pela tradição, ou
Moralmente (única coincidência como a dou-
seja, pelos rabinos, geralmente filiados à seita
trina de Cristo), repudiavam as prescrições
(Ver Mc 7.3 par, e os muitos textos onde os
bínicas acrescentadas à Lei.
ra-

fariseus são mencionados ao lado dos "dou- Negavam


a res-
surreição dos mortos, não tanto por simpatia
tores", vulgo "escribas"). A
Mischna (Siné-
pela filosofia grega, como por espírito conser-
drio Babil. 10.3) pressupõe mesmo que as
vador, visto que esta doutrina era relativamen-
prescrições dos doutores devem ser observa-
te nova. Jesus, aparentemente, pouco discutiu
das mais literalmente que a própria lei. Os
fariseus tornaram-se, assim, os criadores do di-
com êles (a despeito de Mc 12.18-19; Mt. 21.
23-24 par), quiçá por julgá-los indiferentes em
reito judaico sagrado e profano. Consta-nos que
sua influência tornou-se definitiva sôbre o cul
matéria religiosa. Não deixa, porém,
de pre-
to sinagogal, que era totalmente leigo, sem in-
over seus discípulos contra o
dos fermento
saduceus e dos fariseus (Mt 16.6). Na parábola
tervenção sacerdotal. Desaparecidos o templo
e o clã sacerdotal, o rabinismo ficou senhor do Bom Samaritano dá um papel repugnante
único da religião. tanto ao saduceu sacerdote como ao escriba
levita (Lc 10.31-32). Os saduceus se vingaram
Outras fontes asseveram que os fariseus en
sinavam a —>
ressurreição nos últimos dias
(At 23.6-7), um dos raros pontos coincidentes
e se tornaram os mortais inimigos de Jesus, es-
pecialmente depois da expulsão dos vendedo-
res do Templo, incursão num campo que lhes
com a pregação de Jesus, e a preexistência dos
anjos. Após a morte e a ressurreição, os ho- pertencia com exclusividade (Mc 11.15-18
mens terão de ser premiados ou castigados no par; Jo 2.13-15). Como iriam gostar da pro-
fecia sôbre a ruína do Templo? (Jo 2.19;
além poderão todavia, diante do supremo Juiz,
;

reclamar os méritos acumulados pelos Patriar-


4.21; Mt 26.61; 27.40). No entanto, sendo
a maioria no Sinédrio, tramaram sem dificul-
cas. Os fariseus cultivavam as esperanças
messiânicas, assumiam atitudes ultra-nacionalis-
dade a morte de Jesus. A
acusação de haver
tas e anti-romanas, embora sem passar todos Jesus pretendido o trono político de Israel era,
além de falsa, inspirada na mais calculada
para o partido da resistência, dos "zelotes".
perfídia, destinada a arrancar às autoridades ro-
pois esperavam a libertação pela própria inter-
manas a condenação do profeta. Não é impos-
venção divina.
sível, ademais, que certos saduceus em par-
Com frequência entravam em conflito com
ticular temessem uma nova explosão revolucio-
Jesus, ao qual não perdoaram a violação do
—> sábado e dos preceitos rituais (Mc 2.16;
nária do tipo mencionado em Atos (5.36-37;
cf Jo 11.47-50).
2.23s; 3.1-2 par; 7.15-16 par, etc. ), nem a pre-
tensão de perdoar os pecados (Mc 2.6-7 par), Apósa morte de Jesus, os saduceus, em
menos ainda a superioridade manifestada na ex- conjunto, perseveraram em sua atitude hostil
para com a pregação evangélica, tentando mes-
pulsão dos demónios Mc 3.22-23 par). Jesus,
por sua vez, condenava-lhes sua "micrologia"
mo sustá-la (At 3-5).

( =meticulosidade pueril), sua hipocrisia, sua c) e nazorcus.


Batistas, essênios Aqui nós
vaidade (Mt 5.20; 6.1-6; 16-18; 23.1-36), sua entramos num campo
ainda menos conhecido.
incapacidade de estabelecer, entre os mandamen- É indispensável, porém, lembrar que, quando
tos, uma hierarquia, com o lugar preeminente o NT fala de João, "o Batista", alude à filia-
concedido, como era justo, ao amor a Deus e ao ção religiosa do precursor João pertencia à
:

próximo. seita dos batistas, como "Simão, o Zelote" per-


>
JUDEUS 161

tencia à dos zelotes.


seita Acerca das seitas se denominam a si mesmos "perseguidos pe-
;

batistas (agora, com exceção dos


pré-cristãs los poderosos", mas sempre confiando no Se-
essênios) quase nada sabemos a não ser que nhor (SI 10; 22; 69; 73; 94; 146). Igual
eram dadas a práticas ascéticas e a abluções ri- caracterização encontra-se no pseudepígrafo
tuais. Acerca dos essênios, surgem cada dia "Testamento das Doze Tribos", em particular
maiores notícias, pois as revelações arqueológi- no "Testamento de Issacar" (documento ema-
cas prometem e trazem numerosas e detalhadas nado da Galiléia, onde os fariseus eram, então,
informações. Os essênios viviam, preferente- menos influentes). Jesus apreciava notoria-
mente, na região do Mar Morto, em mosteiros. mente a atitude sincera dos "pobres de espíri-
Parece que João, que pregava precisamente nes- to", dos "mansos", preocupados por ser "pa-
sa região, separou-se dêles devido a uma im- cíficos", "misericordiosos" e "puros de cora-
portante inovação: fêz do —
^>batismo algo ção" (Ver Mt 5.3-10; 11.5: a boa nova é anun-
excepcional, de alto sentido moral e escatoló- ciada aos "pobres'). Os autores da coleção
gico. A tradição evangélica apresenta-nos João dos Livros de Enoc estavam em contacto, sem
perplexo perante Jesus, a despeito das afirma- dúvida, muito íntimo, com os "pobres de Is-
ções do quarto Evangelho (1.29-34) leia-se. ;
rael" c com os "essênios".
em Lucas 7.18-35.
particular, Consta que os
discípulos de João se sentiam em franca opo- 4. Os samaritanos. Para compreendermos
sição aos de Jesus (Mc 2.18; Mt 9.14; Lc 5.33). bem quem eram os samaritanos, é preciso abs-
devido principalmente ao fato de que Jesus re- trair-nos completamente das calúnias contra
jeitava o ascetismo dos primeiros. E, de fa- êles levantadas pelos judeus, que os detesta-
to, o movimento que se reclamou ser de João
vam. Eram, na realidade, israelitas oriundos
Batista marcará rumos históricos independen-
tes do cristianismo (ver em At 18.25, as refle-
das tribos do reino nórdico (
e c) — —
Israel 5 3b)
especialmente de Manassés e de Efraim,
xões sóbre o egípcio Apolo; e, em At 19.1-7. e descendentes dos cativos assírios, incorporados
sobre os discípulos do Batista na Ásia Me- já totalmente à povoação indígena pelo trans-
nor). No Iraque subsistem até hoje descenden- curso de tantos séculos. De fato, os documen-
tes dos batistas, que veneram a João como seu tos atestam que, entre os samaritanos coetâ-
fundador e salvador, e que são violentamente neos de Jesus, não subsistia qualquer vestígio de
hostis ao cristianismo, como também ao judaís- politeísmo ou de sincretismo. Contudo, dis-
mo são os mandeanos. Os mandeanos intitu-
:
tinguiam-se dos judeus pelos seguintes traços:
lavam-se "nazoreus" de um nome que foi tam-
,
a) Embora
reunidos ao reino de Judá pelos
bém aplicado a Jesus e a seus discípulos (ver Macabeus. conservavam o seu altar, construído
o texto grego de Mt 2.3; 26.71; Jo 18.5-7; sobre o monte Garizim, perto de Siquém (ver
19.19; At 2.22; 3.6; 4.10; 6.14; 22.8; 24.5; Jo 4), pois o Templo de Samaria foi destruído
26.9). Não obstante a declaração de Mt 2.23. propriamente por João Hircano, no ano 127 a.
*'nazoreu" dificilmente deriva da cidade de Na- C. Seu sacerdócio reivindicava a descendência
zaré a coincidência só seria explicável se êste
; levítica.
têrmo designasse, primitivamente, uma seita
b) Reconheciam como canónico apenas o Pen-
batista e se Jesus de Nazaré tivesse sido (insi-
nuação do cap. tateuco, rejeitando os Profetas e os Hagió-
1 de João) discípulo do Batis-
ta antes de iniciar sua própria missão.
grafos. Tinham Pentateuco traduzido por êles
na sua língua e escrito em caracteres diferen-
O NT não menciona os essênios, cuja dou- tes do alfabeto hebraico. Por regra geral,
trina moral (notemo-lo bem) anuncia, em mui- eram mais conservadores que os judeus. Cul-
tos pontos, a doutrina moral evangélica, em
tivavam, porém, as esperanças messiânicas era ;

particular na relevância dada à caridade. Em


provavelmente samaritana a crença de um Mes-
sua teologia davam êles um especial interes- sias da tribo de Efraim, mencionada pelo Tel-
se à angelologia e à escatologia. Politicamen- mude.
te começaram se recusando ao serviço militar
Os nossos documentos discrepam acêrea de
por razões de consciência, e acabaram quase to-
atitude dos samaritanos durante a guerra dos
dos nas filas dos "zelotes" e mesmo dos "si-
judeus contra os romanos (66 a 70). Apa-
cários" (terroristas). Sabemos também que
rentemente fracionaram-se, parte a favor e
não tomavam parte do culto sacrificial.
parte contra os romanos. O Imperador Adria-
d)Os "pobres de Israel". Não constituem no aboliu seu culto definitivamente, embora
uma seita bem definida. Como os nossos pie- continuassem observando as outras leis mosai-
tistas modernos, constituem congregações de ho- cas, inclusive a festa pascal.
mens piedosos, lutando por levar uma vida hu- Jesus parece não identificá-los com os judeus
milde, e praticar a religião do coração. Mui- genuínos Mt 10.5 refere-se à proibição feita
:

tos Salmos ecoam ainda as características de aos discípulos de evangelizar a Samaria (inter-
sua piedade, da piedade "dos pobres" como êles dição evidentemente ab-rogada pelo mandamen-
162 JUÍ

to de Mt 28.19). É, portanto, particularmente tos de Iavé, que são descritos como vitóri.i*-
interessante observar que, na parábola do via- de Deus (Jz 5.11; Mq 6.5); portanto, vitórias
jor caído nas mãos dos ladrões, Jesus confia de Israel e derrotas dos inimigos. Cada vc7
o papel exemplificador ao bom samaritano, pro- que Deus opera a favor de seu povo. Deus o
testando assim contra a intolerância judaica. julga, quer dizer, o ajuda, o guia e o salvn
Observemos ainda que Jesus nunca temeu pas- A História de Israel é uma sucessão de di-
sar pela Samaria, em contraste com a maior vinos julgamentos: julgamento do mundo pe-
parte dos Galileus, que preferiam desviar-se lo dilúvio (Gn 6.5), juízo sobre Sodoma c
pela Peréia a pisar terra samaritana (Lc 9.52; Gomorra (Gn 18.20), sôbre o Egito (Ex. 7.4)
17.14ss; sobretudo Jo 4: o episódio da Sama- Notemos que julgar significa, aqui, castigar-
ritana). Depois de Pentecostes, o evangelista Egito não é Israel. Mas tratando-se de Israel,
Filipe pregou na Samaria com grande êxito os divinos juízos concebem-se. invariàvelmentc.
(At Por outro lado, ninguém ignora
8.5-8). como pagamentos de uma obrigação de justi-
o papel considerável dos samaritanos na His- ça; o julgamento de Deus se expressará, pois,
tória do gnosticismo cristão (Simão, o Mago em termos de libertação e de vitória (Dt 32.36;
At 8.9-10). Os samaritanos não-cristãos come- Is 30.18; Jr 30.11; SI 135.4) e, corolàriamen-
çaram a desaparecer progressivamente depois te, de castigo para os não-aliados (SI 7.7; 9.4;

do ano 70, contando-se hoje apenas um pequeno 110.6).


milhar deles, radicados em Naplusa. Nos Salmos são freqiientes as alusões ao
Deus- Juiz e aos seus julgamentos. Iavé é
/. HÉRING celebrado como o juiz de toda a terra julga :

as extremidades da terra, quer dizer, os seus


JUÍZO confins; julga com justiça (ISm 2.10; SI 9.9:
96.13; 82.8; Gn 18.25). Explica-se assim o lu-
No VT o conceito de juízo, ou julgamento. gar preponderante dado no culto à glorifica-
deriva genuinamente do verbo julgar. Êste
ção da justiça e dos juízos de Deus, bem como
carecia, porém, do sentido jurídico que lhe da-
a esperança posta nos julgamentos de Deus. Sa-
mos hoje em dia. Para a Bíblia, a noção de
julgar é inseparável da noção de —
^alian-
bemos, certamente, que Iavé era celebrado como
juiz por excelência nas festividades do Templo
ça. Quando dois sêres estão ligados por uma de Jerusalém. Nestas ocasiões solenes, chama-
aliança, vinculam-nos direitos obrigações re-
e
dos de "os dias de Iavé" o rei, representante
;

cíprocos. Serão justos na medida que obser- oficial de Deus no culto, fazia as vêzes de
vam os compromissos assumidos. Julgar é.
Deus, e exercia a função vicária de juiz. Nos
pois, primordialmente, agir com o fito de man- primeiros dias de cada ano, dedicavam-se festas
ter a aliança. Os juízes da época heróica, Ge- religiosas à celebração da divina justiça, com
deão, Sansão. etc, surgem para chefiar e sal-
a evidente finalidade de rememorar, renovar e
var o povo nas horas graves de sua História. fortalecer a aliança divina, condição da justiça
Exercem a justiça como qualquer chefe; po- e, portanto, da felicidade. Tais cerimónias vi-
rém, são juízes pois salvam e restauram o
nham, necessariamente, plenas das promessas
povo em sua situação normal. O rei, também,
mais ricas de vitória, de felicidade, e mesmo
é juiz e, como exerce a justiça resolven-
tal,
de fertilidade, já que também a fertilidade era
do os litígios trazidos pelo povo. Bíblia A dívida no ativo de Iavé (SI 72.3; Is 45.8; Jl
mostra-nos, repetidas vezes, os soberanos de 2.23), certeza que o povo não deixava de pro-
Judá em ato de administrar a justiça (2Sm clamar em pleno culto. Não surpreende, pois.
15.4; lRs 3). A
função real consiste, pre- que dessas esperanças conservadas e alimenta-
cisamente, em julgar o povo, ou seja, em man-
das por meio do culto, nasça progressivamente
ter cada qual no lugar que lhe compete dentro
a idéia de uma vitória final, ou seja, de um
da aliança, em defender a aliança, auxiliando
juizo final, concepção favorecida pela idéia que
o pobre e afastando o opressor. O rei perfei-
os israelitas faziam do tempo consideravam o
to, idealmente descrito por Isaías, aparece exer-
cendo tal justiça (11.3-5; ver 61).
— tempo como uma linha,
:

com seu comêço


e seu ponto final.
Desde que as relações entre Iavé e seu po-
vo são concebidas em termos de aliança, jul- 2. A esperança de um
julgamento final exis-
gamento significa, para o israelita, salvação, tia em do século VIII. Profetas,
Israel já antes
liberdade, resgate, vitória devidos à interven- como Amós, Oséias e Isaías, já tinham esta
ção de Iavé, estritamente porque Iavé é o Deus esperança popular do "dia de Iavé", do seu jul-
da aliança. O corolário lógico é que o gamento futuro e definitivo, estático e último.
julgamento comporta a humilhação e o castigo Israel contava firmemente com o dia do Se-
dos que não formam parte da aliança, dos não- nhor, que seria, de uma vez por todas, salva-
hebreus. dos inimigos de Israel. De fato, tal é ção e glória para o povo santo, derrota e exter-
o sentido dos aios de justiça, ou dos julgamen- mínio para seus inimigos, para o não-IsraeL
JUÍZO 163

"Para que desejais vós o dia de Iavé?



pro- — ção de Deus: Iavé julga o mundo, já não
para reivindicar os bem escassos merecimentos
clama Amós É dia de trevas e não de luz
(como pensais vós outros)" (Am 5.18). "Bus- de Israel, mas para reivindicar o nome e a
cai o bem e não o mal, para que vivais e para honra de Deus (Ob 15) constatação particu-
;

que fique convosco Iavé dos exércitos, como larmente evidente na profecia de Ezequiel "sa- :

diceis" (Am Neste, como em outros


5.14). bereis que eu sou Iavé", frase que ressoa como
textos viver significa ver-se poupado no dia do um estribilho justificativo do juízo através dos
juízo. Aquela época estava convencida da imi- capítulos do profeta, que descreve, sucessiva-
nência do "dia de Iavé" acreditava-se evidente-
: mente, como Iavé julgará os povos vizinhos
mente que, de um momento para outro, Deus (cap. 25), como o reino dos mortos receberá
interviria na História. Os profetas procuravam a todos os sentenciados por Iavé (cap. 32.18).
endireitar a esperança popular e animá-la com como o mundo pagão (Gogue e Magogue, cap.
altos ideais morais. Anunciavam que o "dia 38-39) intentará um supremo assalto, prelúdio
de Iavé" seria um dia de castigo, inclusive pa- do seu extermínio final. Por sua vez, Joel.
ra aqueles que se jactavam de pertencer ao num quadro de toques apocalípticos, descreve o
povo da aliança (Am 5.18; Os 5.8; Is 2.12). Dia de Iavé, ou o julgamento no vale de Jo-
Acaso é unilateral esta aliança? porventura não safate (nome que significa Deus julga Jl 3). —
exige de ambos os parceiros fidelidade igual ? Zacarias descreve o combate final de Iavé con-
Ora, a longa História de Israel através dos tra os povos e o surgimento de nova Jerusalém
séculos passados, o quê foi senão uma intermi- dominadora dos povos vencidos (Zc 14). Da-
nável sequela de traições e de apostasias? O niel, o livro mais nôvo do VT, nos transporta
juízo de Iavé será exercido, quer pela interven- ao céu Deus, na pessoa de um Ancião rodea-
:

ção direta de Deus, tomando em suas mãos do de juízes, abre os livros e dá início ao Juí-
as rédeas da História (perspectiva das teofanias, zo :no momento de concluir-se êste, aparece
ou manifestações pessoais de Deus, descritas o Filho do Homem (o Messias) para instaurar
por Mq 1.2), quer por sua intervenção indireta. seu reino com todos quantos têm sido inscritos
mediante fenómenos cósmicos ou catástrofes mi- no livro da vida, inclusive os ressuscitados
litares (perspectiva de Am
9; Os 5 e 10 o ini- :
dentre os mortos os não inscritos no livro
;

migo penetrando profundamente na terra na- da vida, no entanto, herdam a condenação


cional, aniquilando cidades e exterminando vi- eterna (Dn 7 e 12).
das). O juízo não significa, contudo, a total Assim, o juízo que, antes do exílio, fazia-se
destruição, mas a purificação do povo. Sub- no campo da História, doravante, na perspec-
sistirá
—>
um
vivirá.
—> remanescente, um resto
Dêste remanescente se formará
tiva dos últimos textos bíblicos, instaura
nova idade do mundo com a criação de novos
uma

o núcleo do nôvo —
^>Israe\ (Am 5.15; Is céus e de nova terra. Tal perspectiva leva,
6.13; 10.23). O nôvo reino de Deus e seu rei inerente, um aspecto antagónico, dualístico.
são descritos por meio de traços tomados da
idade áurea de Israel, do reinado de Davi (Am 4. Sabemos que a época entre o Velho e o
9.11). É difícil reconstituir *a imagem do juí- Nôvo Testamente foi, literàriamente, muito fe-
zo que os autores bíblicos faziam, porque êles cunda abundaram
: os apócrifos, ao lado de uma
gostam de usar símbolos e figuras ("Eu serei densa literatura rabínica. Todos os documen-
como um leão para Efraim", Os 5.14), cuja tos da época coincidem em profetizar que os
realidade não é bem clara para nós. Há mais tempos messiânicos ( =
vinda do Messias, rei
outro fato muito importante que cumpre ressal- dos últimos tempos) seriam introduzidos e
tar antes do exílio (587 aC), o juízo se exer-
:
precedidos por um juízo exclusivo da nação
ce no campo da História, bem como a restau- judia, e logo a seguir, por um juízo universal,
ração anunciada. destinado a separar tôdas as almas, quer para o
Paraíso, quer para o Inferno. Os pagãos seriam
3. Com os profetas do oitavo século, o di- lançados ao fogo eterno, e Israel seria salvo
vino juízo limitava-se a Israel e aos povos vi- em virtude de seus merecimentos (Enoc 10).
zinhos, abarcando apenas o horizonte político O judaísmo mais nôvo conhece ainda, fora
da época. Êste horizonte não deixará de cres- dêste juízo universal e final (esperado para
cer cada dia, como não deixará de crescer e o fim dos tempos), outro juízo, anual, que se
de se aprofundar também a noção de Deus, do- realiza repetidamente por ocasião das festivi-
minador de todos os horizontes. Uma vez re- dades maiores, tais como Páscoa e Ano-Nôvo»
conhecido o divino poder como extensivo ao chamadas, por esta causa, "dias do Juízo"
mundo inteiro, o juízo de Deus tomará ampli- A despeito da riqueza, frequentemente con-
tudes cósmicas, e Sofonias poderá dizer "Con- : traditória e extravagante, de tais representações,
sumirei todas as coisas sobre a face da terra". o litor não pode desconhecer esta idéia básica
(Sf 1.2ss; ver Sf 2.4). Assim, aparecerão com do VT, que o Juízo de Deus é uma realidade
novas características os motivos da interven- viva. Nesta fé desenrola-se tôda a vida de
164 JUÍZO

Israel, dela recebe seu verdadeiro sentido. Ne- A atenção dos primeiros cristãos irá, porém,
nhuma outra convicção salienta melhor a ab- principalmente ao Juízo Final, que assegurará,
soluta dependência da criatura em face de definitivamente, o triunfo da verdade divina que-
Deus. seu Criador e seu Juiz. brando tôda a resistência, seja das autorida-
G. PIDOUX des espirituais que dominam o mundo (ICo
6.2-3; 15.26; Jo 16.11; Lc 10.18; 16.20; Rm
NT 2Ts 2.3-10; Ap 12.7-9, etc), seja dos homens
(Mt 25.31-46; 2, etc).Rm Juízo final O
Se o verbo julgar designa, às vêzes, a ativi- atingirá todos os homens, porque todos são
dade judiciária humana (Jo 18.31; At 23.3) ou responsáveis perante Deus, na medida da gra-
a opinião particular de um homem acerca de ça que lhes tem sido outorgada (Mt 11.20-24:
outro (Mt 7.1-2; At 16.15; Rm 2.1-3), comu- Lc 12.17ss; Rm Nem
sequer os cris-
2.12.16).
mente tem por sujeito ou Deus ou Cristo, tãos escaparão a êste julgamento. Até o pró-
indicando um dos aspectos do Reino de Deus. prio mundo será transtornado (Mt 24.29) :

mais ainda, êle será destruído (Mt 24.35; 2Pe


1. O NT não especifica, cm parte nenhuma,
37.12) será "o fim do mundo" Mt 79.39; 24.3).
:

por que devemos contar com o Juízo de Deus,


Porém, o mundo nôvo iniciar-se-á (2Pe 3.13;
mas dando êste anún-
limita-se a anunciá-lo,
cio como uma palavra de Deus (Lc 3.2,7; At
Ap 21.1). O
caráter cósmico do Juízo Final
se radica no fato de que a Bíblia nunca disso-
17.30-31). A espera do Juízo emana de duas cia, como faz o pensamento moderno, o plano
fontes da fé na santidade de Deus, Senhor
:

do céu e da terra, e do conhecimento do peca-


moral do plano físico-natural. A condenação
do homem por Deus repercute além da cons-
do do mundo. Não seria impossível imaginar
ciência humana, na existência de todo o ser
que Deus houvesse renunciado a qualquer in-
humano no pensamento humano, que se obnu-
:

tervenção e abandonado o mundo cada vez mais


bila (Rm 1.21-22), no corpo humano, vítima
à sua inerente corrupção, até que êste se des-
da dor e da morte (ICo 11.30; Rm 6.23), e
truísse por si mesmo. Mas o NT anuncia
mesmo no mundo humano (na natureza, no
que virá um juízo, isso é, u'a misericórdia de
Deus a favor dos homens Deus, compareci-
:
universo: Rm 8.19-23). Entretanto, tal cará-
ter cósmico do último dia não passa de secun-
do, toma a iniciativa de lhes oferecer, além
dário, ou de mera extensão do juízo da huma-
do perdão, a possibilidade de serem salvos. Ora.
nidade é sempre o homem quem ocupa o pri-
:

a salvação dos crentes implica na eliminação dos


meiro plano da perspectiva.
que recusam reconciliar-se com Deus (Mt 13.24-
30 e 36-43). O juízo de Deus, tanto para o 3. O
Juízo Final pertence a Deus (Mt 18.35;
Nôvo como para o Velho Testamento, faz
Rm IPe 1.17; etc).
14.10; Todavia, Deus
parte do plano redentor de resgatar os cren-
confia o exercício do juízo a Cristo, logo que
tes (Lc 18.1-8; Rm 12.19; 2Ts 1.5-10; Ap êle retornar em sua glória (Mt 3.11-13; 7.22-
6.10), pois procede, em última análise, da mi-
sericórdia de Deus. Eis porque o julgamento
23; 13.41-43; 16.27; 25.31-46; Jo 5.22; Rm
que, para as almas atentas às realidades vin-
2.16, etc). O "dia do juízo" (Mt 10.15; 12.36;
2Pe 2.9; ljo 4.17, etc.) é o "dia do Senhor"
douras, parece iminente (João Batista, Mt 4.
(ICo 1.8; lTs 5.2; Hb 10.25, etc). Os anjos
10-12; o próprio Jesus, Mt 24.34ss), é retar-
dado pela divina longanimidade, a fim de per-
(Mc 8.38; 2Ts 1.7), os discípulos (Lc 22.30)
e a Igreja tôda (ICo 6.2-3) colaborarão com
mitir o arrependimento a todos os homens (Lc
Cristo-Juiz (Mt
16.19; 18.18; Jo 20.23). Estas
13.6-9; Rm
2.4; 2Pe 2.9). Ademais, Deus
concepções, primeira vista surpreendentes,
à
não quer executar o seu Juízo sem antes anun-
são justificadas pela unidade perfeita do Pai
ciá-lo por todo o mundo (Mt 24.14).
e do Filho e pela comunhão dos crentes com
2. Assim, a ideia do juízo, comum em tôda a seu Senhor.
Bíblia, culmina finalmente nas páginas do NT.
no conceito do Juízo Final. Não se corta a 4. Entre todos os homens de seu tempo, Je-
linha das concepções religiosas judaicas: mes- sus é, de fato, o juiz esperado, o juiz divino

mo quando os primeiros cristãos possuam mais do último dia. Portanto, a atitude assumida
uma razão para acreditar que eles vivem nos pelos homens com Jesus repercuti-
respeito a
últimos tempos do mundo, pois sabem que o rá, sobre todo o mundo hu-
necessàriamente,
Messias Cristo já veio, inaugurando o mano: ela decidirá, e de fato já decide, a sen-
——> tempo da realização da Promessa tença que haverá de ser pronunciada sôbre os
homens no dia da eternidade (Mt 7.24-27; Lc
( > cumprir) e iniciando a sua nova cria-
ção. Contudo, a noção do julgamento históri- 9.26; Jo 12.48). Não se maravilhe, pois, o
co, atual, não se perde; pelo contrário, mani- cristão quando ler no quarto Evangelho que
festa-se bem vrva (Lc 13.1-5; At 5.1-10; 12.23; Cristo exerceu, já na sua curta vida histórica,
13.11; Rm 1.18-32; ICo 11.27-32; Ap 2.5, etc). um julgamento sôbre todos quantos dêle se
> ;;

JUÍZO 165

aproximaram, embora não tivesse vindo para céu e do inferno, mas incita-nos a viver a ho-
julgar mas para salvar o mundo. Cristo foi ra presente na fé e na obediência ao Deus de
colocado perante todos os homens, ele conhe- Jesus Cristo.
ce a todos e fixa para cada nm o eterno des-
que critério nos julgará? O critério
tino uns escutam sua palavra e recebem a
:

vida eterna; outros rejeitam a fé e são entre-


6.
da —Com>Lci:Jesus não ab-rogou a Lei (Mt
gues ao juízo desde agora, porquanto sua in- 5.17-20; Mc 10.19); apenas aprofundou sua
credulidade é a marca e o sinal das disposi- compreensão (Mt 5), declarando que sua essên-
ções que provocarão, em breve, sua total e irre- cia é: amar a Deus e ao próximo (Mt 22.37-
mediável rejeição (Jo 3.17-21; 5.22-27; 8.15; 40) ; Rm
13.8-10). Para quem tiver ouvido a
9.39). Assim é que devemos interpretar a voz palavra de Cristo, o critério decisivo que o jul-
do Pai declarando, pouco antes da morte de Je- gará seráadesão à pessoa de Jesus (Mt
a
sus "Eu já glorifiquei ao meu Filho, e ainda
: 10.32-33). Evidentemente, tal adesão só será
o glorificarei". De fato, João, em prossegui- aceita se fór autêntica, quer dizer, traduzida
mento, escreve "Então Jesus explicou Não
: : em serviço zeloso, inteligente e fiel (Mt 24.45-
foi por mim esta voz, e sim, por vossa causa. 51; 25.14-46). para nada servem os meros pa-
Agora tem lugar o julgamento deste mundo, lavrórios (Mt 7.21-23). É esta exigência de
e agora o seu príncipe será expulso" (Jo 12.31). autenticidade na fé, de lógica no serviço, que
Deus, com efeito, já pronunciou a sentença permite a Paulo substituir a norma da Lei pe-
sobre as partes em litígio de um lado, Jesus : la norma do Espírito de Cristj (Rm 8.1-17;
de outro, o príncipe deste mundo. Jesus, que Gl 5.13-25; 6.7-9), sem contradizer a Cristo.
está para morrer vítima do ódio do mundo, Acaso Paulo deixa de proclamar que cada uni
recebe a promessa da glória. Mas também, no será julgado conforme suas obras? Rm 2.6
quarto Evangelho, o interesse pela atualidade
do juízo não exclui, de modo nenhum, a espera
— ^>Obras). Entenda-se cada um receberá,
:

não tanto conforme suas obras em si, mas con-


do Juízo Final o Juizo Final desenvolvera
: forme o testemunho que estas dêm das inten-
plenamente o que por enquanto está apenas ções íntimas do coração (Mt 12.33-37; Rm 13.
esboçado. (Jo 5.28-29, etc). 8-10).

Portanto, o maior problema com que cada


Excetuados poucos textos joaninos, onde
5.
"julgar" significa "condenar", o julgamento tem
um de nós se defronta, é o de nossa -"^jus- —
uma dupla alternativa, sentenciando quer para
tificação perante o tribunal de Deus. Os fa-
riseus tinham, dêste problema, uma consciên-
a eterna felicidade, quer para a condenação e-
cia tão aguda que dêle fizeram o eixo de sua
terna. A felicidade se exprime por termos
tais como — alegria no gôzo do Senhor.
piedade. São Paulo demonstrou até que extre-
— ——
mos de angústias e desespero chega o homem
^bênção do Pai, glória, honra, imor-
talidade, —> paz, ^descanso, etc.
denação é designada por fórmulas como as tre-
con-
;
A que não pode contar, para resolver o problema,
senão com as próprias forças! (Rm 7. Para
o homem, radicalmente pecador, não há outra
vas exteriores onde haverá chôro e ranger de
esperança senão que Deus use de misericórdia
dentes, o fogo eterno, o afastamento de Deus.
a cólera e indignação, o infortúnio e aflição, a
com êle.

perdição eterna, a angústia, etc. Mt 25 2 ; Rm Mas eis que Jesus proclama : Deus perdoa
2Ts). O adjetivo "eterno" que acompanha vá- as nossas dívidas, por maiores que sejam (Mt
rios destes termos não significa, como nas lín- 18.21-35; Mc 2.1-12; Lc 7.35-50). "O Filho
guas modernas, uma duração infinita, mas in- do Homem tem sôbrc a terra autoridade para
dica um estado ou condição, criada por esta perdoar pecados" (Mc 2.10). Notemos, mais
última e decisiva intervenção de Deus instau- uma vez, que êste perdão se recebe, exclusiva-
rando um mundo nôvo. Se a vida no reino não mente, através da fé na messianidade de Jesus,
tem fim e participa da perenidade de Deus. fé autêntica, isto é, que ocasiona, impreterivel-
isso não acarreta que também as penas dos mente a renovação da vida. Sem esta renova-
réprobos devam persistir durante tempos ili- ção, a fé não passaria de uma ilusão, como
mitados. Qualquer esforço para determinar também ilusório seria o perdão, conforme re-
exatamente o que nos espera mais além do velará o dia do Juízo (Mt 6.14-15; 18.23ss).
Juízo esbarra contra a imprecisão de um pen- Portanto, quem não se arrepender e se conver-
samento que não se manifestou para satisfazer ter, não terá perdão (Mt 3.2,8; 4.17; 11.20-24;
nossa curiosidade, mas apenas para infundir- Lc 13.1-9; At 2.38; 3.19). Ademais, êste per-
nos o saudável temor a Deus, e. precisamente, dão recebido, somente durará, se o crente per-
a um Deus que nos oferece o perdão e a vida severar até o fim na fé e na obediência :i

eterna na comunhão de seu Filho. O uso que Cristo. Daí a necessidade de vigiar e de orar
o NTfaz da idéia do Juízo não nos autoriza para que o dia do Senhor não nos surpreenda
a qualquer especulação ou fantasia acerca do no mal. Vigiemos noite e dia, pois não sabe-
:

166 JURAMENTO

mos o dia nem a hora (Mt 24.43-25.13; Rm riza qualquer inferência positiva, sendo simples-
13.11-14; lTs 5.1-11; Ap 3.3). mente um eufemismo para falar da morte. No
Paulo, se bem que usando outra linguagem, entanto, a paróbola do Rico e de Lázaro (Lc
apresenta exatamente a mesma solução ao pro- 16.19-31) e a promessa de Jesus ao Bom La-
blema da justificação os pecadores são "jus-
:
drão (Lc 23-43) supõem a idéia de que o Rico
tificados gratuitamente, mediante a redenção está, desde já, num lugar de tormentos, e o
que há em Cristo Jesus, que Deus estabeleceu ladrão arrependido num lugar de paz (ver tam-
como vítima propiciatória, pela fé no seu san- bém Lc 16.9; Ap6.9; 7.9-17; 14.3). Realmen-
gue" (Rm 3.24-25). O apóstolo estabelece o um juízo provisório decide o destino do ho-
te,

contraste entre a justificação pela fé, única mem na hora da morte. O apóstolo São Paulo
válida, e a justificação pelas obras da Lei, pro- afirma que, para êle, "morrer é lucro" (Fp
curada pelos judeus, inutilmente. Conclui fun- 1.21), porquanto lhe permitirá "estar com Cris-
damentando sua segurança em face do Juízo to" (Fp 1.23), "morar com Cristo" (2Co 5.8),
vindouro, exclusivamente sobre a obra recon- não mais em uma relação precária como agora,
ciliadora feita por Deus mediante Jesus Cristo mas a visão tomará o lugar da fé (2Co 5.7).
(Rm 5.9-10; 8.31-39). Esta atitude é a atitude A esperança dêste juízo provisório, imediata-
própria do cristão: seja qual fôr seu pecado mente depois da morte, não elimina nem debi-
(ICo 3.15), ou sua deficiência (ICo 5.5), êle lita a esperança do Juízo Final quando Cris-

tem a salvação segura, na opinião de Paulo, na to vier.

medida que persevera na fé. Mas não obstan- À


maneira de conclusão, salientaremos que
te, Paulo fala da ameaça que, para todo cren- a noção do juízo, de importância capital para
te, acarreta o julgamento das obras, já que nos- o VT, revela-nos, não tanto uma série de co-
sas obras serão julgadas por Deus (2Co 5.10; nhecimentos definidos e logicamente articula-
Cl 3.25; lTs 4.6; ICo 9.27). Por que subsiste dos, mas principalmente a presença no mundo
ainda tal ameaça? Ou será que a fé em Jesus do Deus santo e misericordioso, que se mani-
Cristo não justifica? Sim, somente há justifi- festou em Jesus Cristo. Eis porque é o fato
cação pela fé em Cristo, mas (atentem bem os do Juízo divino ser afirmado tão categorica-
cristãos ) !
tal fé comporta normalmente uma mente e. no entanto, nada certo sabemos acer-
renovação de vida na comunhão com o Cristo ca das modalidades que o acompanharão (tem-
ressuscitado (Rm 6). Portanto, se nós não po, lugar, modo).
vivemos segundo o Espírito, é sinal manifesto
de que não estamos em Cristo enganamo-nos
J. BURNIER
;

grosseiramente proclamando-nos beneficiários da


morte de Cristo. Portanto, uma vida inspirada JURAMENTO
pelo amor manifestará a realidade de nossa fé
e, consequentemente, de nossa justificação por 1. Juramentos e votos salientam a seriedade,
Jesus Cristo. A idéia de um juízo pelas obras o poder e a eficácia que a palavra humana re-
não contradiz, de modo nenhum, a doutrina da cebe de Deus. Uma vez proferidos, são irrevo-
justificação pela fé; antes, está implicada nela. gáveis e comprometem a pessoa, determinando
São Tiago afirmará esta doutrina à sua ma- o seu porvir bem como o porvir de outrem.
neira, apenas na aparência, entra em
a qual, Perjurar, além de infidelidade, é um ato insen-
oposição com as grandes afirmações paulinas sato em contradição com o porvir criado pela
"O homem é justificado pelas obras e não pela palavra do homem é um pecado contra-a-na-
;

fé somente" (Tg 2.14-26). tureza dêste porvir, pois origina uma situação
inviável, sem outra saída a não ser a morte.
7. Uma palavra final acêrca da esperança do
Último Juízo. Que será do homem que morre 2. Juramento. a) VT. O juramento não
antes do Juízo Final? Os judeus, preocupados Visa revestir uma
declaração de maior solenida-
com esta pergunta, buscaram a solução na fé. de mediante a interposição do nome de Deus.
aceitando a ressurreição dos mortos para o O juramento provoca a ação de Deus. Invo-
julgamento (Dn 12.2). A Igreja primitiva car o divino —
^>nomc em qualquer uma das
conservou esta solução (Jo 5.27-29; lTs 4.13- fórmulas usuais (ISm 14.39,44; 20.23) equi-
18; Ap 20.11-15); contudo, Paulo fala apenas valia, segundo a etimologia provável de um dos
da ressurreição dos crentes, como se a morte, dois têrmos usados, a colocar sua promessa ou
salário do pecado, tivesse um caráter definitivo seus atos sob a ação do algarismo divino "7".
para todos quantos morrem fora de Cristo. Ou- Em virtude do juramento confiava-se a Deus a
tra pergunta que será dos mortos durante o
: tarefa de castigar o homem perjuro ou menti-
lapso entre sua defunção e a volta de Cristo. roso. (Zc 5.3ss e Nm
5.21 ss nos mostram
Juiz e Salvador? Afirma-se, frequentemente, Deus tornando eficazes as imprecações do per-
que êles dormem (Mt 9.24; Jo 11.11; ICo juro.) Era costume jurar nos casos graves
11.30; lTs 4.13; 5.10), expressão que não auto- ou duvidosos, ou quando um inquérito não era
;

JUSTO 167

possível (Ex 22.7ss; Nm S.llss; Mt 26.63). cumprimento do voto prometido, que sabe guar-
í)em como quando, por causa de sua fraqueza, a dar memória dos benefícios recebidos.
homem corre o risco de perjurar (juramentos Nãosurprendeu, pois, que os Salmos inú-
de alianga Js 2.17.20; Gn 21.23; juramentos
: meras vêzes mencionem os sacrifícios votivos
de submissão: Ez 17.13ss). O perjúrio casti- celebrados publicamente no Templo de Jerusa-
gava-se com a pena capital (Ez 17.15-16). ain- lém (SI 22.26; 50.14; 56.13; 116.14; Dt
da quando o juramento tivesse sido prestado 12.11 e SI 61.6ss; 65.2; ctc).
na ignorância (Js 9; 2Sm 21.1ss). Nada constrange o fiel livremente êle faz
:

A que acompanhava um juramento


alegria a decisão de devotar tal coisa ou tal pessoa
de fidelidade a Deus (2Cr 15 13ss ) atesta bem
. (Gn 28.20ss; ISm 1.11; 21.2) ulterior-Nm
quanto tal juramento garantia o socorro divi- mente resgatável (Lv 27), ou tal sacrifício
no para o seu cumprimento ("de todo o cora- (Jz 11 e muitos Salmos). Mas desde que foi
ção êles juraram,... buscaram o Senhor, e pronunciado em voz alta, não mais pode ò
por êles foi achado" v. 15). Merece menção homem revogar o voto (Jz 11.35), ou tra-
a consolação psicológica da pessoa a cujo fa- pacear (Ml 1.14). Portanto, não se pronun-
vor era feito o juramento (ISm 20.42) Deus, :
cie voto levianamente (Dt 23.21-23; Ec 5.
em cujo nome se fazia o juramento, não dei- 3-6; Pv 20.25).
xaria de agir. O juramento de Deus, amiúde,
O NT menciona (At 4.34-5.11) os votos
acompanha as promessas que êle faz (Gn da Igreja primitiva; seus transgressores mor-
22.16-18), tornando-as invioláveis e inalterá- rem o banquete sacrificial de comunhão apa-
;

veis, coei a garantia de que nem Deus nem


rece substituído pela comunidade de bens.
poder algum jamais revogaria o porvir pro-
metido, mesmo em presença do pecado (Hb 4. Xazireado. Certos pais devotam a Deus
6.13ss; SI 110.4; Nm
23.19; Rm 11.29: um filho por toda a vida (Sansão, Jz 13.7:
Lc 1.73). Samuel, ISm 1); certos adultos consagravam-
Jesus Cristo é o "sim" das promessas de se por um determinado tempo. A consagração
Deus, o seu final e a base do juramento divino: do nazireu expressava-se por sua cabeleira,
Jesus é a Palavra dada de Deus (2Co 1.19-20. sede da força e da vida, recebidas no momento
Ver Rm 15.8). de sua segregação (Jz 16. 15ss ) Não devia .

profanar esta vida cortando os cabelos, nem


b) NT. Longe de negar a eficácia do jura- aproximando-se dum cadáver (Nm 6.6-7).
mento, Jesus a confirma, relevando o valor A abstenção de tôda e qualquer comunhão
infinito e o poder das palavras humanas (Mt
com os Cananeus traduzia-se pela abstinência
12.36-37; ver Tg 3.1ss). Aceita o juramento de todo produto vinícola (Nm 6.3-4) (Ver
imprecatório exigido pelo Sumo Sacerdote Recabitas, Jr 35).
(Mt 26.63-64) êste juramento solene cau-
;
Destarte, o nazireu expressava que o crente
sar-lhe-á morte redentora, quando Pedro
a
é estrangeiro e peregrino neste mundo, lem-
perjurar mortalmente (Cf lTm 1.10). A opo-
brando o período que Israel passou no deserte»,
sição de Jesus aos juramentos (Mt .5.33ss;
guiado exclusivamente por Deus e atento ao
ver Tg 5.12) visa a casuística de certos ju- reino futuro.O nazireado, como atitude de fé,
deus empenhados em estabelecer uma hierar- faz com que
o crente viva, desde já, as reali-
quia no valor dos juramentos. portanto, guarda o seu lu-
dades que espera :

Paulo, por sua vez, não hesitará em jurar gar na Igreja de Cristo; assim veremos Paulo
quando estão em jôgo a honra ou a verdade "tomar o voto" por duas vêzes (At 18.18;
de seu ministério e de sua mensagem (2Co 21.23), bem como Tiago, o Justo (Hist. Ecl.
1.23; 11.11,31; Fp 1.8; Gl 1.20). Eusébio. 2.23.3).
A. LELIÈVRE
3. VOTOS. Os votos, aparentemente, fo-
ram uma oração apoiada pela promessa de JUSTO
uma dádiva destinada a inclinar a divindade
favoravelmente. Os votos têm sido muito cri- 1. O adjetivo justo, de uso corrente no mun-
ticados por se assemelharem a um regateio. do greco-romano do primeiro século cristão,
Mas convém notar que êles testemunham de tinha três acepções principais. Era justo o
um muito superior à mera pe-
desinterêsse indivíduo que nós qualificaríamos hoje de cor-
tição "dá! dá!"; aliás, vemos votos feitos, reto no comportamento com seus semelhantes
por vêzes, depois do favorável acolhimento justo também era o cidadão respeitoso das
(SI 76.12; Jn 1.15-16). O voto não é rega- leis pátrias (lealdade cívica ou política) so- ;

teio, mas ato de devoção muito pedagógico: bretudo, justo era o homem virtuoso no sen-
o devoto, na lógica do dom recebido, pede para tido popular estóico. O conceito que os estói-
poder dar manifesta alegremente, através do
; cos tinham das virtudes se caracterizava por
— ;

168 JUSTO

um otimismo básico é em si mesmo e na pró-


: ção jurídica do homem perante seu rei. A mais
pria natureza que o homem encontra o prin- trágica é, sem dúvida, a situação daquele que
cípio e a possibilidade da justiça, ou seja, do nem sequer ousa apresentar-se diante do Juiz-
equilíbrio moral, pois a justiça é resultado Rei "Dá ouvidos à minha súplica. Responde-
:

pessoal, perfeitamente possível para quem me segundo a tua justiça. Não entres em juízo
aceite o necessário esforço, embora raras ve- com o teu servo, porque à tua vista não há
zes realizado. O substantivo justiça corres- nenhum justo vivente" (SI 143.1-2). É inte-
ponde a esta orientação geral. justiça con- A ressante observar que, neste Salmo 143. o ho-
siderava-se, especificamente, como um estado mem teme e busca, simultaneamente, o vere-
ou qualidade, nunca como uma marcha dinâ- dito judiciário de seu Deus: êle sabe. na inti-
mica, motivo pelo qual quase não se concebe midade de seu coração, que esta justiça é es-
o verbo justificar. Na mística grega, influen- sencialmente uma justiça de misericórdia e de
ciada pelas religiões do Oriente, justificar bondade: "Por amor da tua justiça, tira da
significava: tornar justo, impecável e perfei- tributação a minha alma e, por tua misericór-
to no sentido de uma qualidade religiosa ad- dia, dá cabo dos meus inimigos" (SI 143.11-12).
quirida estàvelmente. Citemos um texto do Além de libertadora, esta justiça é muito
Corpus Herméticum (XIII, 9, Paris, 1945. ativa, agindo sempre depois de prostrar o ho-
;

p. 204) que se opõe à idéia judaico da jus- mem debaixo do poder real. novamente o le-
tiça- justificação no Juízo Final "O nôvo :
vanta e socorre para uma vida melhor "Mos- :

grau que te apresento, meu filho, é a sede de tra-me o caminho por onde eu devo andar,
justiça: considera como, sem contenda, ela ensina-me a fazer a tua vontade, guia-me o
expulsa a injustiça. Nós temos nos tornado teu bom Espírito, pois tu és o meu Deus" (SI
justos, filho, agora que não mais existe a 143.8-10). Quem não
lembrará o texto de
injustiça". Mq 7.9? "Sofrerei a ira do Senhor, porque
pequei contra êle. até que julgue a minha cau-
2. No VT
a idéia de justiça tem uma orien- sa e execute o meu direito. Então êle me de-
tação bem diferente. Em
sua base achamos a volverá para a sua luz e eu verei a sua jus-
convicção de que Iavé é o único juiz do que tiça". Êste texto palpita do mesmo tremor e

é "justo"; o verbo justificar é quase exclu- da mesma confiança do homem colocado pe-
sivamente passivo: o homem não é justo em rante seu soberano-juiz ( ^>Ju\zo VT).
si mesmo, mas justificado, isto é, declarado
justo por Deus o homem anseia por receber
;
3. O NT
é dominado pelas mesmas con-

a aprovação divina: "No Senhor será justi- cepções, embora matizando-as -Visível mente.
ficada tóda a descendência de Israel e nêle Achamos, sem dúvida, textos onde justo tem
se glorificará" (Is 45.25). Mesmo nas rela-
o sentido de recomendável, virtuoso, honesto,

ções humanas, a noção


de justiça conserva
como no helenismo ambiente (Mt 27. 19.24
êste acento jurídico e forense (= declarató-
Fp 1.7; 4.8; Lc 12.57: 2Pe 1.13); contudo,
rio) : "Ai dos que por um presente justificam íuesmo nestes textos, tal "honorabilidade" se
estabelece "diante de Deus"; (At 4.19; 2Tm
o réu e negam a justiça ao justo" (Is 5.23).
1.6; Ef 6.1, à luz do contexto imediato).
Deus aparece, nesta perspectiva, como juiz.
não porém como um juiz moderno, que sim- Deus é justo, exatamente como nò VT.
plesmente aplica, com a máxima equidade, as exercendo regiamente o direito de vida e de
disposições de um código, mas como um rei morte, de aprovação e de desaprovação, sôbre
antigo exercendo severamente seu direito de todos os homens, pois todos (quer reconhe-
vida e de morte sôbre seus súditos (SI 7.12; cendo-o, quer negando-o) são seus súditos
Jr 12.1; Jz 5.4; SI 5.9-11; 18.26ss; Is 42. (Ap 16.7; 19.2; IPe 2.23; Jo 17.25; Rm
21). Únicamente do ponto de vista vetero- 7.12). Há, porém, um traço nóvo e bem cate-
testameutário de Rei-Juiz, entenderemos a no- górico: o NT não mais considera a justiça
ção bíblica, e particularmente paulina, de justo, divina em si mesma, mas através do veredito
justiça e justificar. O justo bíblico não é o pronunciado por Deus historicamente em Je-
homem virtuoso, menos ainda o homem inte- sus Cristo morto e ressuscitado (Rm 3.26:
riormente transformado ou divinizado pela ini- ljo 1.9; Rm 1.17; 2.2). Deus é visto como
ciação mística; o justo da Bíblia é, essencial- um rei que acaba de pronunciar uma sentença
mente, o homem aprovado pelo príncipe. Tal destinada a mudar totalmente a condição do
aprovação pode ter dois matizes pode ser a :
homem (e mesmo do universo inteiro).
explícita aprovação da vida do sujeito; ou. Antes de passar a analisar esta nova con-
mais ainda, a aprovação libertadora, em cuja dição (ou seja, o conteúdo do veredito divino
virtude êste se verá livre da opressão dos ini- em Jesus Cristo), observemos que o NT co-
migos e da tirania dos próprios pecados. O nhece uma justiça de sentido mais amplo, não
VT reflett tóda classe de variantes nesta situa- emanada diretamente da obra redentora, a jus-
JUSTO 169

tiça daqueles cuja conduta Deus aprova: Abel diçoa-o e imputa-lhe o pecado (Gn 15.6; Rm
(Ml 23.35; Hb 11.4), Ló (2Pe 2.7; ver Mt 4; 5.13; 2Co 5.19). Esta maldição ao serviço
13.17; 23.29; Lc 1.6; 2.25). Falando a seus do amor encontrará o seu cumprimento pleno
contemporâneos, Jesus parece tomar a sério a na —> cruz de Cristo. justiça de Deus é A
distinção, então corrente, entre os justos uma justiça libertadora; precisa atingir, uma
cumpridores fiéis da Lei e das obras consi- vez por tôdas, o pecado (ICo 15.3; 14. Rm
deradas religiosas, como esmolas, orações e 15; ICo 8.11; Gl 2.20; Rm
4.25; 8.32-34.
jejuns) e os pecadores (os injustos a massa = etc). Ora, na
cruz foi alcançada uma vitó-
dos indiferentes, dos desapegados da vida reli- ria sobre tôdas as "potestades", ti-
definitiva
giosa e das práticas legais: Mc 2.17; Mt ranas do homem e do universo (Lei, pecado,
5.45; 23.28; Lc 5.32; 15.7; 14.14; 20.20; anjos de Satanás, etc).
Rm 5.7). Usava-se, então, a palavra justiça
c)Assim, a cruz é o novo gesto de liber-
para significar o conjunto das tradições con-
tação, essencialmente anova decisão do eterno
cretas e práticas religiosas do povo judeu (Mt
amor. Desde a criação do mundo, Deus tinha
3.15). "Os que têm fome e sêde de justiça"
em vista a nova criação em Jesus Cristo fez ;

suspiram por uma vida finalmente aprovada


convergir tôda a História da humanidade a
por Deus e. pelo divino favor, livre de qual-
essa cruz (Rm 5.12ss; ICo 15.20ss). A cruz
quer opressão (Mt 5.6; 6,33; 5.10,20). Esta
não é um intento humano desesperado para
não é a justiça interior ou espiritual, mas u'a
aplacar a ira de Deus, mas é a obra divina,
mera justiça humana, histórica (Mt
concreta,
a "cerimónia" decisiva da reconciliação, pre-
6.1; Lc 1.75; 2Pe 2.7; IPe 2.24; ljo 2.29;
parada de longa data, como se preparava o
Tg 3.18).
sacrifício levítico da velha aliança (Lv 16).
A terminologia de Paulo está, evidentemen-
te, dominada pela ideologia do VT, com esta d) A êste gesto de reconciliação, exige
ressalva, já anotada, de que o divino veredito, Deus que correspondamos. Qual será a nossa
libertador e salvador (ver SI 143), já não resposta? Nossa sujeição incondicional ao ve-
mais é conhecido ou esperado neste ou naquele redito pronunciado em Jesus Cristo. Apenas
acontecimento particular, mas definitivamente cabe-nos crer e submeter-nos. Crer parece uma
revelado no fato único e decisivo da morte e condição restritiva, mas o homem tem apenas
da ressurreição de Cristo. Perante o veredito a capacidade de crer quando se lhe anuncia o
divino em Cristo morto e ressuscitado, Paulo Evangelho. Paulo sabe que é esta submissão
fica como ficaria um homem que, após ouvir à fé a única possibilidade deixada ao homem,
o veredito do tribunal, examinasse a sentença
sua única porta de entrada à Igreja (Rm
cuidando de decifrar bem e de medir clara-
mente as consequências imprevistas.
10.17; 3.25-26; 8.3; 5.6-7; Fp 3.12,8). A
partir dêste momento, Paulo, e com êle o cren-
a)
Cristo
O de Deus em
veredito Jesus
apenas pronunciado de uma
não
—> te, conta exclusivamente com a obra de Deus
foi realizada em Jesus Cristo, e renuncia a qual-
vez por todas, mas êle é pregado, doravante, quer justiça própria (a qualquer justiça hau-
a todo homem através da mensagem evangé- rida das obras da Lei) é "um justificado
;

lica (Rm 1.17). Paulo não considera sufi- pela fé". Não significa isso que a fé seja uma
ciente que uma obra de salvação fôsse reali- nova obra meritória; mas a fé faz com que
zada no passado; julga necessário que todo o crente conte, só e exclusivamente, com a
homem tome consciência, e viva dela. A jus- justiça de Deus (Ver Fp 3.9, o texto mais
tiça de Deus executada
cumprida na cruz,
e claro a êste respeito).
deve ser, revelad-a por obra da pregação evan-
e) Esta
justiça, imputada por Deus ao
gélica, e será manifestada posteriormente no
—> Juízo Final. Paulo insistirá, alternada-
mente ora sobre o fato que acaba de reali-
crente, (notemos bem!) uma justiça real
é
e efetiva. Aquêle a quem Deus deixa de impu-
tar o pecado por causa de Jesus Cristo, "é"
zar-se na cruz, ora sobre a decorrente possi-
justo (=perante Deus, única coisa que im-
bilidade de vivermos, desde já, como justi-
porta), é um pecador perdoado, realmente per-
ficados pela cruz, ora sobre a consumação de-
doado e logo realmente justo. Ocorre exata-
finitiva desta justificação que já é nossa pe-
mente como no Salmo 143 o Deus que, outro- :

la fé.
ra, condenava e fazia morrer, é o mesmo que,
b) Não é o anseio de imortalidade ou de agora, levanta o homem caído e lhe abre uma
perfeição, que caracteriza a condição do ho- possibilidade concreta de vida melhor (Rm 6).
mem, mas a divina maldição caída sobre êle Livre do pecado, o homem faz-se "escravo da
(Rm 5.18; Gl 3.13). Deus, precisamente por- justiça" (Rm 6.18: note-se que, neste texto,
que ama o homem e pretende restaurá-lo na a palavra justiça toma novamente o sentido
dignidade de filho livremente amoroso, amal- de vida aprovada por Deus, sentido usual entre
:

170 LAVAR

os judeus. O homem, já perdoado, pode e aliança de Deus com Israel. Antes de selar
deve levar uma vida justa e verdadeiramente esta aliança no solene encontro do Sinai, Moi-
nova). sés deixa ordem para que todos se lavem e la-
vem seus vestidos (Ex 19.10).
Finalmente, se a justiça foi feita e
f)
cumprida na cruz, se é agora revelada pelo As abluções constituíram, progressivamente,
Evangelho e vivida "no serviço da justiça", uma parte importante do direito costumeiro,
não será, contudo, plenamente manifesta antes ao qual deviam sujeitar-se homens e mulhe-
do Juízo Final. Ela se torna, portanto, um res nas circunstâncias mais diversas, como se

objeto de esperança: eis porque o crente nun- vê em Levítico (capítulo 15, em particular.
ca deixa de ser um faminto e sedento da jus-
Ver também Nm 19.7-10;
31.24). Implica-
tiça definitiva (Rm 3.6; 2.3-10,16; 2Co 5.
vam cm qualquer o
das vestes
caso, lavar
10; ICo 4.4-5; Rm 8.38, 29; 5.9-11; Gl 5.5:
"Aquele que tem de se purificar, lavará as
"Pela fé e pelo Espírito esperamos a espe- vestes" (Lv 14.8), "ao sétimo dia,... lavará
as suas vestes, banhará o corpo com água, e
rança da justiça", ou seja, a justiça espe-
rada). será —> puro" (Lv 14.9).

P. BONNARD Commaior razão prescreviam-se abluções


aos sacerdotes. Arão e seus filhos são lavados
com água, antes de entrar na tenda da con-
LAVAR gregação: e marca
sinal de sua ordenação
sacerdotal, sua herança em virtude de uma
e
1 .Desde os tempos patriarcais até os dias de
lei eterna (Ex 29.4,9; Lv 8.6). Os levitas
Cristo, as abluções exerceram um papel im-
devem ser purificados pela aspersão "da água
portante nos usos judeus, embora sem ter sem-
que purifica do pecado", "lavarão as suas ves-
pre uma significação religiosa. Nestas terras
tes" e, desta maneira, serão separados dos
poeirentas andava-se de sandálias. Era obri-
demais filhos de Israel para servir a Iavé
gação de hospitalidade lavar os pés aos visi-
tantes recebidos na tenda ou na casa (Gn 18.4;
(Nm 8.5-14). Uma bacia de bronze cheia de
água estava colocada entre a tenda da con-
19.2; 24.32, etc. ) Jesus reprova Simão por não
.

lhe haver concedido esta honra (Lc 7.44) êste gregação e o altar. "Quando entrarem na
;

serviço era. ordinariamente, confiado a es-


tenda da congregação, lavar-se-ão com água
cravos e Jesus se rebaixa a esta classe diante para que não morram ou quando se chega-
;

de seus discípulos (Jo 13.1-20). Êste hábito rem ao altar para ministrar ou para acender
penetrou na Igreja primitiva. Para merecer o holocausto do eSnhor. Pois, para que não
a inscrição no rol das viúvas, a postulanta
morram, lavarão as mãos e os pés, sendo-lhes
isto uma lei perpétua" (Ex 30.20). Tal rito
devia ter lavado os pés aos santos (lTm 5.10).
era exigido, evidentemente, pela santidade de
Era costume entre os fariseus ,e geralmente
Iavé presente no santuário. Da mesma ma-
entre todos os judeus, lavar escrupulosamente
neira lavavam-se na água as entranhas e as
as mãos antes de comer (Mc 7.3). Os discí-
pernas da vítima do holocausto (Lv 1.9).
pulos, descuidados de observar êste uso quase
ritual (Mt 15.2), são acusados imediatamente Havia prescrições particularmente signifi-

pelos partidários da tradição. Bíblia men- A cativas, quando tratava do grande sacrifí-
se
ciona ainda o uso comum da água : com ela cio de expiação pelos pecados do povo (Lv
lavavam-se as feridas cadá- (At 16.33), os 16). Arão, após haver colocado sobre a ca-
veres (At 9.37), os utensílios mais diversos beça do bode todos os pecados de Israel, "vi-
(Lc 5.2). Jesus manda o cego de nascença rá à tenda da congregação, despirá as vestes
lavar-se no tanque de Siloé (Jo 9), de onde de linho. banhará o seu corpo em água no
. .

êle volta curado. lugar santo e por as suas vestes" (vers. 21-24).
Em
compensação, não se lavar era sinal de "Aquele que tiver levado o bode emissário,
tristeza, de arrependimento e de luto "Mefi- :
lavará as suas vestes" (vers. 26-28). Ocasio-
bosete, filho de Saul não tinha tratado dos
. . .
nalmente também, quando um crime tenha sido
pés, nem penteado a barba, nem lavado as cometido, os anciões, em sinalde expiação,
vestes desde o dia em que o rei saíra" (2Sm desnucarão uma novilha e, sobre ela, lavarão
19.24). E, ao contrário, quem se lava ou lava as mãos (Dt 21.1-9).
o rosto, manifesta seu apaziguamento e sua
alegria Davi, depois da morte de seu filho
:
3. No entanto, a Lei era apenas a "sombra
dos bens vindouros" (Hb 10.1), destinada a
(2Sm 12.20), e o cristão que resolve jejuar
anunciar o "sacrifício que Jesus, uma vez por
(Mt 6.17)...
todas, fêz do seu próprio corpo" (Hb 10.10),
2. As abluções, destinadas a purificar ritual- bem como a sua virtude purificadora e reden-
mente, eram de uso constante na velha alian- tora. Os homens da antiga aliança parecem ter
ça, tornando-se mesmo uma das marcas da pressentido a futura realidade através das
LEI 171

numerosas expressões em que usam


o verbo mentos de Deus. Uma
superficial do
leitura
lavar. Isaías pecado do povo
acusa o "As :
Salmo da Lei, basta para
119, escrito à glória
vossas mãos estão cheias de sangue lavai- :
apreciarmos o grande número de termos que
vos, purificai-vos !" (1.15-16), e também anun- as nossas versões procuraram conservar leis, :

cia a salvação de Jerusalém "Quando o Se- :


ordenanças, mandamentos, estatutos, palavras,
nhor lavar as imundícias das filhas de Sião, sentenças, preceitos, vias, caminhos, desígnios,
e limpar Jerusalém do sangue derramado fa- etc. Renunciamos a escrutar cada um dêles,
zendo circular um sopro de justiça" (4.4; ver em particular e indicaremos apenas duas cate-
Hz 16.4). O salmista manifesta, orando, suas gorias de palavras, cuja significação ilustra

aspirações de perdão: "Da minha iniquidade bem o duplo ponto de vista que inspirou o di-
lava-me, e do meu pecado purifíca-me" (SI reito Israel. Uma primeira categoria gra-
de
51.2). Como seria compreensível, fora de uma vita em
torno da idéia de michpat (do verbo
perspectiva cristológica, uma expressão tal chaphat =
julgar, administrar) e reúne ter-
como "lavar as mãos na inocência" usada nos mos designando usos e costumes erigidos pro-
Salmos? (SI 26.6; 73.13). O que não fazem gressivamente em leis de direito costumeiro. A
o salitre e a potassa (Jr 2.22), fa-lo-á Jesus segunda categoria, formada pelos substantivos
Cristo êle lavará os 'vestígios do pecado an-
:
dabar (palavra), mitsvah (ordem), e sobre-
te Deus. Conforme a profecia de Jacó (Gn tudo thora (lei), caracteriza a lei como ema-
49.11) "o Pacífico lavará as suas vestes no nada de uma fonte superior, indicando a de-
vinho, e sua capa em sangue de uvas", Jesus cisão, a disposição, a ordem do chefe, rei ou
>erá o Salvador e o Juiz (Ap 19.15). Deus. Thora é, de todos êles, o termo mais
característico e que melhor resume o conjun-
Quando o NT usa o verbo lavar em relação
to de noções relativas à Lei.
ao sacrifício de Cristo, evoca a virtude puri-
ficadora dêste sacrifício, mas também, ao mes- A palavra thora figura mais de 220 vezes
mo tempo, o ato sacramental que a torna efi- no VT. Sua etimologia é incerta provavel- ;

caz na vida do crente: o


5.26; ljo 1.7; 5.6-8). Paulo assim relata,
—>
batismo (Ef mente deriva de yarah, que significa lançar,
tirar (ISm 20.36 =
disparar flechas; Js 18.6
para os judeus a palavra que Ananias lhe di- = lançar as sortes; Gn 31.51; Jó 38.6 =
rigiu "Levanta-te, recebe o batismo e lava
:
lançar os alicerces de um edifício), ou também
os teus pecados, invocando o nome de Jesus" mais geralmente, instruir, ensinar (significa-
(At 22.16). Nem sempre a palavra batismo ção provinda do gesto do mestre lançando a
aparece, mas está subentendida, como em Jo mão para demonstrar, ou do gesto do profeta
13.10: "Quem já se banhou não necessita de lançando os oráculos, resposta de Deus). Tho-
lavar...", a como em ICo 6.11: "Vós vos ra designa uma instrução recebida de autori-
lavastes, fostes santificados", ou ainda como dade superior para servir de regra de conduta
em Hb 10.22: "Aproximemo-nos com sincero em determinada circunstância. Os Setenta tra-
coração, em plena certeza de fé, tendo os cora- duziram, quase sempre, para o grego nomos
ções purificados de sã consciência e lavado o norma, lei (de nemo =
distribuir, repar-
radical de onoma — nome ou apelativo
corpo com água pura". O Apocalipse (e tam- tir ;

distribuído a cada um) Seja como fór, a etimo-


bém ljo) expressa, numa síntese ousada, êste .

logia não basta para explicar um conteúdo


mistério purificador Jesus lavou-nos de nos-
:

que, durante séculos, se enriqueceu e se modi-


sos pecados no seu sangue" (Ap 1.6); "Os
escolhidos lavaram as suas vestes no sangue ficou diversamente.

do Cordeiro" (7.14; 22.14). Na origem, uma thora era uma instrução


particular, que o sacerdote ou o profeta
oral,
E. DISERENS comunicava da parte de Deus em resposta às
LEI perguntas do povo ou de um indivíduo (Is
1.10; Mq 3.11: os sacerdotes ensinam por di-
VT nheiro). Tais oráculos tornaram-se, progres-
A noção de Lei é uma das mais importantes sivamente, aos olhos do povo, a revelação da
do VT. Define-se, geralmente, a religião de divina vontade extensiva a campos mais ge-
Israel como religião da Lei. A noção não é rais os sacerdotes foram encarregados de pro-
;

simples, mas comporta elementos bem diver- clamar, revelar e ensinar a todo o povo a
sos de forma e de princípio. Importa, pois, de-
thora de Iavé (Is 8.16,20; 30.9; Mq 4.2).
finir os termos, analisar o seu conteúdo e, fi-
Comprovou-se que a palavra de Deus tinha
nalmente, dar uma rápida nomenclatura aos um evidente valor preceptivo na vida do povo,
principais códigos legislativos do VT. e assim procedeu-se para formular e publicar
a thora posteriormente foi ela escrita em for-
;

1 . O vocabulário bíblico é rico em expres- ma de prescrições e de leis. Codificaram-se em


sões que dizem respeito à Lei e aos manda- conjuntos mais ou menos completos, e os di-
172 LEI

versos textos legislativos, referentes às prá- da tradição. A tradição tomará, muitas vezes,
ticas religiosas, à vida individual, social e maior importância que a própria Lei, e assim
moral dos israelitas integraram o Livro do o fardo da Lei acaba sendo aniquilador e, de
Pentateuco. Com uma lógica bem natural, a fato, matará a feliz liberdade que devia dar
palavra thora passou, então, os a significar a graça do Senhor (Mt 23.4). Destarte, ca-
diferentes livros que ocupavam, cada dia mais, vou-se artificialmente um abismo entre a
o lugar principal na vida de Israel. Pen- O thora primitiva, expressão espontânea dâ bon-
tateuco, considerado como um
só, na livro dade e da graça de Iavé, reveladas pela bôca
Bíblia chamou-se a "thora de Moi-
hebraica, dos profetas, e a thora pesada e inflexível dos
sés". Esta Lei de Moisés formou, para o ju- doutores.
daísmo, a parte fundamental das ^Escri- — Não
obstante as variações da palavra
turas. No sábado devia-se ler na sinagoga 2.

parte do Livro, de tal maneira que todo o thora através da evolução de Israel, as notas
Pentateuco fosse ouvido anualmente. Os de- características do conceito de lei nunca se
mais livros do VT gozavam de um valor se- alteraram fundamentalmente. Tentaremos ago-
cundário um texto do Talmude declara "Se
: :
ra descobrir e definir estas notas.
Israel não tivesse pecado, teria recebido ape- a) Em
primeiro lugar, sublinhemos a idéia
nas os cinco livros da thora e o de Josué" de autoridade. Uma thora possui autoridade
(=ro Hexateuco. Trad. Nedarim 22b). Nos porque provém de uma pessoa superior (pai
tempos de Jesus, os livros sagrados recebiam ou mãe: Pv 1.8; chefe: Ex 18.16,20), e em
o nome de "A lei c os Profetas" (Mt 22.40). particular, porque provém de Deus (Ex 21.1;
Notemos, porém, que ainda quando o termo 24.3; etc). Constitui a revelação da divina
thora passou a designar tècnicamente o He- vontade para o povo escolhido, o instrumento
xateuco, nunca desapareceu totalmente o sen- mediante o qual Israel conhece o que Iavé es-
tido original da palavra ainda depois do exí-
:
pera dêle (ver —>
Revelação}. Lei é A
lio, um oráculo sacerdotal relativo a um caso

particular, é chamado de thora (Ag 2.11).


ligada,
entre
portanto,
Deus e
à—>
Israel,
aliança estabelecida
especialmente no monte
Nas profecias escatológicas mais tardias, thora Sinai. De fato, a êste momento preciso da
guarda uma acepção mais geral "todas as :
História dos hebreus é que se atribuem os
nações, ao final dos tempos, conhecerão a lei textos legislativos mais importantes do VT.
do Senhor" (Is 51.4; 42.4). inclusive aquêles cuja redação deve conside-
Há, outro aspecto.
ainda, Lei, represen- A rar-se muito posterior (tal como o Levítico).
tando a vontade de Deus, é considerada o bem A Lei é a marca da aliança: foi concedida
supremo, e elogiada nos termos mais entusiás- por Deus a seu povo preferido, e êste, por
ticos. Os Salmos (19; 119; e outros) tradu- sua vez, testemunhará sua fidelidade obser-
zem poeticamente a veneração e o carinho que vendo-a. Na proclamação sinaítica da Lei, nada
ela inspira ao povo fiel. A
thora faz-se o cen- encontramos rigorosamente jurídico; em com-
tro da piedade e do culto mais e mais é rece-
; pensação, nela resplandece a graça misericor-
bida como a expressão da —-> sabedoria santa diosa de Iavé para com Israel, a prova de sua
e eterna de Deus. Além de nunca perecer, ela bênção bondosa (Dt 7.6-15). No não há VT
sempre existiu, antes mesmo da própria cria- o menor assomo de oposição entre à Lei e a
ção do mundo. Possui um caráter absoluto, graça a Lei é uma graça.
:

ultrapassa a categoria de simples instrumento


b) A
Lei, porque vem de Deus, acarreta
usado por Deus para entrar em contato co-
a idéia de verdade dogmática. Além de reve-
nosco a thora existe por si. Tem uma santi-
lar a vontade de Deus, ela insinua o que Deus
:

dade mágica. Seus rolos não podem ser toca-


é, o que Deus faz. "Eu sou o Senhor teu Deus
dos sem perigo de vida. Passo a passo ocupa
que te tirei da terra da escravidão... Eu sou
o lugar de um quase-atributo de Deus e ganha
Deus zeloso que visito as iniquidades e que
um lugar proeminente na piedade judia. A to- faço misericórdia" (Ex 20.2-5). Senhor é, O
ralatria, idolatria da Lei, virá a constituir-se,
em muitos aspectos, a característica da vida
pois, um Deus
misericordioso e compassivo,
clemente e longânimo, grande em bondade e
religiosa nos contemporâneos de Jesus. E, como
fidelidade, fiel a seu amor por mil gerações
esta Lei precisa ser interpretada de geração
(Ex 34.6-7). Congregará e levará seu povo
em geração e aplicada aos mil casos da exis-
para a terra da promessa, o cumulará de bens.
tência humana, cria-se lentamente Uma casuís-
se alegrará com a felicidade de Israel (Dt
tica de consequências desesperadoras o lega- :

30.1ss).
lismo hipócrita e o formalismo escravizante.
O imenso amontoamento de textos rabínicos, c) Quem
não vê a plenitude inerente à
chamado Talmude, quer ser apenas um comen- Lei? A
thora com, efeito, abarca, na sua tota-
tário da Lei, e sempre mais rico com o correr lidade, a vida do povo e do indivíduo. Não há
.

LEI 173

campo que dela escape. Deus reina soberana- dotal, por fragmentos em vários
distribuída
mente sobre tudo, êle é quem decreta os pre- livros da Bíblia atual encontramos outros
:

ceitos regulando tòda a vida religiosa, moral elementos desta obra sacerdotal incorporados
e social de Israel. As leis do Levítico e do em muitos capítulos do Pentateuco (por exem-
Deuteronômio não conhecem a menor divisão plo, Ex 26-31; 36-40; Nm 1-10, etc). A com-
para elas, não
entre religioso, social ou moral ;
paração com a thora de Ezequiel (Ez 40-48)
existe um campo sagrado e outro profano. Ao é das mais importantes, ilumina a História
lado de normas que regulam a maneira de ofe- do direito israelita e judeu durante as diver-
recer os sacrifícios ou de celebrar as festas sas fases de sua evolução. Não menos inte-
anuais, há ordenanças sóbre o castigo dos de- ressante é a comparação entre os códigos ju-
litos, sobre o tratamento do gado, a conduta rídicos de Israel e os códigos legislativos babi-
diante de um
estrangeiro, regras concernentes lónicos, assíricos ou hititas (particularmente
aos animais puros e impuros, providências com o código de Hamurabi) permite com- :

acêrea dos leprosos e das relações sexuais. provar a existência de um fundo comum de
leis civis e penais em todo o Oriente antigo,
d) Discerne-se, por fim, através de tòda
contrastando com o valor único da inspiração
a legislação da thora, uma idéia de finalidade.
religiosa da Lei sinaítica
As leis visam resultados práticos destinam- ;

se a orientar e conduzir a vida dos crentes na


realidade concreta de cada dia. Nunca se apre-
NT
sentam como dogmas abstratos, destinados à Salvo mui raras exceções (Hb 8.10 e 10.
contemplação teórica. São regras práticas de 16, citaçõesde Jr 31.33 através do texto grego
vida e de ação. A redação nada tem de jurí- dos Setenta, que verteram para o plural o
dico ou impessoal; é exortativa, convidativa; singular thora original), o NT fala da thora
multiplica os apelos, as promessas e as amea- no singular. Com muita razão êste singular :

ças dirige-se ao coração e, simultaneamente,


;
denota uma idéia precisa, que tem uma unidade
ao espírito. O Deuteronômio é um magnífico interna profundíssima, a despeito de apresen-
modelo de legislação em estilo de pregação. tar —
como, aliás, já no judaísmo, cuja ter-

Contudo, não estão ausentes as leis concisas minologia é aqui adotada pelo NT dois
e absolutas: "Tu deves... tu não deves...": matizes corelativos.
os rabinos contavam, no Pentateuco, 365 proi- Com efeito, a Lei é, antes de mais nada, a
bições e 248 preceitos, ou seja, um total de expressão imperativa de
da vontade santa e
613 Não
deixa de surpreender o caráter
leis. Deus (Rm 3.19; 4.15; Mas ocorre 7.1, etc).
predominantemente negativo no próprio De- ;
que esta vontade divina consignou-se concreta-
cálogo, de dez mandamentos, oito são negati- mente nos Livros do VT. Daí que o têrmo
vos. Notemos ainda que, sendo impossível se- Lei convém ao Pentateuco, documento funda-
parar o indivíduo e a coletividade, os tu e os mental da divina revelação (Lc 2.23-24,27,39;
vós alternam-se para proclamar que tudo o 10.26; Jo 1.45; At 6.13-14; 7.7; etc), Rm
que é verdadeiro para o povo também é ver- e também, ainda que mais raramente, ao con-
dadeiro para o indivíduo, e reciprocamente. junto das Escrituras do VT (ICo 5.17; Rm
3.19; Jo 10.34; 15.25; 12.34; ver SI 110.4).
3. Resta-nos enumerar, em ordem de anti-
Mais ordinariamente êste conjunto recebe o
guidade, os principais códigos conservados pe-
nome de "A Lei e os Profetas" (Mt 5.17;
lo VT. As leis mais arcaicas estão contidas
no Decálogo (Ex 34.10-28) e no Livro da
Rm 3.21, etc).
Aliança (Ex 20.22-23.33). O Decálogo Mo- As expressões "a Lei" e "a Lei e os Pro-
ral conserva, em duas versões um pouco dife- fetas" desig-am pois expressamente o iVT,
rentes (Ex 20.1-17 e Dt 5.1-21), o núcleo documento das divinas exigências, e por ex-
básico, eternamente válido, da Lei de Deus. tensão também estas mesmas exigências em
O Código Deuteronômico (Dt 12-26), bem si. Não é possível nem oportuno delimitar uma
mais desenvolvido, respira o espírito dos gran- fronteira entre ambas acepções.
des profetas. Insiste na pureza do culto, na Outras expressões, idênticas ou análogas,
necessidade de evitar qualquer compromisso aparecem excepcionalmente aplicadas também
com o paganismo, no amor de Deus e do pró- ao YT, como ao documento das promessas de
ximo. O um conjunto de leis cuja
Levítico é Deus (Mt 11.13; Lc 24.44: onde a expressão
parte conhecida na crítica como o
central é "a Lei, os Profetas e os Salmos" alude à divi-
Código de Santidade (Lv 17-26) aliás, as são tripartita do Cânon judeu). Ê muito mais
comum, neste caso ouvir o NT dizer simples-
;

outras partes obedecem ao mesmo cuidado


de codificação. Sua redação é mais nova faz ;
mente : as —> Escrituras.

parte da grande obra dos sacerdotes ("código Notemos que o NT nunca entende por "lei"
sacerdotal"), espécie de História santa sacer- a tradição judia posterior ao Cânon; muito
:

174 LEI

pelo contrário, distingue claramente estes dois b) A Lei, no entanto, é bàsicamente boa
valores, retendo exclusivamente o valor da (Mc 10.18-19; Lc 10.25-28). despeito de A
primeira: da lei (Mc 7.5-13; Cl 2.8). não poder introduzir à aliança de Deus, ela
Observemos finalmente que o têrmo lei toma, descreve a conduta que podemos e devemos
em certos contextos, um significado bem mais seguir tôda vez que, pela fé, aceitamos que
geral (como em Rm 7.21,23,25; 8.2: "a lei Deus nos franqueie a entrada. A Lei declara
do mal em mim", "a lei do pecado e da mor- as exigências impostas àquele que, admitido
te", ou como em Hb 7.16) lei significa, então
:
na graça, pretenda perseverar-se nela. (Daí a
uma norma ou pauta determinada por tal ou formulação geralmente negativa dos manda-
qual realidade por exemplo, a lei do pecado
;
mentos, anotada já no VT). Lei, ainda que A
é a conduta determinada pelo pecado. Mercê não dê acesso, por si mesma, à aliança (=à
dêste significado mais extenso, pôde o cris- graça), nos permite comprovar se estamos ou
tianismo expressar certas exigências divinas não estamos nela faz as vezes de um termó-
:

sem renunciar ao têrmo lei. Assim, Romanos metro que, sem ser remédio, indica a saúde
3.27s dirá "a lei da fé" por oposição à "lei ou a enfermidade.
das obras", e Rm 8.2 falará da "lei do espí- Jesus, avaliando os seus interlocutores com a
rito de vida". A seu modo esta conservação balança da Lei, entrega-lhes uma revelação de
da palavra "lei" atesta a unidade de ambas grande preço faz-lhes compreender que ca-
:

as alianças.
recem, não precisamente da vontade, mas da
Um
estudo sobre o sentido da palavra Lei capacidade de obedecer aos divinos preceitos.
em o NT
não pode basear-se, exclusivamente, Mesmo que se esforcem por cumprir as leis e
sobre os textos que contêm explicitamente a
preceitos, êles não entrarão no reino enquanto
palavra em foco. Pois, mesmo ausente a pala-
não abandonarem suas pessoas a Deus e ao
vra, a realidade está presente em muitos luga-
res, em particular nos evangelhos.
próximo (Lc 10.25-37; Mc 10.20-22). En-
tregar-se a Deus é que torna autêntica a obe-
1 .Jesus e a Lei. Um
observador superfi- diência, pois só a Deus constitui,
entregar-se
cial achará contraditório o depoimento dos de fato, a abdicação indispensável perante Deus.
sinóticos acêrca da atitude de Jesus perante Jesus "cumpre" a Lei (Mt 5.17), perfeita-
a Lei. Entrecruzam-se, de fato, apreciações mente cônscio de suas exigências absolutas
positivas e negativas, de maneira aparente- (Mt 5.21-48), esmagadoras para quem pre-
mente mais incoerente. Porém, um exame mais tender satisfazê-las sem prèviamente renun-
profundo conduz às seguintes constatações que ciar-se a si mesmo e encontrar a vida divina
depõem favoravelmente pela unidade real en- em Cristo (Mc 8.34-35). A Lei serve, pois,
tre o ensino e a conduta de Jesus para fazer-nos descobrir o pecado e convidar-
a) Jesus, a exemplo do VT e contrària- nos ao arrependimento.
mente ao judaísmo posterior e particularmente
c) É
portanto compreensível a violenta
ao farisaísmo, nega que a Lei possa consti-
hostilidade de Jesus, não contra a Lei, mas
tuir um meio dc salvação. Fiel ao pensamento contra seu uso falacioso, contra o poder ilu-
hebraico original, reivindicado pelos profetas, sório a ela prestado, contra o papel mentiroso
Jesus acredita que o homem não pode ser sal- que se lhe atribui na economia da salvação.
vo fora da iniciativa exclusiva de Deus. As- O homem, imaginando que a fidelidade à Lei
sim como a antiga aliança foi estabelecida não possa fundamentar a salvação, engana-se gros-
sobre a dignidade prévia dos israelitas mas seiramente sobre sua situação ante Deus. Ilu-
sobre a vontade e preferência de Deus, assim de-se pensando poder entrar na aliança como
também a salvação do homem não depende da dela saiu, pois unicamente Deus pode reinte-
conformidade de sua vida às prescrições da grá-lo a ela, satisfeitas as condições que re- :

Lei, e sim de sua aceitação do reino de Deus nuncie a justificar-se a si mesmo e implore
manifestado em Jesus (Mt 11.7.15; Lc 16. perdão.
16; Mc 2.21). Xão é a sujeição à Lei, mas A obediência aos mandamentos é perigosa-
a fé em Jesus que fundamenta "a salvação dos mente ilusória, quando o homem se prevalece
homens. Os publicanos e as prostitutas prece-
dem no reino aquêles que não acreditam nas
dela para iludir o —>
arrependimento ou
retardar a entrega total de si mesmo a Deus
palavras do Precursor (Mt 21.31-32). O mes- (presente em Cristo) e ao próximo. Falazes
mo acontece à ovelha, à dracma e ao filho são os deveres de família quando servem de
perdido (Lc 15) serão achados e restituídos
: pretexto para não seguir a Cristo (Mt 8.
à vida em Jesus Cristo. Quem decide a salva- 21-22; Lc 14.25-27). Falaz o rspeito ao sá-
ção eterna do homem é a
Cristo (Mt 10.32-33; Mc 13.16).
fé em Jesus —> bado quando dispensa o amor imediato ao
próximo (Mc 3.1-6). Falaz a guarda dos
:

LEI 175

mandamentos que vela a necessidade do arre- mesma impotência da Lei para a salvação tes-
pendimento (Lc 18.9-14). temunha, a seu modo, o poder de Cristo. Em
Reconduzamos a Lei à sua fonte, junto à suma, para Paulo, estar "em Cristo" implica
vida no —>
Reino, junto ao amor a Deus
e ao próximo, e deixaremos de necessitar e
necessariamente, em deixar de estar "debaixo
da Lei" (Rm 6.14) e furtar-se a sua justa
mesmo de tolerar qualquer casuística (Mt sanção ( Rm 4.15).
23.14-33). O pecado não consiste tanto em
Sendo Cristo o cumprimento pleno da
c)
transgredir a Lei como em negar-se ao arre-
Lei, o crente não pode volver a colocar-se de-
pendimento e ao amor. Desta negação gravís-
baixo da lei sem subtrair-sc a Cristo e recair
sima, os pecados contra a Lei apenas são o
sintoma. A recusa ainda mais grave
faz-se sob o domínio do pecado (do qual exclusiva-
quando a obediência que nada tem
farisaica,
mente Cristo pode nos salvar, Cl 2.20). Crer
a ver com o Reino, degenera em hipocrisia
não significa primordialmente mudar de con-
duta, mas mudar de
lugar sair de si mesmo
(Mt 16.6; 23.13). O fariseu comete, com :

relação ao Reino, o erro que cometeria o ho-


para entrar em
Cristo (Cl 3.12; Fp 3.9).

mem que imaginasse conseguir a nacionali- Mas então, vamos opinar que a Lei, definiti-
dade de um país pelo mero fato de sujeitar-se vamente realizada em Cristo, não mais serve
às leis daquele país. Exclusivamente o arre-
para o cristão? De modo nenhum! (Rm 6.

pendimento e a renúncia a si mesmo conce- 1-2). Há


apenas esta novidade: que o crente
dem tal nacionalidade. obedece à Lei já não para ser salvo, mas por-
que Cristo, que o salvou, lhe dá a possibili-
2. A elaboração teológica de São Paulo. dade de viver de seu Santo Espírito (Rm
Paulo não traz elementos substancialmente no- 8.14-16; Gl 5.22-25). A
obediência à Lei não
vos: elaborou teologicamente as noções já co- é a condição, e sim a consequência espontâ-
nhecidas e deu-lhes as aplicações reclamadas nea, livre e viva, da salvação.
pelo conjunto da mensagem cristã e pelas exi-
gências da evangelização dos pagãos. 3. A obediência livre. Uma vez a obediên-
cia do cristão situada nestes têrmos, decorre-
a) O Reino de Deus, tal como o entendiam que as disposições da Lei são, em Cristo,
se
os sinóticos a nova situação criada pela vinda
de Jesus, culminam aos olhos de Paulo na
"radicallizadas" e "relativizadas", (= outra
evidente conformidade de Paulo com os evan-
morte e ressurreição de Cristo. É à luz desses
fatos divinos, cm particular da
morte de Cristo, que Paulo considera a Lei.
—> cruz e da
gelhos).

a)Radicalizadas: quer dizer reconduzidas


Como o VT e como Jesus, denega a esta qual- — em
virtude da obediência de ejsus, única

quer poder de salvar. Mas muito mais e muito perfeita à fonte de toda vida humana à :

melhor que os evangelhos, suas epístolas expli- vida divina. Os preceitos da Lei, desprovidos
citam o laço interno entre a Lei e a cruz. Se agora de qualquer significação autónoma,
Cristo instaurou o Reino de Deus entre nós, cumprem-se no amor ao próximo, baseado no
foi devido a que êle mesmo se submetera à amor a Deus (Gl 5.14; Rm
18.10; Gl 6.2).
"maldição da Lei" (Gl 3.13) e cumprira des- E assim, longe de destruir a Lei. a fé confir-
para nos salvar, a justiça prescrita
ta maneira, ma-a e levanta-a à sua mais alta perfeição
pela Lei (Rm
8.4). Jesus fêz o que não po- (Rm 3.27-31). Quanto às exigências concre-
diam os homens (Rm 5.6) é assim que sua tas da Lei. elas serão, pela lógica dêste
morte na cruz e a manifestação definitiva amor
do amor de Deus.
b) relativizadas. Em
face das prescrições
b) É, portanto, a missão da Lei comuni- literais (Rm
7.1-6; Gl 5.1), o crente se sen-
car-nos simultâneamente o conhecimento do tirá livre a plenitude do amor atualizará para
:

pecado e a certez a de que ninguém pode justi- êle, ou, pelo contrário, suspenderá a validade
ficar-se a si O pecado, evidentemente,
mesmo. das disposições concretas da Lei (ICo 7.
existia antes Lei (Rm 5.13) e também
da 18-24; 9.19-23). Assim se explica a liberdade
existe onde a Lei não é conhecida (Rm 2. de Paulo em face das prescrições rituais estas :

12-16; 3.9). Mas o conhecimento da Lei torna não serão jamais pretexto para romper a uni-
evidente o pecado, dando-lhe especial virulên- dade dos irmãos no amor (Gl 2.11-14), mas,
cia (Rm 5.20; 7.7-13; Gl 3.19). Aos olhos tôda vez que harmonizam com êste amor, as
de Paulo, a Lei não prepara o homem para ^prescrições concretas observar-se-ão estrita-
receber Cristo mas, pelo contrário, ela reme-
;
mente (mais uma vez note-se a conformidade
mora ao crente em todo momento a impossi- do apóstolo com o ensino de Jesus) delas de- :

bilidade de viver a não ser em virtude da pende a salvação dos homens, e sua não-obser-
—> fé. Aliás, a promessa da redenção foi vância demonstra, evidentemente, que o trans-
dada anteriormente à Lei (Gl 3.15-18). A gressor deixa de estar "em Cristo" (ICo 6.
176 LIBERDADE

9-11; Gl 5.19-21). Paulo não é menos ini- sob a autoridade de Deus, na paz do primeiro
migo da anarquia
presunçoso.
espiritual que do legalismo e do último dia ( —> Paz). A
História cele-
bra libertações e resgates que, biblicamente fa-
lando, são apenas mudanças de amo. liber- A
4. Os demais denotam
documentos do NT dade verdadeira consiste na aceitação amo-
uma posição idêntica perante o problema em rosa do domínio de Deus sóbre nós.
conjunto. (Jesus cumpre a Lei: Jo 1.45; 8.17;
10.34; 12.34; 15.25. O mandamento do— — Adão, antes de pecar, era livre por disposi-
ção liberal do Criador. Jesus Cristo é livre
amor: To 13.34; 15.12-15. A lei da liber- em virtude de sua total sujeição ao Pai, com
dade: Tg 1.25; 2.12. —
Incapacidade da o qual se identifica até ser uno com êle. O
lei para alcançar a salvação: Hb 7.11-22; povo da Lei antiga é livre na medida que reco-
9.15; 10.1-3). nhece e confessa a libertação milagrosa rece-
Recapitulemos: A Lei (moral e ritual) é bida de Iavé. A Igreja da nova aliança parti-
o dispositivo de salvação preparado por Deus cipa anticipadamente da "gloriosa liberdade
na velha aliança e executado plenamente por dos filhos de Deus" (Rm 8.21) na medida que
Jesus Cristo. A Lei passa, portanto, a estar crê em Jesus Cristo e resiste a tóda autoridade
totalmente em Cristo. A
Lei, inútil e mortal competidora.
para o homem separado de Cristo, depõe a
favor de Cristo. Quando o homem é incorpo- 2. A obra libertadora de Deus no VT resu-
rado a Cristo, a Lei convida-o a viver no arre-
pendimento e na obediência. Consta pois, mais
me-se concretamente na
como propriedade direta de

^> eleição de Israel
Deus (Ex 19.5).
uma vez, que o VT se faz inteligível exclusi- Manifestou-se no traço do êxodo:
histórico
vamente à luz do NT. A salvação que Deus na saída do Egito realizada por Deus a favor
confiou a Israel, seu confidente e seu deposi- dos israelitas sob o ministério de Moisés. A
tário para sempre, aparece evidente à luz libertação de Israel coincidiu com a fundação
da nova aliança de Jesus Cristo. dêste povo. De fato, cada vez que Deus liberta

J.-L. LEUBA e toma possessão dêles, torna-os uma reali-


dade nova, historicamente perceptível. O povo
de Israel é a obra exclusiva de Deus e o Êxodo
LIBERDADE insiste em salientá-lo quando declara qu Israel

1 . A condição de quem é pro-


Liberdade c a deve a existência não a Moisés, nem à benevo-
lência do Faraó, nem ao próprio entusiasmo
priedade Deus. O dicionário La-
direta de
revolucionário! (Ex 3;5-14; 2.14; 5.21; 14.
rousse define a liberdade como "a condição
da pessoa que não é propriedade de um amo",
11-12), mas exclusivamente a Deus. Deus Em
Israel acha a independência de todas as po-
definição meramente negativa, e bem susce-
tências do mundo. Os demais atos libertadores
tível de ser adornada pelos idealismos humanos de Deus no VTsão simplesmente a confirma-
ou políticos. Para a unicamente
Bíblia, é livre ção da primeira libertação-eleição e a ela refe-
o homem que, criado por Deus, entrou na rem-se terminantemente (por ex., as numero-
—> aliança de Deus, capaz, portanto, de de-
safiar qualquer pretensão totalitária dos ho-
sas referências às promessas feitas a Abrão,
à terra que o Senhor jurou dar aos patriarcas,
mens e do mundo; e é cativo quem não for etc). Durante tôda a época dos juízes e dos
libertado da tutela absoluta dos homens, ou
— caso menos grave —
quem carece momen-
primeiros reis, as guerras de independência
atestam que Deus, o Libertador, permanece
taneamente da possibilidade material de viver fiel às suas promessas e ao seu intento ini-
na liberdade divina (por causa do exílio, da cial Deus defende o solo nacional contra os
:

perseguição ou da dominação estrangeira"). inimigos exteriores e contra seus deuses arro-


Sendo Deus, por definição, o único liberta- gantes. Posteriormente, Israel perderá cada
dor, a liberdade verdadeira exclusivamente vez mais a consciência de depender imediata
dêle pode ser esperada. e diretamente de Deus a realeza se interporá
;

A liberdade bíblica não é essencialmente entre o Deus Libertador e o povo escolhido


uma conquista ou uma emancipação individual (ISm 8). A consequência será trágica: Is-
ou social do homem entre os homens. Longe rael vê e segue apenas a pessoa de seu prín-
de dar relêvo ao homem, como se fôsse êste cipe, e, da feliz liberdade de Deus, cai na tira-
um herói ou uma meta final da libertação, a nia dos homens. Torna-se necessária, assim,
Escritura coloca-o em face de Deus êle é o : uma nova libertação, não territorial mas espi-
objeto do divino amor, mas pode ser, igual- ritual. Os arautos da liberdade já não são os
mente, o joguete das forças mundanas. Sua chefes militares, mas os profetas o inimigo ;

libertação é, pois, uma mera reintegração à já não é o Egito nem a Babilónia, mas o es-
hierarquia da criação,, feita exclusivamente quecimento e o desprêzo da aliança (Is 1.2ss),
:

LIBERDADE 177

o orgulho nacional disfarçado de religião (Jr Jesus Cristo nos liberta. Para o NT, não
7.3-15), a exploração dos pobres (Jr 34.17) está mais em
foco a liberdade ou a libertação
e a sujeição aos ídolos. Esta falsa liberdade e nacional, outrora ideal do VT. Aemprêsa
independência ilusória, sem Deus e sem alian- libertadora de Deus estende-se a todos os ho-
ça, terá um fim catastrófico. Porém, a pro- mens, coletiva e individualmente e, porque a
;

messa da libertação ressoa novamente no des- História está a tocar ao seu fim, ela se faz
terro (Is 40; 49.8ss; c 9.9ss) a libertação: visivelmente presente, pois está arraigada em
não será apenas territorial, mas, dentro de nós mesmos. Deus ataca as raízes da tirania,
uma aliança nova, haverá lugar para uma que são a corrupção interior (2Pe 2.19) o
libertação definitiva, de alcances eternos (Is pecado (Rm 6.18ss), pai da morte. Para êste
61.1-3; Mq 4.1ss; Ml 3.1ss). desígnio é qtjfi o Messias aparece e age; pois
Temos uma
descrição antecipada do que êle não é o salvador dos tempos antigos nem
será liberdade em textos como Gn 1-2
esta um simples realizador de esperanças ultrapas-
(=o homem diretamente ao serviço do Cria- sadas, mas um salvador que extirpa as pró-
dor), e Gn 12-50 (=os patriarcas nómades, prias raízes do mal, raízes que nenhum homem
mercê da sua estrita dependência de Iavé. des- soube ou pôde eliminar, já que nem sequer
frutam um antegósto da liberdade reservada podia reconhecê-las. Cristo liberta o homem
aos escolhidos de Deus) . do cárcere do próprio pecado, revela-lhe que
sua pretensa liberdade ("interior") é escra-
3. O NT
proclama que Jesus Cristo é o Li- vidão, dá em resgate a própria vida para obrar
bertador de todos os homens, em primeiro lu-
o perdão, ressuscita de entre os mortos para
gar de Israel, e logo das nações todas. Jesus
reabrir o caminho da liberdade. Os homens
Cristo traz a libertação (Lc 4.19-21) por-
opõem resistência à sua própria libertação,
quanto restabelece a relação direta, o domínio
mas quem seguir a Jesus Cristo até o fim
direto de Deus sobre os homens (pelo menos
sobre os crentes). Sua vinda recoloca Deus
entrará no mundo da liberdade e da —> vida
eterna, embora ainda sujeito, por enquanto, à
na vida dos homens, expulsando os falsos se- morte. Aproxima-se o tempo "da glória dos
nhores e os falsos poderes (Consultar
—> Perdão, autoridades e demónio), e de-
volvendo aos homens sua responsabilidade pe-
filhos de Deus". Aos olhos da fé e da espe-
rança iniciou-se já o tempo da liberdade, e
vencidos estão o pecado e a morte.
rante Deus e sua inesperada dignidade peran-
te seus semelhantes. Jesus Cristo é Deus co-
5. Viver livre consiste, pois, em colocar-se
nosco (=Emanoel) acaba com todas as dita-
;
sob a soberania efetiva do Deus vivo e ser
duras. A
liberdade já começou para quem reco- Possuído pelo Espírito Santo. A liberdade, que
nhece a autoridade de Jesus. E tal liberdade nada tem a ver com o caos (Gl 5.13; Ef 4.
não é uma defesa contra o meio ambiente 14; IPe 2.16), vem dotada de uma estrutura
( =individualismo, orgulho compensador das que podemos chamar de Lei, "a lei do espírito
inferioridades subconscientes), nem um des-
de vida" (Rm 8.2), "a lei da liberdade" Tg
prêzo ao mundo, mas o estado da nova cria-
1.25; 2.12), "a regra de doutrina" (Rm 6.
tura retornada às mãos do Criador. liber- A 17). Os apóstolos não admitem que o azar e
dade, em um mundo que se separou de Deus, o acaso ensinem aos cristãos como viver li-
renasce por Jesus Cristo (Jo 8.31-36) onde ;
vres; mas, junto a êles, examinam a vontade
reina o Espírito do Senhor, aí existe liber- concreta do Senhor Salvador, determinam seus
dade (Rm 8.2; 2Co 3.17; Gl 5.1).
contornos e fixam por escrito o fruto dêste
A liberdade do NT
não tem, portanto, uma exame em normas e pautas para o futuro (ver
mera acepção socialque consistiria, por exem- as exortações de Paulo nas conclusões de
plo, em ter os mesmos direitos que os demais suas cartas). Onde estiver o Espírito do Se-
sem excluir êstes aspectos relativos (Tg 5. nhor aí estará a liberdade mas o Senhor não
:

4-6), descuidá-los (Fm 21; Ef 6.9), o


nem é um Deus de desordem, e sim de paz (ICo
NT nunca os reconhece como decisivos (ICo 14.33). Viver livre consiste, portanto, em se-
7.20-21, texto que deve ser traduzido: "mes- guir o caminho dos mandamentos com fé e
mo que tu possas tornar-te livre, fica prefe- "obediência de coração" (Rm 6.17).
rentemente escravo") A fonte da liberdade
.

não está nas instituições, mas no Senhor, para a) Contudo, seria um completo contra-
aqueles que se sujeitam a êle e a êle servem senso qualquer pretensão em definir a priori
(ICo 7.22; 12.13; Gl 3.28). Na realidade, por uma —> lei, os efeitos concretos da sobe-

rania de Deus. Equivaleria a dar o lugar de


todas as potestades escravizantes são amea-
çadas e abaladas por Jesus Cristo. Deus a urna letra morta. Além de um êrro,
isso seria um retrocesso ingrato para uma Lei
4. O —> pecado e sua consequência natu- perimida a antiga Lei ideal da sinagoga não
ral, a — ^> morte, são os tiranos dos quais
:

é condigna com a Lei da liberdade do Reino


: :

178 LÍNGUA

de Cristo. A vinda de Cristo tornar-se-ia inú- O processo judicial de Jesus, e, posterior-


til, pois sob um rótulo cristão, guardaríamos mente, o de São Paulo, constituem para nós
a pauta imperfeita do VT. Ora, a Lei do VT modêlos da atitude livre, leal, construtiva,
ía despeito de não ter sido uma simples moral ainda que incompreendida e condenada, resul-
natural e sim o código da aliança divina), tante da obra libertadora de Deus. ambos Em
não teve efeito libertador. Só Deus ,o inspi- processos revela-se bem claramente a caracte-
rador da Lei, obrou a libertação, e é êle que, rística político-social da liberdade pregada pela
em Jesus Cristo agora, oferece a libertação de- Bíblia.
finitiva e radical (Rm 8.3-4). De modo ne- C. BIBER
nhum deixa-se reduzir a uma lista de exigên-
cias morais e religiosas. O homem nunca po- LÍNGUA
deria salvar-se desta maneira, por suas pró-
prias obras. Daí surgiu a luta incessante, ar- 1 . As línguas. Deus fala. O homem, cria-
dente e zelosa, bem como logicamente aper- do à sua imagem, também fala. Enquanto o
tada, de Paulo contra os judaizantes e con- dom da palavra procede da obra criadora, a
géneres que na prática dão maior importân- diversidade das línguas decorre do pecado.
cia a uma lei do que à fiel submissão à obra Houve um tempo, conforme nos contam os rela-
de Jesus Cristo. Os cristãos de concepções tores iavistas de Gn 11, em que tôda a terra
legalistas realmente não compreendem que Je- falava uma só língua e usava os mesmos ter-
sus Cristo iniciou uma era nova com seu mo- ; mos. Tal unidade de linguagem assegurava
ralismo, por uma parte, a signifi-
aniquilam, aos humanos uma força de coesão tão grande
cação de Cristo, por outra, a intenção desta que possibilitava os maiores empreendimentos
mesma lei que tanto preconizam (Gl 5.11; assim foi resolvida a construção de uma torre
6.12s; Rm
3.19-28; Fp 3.2-3; Cl 2.10-23). permitindo subir aos céus. Deus, para impe-
dir esta tentativa, confundiu sua linguagem
b) Mas, se cumpre resistir aos legalistas,
=
(Babel confusão) de tal modo que os ho-
não sedeve de forma alguma, bancar "o ior- mens já não se entendiam entre si. Fica, as-
te", isto é demonstrar ostensivamente uma li-
sim, explicada a diversidade dos idiomas.
berdade que não passa de simples orgulho e de
pretensão carnal. A liberdade autêntica de 2. A língua. Porém, mesmo que falassem
Cristo tem efeitos bem menos barulhentos e a mesma língua, os homens não estariam uni-
bem mais radicais (Gl 5.24-25). Se tudo é dos. Quem considerar as diversas qualifica-
lícito, nem tudo convém (ICo 8-10; o que ções dadas à língua por profetas e salmistas,
importa é integrar-se amorosamente na aprenderá que ela é capaz do pior e, às vêzés,
—>
aos
edificação do corpo de Cristo, facilitando
outros igual integração (Rm 14-15). Je-
do melhor. Pois ela é um veneno (SI 140.4),
uma faca (SI 52.4), um flagelo (Jó 5.21),
sus Cristo, o perfeito modêlo
17.24-27) (Mt um fogo (Is 30.27), uma espada (SI 57.5),
adotou para si esta atitude de renúncia às um arco e uma flecha (Jr 9.3,8). "A língua,
próprias conveniências e de sacrifícios para
pequeno órgão, se gaba de grandes coisas"
evitar tôda a causa de tropeço ao Evangelho.
(Tg 3.5). Sua pequenez dissimula sua enor-
Os apóstolos, em particular Paulo, o imita- me influência. Precisamente porque abençoa
ram (ICo 9; lTs
genuína, sem embaraços internos.
2.5-9). Esta é a liberdade
e porque maldiz, urgedominá-la — urgência
que reconhecem e proclamam, a uma voz, o
c) Viver livre, finalmente, não implica em salmista, Jó, os sábios de Israel e os apósto-
anarquia social. O cristão, iniciado pela pró- los de Cristo. O
autor das epístolas pastorais
pria salvação recebida às misericórdias do não hesita em formular, a êste respeito, sá-
Senhor dos senhores, deve se sujeitar às bios e saborosos conselhos para poupar às pa-
—> autoridades humanas na medida que a or- róquias os perigos das viúvas tagarelas e intri-
dem estabelecida não contrariar a ordem eterna gantes "que falam o que não devem" (ITm
e absoluta. O Estado tem a função de manter 5.13), ou os inconvenientes dos discursos vãos
a ordem provisória do melhor modo possível e profanos e a ostentação da falsa ciência
a liberdade cristã consiste em saber viver den- (ITm 6.20). O próprio Jesus denunciou com
tro dêste Estado dando, todavia, o primeiro virulência aquêles cuja língua é enganadora,
lugar ao Senhor. Tal atitude comporta leal- e tratou de hipócritas os fariseus que "dizem
dade, respeito (Rm 13.1-7; IPe 2.13-17), e. e não fazem" (Mt 23.3). Jesus ressalta o
oportunamente, resistência (para o maior bem fato de ser a língua a expressão do que há
do Estado, quando êle fôr infiel à sua própria fie mais íntimo em nós não da bôca, mas do
:

missão, At 4.19-20; 5.29), firmeza no uso coração procedem os maus pensamentos (Mc
de todos os direitos (At '16.35-39; 22.25-30), 7.21). Inversamente, é o próprio Deus quem
e. se fôr preciso, sofrimentos e martírio. inspira as confissões dos mártires, para que
; :

LUZ 179

a todos conste que êstes homens lhe pertencem ouviram os apóstolos narrar as maravilhas
inteiramente. Êlc porá na bòca dos seus pala- de Deus, sem que constituísse obstáculo a di-
vras de sabedoria e de poder irresistível (Mt versidade de línguas todos, a despeito da
:

10.20). diversidade e mesmo da multiplicidade de idio-


Tara os escritores bíblicos, a língua é, em mas, entenderam "as grandezas de Deus". A
suma, apenas o meio de expressão dado por significação íntima do carisma é esta: não
Deus aos homens. E, por serem, na totalidade há separação de classes, de idioma ou de na-
de seu ser, presos do pecado, é necessária a cionalidades que possa impedir que se consti-
intervenção de Deus e a conversão do homem tua uma igreja quando o Espírito de Deus a
para que sua língua se faça apta a bendizer anima. A ação do Espírito ajuntando os ho-
e a proferir coisas boas. mens mais separados e estranhos é uma admi-
rável réplica à tórre de Babel, onde o orgulho
3. O dov.i dc línguas. Enquanto o problema humano tentou reunir os pecadores contra
da língua faz parte do comportamento global Deus.
do cristão, o dom de línguas (=carisma estra- Emsuma, a glossolália, ou dom de línguas,
nho de "falar em línguas") constitui uma ma- é um carisma espiritual. Suas manifestações
nifestação cultual. Fruto da comunicação do desordenadas (como em Corinto) assim como
Espírito, sons inarticulados, ininteligí-
êstes sua ulterior desapropriação não deixam de ser
veis para falava e para quem ouvia, ne-
quem um problema para os crentes.
cessitavam ser traduzidos (interpretados por À guiza de conclusão, notemos ainda que o
outro inspirado) para edificar a assembléia. Deus vivo que nos deu a sua Palavra, não
São Paulo declara aos coríntios (ICo 12 e pode admitir que a confissão cristã seja ligada
14) que cada fiel deve regozijar-se pelos dons a uma só língua, a uma só fórmula definitiva,
que recebeu de Deus porém, êstes dons não
; ou a uma forma de expressão espiritual. Deus
constituem um motivo para se crer superior pode sempre, quando e como lhe aprouver, reu-
nada mais lamentável do que opor uns aos ou- nir em Cristo, mediante o Espírito, os homens
tros os diferentes carismas do Espírito Santo. de todas as línguas e de todas as raças.
Acaso não é a intensão profunda do Espírito
agindo carismàticamente na comunidade, AI. CARREZ
—> edificar o corpo de Cristo? Lembrem-se
disso os glossólalos ( =
os que falam em lín- LUZ
guas). Êles, na realidade, falam a Deus e não
aos homens não edificam ao próximo mesmo
LUZ aparece nas páginas bíblicas com as
;
seguintes acepções
quando trabalham, quiçá, à sua própria edifi-
cação. Eis porque Paulo lhes declara: "pre- 1. A luz do dia. do sol. dos astros (Gn 1.4:
firo na Igreja cinco palavras inteligíveis a fa- Ex 10.23; Jó 26.10; etc).
lar dez mil palavras em outra língua". êste A
respeito, convém
observar que a) éle não:
2. O deslumbramento provocado por uma
despreza nem elimina o dom de línguas; b) manifestação celeste CMt 17.2; At 9.3; 12.7;
não reconhece neste carisma qualquer supe-
rioridade relativamente, aos outros dons. Paulo
22.6; 26.13; Lc 2.9 Glória).—>
dá grande relêvo à necessidade de guardar à
3. Mas sobretudo, tanto no VT como no
glossolalia seu lugar no seio da comunidade
NT, "luz" é empregada para significar a reve-

entre os outros carismas, e de ela ser usada lação de Para o


Deus. VT
Deus ilumina e
edificante e ordenadamente. salva 27.1: 36.10; 43.3; Mq 7.8; Is
(SI
60.19-20); sua palavra é luz. sua lei ilumina
O relato do prodígio de Pentecostes
(At 2)
(SI 119.105; Pv 6.23: Is 2.2-5). Deus volta
não é de interpretar. Ignoramos o que
fácil
sua face para o homem, e a luz de seu sem-
aconteceu exatamente, se os apóstolos foram
blante proporciona-lhe todos os bens, a alegria
favorecidos de "xenoglossia" (=dom de falar
e a paz (SI 4.7).
em línguas estrangeiras) para ser entendidos
pelos forasteiros (o que nos parece duvidoso), O Messias traz a luz, êle mesmo é a luz (Is
ou se, falando os apóstolos em sua língua, a 42.6; 49.6: 51.4; Lc 2.32: At 13.47). Tam-
turba circundante fora posta em estado de re- bém a luz é o bem conhecido e praticado (Is
ceptividade para entender tudo como através 5.20) e a salvação futura (Is 9.1).
do idioma próprio de cada qual. O versículo Por contraste, as trevas significam o mal, :

13 parece, insinuar esta segunda explicação. O a desgraça, o castigo, a perdição (Am 5.18;
texto nãopretende explicar o milagre (que Is 5.20: 59.9; Jó 18.6.18; Lm 3.2: SI 88.7;
ficou para o próprio narrador),
inexplicável 107.10). Luz e trevas são dois mundos esta-
contentando-se com asseverar que homens de ticamente opostos e mutuamente impenetrá-
todas as línguas e de todas as procedências veis (SI 43.3; Is 60.1-2). Deus habita a luz
:

180 MALDIÇÃO

inacessível (lTm 6.16); não está no poder no da vocação a que fostes chamados", de Ef
do homem nesta morada
entrar mas Deus
; 4.1). As trevas são infrutíferas (Ef 5.11) do
desce a nós e nos translada das trevas para a ponto de vista da fé, mas produzem obras pró-
luz: nisto consiste a salvação (SI 18.29; Is prias, tais como a perversão sexual denun-
8.23; 42.7) ciada por Paulo (Rm 1.24-32; 13.12-14; Ef
5.12). Desde que condenamos as obras perver-
4. Para o NT, a luz já veio. Jesus é o "sol sas feitas nas trevas, já pertencemos, de certa
nascente" (Lc 1.78-79), a luz que vem para maneira, ao mundo da luz, e damos lugar a
salvar os que "jaziam nas trevas e viviam na uma vitória da luz sobre as trevas e a imo-
sombra da morte" (Mt 4.16), a "luz do mun- ralidade.O pecador é convocado para, dei-
do" (Jo 8.12; 9.5; 12.46). O próprio Deus. xando o reino da "morte", compartilhar da
que é luz, se fez homem (2Co 4.4-6). luz de Cristo (Ef 5.13-14).
As idéias de luz e de palavra são estreita- lTs 5.1-7 declara que o "dia do Senhor"
mente associadas. Jesus, que é a luz, profere (Am 5.18-20) será o dia em que Jesus Cristo
as palavras de Deus (Jo 8.28,31); 12.46-50:
julgaráo mundo. A evocação do ladrão ar-
Mt 4.16-17); êle é a palavra feita carne (Jo rombando a casa quando ninguém o espera
I. 14). Por todo o seu ministério e por todo
(Mt 24.43; Lc 12.39-40) lembra-nos o dever
o conjunto de sua obra, Cristo é a luz; fora
de vigiar de noite; Paulo, por sua vez, utiliza
dele não há outra luz vinda para todos os ho-
a oposição dia-noite, para indicar que os cren-
mens (Jo 1.4,9), para tirá-los das trevas, da
tes são filhos do dia, os demais são filhos da
ignorância, do pecado e da morte (Jo 8.12).
noite. Sono e embriaguez pertencem à noite,
A única condição é seguí-lo (Jo 8.12), crer
sobriedade e vigilância pertencem ao dia.
nele, guardar suas palavras (Jo 12.46-47).
Na realidade, a maioria dos homens não crêem A mesma oposição aparece novamente em
nêle (Jo 1.5,10), amando mais as trevas que Rm 13.11-14: a História do mundo desen-
a luz (Jo 3.19-21). Mas todos quantos crêem volve-se de noite, mas o dia do Senhor já
nêle são feitos filhos de Deus, filhos da luz está a clarear. Cuidem, pois, os crentes, de

1.12-13; 12.36). viver no mundo como se estivessem já na luz


(Jo
Se a luz não abunda em meio do povo, a
do Reino. Fala-se aqui, bem como em lTs
5.4-8, das "armas da para significar que
luz",
culpa não é de Jesus, mas daqueles que se cegam
a fé não é um descanso, mas um combate (2Co
voluntariamente (Lc 11.33-36; Jo 9.39-41).
O ôlho não é descrito como "são" ou como 6.7; 10.4; ver também Ef 6.13-17).
"enfêrmo", mas como "bom" ou como "mau",
ressaltando-se assim a responsabilidade moral
7. A declaração de João: "Deus é luz e não
há nêle treva nenhuma" (ljo 1.5) deve ser
quando, porém, a luz de Cristo toca um ho-
entendida na perspectiva desta nova vida con-
mem, êle todo inteiro torna-se luminoso (Lc
cedida aos crentes e dêles exigida. João, opon-
II. 34-36).
do-se aos gnósticos (ensinavam que a alma
5. Aquêles que crêem são feitos por Jesus vive com Deus enquanto o corpo age à sua
Cristo a luz do mundo (Mt 5.14; Fp 2.15: conveniência), afirma que Deus é a santidade
Ef 5.8.13). Êles receberam a luz e não devem absoluta, a pureza e a verdade. É, portanto,
escondê-la (Mt 5.15; Mc 4.21; Lc 8.16), impossível comungar com Deus e continuar vi-
não lhes envergonhar-se do Evangelho
é lícito vendo no pecado. Quem vive no pecado não
(Mt 10.33; Mc 8.38; Rm
1.16; 2Tm 1.8). ama a Deus, e onde não houver amor, reinam
A luz está na palavra que lhes foi confiada
ainda nas trevas (ljo 2.8-11).
(Fp 2.15), está também nas boas obras (Mt Nos textos joaninos aparece insepa-
a luz
5.16). Embora os cristãos ambicionem pòr-se rável da —> vida, da —>
verdade, do
amor. Deus coloca, com efeito, todos êstes
em evidência, suas obras louvarão a Deus, por-
quanto será manifesto que elas não procedem bens em seu Filho, para que os homens, ade-
dêles, mas do próprio Deus (Ef 2.10; Jo rindo pela fé a êste Filho rico de tôda a ple-
3.21; Fp 2.13; Rm 6.13). nitude divina, recebam seus tesouros e tenham
parte na vida do próprio Deus.
6. Quando a Escritura aplica ao compor
tamento dos crentes a oposição luz-trevas, dia- F. BAUDRAZ
noite, sua intenção é acusar o contraste entre
a antiga maneira de viver, isto é, conduta MALDIÇÃO
pagã, e a nova vida em Cristo. Os crentes,
transladados das trevas para a luz, devem 1. A
maldição c uma palavra pela qual
permanecer na luz e dar frutos de luz (Ef Deus jaz cair a desventura e a morte sobre o
5.8-9. Comparar as fórmulas "frutos do Es- homem ou as coisas, por causa do pecado. As-
pírito', de Gl 5.22, com "andar de modo dig- sim, Deus amaldiçoa a serpente (Gn 3.14), o
:

MATRIMÓNIO 181

solo (Gn 3.17; 5.29), Caim (Gn 4.17). A foi amaldiçoado por Deus. O apóstolo demons-
maldição na bôca de um homem chama sóbre tra, assim, que a lei não é um meio de sal-
um inimigo o juízo de Deus (Nm 22.6; 23.8; vação válido e prático ao mesmo tempo indi-
;

2Rs 2.24; Lm 3.65). A maldição lançada ca qual é êste meio verdadeiro, a saber o :

contra Deus é o pecado dos pecados, castigado sacrifício do Filho pelos pecadores, o dom
com a pena de morte (Lv 24.11,15; Jó 2.9). da graça mediante a fé.
Aquele que amaldiçoa a Deus exclui-se da
aliança e da vida. A maldição lançada contra 4. O crente, libertado da maldição pelo dom
os pais é igualmente merecedora da morte, da graça, não tem o direito de maldizer (Lc
pois, mediante eles, Deus nos dá a vida (Ex 6.28; Rm 12.14; Mt 5.44). A maldição ex-
21.17; Pv 20.20; 30.11); a maldição contra cluindo o próximo da graça de Deus, tornar-
o rei, que representa Deus na terra, é também se-ia como um juízo final pronunciado contra
êle. Como poderia maldizer a seu irmão aque-
castigada com a pena capital (lRs 21.13;
le que conhece sua própria condição perante
2Sm 19.21).
Deus, que se sabe devedor da divina graça e
2. Notemos que a divina maldição não se resgatado êle mesmo da divina maldição?
coloca nunca ao mesmo nível que a divina
—> bênção a maldição não passa de um
:

corolário da bênção, pois nunca parte da in-


CHR. SENFT

tenção primeira do Senhor ela somente é pos-


:
MATRIMÓNIO
sível porque há bênção, sendo a herança ape- A
doutrina bíblica do matrimónio está inti-
nas daqueles que rejeitam a bênção. Os ho- mamente ligada ao desenvolvimento da Histó-
mens que, encontrando Abraão, reconhecem ria da Salvação. Esta História tem três capí-
nêle o portador da graça, são abençoados no ;
tulos essenciais no tocante ao matrimónio o :

entanto, os que amaldiçoam a Abraão e que tempo paradisíaco, o tempo da antiga aliança
nêle ou na sua descendência, odeiam o ato da e o tempo da nova aliança.
divina escolha, são malditos (Gn 12.3; 27.29).
Quando Deus coloca em face da
seu povo 1 . "O desde o princípio, os fêz ho-
criador,
maldição e da bênção (Dt 11.26-28), não pre- mem e mulher
disse Por esta causa dei-
e :

tende dar-lhe a opção entre duas possibilidades xará o homem pai e mãe, e se unirá a sua
abstratamente iguais (pois Israel já foi aben- mulher, tornando-se os dois uma só carne,
çoado), mas fazer-lhe compreender em que de modo que já não são mais dois, porém uma
condição êle seguirá sendo abençoado a saber só carne" (Mt 19.5-6). O matrimónio não é
amando a Deus, guardando seus mandamentos um elemento acidental, mas essencial da cria-
e afastando-se dos ídolos (Dt 11.28; 30.15- ção, de tal modo que o homem não pode ser
18). Se, porém, é infiel ao Deus que o elegeu. êle mesmo, completo, capaz de refletir e de
Israel será maldito o seu pecado e a sua con-
:
glorificar o seu autor, se não fôr "homem e
denação são proporcionais à graça rejeitada. mulher" (Gn 1.26-27) enquanto o casal hu-
:

Da mesma maneira, os futuros malditos (da mano não é formado, Deus não está satisfeito
parábola do juízo, Mt 25.41ss) não foram pre- com sua. obra (Gn 2.18). A Bíblia relata duas
destinados à perdição desde sempre, mas foram Versões da instituição do matrimónio (Gn
homens que, após encontrar a Cristo na pes- 1.26-31 e 2.18-25), muito diferentes na sua
soa de seus irmãos humildes, recusaram amá- forma, porém, concordes em afirmar a) que :

lo nêles. Deus é quem quis o matrimónio, quem o fêz


possível, quem o tornou fonte de bênção; b)
3. Cristo feito maldição por nós (Gl 3.13) que a polarização masculina ou feminina im-
Em todo o capítulo 3 Paulo demonstra aos plica na própria natureza do ser humano êle.

—>
:

Gálatas quanta loucura seria voltar à lei como é homem ou é mulher em virtude da
meio de salvação. Além de não podermos nos própria essência de sua pessoa o sexo é :

justificar por ela, que de fato violamos sem- constitutivo do que somos; c) que o homem e
pre (vers 10), nossa conversão a ela signifi- a mulher são feitos um para o outro, relacio-
caria um desconhecimento completo do que é nados um com o outro. A primeira narrativa
a —> justiça perante Deus.
ceber, pretenderíamos gloriar-nos
Em
vez de re-
(vers 11 ;
impõe ao casal o dever da procriação (1.28);
a segunda mostra que é por uma espécie de
ver Lc 18.11-12), e, utilizando a lei como morte a si mesmo (2.21) que o homem pode
meio de justificação, entraríamos em contra- receber a ajuda feminina que Deus lhe destina
dição com Deus e acabaríamos sendo malditos. e oferece, que o encontro do homem e da mu-
Cristo, no entanto, nos resgatou fazendo-se lher se na inocência e no assombro
realiza
maldição por nós e assumindo a condição do (2.23-25). Se a Bíblia insiste no fato de ter
homem que, pretendendo salvar-se pela lei, sido instituído o matrimónio antes da aparição
182 MATRIMÓNIO

do pecado, fica comprovado que ela repudia lém havia comprometido todo o seu porvir
qualquer doutrina que rebaixe a sexualidade (Jr Enumeremos aqui alguns exem-
16.2ss).
(ou a corporalidade) do —
^> homem: ou que plos: 1.° —
Abrão tem a promessa de uma
pregue haver aí alguma coisa inconfessável ou descendência numerosa mas o cumprimento ;

vergonhosa do ser humano noutros termos a


; não chega nunca ; éle envelhece tanto que in-
Bíblia rejeita, de início, tôda concepção dua- tenta, pelos próprios meios, realizar as pro-
lista do —>mundo: o mal não faz parte da
criação e muito menos é a sexualidade um
messas,
2. ° — casando-se com Agar (Gn 16 e 21).
Ló. Temerosa de que seu pai fique sem
mal. posteridade,ambas as filhas embriagam-no e
concebem dêle Moabe e Amom (Gn 19.30-37).
2. Êste tempo de inocência e de alegria ce- 3. ° — Sendo, matrimónio assunto
então, o
deu o lugar, cedo demais, ao tempo da "dure/a mais de família que de Igreja, com o objetivo
de coração" (Mt 19.8) o matrimónio, insti-
: de conservar a família, havia frequentemente o
tuição ideal de Deus, vê-se comprometido pelo hábito de casar-se no interior da parentela (Gn
pecado e, portanto, necessitado de regras sóli- 24; 28.2; Ex 2.1, etc). Fêz-se necessário
das e precisas. Seria, porém, inexato pensar delimitar cuidadosamente os graus de consan-
que, para os autores do VT, o matrimónio seja guinidade que impedem o casamento (Lv 18 c
enfadonho: embora seja certo que "melhor é 20); êles variam (comparar Gn 20.12; 2Sm
morar no canto do eirado do que fazer casa 13.13; Lv 18.6,9). 4.° Era dever do ho- —
comum com uma mulher rixosa" (Pv 25.24). mem esposar a viúva do irmão que não tivesse
"u'a mulher perfeita é a coroa de seu marido" filhos e suscitar-lhe pelo menos um filho, "pa-
(Pv 12.4) "sua felicidade" (Pv 31.10-31); o ra que o nome do defunto não desapareça da
dia das núpcias inunda os corações de júbilo face da terra" (Dt 25.6; Gn 38; ver Rute 4;
(Ct 3.11). Lembremos a amorosa paciência
do desposório de Jacó (Gn 29.20)
Mt 22.25ss par). 5.° —
Era costume entre os
o deses- ; judeus, que o marido, depois de dez anos de
pero de Ezequiel que perde, pela morte de sua convívio infecundo, repudiasse a mulher esté-
esposa, tudo que causava sua fórça, sua ale- ril e se casasse com outra. E quase todas as
gria, sua glória, as delícias de seus olhos, o outras regras referentes ao matrimónio são da
objeto de seu amor (Ez 24) a pureza e a
;
mesma inspiração será necessária a fé neo-
:

confiança do casamento de Tobias (Tb 7.8-10. testamentária na ressurreição para que o ma-
13) ;as exortações do sábio, "para ficares trimónio deixe de ter, como primeiro fim, a
sempre enamorado e encantado pela gazela mera procriação.
graciosa que é a mulher de tua mocidade" (Pv
5.18-19). Lembremos especialmente os Can- Geralmente, embora com severidade di-
b)
tares, precioso idílio da primavera da huma- versa, o VT não vê com bons olhos o matri-
nidade porém, o nome do casal não é mais
:
mónio com estrangeiras. Pois, mesmo sendo o
como no Génesis: Homem (Isch) e mulher homem o senhor incontestado de sua esposa
(Ischa, Gn 2.23) mas Salomão (Schelomo) (nem fazer votos pode ela sem anuência ào
;

e Sulamita (Schulamith) O que indica que


.
marido: Nm 30.11ss), corre o perigo de su-
foi preciso a paz (schalom) e o perdão de cumbir à sedução do amor e à influência que
Deus, para que o anjo da espada ardente lhes uma mulher logra sóbre aquêle que a ama
franquiasse o país onde, sem rubor, as vestes (Jz 14. 15ss 16.4-18). Para os Israelitas o
;

podem cair ( —>


vestes) Ademais, o seu
.

amor fica constantemente exposto a mil ten-


perigo era ceder à tentação da idolatria (Dt
7.3ss; Gn 24.3; 28.1; Jz 3.6; Ne 13.23ss;
tações, atrasos, dúvidas, procuras e tormen- Ml 2.11), bem o confirma o exemplo clássico
tos que o primeiro casal ignorou o pecado : de Salomão (lRs 11.1-8).
entrou de parceiro.
ç) Se o matrimónio com estrangeiras era
a) Fêz-se a morte que limita o
presente desaconselhado ou mesmo proibido, (Ed 9-10)
homem (
—>
morte). O matrimónio vem a
ser o meio de iludir a morte, de sobreviver nos
a monogamia não era exigida Possível era
ter, além da mulher-espôsa, concubinas escra-
:

filhos. Por esta razão o primeiro fim é a pro- vas, prisioneiras de guerra ou servas (Gn
criação, e a mulher estéril se desespera como 16.1ss; 25; 30; Ex 21.7ss; Dt 21.1ss). Tam-
se faltasse a seu dever (Gn 30.1; 29.32, etc). bém podia-se ter duas (Gn 4.19; 26.34; 29.
O matrimónio tornou-se meio para assegurar- 21-30) ou várias esposas (Gn 28.8ss; ISm
se um porvir, um remédio contra a morte. Se. 25.42ss). lRs 11.3 afirma que Salomão tinha
por uma exceção surpreendente para a men- um harém de setecentas esposas princesas e
talidade judia (todos se casavam, inclusive os trezentas concubinas. Razões económicas per-
monges das escolas de profetas: 2Rs 4.1ss), mitiam aos príncipes usar desta tolerância
Jeremias recebe o preceito de não se casar, (2Sm 3.7; 5.13), e proibiam-no aos simples
isso para profeticamente anunciar que Jerusa- particulares. A monogamia, generalizada nos
MATRIMÓNIO 183

últimos séculos da antiga aliança, era real- cidade, à mulher com quem tem contraído
mente prática comum em todos os momentos aliança (2.14ss).
<la vida de Israel.
f) O
texto de Malaquias conduz, natural-
d) A vida sexual, no matrimónio, era for- mente, outra constatação sobre o matrimó-
a
temente disciplinada podia ou devia obser-
: nio na antiga aliança Com penetração cada
:

var-se a abstinência conjugal durante a mens- vez maior, os profetas falam da união, da
truação (Lv 15.18ss), depois do parto (Lv —> aliança entre Deus e Israel, na perspec-
12), por ocasião do culto (ISm 21.3ss), da tiva de um matrimónio (Is 54.5; 62.1-5; Jr
guerra (2Sm ll.llss) etc. Qualquer comér- 2.2; 31.32, etc), e, portanto, das infidelida-
cio sexual cxtra-conjugal era vedado à mu- des de Israel, na perspectiva do adultério (Jr
lher casada tio entanto o homem somente
; 3.1ss; Ez 16.23; Os 1-3, etc). Mercê desta
cometia adultério relativamente a outro ho- perspectiva, a "dureza de coração" que moti-
mem cuja esposa ou noiva tivesse seduzido vou quase tóda a legislação sóbre o matrimó-
Surpreendidos, os adúlteros eram lapidados nio e o divórcio, deverá, cedo ou tarde, ser
(Dt 22.22-30; Lv 20.10). Se um marido con- julgada e denunciada; o matrimónio humano,
cebia dúvidas sobre a fidelidade de sua mu- reflexo ou eco do amor divino para com Is-
lher, podia sujeitá-la a todas as rabitlices da rael, volverá a encontrar a perspectiva edé-
lei dos ciúmes (Nm 5.12-30). Semelhante li- nica Jesus Cristo realizará esta reabilitação
:

berdade concedida aos homens além de expor na nova aliança.


as virgens (a virgem desonrada devia ser
desposada pelo seu violador ou dotada conve- 3. Na vigência da antiga lei, o matrimónio
nientemente por êle), favorecia a tara da pros- achava-se comprometido pela presença do j>e-
tituição, êste "caminho do schcol" (Pv 7.27) cado, portanto, da morte. Sob a nova aliança
que, a despeito de constantes esforços, o povo da Graça, o matrimónio é comandado pelo
de Israel não abandonou jamais completa- perdão e, portanto, pela vida.
mente (Dt 23.17; Gn 38.14ss; lRs 3.16; 22. Antes de enumerarmos as consequências des-
38; Os 1.2; Jl 3.3) : até consentiu-se, em cer- ta constatação limiar, importa notar o que
tas épocas, a prostituiçãosagrada (lRs 14.24: ^egue os textos-chaves sóbre a noção neo-
:

15.12; 2Rs 23.7). Em


compensação, a homos- testamentária do matrimónio acham-se nas
sexualidade e a bestialidade, vedadas pela lei epístolas,e particularmente, em ICo 7. Êste
(Lv 20.13-16; 18.22-23), não parecem ter texto, durante séculos, tem sido recarregado
prosperado como entre os gregos. e desvirtuado por duas causas pela interpre- :

tação de gerações de exegetas celibatários, que


e) Únicamente
ao marido competia rom-
tinham o matrimónio por uma espécie de que-
per o laço matrimonial pelo divórcio, repu-
diando a mulher "se ela* deixava de ser agra- da; e também esquecimento dos
pelo total
destinatários desses homens,
da carta, isto é,
dável aos seus olhos, por ter êle achado algu-
e ainda mais, dessas mulheres, exaltados pela
ma coisa repugnante nela" (Dt 24.1-4). Os
irrupção do século vindouro, e persuadidos dè
doutores em Israel discutiram muito acerca
desta lei, interpretando-a severa ou frivola-
que o mundo da primeira criação estava desde
mente. Há, porém, certas restrições à con- já desqualificado, gente "inchada", que fazia

cessão do divórcio que não podemos silenciar


Paulo chorar. Evidentemente Paulo, neste tex-
:

o repúdio era possível somente quando o ma- to, não visa tanto dar um ensino catequético
trimónio tinha sido contraído por livre consen- sóbre o matrimónio (como o fará em Ef 5).

timento quando o marido tinha desposado, mas procura, na qualidade de pastor prudente,
;

por obrigação legal, uma joVem violada por orientar as consciências através de uma situa-
ele, não lhe cabia mais o divórcio (Dt 22. ção difícil para a fé cristã (A respeito con-
28-29) também não podia repudiar a espo- sultar meu li\*ro Maris e femmes d'après St
;

sa difamada por êle (Dt 22.13-19). mu- Ua Paul, Neuchâtel et Paris. 1951). Agora pas-
lher repudiada podia casar-se com outro, mas semos às consequências desta constatação li-
nunca mais com o primeiro marido (Dt 24.4; minar :

Jr 3.1ss), nem com um sacerdote (êste devia a) O matrimónio deixa dc ser um meio de
casar-se com uma virgem: Lv 21.7ss, 13-15; sobreviver-se além da morte: não precisamos
Ez 44.22). Estas restrições revelam que já dêle para que nosso nome não seja apagado
o VTconsiderava o divórcio como coisa fun- do Israel de Deus. A procriação não é mais
damentalmente anormal. O profeta Malaquias seu primeiro fim (nunca, em o NT, o ato se-
vai ainda mais longe declara que o homem: xual aparece diretamente relacionado com a
assim, pode ser adúltero para com sua esposa procriação, nem sequer em ICo 7.1-9). Mor-
e que Deus abomina o repúdio portanto, que ;
rer virgem não mais é uma desgraça (ver
cada um permaneça fiel à esposa de sua mo- Jz 11.34-39 e comparar com Ap 14.4), mas
:

184 MATRIMÓNIO

a virgindade e o celibato são considerados com Juan), mas entrega de si e renúncia a favor
estima (At 21.9; ICo 7.25ss), novidade não do próximo (Ef 5.25-33). Portanto, é pre-
vista no VT. Não se pode mais afirmar sem ciso que o matrimónio se contraia "no Se-
restrições que "não é bom que o homem esteja nhor" (ICo 7.39), isto é, na Igreja, ou "em
só", isto é, que não se case. ICo 7.1 afirma nome do Senhor" (Cl 3.17), como tudo que
que "é bom que o homem não toque mulher", fazem os cristãos: que seja aceito com ações
pois na comunidade da Igreja não há lugar de graça e santificado pela Palavra de Deus
para a solidão. A virgindade pode ser, bem e pela oração (lTm 4.4-5). Portanto, nem
como o matrimónio, um dom de Deus (ICo todo tipo de matrimónio é permitido ao cris-
7.7), uma forma regular, uma norma da vida tão: são vedados os enlaces incestuosos (ICo
cristã (Mt
19.12). De nenhum jeito, contudo, 5.1-5; ver também (?) At 15.20 e 29), o
discerne-se o em NT
a desqualificação, bas- segundo matrimónio enquanto o primeiro côn-
tante maciça, do matrimónio que, posterior- juge está com vida (Rm 7.3; ICo 7.11,39).
mente, o dualismo ascético introduzirá na Igre- e, provavelmente, o matrimónio com um côn-
ja: pelo contrário, o NT
afirma que aquêles juge pagão (ICo 7.39).
que intentam proibir o matrimónio estão a
3. °) O matrimónio é estritamente mono-
espalnar doutrinas satânicas (lTm 4.1-5); gâmico, porque Jesus Cristo não tem e não
que o próprio Jesus santificou, com a sua pre-
pode ter mais que uma esposa. Assim é que
sença, um matrimónio a cujo favor realizou
o matrimónio cristão, superando o reino da
seu piimeiro milagre (Jo 2.1-12), e que, por
Lei, restaura a vontade primeira de Deus (Gn
regra comum, não apenas os fiéis, (At 5.1;
2, citado por Mt 19.4ss, par; ICo 11.8-9; Ef
18.26; Rm
16.3; ICo 14.35; Cl 3.18ss), mas
5.31). Para que possa ser contraído um se-
os ministros (lTm 3.2,11; 5.9) e mesmo os
gundo matrimónio, é necessário que o primeiro
apóstolos (ICo 9.5) eram casados. O matri-
cônjuge tenha morrido (Rm 7.2s; ICo 7.39;
mónio exige, entretanto, deveres que compro-
lTm 5 1 1 ss) Parece certo (se bem que os
. .

metem inteira e total compro-


disponibilidade
sábios discordem neste assunto) que os mi-
misso cristãos(ICo 7.32ss), especialmente em
nistros viúvos não podiam casar-se outra vez
tempos de perseguição, razão pela qual não é
(lTm 3.2,12; Tt 1.6).
êle a melhor condição.

Observemos finalmente que não é convenien-


4. °) O
matrimónio é indissolúvel, como a
te falar do celibato de Jesus :aquele que é o unidade entre o Senhor e a Igreja: "O que
esposo da Igreja (Mc 2.20 par; oj 3.29; Deus ajuntou não o separe o homem" (Mt
2Co 11.2; Ef 5.23ss. etc.) como casaria com 19.6), pois, pela conjunção carnal, o casal
uma mulher? veio a ser uma só carne. Paulo conhece e trans-
mite a vontade do Senhor (Mc 10.1-12; Lc
b) O matrimónio é um grande mistério,
porquanto deve desde já refletir a união entre 16.18): repudiar seu cônjuge e casar nova-
Jesus Cristo e sua Igreja (Ef 5.22-33), isto mente, embora possível na Antiga Lei, é ve-
é, o marido deve representar o Cristo, e a es- dado no reino da graça (ICo 7.10) é um :

posa a Igreja: em expressão de G. Farei. adultério. Contudo, é preciso declarar aqui


Deus decretou que "o santo matrimónio fósse dois pontos importantes Sabemos que o Evan-
:

mistério, sinal e representação de nossa sal- gelho de Mateus (5.32 e 19.9) autoriza um
vação, de nosso bem e de nosso triunfo". E repúdio da esposa por causa de sua má con-
isto significa duta. A maior parte dos exegetas opina que
êstes textossão, provàvelmente, interpolações
1. °) O casal cristão, como tal, tem um posteriores, que refletem uma nova situação
dever missionário o de revelar, por seu com-
:
eclesiástica, na qual não mais era possível man-
portamento, a verdade de qualquer matrimó- ter todo o rigor da palavra autêntica de Je-
nio, qual seja, dar testemunho da eleição. Deve
sus. Mas, consta que Mt 5.32 não fala de um
fazê-lo enquanto matrimónio, sem trapacear,
nôVo matrimónio daquele que repudiou sua
sem pretender que tal vocação o substrai aos mulher; consta também que Mt 19.9 não dá
deveres concretos e bem reais da vida con-
a evidência gramatical de um direito para o
jugal (Ef 5.29; ICo 7.3-5.33-34) se o após- ;
repudiante casar-se novamente o único di- :

tolo reconhece (por concessão) "férias con- reito claro é o de repudiar a mulher adúltera.
jugais", aconselha que estas sejam reduzidas
A interpretação de ambos os textos dá lugar,
ao mínimo (ICo 7.5-6).
ainda, a várias hipóteses, influenciadas, aliás,
2. °) O matrimónio é levado pelo
não pela inclinação erótica em sentido grego,
—> amor. dos respectivos co-
pela disciplina eclesiástica
mentaristas. A maior parte das Igrejas pro-
mas pelo amor que é expressão do amor ao testantes vê no adultério uma causa legítima
próximo que não é combustão de si mesmo
: de divórcio e de segundas núpcias para o
numa procura sensual nunca saciada (Don divorciado: atitude esta da Igreja oriental,
:

MAU 185

que noã foi condenada por Roma no concílio (Mc 10.11 par). E, visto que do coração pro-
de Trento. Roma, por seu lado, autoriza uma vêm os adultérios (Mt 15.19), estes começam
separação de corpos sem possibilidade de um no momento em que se lança um olhar de cobi-
nôvo matrimónio para os separados. A se- ça sôbre uma mulher (Mt 5.27ss; ver Jó
gunda observação é relativa à autorização pau- 31.1,7ss). Objetar-se-á, talvez, que Jesus teve,
lina de abandonar o cônjuge que não se sepa- para com as prostitutas e as adúlteras, mansi-
rou do paganismo, no caso de êste último as- dão chocante para os bem-pensantes de sua
sim requerê-lo. Neste caso. o cristão pode época (Mt 21.31; Jo 4.1-30; 8.1-11); mas
contrair segundas núpcias, porque deixou de daí a concluir que os pecados delas não são
ser ligado (ICo 7.12-16) o seu anterior casa-
: tão graves, há um abismo que o NTnunca
mento agora é desqualificado, por não se ter franqueia. Igualmente abusivo seria opor, nes-
elevado ao nível que representa a salvação. É te particular, a atitude de Jesus e o compor-
permitido supor que se Lucas foi o único tamento da primitiva Igreja. Pois também a
entre os evangelistas a afirmar que a conver- Igreja sabe que, fora de suas normas, há for-
são pode ocasionar um divórcio (14.26; 18. nicadores e impúdicos que precisam ser cha-
29), ou que pretender continuar assim casado mados à salvação (ICo 5.10; Cl 3.5ss) mas, ;

compromete a salvação (14.20), isto é porque sendo ela quem, desde a Ascensão e o Pente-
êle foi o único a escrever para leitores gen- coste, representa o reino de Deus e constitui o
tílico-cristãos. corpo de Cristo, semelhantes vícios não são
toleráveis entre seus membros: se seus mem-
5.°) O casal forma uma hierarquia, reflexo
bros os cometerem, a Igreja os excomungará
da que une Jesus, o Cabeça, à Igreja, que é
(ICo 5.9-11; ver Hb 12.16) enquanto não
seu corpo (Ef 5.22-23), e também conforme
se arrependerem (ICo 6.10-11; 2Co 2.1-12;
a intenção criadora de Deus (ICo 11.8-9; lTm
12.21; Cl 3.5ss; lTm 1.10), pois semelhantes
2.13). O homem é a cabeça da mulher (ICo
atos os excluem da salvação (ICo 6.10; Gl
11.3), isto é, aquêle que lhe dá sua razão de
5.19-21; Ef 5.5; Hb 13.4; ICo 10.8) e êles
ser; a mulher é o corpo (Ef 5.28), a glória
têm de sabê-lo.
(ICo 11.7) do homem, isto é, aquela que o
expressa, manifesta-o e o revela (como a
Indiscutivelmente, também em sua doutrina
e disciplina sexual e conjugal, a Igreja com-
Igreja revela e expressa Cristo). O homem é
promete sua fidelidade.
chefe amando sua mulher (Ef 5.33; Cl 3.19),
pois para a Bíblia é o amor que manifesta a VON ALLMEN
autoridade: a mulher é* corpo, sujeitando-se a
seu marido (Ef 5.22ss; Cl 3.18).
MAU
c) O matrimónio csanto (Hb 13.4; ITs
4.1-5). O apóstolo, para descrever a realidade VT
figurada e refletida pelo matrimónio, acumula Para designar o mau, o VT dispõe de uma
os têrmos "sacramentais" (Ef 5.26-27). Res- extrema diversidade de têrmos êstes expres-
:

taurando-lhe a primitiva pureza, Jesus Cristo savam, originalmente, esta ou aquela caracte-
salientou que a irrupção do reino de Deus con- rística do mau ou êste ou aquêle juízo de va-
fere à união matrimonial um alcance total- lor da comunidade sóbre êle. Posteriormente,
mente nôvo, não percebido pela antiga legali- os têrmos se inverteram, e um dêles, talvez
dade (Mc 10.1-12 par), tão santo que os pró- mais moderno e certamente mais preciso, ser-
prios apóstolos ficaram atemorizados (Mt 19. viu para designar, genèricamente, tôda a famí-
10). Revela-se portanto, em o NT, um forta- lia dos perversos. Esta palavra genérica, ge-
lecimento considerável das normas de vida ralmente traduzida em nossas Bíblias por
sexual e conjugal: além do dever missionário "mau", deveria ser traduzida mais exatamente
do casal, já mencionado, o cristão toma cons- por "ímpio", ou por "transgressor", noções
ciência de que, desde já, o corpo é o susten- mais dinâmicas e mais israelitas. Pois é rela-
táculo e o templo do Espírito Santo (ICo tivamente a alguma coisa ou a algum ser que
6.19), e por consequência qualquer desregra- êles são maus.
mento sexual será considerado profanaçoã e De fato, a maldade opera em três campos
blasfémia. Além da condenação da homose- em Iavé. em Israel, na Lei. ou em ex-
seja,
xualidade (Rm 1.2ss; ICo 6.9-10), encontra- pressões modernas, no campo teológico, social
mos uma condenação jriuito mais rigorosa das e moral mas para os israelitas, êstes cam-
—>
;

relações com uma prostituta (comparar ICo pos formavam o plano único da aliança.
6.12-20 e Gn 38.12ss), e o adultério não é O mau. inicialmente, é aquêle que não admi-
apenas introduzir-se num outro casal, mas, in- te a aliança de Iavé (especialmente, nesta pers-
clusive para o marido, separar-se daquele com pectiva, os inimigos de fora), mais frequente-
o qual formamos um conjunto, um só corpo. mente aquêle que, embora admita sua neces-
186 MAU

sidade, não a estima suficiente: "Iavé está um certo escrúpulo teológico colocados na ca-
longe demais, não vê, não pode providenciar, tegoria dos idólatras trangredir um manda-
:

não se importa, não existe na prática" (SI mento ou desprezar a justiça era atacar Is-
10.4-13; 14.1; 53.2). Não se trata de ateís- rael, romper a aliança, resistir a lave, e, prin-
mo, mas o ímpio procura outras alianças com cipalmente, era ser idólatra, mesmo que, ao
outros deuses (igual atitude do povo de Is- nosso modo
de ver, esta idolatria não é primi-
rael em conjunto, aliando-se com outros po- tiva. Pois, para a mentalidade israelita, quem
vos e, portanto, com outros deuses). O primei- não estava com lave estava contra Iavé, mer-
ro dever dos profetas será denunciar estai cenário do poder inimigo. E todo prejuízo
alianças, que na mente dos maus não excluem feito a um israelita piedoso era, necessaria-
o serviço de lave. Se os profetas protestam, mente, fruto de uma idolatria profunda.
é primeiramente porque ninguém pode servir Isto explica as imprecações contra os inans
a dois amos (Js 24.15; lRs 18.21); e, sobre- (SI 109; 139), que indevidamente, muitos re-
tudo, porque uma aliança não é neutra obriga :
jeitam ou adotam globalmente. Elas signifi-
a compartir a 'Vida", o poder do deus a con- ;
cam :

taminação é, portanto, obrigatório (o próprio


perverso é contagioso: SI 1). Fatalmente o
a) No plano religioso: sentença^ de exco-
munhão. Os ímpios se afastam da aliança e
raau ver-se-á levado a rejeitar a aliança de
da comunhão com o divino poder. Êste Vere-
lave, a enfermar cada vez mais gravemente e
dito, pronunciado contra éles mesmos, é sole-
a tornar-se, relativamente à aliança divina,
nemente contemplado por Israel, que suplica a
uma perfeita nulidade, sem, entretanto, deixar
Iavé para o tornar efetivo hoje, isto seria a
de ser perigoso para os demais membros da ;

aliança. (Paradoxo este apenas para os nos-


excomunhão.
sos espíritos modernos, que consideram o na- b) No plano civil, são meios de ação. Pe-
da neutro enquanto que, para o israelita, o
; de-se ao juiz (Iavé é o Juiz para Israel) que
nada é nocivo, desagregador). os castigue segundo a culpa cometida: hoje
isso significa pedir a Deus mais justiça para
! .Por estas considerações estamos inclina- os nossos Estados, e trabalhar com êste fito.
dos a crer que a primeira forma histórica do
mau tem sido o feiticeiro, o mágico. Os Sal-
mos, estudados atentamente, corroboram éstc
NT
parecer (SI 31; 57; 59). O VT, aliás, os
menciona amiúde, sem qualquer consideração
O mesmo têrmo grego o Malignosignifica
(Mt 5.37), o perverso (Mt
5.39), o mal, não
para com eles (Dt 18.9-14) a expressão tra-
:

em si, mas enquanto ação nefasta (Mt 5.11) ;


duzida por "autor de iniquidade" significava,
também qualifica uma pessoa (Mt 18.32), suas
na realidade, "autor de encantamento", ou pelo
obras (Cl 1.21), o presente século (Gl 1.4;
menos, "autor de destruição, malfeitor" e ou- ;

ver Ef 5.16), a geração presente (Mt 12.45),


tro têrmo traduzido por "inimigo", parece apa-
o mundo inteiro (ljo 5.19). Mas também a
rentado com "necromante". A magia é a pri-
consciência do homem pode ser má (não no
meira forma da teologia natural, e os mágicos
sentido moderno de consciência torturada: Hb
pecam contra lave quando o declaram insufi-
10.22), mãs podem ser suas obras e palavras.
ciente e quando se valem de forças que lave
não quis conceder aos homens, ou delas se ser- Não certamente por ser o homem, fundamental

vem de uma maneira indevida. Pecam contra e objeti vãmente, mau, mas porque são fruto da
vontade perversa (Mt 15.10-20 e Mc 7.14-23.
a cidade, cujos alicerces abalam, contra a Lei
que os proscreve, contra os israelitas, aos onde coração tem o sentido hebreu de vontade),
quais contagiam com sua loucura e impie- pois até o próprio mundo não é mau em si
(Jo 17.15). Há, ademais, espíritos maus (Mt
dade.

2. A segunda forma (muito


semelhante) é
12.45 —>
Demónios) que constituem todo
,

um mundo hierarquizado e inimigo do outro


o —
^> idólatra, também fautor de outras
alianças e seguidor de outras leis, que ao fi-
mundo entre ambos os mundos não existe
;

neutralidade, nem síntese (ver VT e Mt 6.24).


nal rejeita a Lei e se torna um foragido da Mas êste estado de coisas não é definitivo. Em
Lei progressivamente, determinado quase por
; primeiro lugar, êste mundo mau recebe sua
completo, a mentir, roubar, matar e ser ini- luz e, logo, sua vida, de Deus que é bom (Mt
migo de todo aquele que está "na Lei", o per- 5.45), e que trouxe à existência êste mundo
verso atenta à santidade de lave, bem como à (Jo l.lss). Não é, absolutamente, nenhuma
integridade de Israel e da Lei portanto, o
: questão de dualismo Deus é o universal Cria-
:

ímpio deve ser destruído. dor. O mal aliás, não é tão imanente ao mun-
Há.evidentemente, outros perversos trans- : do ao ponto de qualquer um, só pelo fato de
gressores, profanadores, assassinos; foram por estar no mundo, ser contagiado por êle. O mal
MENTIRA 187

é mais um hábito, uma torcedura que se con- afirmações enganam o ouvinte e prejudicam
trai paulatinamente e então nós nos fazemos,
; à vítima, toda vez que a palavra do mentiroso
passo a passo, do mundo, do maligno (ljo é recebida como verdadeira.
.3.12). Desvio terrível, animosidade contra homem quer agir sobre os
Pela mentira, o
Deus. animosidade por causa de tôdas as coi- homens, as coisas, o passado e o futuro não ;

sas, destas coisas que suspiram pela libertação apenas reescrever a História mas "refazê-la".
(Rm 8.18ss). Quepi fôr vítima deste mal não Portanto, a mentira essencial, a mentira das
pode curar-se a si mesmo a árvore má não ;
mentiras, será negar, quer a divindade, quer
pode dar frutos bons (ver Mt 7.18), e a ge- a humanidade de Cristo, centro da História
ração perversa que pretende expulsar o seu (ljo 4.1; ljo 2.22). (É interessante ver
mau espírito varrendo bem a casa, encontra-se. como a Serpente de Gn 3 recria o passado para
ao final de contas, sete vezes pior que antes agir sobre o porvir).
(Mt 12.43s). Torna-se necessário, uma puri-
ficação que seja, de fato. uma ruptura (Hb 1. Magia e mentira (ver SI 59.13; Is 28.15.
10.22 —>Botismo). onde a mentira aparece como uma potèneia
Há um mal em sentido meramente profano do mundo infernal). Como no caso da idola-
(At 17.5), outro especificamente moral: o tria, a mentira qualifica não apenas as pala-
mau que transgride a Lei. Em
sentido nitida- vras, mas também a atitude e a existência do
mente cristão, o mau é o homem que não mentiroso, assim como a potência a qual serve.
perdoa (Mt 18.32), que se insurge contra os Cabe. pois, perguntar se, fundamentalmente, a
apóstolos ou a Igreja (3Jo 10; 2Ts 3.2). ou mentira não foi para o Israelita, uma destas
ainda o herege (2Jo 11). potências que Cristo "espoliou", ilusórias, mas
Em face do indivíduo mau, que não pertence às quais os homens conferem tanta força.
à Igreja, cabe o dever de interceder a seu fa-
vor (Mt 5.44) se fôr cristão, cabe adverti-lo
;
2. Idolatria
e mentira. Os ídolos merecem,
sobre o perigo da condenação eterna (Mt portanto, ser chamados de mentira ou de men-
18.15ss), e excomungá-lo como último recurso tirosos, pois guardam estreita relação com o
para que se arrependa (Mt 18 1 5ss 2Co . ; embuste (Am 2.4; Jr 10.14; Zc 10.2): O
2.5ss). . mesmo termo significa de fato mentira, lou-
A. MAILLOT cura, e um pequeno ídolo: outro têrmo signi-
fica nada, mentira, feitiço e força. Assim al-
MENTIRA com os mesmos termos, afir-
ternativamente,
mam-se o poder tremendo, bem como o nada
VT e a loucura destes ídolos. A mentira aninha-se
Passam de uma dúzia os termos que, de uma no próprio coração do mistério do pecado, ao
ou de outra maneira, dizem respeito à men- mesmo tempo ilusório e nocivo, porque a ilu-
tira. No VT esta noção guarda estreita rela- são desagrega e destrói. Xotemos que de nada
ção com a ideia de —>
palavra. O VT con-
doerá a palavra como poderosa e operante,
serve a sinceridade dos adoradores de ídolos.
Paulo, fiel eco do VT, dirá que as criaturas
não em virtude de alguma imanência própria, mudaram a verdade de Deus em mentira (Rm
mas por um privilégio que Iavé comunicou à 1.25). Ê bem digno de observar que Paulo
palavra humana. A palavra pode ser, portanto, não diz "abandonaram a verdade de Deus pela
um instrumento magnífico ou perigoso. A mentira". A mentira não tem uma existência
mentira define-se, nesta perspectiva, como uma pessoal ou autónoma. Para o VT, como para
palavra autónoma, isto é, cujo poder se pre- Paulo, a criatura deificada é uma mentira, um
tende utilizar fora da vontade de Deus. O falso deus, que se atribui o que é do verda-
mentiroso dirá "Com a língua prevalecerei"
: deiro Deus. Ela promete ao homem o que não
(SI 12). Mentira também é tóda palavra per- lhe pode dar. Até mesmo lhe dará o contrário,
versa ou ímpia, pois o homem, crendo-se se- mas obstinadamente o homem acredita que al-
nhor deste poder, usa-lo-á contra o próprio gum dia esta criatura haverá de lhe realizar
Iavé, contra seu próximo, para benefício pró- esta deificação. Esta é a grande zombaria dos
prio ;
pretensão, aliás, meramente ilusória. fcste profetas (Is 44.6-10, sobretudo v. 20; Jr 10.
embuste da mentira é capital para o VT pois : 6-16; 51.15-18).
por ela é que a palavra mentirosa mais se
contrapõe à palavra da verdade. A ver-
dade é estável. Contra Iavé, a mentira corres-
—> 3. Gn
morte com
3. O tentador começará sua obra de
uma mentira (até com várias) e
ponde à —>
magia (utilização de outras for-
ças que não as suas) e à idolatria; contra o
curiosamente o Códex Samaritano (v. 2), em
vez de "serpente", leu "mentiroso", correção
próximo, equivale igualmente à magia pala- : dogmática interessante (ver Jo 8.44). Pode-se
vra? nefastas ou nocivas; ou à calunia, cujas perguntar por que a serpente veio a ser o tipo
: :

188 MENTIRA

do mentiroso primeiramente por causa de


: histórias inventadas, não evitando a eclosão
sua língua bifurcada (SI 52.4) pois um dos de erros, os profetas de mentira enganam o
vocábulos usados para "mentiroso" significa povo e o levam à ruína.
ora escorregadio, ora dividido, sendo assim Sem afastar-se substancialmente desta signi-
possível pensar na ambiguidade da linguagem ficação primitiva, o têrmo mentira tomou, pos-
de Gn 3, ainda mais que a bifurcação, a am- teriormente, um sentido mais moderno, con-
biguidade ou duplicidade, a "dualidade" é uma servando o critério dominante de objetividade
das características do mentiroso (Ver SI 12. reduzir o verdadeiro, ou aumentá-lo. é mentir
onde o mentiroso que se prevalece de suas pa- (Pv 30.6). O veredito final do VT
sobre a
lavras, tem um coração duplo, literalmente: mentira declara-a uma ilusão e uma loucura,
um coração e um coração; comparar Tg 1.8: já que, tarde ou cedo, a palavra retorna ao
o homem "dipsíquico") Ora, ter duas vidas,
.
seu autor.
p.ex., uma vida de domingo e outra de dias
A mentira mente para o próprio mentiroso.
comuns, é o que o VT
chamará mentira. Se
a serpente foi escolhida como tipo da mentira,
deve-se isso ainda à sua fascinação, que con-
Ar
r

vence a vítima de impotência esse estranho:


1 . João é quem mais lugar concedeu ao exa-
poder de fascinação, que reside mais na viti- me da mentira.
Jo 8.44, talvez influenciado
ma do que na serpente, não deixou de impres- pelo Códex Samaritano (ver supra), chama
sionar os israelitas. O tradutor do Códex Sa- o Diabo mentiroso e pai da mentira" e, para-
maritano comprendeu perfeitamente o que era lelamente, homicida". Os judeus são filhos do
a mentira na origem do pecado, a mentira é
:
Diabo porquanto não reconhecem a divindade
um embuste, em cuja virtude o homem segue de Cristo (ver ljo 2.22: a mentira está em
uma meta imaginária, e, portanto, a mentira negar a divindade de Cristo). Em João. a
é nociva, mortal, já que o homem, acreditando
mentira aparece relacionada com Cristo, ou
nela, encontra sua perdição.
seja, mais exatamente, o Cristo histórico é a

4. Lei c mentira. Não há no Decálogo o


—> Verdade (14.6), e o homem que não o
reconhecer está na mentira. Toda coisa vista
mandamento: "Não mentirás" (ver contudo fora de Cristo, é vista, portanto, de maneira
Lv 19.11), mas os três primeiros mandamen- mentirosa, ljo 1.6 declara que, para o cristão,
tos o incluem necessariamente. (O terceiro li- a mentira consiste em admitir a contradição
teralmente "não tomarás o nome de Iavé
: entre o ser e o viver, entre a proclamação da
Para pecar", e não 'em vão" isto é, não te
: bôca e a prática da vida. ljo 2.4 afirma que
servirás do poder do nome divino para causar mentir é declarar ser o que de fato não é.
um dano a teu próximo). Não dirás falso tes- Há uma curiosa e instrutiva ligação entre ser
temunho contra o teu próximo" visa um caso cristão, afirmar-se cristão, e viver como cris-

particular de mentira, o mais claro de todos. tão". Se um dos três membros entra em con-
Há, porém, dois motivos que explicam a ausên- tradição com os outros, inicia-se o reino da
cia no Decálogo do mandamento Não menti- mentira. Outra mentira começa a reinar quando
rás": 1.° — êle significava, em última aná-
:

não há conformidade entre nossas relações


rom Deus e nossas relações com o próximo
lise, não pecarás", e arriscava cair no geral
2.° — o pensamento dos israelitas é realista, (ljo 4.21).
ameaça ser
A
realidade duma afirmação que
meramente
subjetiva, deve ser Ve-
a mentira não é, para eles. relativa a uma ver-
dade abstraía ou íntima. A
verdade é aquilo rificada mediante a conformidade objetiva: o
que Iavé tem feito ou fará na História, aquilo NT dá por evidente que a sinceridade não tira
que quer que façamos. Escapatórias verbais à mentira seu caráter de culpa. Hipocrisia não
não são, portanto, verdadeiras mentiras, pelo se opõe, de jeito nenhum, à sinceridade, sendo

menos inicialmente Iavé abençoa as parteiras


:
apenas a heterogeneidade entre o que de fato
(Ex 1). A
verdade é também a integridade somos, e o que pretendemos 'ser. E. mesmo
do próximo, e a mentira intenta não apenas que esta natural contradição acompanhe tôda
danificá-lo, mas viciá-lo. A
prova é que uni sua vida, o hipócrita nem sequer se percata
israelita, condenado judiciàriamente por causa mais de sua mentira. Eis porque Jesus denun-
de um falso testemunho, se considera abando- cia tão veemente os fariseus. A hipocrisia é o
nado por Deus e se confessa, efetivamente. reu fim normal do pecado sua vítima crê no que
:

pecador. não existe, estima ser o que ela não é.

5. Profecia e mentira. O profeta mente quan- 2. Paulo denuncia na mentira a obra típica
do fala sem nada ter ouvido da bôca de Iavé. do homem velho (Cl 3.9). O texto de Rm
ou quando tergiversa a palavra de Iavé (pro- 1.25. já citado, é parcialmente explicado por
feta de mentira: Jr 29.9; Ez 13). Narrando Rm 5.12ss. que explica: a) que o pecado, a
MILAGRE 189

despeito de ser poderoso, nada inventou só : mente através de sua obra. A própria natureza
consegue destruir e matar; b) que. mesmo ma- toma parte no drama da redenção, sofrendo e
tando e destruindo, o pecado não cria para o se alegrando com o homem e por causa do
homem uma condição imprevista e indepen- homem. O Criador fica indissoluvelmente rela-
dente dos divinos desígnios, e c) que, por- cionado com sua criação e suas criaturas.
tanto, unicamente Deus. mediante sua graça,
salva o homem. O pecado foi u'a mentira do
2. Portanto, o milagre não aparece, primor-
dialmente, como acontecimento de ordem so-
princípio até o fim.
brenatural, nem se caracteriza pelo fato dêle
3. Notemos também: Mt 26.59. que indica suspender as leis da natureza êle é extraor- :

que. com o auxílio da mentira, o sinédrio con- dinário porque manifesta, geralmente, de modo
denou a Jesus: At 5.1ss, que declara a mentira inesperado e com peculiar intensidade, a pre-
digna de morte (ver também Ap 21.8): Hb sença de Deus entre nós. É mediante milagres
6.18. textoimportante, que mostra haver em e prodígios que Ia*vé revela seu cuidado por
Deus a impotência radical de mentir. Israel ;sua solicitude é acompanhada de trans-
tornos e prodígios que provocam pavor não
Apóstolo de mentira, psendo-apóstolos, pseu- menos que admiração. É, de fato, interessante
do-profetas, etc. Ao seu respeito nos dá notí-
de constatar que os têrmos usados pelos israe-
cias 2Co 11.1-15. sem resolver totalmente o
litas para ponderar os portentos de Iavé evo-
problema. Consta tratar-se o) de homens que
cam poder, atividade criadora, façanhas e, além
se sobrepõem aos apóstolos (em grego "hyper-
disso, admiração, surprêsa e temor.
lian apostoloi =
super-apóstolos V. 5). Dou-
;

Para os homens da antiga aliança, a carac-


trinalmente? moralmente? Provàvelmente tan-
terísticado milagre é de revelar a presença di-
to pela doutrina como pela ascese, b) Pregam
vina. Os portentos e prodígios, no VT, mani-
outro "Cristo", apoiado em outro espírito (v
festam a intervenção de Iavé no meio de seu
4) :êles pretendem ter sido favorecidos por
povo, sejam êles seguidos ou não, de fenómenos
um nóvo Pentecostes, ter recebido um nóvo
ensino, sem dúvida gnóstico.
surpreendentes. A
Escritura narra as proezas
inauditas realizadas por Deus a terra abre sua:

Dequalquer modo,"* há mentira porque há


bóca e devora os filhos de Coré revoltados con-
dano à pessoa histórica de Cristo, desconhe-
tra Moisés (Nm 16.30) um granizo de pedras
;
cimento de seus eleitos (pois a Encarnação e
abate-se sôbre os inimigos de Israel, o sol detém
o Pentecoste são únicos) e sedução dos corín-
sua carreira para consagrar a vitória de Josué
tios que se precipitam, como Eva. à perdição
(Js lO.lOss); a sombra recua de vinte graus
(v. 3).
a pedido de Ezequias (2Rs 20.10); a própria
Pseudocristo (Mc 13.22: Mt 24.24). O criação merece ser cantada como o máximo
Pseudocristo não nega a existência de um portento do divino poder (SI 89.6; 106.2; 139.
Cristo ao contrário, êle se apoia sobre a es-
:
14; Jó 5.9s). Entretanto, simples acontecimen-
pera do mundo pela vinda de um tal persona- tos como o sopro do zéfiro, o encontro de uma
gem apropriando-se somente dos benefícios des- donzela, a derrota de um inimigo, são milagro-
ta esperança. sos para Israel, porque, sem a intervenção divi-
A. MAILLOT na, êles não se teriam produzido (Ex 14.21-22;
Gn 24.12ss; ISm 14.23 e 45).
MILAGRE 3. Para o VT, o milagre nunca é um fato iso-

VT lado, mas aponta para outros fatos. A finalidade


das intervenções extraordinárias de Iavé é, pre-
1. Nossa concepção do milagre depende de cisamente, revelar algo, admoestar, anunciar,
como nós representamos o mundo. Para o manifestar a intenção divina. O milagre, na ex-
estudioso moderno, habituado a considerar a pressão de W. Eichrodt, é um índice apontan-
natureza regida por determinadas leis, o pro- do para Deus êle o designa, manifesta o seu
:

blema das relações entre as leis naturais e o poder e a sua vontade êle é uma Palavra de
;

milagre apresenta grandes dificuldades de or- Deus que manifesta e revela; tem uma signifi-
dem científica e filosófica. O VTignora esta cação e esta importa muito mais que o evento
classe de problemas, pois para êle não existe material. Diante de um fato que parece prodi-
o conceito de natureza. O mundo não é uma gioso, Israel não indaga "Será possível tal
:

máquina impulsionada de uma vez por tòdas portento? Será verdadeiro?", mas sim: "Que
por seu inventor não leva uma existência
;
querrá êle significar? Qual será a sua mensa-
autónoma mas foi criado por Deus e perma-
;
gem?".
nece sob a perpétua dependência de Deus
—>
( Criação). Deus é seu constante Senhor
e compraz-se em se manifestar ininterrupta-
4.
um
Assim
sinal
é como Israel encara o milagre: é
dado por Iavé; êste sinal, porém, não
:

190 MILAGRE

possui nenhum valor absoluto., mas é válido so- 6. No VT. os milagres, bem longe de serem
mente para a fé. Tanto mais que existem fal- destinados a saciar a fome de espetáculos ou a
sos profetas, falsos milagres e falsos sinais há : sede de segurança, inerentes ao coração humano,
portentos realizados por potências ( —>
Auto- são concedidos aos crentes para fortalecer-lhcs
ridades) opostas ao verdadeiro Deus. Os encan- a fé em Iavé e manifestar-lhes o poder de uma
tadores do Faraó rivalizam com Moisés, o tau- Providência que não abandona o mundo a des-
maturgo de Iavé (Ex 7.11,22; 8.7,18, etc). e tinos arbitrários. Nas épocas de fé debilitada
falsos profetas seduzem o povo mediante suas acontece, porém, que a procura do sensaciona-
façanhas (Dt 13 lss) O milagre não basta para
. . lismo se desenvolva e que se intente firmar uma
provar a intervenção divina, mas deve aparecer religiosidade de superfície em prodígios espe-
relacionado a outros acontecimentos e explicado taculosos. Tal decadência da fé vê-se denunciada
pelo conjunto da revelação bíblica; somente a já em vários textos do VT
(em particular nas
esta luz constará a intervenção de Deus. O ver- Crónicas) a literatura apócrifa em geral pu-
;

dadeiro milagre está de conformidade com as lula de façanhas estupendas realizadas à toa
indicações que os crentes já possuem sobre Deus, um povo iludido, precisamente quando perde
dirige-se, portanto, à fé já iluminada pelo co- todo contato com seu Deus, anda à procura do
nhecimento de Iavé. milagre para dar-se a prova de segurança esti-
Há um laço estreito entre fé e milagre o : mada necessária e decisiva. Jesus inicia sua ati-
incrédulo não vê, nos incidentes de cada dia, vidade no momento em que os judeus, como
na vida rotineira ou na grande política do Mé- qualquer povo da Asia Menor, correm trás dos
dio-Oriente, a mão do Deus de Israel. Não sabe fazedores de milagres, ávidos de presenciar acon-
ler os sinais dos tempos, não escuta as múltiplas tecimentos sensacionais mas o Cristo, desde o
;

advertências de Iavé, pois êle tem olhos para primeiro dia de sua vida pública até a última
não ver e ouvidos para não ouvir. O milagre hora de sua agonia, constantemente repele a
nada revela a quem não acredita em Deus, e, tentação de cair no taumaturgismo (Mt 4. lss) ;

aparentemente, endurece-o mais. Assim o Faraó somente obra "sinais" para atestar a proximi-
se obstina, a despeito das pragas cada vez mais dade do Reino (Mt 11.2ss); àqueles que soli-
extraordinárias que se abatem sobre Egito, em citam para provar sua messianidade, Jesus pro-
reter cativo o povo de Deus (Ex 7.3,9; 11.10. mete unicamente o "sinal de Jonas" (Mt 12.
etc.) ; assim Acaz e as autoridades de Jerusa- 38-41; 27.3944 par). Haverá, de fato, História
lém recusam ler, nos nomes estrangeiros rece- mais portentosa que a epopéia de Jonas revivida
bidos pelos filhos de Isaías, as advertências man- pelo Filho de Deus?
dadas por Iavé (Is 8.18; 20.3; 7.11). Mas.
pelo contrário, o Deus de Israel dá um sinal
R. MARTIN-ACHARD
(

a Gedeão para fortalecer-lhe a fé. e Gedeão NT ': "


^vy hu^.
parte a socorrer seu país oprimido pelos filis-
teus (Jz 6.17 e 36ss). 1 . Os evangelistas e os apóstolos empregam
três têrmos para designar os fatos extraordiná-
5. O milagre é, pois, um meio nas mãos de
rios de Jesus milagre, sinal, prodígio.
:

Deus para conduzir a História até que o Reino


tome posse do mundo inteiro. Tem o seu lugar O milagre é um ato de poder (de fato.
a)
na revelação bíblica, êle não é nem supérfluo o têrmo grego é traduzido em português, ora
nem indispensável. O leitor do VT
constata que por milagre, ora por poder). Quem realiza o
as intervenções extraordinárias de Iavé se con- milagre é portador de certo poder, quer conce-
centram especialmente em três épocas da His- dido por Deus e seu Espírito, quer emprestado
tória santa, a saber, nos três momentos decisi- por Satanás. Bem pode o milagre ser um ato
vos não apenas para a sobrevivência do povo, extraordinário inexplicável pela ciência, peia
mas para a realização do plano divino. pri- A psicologia, etc. ou qualquer ato, qualquer inter-
meira época corresponde ao êxodo através de : venção de Deus na vida do mundo ou do homem
Moisés e do Faraó, atôres do cenário, estão se em particular. A
intervenção divina pode ocor-
enfrentando Iavé e o poder satânico dos ídolos rer tanto no campo espiritual (= conversão, re-
egípcios (Ex 5ss). O segundo momento crucial conforto, luz evangélica, etc.) quanto no ma-
se situa nos tempos de Elias e de Eliseu: os terial ( —>
enfermidade elementos) São. .

israelitas, seduzidos pelos cultos de Baal e de pois, consideradas milagrosas não só a cessação
Astarté, fôrças naturais divinizadas, comprome- de uma doença, sua radical cura, mas também a
tem a continuidade da obra de Iavé (lRs 17ss). luta espiritualmente travada contra a doença e
A terceira fase crítica abre-se quando os assí- vitoriosamente terminada na paciência e na acei-
rios, acampados ao pé de Jerusalém, ameaçam tação da dor. Assim, São Paulo recebe do Se-
não apenas o trono de Davi, mas o templo de nhor a força para continuar o apostolado a des-
Deus, e procuram aniquilar o povo eleito (Is peito de sua enfermidade (2Co 12.9-10). São
6ss; 36ss). milagres não apenas as curas operadas por Jesus
: :;

MILAGRE 191

antes de morrer e ressuscitar, mas também a São levados à fé exclusivamente aqueles que.
fórça e reconforto que comunica àqueles que além do fato. compreendem e percebem a pre-
vivem unidos a êle (2Co 12.7-10). Vemos, pois. sença de Deus. a —>
glória do Senhor (2.23;
que em o NT a palavra "milagre" goza de 3.2; 10.41). O sinal é, portanto, um aconteci-
maior extensão do que entre nós, modernos. mento cuja significação não é imediatamente
visível, mas só perceptível para a fé esta deixa
:

b) O
que na sua forma exterior pode
sinal,
de ver no milagre um ato autónomo, devido a
carecer de espetaculosidade, responde a dupla
— um poder prodigioso, mas contempla a Deus
finalidade: 1.° anunciar uma realidade vin-
operando e anunciando profeticamente o porvir
doura, sendo assim, antecipação do mundo por-
vir e. 2.°
;

proclamar, manifestar Aquele que.
a ressurreição e a vida (2.18; 11.47; 12.18).
a cura (4.54; 6.2), a transformação da natu-
desde já, está agindo no mundo: reclamar a
reza (2.11). Entretanto, o sinal pode obrar in-
atenção sobre Jesus, para que se conheça que
versamente irritar e endurecer ainda mais os
:

Deus está agindo nele e através dêle.


inimigos da obra de Deus (2.18; 6.30; 9. lò
c) O
prodígio é realizado fora do curso nor- 11.47; 12.37).
mal das coisas êle é contrário às leis naturais
:
Aos discípulos será dado o poder de fazer
conhecidas pelo homem. Salienta o poder de
êstes sinais e outros maiores dos que Jesus fêz
Deus (às vezes de Satã) com grandiosidade e
(Jo 14.12-14; 15.5). Mas os sinais dos discí-
esplendor incompreensíveis (At 2.19s).
pulos e os do Mestre terão idêntica origem e
idêntico significado.
2. Sem entrar no detalhe da classificação cro-
nológica dos diversos relatos evangélicos, nota- c) Xa descrição da Igreja de Jerusalém, o
autor de Atos parece copiar uma fonte (cf Lc
remos os traços característicos seguintes
1.1-4) caracterizada pelo uso simultâneo de
a) A literatura paidina apresenta o uso mais ambos os têrmos sinais e prodígios. Ambos são
frequente da palavra milagre nos diversos sen- utilizados para descrever a obra de Deus ao
tidos que acabamos^de definir. Os evangelhos final dos tempos (profecia de Joel em At 2.19),
sinóticos, embora narrem muitos fatos mila- e a obra de Jesus (2.22), bem como para qua-

grosos, não usam o termo. Somente para carac- lificar o poder que Deus, ou Jesus Cristo, con-

terizar a atividade de Jesus, de u'a maneira ferem a Moisés, aos discípulos, a Barnabé ou
geral, falam de seus milagres : o texto de Mar- a Paulo (2.43: 4.30; 6.8; 7.35; 15.12).
cos é, particularmente, instrutivo a respeito.
T
3. Consta, pois, que os diferentes autores do
b) A os evangelhos sinótieos, os sinais são NT usam têrmos bastante diversos para expres-
reclamados pelos escribas e os fariseus (Mt 16. sar uma realidade comum. Esta diversidade não
1-4; 12.38-39; Mc
Lc 11.16) espe- 8.11-13; é casual, pois revela determinados matizes de
cialmente em forma de fenómenos celestes. Em pensamento. Embora todos, através desta varie-
nossa perspectiva,Jesus apenas faz milagres, dade, coincidam sintomaticamente para declarar
nunca sinais. Uma só vez, de fato, ouvimos este (|ue Deus é o autor de milagres, sinais e prodí-

termo dos seus lábios "Esta geração má e :


gios, descrevem contudo diversos aspectos huma-
adúltera pede um sinal mas nenhum sinal lhe :
nos e teológicos dos fatos. O interessante é que.
será dado senão o de Jonas" (Mt 16.4; Mc para todos os escritores do NT, o caráter so-
8.11-21), e uma só vez está aplicado a Jesus: brenatural dêstes portentos reside, precisamente,
"êste menino. . . será sinal (e não alvo) de con- em sua origem divina, e não na maior ou mencr
tradição" (Lc 2.34; cf Lc 2.12). admiração que êles possam causar no espírito
O quarto Evangelho, pelo contrário, nunca humano. Isto deve ser dito e redito: uma ação
divina, aparentemente tóda ordinária, mas per-
fala de milagres e sempre de sinais (coisa bas-
tante difícil de ver nas atuais versões neo-lati- ceptível para o crente, constitui um milagre

nas, embora evidente na vulgata latina). A tur-


Inversamente, um fenómeno extraordinário, sur-
ba fica satisfeita com
os sinais (6.2,14,26; 12. preendente, inexplicável, que não guarda rela-
18,37) impressionada por seu caráter maravi- ção com a fé, não constitui milagre.
h

lhoso,mas sem compreender a razão de tais fa- Nossos conceitos habituais nos predispõem a
tos.Para ela, Jesus é um ser extraordinário, ter por milagres apenas determinados portentos
porém não o Filho de Deus. O vulgo reconhece clamorosos e cientificamente insolúveis. Os auto-
em seus atos os efeitos de um poder misterioso, res do NT pensam bem diferente num mundo
:

embora não discernindo a causa verdadeira: que se separou de Deus, qualquer sinal reve-
Deus agindo no seu enviado (5.19). Os sinais lando a divina presença em ação, sai do curso
de Jesus maravilham e fascinam estas mentes normal e dos pensamentos costumeiros. Tal ato.
curiosas e ávidas de aproveitar-se do taumatur- ou sinal, ainda que parecido com outros atos
go, mas não as levam à fé (12.37; 6.26). humanos, difere dêles em virtude de seu signi-
.

192 MINISTÉRIO

ficado e de sua finalidade: por êste ato é que tuários locais agrupavam-se profetas (ver: para
Deus, ou Cristo, vence a indiferença e hostili- o templo de Guibéia, ISm 10.5; de Betei, 2Rs
dade dos homens, para se revelar a eles e ma- 2.3; de Samaria, lRs 22.10) Não viviam soli-
.

nifestar-lhes seu poder e amor. Isto é que torna tários, mas formavam ou colégios
confrarias
"maravilhoso" um milagre, e não aquêles tra- presididos por um mestre comum ou pai, que
ços surprendentes que o tornam aceitável pe- dirigia os exercícios religiosos (daí a conhecida
rante nossa natural desconfiança, em virtude expressão: Filhos de profetas, para designar os
do efeito de surprêsa, da sedução ou da origi- membros de algumas dessas comunidades)
nalidade atraente que possam estimular nossa Exerciam também as funções de adivinhos e
curiosidade. viviam de esmolas (ISm 10.5; lRs 22.6; 2Rs
2.3; 6.1; 9.1). Seu distintivo era um manto
M. CARREZ
de pêlos, um cinto de couro ou um amuleto
especial que levavam no rosto ou sobre os olhos
MINISTÉRIO (2Rs 1.8; ver Zc 13.4-5). Tinham uma voca-
ção peculiar e apareciam amiúde encarregados
VT por Deus de determinado oráculo que, fossem
início que o termo "ministério"
Lembremos de quais fossem as consequências, cumpria-lhes
designa tanto as funções leigas como as reli- resgatar. Nos grandes templos régios (Jeru-
giosas, porquanto ministerium significa propria- salém e Samaria), os profetas eram numero-
mente emprego, serviço (daí o nosso mister; síssimos, cada qual com sua tarefa definida nos
em francês mctier, em inglês ministry) Limi- . cultos destinados a trazer a resposta divina às
taremos a propósito a extensão do têrmo para orações dos crentes. Praticavam o êxtase, lo-
considerar exclusivamente seu sentido religioso grado mediante certas técnicas como a música,
de mister santo, de ofício sagrado, de serviço o canto, os gritos e a dança (ISm 10.5; 2Rs
de Deus e do santuário. O
ministério sagrado 3.15; lRs 22.10; 18.26). Sabemos, pelo VT,
era exercido, originalmente, pelo pai de família. que existiam também profetisas (Is 8.3; 2Rs
Génesis (12.7-8) mostra Abraão percorrendo 22.14).
a terra cananéia, erigindo altares, sacrificando Repetidas vêzes intentaram os críticos dis-
e invocando o nome do Senhor. Muito cedo. tinguir ou opor o primitivo profetismo de Israel
porém, os atos do culto tornam-se privilégio oriundo de Canaã, e o profetismo conhecido
e atribuição de homens delegados para êste
mister. Samuel abençoa o sacrifício (ISm 9)
através dos Livros proféticos do VT, mas
;
foram tentativas vãs. Pois, certamente, os pro-
e quando Saul, sem esperar a chegada do pro-
feta, oferece o holocausto, isso lhe é imputado fetas, cujos Livros integram o Cânon, são os

como um delito imperdoável. Esta é a causa diretos herdeiros dos profetas primitivos. A
de sua rejeição por Iavé (ISm 13). Consta resposta de Amós a Amas j a de Betei (Am
que, já na época dos juízes, reservavam-se 7.14s) parecia fundamentar esta oposição entre
homens para o serviço do santuário e do altar um profetismo cananeu, ilustrado pelos profe-
(Jz 17-18). tas de Baal (lRs 18), e um profetismo israe-
A Bíblia reconhece três categorias de homens lita, puro de todo elemento estranho. Mas o
encarregados de um ministério e merecedores texto deve traduzirse diferentemente "Eu não :

do título de "pessoas sagradas": os sacerdotes era profeta, nem membro de alguma confraria
(
—> Sacerdócio VT), os profetas e o rei. de profetas, mas boieiro e colhedor de sicômo-
ros, até que o Senhor me tirou de após o gado
1 .No VT
o profetismo não possui o caráter e me disse: sê profeta".
de liberdade que com excessiva frequência se Outros vêem nos profetas do VT os repre-
lhe presta. Como o sacerdócio, o profetismo sentantes do ideal nómade, seguidores da reli-
é uma instituição com tradições próprias, sendo gião dos tempos mosaicos e opostos à religião
bem difícil assinalar as fronteiras que separam moderna. Mas, consta-nos que, tanto para êles
o primeiro do segundo. A
atribuição profética como para todos os seus contemporâneos, era
é muito mais de falar e anunciar do que pre- Canaã a terra da bênção e da vida, da promessa
dizer o futuro, embora compartilhem com os sa-
divina, e de maneira nenhuma o deserto, pátria
cerdotes determinadas práticas adivinhatórias.
Os textos de Ez 4.16 e 7.1 autorizam a se-
das trevas e da morte ( —>
deserto) Oséias,
preconizando a volta ao deserto, evidentemente
.

guinte definição o profeta é a bóca de Deus.


:
não almeja fazer lá uma morada definitiva para
definição sugerida, aliás, pela fórmula: "assim Israel, mas simplesmente salienta ser necessá-
fala o Senhor", tradicionalmente usada para
rio umperíodo de purificação (Os 2). re- A
introduzir os oráculos de Iavé. ligião dos profetas era,na realidade, a religião
A terra de Canaã, antes da chegada dos do Israel dos reis, na qual tinham-se fundido
israelitas, já conhecia o profetismo (a Meso- a religião dos hebreus nómades e a religião ca-
potâmia também). Nas proximidades dos san- nanéia.
.

MINISTÉRIO 193

Outros, finalmente, fazem dos profetas os dados. Êles davam grande relevo à linha mestra
inimigos do culto oficial, do culto público, e da história religiosa de Israel. Certos profetas
mesmo de qualquer forma de culto, espiritua- ou círculos proféticos conservavam-se oralmente,
listas puros que condenavam os ritos celebrados mas outros os colocavam por escrito (Is 8.1;
nos santuários ( — clássica oposição profetas Jr 36) Os Livros de Amós. Oséias, Miquéias
.

versus sacerdotes) . Mas esses críticos se es- e Segundo Isaías (Is 1-39) deixam a impressão
quecem de que, na época profética, era absolu- de ser meras coleções de oráculos piamente
tamente impensável uma religião sem culto os ; conservados na tradição oral e posteriormente
profetas, atacando determinadas formas de escritos. Mas Isaías (40-66) constitui uma
culto, não faziam qualquer oposição sistemática composição literária pensada para ser escrita.
ao mesmo culto. Miquéias (cap. 6) não exigia Quanto mais forte se faz o poder sacerdotal,
a supressão dos ritos, e sim a presença nas menos importante torna-se o ministério profé-
práticas rituais de um coração sincero. E tico,a despeito de quantas novidades podia êste
quando Amós reclamava a justiça, não visava trazer para uma tradição que, passo a passo,
unicamente o campo moral e social, exigia tam- se ia fechando. A
Igreja conhecerá um fenó-
bém um culto justo, quer dizer, puro de tôda meno idêntico. Quando queriam ser ouvidos,
mistura estranha. Com efeito, praticar a jus- os inspirados dos últimos séculos antes da era
tiça é também celebrar um culto justo, o culto cristã, tomavam emprestado o nome dos gran-
do verdadeiro Deus e não dos ídolos, e com- des heróis do passado: Moisés, Elias, Enoc.
porta a sinceridade do coração (Ez 18.5). etc. Formou-se, assim, uma literatura suma-
O israelita não fazia distinção entre a repre- mente importante, conhecida sob o nome de
sentação de uma coisa na sua mente e o cum- Apócrifos ou Pseudepígrafos do VT.
primento desta coisa. Muito pelo contrário, o
segundo corre de per si e não tem importância. 2. Outra pessoa sagrada: o rei. Além de
Por esta razão os reis conservavam centenas de exercer as funções laicas de chefe estatal, o
sacerdotes e de profetas, cujo mister era exclu- rei desempenhava um
tocando-lhe
ministério,
sivamente ver, contemplar e representar a rea- um papel próprio no culto e na presença do
lidade; assim, quando saíam à guerra, procura- Altíssimo. Fato ilustrado pela unção de
óleo (Saul: ISm 9.27ss; Davi: ISm 16.12s;
—>
vam ser vistos e representados como o rei ven-
cedor. Estas representações mentais valiam Salomão: lRs 1.32ss; Jeú 2Rs 9.7), que tor- :

tanto ou mais que as armas e os exércitos nava o rei propriedade do Senhor e integrava-o
(Ler lRs 22: o papel dos profetas quando na esfera divina. Quem estender a mão contra
Acabe sai à guerra) o rei. será réu de sacrilégio (2Sm 1.14). Os
precursores dos reis, os Juízes em particular,
A pergunta difícil versa sobre os verdadeiros
são descritos como possessos do espírito de
e falsos profetas e como distingui-los. Isaías de-
nuncia certos profetas que ensinam a
tira e cambaleiam por causa do
—>vinho
men-
Iavé. Houve quem opinasse que o rito da
unção implicava um caráter divino ao rei, tor-
nando-o Deus baseava-se tal opinião em textos
;
(Is 9.14ss; 28.7); Jeremias acusa-os de men-
como 2Sm 14.17; a dedução é, evidentemente,
tira, pois não passam de vento (Jr 14.14;
forçada. Pois, mesmo quando os Salmos (2:7
5.13); Oséias e Ezequiel constatam que não
"Tu és meu filho, eu hoje te gerei"; e 45:7,
passam de loucos e insensatos (Os 9.7; Ez
onde o rei é chamado de "deus") pareçam
13.3). No entanto, todos eram profetas do deificar o rei, não passa isso de uma simples
mesmo Deus, servidores dos mesmos santuários redundância de fórmulas caras ao antigo Oriente
de Iavé. Somente o veredicto da história con- e destinadas a ponderar a distância entre o rei
seguiu revelar a verdade ou falsidade de suas
e os súditos. Ademais, como admitir-se-ia que
predições e, consequentemente, da inspiração à
um soberano divinizado fôsse ter com
Isaías
qual apelavam.
num campo de pisoeiro (Acaz: 7.3), con-
Is
Antes do exílio, a mensagem profética era versasse com Jeremias cativo (Zedequias: Jr
concentrada sôbre o prenúncio do castigo, de- 37s), ou buscasse pasto para o gado? (Acabe:
vido à dramática situação de Israel, cuja his- lRs 18) . No entanto, o rei, embora não divi-
tória era uma sucessão de catástrofes até o nizado, recebia de Deus o seu poder, era rei
derrubamento final. Não é, pois, legítima a de direito divino, com maior caráter teocrá-
pretensa divisão entre profetas de desgraças tico do que monarquia alguma em todo o curso
(anteriores ao exílio) e profetas de venturas da história. Em Jerusalém êste caráter resulta
(pós-exílicos) . Pois em tcdos os tempos os também da localização do palácio do rei junto
profetas anunciaram ao mesmo tempo julga- ao templo, dentro de um mesmo recinto sa- ;

mento e salvação, promessas e condenação. lientam-nos expressões vulgares usadas corri-


É muito normal que os oráculos ratificados queiramente o rei é "o filho adotivo de Iavé",
:

pelos acontecimentos, ou cujo conteúdo impres- o Adon =


Senhor, como Deus o ungido, o ;

sionara a imaginação popular, tenham sido guar- filho, o servo de Iavé. Todas estas expressões
194 MINISTÉRIO

permitem afirmar que êle está mais perto de como Is 9 e salmos régios já citados.
11 e os
Deus que nenhum outro mortal. A relação que Quando, depois do não mais reinarão
exílio,
une o rei a Deus possui um caráter especial e reis em Israel, as esperanças ligadas à pessoa
único. Talvez cumpra dizer que Israel con- do rei cristalizar-se-ão, espontâneamente, em
cede a seu rei um certo grau de divindade, mas, torno da pessoa do Messias.
na relação entre o rei e a divindade, Israel G. PIDOUX
afasta qualquer idéia de identidade ou de en-
iNT
carnação física. O rei permanece sempre, e
em todo lugar, um ser bem humano, um homem 1. Serviço e ministério. Com o substantivo
do povo (SI 89.19s), subordinado a Iavé e genérico "serviço" (diaconia), o designa NT
dependente de Iavé. O seu poder provém de os diversos misteres e funções exercidas na
uma bênção divina amissível, conforme ensina Igreja. Êste têrmo geral aplica-se ao minis-
o exemplo de Saul. Se é filho de Deus, não tério apostólico bem como às várias tarefas dos
por natureza, mas por adoção, e se é escolhido crentes de qualquer categoria e à própria obri-
e suscitado por Deus, nem por isso torna-se gação do mútuo serviço na comunidade. Não
objeto de culto. No culto, êle representa o é por pobreza de vocabulário que o confia NT
povo perante Deus, e age como intermediário ao mesmo têrmo estas três acepções, mas para
entre o povo e Deus, como o canal através do salientar que na Igreja, corpo vivo de Cristo,
qual a divina bênção chega até o povo, como todos os membros são ativos, cada um em sua
o ponto de_ encontro entre Deus e a comunidade. função específica, a fim de que todos contribuam
O rei de Israel pois, a prova humana e para a plenitude da vida comum. "Servir" é
tangível, a garantia da
é,

sença de Iavé no meio do povo.


—> aliança e da pre-
Além de
vocação e dever de qualquer homem que entrou
na grei daquele que "veio para servir e não
subvencionar liberalmente os enormes gastos do para ser servido", e que fêz do serviço a norma
culto e de empreender as reformas religiosas de de tôda grandeza no Reino "Quem quiser tor~
:

maior alcance (2Rs 22-23), o rei dirige pessoal- nar-se grande entre vós, será servo de todos"
mente o culto, conforme consta na oração de- (Mc 10.43-45). Esta exortação frisa que
dicatória do templo, pronunciada por Salomão servir contraria a inclinação natural do cora-
ORs 8), e abençoa o povo. O lugar que êle ção. Únicamente os crentes que Cristo trans-
ocupa como pessoa sagrada revestida de um forma mediante seu Espírito, serão capazes de
ministério, é tão importante que Ezequiel, na servir com todo o coração, colocando ao dispor
visão ideal do templo restaurado
— —
cujo único da Igreja todos os seus talentos. Neste nível
não há mais distinção entre as capacidades na-
rei é Iavé reserva um lugar e uma função
peculiares ao príncipe na celebração do culto turais e os carismas da graça.
(Ez 46) Um texto mutilado de Zacarias mos-
. Por esta razão, os têrmos "serviço" e
tra-nos preparadas duas coroas, uma para "carisma" (dom da divina graça) são comple-
Josué, o sumo sacerdote, e outra provàvelmente mentares, e não opostos (ICo 12. 4s; IPe 4.10).
para Zorobabel, o descendente de Davi, que O Espírito foi concedido à Igreja; nela êle
despertou tantas esperanças frustradas (Zc 6). manifesta sua presença mediante os dons repar-
Entretanto, as promessas feitas a êste rei bem
ilustram o caráter sagrado da realeza no antigo
tidos entre os fiéis.
comparação de São Paulo
Assim também
— na —
as diversas fun-
Israel (Zc 6.13). ções e atividades do corpo humano estão dis-
Nos ensaios de reconstituição das festas do tribuídas entre os membros, não deixando êstes
templo de Jerusalém, vários autores coincidem de ser diferentes, porém dependentes harmonio-
em formular a hipótese seguinte: os grandes samente uns dos outros (ICo 12.18).
momentos da história passada, como a saída do Todos os fiéis pois, comprometidos a
estão,
Egito comemorada na Páscoa, davam oportu- servir na Igreja. Todavia ela beneficia-se dos
nidades não apenas a que fossem recitados os serviços específicos, dos ministérios peculiares
textos sagrados pertinentes, mas a que fossem de determinados membros, devido precisamente
mimicamente representados, desempenhando o a uma necessidade que cumpre explicar antes de
rei o papel de Deus. Se fôr exata esta expli- enumerar os diferentes ministérios.
cação, poderemos compreender melhor como
A obra da salvação realizada por Cristo
foi
certas expressões reservadas a Deus (como a
num determinado momento da história; ela não
de SI 45.7) acabaram sendo dadas à pessoa
se repete. É, pois, necessário que homens es-
do rei.
Sendo o Messias o futuro rei, as fórmulas
colhidos por Cristo os — —>
apóstolos
anunciem o Evangelho para que o mundo tenha

em uso na corte e no culto, para celebrar o fé e se salve. Osenquanto teste-
apóstolos,
príncipe, passaram naturalmente a aplicar-se munhas da não têm sucessores,
ressurreição,
também ao Messias. Explicar-se-ia, assim, o pois não haverá novas aparições do Ressusci-
parentesco que notamos entre certos textos, tado. A base da Igreja assenta-se, de uma
:

MINISTÉRIO 195

vez por todas, sobre a obra de Cristo e sobre explicar a mensagem cristã à luz do VT e
o testemunho dos apóstolos. Mas a edificação, valorizar o significado das verdades que com-
a construção da Igreja deve continuar inin- preenderam os crentes mediante sua fé.
terruptamente até a volta do Cristo êste tra- :
Na segunda série da enumeração, Paulo nos
balho reclama novos ministérios para ajudar e dá uma lista de carismas, designando-os com
logo substituir os apóstolos, quando estas pri- têrmos abstratos, certamente por serem meras
meiras testemunhas tiverem desaparecido. Os manifstações espontâneas e esporádicas do Es-
novos ministérios são tão indispensáveis à vida pírito e não ministérios permanentes. Não as
da Igreja como o apostolado; considera-os numera, pois escapam a qualquer intento de
Paulo instituídos por Deus. Pois é Deus OCo classificação em virtude justamente de sua
12.28), ou Cristo (Ef 4.11) que dão à sua extrema liberdade. O próprio Paulo, na am-
Igreja "apóstolos, profetas, didascalías". Os pliação do vers. 28, ou seja, nos vers. 29-30,
ministérios da palavra têm primeiro lugar
o dá-nos outra lista de carismas, um pouco di-
no rol das funções eclesiásticas (ver também ferente, porém encabeçada pelos três ministé-
lTm 5.17), porquanto a Igreja alimenta-se da rios como antes e na mesma ordem. O Espírito
palavra apostólica, pregada, explicada e apli- utiliza, ocasionalmente, determinados crentes
cada por homens idóneos. Deixaria de existir a enriquecidos de carismas para maior vida da
vida cristã se desaparecesse o conhecimento da
Igreja.
revelação acontecida na história e transmitida
pela —> tradição, cujos primeiros elos são
De fato, muito cedo
— —
ainda viviam os
apóstolos aparecem os diferentes ministé-
os apóstolos. Por outro lado, a Igreja deve
rios, tanto em Jerusalém como nos campos
ser também um "edifício" e não um amontoa-
missionários de Paulo, sendo o seu surgimento
mento de materiais^ um "corpo" e não um
normal, como a expressão necessária da vida
ajuntamento amorfo de crentes. Estas imagens
da Igreja.
do edifício e do corpo, que designam comumente
a Igreja de Cristo, declaram peremptoriamente
que a Igreja não pode prescindir de ministé- 2. A Igreja de Jerusalém. Conforme lemos
rios e de governo. em Atos, os Doze são secundados, em Jerusa-
Por outra parte, em Corinto, a necessidade lém, pelos Sete e depois pelos presbíteros ou
de lutar contra tendências anárquicas e ilumi- anciões. O crescimento fulminante da Igreja
nistas constrange Paulo a lembrar que foi o obriga a confiar o "serviço das mesas" — a
próprio Deus quem instituiu a diversidade e celebração da Eucaristia e das comidas comu-
hierarquia dos ministérios "A uns estabeleceu
:
nitárias, a distribuição dos recursos de todos
Deus na Igreja, primeiramente como apóstolos, conforme a necessidade de cada um (At 8;
em segundo lugar como profetas, em terceiro
lugar como didáscales, em continuação temos o
21.10) —
ao grupo dos Sete: assim poderão
os Doze dedicar-se plenamente à oração e à
dom de milagres, depois os dons de curar, as
formas de assistência e direção, as variedades de pregação da palavra (At 6.1-4). Dois dêstes
línguas" (ICo 12.28-30). Nesta frase enumera Sete desempenharam, mais tarde, um papel
Paulo duas séries de funções eclesiásticas, evi- considerávelcomo pregadores e missionários
tando cuidadosamente colocá-las no mesmo Estêvão (At 6 e 7) e Filipe (At 8; Ef 21.10).
plano: primeiramente os três ministérios da O autor de Atos considera, provàvelmente, os
palavra e do ensino, bem numerados para su- Sete comoos antepassados dos diáconos, pois
blinhar a sua importância. Três funções que não menciona êstes últimos, que veremos tantas
se acham em tôdas as igrejas sob diferentes vezes citados nas epístolas pastorais como en-
nomes, pois são absolutamente indispensáveis à carregados de certos ministérios assistenciais.
vida da Igreja. O apóstolo vai na frente, por- Pouco depois aparecem em Jerusalém os
que funda a Igreja com o seu testemunho da presbíteros ou anciões o autor de Atos con-
;

Ressurreição, e porque êle é, nos exórdios, o tenta-se com mencioná-los sem indicar sua ori-
único ministro ecuménico. A
tarefa do apos- gem ou atribuições. É em suas mãos que Paulo
tolado é pregar o Evangelho por todo o mundo e Barnabé depositam as coletas feitas em An-
e, nascidas já as igrejas como fruto de sua tioquia a favor dos irmãos da Judéia (At
pregação, assegurar com cartas, visitas e men- 11.30). Nesta conjuntura não figuram os após-
sageiros acreditados, a unidade das diversas tolos, ausentes certamente por estarem em seus
comunidades. Os demais ministérios são locais. campos missionários (ICo 9.5). Consta, por-
Os —> profetas são, provàvelmente, pregado-
res inspirados que falam claramente, não em
tanto, que, na ausência dos Apóstolos, os pres-
bíteros dirigem a Igreja e, presentes aquêles,
linguagem incompreensível como os glossolalos êstes colaboram com êles. Sirva de ilustração
(que "falam em línguas" inoperantes se não o caso do concílio de Jerusalém (At 15) e, pos-
as interpretar um intérprete também inspirado). teriormente, a última viagem de Paulo a Je-
Os doutores (os didáscalos) têm por missão rusalém (At 21.28).
.

196 MINISTÉRIO

O livro de Atos nos revela, também, a exis- tério estabelecido nos tempos de Paulo"

tência de presbíteros nas igrejas fundadas por (GOGUEL, L'Église primitive, Paris, 1947).
Paulo, em exemplo (14.23; 20.17).
Éfeso, por Paulo alude a um ministério equivalente, quando
Embora o próprio Paulo não use a palavra escreve "Aquêle que tem sido instruído no
"presbítero" —
salvo nas pastorais fala de
ministérios equivalentes ao presbiterato, equiva-
— :

Evangelho reparta todas as coisas boas com


aquêle que o instruiu" (Gl 6.6), palavras que
lência que ecoa até em Atos. Assim (20.28), atestam a importância primordial dada desde o
os presbíteros de Éfeso levam o nome de início ao ministério doutrinal, afirmando que
"epíscopos", bispos ou intendentes, mostrando êste tem direito a uma retribuição, como o
êste texto que seu ministério era de pastorear apostolado (ICo 9.6-15) os três ministérios da
;

a Igreja. Ora, a igreja deixada por Paulo em palavra, entretanto, são permanentemente indis-
Filipos tem epíscopos (Fp 1.1); por outra pensáveis à vida da comunidade. Pelas capa-
parte, os doutores, ou "didáscales", de Éfeso cidades e pela cultura que pressupõem nos voca-
são chamados "pastores" ; isso resulta, pois, cionados, os ministérios da palavra possuem um
uma identidade quase segura entre os têrmos caráter próprio de permanência e de autoridade.
e as funções de "presbíteros" (ou anciões), Ef 4.11 contém uma lista de ministérios quase
"epíscopos" (ou bispos) e "didáscales" (ou dou- idêntica: "O mesmo
Cristo concedeu uns para
tores) "Pastorear a grei de Cristo" (At
. apóstolos, outros para profetas, outros para
20.28) será, pois, defendê-la contra os perigos pastores e didáscales". Pastores e didáscales
das falsas doutrinas (At 20.29-31), procurar-lhe pode ler-se também pastôres-didáscales: os
o alimento da verdade, isto é, o ensino conforme mesmos que ensinam são os que pastoreiam a
o pensamento apostólico. É, portanto, o minis-
tério primordial da palavra e do ensino que os
grei, sendo a palavra —>
pastor apenas uma
imagem trazida pela metáfora "grei", familiar
presbíteros exercem em Jerusalém, e os "di- no NT para designar a Igreja. Relativamente
dáscales" e epíscopos nas igrejas paulinas. ao texto anterior de Coríntios, temos aqui ape-
Os presbíteros ainda são mencionados nas nas uma palavra nova: evangelistas . Mas o
epístolas tradicionalmente atribuídas aos após- evangelista tem a mesma missão que o após-
tolos de Jerusalém. Conforme IPe 5.1-4, é tolo : sem possuir o mesmo
difundir o evangelho,
mister dos presbíteros pastorearem o rebanho, título,porquanto não foi, como o apóstolo, tes-
ou seja, ensinar com fidelidade. Tg 5.14 espe- temunha da Ressurreição. O NT somente inti-
cifica ser incumbência dos presbíteros orar pelos tula de evangelista a Filipe, um dos Sete (At
doentes e impor-lhes as mãos (
das mãos)
Imposição —> 21.8), e a Timóteo, o fiel colaborador de Paulo
(2Tm 4.5).
Em Rm 12.6-8, o apóstolo enumera os se-
3. Igrejas paulinas. Paulo toma muito cuida- guintes "carismas", falando ora das funções, ora
do em organizar as igrejas que funda. es- A dos ministros revestidos delas: "a profecia, a
perança viva da volta do Senhor não é, a seus
olhos, um pretexto para negligenciarmos a
diaconia" — —
no sentido mais amplo de serviço
(ver lTs 5.12) "o que ensina, o que exorta,

——
ordem que deve reinar na casa de Deus (ICo o que contribui, o que dá, o que dirige" isto
14.33), nem esta espera é motivo para os fiéis é, o guia espiritual (ver lTs 5.12) "o que
se descuidarem do trabalho que supre suas ne- exerce misericórdia". Êste rol é pouco preciso,
cessidades ( —>
trabalho; 2Ts 3.6-12).
apóstolo, porém não dedica qualquer escrito
O propositadamente, sem dúvida, pois Paulo ca-
rece de informações sôbre as peculiaridades da
especial à organização dos ministérios, conten- Igreja de Roma. Contudo, também aqui, o
tando-se em dar a cada igreja prescrições em lugar proeminente corresponde aos profetas e
harmonia com as circunstâncias locais. Escre- doutores. Sabemos, por Atos 13.1; 11.27s;
vendo aos filipenses, saúda a igreja, em par- 15.32, que havia igualmente profetas e douto-
ticular "os epíscopos e diáconos" (Fp 1.1) res em Antioquia, ponto de saída das grandes
nada explicando relativamente às funções dêstes. missões de Paulo.
Os epíscopos são, evidentemente, os pastores
que velam pela Igreja, atentos a que persevere 4. Época pós-apostólica. As epístolas pasto-
na doutrina recebida do apóstolo. O ministério rais (a Timóteo e a Tito) são nossa principal
episcopal aparece idêntico ao ministério dos fonte de documentação. Redigidas talvez por
didáscales ou doutores de Corinto, dos "pres- algum dos discípulos de Paulo sôbre notas do
bíteros-epíscopos" de Éfeso. Os diáconos, sem apóstolo ou indicações orais suas, retraçam uma
dúvida, são-lhes subordinados êles são citados ; situação claramente mais evoluída da que vemos
sempre em segundo lugar. Estas duas funções, nas grandes epístolas paulinas e nos Atos.
epíscopos e diáconos, assim postas em paralelo, Quiçá Paulo não mais está presente para ser
não aparecem em outro texto de Paulo (salvo êle mesmo o laço vivo entre as igrejas, ou, se
nas pastorais), mas Fp 1.1 basta para esta- ainda vive, está prêso e separado dos fiéis,
belecer firmemente "a existência de um minis- apenas representado por seus mandatários Ti-
:

MISTÉRIO 197

móteo Tito aos quais confiara o cuidado de


e 3.° Existência de um ministério ecuménico
vigilar pelaboa marcha da Igreja. Quatro mi- expressando a unidade das diversas igreja?
tência e de administração. entre si.

a) Os diáconos (lTm 3.8-13) e, talvez, as


5. Os ministérios da Igreja e a Igreja. Poucas
diaconisas (lTm 5.3-13), devem ser revestidos
coisas sabemos sóbre a organização da Igreja
de sólidas virtudes morais e práticas. Esta
dos tempos do NT. Guardemo-nos de concluir
recomendação insinua que suas atribuições (aqui daí que os apóstolos foram indiferentes à ne-
não indicadas) são os diversos misteres de assis-
cessidade de organizá-la, porque (como certos
tência e de admnistração.
pretendem) êles viviam na esperança da
b) presbíteros ou anciões (lTm 5.17-22)
Os "parusia". Tal esperança, pelo contrário, assim
devem (Tt 1.5-6). "Os que
ser irrepreensíveis como logicamente devia impelir os crentes a
presidem bem, em particular os que se afadi- viverem mais atentos e vigilantes, também bas-
gam na palavra e no ensino, devem ser consi- tava para incitar os apóstolos a estenderem a
derados merecedores de dobrada honra" Igreja, missionando, e firmarem-na, organizan-
(= quiçá de dobrados honorários). Êste ver- do. A eleição dos Sete em face da comunidade
sículo parece insinuar que foram várias as atri- crescida, a presença de presbíteros lado a lado
buições do presbiterato, com primazia, porém, com os Doze, as preocupações de Paulo pela
do ensino. Indica, outrossim, que os presbíte- edificação das igrejas, as cartas pastorais, tudo
ros eram retribuídos, autorizando-se a conclu- revela o cuidado de organizar a Igreja e de
são de que eles davam grande parte ou a não a deixar acéfala quando os apóstolos de-
totalidade de seu tempo ao desempenho minis- saparecerem do campo histórico.
terial .
Cristo escolheu pessoalmente os apóstolos,
c) O ou bispo (lTm 3.1-7; Tt
cpíscopo revestindo-os de seu Espírito para os habilitar
1 7-9) é mencionado no singular
. provàvelmen- às suas funções. Depois, os apóstolos, guiados
;

te nos tempos das pastorais havia apenas um


pelo mesmo Espírito, presidirão à escolha dos
homens necessários à Igreja (At 6.2-6) em
epíscopo para cada igreja. Ocupava êste uma
;

seguida desempenharão o mesmo papel os de-


posição e exercia funções que o distinguiam
legados apostólicos tais como Timóteo e Tito
dos presbíteros. Havia de ser hospitaleiro (2Tm 2.2; Tt 1.5; lTm 5.22). Os fiéis ape-
(= acolher os fiéis vindos de outras igrejas), nas são convidados a dar seu assentimento.
bem considerado dos não-cristãos, porquanto êle
Êste sistema baseia-se na teologia da Igreja.
representava a Igreja ante outras igrejas e ante Cristo é o chefe que governa a Igreja mediante
os não-cristãos. Além de ensinar como os seu Espírito. A
soberania está no Cristo e
presbíteros, reserva-se-lhe a incumbência de no Espírito. De cima vem a autoridade, pas-
defender a sã doutrina transmitida pelos após- sando àqueles que Cristo elege pessoalmente,
tolos contra possíveis deformações. Deverá, isto é, aos apóstolos mediante os apóstolos
;

pois, ser homem


de conhecimentos mais exten- passa aos sucessores e seus colaboradores. Em
sos e de melhor percepção dos problemas e di-
suma, na perspectiva do NT, a Igreja é uma
ficuldades que a Igreja terá de resolver. Em cristocracia, ou, mais exatamente, uma cristo-

suma, o epíscopo é-nos descrito aqui como o cracia apostólica. (Ver Ph.-H. MENOUD.
chefe da igreja local. L'Église et les ministcres selon le NT. Neuchá-
tel et Paris, 1948).
d) Timóteo e Tito são, respectivamente em Ph.-H. MENOUD
Éfeso e em Creta, os delegados de Paulo. Seu
ministério, semelhante ao próprio apostolado, MISTÉRIO
excede os limites da igreja local e assegura os
laços de união entre as diversas igrejas duma 1. Quem ignora a prodigiosa fortuna da pa-
região, diferenciando-se assim do ministério de lavra "mistério" nas religiões helenísticas, re-
presbíteros, diáconos e bispos. Êste ministério pentino broto de febre duma época tôda lançada
ecuménico é destinado a perpetuar-se na Igreja a desvendar o segrêdo dos deuses? Não é
(2Tm 2.2). nosso propósito delimitar aqui quais foram as
Êste apanhado rápido dos ministérios descri- influências desta misteriologia sóbre o pensa-
tos em o NT
autoriza as conclusões seguintes mento bíblico, mas devemos, de início, demarcar
a fronteira que os separa na Bíblia o têrmo
:

Necessidade do ministério de homens


1. °
visa menos a revelação do Ser divino quanto
segregados para as funções essenciais da vida a manifestação do plano redentor. Assim Paulo,
eclesiástica. ao falar das "profundezas de Deus" (ICo 2.10),
2. °
Diversificação e multiplicidade de minis- não alude aos arcanos da divindade, objeto
térios, porém preeminência do ministério da das iniciações místicas, mas à profundeza da
palavra (pregação e ensino). sabedoria de Deus (Rm 11.33ss) revelada nas
.:

198 MISTÉRIO

disposições do plano salvador para o mundo acessível somente à fé. Entrega-se sem renun-
inteiro. Isso já explica uma certa desconfiança ciar a ser o Senhor tal é o coração do mistério
:

para com êste termo ambíguo, que só tardia- neo-testamentário. Êstes acontecimentos, quais
mente aparece no AT
o seu uso restringe-se ao são? Conforme Mc 4.11, o primeiro é a pre-
—>
;

desenvolvimento da apocalíptica no seio do ju- sença velada do Reino na pessoa de Jesus


daísmo maduro. Entre os canónicos, exclusi- Cristo, nas suas palavras e obras. Mistério,
vamente Daniel (segundo a versão dos LXX, sem dúvida, pois enquanto os crentes saúdam
2.28-30; no hebraico não há têrmo exatamente nêle o advento de um novo mundo, os outros,
equivalente) o usa: "Há um Deus nos céus, o os de fora, nada compreendem, pois, "tudo para
qual revela os mistérios êle fêz saber ao rei
: êles acontece em parábolas". O
segundo, con-
o que há de acontecer nos últimos tempos" forme ICo 2.7, é a vitória suprema da
êstes mistérios são, portanto, os últimos even- —> do poder e da sabedoria
cruz, síntese final
tos, decretados por Deus desde tôda a eterni- infinita deDeus, embora os podêres do mundo,
dade, e cujo segrêdo pertence a êle e não será a despeito do seu saber, não possam compreen-
desvendado, antes que aconteçam, a não ser der nada nem reconhecer o Senhor da glória.
por revelação do Espírito. O terceiro, segundo Cl 1.27, é a presença de
Jesus Cristo em nós, pobres "pagãos", nos
2. Em o NT,
mistério figura quase exclusi- quais os demais homens nada conseguem ver
vamente nos direta ou indiretamente
escritos de extraordinário, embora levemos dentro tôda
paulinos (especialmente nas cartas dirigidas às
igrejas situadas em ambientes gnósticos: Co-
a promessa da glória e as —>
arras do mun-
do vindouro. O quarto, de conformidade com
rinto, Colossos, Éfeso. A
Igreja usa por sua
conta os termos próprios das especulações pa-
Ef 3.4, é a constituição da —>
Igreja, na
aparência, simples seita religiosa entre muitas
ganizantes, para situar melhor o Evangelho) outras, embora seja na realidade o corpo de
Encontra-se ademais, uma vez nos sinóticos e Cristo, germe de uma nova humanidade recon-
quatro vezes no Apocalipse. O têrmo pode ciliada. O quinto acontecimento misterioso,
ser entendido no seu sentido mais extensivo: segundo ICo 2.13ss, é a pregação do próprio
mistério de Deus (ICo 2.1, cuja leitura, aliás, mistério,parte integrante do mistério, pois
é discutida; Cl 1.27; ver Ap 10.7); mistério embora seja uma palavra despida de qualquer
de Cristo (Ef 3.4; Cl 4.3. Ver a propósito grandiosidade e artifício, ela é a palavra do
o excursus do Commcntaxrc anx Ephésiens de Deus vivo. Finalmente, o sexto evento mis-
CH. MASSON, Neuchâtel et Paris, 1952, terioso é-nos dado por Ap 17ss : a parusia:
p. 177); mistério do Evangelho (Ef 6.19). O através do caos das convulsões escatológicas,
mistério designa aqui, em geral, o cumprimento a fé discerne os indícios luminosos do próximo
e a revelação, em Jesus Cristo e na Igreja, do advento do Filho do Homem. Evidencia-se,
desígnio redentor de Deus, porém podendo-se destarte, a escolha de Deus Deus, quando vem
;

referir a disposições peculiares dêste desígnio e se simultâneamente também se es-


revela,
(em cujo caso é usado no plural) como o : conde. Escolhe as coisas fracas do mundo
endurecimento de Israel (Rm 11.25), a glo- para confundir as fortes, e as coisas que não
riosa metamorfose dos crentes na parusia (ICo são, para aniquilar as que são. Escolhe, para
15.51: note-se que Paulo, em todos êsses tre- manifestar a eternidade, o tempo —
para re-

chos, declara ter recebido estas coisas não da velar seu Espírito, a carne para ostentar
tradição vinda de Cristo, mas de uma revela- sua divindade, a humanidade —
para salientar
ção pessoal tem-lhe sido comunicada uma visão
: sua soberania, a cruz ——
para etar presente,
mais profunda dos projetos de Deus), a íntima as nossas próprias vidas a Igreja para
relação entre o Cristo e a Igreja (Ef 5.32). congregar todos os homens —
os balbúcios de
Finalmente mistério pode revestir um sentido seus servos para ecoar a divinaVoz —
as ca-
análogo àquele que tinha em Daniel, para de- tástrofes históricas das nações para nos enca-
signar as figuras veladas dos postimeiros even- minhar rumo à nova Jerusalém. Quem ainda
tos, em textos apocalípticos como 2Ts 2.3,7: se surpreende, em frente destas constatações, que
o mistério de iniquidade, ou Ap 1.20: as sete Paulo use tão repetidamente a palavra mistério?
estrêlas.
b) O mistério é preparado desde a consti-
Confrontando êsses usos diversos, conclui- tuição do mundo (ICo 2.7), mas fica escon-
remos : dido em Deus (Ef 3.9), velado aos aioon
a) Presenciamos uma série de acontecimen- ( = séculos; ICo 2.8; Ef 3.9; Rm 16.25;
tos aparentemente perdidos na história humana, Cl 1.26). Deus se reservou revelá-lo agora,
sem glória nem importância entretanto, é pre- ;
em Cristo, aos seus eleitos, para que fossem
cisamente aqui que Deus tomou a iniciativa de feitos mistério
participantes "para sua
do
intervir pessoalmente nas' coisas do mundo. glória" (ICo 2.7). A
consciência apostólica
Aqui está conversando com os homens, embora de Paulo sente-se particularmente ligada à
:

MORTE 199

compreensão do mistério (Ef 3.4) conside-


: 35.29; 49.33; 2Sm 7.12; IRs 2.10; 11.21,43;
ra-se Paulo como o ecónomo do mistério (ICo 14.20, etc).
4.1), comissionado para pregar o mistério
(Cl 1.25s; Ef 3.8s) êste é o grande combate
:
2. O primeiro terreno adquirido por Abraão
que Paulo deve combater (Cl 2.1), para cujo na terra prometida foi um campo com sua ca-
êxito solicita a intercessão de suas Igrejas (Cl verna para sepultura de Sara (Gn 23.1-20; 25.
4.3; Ef 6.19). 9; 50.13): sepultar os mortos é realmente um
dever absoluto de piedade, ocasião frequente
c) Notemos afinal que, mesmo revelado aos
de cenas comoventes (Cf 2Sm 21.7-14; IRs
santos e anunciado ao mundo, o plano de Deus
13.11-32). Não receber sepultura é o pior in-
permanece misterioso enquanto o Juízo final
fortúnio que possa ocorrer ao defunto (ver IRs
não o elucidar e realizar até então o segrêdo
:

14.11; 16.4; 21.19ss; 2Rs 9.10.30-37; SI 79.


da história continuará sendo segrêdo. a divina
etc). Entretanto, Israel opunha-se vigorosa-
sabedoria carecerá de plena justificação e as
mente aos ritos funerários pagãos (Lv 19.28;
profecias de plena confirmação.
Dt 14. lss), como à evocação dos mortos e à
Em lTm 3.9 (o mistério da fé) e 3.16 (o necromancia (Lv 19.31; 20.6,27; Dt 18.11;
mistério da piedade), a presença explícita da ISm 28), mas chorava seus mortos piedosamen-
palavra "mistério" não modifica, aparentemente, te (cf 2Sm 18.33ss e Ez 24.16ss), durante um
o sentido dos substantivos fé e piedade, porém tempo mais ou menos prolongado de luto (Gn
acentua o seu caráte» positivo. 23.2; 50.10, etc), que, em casos excepcionais,
Em resumo, o mistério, em o NT, refere-se era nacional (Dt 34.8; ISm 28.3). Lembremos
à sabedoria do Pai: na decisão, na preparação a formosa elegia composta por Davi depois da
e na execução do desígnio redentor, com o fito morte de Saul e de Jonatas (2Sm 1.17ss). Mas
de "fazer congregar em Cristo tôdas as coisas"
(Ef 1.9-14) bem como na revelação do plano,
— fato notável —
nunca vemos êstes ritos fu-
; nerários acompanhados de orações ou de sacri-
mediante o Espírito, aos eleitos, mormente após- fícios para o*descanso dos defuntos. Se. alguma
tolos e profetas, para que fossem os "ecônomos" vez. se erige uma pira, é para queimar nela
do mistério salvador. homens vivos (Gn 38.24; Lv 21.9; Js 7.15). Os
M. BOUTTIER únicos casos de cremação conhecidos são de
homens que Deus rejeitou de sua aliança (Js
MORTE 7.25; ISm 31.12; IRs 13.2; 2Rs 23.16ss; 2Cr

VT 34.6: ver IRs 16.18): sua incineração figura,


antecipadamente, o fogo eterno. Cremar um ca-
\. A fé de Israel é dominada pela — >. alian-
ça celebrada por Deus com Abraão e sua des-
dáver não é, para a Escritura, piedosa maneira
de render ao defunto os últimos honores pelo :

cendência (Gn 12. lss) e renovada no Sinai contrário, constitui uma abominação (Am 2.1),
(Ex 19). Fé nacional e comunitária, antes de u'a maneira execrável de livrar-se dêle (Jz
ser pessoal e individual. Ora, porquanto a alian- 15.6).
ça é assegurada para sempre ao povo eleito,
o óbito dos membros de Israel não constitui 3. Para onde vão os mortos uma vez sepul-
um problema particularmente aflitivo em vir- tados? São recolhidos na morada de seus pais
:

tude da aliança a perenidade do povo, está asse- — daí os sepulcros de família —


(Gn 15.15:
gurada, a despeito do caráter efémero de seus 47.30; Dt 31.16, etc), descem ao sheol, mo-
membros (SI 103.15-18). Abraão inquieta-se rada dos mortos, (Gn 37.35: "descerei à meu
pela morte enquanto não tem descendência (Gn filho até o sheol"), casa de ajuntamento de to-
15.2-3; 17.17ss; cf. Is 66.22); mas uma vez dos os vivos (Jó 30.23; ver SI 89.48s; Is
seguro de durar através de sua posteridade (cf 14.9ss, etc). A
fé israelita não especulou gran-
Dt 25.6; Davi e sua posteridade SI 89.20-38), demente sobre tal lugar infernal e insaciável
êle "morre em ditosa velhice, idoso e saciado (Pv 30.16), que a imaginação popular colocava
de dias" (Gn 25.8). O pai dos crentes, com numa caverna sombria (Jó 10.21), debaixo do
sua morte simples e absolutamente natural, com- oceano (Jó 26.5), fechada com portas (Jó
partilha a sorte normal de todos os homens 38.17; Is 38.10). Acreditava-se, entre os pri-
"segue pelo caminho de todos os da terra" (Js meiros israelitas, que ninguém sairia jamais do
23.14; IRs 2.2). "Porque certamente morre- sheol (Jó 7.9s; 16.22), que seus moradores se-
remos; somos como águas derramadas na terra parados de Deus não mais podiam servir e lou-
que não se podem juntar" (2Sm 14.14) "Olha!. vá-lo (Is 38.10ss; SI 6.6; 30.10; 88.11-13;
De um palmo fizeste meus dias minha duração
; 115.17), nem contar com a sua proteção (SI
nada é perante ti" (SI 39.5). "Bem fortes os 88.6) : "O sheol não te pode louvar, nem a
que passam de oitenta anos" (SI 90.10). O VT morte glorificar-te os que desceram ao sepul-
;

pulula de textos que falam da morte com igual cro não contam mais com a tua fidelidade" (Is
sobriedade pacificadora (Jó 7.7ss; Gn 25.17; 38.18. Observar que a Edição Revista e Atua-
:

200 MORTE

lizada no Brasil traduz a palavra sheol por é mais forte que o morte (Os 13.14). Esta fé.
"sepultura", furtando-se às conhecidas contro- inicialmente vacilante, afirma-se cada vez mais
vérsias). A
morte, vista nesta perspectiva de
exclusão da graça e da presença de Deus, deixa
para acabar —
no livro mais nôvo do VT
anunciando a ressurreição dos mortos a fim de

de ser o fim pacífico de uma vida farta de dias, serem julgados (Dn 12.2). Todavia é justo
para tornar-se espanto e castigo (Gn 3.3,19), notar que a ressurreição nunca foi artigo de fé
consciência generalizada de que a pena de morte entre os israelitas ortodoxos, sendo mesmo pos-
pronunciada contra os transgressores atingirá o sível ser membro do povo de Deus sem crer
povo inteiro. Os transgressores da Lei sofrem
a pena de morte, são banidos do povo eleito e
nela ( —>
Judeus) professada pelo partido
:

fariseu, era rejeitada pelos saduceus (At 23.6ss;


cortados da vida (ver Ex 31.14; Lv 20.2ss, Mt 22.23ss).
16,27; 24.16; Dt 13.5ss; 17.5; Js 7.25, etc).
Daí decorre que a morte e os mortos contami- NT
nam (ver Nm
9.6; 19.16). I .O pressentimento do VT, perceptível ape-
nas através de certas palavras ou gestos profé-
4. A
questão é, por consequência, se a morte
ticos (cf 2Rs 4.17-37; 13.21), tornou-se reali-
teria de fato a última palavra sobre os homens.
dade e foi confirmada pelo ministério, a morte e
Sem conseguir uma resposta clara, unívoca, ou a ressurreição de Jesus Cristo a morte foi der-
pelo menos geralmente admitida, o anun- VT :

rotada! Tal é a grandiosa mensagem no NT,


cia aquilo que só o evento da Páscoa de Cristo
poderá realizar e confirmar a derrota final da
:
do —>Evangelho (2Tm 1.10). Eis porque,
para a fé cristã, a ressurreição deixa de ser
morte. Constatamos, pois, que, nos limites do
ponto facultativo ou matéria de discussões como
VT, a Revelação vai suscitando pesquisas, es-
na Lei Antiga, mas torna-se absolutamente es-
peranças e certezas nas seguintes direções
sencial (ICo 15.2,12-19, 32, etc). Vale dizer
a) Notamos desde agora que o homem pode, que, desde a vinda de Cristo, não é mais lícito
pelo menos parcialmente, burlar a morte, per- falar de uma morte soberana, mas apenas de
petuando-se na sua descendência. Transmite sua uma morte vencida e desqualificada (ICo 15.
vida aos filhos ( —>
matrimónio) filho é
garantia de duração (Gn 29.32; 30.1; 19.
: 55) ela deixou de mandar como senhora na
:

sua casa, pois Jesus é quem possui as chaves


30-37; Dt 25.6; etc). (Ap Podemos mesmo, na alegria deste
1.18).
triunfo,proclamar que não mais pertencemos
b) Durante muitos séculos, as esperanças
à morte, mas que ela nos pertence (ICo 3.22).
messiânicas escatológicas nada afirmam no to-
cante à vida eterna, sugerindo antes um adia- a) Tal vitória começou a manifestar-se com
mento prolongado do vencimento da morte, ou a vinda de Jesus, quando o mundo viu a morte
seja, uma longevidade parecida à dos proto-
patriarcas (Gn 5.5,25; 9.28 etc).
vencida pela ressurreição e a —>
vida: então
a ameaça desta soberana deixou de ser pesada
(Lc 1.78; Mt 4.16), e, em certos casos, até foi
c) Sabe-se que Deus preservou da morte
largada de mão (cf Lc 7.11ss; Mt 9.18ss par;
determinados servos seus, recolhendo-os para si
II. 5 par; Jo 11.1.46; ver também Mt 8.29ss
ao final de suas vidas (Gn 5.21ss; 2Rs 2.5-13;
par; 27.51ss). E, do mesmo modo, recuará ela
cf Dt 34.5ss).
diante dos representantes de Jesus (Mt 10.8;
d) Deus defende os seus (Jó 19.25ss; Gn At 9.36-43; 20.7ss; ver também ICo 11.30:
48.15s; SI 119.154; Jr 50.34; etc), e os ga- Mc 16.18).
rante (SI 16.9ss) não permitirá, portanto, que
:

Tais expulsões constituem apenas o pre-


b)
os devore o sepulcro (SI 49.16), pois sua graça
lúdio, o eco remoto da vitória que Cristo, por
é poderosa para os tirar de qualquer pena, in-
sua própria morte, alcançou sóbre a morte-sobe-
clusive da pena de morte (ver SI 73.23ss). O
rana. Bem nossa era a morte que Jesus tomou
homem marchará, pois, à morte, convencido que sóbre si Jesus morreu por nós, em nosso lugar
:

também nela Deus manifesta sua presença (SI


(Mc 14.24 par; Rm 5.6,8; 2Co 5.14; lTm
139.8; Am
9.2), e seu poder de disputar à
5.10; IPe 3.18; etc). A
morte que Jesus pa-
morte suas presas (cf Is 53.8).
e) Implicava isso, naturalmente, na afir-
deceu sóbre a
—> resgate e a
— >—
cruz a fim de obter-nos o
reconciliação com Deus,
mação de que a morada dos mortos terminará era destinada aos homens em castigo de seus
quando Deus ordenar, devolvendo os mortos pecados (ver 2Co 5.21; Gl 3.13s): portanto,
(Is 26.19), que levantar-se-ão como os ossos a morte de Jesus é válida para êles, sob con-
da visão de Ezequiel (Ez 37). Ela vomitará dição de que êles, por sua vez, participem dela
suas presas como o peixe vomitou a Jonas (Jn
2.11). "Deus é verdadeiramente o Senhor que
(pelo —
2> batismo), ou seja, sejam sepultados
com Cristo (Rm 6.3-11; Cl 2.11ss,20; cf Gl
tira a vida e que a dá ;
que faz descer ao sheol 2.19). Quando tomou sóbre si nossa morte, Je-
e dêle faz subir" (ISm 2.6; cf Os 6.2). Deus sus entrou na morte, mas para tirar-lhe seus
;;

MORTE 201

direitos e para desfazê-latomando a seu cargo Evangelho, ainda que "vivo", está "morto" (Mt
—>
;

o pecado do mundo inteiro,, tomou sobre 8.22 par; Cl 2.13; I Tm 5.6), enquanto que em
si a morte do mundo inteiro, visto que a morte Cristo, mesmo "morto", está vivo (Jo 11.25s;
é o salário do pecado (Rm 6.21,23 7.5 8.6,13 ; ;
6.50). Nesta perspectiva de eternidade, é ques-
Gl 6.7s; Tg 1.15; etc). Logo, os que crêem tão de vida ou de morte eterna o morrer quanto
em Cristo têm, de ora em diante, seu fim por antes possível à primeira vida, a "êste corpo de
detrás morreram na Sexta-Feira Santa e.como
: morte" (Rm 7.24), isto é, renunciar-se a si
Cristo que a morte não pôde reter, passaram da mesmo para confessar a Jesus Cristo como nos-
morte para a vida (At 2.23; Jo 5.24-25; Cl sa perfeita vida (Fp 1.21 Cl 3.3). Quando nos
;

2.12). situamos neste nível da "vida" e da "morte",


o óbito físico não mais pode tomar posse de nós,
c) A certeza desta vitória era tão profunda,
mas simplesmente receber entrega de nós.
nos primeiros tempos da Igreja, que alguns até
pretendiam que a ressurreição final já tinha c) É, todavia, importante que a morte física
tido lugar (2Tm 2.18) e outros parecem ter se assuma com a coragem da Com
frequên-
fé.

pensado que certos Grandes da Igreja conhece- cia o NT


insinua que ela é unida misteriosa-
riam, ao morrer, uma assunção (ver Ap 11. mente à morte de Jesus. Quando se morre de
llss) para a maior parte, o mero fato de pro-
;

duzir-se óbitos na Fgreja era escandaloso (lTs


morte física ( —>
perseguir), morre-se "para
o Senhor" (Rm 14.8), isto é, que em nossa
4.13; cf ICo 11.30). Razão pela qual os após- morte repercute-se e completa-se a morte do
tolos têm insistido e voltado a insistir na neces- Senhor (cf Jo 16.2; Rm
8.36ss; ICo 15.31;
sidade de os cristãos demonstrarem sua vida já 2Co 4.7ss; Cl 1.24; IPe 2.18ss; 3.13ss; etc).
ressuscitada mediante o comportamento e a obe- A agonia de Jesus, com seus terrores e sua
diência (Rm 6.4-14; Cl 3.1-17; ljo 3.14 etc). paz (cf Mc 14.34ss par; Mt 27.32-50; Mc 15.
21-37; Lc 23.26-49; Jo 19.17-30), torna-se mo-
2. Se a morte foi vencida por Jesus Cristo, delo da agonia cristã até o ponto de terem mui-
cabe de fato perguntar porque aquêles que com tos ambicionado glorificar a Deus com uma
Cristo passaram a "ser uma mesma planta com morte semelhante à de Cristo (cf Jo 21.19; At
êle" (Rm 6.5) tenha ainda de morrer, e sobre- 21.13; Fp 1.20; 3.10).
tudo porque a morte não é tratada como uma
bagatela pelos autores do NT, e sim como o 3. O NT
não é explícito sôbre a maneira como
derradeiro inimigo por vencer (ICo 15.26; ver era concebida a sepultura. O judaísmo, para
Ap 20.14). conservar uma eterna fama a seus heróis desa-

a) Eis a razão para o NT, a vitória de


:
parecidos (IMac 13.29), introduziu uma vene-
Cristo está já firmada, porém ainda não mani- ração das sepulturas, citada com certa ironia por
festada em tôda sua amplitude quer dizer que Jesus (Mc 23.27-29; At 2.29). Mas daí a su-
a vinda em Cristo do —> ;

Reino de Deus, no
qual não mais haverá morte (Ap 21.4; Mt 11.
por que os autores do NT
desprezem os ritos
funerários, há um passo que não devemos fran-
3-6 par), é por enquanto escondida e imper- quear, especialmente quando temos em mente
ceptível. No intervalo entre o primeiro e o se- os detalhes do sepultamento de Jesus num se-
gundo advento de Cristo, coexistem o século pulcro virgem (Mc 15.42ss par). Privação de
presente e o século futuro, o mundo que passa sepultura ressente-se como injúria particular
e o mundo que não passará. Embora já membros (Ap 11.8ss); a preocupação de dar funerais
desta —>cidade celeste, os cristãos ainda an- estende-se àqueles que Sátão arrebatou (At
dam na carne ( —>
Homem), dentro do clima
nascido da revolta do homem contra Deus êles :
5.6-10). Em
At 9.37ss cabe-nos descobrir os
primeiros vestígios dos funerais cristãos.
são mortais (Rm 6.12; 8.11; 2Co 5.4) como
tôda a descendência do primeiro Adão (ICo 4. O NT, a uma voz, profetiza a ressurreição
15.22; Rm 5.12-19), da qual os cristãos fazem de todos os mortos quando da volta de Cristo,
parte. porém não há unanimidade para declarar onde
se encontram os mortos até isto acontecer.
b)Entretanto esta morte, niveladora, igua-
litáriae comum (ver, contudo, Jo 21.2-22; a) De modo do NT opi-
geral, os escritores
ICo 15.51; lTs 4.15-17), objeto do pânico dos nam —morada
com
o judaísmo —
que estão no Ha-
pagãos (Hb 2.15; Rm
8.15), não mais é te- des, na dos mortos, ou seja, nos infer-
mida pelos cristãos (Rm 14.7-8). Os cristãos nos mas o Hades não implica de modo nenhum
temem sim a "segunda morte", que excluirá não
da vida temporal, mas da vida eterna (Ap_2.ll
a —>
;

geena. O Hades situa-se no centro da


terra (Mt 12.40), semelhante a um cárcere
20.6,14s; 21.8). Pois para a fé, as palavras: (IPe 3.19; cf Ap 20.2,7) de portas trancadas
vida e morte não estão relacionadas ao óbito (Mt 16.18; Ap 1.18). Sem criticar esta pri-
temporal, mas quem situar sua vida fora do meira opinião, Jesus segue outra, de conformi-
202 MULHER

dade com a qual este lugar dos mortos divide-se há de ressuscitar é o mesmo que morreu (Cf
em duas câmaras, uma para os justos, outra Lc 24.39s; Jo 20.26ss). A despeito de os ju-
para os injustos; seio de Abraão a primeira e deus da Diáspora ensiná-la unanimemente, o NT
lugar de tormentos a segunda (Lc 16.22ss). não deixa infiltrar-se em parte alguma a idéia
Diverge êste parecer da doutrina corrente do grega da imortalidade da alma. Porque ? Primei-
purgatório, porquanto entre ambas moradas in- ramente porque o homem não tem, em si pró-
terpõe-se um abismo intransponível (16.26). prio, a garantia da existência (só Deus é imor-
Opina-se amiúde que o paraíso citado em Lc tal lTm 6.16) em segundo lugar, porque, con-
;

23.43 confunde-se com o seio de Abraão e com vencido que a salvação não tolhe mas transfor-
os eternos tabernáculos (Lc 16.9). Cabe, porém, ma a criação de Deus, o NT não imagina uma
perguntar se não deve traduzir-se o texto em existência eterna alhures mais que numa nova
foco por "Em verdade, em verdade, eu te digo
: terra (2Pe 3.13) e dentro de um corpo novo
hoje (= desde esta cruz, onde todo poder pa- (ICo 15.35ss). O ensino bíblico conhece a
rece ter-me sido arrebatado) que tu estarás co- idéia dualista da incompatibilidade entre mate-
migo no paraíso", ou, livremente, ainda tenho rial e espiritual pelo contrário, êle proclama
:

poder sobre a vida e a morte eternas, pois te a encarnação (Jo 1.14). Renunciar ao realismo
prometo a vida, cobrando assim a palavra "pa- da ressurreição em favor do espiritualismo da
raíso" sua significação escatológica exatamente imortalidade da alma, equivale, implicitamente,
como em Ap 2.7. afirmar que Jesus Cristo não ressuscitou (ICo
15.13ss) e, portanto, que os homens permane-
b) Entre a morte e a ressurreição, Jesus des-
não certamente cem, para sempre, presos no temor e na ser-
ceu, por sua vez, aos infernos :

para esperar aí o fim do mundo, mas para pre- vidão (Hb 2.14-15).
gar também aí a libertação dos cativos (IPe /.-/. VON ALLMEN
3.19; 4.6) e arrebatar à morte (a Satã?) as
chaves da morada (Hb 2.14; Ap 1.18). Quem
considera a soberania de Cristo, poderoso para
MULHER
dar sua vida e para reavê-la (Jo 10.18; At AT
2.24), sente-se levado a imaginar a descida ao
Hades como o pendente neotestamentário do O AT, em certo número de passagens, reflete
episódio da toma da arca pelos filisteus (ISm as idéias correntes em todo o mundo oriental
5-6). Depois de Jesus descer desta maneira às sôbre a mulher. A mulher é considerada muito
regiões inferiores da terra (Ef 4.9), como ima- mais uma coisa que uma pessoa e ocupa, na so-
ginar ainda algum lugar no mundo que escape ciedade, um lugar inteiramente subordinado. É
da soberania de Cristo? (Fp 2.10-11). um sersempre sob tutela: antes do casamento,
seu pai é o amo (ISm 18.17 por exemplo) de- ;
c) Eis porque "os que morrem no Senhor"
pois, seu marido ao morrer êste, fica sob a
;

(ICo 15.18; lTs 4.16) não mais podem ser


tutela do filho mais velho. Somente goza de
separados dêle (Rm 8.38-39) sem egoísmo (Fp
:
certa consideração como mãe dos filhos que
1.24ss) é possível, pois, desejar "partir e estar deu à família.
com Cristo" (Fp 1.23; 2Co 5.6-8). Mas onde Esta tendência acabou predominando no ju-
é que se está com Cristo? No inferno? (Rm daísmo tardio.
10.7). Na Jerusalém? debaixo do altar? (Hb Não obstante, o AT
conhece outra tendência
12.22s; Ap 6.9) Ante o trono celestial? (Ap de apreciação à mulher. Observemos as mulhe-
7.9) O essencial não está em situar o lugar, res participarem de certas manifestações públi-
mas em saber que, enquanto o Hades não soltar cas, especialmente de festas religiosas popula-
os seus presos (Ap 20.11ss), os que morreram res (Dt 12.12; 2Sm 6.19), em danças sagradas
em Cristo não estão abandonados por êle, lon- (Jz 21.21), nos banquetes sacrificiais (ISm 1.
ge dêle, embora ainda não plenamente felizes 4). Possuem elas o direito de assumir certas
(Ap 6.9ss), ainda não revestidos do corpo de atribuições no santuário (Ex 38.8). No plano
glória próprio da vida eterna (ICo 15.35ss). jurídico, as filhas têm o direito à herança pa-
d) A morte é comparada, às vezes, ao sono terna, na ausência de filho varão (Nm 27.8).
(Mc 5.39 par; Jo 11. lis; ICo 15.18; lTs O AT assinala o importante papel desempe-
4.13s; 5.10; cf Mt 25.5). Eufemismo? idéia A nhado por certas mulheres influentes
— juízes —
é exatamente a mesma a) o sono é coisa tem-
: e profetisas dá como exemplo outras,
e
poral, terminará com o despertar; b) a identi- mais modestas, propostas como modêlos para
dade do que dorme não muda no sono incons- : nossa fé (Míriam, irmã de Moisés: Ex 15.20;
ciente, permanece idêntico a si mesmo. A
êle Débora: Jz 4 e 5 Hulda: 2Cr 34.22ss; Raabe:
;

ausência, em o NT, da expressão "mortalidade Jz 2.9, cf Hb 11.31; Rute: Rt 1-4; a viúva


da alma", não implica, pois, na crença da su- de Sarepta: lRs 17.12; a Sunamita 2Rs 4.8ss» :

pressão do ser humano na morte aquêle que


;
etc).
MULHER 203

Emconclusão, o AT
proclama, sobretudo nos intercessão (lTm 5.5). Finalmente, parece fato
dois primeiros capítulos do Génesis, a unidade provado que a Igreja primitiva tenha tido suas
do casal humano, segundo a vontade do Criador. mulheres profetisas (cf At 21.9).
O
ram
— > homemimagem
criados à
e a mulher, conjuntamente, fo-
de Deus e em conjunto
De um modo geral, Paulo afirma claramente
a igualdade do homem e da mulher "em Cristo",
recebem a missão de reinar sobre a criação (Gn o que implica reciprocidade no plano sexual
1.25-28). A mulher foi criada ao lado do ho- (ICo 7.4) e mais completa igualdade diante
mem, por ser uma auxiliar semelhante a èle da graça e do chamado do Espírito Santo (Gl
(Gn 2.18). Não é ela, portanto, inferior ao 3.28; ICo 11.11-12).
homem, mas sua parceira, sua "face a face", Muito embora seja sustentada esta verdade
que em sua especificidade completa-o e põe fim fundamental, Paulo não foi unicamente revolu-
à sua solidão (Gn 2.23). Para unir-se a ela. cionário. Parece que, em certa forma, o cris-
o homem deixará o que tem de mais caro e tianismo primitivo deveria frear certo espírito
mais íntimo no mundo, seu pai e sua mãe (Gn de emancipação da cultura helénica. Isto escla-
2.24). rece, no plano social, Paulo não cessou de de-
fender determinada hierarquia dos sexos, donde
NT decorre uma atitude peculiar às mulheres (mu-
lheres silenciosas e veladas nas assembléias ICo :

1. Se tivermos em mente até que ponto o 11.5-6 e 14.34). Trata-se aí menos de afirma-
judaísmo havia regredido com relação ao ensino ções de princípio do que de regras de decoro as ;

de Gn 1 e 2, a atitude de Jesus com respeito às exortações do apóstolo eram válidas essencial-


mulheres parece, desde o começo, revolucio- mente com respeito à ordem e ao bom testemu-
nária. nho entre os pagãos (cf IPe 2.12). Trata-se,
De fato, na medida em que o amor de Jesus também, da necessidade de refrear uma falsa
se manifestou especialmente com relação aos pe- emancipação das mulheres, que refletem as apís-
tolas posteriores (lTm 2.11ss; 3.14; 5.13).
queninos, aos pobres e humildes, é normal que
se tenha também dirigido às mulheres. Trata-se, 3. Se o NT afirma a igualdade completa entre
porém, mais do que isto. Jesus parece, de iní- o homem mulher diante da graça, a unidade
e a
cio, colocar a mulher num pé de igualdade com indissolúvel do matrimónio, que encontra sua
o homem igual diante do apêlo da graça, igual
:
expressão mais perfeita na únião de Cristo com
diante do socorro trazido por Jesus (Jo 4.7ss; a Igreja (Ef 5.21-33), não desconhece também
Mc 5.23ss; Lc 10.38-42). Se as mulheres não a especificidade da mulher. As exortações en-
foram enviadas, como os discípulos, com o dereçadas às mulheres são diversas das diri-
poder de fazer milagres, elas possuíam, no vas- gidas aos homens. Há um modo de ser e de
to círculo dos discípulos, uma missão particular apresentar-se próprio da mulher. Porém êste
de serviço, de assistência e acolhimento (Lc modo de presença, como todas as coisas, foi
8.2; Mc 15.40s). Com efeito, foram elas as pervertido pelo pecado. As relações entre ho-
primeiras a testemunhar a Ressurreição (Mc mens e mulheres foram turvadas e deformadas,
16.1; Jo 20.1,17). a autoridade do marido tornou-se poder domi-
nador, abuso de fôrça a submissão da mulher
Como sinal da importância dada por Jesus ;

tornou-se capitulação da vontade própria e es-


às mulheres, notemos as numerosas persona-
gens femininas que figuram nas parábolas.
cravidão. O pecado produz uma espécie de
exasperação, por um lado, da modalidade mas-
culina, e, por outro lado, da modalidade femi-
2. O livro de Atos e as epístolas mencionam
numerosas mulheres empenhadas, de uma forma nina.
ou de outra, no serviço do Evangelho (At 4.12; A mensagem do NT
altera tal situação, ope-
12.12; 16.13ss; 17.4,12; Rm 16.1,3,12,15; ICo rando um
restabelecimento radical interno re- :

1.11; Cl 4.15; 2Tm 1.5; Fp 4.2-3). Tais tex- valoriza a modalidade de cada um, restituindo-
tos não nos permitem definir o papel exato que lhe sua verdadeira medida, aquela que é dada
elasdesempenharamm no seio da Igreja. Algu- em Cristo, e que é a única que pode conduzir
mas eram, sobretudo, a alma de uma família ou à plenitude do humano. Nessa nova perspectiva,
de um núcleo cristão, reunindo-se
nas casas o homem compreende que êle não tem autori-
hospitaleiras. Outras exerciam um
ministério dade em Cristo, sem amor, sem o cuidado e a
mais preciso e regular, como Febe, diaconisa atenção para com sua parceira (Ef 5.28s). A
da Igreja de Cencréia (Rm 16.1), Priscila, que mulher reencontra o verdadeiro significado da
parece ter sido a mestra de Apolo (At 18. submissão, que não é feita de resignação e de
24-26) e também quiçá os "presbíteros" femi-
; abdicação, mas que deve ser sinal da submissão
ninos, de que fala Tt 2.3ss. Pode-se mencionar, de Cristo, submisso, até à morte, ao Pai e aos
também, o papel das viúvas, algumas das quais homens, seus irmãos (Fp 2.5-9). Esta submis-
parecem ter tido um verdadeiro ministério de são, segundo Cristo (Cl 3.18; Ef 5.21), é a
;

204 MULTIDÃO

submissão de um ser livre e responsável, que sertos e às margens do lago. Jesus convoca a
não se serve de sua liberdade como de uma turb e despede-a, ensina-lhe com esperança
presa a ser arrebatada, mas para agir como desesperada (Mt 13.13), obrando perante ela
"servo". Cabe, pois, à mulher, na especificidade milagres reveladores do Reino, embora sempre
de seu ser, testemunhar mais particularmente com a máxima discrição. Jesus ordena àqueles
de tudo o que constitui a substância da ética que cura de se calarem, mas a multidão é in-
cristã. formada de tudo e tudo ecoa aos quatro ventos.
H. MEHL-KOEHNLEIN A multidão presencia a autoridade messiânica
de Jesus em face dos fariseus e dos principais
da Galiléia e de Jerusalém, bem como em frente
MULTIDÃO de Herodes. Herodes teme a multidão (Mt 14.
5), sabendo que ela é testemunha quotidiana
A multidão é o conjunto de gente que o acaso
da justiça de Deus. Depois do Pentecostes, a
das circunstâncias reúne, que Jesus e os após-
tolos (e, mediante êles, o divino amor) pro-
mesma "multidão dos crentes" será a testemu-
nha, perante o povo e as autoridades, do cumpri-
curam atingir com sua pregação, e que lhes
corresponde com variado interêsse e diferente
mento das profecias do VT na pessoa de Jesus
Cristo.
reação. Do ponto de vista étnico, social, reli-
gioso, teológico, a turba-multidão é uma força Porém, o testemunho da turba não é firme
contingente, dificilmente definível. Os escritos e constante à tôda prova, mas essencialmente
narrativos do NT
(Evangelhos, Atos e Apoca- humano, isto é, propenso à dúvida e à negação,
lipse) mencionam-na a todo momento:
ela é o impressionável às influências de cima, frequen-
ambiente de cada dia, amado e aceitado, de temente sem inteligência (Jo 7.20; 12.34). No
Jesus e dos Apóstolos ela é, no reino da gló-
;
momento decisivo, perante Pilatos, ela segue o
ria, o coro infinito dos remidos (Ap 7.9; 19.1). partido de seus chefes e depõe contra Jesus, Mt
Pelo contrário, as epístolas não mencionam a 27.17 (coisa digna de nota: ela é chamada,
multidão a sua linguagem, teologicamente mais
;
nesta hora suprema v.25, de "povo", como se
definida, aponta não para valores indeterminados sua decisão homicida lhe devolvesse o caráter
como a turba-multidão, mas para valores defi- de "povo responsável", tantas vêzes proclamado
nidos como —> Israel, a —> Igreja, os cren- pelos profetas). Veremos também nos Atos, a
partir do capítulo 14, a multidão de Listra, de
tes, os incrédulos, etc.
Filipos, etc, dar testemunho contra Paulo e
A multidão não é o povo judeu como tal, Silas e aderir às potências diversas que a escra-
embora as multidões mencionadas pelos evan-
vizam (por exemplo: excitação dos judeus, ve-
gelhos sejam, de fato, sempre israelitas e bem
neração imperial, tradição religiosa local, etc).
representativas do povo. A
multidão é o povo,
A multidão é sempre uma testemunha impre-
espontâneo, não responsável, direta e pessoal-
visível, dividida em si mesma (Jo 7.43), mas
mente humano. A multidão não é este grupo
que o Evangelho de João chama "os ju-
deus" êstes, sim, são responsáveis e instruídos
;
—> nunca indiferente ao passo de Jesus e seus Após-
tolos.

e, por sua obcecação, representam bem o Israel


Os evangelhos, os Atos e o Apocalipse, fa-
oficial e o —>
mundo êles têm, para com
;

a multidão, um desprêzo profundo "Esta plebe :


lando da multidão, nos retratam a realidade dos
homens tal como Jesus a encontrou, despida de
maldita, que nada sabe da Lei" (Jo 7.49). A qualquer reflexão teológica anterior, e tal como
multidão tampouco é a massa dos incrédulos é atingida pelo apêlo a adorar doravante, ao
pois é composta de tóda classe de gente: fari- Senhor da glória. Na multidão é que se encon-
seus (Lc 19.39), publicanos (Lc 5.29), discí- tra o desconhecido, o risco e a promessa do
pulos (Lc 6.17) robustos e enfermos, fiéis e — ^> "próximo", incógnita, promessa e risco,
colocado por Deus no caminho de Jesus.
ingratos. A
multidão de pagãos que rodeará
Paulo e Bernabé, não é tipicamente pagã, mas
simplesmente humana. Quando ela é formada
C. BIBER
por cristãos, o texto dirá expressamente "a mul-
tidão dos discípulos", ou "dos crentes", por- MUNDO
quanto a Igreja, embora possa ser indefinida
numèricamente, nunca o é na responsabilidade. VT
Jesus ama
a multidão e tem compaixão dela, O AT não fornece a menor exposição teó-
porque constata que o povo de Deus tem se rica ou científica que possibilite reconstituir a
tornado uma grei sem pastor, condenada a concepção que os antigos israelitas tinham do
errar e perecer. Ela rodeia Jesus em todo mo- mundo. Só no relato da criação do mundo (Gn
mento e em todo lugar, até o ponto .de Jesus 1) temos alguma coisa concreta. Devemos, por-
procurar esconder-se dela. Mas quando Jesus tanto, analizar os mais diversos dados (por
evita os povoados, a turba segue-o até aos de- ex. Gn 28.10-15: a escada de Jacó insinuando
MUNDO 205

as proporções diminutas do mundo) suscetíveis Deus fixa aos mares um


primitivo (Jó 26.12).
de contribuir à reconstituição dessas concepções. que não podem violar (Pv 8.29). Os ho-
limite
Constataremos que elas são, em conjunto, coe- mens podem alcançar o firmamento mediante
rentes e parecidas a tudo quanto encontramos uma torre bastante elevada (Gn 11.4). A afir-
nos povos vizinhos, pois Israel participava, de mação de Deus Criador encontra-se na remota
um modo geral, da civilização ambiente. Nos antiguidade, mas somente a partir do segundo
grandes textos mitológicos de Ras Shamara, Isaías começa a desempenhar papel teológico.
bem como na documentação que sôbre a mito- Além de afirmar que Deus é Criador, o segundo
logia fenícia nos conservam os clássicos gregos, Isaías dá detalhes bem aptos a salientar o_ po-
aparece suficientemente claro qual devia ser a der e a bondade de Deus (Is 40.12ss, 21ss; etc).
mitologia dos antigos cananeus ela era análoga,
:
Os israelitas, posteriormente, continuarão fa-
se não totalmente semelhante, à dos povos meso- lando no mesmo espírito. Porém, nos textos
potâmicos. Mitologia sumamente frondosa, onde poéticos, encontramos novamente muitas alusões
não faltam alusões às origens e constituição do mitológicas, atestando que os israelitas haviam
mundo pois suas indicações coincidem com
: tido idéias bem próximas das reinantes em Ca-
tudo quanto lemos nos variados textos poéticos naã ou na Mesopotâmia (Is 51.9: a luta con-
do VT. Nelas está, o ponto de partida do tra- tra o monstro das origens, cf Is 27.1; SI —
balho teológico de Israel, o qual, com o andar 74.13; Jó 38.4: importante quadro da criação,
dos tempos, torna-las-á mais simples e mais igualmente traçado por Pv 8.22ss, que o puri-
afinadas. fica das alusões mitológicas. Cf também Jó 26.

No relato sacerdotal de Gn 1, temos a con- 7-14). Mas modernamente, os israelitas colo-

clusão do pensamento teológico, não o seu ponto caram, acima do firmamento, a morada e o tro-
de partida. Com êste documento devemos, con- no de Iavé (Ez 1.22-26; 10.1; SI 11.4; Is
tudo iniciar o nosso estudo, pois ele é o mais 66.1). Conforme Gn 28.10-15 comunicações en-
"científico" que possuímos. Contém, subjacen- tre céus e terra são possíveis, mas em Jó 1.7
não se fala mais de meios naturais para atingir
tes, as concepções cananeias e mesopotâmicas,
o céu. Para os israelitas —
ponto que convém
embora repensadas, ordenadas e purificadas de
qualquer ilusão mitológica atentatória à mages- definir bem ! —
a terra não é o centro de um
tade de Iavé, verdadeiro Deus e único —>
Cria-
dor. Esta narração condensa, clara e coerente-
universo organizado só ela é que existe verda-
:

deiramente, os astros apenas existem em função


mente, a visão do mundo que outros textos for- dela. Muito mais tarde, influenciados pelos pen-
necem também, mas fragmentàriamente. No sadores e físicos gregos, os judeus concebem a
princípio só havia uma caos líquido. dos Um noção de um universo cósmico com a terra por
primeiros atos de Deus foi assentar, no meio centro real e geográfico. O esforço teológico de
deste caos, a terra chata e protegida por um Israel procurou tirar todo vestígio dos elemen-
firmamento sólido. Debaixo desta abóboda, as tos mitológicos que infestavam as cosmogonias
montanhas surgiram quando as águas, prêsas antigas: pois qualquer outro poder divino era
nesta redoma, terminaram de escoar e reuni- uma concorrência a Iavé, uma tentativa para
ram-se nos mares. As águas que ficaram acima diminuir sua glória e seu poder. Porém não foi
da abóboda celeste podem cair sôbre a terra, mudada a idéia geral que os semitas tinham do
em forma de chuva, através de aberturas apro- mundo; teologicamente corrigida, não contra-
priadas podem também irromper em torrentes
;
riava a doutrina do Deus Criador, Único, e Or-
tumultuosos quando Deus abre todas as com- ganizador de tudo quanto há na terra, no mar e
portas do céu, como acontecerá no dilúvio. As debaixo do céu.
águas prêsas debaixo da terra podem brotar e A noção um mundo muito limi-
israelita de
dar origem às preciosas fontes da Palestina, tado, do Mediterrâneo ao planalto do
restrito
muito cobiçadas porque infelizmente raras. No Irã, das montanhas do Cáucaso ao deserto ará-
interior do firmamento, sôbre caminhos que bico, favoreceu indiscutivelmente à formação
Deus traçou, circulam sol, lua e estrelas. Êstes,
a despeito de certas imagens (SI 19.6), não
progressiva do conceito de um —>
Deus do-
minador, soberano de tôdas as coisas, ou seja,
passam de meros luzeiros ou luminárias, embora de um Deus único e exclusivo. Quando, poste-
considerados, durante séculos, como seres divi- riormente, esta visão cósmica se dilatou, a idéia
nos independentes por hábito, o relato sacer-
:
de Deus desenvolveu-se também até abarcar o
dotal da criação fala do "exército dos céus" (Gn universo.
2.1). Ao lado deste texto tão conscientemente G. NAGEL
monoteísta, encontramos numerosas alusões a
concepções mitológicas anteriores, quer reminis-
cências, ou simples imagens arraigadas na lín-
NT
gua popular. Deus, por exemplo, rachou o mar Para os autores bíblicos bem como para a
em dois, como Marduc, o deus babilónico, ra- maioria dos antigos, o mundo constava de três
chou a deusa Tiamat, personificação do abismo partes : mundo terestre, mundo superior e mun-
.

206 MUNDO

do subterrâneo. Fp 2.10 enumera-as na se- é simplesmente o lugar onde os mortos se con-


quência famosa: "Ao nome de Jesus, todo joe- gregam, embora, para os maus, possa tornar-se
lho se dobra, dos seres celestiais, dos sêres ter- um lugar de tortura (como para o rico: Lc
restres e dos sêres infernais". 16.23ss). Depois de morrer ( —>
morte), os
bons gozam de certa felicidade, mormente "os
1. O mundo terrestre. No centro da terra
recolhidos no seio de Abraão". Nada indica,
encontra-se, conforme Ez 5.5, a cidade santa. aliás, que Abraão está no céu, já que não está
Jerusalém, predestinada, nas esperanças judias,
subtraído à vista dos maus.
a tornar-se o centro do mundo nôvo. Pales- A
tina é a terra prometida, ou, simplesmente, "a Inversamente, certos textos apócrifos judeus,
terra" (Alt 5.5: aliás êste têrmo aqui reveste por exemplo Enoc II, colocam no céu o lugar
um sentido sobrenatural). de aprisionamento de certos anjos caídos e con-
denados. A epístola de Judas (13) e a segunda
Os escritores bíblicos conheciam, além da de Pedro (2.4) parecem aprisioná-los no "Tár-
Palestina e das vizinhas terras dos filisteus, fe- taro".
nícios, sírios e egípcios, muitos outros países
Entretanto, profetas e salmistas já tinham
mais remotos. Mencionemos apenas que israeli-
proclamado revelações que dão aos defuntos
tas exploraram o Cáucaso, a Etiópia, Tarsis
piedosos esperanças de um destino mais glo-
(Espanha ou Cartago?), as índias e a China (a
rioso ao final dos temnos. O livro de Daniel
terra dos Sinim Is 49.12). O horizonte do
:

até promete a ressurreição, prelúdio dos tem-


VT abarca, pois, a Ilíria, a Itália, a Espanha,
pos duradouros da felicidade criada para o jus-
isto é, tôda a terra habitada conforme as idéias
to (Dn 12.2; cf Macabeus II. 7. 14; 4Ed 7.
gregas tradicionais.
32ss). Paralelamente a estas esperanças, a li-
A
terra foi criada por Deus para servir de
teratura chamada "da Sabedoria" ensina, de
habitação às plantas, aos animais e aos homens. vez em quando, o ideal grego da imortalidade
Entretanto, muitos autores do NT, especial-
da alma (Sab 3;5;15;2). A primeira destas
mente Paulo, pressupõem que a terra, conforme
Gn 3.17, fôra maldita por causa da transgres-
concepções prevaleceu em o
ção,—> ( NT
Reden-
Ressurreição). Para São Paulo, o
—>
são do homem. Concepções judias, conservadas Hades já fica derrotado, em princípio, pela
nos textos apócrifos, representam os animais ressurreição de Cristo. A
própria morte será
gravemente atingidos em consequência da que- aniquilada ao fim dos tempos (ICo 15.26), não
da de Adão (ver, p. ex., o "Livro de Adão e de deixando isso qualquer lugar para um "infer-
Eva"). Paulo comparte esta opinião (Rm 8. no". Contudo, o Apocalipse de João conserva
19-20). O próprio Jesus Cristo mostra-se con-
vencido de que a criação, no seu atual estado,
um lugar de penas eternas para o
e seus cúmplices.
Diabo —>
não é o que deveria
por um
ser ( —> Diabo), embora
ato de fé extraordinário descobrisse a 4. O mundo considerado no seu conjunto. O
terra de Deus debaixo da triste realidade de- VT costuma designar o universo com a expres-
caída (Mt 6.28-29). A escatologia cristã e os são "o céu e a terra" (também, mais exatamen-
anúncios de um mundo nôvo não podem tor- te, "os céus e a terra"). Encontramos esta ex-

nar-se inteligíveis senão à luz do conceito da pressão também em o NT (2Pe 3.13: profetiza
queda universal. a criação de novos céus e nova terra; cf Ap
Notemos, finalmente, que o mundo terestre 21.1). Às vêzes o NT, dando à palavra "terra"
é chamado, com frequência, "o mundo" simples- o sentido de "terra firme", fala de "céu, terra e
mente (Jo 11.27; Mt 4.8; Lc 4.5). Também mar" (At 4.24; 14.15; Ap 10.6). Outras vêzes,
"vir ao mundo" 'significa "encarnar-se na ter- emprega o têrmo kosmos (mundo), falando do
ra" (Jo 1.9; 16.21; etc), exatamente como em universo (At 17.24; ICo 3.22: aqui mundo
nossas línguas neo-latinas. Ademais, "o mundo" engloba também os anjos, cf ICo 4.9,13; 6.2-3).
designa,com frequência, a gente, os homens Frequentemente usa-se o conciso "ta panta",
(como em nossa expressão "todo o mundo") :
como em alemão das AU, "o tudo", "tôdas as
coisas" (Ef 1.10; 3.9; 4.6; ICo 8.6; 2Co
o evangelho pregado "a todo o mundo" é o
evangelho pregado a tôda a gente (única boa 5.18). E ICo 15.28 expressa a suprema espe-
versão do texto c 14.9). rança com estas palavras "para que Deus es-
:

teja presente totalmente no Universo" (habi-


2. O mundo superior — ^> Céu.
tualmente tão mal traduzido por para que Deus
:

seja tudo em todos", versão tão inábil como


3. O mundosubterrâneo. O Sheol dos he- errada)
breus, o Hades dos gregos. Não devemos re- Todos os autores bíblicos dão por suposto que
presentar tal mundo como sendo necessàriamen- o mundo, em conjunto, é criado por Deus
te um lugar de sofrimentos e tormentos, ou o
"inferno" da teologia popular cristã. O Sheol
( —> criação). O cristianismo vê em Cristo
a Palavra criadora (Jo 1.1-4; Cl 1.16-18). A
MUNDO 207

criação ex nihilo é evidentemente ensinada por lidade criada, no mesmo sentido que o VT
João (1.1-3) e por Paulo (ICo 8.6; Rm presta às expressões "tôdas as coisas", ou "o
11.36). céu e a terra" o mundo foi feito pelo Verbo
:

(pela Palavra: Jo 1.10; Hb 1.2; 11.3); êle


5. O
mundo considerado escatològicamcnte. A e tudo quanto nêle existe (At 17.24). Tudo é
Bíblia não concebe o mundo como espacialmente vosso... seja o mundo, seja a vida, seja a
infinito. Mas será êle infinito temporalmente? morte... (ICo 3.22). Não há ídolos no mundo
De modo nenhum, em virtude de sua própria (ICo 8.4), não possuem êles realidade
pois
essência o que Deus criou, pode também des-
:
alguma. aproveitará o homem se ganhar o
Que
truir. Examinado à luz do NT e de grande par- mundo inteiro e perder a sua alma? ( a sua =
te dos escritos proféticos do VT, o nosso mun- vida: Mt 16.26).
do está, desde muito tempo, maduro para o
Em segundo lugar, sendo o homem a criatura
aniquilamento. Deus, todavia, afasta o momento
por excelência, na qual é manifesta, mais clara-
fatal para dar aos pecadores o tempo de se arre-
mente, a intenção de Deus Criador, e que, de
penderem. Porém, o fim está perto 2Pe esta- :
certa maneira, é o porta-voz da criação perante
belece um paralelo entre a destruição do mundo
Deus, o mundo designa, naturalmente, a reali-
pelas águas (nos^dias de Noé) e a destruição
dade humana, o mundo dos povos, o mundo
do mundo atual pelo fogo (3.5ss), para dar
histórico amoldado pela atividade do homem.
lugar a um mundo nôvo. Portanto, esta epísto-
Tampouco entra aqui algum matiz depreciativo.
la conhece, em rigor de lógica, três mundos
em NT A Luz veiu ao mundo (Jo 1.9), significa sim-
sucessivos. Mas para o pensamento do
plesmente :apareceu na história Deus amou ;

seu conjunto, os dois primeiros mundos (o an-


tanto ao mundo (Jo 3.16) Jesus veiu ao mun-
terior ao dilúvio e o nosso) formam um dístico
;

do (Jo 11.27; lTm 1.15); a rejeição dos ju-


complementar, denominado o "aioon atual" ou
deus trouxe a reconciliação do mundo (Rm 11.
o presente século, por oposição ao mundo fu-
turo ( —>
Tempo). A característica do cris-
tão é poder êle, desde já, em virtude do
15), isto é, de todos os povos.

—> Espírito Santo e da filiação à Igreja,


formar parte do mundo futuro, antecipada e
2. Sendo o mundo essencialmente dos homenst
criaturas rebeladas contra Deus, o têrmo (em
misteriosamente. virtude de uma transformação semelhante à da
Quanto ao "aioon" futuro, é excusado dizer palavra —> carne) carregou-se de uma sig-

que nós não podemos representá-lo senão me- nificação pejorrativa: a humanidade revoltada
diante imagens emprestadas ao nosso mundo, e, contra Deus, o conjunto da realidade humana
portanto, muito insuficientes (Ap 21 e 22). Mas. enquanto é qualificada por esta rebelião e de-
o pensamento, guiado pela revelação bíblica, votada ao juízo.
consegue, pelo menos parcialmente, traçar, ao O mundo, portanto, é este mundo por ter-se
modo de lugares geométricos, certas linhas que fechado o homem à sabedoria de Deus para
permitam situá-lo. O mundo futuro, como o seguir a própria sabedoria, recusando conhecer
nosso mundo atual, comportará uma parte vi- a Deus e receber dêle a vida (Jo 1.10; ICo
sível, da qual serão banidos o pecado e a corrup- 1.20). Tal recusa pode tomar a forma de racio-
ção em todos seus aspectos, onde não mais sub- cínio filosófico ou de ideologia, mas manifes-
sistirão as barreiras dolorosas que separam os ta-se também na própria forma religiosa. Pa-
"vivos" e os "mortos", onde Deus reinará de gãos e judeus, por igual, são tributários da sa-
maneira incontestada. bedoria do mundo, os pagãos imaginando um
/. HÊRING mundo regido pela razão, onde seriam êles os
senhores absolutos dos problemas da existência,
O "mundo".Únicamente em o NT vem a e Deus, uma hipótese supérflua; os judeus exi-
ser esta palavra um têrmo propriamente teoló- gindo de Deus que revele o seu poder e os salve
gico {kosmos, aliás, não figura no velho texto da maneira sonhada por êles. Na primeira e na
hebraico, pois os Setenta traduzem por kosmos segunda atitude declara-se idêntica rebelião con-
uma palavra hebraica que significa a "extensão tra Deus (ICo 1.22). O mundo veio a ser o
habitada", como por ex. em SI 90.2 ou em Is que é, pelo pecado do primeiro homem (Rm
14.17). O uso do têrmo na descrição ou na 5.12); Adão ambicionou ser como Deus: re-
doutrina da salvação, está subordinado à con- belião de orgulho de concupiscência também
;

cepção que no VT se fazia da relação entre (ljo 2.17; Tt 2.12) cobiça de possuir a vida
Deus e a criatura, embora a palavra kosmos sem a receber de Deus.
:


Cabe aqui observar
que não devemos tachar sem motivo de mun-
deva a sua origem à reflexão teológica do am-
biente imediato. danos, divertimentos como a dança, o esporte,
o cinema, etc. pois êstes tornam-se maus, so-
:

1. O mundo, em primeiro lugar e sem qual- mente na medida em que se fazem os sucedâ-
quer matiz depreciativo, é o conjunto da rea- neos da graça e por tais são aceitos. Cumpre
208 NAÇÕES

lembrar, também, que o fariseu, satisfeito de mentira das promessas mundanas por outra
;

não ser "como os demais homens", não deixa parte, a salvação gratuita trazida por Jesus li-
de ser um mundano de outra espécie. berta o crente do desejo desesperado e ímpio
O
mundo é frequentemente apresentado como de procurar a vida por si mesmo; desde já o
Potestade pessoal, que possui ao homem. Assim dom de Deus está ao alcance da fé a vitória :

como há um Espirito de Deus, há um espírito que vence o mundo é a nossa fé (ljo 5.4). A
do mundo, que cega as inteligências (ICo 2.12). exemplo de Cristo, os que crêem nêle não são
Há elementos do mundo (Gl 4.3-9; Cl 2. dêste mundo; a Igreja que deve sua existência
20-21), ou seja, poderes que mantêm o homem a Cristo e nêle se fundamenta, é, conjuntamente
na escravidão o Diabo é o príncipe deste mun-
;
com Cristo, o corpo estranho, inassimilável (Jo
do (Jo 12.31 16.11 ljo 5.19), ou seja, o deus
; ;
17.11,16), objeto do ódio do mundo que se
deste século (2Co 4.4). O mundo amoldado sente inquietado e ameaçado por ela (Jo 15.8;
pelo homem em rebelião contra Deus. surge e ljo 3.13). Nisto precisamente tem a Igreja sua
se torna uma potência que o escraviza, o cega razão de ser como Jesus, ela é enviada ao mun-
:

e o leva à morte (cf Jo 8.34). do para a confrontação de Deus e do homem,


para atestar o julgamento e a graça revelados
3. Jesus é chamado o Salvador do mundo (Jo em Jesus Cristo (Jo 17.18-19). Eis porque
4.42; ljo 4.14), porque nos liberta dêste domí- Jesus não pede ao Pai que assegure à sua Igre-
nio e servidão. Jesus foi enviado aomundo para ja uma vida tranquila, tirando-a do mundo, mas

fazer
que a guarde do Maligno, para que permaneça
nêle as do Pai (Jo 10.36ss) e
obras
fiel, sem se deixar assimilar nem eliminar, o
destruir as obras do Maligno (ljo 3.8). Jesus
sinal da contradição e da promessa (Jo 17.15).
Cristo, mediante a revelação de Deus, e interpe-
lando o homem prisioneiro do mundo, dissipa a CHR. SENFT
fascinação do mundo e cria a situação defini-
tiva na qual o homem poderá dar sua resposta
NAÇÕES
definitivamente libertadora ou definitivamente VT
escravizante, e assim sair para a liberdade ou
encerrar-se na servidão. Em tudo Jesus pro-
Para designar as nações ou os povos, o VT
usa várias palavras, que salientam ora o cará-
cede para que "o mundo saiba que êle ama o
ter genealógico, ora o linguístico, ora o geo-
Pai e faz como o Pai lhe ordena" (Jo 14.31).
A meta de Jesus é conseguir que o mundo saiba gráfico. (Gn 10.31). Os substantivos mais usa-

e reconheça ser êle o mandatário de Deus, a Sua dos são gam e goi, que significam, originària-
revelação eis porque se oferece à morte, figura
;
mente, um grupo qualquer de homens ou de
e manifestação da ruptura entre Deus e o ho-
animais (Jl 1.6), sem especial intenção. Paula-
mem, suprema oportunidade oferecida ao homem tinamente o hábito fêz com que gam, povo, fôsse
por Deus (ver 2Co 5.19-21). reservado a Israel, o povo eleito por Deus. o
povo por excelência; e goi (pl. goiim) designase
Jesus veiu ao mundo (Jo 16.28), mas não é
as outras nações, não sem algum desprêzo. As-
do mundo (Jo 8.23; 17.16); seu reino não é
sim, frequentemente, os Salmos colocam em
dêste mundo (Jo 18.36). Êle entrou na história
paralelo as nações e os ímpios (SI 9.6). Em
moldada pelo pecado, como um corpo estranho
textos como lCr 17.21, aparece bem clara a
entra na carne, apareceu como a presença de
diferença entre ambas as palavras "Israel, a
:

Deus quebrando a quietude do mundo com o


única nação da terra a quem tu, ó Iavé, foste
oferecimento da paz verdadeira e fundamentada
resgatar para ser teu povo". Como se vê, êsse
(Jo 14.27). Incorre, pois, no ódio do mundo
uso conservou-se exato em nossas versões portu-
(Jo 7.7; 15.18), que pretende permanecer o
guêsas, onde os Gentios (do latim gentiles, de
que é porém, precisamente desta maneira, é que
;

vem a ser o Salvador do mundo, o pão verda-


gentes —as tribos), ou nações significam os
pagãos, por oposição ao povo judeu.
deiro que dá a vida ao mundo (Jo 6.32-33).
No VT esta distinção não é uma questão de
4. A
situação de Cristo repercute na situação raça, pois todos os povos saídos de Noé, em-
da Igreja e de cada crente. Fomos desarraiga- bora espalhadospela face da terra, são da
dos dêste mundo perverso (Gl 1.4) e da domi- mesma família 10 e 11), mas uma questão
(Gn
nação das trevas o mundo não mais pode rei-
:
de eleição e revelação divinas (Dt 7.6ss). E
vindicar-nos como sua propriedade, uma vez mesmo quando falam de "raça perversa e enga-
que a redenção nos transferiu ao reino do Filho nosa" (Dt 32.5) ou de raça escolhida (Is 41.8).
que Deus ama (Cl 1.13-14). Pela cruz de Je- os autores bíblicos encaram o povo de Israel
sus Cristo, o mundo é crucificado para o crente em sua relação com Deus e nos caracteres ra-
e êste para o mundo (Gl 6.14) na maldição
;
ciais que os distinguem dos demais.
pronunciada por Cristo, manifesta-se o julga- A atitude de Israel perante os pagãos evo-
mento que Deus pronuncia contra o mundo e a luiu no curso dos eventos do VT, em função da
:

NAÇÕES 209

dupla afirmação de fé: a) Deus celebrou uma —> paz messiânica (Is 10.20ss; ll.lss). Os
—> aliança com Israel, seu povo; b) Deus é
o único Deus. Podemos distinguir, de modo
resgatados do povo eleito, virão das comarcas
mais remotas, e as próprias fiações, reconhecen-
geral, três fases desta evolução do a vaidade
19-21),
dos seus
congregar-se-ão em
— >— >
ídolos (Jr 16.
Sião para
1 . O nacionalismo religioso. Nos exórdios, é adorar o Deus de Jacó (Is 2.2-5; Sf 3.9-10).
o culto oferecido a uma mesma divindade que
Juntamente com êste primeiro alargamento
constitue em povo, um determinado grupo étni- da salvação às nações, em virtude de sua fé no
co. Desta maneira a aliança firmada no Sinai Deus único e soberano, o Deuteronômio salienta
(Ex 24), e logo em Siquem (Js 24), entre mais uma vez a seriedade da aliança gratuita por
Iavé e as doze tribos de Israel, é que as torna cujo intermédio Deus ligou a si mesmo o povo
o povo de Iavé e Iavé o Deus de Israel. Por- de Israel Israel foi feito, entre todas as nações
:

tanto, só na terra de Israel poder-se-á celebrar


da terra, o povo santificado, reservado para a
um culto a Iavé (ver 2Rs 5.17: Naamã leva missão de servir a Deus (Dt 7.6). Portanto
consigo terra de Israel para poder adorar a Iavé
na Siria), e apenas excepcionalmente, o Deus
—> Israel deve guardar-se de qualquer con-
tato com as nações (Dt 7.3). Da mesma ma-
de Israel protegemos seus fiéis em terra estran- neira, Ezequiel apresenta perante o povo exi-
geira (p.ex. José no Egito: Gn. 39, ou Elias em lado e privado de culto, a visão de uma cidade
Sarepta: lRs 17.9). Pois nas outras terras de sacerdotes, de um templo absolutamente ve-
reinam outras divindades nacionais (Jz 11.24).
Tôda guerra é uma —>
guerra santa, que
interessa necessariamente a Iavé, obrigando-o a
dado aos incircuncisos (Ez 44.9).
Esta atitude, aparentemente contraditória,
frente às nações, só será definitivamente ultra-
socorrer seu povo e a exterminar as nações e
passada pelo Segundo Isaías (Is 40-55), no
suas divindades (Nm 10.36).
final do exílio. Com vigor nunca igualado, o
A fé na aliança com o Deus zeloso leva, logi- Segundo do Deus
Isaías proclama a soberania
camente, o antigo Israel a um nacionalismo re- único Criador (45.12) e Providência
(44.6),
ligioso as nações são estranhas a Deus e sobre
:
universal (40.25ss), o único Deus de todos os
elas invoca-se o desencadear da cólera divina
povos (45.22-24). Mas ao mesmo tempo êle
(Am 5.18). lembra a fidelidade inabalável de Deus à eleição

2. O universalismo profético. Os profetas in-


de seu povo (41.8-10; 54.10). De fato e—
êste é o centro da mensagem do VT sóbre as
surgiram-se contra este exclusivismo religioso.
Amós encabeçou-os, proclamando que a justiça
nações, recolhida logo pelo NT —
Deus esco-
lheu um povo entre todos os povos, e liberta-
do Senhor atingirá igualmente o povo de Israel
lo-á para que seja a testemunha da glória divi-
infiel e as nações pagãs (Am 1 e 2), porque
na por todo o mundo (42.10-12; 55.4-5), o ins-
a eleição é uma graça da qual Israel não tem trumento da salvação destinado a todos os con-
o direito de gloriar-se perante as nações (Am fins da terra (52.10), o Servidor que haverá
9.7-8), mas, pelo contrário, fundamenta a sua de ser a luz das nações (49.6). Por Israel, o
responsabilidade (Am 3.2). Em nome do Deus
povo de Deus, todas as nações terão de ser
Santo é que Isaías anuncia o castigo iminente
chamadas à salvação (51.4-5), e a criação in-
sobre Efraim e Judá endurecidos. Para castigar
teira será renovada (40.4-5; ver 65.17ss).
o seu povo, Deus vale-se das nações pagãs, es-
pecialmente da Assíria, "vara do seu furor" (Is 3. O particularismo judeu. Depois da volta
10.5-6). Deus é quem dirige as nações, de con-
do destêrro, os conflitos com as nações vizinhas
formidade com os seus desígnios, e quando estas
e logo a dominação estrangeira reavivam o par-
vangloriam-se de sua missão providencial, Êle ticularismo judeu. A restauração do culto e a
as quebranta por sua vez (Is 10.12-16). O des-
tino das nações pagãs depende, pois, de Deus,
nova vigência da —>Lei levantam uma bar-
reira infranqueável entre Israel, o povo santo
ao mesmo tempo que também o destino de Is- (Lv 19.2) e as nações pagãs. Qualquer contato
rael, mesmo que elas não estejam conscientes
com os incircuncisos deve ser rompido (Ne
disso. Destarte, revela-se, através das crises da
10), vedam-se especialmente os matrimónios com
história universal, o padrão e a justiça de Deus
forasteiras (Ed 10). Sem dúvida, os últimos
(Jr 18.6-10). Nesta perspectiva profética têm profetas anunciam ainda que as nações congre-
sido escritas as tradições históricas mais remo-
gar-se-ão em Jerusalém para implorar a Deus
tas (os documentos iavistas e eloístas do Pen-
em seu santo Templo (Ag 2.6-9; Zc 8.20-23)
tateuco), salientando as intervenções incessan-
e proclamar a sua glória (Is 66.18-20), com a
tes do Deus soberano na História de Israel e condição, porém, de praticar o culto judeu e de
das nações.
abraçar a Lei escrupulosamente (Zc 14.16ss).
Porém, após o castigo e a dispersão de Israel, Exige-se das nações que se assimilem ao povo
os profetas anunciam a volta a Jerusalém de santo, ou que se tornem escravos dêle (Is 61.
um remanescente fiel e o restabelecimento da 5-6), sob pena de desaparecerem no dia do
:

210 NAÇÕES

grande massacre dos povos (Jl 3.12ss). O re- nária. Aliás, não deixa de surpreender que a
lato das origens, recolhido pelo Codex Sacer- maneira coletiva de o VT designar "pagãos"
dotal, sublinha insistentemente o direito de pri- encontra-se inalterada em o NT
Jesus e os
:

mogenitura de Israel, filho de Sem, perante os apóstolos dirigem-se tanto a "povos" quanto
demais povos da terra (Gn 10) o interesse do
; a indivíduos, quer se trate de Israel, quer das
cronista centraliza-se em torno do culto e do "nações". As nações, enquanto formam perso-
reino de Judá exclusivamente (lCr 17.21). Em nalidades, são as que Cristo chama e convida a
suas visões apocalípticas, Daniel vê as grandes trazer seus tesouros para a nova Jerusalém (ver
nações pagãs figuradas por animais temíveis, p.ex. Mt 12.18-21; 21.43; 24.14; 28.19; At
cujo poder será arrebatado para serem submissos 13.46-47; Rm 1.5,16; 3.29; IPe 2.9; Ap 14.6;
ao povo santificado pelo Altíssimo (Dn 7). O 21.26). O método missionário de Paulo é bem
exclusivismo vai até o ódio de tudo o que não característico a êste respeito "contenta-se" Pau-
:

é judeu; assim consta no livro de Ester (Est 9). lo em fundar Igrejas nas primeiras cidades dos

Contra êste juízo sumário, pronunciado pelo países que atravessa e prossegue seu caminho
judaísmo sobre a massa perditionis, foram es- (At 16.6-12). Compreende-se, destarte, sob o
critos os Livros de Rute, a Moabita fiel. e de ponto de vista de Atos, a importância de Roma.
Jonas, no qual a misericórdia divina para com capital das nações.
as turbas pagãs confunde o orgulho fanático
dos judeus (Jn 4.10-11). O Saltério, que co- 2. "...Sem Cristo, privados do direito de
nhece o ódio e a imprecação contra as nações cidadânia em Israel, estranhos às alianças da
(SI 9; 59; 137), interpreta também a espe- promessa, sem esperança e sem Deus no mun-
ranç de uma suprema congregação das nações do" (Ef 2.12), tal é a situação dos pagãos,
na presença de Deus, seu Criador (SI 86.9; dos "gentios que não conhecem a Deus" (lTs
102.22-23) e Rei de todos os povos (SI 97), 4.5). Não porque Deus se desinteresse dêles
cuja glória deve ser proclamada por tôda a cria- pois Deus é quem criou e quiz as nações, quem
ção (SI 96). lhes determina a moradia e o tempo (At 17.26-

Assim o juízo que o VTforma sobre as na- 28); Lc 21.24; Mt 5.45; At 14.16-17). Ro-
ções pagãs é sempre ambíguo por um lado a
:
manos 1 e 2 declara que um certo conhecimento
eleição de Israel rejeita as nações fora da de Deus lhes tem sido concedido através das
aliança redentora, e por outro, as nações não obras do Criador (1.19-20), que a Lei foi-lhes
escapam, em absoluto, da soberania universal do escrita no coração (2.14-15), criando-lhes a

Através da história consciência do bem e do mal (2.9-10,15). Po-


Deus criador e salvador.
rém, êste conhecimento, longe de protegê-los.
milenar da antiga aliança, cada um destas afir-
mações teve providencialmente suas épocas de passará a ser a sua principal testemunha de
auge e preponderância, sem nunca eclipsar a acusação no último dia (2.9ss) pois êle torna
outra. Elas são, de fato, complementares Israel :
inexcusável a sua tríplice cegueira contra Deus
não será salvo sem as nações, e as nações não (1.19-23.25), contra si mesmos (1.24-28) e
serão salvas fora de Israel. Nesta perspectiva, contra os homens (1.29-31). A
situação dos
gentios é, pois, catastrófica todos êles estão
traçada pelo Segundo Isaías, é que o mistério do :

destino das nações será plenamente revelado


sob a ira e o juízo de Deus, entregues ao pró-
prio pecado, que não pode deixar de dar amar-
em Jesus Cristo.
S. AMSLER gos frutos. O NTcomparte unânimemente êste
juízo severo sobre os pagãos (Mt 5.46-47:
NT texto que, como Mt 18.17, assimila-os aos pu-
blicanos, considerados pelos judeus como casos
l. Para designar as nações, o NT usa quatro
termos: ethnos (povo em sentido geral), laos
perdidos, — 6.7,32; Lc 12.30; ICo 5.1; 10.20;
12.2; Gl 2.14; Ef 4.17; lTs 4.5; IPe 4.3).
(unidade política), glossa (unidade linguística), Afirma mesmo o Apocalipse que a corrupção
phyle (unidade tribal). Ethnos é, de todos estes dos gentios, tipificada em Babilónia, deve-se ao
têrmos, o mais universalmente usado. Na for- império que sobre as nações exerce a Bêsta (13.
ma singular, guarda o seu significado neutro 7) ou Satanás (20.3,8). Êste julgamento sôbre
geral de povo; no plural
— —
salvo raras exce- as nações não focaliza, absolutamente, o valor
ções toma um sentido técnico preciso, em- de sua civilização, o nível de sua cultura, etc,
prestado do VT (citado com frequência a êste mas focaliza exclusivamente sua situação pe-
propósito), e designa as nações que não conhe- rante Deus na perspectiva da história da salva-
cem a Deus, os "pagãos", em oposição ao povo ção. Eis porque, na bôca de Paulo, a palavra
eleito. Estas numerosas citações do VT
atestam "os gregos" em nada difere de "os gentios"
até que ponto a Igreja primitiva discernia uma (Rm 1.16; ICo 1.22-24; Gl 3.28). Severidade,
realização das profecias messiânicas na parti- porém não desprêzo (nada do tal desprêzo dos
cipação das nações à graça da Redenção, por- gregos pelos "bárbaros"), mas, pelo contrário,
tanto também em sua própria atividade missio- maior motivação missionária. Aliás, na medida
:;

NAÇÕES 211

em que os judeus não cumprem com a vontade (Mt 8.5-12; 15.27-28; Jo 4.7-30; Mt 10.18;
de Deus e rejeitam a Cristo, assimilam-se, tam- 21.33-43; 22.1-10; 24.14). Uma vez morto e
bém êles, aos pagãos esta é, relativamente ao
: ressurreto, Cristo não mais precisará esconder
VT, a novidade do NT
e o máximo escândalo sua messianidade ligada para sempre
para Israel. O julgamento que êles pronunciam — :

y> cruz, esta não prestará mais a qualquer


equívoco. Desde já pode proclamar-se o grande
à

sóbre os gentios tomar-se-á o instrumento da


sua própria condenação, fazendo-os igualmente apêlo ao arrependimento" (At 17.30) e à sal-
inexcusáveis (Rm 2.1-29; Mt 5.47; 6.7,32). vação "Ide, fazei todas as nações minhas dis-
:

Gentios ou judeus, todos são culpáveis (culpa- cípulas..." (Mt 28.19; Lc 24.47; At 1.8).
bilidade que culmina na condenação e crucifica- Todas são admitidas, com pleno direito, à co-
ção do Messias devido à cumplicidade de am- munidade messiânica (Rm 15.27; Ef 2.19; IPe
bos: Mt 20.18-19; Lc 23.12; e teimosamente 2.9-12). Tôdas são convidadas a regozijar-se
continuada em sua comum oposição à Igreja (Rm 15.9-12), uma vez que Cristo é a sua ri-
nascente: At 4.25-27; 14.1-5, etc. e no seu des- queza (Rm 11.12). O Pentencoste é o sinal de
prezo pelo Evangelho: ICo 1.23). Judeus e que esta universalidade (esta internacionalida-
Gentios são igualmente responsáveis perante o de) da salvação prevista por Deus, tem sido
tribunal divino, igualmente julgados segundo cumprida (At 2.1-13, 16-21), podendo todos,
suas obras (Rm 2.16; Mt 25.32), igualmente doravante, comungar na salvação mediante a
privados da glória de Deus (Rm 3.9-20; 5.18; pregação apostólica. Rapidamente tornou-se a
11.32). Nesta situação, totalmente desespera- Igreja primitiva consciente de sua missão para
dora e sem outra saída senão a graça de Deus, com os gentios. Aliás, nisto foi ajudada tanto
ambos igualam-se na rejeição do Evangelho pela recusa dos judeus e pela perseguição que
que permanece para êles escândalo e contra-sen- a tirou de Jerusalém, (At 8.1-25; 13.46-48;
so (ICo 1.23). Fora da condenação de uns 18.5-6) como por visões e mandatos expresos
e de outros, não cabe qualquer caminho de sal- de seu senhor (At 8.26-27; 9.15; ver 22.21;
vação. (Notemos, de passagem, que tendo João 26.20,23; 10.9-28; 23.11). Em nome do Mes-
colocado, já no próprio prólogo de seu Evan- sias morto e ressuscitado, o "Evangelho eterno"
gelho, os judeus e pagãos dentro da mesma ati- é anunciado ao mundo inteiro (Ap 14.6) ; o
tude negativa perante Cristo, êle os engloba livro de Atos atesta a surprêsa, temida e feliz,
invariavelmente no conceito de —>
"mundo",
sem recorrer ao têrmo de "gentios ou nações",
dos cristãos perante esta novidade o Espírito,
:

isto é, o Senhor ressuscitado, operando entre os


no sentido técnico). gentios (At 10.45; 11.1, 17s,23; 13.48; 14.27;
15.3,7-9, 12-14; 19.26; 21.19-20). Indubitàvel-
3. Entretanto, em sua situação inexcusável e mente foi Paulo quem levou a Igreja a sondar
condenação,
pelo contrário,
as nações não são abandonadas
estão compreendidas universal-
o grande —>
mistério da vocação dos pagãos
e de suas reconciliação (Ef 3.1-6; Cl 1.26-27;
mente desde o início, dentro do plano redentor lTm 3.16). Sabe o apóstolo que sua escolha
"Em tiserão abençoadas todas as nações da não tem outra razão de ser, nem outra finali-
terra", reza o Evangelho anunciado a Abraão dade, senão revelar êste mistério (Ef 3.7-8;
(Gl, 3.8,14; Rm 4.16-25). Em
Cristo, esta pro- Rm 1.5,14-15; 11.13-14; 15.16; Gl 1.15-16;
messa achou a sua realização êle é 'a luz das 2.2,8-9) suas epístolas atestam sua atividade
:

nações" (Lc 2.30-32; Mt 4.15-16; 12.18.21 — ;

missionária, sua pregação para que seja edifi-


cado o corpo de Cristo, a Igreja onde qualquer
três citações do VT), em seu nome o arrepen-
dimento para remissão de pecados... pode ser separação entre pagãos e judeus é abolida, onde
pregado a todas as nações, começando por Je- a mesma salvação os une (Ef 2.11-22; 3.4-6;
rusalém" (Lc 24.47). O comportamento do Gl 3.28) ambos formando, doravante, a "na-
;

próprio Jesus durante seu ministério parece ção nova", a Igreja (IPe 2.9; Mt 21.43), tes-
contradizer esta afirmação, pois recomenda aos temunha da graça e do apêlo universal de Deus.
discípulos não anunciarem o Evangelho aos pa- É, portanto, preciso compreender a importância
gãos, confirmando a recomendação com o exem-
plo (Mt 10.5; 15.21-26; Lc 4.25-27 indireta-
da
do
—> unidade desta "nação santa", bem como
comportamento dos cristãos no meio do
mente diz a mesma coisa). Entretanto esta mes- mundo dividido nações (ICo 1.10; IPe
das
ma reserva extrema em frente aos pagãos não 2.12). Sabemos que a admissão dos pagãos à
é indiferença. Em sua qualidade de Messias, sabe
perfeitamente que sua pessoa e obra concerne
nova —> aliança não pareceu tão legítima e
suscitou o conflito que não tardou em opor
primeiramente aos gentios, porém, como Messias Paulo (e Pedro) aos judaizantes êstes não
:

sofredor e humilhado, não político, condena-se contestavam o fato de os gentios serem cha-
ao sigílio com o fito de evitar qualquer confu- mados à salvação, mas opunham-se a que êles
são sóbre sua própria pessoa. Por enquanto o entrassem imediatamente na Igreja, somente
seu ministério entre os pagãos seria prematuro, com a fé e o batismo (At 11.1-4,18; 15.1-29;
dêle convém dar somente sinais anunciadores Gl 2.3-16; ver Rm
14.1ss; ICo 8; 11.18-19).
212 NOME

4. A
universalidade da salvação pregada pela significado que revela a íntima essência da pes-
Igreja e baseada na messianidade e na cruz de soa: "Adão" significa "o humano", pois do "hu-
Cristo, não é, indubitàvelmente automática. A mo" é tirada a sua realidade terestre (Gn 2.7) ;

rejeição de Israel, profetizada por Jesus (Mt pelo contrário, Deus é "Iavé", quer dizer "Êle
8.11-12; 21.441-43: 22.8-9; Lc 21.24) e ma- é", pois sua realidade é de ser eternamente (Ex
nifesta desde os primeiros tempos da evangeli- 3.13-15). Por tôdas estas razões, eliminar um
zação (At 13.46; 18.6; 28.28), não deixa de nome é suprimir uma existência (ISm 24.22;
Em Rm 9-11, Paulo de-
ser típica prova disto. 2Rs 14.27; Jó 18.17; SI 83.5; Is 14.22;
monstra que não se trata lá de uma simples Sf 1.4).
resistência ao plano divino, mas de mais um A natureza verdadeira do nome aparece clara-
"mistério" de Deus (11.25): a eleição e a mente nos exemplos que seguem Deus faz mo- :

rejeição de um povo. afinal de contas, não pas- rar o seu nome num lugar definido (Is 18.7;
sam de ser o meio de anunciar o Evangelho até Jr 7.12) é para o nome divino que se cons-
;

os confins da terra, para que todos, judeus e troe um templo (lRs 3.2; etc.) pois o seu nome
pagãos, estejam reunidos na misericórdia divi- se confunde com êle próprio; onde está o seu
na (11.31-33). Eis porque "deve ser pregado nome, aí êle está presente ("Eis que o nome
o Evangelho a todas as nações" (Mc 13.10) e do Senhor vem de longe..." Is 30.27; ver
que as nações devem passar da escravidão de Ex 20.24; 23.21 Mq 5.3). Os nomes humanos
;

Satanás ao serviço de Jesus Cristo através do são, pois, alguma coisa do próprio homem têm ;

julgamento (Ap 12.5-9; 14.8; 19.13-15). "En- o poder, recebido de Deus, de substituir o ho-
tão virá o fim" (Mt 24.14); repentinamente mem (Is 66.22). Eis porque, perguntado pelo
tudo será manifestado em plena luz, iniciar-se-á seu nome, o interpelado cala (Gn 32.29; Jz
um tempo nôvo, em que a espera messiânica terá 13.18) quando deseja não entregar uma parte
cumprimento em sua plenitude, o "Cordeiro", o de si mesmo. Não exclue isso que esta noção
"Rei das nações" (Ap 15.3-4) será por todos realista do nome perdesse, às vêzes, a sua impor-
adorado, "as nações andarão em sua luz" (Ap tância de fato, o nome podia passar de alguma
:

21.24-25). pessoa, determinadamente caraterizada, para ou-


Enxergando as "nações" desta maneira, no tra (para seu descendente) de diferentes carac-
prisma divino e não em si mesmas, a Igreja t res experimentava-se, em consequência, a ne-
;

cristã: a) não teve, para a ignorância dos gen- cessidade de explicar, em caso dado, a reali-
tios, nem complacência, nem desprezo b) mas. dade subjacente ao nome: ao nome de "Nabal"
cônscia de realizar, até que Cristo venha, a sua
;

—> "estúpido", estamos declarando que "o que


significa o seu nome, isso êle é" (ISm 25.25).
vocação, compreendeu que o destino das nações
depende do testemunho que, como "nação santa' 2. O nome, possibilidade de conhecer. Em
fiel à sua missão, dá de seu Senhor. virtude de sua natureza, graças a êle nós conhe-
cemos (Ex 33.12; lCr 4.41: Ed 10.16; SI
5. BICKEL
9.11; 91.14; Is 52.6; Jr 48.17), por êle damos
NOME a conhecer (Is 64.2) enquanto não conhecemos
;

o nome, não conhecemos aquêle que o leva


VT (Jz 13.6).

1. O nome, realidade profunda do ser; o nome, 3. Troca de nome significa troca na rcalid.ide
Pessoa viva. No VT,
longe de ser uma simples do Era usual dar novo nome a unia pes-
ser.
etiqueta, ou uma mera descrição exterior, o soa chamada para uma dignidade ou funcãu
nome expressa a realidade íntima de quem o nova: Abrão vem a ser Abraão (Abram
leva. Eis porque a criação termina somente = Abraham: Gn 17.5): Jacó torna- se Israel
quando a coisa suscitada para a existência re- (35.10); Matanhá faz-se Zedequias (2Rs 24
cebeu um nome. A
êste respeito dois trechos são 17). As próprias cidades, no curso de sua histo-
muito significativos: Isaías 40.26: "...vêde ria,não são imunes a estas mudanças (Nm 32
quem criou todos êstes (astros) ?. Aquêle que
. .
38; Jz 1.17). Nos tempos escatológicos a reno-
os chama pelo seu nome", e Génesis 2.20: após vação de Sião sera f.gurada peia permuta do
moldar os animais dos campos e os pássaros, nome, de conformidade com a decisão de Iavé
Iavé manda-os desfilarem perante Adão para (Is 62.2), e os eleitos receberão um nome dife-
que êste os nomeie e talvez descubra entre êles rente daquêle que possuíram até então (Is
sua companheira "Adão deu nome a todos os
:

animais e às aves dos céus, mas para o homem


65.15 —> Veste).

não se achou uma adjutora semelhante a êle". 4. O nome, penhor da continuidade do ser.
Folga em lembrar que ao têrmo de cada dia da No VT o indivíduo é não apenas com
solidário
criação, Deus deu um nome às criaturas. Por- os antepassados, mas também com o povo e
tanto, os nomes próprios do VT comportam um com Deus, que dirige os destinos do povo o ;
;:

NOME 213

nome expressa, a seu modo, esta espécie de de Iavé" fica manifesto no relato do combate de
continuam psíquico, em cuja virtude a pessoa Davi contra Golias ao filisteu que avança pe-
:

é apenas aspecto local e temporal de um con- sadamente armado, o astuto pastor grita "Tu :

junto orgânico: Deus, povo, família. vens a mim com espada, lança e escudo, mas
eu vou contra ti com o nome (em nome) de
a) O nome de Deus é, entre todos, excelente
Iavé..." (ISm 17.45).
(Zc 14.9), até tal ponto que, com a maior reve-
rência, Deus vem a ser designado simplesmente 6. O nome é também a fama, a reputação
por "O Nome" (Lv 24.11; 2Sm 6.2; o nome (Gn 6.4; 11.4; Nm 16.2; Dt 32.3 etc).
grande, lRs 8.42; Jr 44.26; honrado, Dt 28.
58; eminente, SI 148.13; tremendo, SI 99.3; 7. Metaforicamente o "nome do dia" é a data
111.9; o nome santo, Lv 20.3; SI 103.1; Ez (Ez 24.2: "escreve o nome deste dia...").
20.39; etc; o nome glorioso, Ne 9.5 SI 72. 19). ;

cuja invocação produz o espanto do povo (Ml H. MICHAUD


2.5), e causa o temor do adversário (Dt 28.10; NT
SI 102.16). O nome de Deus é Tavé, "ÊLE É".
nome eterno (Ex 3.15), do qual depende a 1 . O NT fala do nome do Senhor no mesmo
realidade de qualquer outro nome (Is 56.5). sentido que o VT, mormente quando esta ex-
pressão faz parte de uma citação textual do
b) O povo de Deus consta de todos os que VT. Um nome é verdadeiramente um progra-
levam o nome de Israel (Is 48.1), sóbre os
ma: o nome de Deus lembra, a todos que tive-
quais o nome de Iavé tem sido invocado (2Cr
7.14; Dn 9.19). Toda ofensa ao nome do povo
ram a revelação divina, o que êle é, o que êle
faz e o que êle quer o seu nome implica numa
é ofensa ao nome de Deus (Js 7.9). O laço
;

certa revelação, um certo conhecimento de Deus


invisível que une ambos os nomes e ambas as
realidades —
de Deus e do povo está no
Templo de Jerusalém, onde o nome de Iavé foi
— consiste em ver que Deus é não apenas "um
mais forte que nós", "uma Providência", mas
o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 11.
invocado (Jr 7.11-14; Dn 9.19).
25; Jo 20.17; Rm
8.15; Gl 4.6). O nome de
c) Cada tribo do povo tem o seu nome (Nm Deus encabeça as petições da oração dominical
17.3), também cada família tem o seu nome, (Mt 6.9), para que aquele que orar comece por
que deve perpetuar-se no seio do povo mediante aceitar, e reconhecer a revelação de Deus, a
descendentes masculinos (Nm 27.4; 2Sm 14.7, salvação e os mandamentos implicados êste ato ;

razão da lei do levirato Dt 25.6-7; Rt 4.5, de fé e reconhecimento contribui para a santi-


—>
:

10; Matrimónio), ou, para os que são ficação dêste nome. Porquanto o NT
traga uma
privados de filhos, mediante uma coluna (2Sm precisão definitiva à revelação do VT, o nome
18.18 Is 56.5), ou mediante a fundação ou a de Deus adquire uma ressonância mais glo-
conauista de uma cidade (Gn 4.17: 11.4; Nm riosa. O NTnão oculta o nome santo (em-
32.37-38,42; Jz 18.29; 2Sm 12.28). O nome bora Mateus se conforme com a discreção ju-
conferido a uma localidade também serve para dia e diga "o reino dos céus" em vez de "o
perpetuar a realidade familiar ou tribal através reino de Deus"), e ao pronunciá-lo, cuida de
do acontecimento evocado (Nm 11.34: 21.3: explicitar todos os subentendidos da revelação,
Js 5.9; 7.26; Jz 1.17; 2.5; 2Sm 5.20; lCr que muitos ignoram e que os crentes celebram.
14.11; 2Cr 10.26). Também a expressão profética "em nome do
Senhor" se torna mais precisa e definida: o
5. Falar, agir "em nome de alguém", é parti- enviado que recebeu uma missão formal de Deus,
cipar da realidade expressa pelo nome. Fala-se é reduzido a uma só pessoa, Jesus Cristo (ver
na Bíblia "em nome de Davi" (ISm 25.9), "de Mt 21.9, a saudação de Ramos, "Benedito o
Acabe" (lRs 21.8), "dos deuses estranhos" que em em nome do Senhor!").
(Dt 18.20), e sobretudo "em nome de Iavé"
(Ex 5.23; Dt 18.22; Jr 11.21). Ao empregar 2. A
redução geral dos que levam o nome
uma fórmula em que entra o nome de Iavé. in- de Deus a um só, àquele que recebeu "o nome
voca-se a Iavé (Gn 4.26; 12.8; etc.,) pode-se, ; que está sobre todo o nome", confere a êste
assim, abençoar em nome de Iavé (Dt 21.5; portador único uma distinção sem par. A gran-
2Sm 18.28) amaldiçoar em nome de Iavé (2Rs
; de novidade do NT, no que respeita ao uso do
2.24) ;
jurar em nome de Iavé (ISm 20.42; nome divino, é que o nome de Jesus Cristo, passa
lRs 22.16). O israelita confia em o nome de a subordinar-se, a substituir-se e acrescentar-se
Iavé (Is 50.10; SI 33.21; ver SI 9.11), anda em ao nome de Deus a subordinar-se, pois o nome
:

o nome de Iavé (Mq 4.5) procura socorro em


;
de Jesus é apenas a explicação e o desenvolvi-
seu nome (SI 124.8), refúgio em seu nome mento efetivo do nome divino; a substituir-se,
(Sf 3.12); erige um altar ao seu nome (lRs pois êle é a manifestação integral e autorizada
18.31-32) o sacerdote é o servo de seu nome
; de quantos mistérios encerra o nome de Deus
(Dt 18.5,7). O realismo da expressão "em nome a acrescentar-se, pois os autores gostarão, do-
:

214 NOMES GEOGRÁFICOS

ravante, de mencionar, sob um traço único, am- 2.12), lavados, justificados (ICo 6.11). Neste
bos os nomes, na unidade de ambas as alianças- nome recebem os discípulos poder para expulsar
(A adjunção de ambos os nomes faz-se na ple- os demónios, eternos rebeldes do senhorio de
na consciência de sua profunda unidade. Um Cristo, e para curar os enfêrmos (Mc 16.17;
terceiro nome acrescentar-se-á em igual sentido, At 3-5). Em nome de Jesus congregam-se os
o do Espírito Santo a mútua relação dêstes
: discípulos (Mt 18.20), isto é, na sua presença
três nomes definir-se-á, ulteriormente, no dog- espiritual e real ;em nome de Jesus êles oram,
ma da Trindade). Para falar mais claramente revestindo, assim, sua oração, da eficácia da
de Deus, o NT
usa, portanto, o nome de Jesus. oração do próprio Cristo (Jo 16.26). Em nome
Quem reconhecer a plena revelação que Deus de Jesus, o apóstolo exorta as Igrejas (Rm
concedeu em Jesus Cristo, não vacilará em acei- 12.1; ICo 1.10; 2Ts 3.6), significando isto,
tar o nome que resume e caracteriza tal revela- que, através de Paulo, quem manda é o Senhor
ção êste nome, embora humano, histórico e apa-
: (ver ICo 7.10). Tôda a vida dos crentes viver-
rentemente fortuito, foi, contudo, escolhido por se-á na servidão livre de Cristo sendo isto :

Deus para êle é que apontam tôdas as profe-


;
tôda a moral (Cl 3.1ss; Mc 9.37). Esta po-
cias. O nome de Jesus aparece, de início, refor- derosa ligação ao Senhor não deixará de inquie-
çado e aumentado por todos os nomes proféti- tar o mundo, cujos amos ímpios se sentirão le-
cos do Messias de Israel e por quantos títulos sionados em suas reividicações totalitárias con- :

divinos inventaram os mistérios helénicos tudo, continue o crente confessando o nome de


(
—>
pessoal
Jesus Cristo). Jesus é, de fato, o nome
"Cristo", e outros títulos, são quali-
;
Jesus, ainda que tenha de sofrer por sua causa.
Êste nome lhe proporcionará muito mais mo-
ficativos mas, muitos dêstes qualificativos, por
;
tivo de glória, que de confusão e dor (IPe
convir exclusivamente a Jesus, equivalem a um 4.14-16; Mt 19.29). Finalmente, estando a vida
nome próprio. O nome mais excelso título — tôda do crente marcada por êste nome, torna-se
que virá a ser precisamente a característica pes- legítima e compreensível a expressão a boa
soal de Jesus —VT é o de Senhor (Fp 2.9;
nome
Hb nova do nome de Jesus (At 8.12 O Evan-
gelho), e esta outra: reter o nome de Jesus
=
:

1.4) o qual, no grego, traduz o ine-


fável Iavé.
: (Ap 2.13 = Perseverar na fé).

3. Doravante figura no mundo o nome de G. BIBER


Jesus: isso expressa a aceitação pura e simples,
surpreendente mas confiante, perseverante e au-
NOMES GEOGRÁFICOS
daciosa da manifstação de Deus em Jesus Cristo
(At 4.10-12; 5.40-42). Os homens acreditam Os escolhidos, isto é, os 'que foram compra-
nesse nome, indicando assim que entram nos dos da terra" (Ap 14.3), não têm aqui sua
caminhos de Deus (Jo 1.12). Invocam êste —> cidade permanente ( Hb 13.14; 11.13;
Fp 3.30), mas vivem, não obstante, na terra
nome (At 9.13; 10.14; 2Co 12.8), não como
os místicos pagãos que pensam respaldar-se de-
trás de nomes influentes para pressionar a di-
criada por Deus (Gn 1.1) e cujo Senhor
é Deus (Mt 11.25, etc). Embora muito adulte-
—>
vindade os crentes confessam êste nome (ICo
; rada pelo pecado, a terra continua sendo, para
12.3) levados pelo Espírito Santo. Por êste quantos sabem ver, o teatro das divinas mani-
nome agem dêle dão testemunho, por êle so-
; festações (Rm 1.19-20), onde o Senhor escolhe
frem. É um nome carregado de maravilhosas êste ou aquêle lugar para ser aí servido (Gn ;

bênçãos (Lc 9.49) porém, utilizado com fins


;
22.3; Ex 3.5; etc.) e asim será enquanto não
;

interesseiros, transformar-se-á em maldição (At vier a nova terra, escatológica. (2Pe 3.13).
19.13: maldição cheia de bênçãos! v. 17-19). Há, pois, na terra da Bíblia uma "geografia
Debaixo dêste nome está colocada a vida de santa", como há nela uma "história santa" há :

tôda a Igreja e dos crentes. Esta é a razão da um país da promessa Gn 12.1; ( 33.51; Nm
frequência da fórmula "em nome de Jesus" ou SI 105.11; etc) sôbre o qual Deus fixa cons-
"em", "por", "por causa de" seu nome (em tantemente os olhos (Dt ll.lOss) e ao qual os
grego, há oito preposições ou equivalentes profetas denominarão ousadamente a "esposa" de
portanto, não reparar excessivamente na fór- Iavé (Is 62.4) e há lugares que levam o
;

mula portuguêsa) Êste nome é o sinal eficaz


. nome recordatório das divinas teofanias (Gn
do senhorio de Cristo. Cada crente leva-o por 28.19; 35.5ss; 15; 32.30; Ex 17.7; 11.3, Nm
ter sido batizado "em nome de Jesus' (At 2.38: 34; 21.3; Js 5.9; ISm 7.12; 2Sm 5.20 6.8;
variante da fórmula trinitária, Mt 28.19); Je- 2Cr 20.26, etc). Portanto, certos lugares ou
sus é o nome nôvo que marcará os eleitos no nomes geográficos aparecem afetados de um
último dia (Ap 2.17; 3.12). Em virtude dêste coeficiente teológico inseparável e necessário à
nome ( == daquele que responde fielmente a sua compreensão. O breve exame que aqui inten-
êste nome, Cristo), os salvos são libertados do tamos está longe de ser exaustivo, pois visamos
poder do pecado, perdoados (At 10.43; ljo simplesmente dar alguns exemplos da pressupo-
!

NOMES GEOGRÁFICOS 215

sição bíblica de que não há lugar algum inaces- não se sentia em casa mas no exílio e também ;

sível e vedado para Deus. Em todas as partes que sabia o triste destino de Roma aquela que, :

Êle pode manifestar a sua presença, a sua ira, mediante Poncio Pilatos, firmara a sentença
o seu perdão, as suas promessas. Observemos, de morte de Jesus, firmou, na realidade, sua
porém, que Deus permanece livre com relação a própria condenação.
tais lugares santos"; pode abençoar o seu povo À sua esquerda, ou seja, ao Ocidente, Canaã
no Egito ou na Babilónia, e pode abandonar o tem o Egito, a terra da qual Deus arrancou o
Templo de Jerusalém (Jr 12.7; SI 80.15,9-20). seu povo (Ex 13.9,16; Nm 20.16; Dt 6.21, etc.)
"mediante seu braço poderoso". Egito é a terra
1 . O FÉRTIL CRESCENTE é o nome dado da escravidão (Ex 20.2), mas também das pa-
à comarca que fôra o teatro de quase tôda a his- nelas de carne e das cestadas de pão (16.3). Se
tória bíblica. Forma-se, ao leste, pelo vale do Babilónia era a figura do mundo que ameaça
Tigre e do Eufrates (Babilónia) ao Ocidente,
;
Israel, o Egito era antes o símbolo do mundo
pelo vale do Nilo (Egito), e entre ambos, pelo que tenta e seduz o povo de Deus o país das :

vale do Jordão (Canaã). A ubicação topográ- saudades nos dias de dificuldades e dúvidas (Nm
fica de Canaã, terra escolhida por Deus para 13.1-14.23; etc); o país com o qual ansiosa-
Israel, é típica da situação teológica do povo mente procura-se alianças culpáveis quando a
preferido. Esquemàticamente, Israel tem a sua ameaça do Leste é muito forte (Is 36.6-9; SI
direita e a sua esquerda o —>
'inundo" do
qual Deus o tirou (Gn 11.31-12.1) e, posterior-
20.8; 33.17, onde se menciona o cavalo, animal
egípcio por excelência, cf lRs 10.28; Is 31.3).
mente, o salvou (Êxodo), e o qual fica a seu Essa atração para o Ocidente não é apenas um
lado como uma eterna tentação e uma eterna sinal da falta de fé, do desejo de abdicar a liber-
ameaça. A
história de Israel será portanto, um dade e a responsabilidade para voltar à escra-
combate, mais ou menos bem levado, para firmar vidão mas é também a saudade do Egito, ou-
;

o povo de Deus em sua fé, em sua vocação e trora terra de refúgio (Gn 12.10ss; 42.1-47.12;
em sua salvação, isto é, para guardá-lo livre Jr 26.21; 41.17; Mt 2.13ss; ver, contudo, Jr
do "mundo", a despeito de achar-se atenazado 42.13-22), único lugar onde um representante
pelo "mundo". (Os profetas denunciarão incan- do povo escolhido, José, logrou verdadeiramente
sàvelmente as alianças com o Oriente ou com domesticar e dominar "o mundo" (Gn 41.37-44;
o Ocidente =
com o "mundo"). Não obstante 45.9,13, etc). O Ocidente, bem mais que o
ser
los tão
Canaã também o mundo com seus
obstinadamente araigados, em Canaã é
—> ído- Oriente, foi a grande tentação e a constante sau-
dade de Israel; no entanto, a salvação não vem
que Deus decidiu plantar a sua vinha portanto, ; do Egito nem da Mesopotâmia, mas de Deus
valendo-se de Josué, dos Juízes e dos reis de- (SI 75.7).
cididos a obedecer, expulsou daí as —
2> feições
e dispôs o terreno (SI 80.9-10). 2. O DESERTO é, paradoxalmente, um dos
Canaã tem à ao leste, a Babi-
direita, isto é, lugares mais férteis das terras bíblicas, por-
lónia, a grande urbe que, nos exórdios da His- quanto inspirou os conceitos mais ricos da teo-
logia típica.
tória, pretendeu destronar a Deus (Gn 11.6-11).
Esta Babilónia, terra do desterro e da tristeza De modo geral, podemos afirmar que o termo
(SI 137) onde o escol do povo de Deus sofre, "deserto" evoca, para todo israelita, em virtude
espera e ora, após a queda de Jerusalém no da associação das idéias, o êxodo do Egito e
ano 586. esta Babilónia cujo fim Isaías anuncia os quarenta anos de peregrinação pelo deserto
com tanto júbilo (Is 21.8ss), assumirá aspectos (Dt 29.5) êste foi o tempo mais repleto e mais
:

quase míticos, tornando-se. no Apocalipse, o significativo para a meditação profética (Os


antitipo da Jerusalém celeste, da cidade de
2.14; 13.5-6), o tempo único em tôda a his-
Deus: não esposa, mas prostituta (Ap 17.1,5;
tória sagrada. Não será por casualidade que
19.2). não lugar de congregação para os fiéis,
mas lugar abominável e vitando (Ap 18.4; Is João o Batista, para preparar o povo à vinda
52.11; Jr 50.11; Jr 50.8; 51.6), ao qual não escatológica do Senhor, passará sua vida e si-
se deseja duração e vida, e sim ruína e morte tuará sua atividade no deserto (Mt 3.1 par;
(Ap 18.1-19.3). O nome da "grande Babiló- 11.7 par, onde o —
^> batismo relaciona-se à
passagem do Mar Vermelho) pois, no deserto,
nia" reveste, no Apocalipse, uma noção teoló- ;

gica e não realmente geográfica pois Babiló-


:
o povo de Deus poderá reflexionar e refor-
nia designa Roma, "a grande cidade que domina mar-se.
sobre os reis da terra" (Ap 17.18), sentada O (Dt 1.19), deso-
deserto, terra horrorosa
sóbre as sete colinas (? 17.9). Segundo tôda lada (Ez 6.14) (Jr 2.6). Terra
e mortífera!
verossimilhança é também Roma que IPe 5.13 de provação para a fé, porque o homem não
designa pelo nome de Babilónia. O fato de a pode subsistir no deserto por si mesmo. No de-
Igreja nascente apelidar Roma de Babilónia, serto está a alternativa ou escolher a confiança
:

demonstra bem que, no Império Romano, ela plena em Deus (que tantas vêzes provou o seu

216 NOMES GEOGRÁFICOS

poder), ou, irritados e insatisfeitos de depender caristia, um antegosto do dom celeste e das
somente da graça divina, regressar "para o Egi- potestades do mundo vindouro (Hb 6.4-5) ;
to". Quem não vê que, tanto para o Velho como entretanto, o reino em sua plenitude, a terra
para o Nôvo Testamento, bem merecia "tornar- prometida, ainda não estão aqui, é ainda possí-
se exemplo" eterno (ICo 10.6) esta história vel perder todos os bens recebidos. Assim, o
de Israel, guiado, alimentado, dessedentado e
protegido durante quarenta anos no deserto. As-
êrmo figura muito bem o —> tempo em que
ainda vive a Igreja, a situação precária em que
sim como para a Igreja, a paixão, morte e res- ela deve crer. esperar e amar, situação que
surreição de Cristo são a referência capital de mereceria o nome de "sacramental". Tema êste
sua fé e de sua vida. assim foi para Israel o da Epístola aos Hebreus.
êxodo a referência de fé e vida (aliás, o êxodo, Finalmente, o deserto é a imagem do "mun-
porquanto é figura e tipo da obra perfeitamente
do", porquanto espera deixar de ser deserto, li-
cumprida por Cristo, guarda o seu pleno valor
vrar-se de tudo que o faz culpável e temível.
também para a Igreja de sempre).
Pois o mundo espera, da mesma maneira, e com
O deserto, sendo o lugar por excelência da ardente esperança, o batismo cósmico do último
provação para a fé, é também o lugar da dia. sua transformação em um mundo nôvo
e
—>
Deus
tentação ; no deserto é que a disputa entre (2Pe 3.13: ver Rm 8.18-23). O deserto aguar-
da o dia em que Deus converte-lo-á em jardim
e Satanás, ambos interessados no porvir
da humanidade, encontra, de certo modo. o seu (SI 107.35: Is 52.15; 35.1-7; 41.18-19; 43.
ambiente de austeridade estilizada, sobre uma 19-20: 51.3).

arena livre de qualquer ingerência estranha ao


debate essencial. (Não excluindo a
3. JERUSALÉM (^fundamente da paz?) ou
possibilidade
Sião (= colina fortificada? A colina oriental da
de Jesus ter sido inopinadamente transportado
cidade onde se erguia o Templo) ocupa o cora-
do deserto para o centro da religião: sobre o ção do VT desde que Davi fêz dela a capital
pináculo do Templo de Jerusalém, ou à presen- do reino (2Sm 5.6ss) e para lá transportou
ça da magestosa grandeza da cultura humana:
sobre um monte alto de onde o olhar abraça
a —> arca (2Sm 6.1-23) — para a qual
Salomão construiu o Templo (lRs 5ss). É a
o mundo inteiro. Mt 4.5ss par). Jesus, levado cidade escolhida por Deus (lRs 11.13; 2Rs 23.
pelo Espírito, vai para o deserto a fim de ser
tentado pelo Diabo (Mt 4.1 par). O deserto é,
27) para residência de seu —> nome (2Rs
21.4; 2Cr 33.4; SI 132.13; Is 31.9; Jl 3.17.
por assim falar, o "mundo no estado puro", por etc), a cidade santa (Is 52.1), o trono de
cuja causa considera-se como o covil dos de- Deus (Jr 3.17). o lugar da salvação (Is 46.
mónios (Mt 1.43; Lc 8.29; 11.24). Se Deus 13). o monte santo de Deus (SI 2.6), o lugar
leva para lá o seu povo, o seu Filho, e. mais por excelência onde se desenvolve a história da
tarde, os anacoretas e eremitas (de eremos salvação. Em Jerusalém exercem-se os minis-
= êrmo ou deserto), não é para os tirar do térios essenciais ( Ministério VT) : os
mundo, mas, pelo contrário, para os colocar reis da linhagem davídica aí reinam e morrem
no coração do mundo onde a luta é mais dura.
:
(2Cr 9.31; 16.14; 21.1. etc), aí os sacerdotes
aí manifestarão melhor a vitória e os direitos
de Deus. E se Jesus se retira ao deserto, comu-
anlicam-se às suas funções no —> Templo;
os profetas proclamam incessantemente que a
mente depois de realizar um milagre (Mc 1.35; sorte de Jerusalém e do próprio Israel são inse-
Lc 4.42; 5.16), não é exclusivamente para re- paráveis eis porque o povo se sente atingido
;

fugiar-se (t 14.12-13; Mc 1.44; Jo 11.53-54), até nas medulas por tudo que atinge Jerusalém:
mas para fazer-se presente lá onde cumpre dar libertação da cidade assediada por Senaqueribe.
tóda glória a Deus. no ano 701 a.C. (2Rs 18.17-19.37). sua destrui-
Todavia o êrmo não é, apenas, um lugar de ção por Nabucodonosor entre 587 e 586, sua
tentação e de provação da fé êle é, sobretudo,
; reconstrução durante o império persa, ao final
a terra de espera e de peregrinação, na qual do século VI (Esdras e Neemias), seu destino
opera-se a passagem das promessas de salvação sob os gregos (ruína da cidade em 167) e os
à quietude dos salvos êle é o pôrto de acesso,
: romanos (assalto de Pompeo em 63). Recor-
para Israel, saído do Mar Vermelho, e para demos o que significava Jerusalém para o Sal-
Jesus, saído das águas batismais (Mc 1.9-13 mista (SI 87; 122; 125: 128; 137; 147; etc.)!
par). Êle é a moradia onde a salvação, embora Se Deus, a despeito do seu imenso amor pela ci-
não revelada ainda em sua plenitude, já entrega dade (ver lRs 11.36; 15.4. etc), envia contra
as arras de sua realidade. Para a Igreja, o ela seus profetas e suas ameaças (Jr 9.11; 13.
deserto é a figura da condição dos crentes en- 9.27; Ez 5.1ss, etc), se Êle a castiga, finge
tre o Pentecoste e a parusia, isto é, o retorno abandoná-la, deve-se isto ao fato de que o
de Cristo (ICo 10.1-13) já impera a salvação,
: real sofrimento para a cidade santa é que, pelo
já participamos, mediante o batismo, da morte pecado e idolatria, ela deixa sua vocação de
e da ressurreição de Cristo, já temos, na Eu- ser o centro do mundo (Ez 5.5), o manancial
NOMES GEOGRÁFICOS 217

da Lei (Is 2.3), o lugar de convergência e que anunciavam o ajuntamento de Israel em tor-
ajuntamento final dos desterrados israelitas e de no da cidade santa. Paulo, rumando para lá,
todas as nações do mundo (Is 2.1ss, etc). Ex- cumpre, igualmente no segrêdo, as profecia»
plica-se, assim, ter-se Jerusalém tornado, paula- que anunciam o ajuntamento em tórno dela das
tinamente, sinónimo de reino escatológico de —> "nações" e suas riquezas. Com efeito, é
por causa de sua vocação entre os gentios que
Deus (em particular durante o exílio e na pre-
gação do Segundo Isaía* Is 52,1 ss; 62.1ss: o apóstolo sobe à capital, seja porque cumpre-
—>
:

65.17ss; 66.10ss, etc.) a cidade que a literatura


: lhe imbuir-se da tradição apostólica e
rabínica e apocalíptica designará como "a Je- transmiti-la às nações (At 9.26ss), asegurando,
rusalém celeste e a Esposa do Senhor". assim, aos pagano-cristãos o direito de cida-
dania no povo da nova aliança (At 15 lss Gl
. ;

Nos evangelhos, Jerusalém continua com todos


2.1ss), seja, sobretudo, para levar à Jerusalém
os seus direitos ela é o teatro onde se decide
:

a sorte do povo de Deus, portanto, do mundo


a coleta ( — glória e riqueza das nações!) le-
vantada em suas Igrejas (Rm 15.25-31). As
inteiro; a cidade que mata os profetas (Mt
profecias relativas a Jerusalém estão aparente-
23.37; Lc 13.34), atrae como um imã a Jesus
mente cumpridas Paulo pode dar as costas à
para que morra nela (Lc 9.51; ver Mt 16.21
;

cidade que deixou de ser a santa Jerusalém,


par 20.17 par; Lc 9.31 13.33). Jesus, subindo
—>
;
;
carregada de porvir, mas que tornou-se, qual
a Jerusalém com os Doce, representantes
nova Agar perante Sara, uma rejeitada (Gl 4
das doze tribos de Israel, parece obrar figura-
25). No entanto, se a Jerusalém terrestre pa-
damente o grande ajuntamento escatológico em
rece, doravante, desqualificada, os ricos concei-
torno à cidade santa. Em
particular, a partir
tos teológicos inerentes a seu nome não desa-
do dia de Ramos (insinuação latente nas pala-
parecem, mas são transferidos para Jesus Cristo
vras de Jesus acerca do Templo que recons-
e sua Igreja, nova Jerusalém, Jerusalém celeste,
truirá em três dias. a saber, seu corpo), Jeru-
Jerusalém livre, mãe de cristãos (Gl 4.26),
salém mesma, como centro do mundo, cede seu
segregada para ser revelada no fim do mundo
lugar ao próprio Jesus, o qual será, daí em
(Ap 21.1-22.5; ver 3.12), e que desde já, no
diante, a luz verdadeira e o centro das nações
culto cristão se pode aproximar (Hb 12.18ss).
(Lc 2.32; ver Mt 12.21; Jo 8.12; 9.5; 12.46
e Ap 21.24) : doravante a pessoa de Jesus as- Decorre destas considerações que é possível
sume o papel da cidade santa e do Templo. opinar o seguinte :a partir da última subida
Esta opinião é tão mais plausível que vemos o de Jesus a Jerusalém com os Doze (represen-
próprio Jesus anunciar a ruína do Templo e da tando as doze tribos dispersas, congregadas
cidade santa (Mt 24 par: acontecida no ano agora na cidade santa) e da subida de Paulo
70). A partir do dia de Ramos (e da atividade portador das coletas (= sinal do ajuntamento,
missionária de São Paulo, como indicaremos em torno da cidade santa, das nações e de suas
mais abaixo), Jerusalém perde sua importância riquezas), Jerusalém, enquanto lugar topográ-
enquanto lugar geográfico teologicamente signi- fico, transferiu para Jesus e sua Igreja sua sig-
ficativo: portanto, as profecias do VT sóbre nificação teológica, privada doravante do papel
a cidade do Grande Rei (Mt 5.35) devem re- singular que desempenhara desde os tempos do
portar-se não à Jerusalém geográfica, mas ao primeiro Davi e que devia cessar nos dias do
próprio Jesus e ao seu corpo, que é a Igreja. verdadeiro Filho de Davi. Note-se, todavia, que
Esta nova perspectiva desqualifica, como vemos, a Ascenção de Jesus anuncia a volta do mes-
o sionismo judeu. Jerusalém é, esencialmente. a mo, possivelmente para o mesmo monte das
"cidade de Davi", isto é, a cidade do Messias Oliveiras (Zc 14.3-4) do qual fôra arrebatado
segundo a ordem de Melquisedeque, pois êle (At 1.11-12). Por outra parte, São Paulo, re-
era rei de Salém (Gn 14.18). Ora. o sionismo, ferindo-se ao porvir "do Israel segundo a car-
em seu paroxismo, implica a negação de o ne", cita dois textos do VT que mencionam
Messias já ter vindo). Contudo, antes de sondar expressamente Sião (Rm 9.33; 11.26).
êste problema mais profundamente, é preciso
ver que papel desempenha Jerusalém depois do 4. O JORDÃO. Entre todos os rios bíblicos
Pentecoste (que, como a morte do Senhor, devia topogràficamente avaliados, o Jordão é o mais
acontecer em Jerusalém, At 1.4, para atestar, importante. Embora as tribos de Gad, de Ru-
mais uma vez, a posição desta como centro do bem e meia tribo de Manassés ocupavam terri-
mundo, At 2.5-11) é de Jerusalém que parte
: tórios ao leste do rio, o Jordão constituía a
o Evangelho (Lc 24.47; At 1.8), e também fronteira verdadeira da terra prometida, "esta
fato bastante esquecido! a missão de Paulo (Rm boa terra que está dalém do Jordão" (Dt 3.25:
15.19). Também na vida do apóstolo aparece, ver 11.31). O território que está situado ao
muito visível, uma imanização sóbre Jerusalém, oeste do Jordão será, portanto, "a banda dos
bem semelhante à constatada no fim da vida filhos de Israel" (Js 22.11), "a terra da pos-
de Jesus (ver At 20.16,22; 21.4,13). Enquanto sessão de Iavé" (Js 22.19). A terra situada ao
Jesus, subindo a Jerusalém, cumpria as profecias leste do rio será "a terra das nações (Is 8.23;
!

218 NOMES GEOGRÁFICOS

ver Mt 4.15), não obstante existir nela as men- rado (SI 114.3). Portanto, não poderá separar
cionadas tribos de Gad, Rubem e Manassés. Não os crentes do seu Deus (SI 139.9-10), nem tra-
é de admirar, pois, que o rio se erigisse como o gar a Jonas (Jn 1-2) simplesmente cumpre-
;

último obstáculo à entrada da terra prometida, lhe uma coisa, a êle e aos seus monstros, a sa-
e que franqueá-lo requerisse um milagre tão ber renunciar a si mesmo e adorar (SI 148.7)
:

portentoso como a passagem do Mar Vermelho aquêle de quem recebe tôda sua vida e tôda sua
(Js 3-4; SI 114.5) a terra prometida é um
: subsistência (SI 104.25ss). O fato de Salomão
país impossível de ser tomado com as próprias possuir uma frota que cruza os mares (lRs 9.
forças, mas exclusivamente com o auxílio da 26ss; 10.22: "de três em três anos voltava a
divina graça. Logo, não nos surpreendamos se frota de Tarsis, trazendo ouro e prata, marfim,
êste rio, fronteira da Terra Santa, fôra o tea- bugios e pavões") é uma prova patente de que
tro de portentos e milagres, especialmente na Deus o protege Israel não é uma nação de
:

história de Eliseu durante a qual os prodígios marinheiros


se acumularam (ver 2Rs 2.7-14: passagem do
Jordão em sêco 5.1-19: cura de Naamã o le-
;
6. AS MONTANHAS, à semehlança do mar,
proso; 6.1-7: o machado que flutua). Não é e sem dúvida pelas mesmas razões de polémica
por acaso que o Jordão devia ser o rio onde tácita contra as mitologias pagãs (lembre-se a
João o Precursor batizava (Mt 3.6 par; 3.13 oposição dos profetas aos cultos celebrados nos
par). O quarto evangelho especifica que "João "lugares altos": lRs 11.7; 14.23; 2Rs 18.4;
estava batizando do outro lado do Jordão (Jo 21.3; SI 78.58; Jr 7.30-31; Ez 20.27-28; Os
1.28; além do Jordão: 3.26; 10.40) saído da 10.8; Mq 1.5, etc), aparecem, de início, como

:

Terra prometida, reintegrava nela, pelo >òa- um lugar que Deus pode atingir e dominar com
tismo, os que se arrependiam assim renovava
;
seu poder (Jz 5.5; SI 65.7; Is 40.12; Mq 1.4,
para êles, sacramentalmente, a história de Jo- etc), a despeito dos poderes que elas simboli-
sué. Considerações estas que tornam inteligível zam (ver Dn 2.34-35; Jr 51.25; Zc 4.7). Nem
a tradição dos Padres da Igreja: êles referiam sequer têm o direito de ocupar o lugar onde
ao batismo tudo quanto diz respeito ao Jordão estão (Mt 17.20; Lc 17.6; ICo 13.2; Jó 9.5;
(inclusive o Salmo 42. o salmista, longe do
: Ez 38.20). Serão niveladas e desarraigadas, ao
Jordão, vers 7-8, sente-se "como um cervo instaurar-se o reino (Is 40.4; Lc 3.5 Is 41.15 ; ;

que suspira pelas águas que correm", "to- . . . Ap 6.14; 15.20, etc), unicamente será poupado
das as tuas ondas passaram sobre mim"). E. o monte Sião que, de conformidade com certos
mesmo hoje em dia, quem não aprecia o sabor textos proféticos, passará a ser o cume da terra
de tantos negros espirituais que cantam o Jor- (Mq 4.1; Is 2.2). As míticas "colinas eter-
dão? nas" ou "montes dos deuses" (Gn 49.26; Dt
33.15; SI 36.7; 68.16; Is 14.12ss; Ez 28.16),
5. O MAR. Quem escrutar os textos relativos carecem pois de qualquer autoridade ante Deus.
ao mar não sem surpresa, que o Apoca-
verá, Entretanto, as montanhas não ceixam_de ser
lipse (21.1) anuncia, como uma promessa e lugares especialmente reservados à revelação de
uma vitória, a eliminação do mar no mundo Deus e ao culto divino (Deus mesmo foi tido
futuro. O mar é, com efeito, para a Bíblia, um por um Deus montanhês, lRs 20.23,28s) sobre :

lugar suspeito de abrigar inimigos de Deus. A um monte é que Abraão irá sacrificar o seu filho
escritura, cada vez que menciona o mar, aparece (Gn 22.2) é de um monte que o povo de Deus
;

preocupada de não perder a persuasão de ser recebe sua melhor bênção (Ex 17.9ss; Nm
Deus o mais forte na realidade, o mar é peri-
:
22.4-24) sobre os montes ofereciam-se, primi-
;

goso em extremo com seus temporais (At 27. tivamente, os sacrifícios (ISm 9.12ss; lRs 3.4;
14-44; 2Co 11.25-26) e seus monstros (Jó lCr 16.39) sóbre os altos montes coloca-se a
;

3.8). O mar desempenha um papel tão exorbi- arca de Deus (ISm 7.1; 2Sm 6.3; ver lCr 21.
tante nas cosmogonias e nas mitologias do 29) nas alturas erguem-se também as escolas
;

Oriente Próximo que a Bíblia se apressa de de profetas (ISm 10.5; ver 2Rs 1.9; 4.25).
proclamar, com efusivas ações de graças, que Mas sobretudo, é sóbre uma montanha, o Sinai,
Deus é oSenhor do mar e o seu criador (Gn que Deus comunica a sua Lei (Ex 19ss), por
1.10; Ne9.6; Jn 1.9; At 4.24; Ap 10.6, etc). cujo motivo o Sinai (ou Horebe) comparte com
Deus "encerrou o mar com portas" (Jó 38.8; a colina de Sião, onde se ergue o Templo, o
Pv 8.29), sabe reduzí-lo à obediência (Is 50.2; título eminente de "monte de Deus" ou de "mon-

Jr 31.35; Am5.8; Mt 8.23-27 par), a ele e tanha santa" (Ex 3.1; lRs 19.8; SI 2.6; Is
a seus monstros (Jn 2.1, 11). O mar treme 8.18; Jo 4.20, etc).
perante Deus, retira-se e torna-se terra sêca Como lugar de oração e de revelação devem
(Ex 14.15ss; SI 106.9; 136.13; Is 11.15; Na ser consideradas as montanhas mencionadas com
1.4, etc), deixa-se domesticar ao ponto de frequência na vida de Jesus Jesus gosta de
:

Deus poder caminhar sóbre êle (Jó 9.8; Mt retirar-se sóbre um monte para orar (Mc_6.46
14.25ss par) ou, pelo contrário, foge apavo-
;
par; Lc 6.12; 9.28 par; etc); é sóbre um
: : :

NOMES PRÓPRIOS 219

monte que elege os Doze, representantes do novo clara que Abraão e seus descendentes gozarão
povo de Deus (Mc 3.13 par) sobre um monte ; perante êle uma situação particular. Deus dora-
transfigura-se revelando sua glória (Mt 17 lss
. vante será o "Deus de Abraão", ligado a Abraão
par a "santa montanha", nas
: lembranças em virtude de sua promessa.
de Pedro, 2Pe 1.18). Também sôbre uma mon-
c) A iniciativa de Deus, plena e soberana,
tanha êle aparece e fala aos Doze, depois de põe à prova Abraão não apenas na primavera
sua ressurreição (Mt 28.16ss). Sôbre um mon- de sua vocação, mas durante todo o transcurso
te é que Jesus pronuncia o ser "sermão do de sua vida (Gn 15.1-6; 22.16-18). Deus, por
monte" (Mt 5.1-8.1: o monte); evidente pa- sua aliança, convoca Abraão para a fé e para as
ralelismo para a nova aliança entre êste monte
consequências da fé, a saber, a separação do
das Bem-aventuranças e o Sinai da antiga alian-
mundo pagão e a obediência confiante à vontade
ça o sermão do monte é a carta magna do
:

revelada de Deus.
povo que, depois de ser salvo da escravidão do
Egito por Moisés é resgatado por Cristo da d) A eleição de Abraão concerne, não ape-
servidão do pecado. (Em Lc 6.17-49, Jesus pro- nas sua pessoa e descendência, mas a totalidade
nuncia seu sermão depois de descer do monte das nações (Gn 12.3) realidade bem expressa
;

a perspectiva é diferente o discurso compreen-


;
pela troca de Abrão, simples nome próprio,
de, ao lado das bem-aventuranças, as maldições. em Abraão, que significa "pai dos povos" (Gn
Temos aqui a palavra que separa e que_julga, 17.5). Por Abraão todas as nações terão parte
devendo-se de fato interpretar o sermão como na salvação; a aliança faz, portanto, de Abraão
uma antecipação, na vida de Jesus, do Juízo um intercessor (ver Gn 18.22-32).
Final que terá lugar quando Cristo descerá, já A profecia clássica, fiel à sua prática geral,
não de um morte, mas do céu). fala pouco de Abraão; preocupa-se sem dúvida
de precaver os israelitas contra a ilusão de uma
7. HAR MAGUEDOM (Armagedom) A êstes .

salvação automática concedida pelo mero fato


diversos exemplos, que poderíamos multiplicar, da aliança: quando fala dêle (Is 29.22-24;
de têrmos geográficos a ressonância teológica, Mq 7.20), fá-lo para lembrar a gratuidade
acrescentemos ainda o enigmático Har (=mon- do perdão que Deus concede ao israelita arre-
te) Maguedom de Ap 16.16. É o lugar de con- pendido. Umdos efeitos mais característicos do
gregação para ado grande dia do
"batalha Exílio foi de ressaltar novamente a promessa
Deus onipotente", dos reis da terra instigados de Deus (Is 41.8; 51.2; SI 105.9; Ne 9.7).
pelos espíritos demoníacos. Os exegetas do Apo- Por causa de sua aliança Deus permanece fiel
calipse não sabem o que pensar deste lugar ao seu povo.
alto onde se ajuntarão as forças ímpias. Qual- Posteriormente falseiam-se as perspectivas do
quer relação com a cidade de Megido parece judaísmo. Abraão é elogiado por seus méritos,
impossível, como também o é ver uma altera- como se a aliança não emanasse da soberana
ção de um hipotético monte Har-Moed (=mon- iniciativa de Deus. Pertencer à raça de Abraão
te do ajuntamento). Nós nos contentaremos será tido, então, como um título e uma garantia
com admitir que o autor, mantendo no seu de salvação.
texto grego êste termo hebraico, é fiel ao es- O NT demonstra como as promessas feitas
tilomisterioso próprio de todos os apocalipses. em Abraão ao povo em
de Israel se realizam
/.-/. Von ALLMEN Jesus Cristo
a) Reconhece e confirma a eleição de Abraão
NOMES PRÓPRIOS (Mt 8.11; Mc 12.26; Lc 16.22; 19.9), ma-
nifestando porém que a vocação do patriarca
VT
testemunha a favor de Jesus Cristo e da obra
\. ABRAÃO. Tal como as Escrituras nos de Cristo (Jo 8.51-59).
apresentam a Abraão (único título que nos in-
teressa aqui), êle é o protótipo do povo de Is-
b) A aliança que, por decreto de Deus, des-
cansava sôbre Abraão, "a Rocha" (denomina-
rael, cuja pessoa e destino levam as seguintes
ção dada ao patriarca pelo Judaísmo, a exem-
características
plo de Is 51. Is), descansará doravante, por dis-

coisa
a) Abraão
alguma
é o escolhido de
justifique a escolha de sua
pes-
Deus, sem que posição de Cristo, sôbre
cha" do NT (Mt 16.18).
—>
Pedro, "a Ro-

soa entre tantos outros descendentes da prosá-


c) Repudiando qualquer idéia de uma salva-
pia de Sete e de Noé, portadora da divina
promessa (Gn 12.1).
ção automática, o NTdeclara que a fé de
Abraão, a qual implica logicamente as obras da

e
b) Deus celebra uma
com sua descendência
—>
e,
aliança com êle
selando êste pacto
fé, fica para sempre o meio único de partilhar
da aliança (Rm 4.1-25; Gl 3.6-29; Tg 2.21-23;
com um sacrifício (Gn 15.7-12; 17-18), de- Jo 8.39-40; Mt 3.9).
;

220 NOMES PRÓPRIOS

d) A
perspectiva universalista é plenamente 12.1-18; Dt 5.24-28). Tal missão revela todos
manifestada todo e qualquer crente pode ser
: os elementos essenciais da aliança entre Deus
feito um "filho de Abraão" em virtude da fé e o povo preferido.
(Gl 3.7,29).
a) Desde o primeiro dia do Êxodo (saída do
Egito), as relações entre Deus e Israel apare-
2. JACÓ. Os relatos de Génesis relativos a
cem concentradas sôbre uma única pessoa, cuja
Jacó, geralmente mostram nêle, como em seu
presença revela ao mesmo tempo a distância in-
avô Abraão, o protótipo do povo escolhido,
franqueável entre o homem e Deus, e a vontade
Constatamos, porém, entre ambos, várias dife-
divina de se comunicar ao homem (Ex 20.
renças do ponto de vista da história redentora.
Enquanto a eleição afirma-se em Abraão de
18-21; 33.5-12; 34.9, 29-35; Nm
11.2; Dt 5.

uma maneira ainda muito geral, as modalidades


2-5). A
divina aliança inscreve-se, pois, numa
história única da qual dependerá tôda a his-
particulares da vocação revelam-se em Jacó.
tória ulterior.
a) Jacó teve doze filhos (Gn 35.23-26), an-
tepassados, conforme narra a Bíblia, das doze
b) A vontade comunicada por Deus a Moi-
sés constitui definitivamente a única fonte ori-
tribos que Iavé libertará do cativeiro do Egito
ginal da qual haurirão os israelitas o conheci-
e com as quais celebrará solene aliança no mon-
te Sinai (Gn 49.28-29; Ex 24.4). Ver
em Números.
— >£>o- mento de Deus, das promessas e das exigências
divinas (ver lRs 2.3; 8.9, etc).
ze
b)Deus manifesta em Jacó a gratuidade im-
c) É mediação única de Moisés que faz
esta

previsível de sua eleição. Escolhe ao mais novo


de Israel um
povo, uma nação santa, uma co-

e rejeita ao primogénito (Gn 25.23; ver Ml


munidade ligada a Deus mediante a aliança,
e membros interligados todos mediante a mesma
1.1-3). A
graça de Deus não se conforma auto-
màticamente à natureza (outros exemplos Caim :
aliança (Ver Ex 6.7; Dt 4.20, etc).
e Abel, Ismael e Isaque). d) Contudo Moisés não passa de um simples
c) A
eleição divina manifesta-se através dos instrumento.A obra que Deus sôbre êle alicer-
piores equívocos humanos. Jacó é o "suplanta- çou para sempre, acabar-se-á sem êle Moisés :

dor", conforme reza seu nome (Gn 25.26; 27. morerá antes de entrar na terra prometid a (Dt
36). No momento de nascer comporta-se jáem 34.5-8).
uma forma bem ilustrativa nome (Gn
dêste Sem deixar-se atingir pelas deformações do
25.24-34; 27.1-45). O pecado humano não é judaísmo ulterior, mormente as de expressão
óbice ao cumprimento dos desígnios de Deus grega, que faziam de Moisés um ser perfeito,
mas Deus, misteriosamente, faz servir o pecado genial, e não um simples mediador, o NT rea-
à realização de seus santos decretos. firma a vocação original de Moisés porém mos-
trando-a cumprida e realizada em Jesus Cristo.
d) Simultâneamente rebelde a Deus e instru-
mento de Deus, Jacó o suplantador vê-se ligado a) A dada por Deus a Moisés continua
lei

a Deus inextricàvelmente. Sempre em luta com válida (Mt


23.1-2; At 7.38, etc), mas Jesus
Deus, merecerá o nome de Israel
— lutador de Deus, Gn 32.28).
( —> Israel descobre a sua significação nova (Mc 10.1-12;
Mt 5.11-48 —>
Lei).
Nãosupreende, pois, que Jacó designe por b) O NT
salienta o caráter profético de
excelência o povo escolhido (quer em conjunto: Moisés. Moisés anuncia o Cristo (Lc 24.27,44;
Dt 32.9; Is 9.7; etc, quer nas suas diversas Jo 1.45; 5.46; At 3.22, etc), a ressurreição
partes: assim, em Os 10.11, Jacó Efraim; em = dos mortos (Lc 20.37), a evangelização dos
Is 65.9, Jacó=Judá) não obstante o seu pe-
;
pagãos (Rm 10.19), a graça soberana (Rm
cado (Os 12.3-5; Mq 3.8), o povo de Jacó é 9.15).
o portador das promesas inerentes à eleição (Is
10.21; Mq 5.6-8). c) Moisés pessoalmente, o protótipo do
é,

Fora de certas fórmulas


Cristo, em sofredor (At
particular do Cristo
estereotipadas toma-
3.22-23; ver Dt 18.15,18; At 7.37; ICo 10.1-2:
das do VT (como "Deus de Abraão, de Isa-
Hb 11.24-26; Mt 2.1-15 etc).
que e de Jacó", ou "a casa de Jacó", e outras),
o NT quase não menciona d) Contudo, Cristo, o novo mediador, é su-
Jacó, a não ser para
ilustrar a gratuidade da eleição (Rm 9.6ss).
perior ao antigo tôda a realidade de Moisés
:

descansava no futuro e foi realizada por Cristo


3. MOISÉS ocupa um lugar único entre to- (Jo 6.32; Hb 3.1-6).
das as figuras do VT. Além de ser o chefe polí- A tipologia Moisés-Cristo constitui, em suma,
tico, o sacerdote, o taumaturgo e o profeta, um dos pontos onde aparece melhor, através da
igualmente exímio em todos êstes campos, êle maior parte dos escritos neotestamentários. tan-
é mediador entre Deus e o seu povo, superior to a unidade como a diferença das duas alianças
a todos os profetas (Ex 4.16; 7.1; 33.11; Nm (ver Jo 1.17).
: :

NOMES PRÓPRIOS 221

4. DAVÍ, de Judá, em Hebrom, e logo


rei de Davi" que Jesus inaugurará (Mc 11.10;
de todo Israel em Jerusalém (exórdio do século At 13.34; Ap 5.5; 22.16, etc).
X antes de Cristo), é uma das figuras mais
célebres da história de Israel, e certamente uma 5. SALOMAO, Davi (em
filho e sucessor de
das mais conhecidas. Atribuem-se-lhe muitos meados do século Xa.C), deixou, malgrado as
salmos. imensas transformações que introduziu na rea-
Em Davi a aliança de Deus com IsraeMoma leza de Israel, tal reputação de sabedoria que
sua forma definitiva que perdurará até najnova muitos escritos lhe foram atribuídos posterior-
aliança. Conforme os textos bíblicos, em par- mente (Provérbios, Eclesiastes, Cantares, al-
ticular os textos dos livros de Samuel, esta guns Salmos canónicos, além de Odes e Salmos
aliança caracteriza-se pelos traços seguintes extra-canônicos). As características de sua pes-
soa e obra são as seguintes
a) A aliança carismática (isto é, caracteri-
zada por intervenções contínuas e repentinas do a) Filho de Davi e de Bathseba (2Sm 12.
Espírito de Deus), representada por Saul e pe- 24-25), demonstra, na sua pessoa, que Deus
los Juizes, acrescenta-se doravante uma aliança Permanece fiel à aliança davídica, não obstante
de oracm dinástica e institucional. O Espírito o pecado dos homens : êste concorre ao plano de
divino confere-se uma vez por todas a Davi e a Deus.
seus descendentes (ver 2Sm 7.4-16 e 23.5: a Entretanto, esta fidelidade não é nunca
b)
carta institucional outorgada por Deus a Davi automática. Salomão, por ter transformado a
e a sua dinastia). realeza davídica em monarquia absoluta, a. exem-
b) Não comporta isso a supressão do aspec- plo das monarquias circundantes, atraiu sobre
to carismático da aliança confederai das doze si os castigos de Deus, os quais foram executa-

tribos. Antes, Davi reúne na sua pessoa de dos depois da morte do soberano (lRs 11.1-40).
monarca dinástico e de escolhido carismático Deus sem dúvida, guardará sua fidelidade à
ambas as correntes da obra divina em Israel, casa de Davi, porém não sem prová-la mediante
o cisma de Jeroboão.
a saber: a herança prometida aos descendentes
de Abraão (Gn 38.29; Rt 4.18-22) por uma
parte e a liderança divina de Israel, mediante
c) A construção do —>
Templo, que deu
cumprimento à vontade de Iavé (2Sm 7.11;
intervenções proféticas (2Sm 12.1-23) por lRs 6.11-13), induziu Salomão em tentação:
outra. ad juntou ao Templo o próximo palácio (lRs
c) Os dois elementos indispensáveis à ple- 7), inaugurando destarte uma espécie de césaro-
nitude de Israel, unidos em Davi e Salomão se- papismo que logo provocará a insurreição da
parar-se-ão por ocasião do cisma entre Judá e maior parte de Israel.
Benjamim por um lado, e as dez tribos do d) Fêz de Israel uma grande potência, ro-
Norte por outro lado (lRs 12.1-19). Contudo, bustecida com alianças' (com o Egito e as na-
a salvação das tribos nortistas (= Samaria) ções vizinhas: lRs 3.1; 9.11-16; 11.1-8, etc);
continuará ligada às promessas feitas a Davi impôs o trabalho forçado em substituição à
e à sua casa (Os 3.5; Is 9.6; Jr 30.9). A colaboração voluntária dos confederados israe-
casa de Judá, por sua vez, escarmentará com litas (lRs 9.15-21); converteu o exército em
o exemplo profética dos castigos de Samaria uma guarda pessoal (lRs 9.22). Assim, Salo-
(Is 28.7-22; Jr 3.6-13). mão, ainda que sem lográ-lo plenamente, repu-
d) A
despeito dos castigos impostos a Davi diou a tradição especificamente israelita, a esta
e a seus descendentes, por causa de suas infide- tradição que, precisamente no reinado salomô-
lidades, a promessa ficará ligada indefectivel- nico, começa a ser escrita e fixada por tantos

mente à casa de Davi (Is 11.1; 55.3; Jr 33. autores anónimos, redatores da gesta israelita,
14-26; SI 89; 132; etc), cujos soberanos suce- e cujas partes mais antigas figuram no Penta-
teuco.
der-se-ão sobre o trono até o exílio, enquanto
os reis de Samaria nunca conseguiram formar O NT menciona Salomão apenas esporàdica-
uma dinastia, pois exclusivamente à dinastia mente, quase sempre com um matiz pejorativo.
davídica foi feita a promessa de perpetuidade. Mt 1.6-7 especifica que nasceu de Davi e da
As mesmas perspectivas projetam-se através que fôra mulher de Urias. A glória de Salo-
do NT —
> Jesus é o "filho de
1.1; Rm 1.3; etc), sendo porém
Davi" (Mt
tipicamente
mão é inferior à dos lírios dos campos (Mt 6.
29; Lc 12.27). O Cristo é superior a Salomão
concebido do Espírito Santo fora da linhagem (Mt 12.42; Lc 11.31), e se uma pagã, qual a
davídica (Mt 1.18-25; Lc 1.34-35) claro in- rainha do Sul (Sabá), veio para ouvir a Salo-
dício de que esta linhagem não pode dar os mão, quanto mais a geração atual deveria ou-
frutos da promessa, por muito que seja a de- vir a Cristo. Estêvão combate o Templo de
tentora da promessa, sem a intervenção de Salomão ao proclamar que "Deus não habita
Deus em Maria. É, a despeito de tudo, o "reino em casas feitas por mãos humanas" (At 7.46-
. :

222 NOMES PRÓPRIOS

48). Quanto aos textos referentes ao pórtico tiremos sóbre dois aspectos teológicos de sua
de Salomão, eles carecem de qualquer signifi- pessoa e obra, remetendo para os demais as-
cação teológica (Jo 10.23; At 3.11; 5.12). pectos a —>
Batismo

6. ELIAS o profeta (século IX a.C. ver lRs :


a) O
ministério de João, o Batista, está li-
gado, indissoluvelmente , ao de Jesus, sendo im-
17.1ss e 2Rs 2.12), é entre todas as figuras do
possível compreendermos a João senão como
VT a única que reúne as duas características
aquêle que prepara a vinda de Cristo (Mt 3.
seguintes a) não morreu, mas foi levado ao
:

llss par; Jo 1.26-39; lembrar também o laço


céu (2Rs 2.1-12; outro caso: Enoc, Gn 5.24) ;

indissolúvel entre a anunciação e o nascimento


b) seu regresso à terra é profetizado (Ml
de João e a anunciação e o nascimento de Je-
4.5).
sus, Lc 1-2). Eis porque João não admite que
O
judaísmo posteriormente desenvolverá, com uma rivalidade surja entre seus discípulos (su-
prolixidade, ambos os temas fornecidos pelas jeitos à determinada disciplina espiritual: Mt
Letras canónicas. Elias, através da literatura 9.14-15; Lc 11.1) e os discípulos de Cristo (Jo
judia pós-canônica (e mesmo pós-cristã), fi- 3.22-36). Eis porque, depois do Pentecoste, os
gura como o anjo protetor do povo preferido, discípulos de João encaminham-se para a Igreja
o precursor, cuja vinda anuncia o dia do Juí- (At 18.25ss; 19.1-7). Já no cárcere, João pa-
zo de Deus, e mesmo mais explicitamente, o rece ter sido assaltado de dúvidas acerca da
precursor do Messias. Não é pois, maravilhoso messianidade de Jesus. Tais dúvidas eram ca-
que seja Elias, depois de Moisés (citado 80 ve- bíveis porque Jesus se apresentava como um
zes), de Abraão (73 vezes), e de Davi (59 Messias bem menos glorioso do que sonhava
vezes), a figura mais citada no NT (29 ou
talvez 30 vezes, pois certas cópias de Lc 9.54
o judaísmo ( —>
Reino de Deus) ora, não
sendo Jesus o Messias, todo o ministério de
;

mencionam Elias). João seria vão, vão o seu encarceramento, vã


Enquanto certos textos aludem a diversos epi- a sua morte pressentida. A
resposta "em chave"
sódios da vida do profeta (Lc 4.25-26; Tg que Jesus lhe transmite, devolve a paz àquele
5.17; Rm 11.2-5), e que um contexto atesta que vai morrer pois agora não há mais dúvida
;

a fé judia na intercessão de Elias (Mc 15. Jesus é de fato "aquêle que havia de vir" (Lc
35-36 e Mt 27.47-49), dois grupos de ver- 7.18-23 par).
sículos são de especial importância para a teo-
b) João é o último profeta e o primeiro pro-
logia.
fetizado, constituindo o enlace entre a antiga e
a) Os que atestam a volta de Elias, pre- a nova aliança, colocado no lugar exato onde
cursor do Messias (Mt 16.14 par; Mc 6.15; coincidem o século presente e o século futuro
Lc 9.8; Mt 17.10-11 par; Jo 1.21,25). Inde-
pendentemente da atitude que a este respeito
(
— > Tempo).
enviados de Deus, da
Àimitação de todos os demais
lei antiga (Jo 1.6; Mt 21.
assumiu João o Batista (Jo 1.21,25), há uma
25 par), João anuncia a chegada do Messias:
coisa certa, a saber ,o próprio Jesus considerou
colocado ainda aquém da era messiânica, sente-
que, na pessoa do Batista, foi cumprida a volta
se indigno de desatar as sandálias do Cristo,
profética de Elias (Mt 11.14; 17.12-13; Mc
não obstante ser, na afirmação dêste Cristo, o
9.13; Lc 7.27; ver Mc 1.2 e Lc 1.16-17,76).
maior entre os nascidos de mulher (Mt 3.11
Portanto, João o Batista c o último profeta,
par; Lc 7.28 par). Contudo João, o Elias redi-
o qual precede imediatamente a vinda do Mes-
vivo profetizado por Malaquias (Ml 4.5ss;
sias.
ver Lc 1.76ss), tem consciência de achar-se
b) Os que atestam que Elias é o represen- no limiar da era messiânica. Nesta perspectiva,
tante típico da profecia, ao lado de Moisés o João é bem típico da maneira como o en- NT
típico representante da Lei (Mt 17.3-4 par). tende o VT
o VT, ainda que ultrapassado,
:

permanece presente, porquanto êle está orien-


Moisés e Elias, a Lei e os Profetas, dão tes-
tado sóbre o Messias tão intimamente que as
temunho de Cristo na transfiguração, e também
testemunharão a seu favor ao fim dos tempos
>
Escrituras tornam-se inteligíveis e co-
bram um sentido exclusivamente por Jesus
ÍAp 11 3-6). Desta maneira verifica-se a uni-
em Jesus.
dade das duas alianças e o cumprimento da
antiga mediante a nova.
2. MARIA, a mãe do Senhor. A mãe de
J. -L. LEU BA Jesus aparece com tal discreção e humildade no
NT limiar do NT que nos inclinamos a pensar
que também ela podia declarar com respeito
1. JOÃO
BATISTA. O nascimento, a vida a seu filho "Convém que êle cresça e que eu
:

e a morte do Batista são tão conhecidos que diminua" (Jo 3.30). Nada sabemos acêrea do
é excusado repeti-los aqui (ver Lc 1.5-25,57 80; nascimento e da morte de Maria, e bem pouca
Mt 3.1-17 par; 14.1-12 par). Apenas insis- coisa de sua vida. Mas, ainda quando a maior
:

NOMES PRÓPRIOS 223

parte dos intérpretes protestantes se negue a nível que os demais homens só atingirão me-
reconhecê-la sob os traços da "mulher vestida
do sol, com a lua debaixo dos pés e uma coroa
diante o —> batismo (o batismo é, para todos
nós, uma concepção paralela à concepção virgi-
de doze estrelas na cabeça"*"do Ap 12.1, Maria nal de Cristo), nasce no nível da regeneração.
desempenha, do ponto de vista teológico, um A doutrina da concepção virginal de Jesus em
papel único na história da salvação. nada implica uma diminuição da humanidade
verdadeira, como alguns sonharam, pelo con-
a)Êste papel ainda não se salienta nos três
sinóticos, nos quais Maria aparece apenas para
trário, dá-lhe maior relêvo. Em segundo lugar,
a concepção milagrosa de Jesus (cujo nome,
situar Jesus (Mc 6.3; Mt 13.55), ou para con-
conferido antecipadamente, significa "Deus sal-
firmar que "um profeta não é desprezado senão
va") proclama que os homens não podiam dar,
na sua terra e na sua casa" (Mt 13.57; ver
por si mesmos, cumprimento às promessas de
Mc 3.21) aparentemente Jesus separou-se de
:

Deus, nem produzir o Salvador não lhes com-


:

sua família recalcitrante à vontade de Deus,


pete encontrar em si mesmos a fonte e a virtu-
e encontrou alhures uma mãe, irmãos e irmãs
de de sua redenção, cumpre-lhes unicamente
(Mc 3.31ss; Mt 12.46ss; Lc 8.19ss; alguns
receber e adotar o Redentor. Perant a salvação
comentaristas opinam que Maria não admitia
todos êles estão exatamente na situação de José,
de início a messianidade de seu filho). O Evan-
o esposo de Maria, perante Jesus Cristo (Mt
gelho relata assim uma tradição conforme a
1.19ss; Lc 1.34): afastados como incapazes
qual Jesus conheceu os duros arrancamentos
de gerá-la, porém convidados a reconhecê-la,
exigidos muitas vêzes pela fidelidade ao Reino
a recebê-la, e, assim fazendo, salvarem-se.
(Mt 19.29 par; Lc 14.26). No entanto, não
é possível interpretar dentro da mesma pers- c) À luz dêstes princípios teremos o direito
pectiva (de dúvidas ou de hostilidade por parte de apreciar, afastar e rejeitar um determinado
de Maria) a severa palavra de Jesus a sua número de opiniões e de tradições relativas a
mãe por ocasião das bodas de Caná (Jo 2.4). pessoa de Maria.
pois o quarto evangelho pressupõe que a mãe 1. ° A questão de saber se Maria teve ou
(e os irmãos?) de Jesus nunca deixaram de não teve outros filhos não interessa ao NT.
crer na messianidade do Salvador (ver Jo 2.12; Mesmo quando as Escrituras fornecem os indí-
19.26s; não obstante 7.4-5) e já em vida de cios de uma especial veneração por todos aque-
Jesus possuíam a firme adesão que Lucas subli- les que se aproximaram mais intimamente de
nha para o tempo posterior à ressurreição (At Jesus e dos portadores da salvação (At 19.12;
1.14). ver Mt 9.21; Mc 5.30; At 5.15), a Virgem
Maria fica fora desta zona propícia às lendas
b) No entanto, a mãe de Jesus desempenha
piedosas embora ela sempre se denomine "a
um papel importantíssimo nos denominados
:

mãe de Jesus" (e não de nenhum outro), os


"evangelhos da infância" (Mt 1-2), conforme
Evangelhos não temem falar em irmãos e irmãs
os quais a virgem Maria "achou-se grávida
do Salvador (Mt 12.46ss par; 13.55 par), sem
por obra do Espírito Santo" (Mt 1.18; Lc
especificar se êstes eram de fato irmãos e irmãs,
1.26-38), realizando-se assim a profecia de
ou simplesmente filhos de um primeiro matri-
Isaías 7.14. Mesmo quando a palavra hebraica
mónio de José (que parece haver morrido an-
usada por Isaías pudesse traduzir-se por "vir-
tes de Jesus iniciar seu ministério), ou meros
gem" ou por "mulher jovem", Mateus tradu- primos (opinião perfeitamente sustentável exe-
ziu-a sem a menor hesitação por "virgem".
gèticamente em razão da elasticidade dos têr-
Consta com igual clareza que o quarto evan- mos de parentesco no mundo judaico). O NT,
gelho pressupõe, por sua vez, a concepção virgi- na sua letra, ignora a tradição ulterior, cara
nal de Jesus, embora sem a relatar explicita- também aos Reformadores, que Maria não teve
mente. Alude a ela manifestamente quando fala outro filho que Jesus.
daqueles que "não nasceram de sangues (no plu-
2. °
ral = da união dos sangues), nem da vontade Ignora igualmente qualquer notícia acêr-
da carne, nem da vontade do varão (=do ho- ca de uma assunção de Maria. São João, ao
mem macho), mas de Deus" (1.13). O alcance qual Jesus crucificado confiou sua mãe (Jo
teológico da concepção virginal é o seguinte 19.26-27) e que podia conservar melhor um fato
ela proclama, em primeiro lugar, que a primeira tão portentoso, escreve (certamente depois da
criação renova-se em —>
Jesus Cristo Je-
sus, portanto, é o segundo Adão, o homem nôvo,
;
morte de Maria) "ninguém subiu aos céus,
:

senão aquêle que de lá desceu, a saber o Filho


o recomeçador no qual Deus recapitula tôda sua do Homem que está no céu" (3.13).
obra nasce, como qualquer homem, de uma
:
3. ° Deu-se à virgindade de Maria uma im-
mulher (Gl 4.4), é portanto homem verdadeiro. portância meritória quer dizer, foi preferida
:

Mas simultâneamente êle interrompe a linhagem uma idéia inspirada pelo dualismo grego, e es-
humana para iniciar uma linhagem humana nova quecido o ambiente semítico no qual se alimenta
(Jo 1.13; Ef 2.15). Nasce imediatamente no o pensamento bíblico. Se a virgindade tivesse
224 NOMES PRÓPRIOS

qualquer pêso meritório, Maria (tão supreen- mente encontrariam nela um motivo para des-
dida ao ver-se escolhida para mãe de Jesus. Lc viar em
seu favor a pessoa absolutamente cen-
1.34), desejosa de preservá-la, não se teria des- tral de Jesus Cristo. Não obstante, o cele- NT
posado com José. A virgindade de Maria sa- bra Maria como a "mãe do Senhor", como
lienta-se no Evangelho, primordialmente, para "aquela que todas as gerações proclamarão
salientar que Maria era "nova", apta portanto bem-aventurada" (Lc 1.39-56). Superior in-
a servir o grande renovamento que se instaura comparavelmente a qualquer outra mulher, Ma-
com Jesus. Diríamos, aceitando o risco de pare- ria tem uma vocação única e irrepetível como
cer insolentes, que a virgindade de Maria corre a própria vocação de Jesus. Maria "é bendita
paralela com o sepulcro virgem que servirá de entre tódas as mulheres" (Lc 1.42) não por-
sepultura ao corpo de Jesus (Mt 27.60; Lc quanto fôsse o tipo da maternidade ou por-
23.53; Jo 19.41; Mc 11.2; Lc 19.30). quanto fôsse mãe, mas porquanto dera à luz
o Filho eterno de Deus e assegura a sua En-
4. ° Não faltou quem ideasse que a concep- carnação. Sua obediência faz dela a imagem
ção virginal de Jesus tinha por objeto revelar
e o exemplo da vocação e do dever tanto para
como Jesus, contràriamente aos demais homens, a Igreja como para cada membro. Maria re-
estava sem pecado (Jo 8.46; 2Co 5.21; Hb
cebeu ao Senhor com submissão (Lc 1.38,48),
4.15; IPe 2.22; ljo 3.5, etc). Descansava
sem temer por sua reputação (Mt 1.19ss). Le-
tal opinião sobre o postulado implícito que o
va Jesus Cristo em si, mas não pretende guardá-
pecado se transmite pela união sexual, que a
lo para si, cônscia de trazê-lo finalmente ao
sexualidade é a sede do pecado. Postulado des-
mentido pela doutrina bíblica do
e do — matrimónio.
—> homem
mundo. Neste sentido, Maria
Igreja) participa na conspiração (na "conju-
(bem como a

ração") de Deus para salvar o mundo, sendo


5. ° Sob a influência quiçá das práticas equí- muito legítimo celebrá-la como aquela que in-
vocas de certos cultos asiáticos a uma deusa- troduziu o Cristo secretamente entre nós, para
mãe, os cristãos perderam consciência dos limi- que em Cristo o Reino de Deus se faça presente.
tes bem precisos entre mãe e esposa de Cristo, Ela foi para o mundo o que a Igreja não deixa-
e assim Maria tornou-se a nova Eva. Ora, sendo rá de ser até a volta de Cristo: "a contraban-
Jesus o nôvo Adão, corresponde à Igreja, e não dista" do céu.
a Maria, ser a nova Eva a Igreja é que nasce
:

da água (batismo) e do sangue (eucaristia) que 3. PEDRO. Para um exame profundo dos
flui do lado do Crucificado (Jo 19.34), como a problemas históricos e teológicos suscitados
primeira Eva surgiu do lado de Adão misterio- pela pessoa e a obra do apóstolo Pedro, con-
samente mergulhado num sono de morte (Gn 2 sulte se a obra de O. Cullmann, São Pedro,
21ss). Muitos teólogos, baseando-se em uma discípulo, apóstolo e mártir (Edição francêsa
noção muito mais moral que jurídica do — ^pe- em Neuchâtel et Paris, 1952). Nos limites es-
treitos dêste Vocabulário, nos contentaremos
cado original, opinam que a Virgem Maria,
para ser apta à maternidade do Unigénito de com os pontos que seguem:
Deus, fôra preservada desde o seio materno de Betsaida, burgo
a) Pedro, o pescador
da escravidão do pecado, condição comum da Lago de Genesaré, (Jo 1.44),
ribeirinho do é,
humanidade caída. E a famosa doutrina da o mais caracte-
sem dúvida, o mais conhecido e
Imaculada Conceição da Virgem, que alguns
campos da cristandade confudem frequentemen-
rizado dos —>Doce. Foi êle o primeiro a
quem Jesus chamou (Mt 4.18 par; não obs-
te com a afirmação bíblica da conceição virgi-
tante (Jo 1.40-43); era casado (ICo 9.5; ver
nal de Jesus. Tal doutrina, porém, nunca pode Mt 8.14 par). O NT nada nos transmite acêr-
formar-se na ideologia dos autores do NT, por- ca de sua morte, exceto a profecia velada de
ciuanto ela contradiz a verdadeira humanidade
Jo 21.18-19 que alude a uma morte violenta.
de Jesus e destrói a boa nova da salvação de
É, porém, digna de todo crédito a tradição rela-
:

fato. se Maria se achasse fora do "campo" onde


tando sua morte como mártir em Roma aproxi-
jaz prêsa pelo Maligno a humanidade peca- madamente no ano 60. O NT conserva duas
dora, o Filho que ela concebeu nasceria também cartas circulares atribuídas a Pedro (a auten-
fora dêste campo nem êle nem a sua obra atin-
:
ticidade da segunda é duvidosa).
giriam aos homens. É pois necessário, mais ain-
Simão é a viva ilustração de que, quando
da, é essencial, que Maria (culpada ou não de
Jesus chama alguém ao seu serviço, esta voca-
pecados cometidos no nível da "moral") se en-
ção não altera nem falsifica a humanidade do
contre sob a servidão jurídica do pecado, para
vocacionado. Atormentado (Lc 5.7-8). teme-
«me Jesus não se esfume num sonho de salvação
rário (Mt 14.28ss par), pronto a compreender
e seja realmente o Salvador.
as exigências do Espírito (Mt 16.16s), e igual-
d) O NT
fala de Maria com extrema so- mente pronto a contrariá-las (Mt 16.22-23),
briedade toma grande cuidado em protegê-la
; seguro de si (Mt 26.33). corajoso (Jo 18.10),
contra as lendas e os erros que muito facil- covarde (Mt 26.69ss par), ansioso (Lc 24.12),
NOMES PRÓPRIOS 225

humilde (Jo 21.7), intrépido (At 4.8ss), ca- de Cristo (ICo 1.12; 3.22). (Acêrca da hipo-
paz de eufrentar-se quando »tem razão (At 11. tética dependência de Pedro relativamente a
1-18) e contudo influenciável (Gl 2.11), Pedro Tiago, é sintomático que Tiago, ao falar de
é a prova viva que não é preciso ser um herói Pedro, uma só vez, não o chame Cefas ou Pe-
antes de poder crer em Cristo e de servi-lo. Je- dro, mas simplesmente Simão: At 15.14).
sus deu a êste homem tão humano o nome im- O Quarto Evangelho, embora reconhecendo,
previsto de "Rocha" (Cefas =
Pedra =£ Pedro: como os demais autores do NT, a preminência
Jo 1.42; Mc 3.16; Lc 6.14; ver Mt 16.18). de Pedro (1.42; 21.15-19; também 6.66ss;
É com êste nome nôvo. simultáneamente pro- 13.36), tende a introduzir "o discípulo amado"
messa e vocação, que Pedro entrave toma seu
lugar na história da saivação ( "> nome
— entre Jesus e o chefe dos Doze quiçá por ter o
:

—> promessa) .
discípulo amado, antes que Pedro, seguido a
Jesus (1.38-42 contraria neste particular a Mt
b) Seu lugar primeiro entre os Dose.
é o 4.18 par). Pedro pergunta ao discípulo amado
Nas listas apostólicas Pedro é quem encabeça, o significado do anúncio da traição (13.24) ;

invariavelmente (Mc 3.16 par; At 1.13). Ma- se deixa introduzir por êle ao pátio do sumo
teus salienta terminantemente o fato de Pedro sacerdote ( 18. 15ss) e só depois dêle reconhece
;

ser o primeiro (10.2). Com Tiago e João êle ao Ressuscitado (21.7). Sabe perguntar se a
faz parte do círculo dos íntimos de Jesus, sendo intenção implícita do Quarto Evangelho não foi
também neste círculo sempre mencionado pri- dar preferência à fé meditativa sóbre o direito
meiro : com presenciou a ressurreição da
êles Mas, inclusive neste caso, o depoi-
eclesiástico.
filha de Jairo (Mc 5.37), a transfiguração de mento unânime do NT sobre o papel primor-
Jesus (Mt 17. lss par) com êles e André ouviu
; dial de Pedro não se infirma, muito pelo con-
dos lábios de Jesus a profecia da ruína de Je- trário se o Quarto Evangelho pretendesse ava-
:

rusalém e os sinais do fim do mundo (Mc liar o lugar do apóstolo, isso provaria quão
13.3), recebeu com êles o convite de Jesus para grande era êste lugar. Entretanto, outras fon-
compartir a oração e a vigília do Getsemani tes da tradição apostólica, usadas por Lucas,
(Mt 26.37 par). Durante a vida de Jesus, Pe- aproximam e emparelham Pedro e Toão (Lc
dro é geralmente quem fala ao Senhor, como 22.8; At 3. lss; 4. lss; 8.14ss; ver 'ainda Gl
porta-voz dos Doze (Mt 17.4; 18.21; 19.27; 2.9). Folga dizer que não se pode atribuir a
26.33-35: Mc 8.29; Lc 12.41. etc). Numa pa- qualciuer intento de rebaixar São Pedro o papel
lavra. Pedro aparece de tal modo como o pri- um tanto ridículo que lhe dá Jo 13.6-7; ne-
meiro entre os Doze, que o texto sagrado pode nhum dos outros evangelhos deixa de insistir nos
escrever taxativamente "os discípulos e Pedro"
: traços mesquinhos ou covardes do apóstolo, sem
(Mc 16.7; ver 1.36). Inversamente também, contestar o seu papel único.
é a Pedro a quem Jesus dirige frequentemente Paulo reconhece, por sua vez, o papel excep-
a palavra quando fala aos Doze (Mc 8.33; 14. cional de Pedro. Mesmo quando não vacila em
37: Lc 22.31). Esta função primordial no colé- resistir-lhe (Gl 2.1 lss), Paulo fa-lo-á não por
gio dos Doze acompanha Pedro depois do Pente- disputar-lhe um lugar estimado grande demais,
coste, revelando-se ainda mais firme porquanto senão porque Pedro comprometia a sua missão
então o apósteio desempenha a função para a de chefe com um exemplo sectário. O conflito
qual fôra destinado por Jesus (Lc 22.31ss; Jo de Antioquia não se devia à inveja ou à opo-
21 15ss)
. porta-voz da Igreja nascente (At
: sição entre uma estrutura "democrática" e outra
1.15; 2.14; 3. lss; 4.8ss; etc), Pedro é quem "monárquica" da Igreja; mas devia-se, em Pau-
visita as Igrejas que dependem de Jerusalém lo que o provocou, à vontade firme de manter
(At 9.32ss; ver 8.14ss; Gl 2.7) Pedro é quem ; a unidade da Igreja na verdade, nesta, verdade
Paulo deseja conhecer a fim de entrar em con- que deveria ser precisamente a paixão máxima
tato com a Igreja-mãe de Jerusalém (Gl 1.18) ; de Pedro (ver Lc 22.32). Aliás, a oposição
Pedro é quem exerce a autoridade (At 5.3ss). E que às vêzes fôra alegada entre Paulo e Pedro,
também é Pedro quem, para se devotar à missão não passa de ser artificial. Ambos diferem, sem
entre os judeus (Gl 2.7), sujeita-se aparente- dúvida, e têm uma missão particular (Gl 2.8) ;

mente a Tiago, o irmão do Senhor e o chefe Paulo, porém, sabe-se unido a Pedro perante
da Igreja de Jerusalém, reconhecendo a êste Jesus Cristo (ICo 1.12; 3.22; 15.3ss). Não
como o condutor desta Igreja, ao qual êle, Pe- terá. aparentemente, melhor defensor em Jeru-
dro, prestará contas dêste novo aspecto de seu salém que justamente o grande Cefas (At 15.
ministério (ver ordem dos nomes em Gl 2.9; 7ss). É provável que a insistência com a qual
e em Gl 2.12). Mas não obstante, a personali- At 10.1-11.18 pormenoriza que a conversão de
dade de Pedro é tão importante que certos cris- Cornélio fôra intencional, visando imepdir que
tãos de Corinto pretendem depender dele, talvez fôsse desqualificado o ministério de Paulo entre
por duvidar da validade do apostolado de São os pagãos pois o próprio Pedro, o apóstolo
—>
:

Paulo. Opinam que sua dependência a Pedro dos judeus, tampouco exigiu a circunsci-
garantiria sua filiação à única verdadeira Igreja são como condição do batismo, no caso de Cor-
:

226 NOMES PRÓPRIOS

nélio. Assim, com sua conduta, Pedro ratifica 4. PAULO. No quadro da Igreja nascente,
e justifica a conduta de Paulo relativamente a pessoa do apóstolo São Paulo surge como um
à circuncisão. elemento de desarmonia: antes de pregar a
c) Tal lugar, único e primeiro no colégio Cristo, Paulo o perseguia (At 7.58; 8.1; 9.
apostólico, não foi conseguido por ambição ou 5-21; 22.4; 26.11; ICo 15.9; Gl 1.23; Fp
por eleição, mas foi conferido a Pedro pelu
próprio Jesus. Pedro é a rocha sôbre a qual
3.6; lTm 1.13). Paulo é —>
apóstolo (Rm
1.1; ICo 1.1; Cl l.lss, etc.) mas não pertence
Jesus edificará sua —> Igreja; todos os que aos —>Dose. Esta condição absolutamente
única faz de Paulo aquêle que impede a Igreja
se refugiarem nesta rocha nunca temerão as
reivindicações do sepulcro. Êle recebeu de Jesus de fechar-se sôbre si mesma. Não é de estra-
comissão das chaves do reino e, portanto, o di- nhar, pois, que certas Igrejas, por causa dêle,
reito de admitir à Igreja, vestíbulo do reino, incorram no perigo de cisma (quando, mais
ou de excluir dela (Mt 16.16ss). Nós, os intér- do que qualquer outro, trabalhou êle pela uni-
pretes, concordamos hoje em dia cada vez mais dade da Igreja) (ver ICo 1.10-16; 3.1-12), e
em reconhecer que a rocha sôbre a qual Cristo que os judaizantes, impedidos de compreender
constituirá sua Igreja não é a fé de Pedro, nem a amplitude da renovação trazida por Cristo,
a confissão da messianidade de Jesus (o que, desconfiem de Paulo (At 15.1-29; 21.15-26;
porém, se entenderá como uma decorrência im- Gl 2.1-21). Assim Paulo impede, por sua mera
plícita), mas a própria pessoa de São Pedro. presença, que a Igreja se baste a si mesma, e
Pedro é aquele por quem Jesus ora, para que, já coloca-a na necessidade perene de examinar-se
convertido, fortaleça os seus irmãos (Lc 23.32). e de controlar a própria finalidade, para que a
Pedro é também aquêle a quem Jesus, depois de consciência leal lhe seja a alavanca mais efi-
o lavar da tripla negação, confia o seu rebanho, caz de qualquer intento reformista: Paulo in-
isto é, o povo messiânico (Jo 21.15-17). Consta, quieta a Igreja. Esta, por sua vez, tentará absor-
pois, que o papel desempenhado por São Pedro ver a Paulo, amortizando assim a exigência de
na Igreja nascente não era usurpado. Há poucos sua mensagem de outro lado, não faltará quem
;

textos que têm inspirado estudos tão profundos abuse de Paulo, fazendo-o patrocinar divisões
e prolongados no decurso da história do cristia- e heresias. Entretanto, Paulo negar-se-á tenaz-
nismo, como os textos que acabamos de citar. mente a perder sua originalidade, bem como a
Desde a cisão originada pela Reforma, o seu sair da tradição da Igreja.
exame está quase inevitavelmente condicionado a) A Igreja não se opõe a São Paulo. São
pela denominação a que pertence o comentarista.
Paulo não se deixa integrar numa forma que ni-
Contudo, o debate já não versa tanto sôbre seu
conteúdo dentro do contexto do NT
(pois aca-
velaria o seu ministério. O NT não conhece
Igreja da qual o apóstolo dos gentios não seja
bamos de ver que o NT, pelo mero fato de
relatar o papel de Pedro na Igreja nascente, conjuntamente a intranquilidade e o defensor.
fornece bem o sentido em que se devem entender Paulo, certamente, dará os passos necessários
os mencionados textos), mas sôbre o alcance para atestar com clareza que êle pertence à
real que têm para a história subsequente da Igreja: dócil a uma revelação divina, subirá
Igreja: ou, em outras palavras, Pedro teve, ou a Jerusalém a fim de ratificar o seu apostolado
não teve —>
sucessores, pelo menos no seu
ministério de fundamento da Igreja? Afirmar,
perante os pagãos, consciente de que, sem tal
reconhecimento, seu ministério será vão e as
com Roma, que êste ministério de pedra funda- Igrejas por êle fundadas não serão apostólicas
mental se perpetua através dos séculos, equivale nem, portanto, cristãs (Gl 2.1ss) não hesitará
;

a afirmar que a Igreja é fundada novamente em conceder aos judaizantes tudo o que se pode
sôbre cada nôvo papa (e assim a Igreja estaria (At 16.3; 21.18ss, etc) não deixará de reco-
;

sempre a recomeçar: idéia assaz "protestante") ;


nhecer a preeminência dos que foram apóstolos
por outra parte, afirmar, com o Evangelho, que antes dêle (ICo 15. 8s; Gl 2.9). E o próprio
esta Rocha é colocada por Jesus de uma vez modo como menciona Pedro (ICo 9.5, lite-
êle
por todas, equivale a dizer que a Igreja não ralmente: "e mesmo Cefas") mostra que
até
recomeça jamais, e sempre perdura (e esta idéia não lhe contesta o papel de chefe da Igreja
é precisamente "católica"!).. Enquanto funda- nascente. No entanto, a necessidade de se pro-
mento da Igreja, São Pedro não pode ter suces- clamar ante a Igreja de Jerusalém "o menor
sores êle, como os demais apóstolos, exerceu
: dos apóstolos" (ICo 15.9), não será óbice para
um ministério tão único como o próprio minis- que proclame igualmente e com idêntica fôrça
tério terrestre de Jesus. Os apóstolos formam a unicidade e especificidade de seu apostolado
parte da obra de salvação cumprida "uma vez não é pela vontade dos homens nem pelo inter-
por tôdas" pretender multiplicá-los no tempo,
: médio da Igreja que é apóstolo, mas diretamen-
arrisca negar concomitantemente a unicidade te "por Jesus Cristo e por Deus Pai que ressus-
da revelação e da redenção trazidas por Jesus citou Jesus dentre os mortos" (Gl 1.1 1.8-24; ;

Cristo. ICo 9.1-27; Rm 1.1; etc). Êste é o motivo


:

NOMES PRÓPRIOS 227

porque, em face de Pedro mancomunado com cansàvelmente repete que as Igrejas por êle
os judaizantes, não temerá resistir-lhe para fundadas são da mesma Igreja dos "santos" da
devolvê-lo à Igreja e ao posto de chefe da Judéia (Rm 10.12,25ss; ICo ló.lss; 2Co9.12ss,
Igreja(Gl 2. lis). Se Paulo defende seu apos- etc). Prefere comprometer seus projetos de
tolado contra aqueles que o detratam (ICo levar o Evangelho à Espanha a renunciar levar
9.2), defende na realidade, de um lado, a apos- pessoalmente a Jerusalém a coleta feita em suas
tolicidade, e portanto, a autenticidade das Igre- Igrejas *=sinal de sua unidade com a Igreja-
jas por êle fundadas, e de outro lado, a missão mãe da cidade santa: At 20.22ss; 21.4,11-14).
específica que lhe cabe na história da salva- Temos notado já o cuidado do apóstolo por
ção. Missão que consiste em assegurar também conservar-se unido à Igreja dos Doze, à Igreja
aos pagãos a entrada para a Igreja e "o direito primitiva. Igual preocupação anima-o na prepa-
de cidadania de Israel, com a decorrente parti- ração da Igreja do porvir, cuja existência e
cipação nas alianças da promessa", pois tam- fidelidade devem ser salvas : assim, em Timó-
bém aos pagãos cumpre ser "concidadãos dos teo e Tito, Paulo garante para si "filhos legíti-
santos e membros da família de Deus" (Ef 2. mos", isto é, sucessores (ICo 4.17; 2Co 8.6;
12,19-20; At 9.15; 15.1-29; 22.21; 26.17s Rm lTm 1.2; Tt 1.4; Fp 2.19ss; 2Tm 1.6), com
1.5; Gl 2.7; etc). Paulo denomina esta sua encargo de transmitir à posteridade o depósito
missão particular "o mistério de seu apostolado" da boa nova (2Tm 2.2; ver ITm 6.20; 2Tm
(Ef 3.3ss; 6.19; Cl 1.25ss; 4.3, etc. Ver 1.14). Paulo sabe muito bem que, além de ter
—> mistério). Mediante sua missão entre os
pagãos, Paulo (e seus sucessores neste campo)
um ministério tão único e tão específico como
a sua própria vocação, se encontra ainda, como
defende a Igreja contra o surgimento excessiva- um corredor entre tantos outros, no comêço da
mente rápido do Anticristo, retarda o desenca- estafeta que deve religar, na terra e na história,
deamento dos eventos do fim do mundo, e per- os extremos da ascensão e da volta de
dois
mite que se realize a promessa de Jesus de adiar Cristo. Ademais, como poderia tornar-se inde-
sua volta até que o Evangelho seja pregado a pendente da Igreja, depois de ter sido incor-
tôdas as nações (Mc 13.10). Conforme todas as porado a ela mediante o batismo (At 9.18, a di-
probabilidades, o próprio São Paulo, enquanto ferença dos outros apóstolos que não recebe-
apóstolo dos pagãos, é "aquele que detém o ram o batismo de água, na hipótese mais certa)
mistério da iniquidade" (2Ts 2.7). Aos judai- depois de ter intervindo tão veementemente con-
zantes temerosos de ver as
rem
—>
nações acede-
às promessas feitas a Israel, Paulo comu-
tra os "inflados" de Corinto (ICo 4.19; 5.2,
etc), pretensos "partidários de Cristo" (ICo
nica um outro mistério (Rm 11.25), a saber, 1.12) os quais pensavam que atar-se ao Senhor
que os pagãos convertendo-se (pelo ministério (verticalmente!) dispensava do laço com os
de Paulo), não separarão da salvação o povo apóstolos (horizontal!)? Desligar-se da tradi-
preferido ao qual esta se destinava de início ção apostólica é desligar-se da Igreja e, por-
muito pelo contrário, a conversão dos gentios tanto,comprometer a salvação eterna tese que :

é condição essencial para a salvação dos judeus Paulo demonstra em tôdas as partes, porém em
(Rm 9-11). parte nenhuma melhor do que nas epístolas aos
b) Nem São Paulo se opõe à Igreja. Os Corintos.
exegetas e historiadores que, pretextando o vigor c) A despeito de quanto se escreveu em tem-
com que Paulo defende a originalidade e espe- pos recentes, é perfeitamente impossível opor Je-
cificidade de seu ministério, pretendem torná-lo
sus a São Paulo. Tal oposição entre Jesus e o
independente da Igreja dos Doze e erigí-lo em
mais nôvo de seus apóstolos não é menos vã e
fundador e chefe de outra Igreja, ou simplesmen-
artificial do que uma oposição entre Paulo e os
te em um anti-clerical ou anti-tradicionalista,
demonstram apenas não compreender a Paulo. Doze. Foi construída devido a uma incompreen-
Ainda que Paulo, humanamente e com aparên- são tanto de Jesus como da Igreja: não se
cias de razão, respondesse com uma atitude de compreendeu, em particular, que se a teologia
independência às rabulices e vexações incessan- apostólica, e mormente a paulina, comporta uma
tes tramadas por certos círculos de Jerusalém, severidade moral ausente, na aparência, da pre-
afirmaremos sem temeridade que, somente ven- gação de Jesus, isso se deve ao fato de a Igreja
do em Paulo essencialmente o homem da tra- ser, a partir do Pentecoste, o corpo de Cristo e
dição da Igreja, compreenderemos o maravilhoso a representante de Cristo na terra cumpre-lhe,
:

conjunto da personalidade e da obra do grande portanto, ser santa e perfeita como a sua ca-
apóstolo ( —>
Tradição). A tradição cons-
titui a referência normativa da mensagem pau-
beça. Se deve conservar para os pecadores de
fora (ICo 5.9ss) a mesma generosidade acolhe-
lina Paulo não teme mesmo identificar a tra- dora, não lhe é lícito consentir que os pecadores

;

dição com o "Senhor" (ICo 7.10; 11.23; 15 de dentro, os ^> santos, se façam remissos no
3ss). Jerusalém é o ponto inicial (Rm 15.19) exercício de uma vida digna da sua vocação (Ef
e terminal (Rm 15.25,31) de sua missão. In- 4.1; Cl 3.1ss), principalmente quando a obe-
228 NÔVO

diência e a santidade formam parte da vocação 3. "Nôvo" diz respeito, essencialmente, às rea-
missionária da Igreja. Isso explica a diferença lidades esperadas da revelação definitiva. As-
de "clima" entre os evangelhos e as epístolas. sim, é nova a salvação transbordante em Jesus
(Consulte-se M. HUNTER, Un Seigneur. une Cristo, em face da vetustez da religião israeli-
Eglisc, un Salut, Neuchâtel et Paris, 1950). ta ou do paganismo.
Ademais, Paulo "cumpre o que falta das dores A nova aliança (Jr 31.31-34) é realizada por
de Cristo em sua carne, a favor do corpo de Jesus Cristo, que dá sua vida pela remissão dos
Cristo que é a Igreja" (Cl 1.24; 2Co 1.5). Sua
pecados ('Mt 26.28; 1 Co 11.25). aliança fun- A
vida decalca misteriosamente a vida de Cristo:
dada sôbre a lei cede lugar à aliança selada no
Paulo é imitador de Cristo (ICo 11.1), ambi- Espírito que insinua nos corações o conheci-
ciona reproduzir até na morte a
de Jesus (Fp 3.10-11).
morte
A
exemplo do Senhor,
—> mento de Deus (Jr 31.33-34; 2Co 3.3-6). A
aliança cujo mediador é Jesus Cristo suplanta
que não aceitou prevalecer-se de seus direitos definitivamente a antiga, porquanto se baseia no
divinos, mas abaixou-se para servir (Fp 2.6ss). juramento de Deus (Hb 7.20-22) supera todo :

Paulo renunciou a todo título motivo de qual- o anterior em virtude da pessoa do nôvo Sumo-
quer auto-suficiência, para só servir a Cristo Sacerdote, do nôvo sacerdócio e do nôvo sa-
(Fp 3.4-11) assim como desde a eternidade
; crifício (Hb 8.10); durará para sempre (Hb
Jesus foi lançado sobre um caminho único e 13.20).
determinado, assim Paulo é plenamente cônscio
que, desde o seio materno, Deus o segregou para
O —>
reino dos céus
vinho que Jesus
(Mt 26.29; Mc 14.25)
tomará nôvo no
é uma
uma obra única e definida (Gl 1.15) a exem- ;
promessa do banquete para o qual Je-
celeste,
plo de Jesus, Paulo prega a boa nova (embora
sus convida todos os homens (Mt 22.2; Lc 13.
aos pagãos), faz milagres e reúne o povo mes-
siânico (At 13-20) e ao final de sua carreira,
29). A
incompatibilidade do pano nôvo e do
;
velho vestido, do vinho nôvo e dos odres velhos
sempre a imitação de Jesus, Paulo anseia por
subir a Jerusalém, plenamente cônscio dos pe-
(Mc 2.18-22) significa que as coisas novas
trazidas por Jesus não se podem acomodar à
rigos de sua vida (comparar Mc 8.31 e par
velha maneira de pensar e de viver, a dos ju-
com At 20.22ss; Mc 9.31 e par, 10.32s. com
deus e de João o Batista.
At 21.4,11-14), e prestes a dar sua vida pela
unidade do povo de Deus (como Jesus: Jo
11.52). A morte, no entanto, não o espera em
Jerusalém, mas em Roma, conforme relata a
— >A mundo
4. finalidade
nôvo,
da
uma
obra
criação nova: novos
de Deus é um

céus e nova terra onde habitará a justiça (Is


voz unânime da tradição. Sua morte confor-
mou-se perfeitamente com a morte de Cristo: 11.9; 65.17; 66.22; 2Pe 3.13; Ap 21.1). A
êste respeito, a palavra "nôvo" aparece no Apo-
Jesus morreu na capital da Terra Santa Paulo, ;

calipse como um refrão: nova Jerusalém (21.2.


fiel à vocação específica, na capital das nações.
Não faltou mesmo quem conjeturasse que. três etc.) ; nome nôvo (2.17; 3.12; ver Is 62.2);
cântico nôvo (5.9; 14.3) tôdas as cousas no-
dias e meio depois de morrer, Paulo ressuscitou ;

vas (21.5).
e ascendeu aos céus sendo, com Pedro, uma
:

das duas testemunhas mencionadas no cap. 11 Esta renovação de tôdas as coisas está ainda
do Apocalipse. por vir (Mt 19.28; 22.30; Jo 6.39; At 3.21;
VON ALLMEN Rm 8.18-25; 2Pe 3.13); coincidirá com a

NÔVO
/.-/.
—> ressurreição e o —>
juízo no derradeiro
dia. Até então a obra de Deus continuará
1. Oadjetivo "nôvo" pode ter os seguintes cumprindo-se no enquadramento do mundo an-
significados ainda sem uso, por exemplo, um
: tigo, onde coexistem o bem e o mal, a revelação
pano, um sepulcro (Mc 2.21; Mt 27.60) mu- ; de Jesus Cristo e a proliferação das obras sa-
dança: lua nova (Is 1.13), ano nôvo_(2Cr tânicas (Mt 13.24-30, 36-43; ljo 5.19).
36.10); produto do ano: vinho nôvo (Mc 2.
22), primícias da ceifa (Lv 23.16) ainda des- ; 5. Ainda que os novos céus e a nova terra
conhecido: deuses novos (Jz 5/8), doutrinas não estejam aqui, Deus já cumpriu, por Jesus
novas (Mc 1.27; At 17.19); recente: nôvo Cristo, a maior parte de sua obra de salvação
convertido (lTm 3.6) recentemente nascido
;
(Rm 5.10; 8.32-39; Jo 5.24), criando, me-
(IPe 2.2) inédito: fruto de um esforço ou de
uma
;

alegria particular : um nôvo cântico ( SI


diante Jesus Cristo, o
um
—>
homem nôvo. De
lado, Jesus Cristo mediante sua morte re-
33.3; 40.4; 96.1).
concilia os judeus e os pagãos fazendo de^ todos
2. Dá-se um renovo dos seres e das coisas, êles um só homem nôvo a —
> Igreja que
uma humanidade nova (Ef 2.15; ICo
mercê da fidelidade de Deus que, mediante seus constitui
dons renovados, faz viver tôdas as criaturas 12.13) ;
por outro lado o crente é um homem
(SI 104.30), e particularmente os homens que nôvo libertado do poder do pecado e vivendo
nêle confiam (Is 40.31; Lm 3.23; SI 51.12). pelo >
Espírito Santo (2Co 5.17; Gl 6.15).
> :

NÚMEROS 229

É o batismo que do velho ao nôvo


faz passar NÚMEROS
homem (Jo 3.3-7; Rm
6.4; Cl 2.12; 3.1; Tt
3.5). O batizado nasce de cima renasce (= nas- Os números não parecem ter comportado,
ce de nôvo) após morrer com Cristo ressuscita
;
inicialmente, um caráter religioso : só serviam
com Cristo. O batismo é pois o sinal e o dom para contar. Aconteceu, porém, em tôdas as
de uma posição nova. (
No
—>
Batismo).
entanto esta dádiva de Cristo é conjunta-
religiões, que certos números tomassem uni
cance simbólico, dando lugar às especulações
al-

e aos divertimentos mais complicados. O VT


mente uma ação na qual Jesus Cristo o Espírito
Santo e o crente são ativos. Recebe-se a vida e o NT, em particular o Apocalipse, conhecem,

nova mas também esta vida postula uma lógica inventam ou tomam emprestados diversos sím-
muito exigente a conduta do crente deverá tes-
:
bolos aritmológicos, cuja interpretação oferece
temunhar a obra de Jesus Cristo e do Espírito grandes dificuldades. Estamos reduzidos a me-
em todas as manifestações da vida diária (Ef ras conjeturas não apenas acerca de quantos
4.24; Cl 3.10; ICo 5.7). As marcas do homem são de fato os números de valor simbólico,
nôvo são a justiça e a santidade (Ef 4.24) a mas acerca da sua correta interpretação. O in-
pureza e a verdade (ICo 5.7). O critério do ventário que segue não pretende ser completo,
homem nôvo não pode ser outro senão a ima- mas apenas demonstrar que também a Bíblia
gem de Deus em Cristo (Cl 3.10) pois
Jesus Cristo é o homem nôvo o "último Adão"
; — sabe lançar mão deste procedimento marginal
para sublinhar verdades centrais. Tal inventá-
(Rm 5.14-15; ICo 15.21-23, 45-47; Jo 19.5). rio, mormente para uma mentalidade moderna,
A vida dos crentes afirma-se nova por opo- dificilmente evitará um certo caráter de arti-
sição à vida segundo a —>
carne (Rm 8.1-
17), à vida dos pagãos (Ef 4.17-24) ou do
ficialidade.

velho homem (Cl 3.9). Os meios da vida nova


1. O fato de a Bíblia juntar repetidas vezes

são o Espírito Santo (Rm 8.1-17), o conheci- o 2 com o 3 (Dt 17.6; 2Co 13.1; lTm 5.19;
mento de Deus (Cl 3.10), a verdade (Ef 4.24). — Mt 18.20; Jo 2.6, etc) sugere que, para ela,
"estar em Cristo" (ICo 5.7). Assim pode rea- o 3 não possue a importância que adquirirá pos-
lizar-se a renovação anunciada pelos profeta* teriormente na Igreja, a partir da formulação
(Jr 4.3; Os 10.12; Ez 11.19; 18.31; 36.26). do dogma trinitário ;
pode-se mesmo perguntar
É o Espírito de Deus quem faz os homens revi- se o 3 (como também o 2) não figura, às vê-
verem (Ez 37.14; Rm
7.6; ver 2Co 3.6). zes, para "contrariar o cálculo", isto é, para
O homem nôvo renova-se ininterruptamente eclipsar-se em benefício do número 1 (ver
(Rm 12.2), recebendo de Cristo uma nova vida
(Ef 4.23; Cl 3.10-11). Mas, para aqueles que
—> Um) assim, três são os que dão teste-
:

munho unânime (ljo 5.7-8), a saber, que o


não perseverarem na renovação em Cristo, não Pai, o Filho e seu povo são um (Jo 17.20ss) ;

há mais esperança (Hb 6.6). A renovação quo- assim, os esposos "já não são mais dois, porém
tidiana do homem interior pelo Espírito uma só carne" (Mt 19.6; Gn 2.24; Ef 5.31).
Santo (2Co 5.5) —
constitui para Paulo a
compensação inapreciável e a consolação pela
Contudo cumpre notar que, quando o próprio
Deus aparece obrando, como nas bênçãos ou
destruição do homem exterior gasto nos sofri- nas maldições (Nm 6.24ss; 2Co 13.13; Gn
mentos e nas fadigas da vida terrestre do minis- 9.25ss; Mt 28.19), o texto usa de bom grado
tério (2Co 4.16). uma tríplice invocação ou uma repetição. Deus
sói manifestar sua glória "no terceiro dia"
6. O nôvo mandamento (Jo 13.34) é nôvo no terceiro dia desce do Sinai fulgurante, no
porque estabelece que seja o amor quem teste- terceiro dia cura seu povo, no terceiro dia salva
munhe aos homens (Mc 12.31 ; cf Lv 19.17-18) a Jonas e ressuscita a Jesus Cristo (Ex 19.11;
sobre o amor que Jesus manifestou aos seus (Jo Os 6.2; Mt 12.40; ICo 15.4). Mas daí a con-
15.12-13), da parte de Deus (ljo 4.10-11). cluir que o número 3 é o número de Deus, há
Êste mandamento chama-se ainda "o manda- um passo enorme que o mais sumário exame da
mento antigo" (ljo 2.7; 2Jo 5), dentro do concordância bíblica nos veda franquear.
qual não cabem as exigências novas feitas pelos
Jieréticos. 2. O lençol da visão de Pedro (At 10.11),
Aslínguas novas (Mc 16.17) são o fenóme- porquanto estava atado pelas quatro pontas.
no da glossolália (At 2.4), que foi conside- podia descer sem nada perder do seu conteúdo.
rada como a linguagem celestial (ICo 13.1; Na realidade o número 4 aparece frequente-
14.2). mente em contextos bíblicos postulando que
O nôvo caminho (Hb 10.20) designa o livre nada se perde e que tudo é atingido os quatro :

acesso obtido junto a Deus pela morte de Cristo, ventos da terra soprados dos quatro cantos do
novidade que torna todos os crentes sacerdotes mundo (Jr 49.36; Ez 37.9; Dn 7.2; Ap 7.1;
(IPe 2.9; Ap 1.6). 20.8) atingem e limitam o mundo. Os quatro
F. BAUDRAZ rios que fluem do paraíso (Gn 2.10ss) regam a
230 NÚMEROS

terra inteira. Os judeus mencionam quatro an- 6. O 10 aparece como número da plenitude
jos que governam todo o mundo angélico (Jub (ver Lc 15.8; 19.13; Ap 2.10): há dez pa-
1.27). Os quatro seres extraordinários da visão triarcas antes do dilúvio (Gn 5), há dez pragas
de Ezequiel (1.4ss), futuros símbolos dos qua- antes da libertação do Egito (Ex 7-12), há dez
tro evangelistas, contêm, retêm e veiculam tôda mandamentos (Ex 20), há dez potências impo-
a glória da divina presença. O Livro de Daniel tentes contra o amor de Deus (Rm 8.38-39) e
é influenciado, aparentemente, pela ideia, fa- dez vícios que excluem do reino de Deus (ICo
miliar às outras religiões, de que o conjunto 6.10).
da história abarca quatro reinos (Dn 2 e 7). O
número 4 desempenha grande papel nos apoca- 7. O número 12 é, por excelência, a cifra do
r.sraelde Deus, da eleição Jacó-Israel teve doze
íipiticos (Dn, Ez, Zc, Ap).
:

filhos (Gn 35.23; 42.13,32; At 7.8). Jesus-


3. Nosexto dia, Deus criou o casal humano Cristo, para reivindicar seu título de Senhor
(Gn 1.26ss). Pode o homem gastar seis dos de todo o povo de Deus e para proclamar que
sete dias da semana nas tarefas humanas (Ex um novo —> Israel inicia-se na sua própria
20.9; 23.12; 31.15; ver Lc 13.14, etc). Daí
a supor que o número 6 seja o número do ho-
pessoa, escolheu doze —> Apóstolos (Mt 10.
lss; Mc 3.14; Lc 6.13; Jo 6.70), fundamento
mem, só há um passo. Passo particularmente da Igreja (Ap 21.14; Ef 2.20). O povo de
interessante porquanto a Bíblia concede especial Deus, historicamente para o velho Israel (Gn
importância a certos múltiplos do 6. 49.28: Ex 24.4; 28.21; Js 4.9, etc), simbo-
licamente para o nôvo (Mt 19.28; Tg 1.1; Ap
4. O número 7, com seus múltiplos, é uma 21.12), é formado de doze tribos. O 12 parece
das cifras mais importantes da aritmologia bí- a cifra constitutiva da Igreja, de tal modo que
blica. Primordialmente o 7 indica a totalidade
foi preciso substituir antes mesmo do Pentecoste
ou plenitude tanto no bem como no mal Maria :
o traidor Judas, "um dos Doze", por Matias
Madalena, possuída de 7 demónios, é vítima da (At 1.15-26), pois a Igreja devia estar com-
"total" possessão satânica (Lc 8.2: Mt 12.45). pleta vi nuce para poder receber o Espírito
O 7 indica o máximo, o número limite, e não Santo e iniciar a missão ordenada por Jesus
um número real sete homens tiveram uma
:
Cristo. Supõe-se geralmente que a origem da
mesma mulher (Mt 22.25ss par) ; sete mulhe- importância do número 12 encontra-se no de-
res uniram-se a um só varão (Is 4.1) ;
lamen-
senvolvimento dos doze meses do ano. Mas. dada
ta-se uma mãe de sete filhos (Jr 15.9); uma a associação constante do 12 com a eleição e
nora como Rute vale mais do que sete filhos a vocação, cabe perguntar se, para a reflexão
(Rt 4.15). O Maligno, para enganar melhor teológica pelo menos, o 12 não deve encarar-se
os santos, usa a cifra 7 (Ap 13.1; 17.7ss). que como um múltiplo do 6. cifra do homem a :

tem por segunda acepção simbólica a virtude de Igreja é, na realidade, o lugar onde o homem
expressar a plenitude e a totalidade divinas não mais pode estar só. onde está limitado mas
(em especial no Apocalipse onde o 7 é muito também confortado pela presença do próximo.
frequente). Assim, sete é a cifra da criação
(Gn 2.2s) e da salvação (Ex 12.15-19: onde 8. A chuva do dilúvio durou 40 dias (Gn
bem se vê a importância do 7 para as soleni- 7.4) Israel passou 40 anos no deserto (Ex
dades pascais). Lembremos que o
é o sétimo dia da semana, dia devotado ao
sábado —> 16.35
;

Nm
14.33; 32.13; Dt 29.5; Js 5.6);
tôda a história do Êxodo obedece ao número
culto lembremos o predomínio do 7 nas leis
;
40 (Ex 16.35; 24.18; 34.28; Dt 9.9; 13. Nm
rituais de purificação (Lv 12-15; 2Rs 5.10). 25: At 7.23; 7.30,36). Saul (At 13.21), Davi
A propósito de Atos 6, fala-se amiúde dos (2Sm 5.4) e Salomão (lRs 11.42) reinam,
sete diáconos. Convém notar, no entanto, que cada um. 40 anos. Elias, para escapar de Jesa-
Atos nunca os denomina "diáconos", e sempre bel e atingir o Horebe, monte de Deus, caminha
"os Sete" (At 21.8), como os Apóstolos são durante 40 dias (lRs 19.8). Jesus é tentado
simplesmente "os Doze" (
Quando comparamos
— >em
Ministério NT).
o texto referência com
no deserto durante 40 dias (Mt 4.2) o Ressus-
;

citado aparece durante 40 dias (At 1.3). Esta


a ordenação dos "Anciões" (Nm 11), forma-se mera nomenclatura demonstra que a Bíblia recor
re. de bom grado, ao número 40 cada vez que
nos a impressão de que At 6 relata a instituição
se abre um nôvo capítulo da história da Sal-
do presbiterato e não do diaconato.
vação a aliança com Noé. a saída do Egito.
:

5. Oito pessoas entraram na arca por ocasião a realeza em Israel, a era dos grandes profe-
do dilúvio (IPe 3.20). A
Bíblia, porém, ainda tas, a vinda do Messias ou a origem da Igreja.
nada sabe das especulações patrísticas sobre o Cabe, pois, afirmar que quando êste número
número 8 (os Padres relacionaram o 8 prefe- possue um alcance teológico, aponta semp-e
rencialmente ao batismo e à escatologia. Ver para a história da Salvação. Talvez parecera
J. DANIÉLOU, Bible et Liturgie, Paris 19. uma especulação aventurada considerar o 40
51, pp. 355-387). como um 42 arredondeado (7 x 6) ; mas êste
:

NÚMEROS 231

número, que resultaria do encontro entre a ple- interpretações mais variadas, por ter evidente-
nitude do desígnio divino e a plenitude do ho- mente êste número um significado simbólico.
mem, seria uma excelente definição da história São Jerônimo cita um zoólogo posterior a João
sagrada. Conste que a genealogia de Jesus (con- (zoólogo, aliás, mal comprendido por Jerônimo,
forme Mt 1) compreende 42 nomes. conforme agora consta) segundo o qual há cento
e cinquenta e três espécies de peixes e daí con- ;

9. O número 70 é geralmente considerado co- clui que o texto significa que há lugar na Igreja
mo o denominador da universalidade.
des- Os (=na rêde) para tôdas as raças e tribos hu-
cendentes de Sem, Cam e Jafé que repovoam c manas sem perigo para a unidade. Outros Pa-
mundo depois do dilúvio são setenta (Gn 10").
dres exerceram sua imaginação em busca de
Setenta pessoas de Israel descem para "o mun-
uma explicação pelas letras que formam o alga-
do", ou seja, para o Egito (Gn 46.27; Ex 1.5).
rismo 153; pois, na antiguidade, as letras tinham
Israel, durante setenta anos, permanece dester-
valor de cifras. Qual seria, pois, a soma do total
rado nesta outra face do "mundo", que é, para
de letras do 153? Sôbre esta base, Orígenes
o VT, a Babilónia (Jr 25.11; 29.10). Por
descobriu que 153 era o símbolo da Trindade:
causa do descontentamento suscitado pelo po-
Cirilo de Alexandria, o símbolo de Deus e da
pulacho de forasteiros que se tinha apegado
Igreja ( 100 =
judeus 50 pagãos
;
= 3=Deus).
;

ao povo do Êxodo, Deus manda Moisés esco-


Os teólogos contemporâneos procuram a expli-
lher, para o ajudar, um senado de setenta an-
cação principalmente no fato de ser 153 a cifra
ciões (Nm 11; ver o paralelismo de At 6, onde
triangular de 17 ( =consegue-se a soma 153
os ajudantes são reduzidos a sete, ut supra §
4). Lembremos que Jesus escolhe em terra sa-
adicionando 1+2 + 3 4 + +
5 +6... até

maritana (=numa terra semi-pagã, na opinião + 17). Já Santo Agostinho pensava que o
n.° 17 encerrava a chave do misterioso 153, opi-
dos judeus), 70 discípulos depositários de ins-
nando tratar-se aqui de um símbolo do Evange-
truções semelhantes às confiadas aos Doze (Lc
lho (Lei =
10 +
Espírito =
7.). Ph.-H. ME-
10). Já que nunca mais mencionam-se êstes Se- NOUD confiou-me a seguinte interpretação, que
tenta, parece bem provável que êste relato vise
considero sedutora: "É preciso, diz êle, que jun-
principalmente mostrar que Jesus, assim como
temos a rêde aos peixes, ou seja, adicionar 1
pretendeu com a eleição dos Doze o senhorio de
ao 17. O resultado, 18, traduzido alfabètica-
Israel, assim, mediante a escolha dos Setenta,
mente, dá o equivalente das duas letras gregas
reivindicou o senhorio das nações (Lucas, único
(IH), iniciais de Jusus. Ora, nós sabemos,
relator do episódio, é também o único autor
graças a papiros descobertos e à Epístola de
não judeu da Bíblia). É conhecida, também, a
Barnabé, que desde a mais remota antiguidade
lenda dos Setenta escribas que, sem consultar-
o nome de Jesus era abreviado com estas duas
se entre si, forneceram uma versão idêntica do
letras IH. Teríamos, pois, o sentido seguinte
VT =a. versão dos Setenta) a lenda visava
( :

a pregação de Jesus (=rêde) e os crentes ajun-


provar que a Bíblia judia destinada a evange-
tados por ela (=os peixes), ou seja, a Igreja,
lizar os pagãos e a edificar as sinagogas da
manifestam agora ao mundo a fôrça salvadora
Diáspora, foi tão inspirada por Deus como o
original hebraico ou aramaico. Do ponto de — que foi Jesus Cristo nos tempos de sua vida
encarnada. A
Igreja, na sua unidade e cato-
vista teológico, cabe perguntar se o 70 não é o
no intervalo entre a Ascensão
licidade, constitue,
72 (6 X 12) arredondado interpretação que,
:

e a Parusia, o sinal da presença de Cristo na


aliando a cifra do homem com a cifra da Igreja,
terra seu corpo, na expressão de Paulo.
explicaria satisfatoriamente o universalismo do
:

apêlo de Deus. c) Os 144.000 selados do Apocalipse (7.4;


14.1ss) não representam uma turba minuciosa-
10. Depois deste inventário forçosamente frag-
mente recenseada e contada. A
cifra é simbólica.
mentário dos números que importam para a
É o número da eleição, 12, elevado ao paroxis-
teologia bíblica, resta-nos enumerar algumas mo 12x12x1000
: (1000 = coeficiente da imen-
cifras precisas e explicar em particular onde sidade). Êste número significa, pois, que os
os números desempenham um papel considerá- eleitos todos, sem exceção, são guardados sob
vel. No entanto, ainda aqui, estamos reduzidos o amparo de Deus.
a meras conjeturas:
d) Outro texto do Apocalipse (13.18) con-
Jesus ordena aos seus perdoarem até sete
a)
vida o leitor inteligente a descobrir sob a sigla
vezes (Lc 17.4), e mesmo até setenta vezes sete
(Mt 18.21ss), para sublinhar que perdão
não conhece limites e que nunca perdoamos de-
—> 666um homem que devia ser muito conhecido.
Mas quem é aquêle homem, designado também
sob o símbolo de "outra besta" (vers-11) ? Já
mais.
no do segundo século, Santo Irineu con-
final
b) O Evangelho de João relata que a pesca fessa não saber quem é tal personagem e nin- ;

milagrosa produziu 153 grandes peixes, sem que guém depois encontrou o segrêdo. Qual é a
as rêdes rompessem. Relato que deu lugar àb chave do enigma? 666 é o número triangular
:

232 OBEDECER

de 3C, que, por sua vez é o triangular de 8, guém com os ouvidos e o coração abertos às
podendo-se estabelecer uma identidade entre palavras que pronuncia êste alguém. Obedecer
666 e 8. D 2 fato, encontramos o 8 como símbolo não é conformar-se com um código moral ou
da Besta em Ap 17.11. Outros consultam o mé- sacrificial, nem escutar-se a si próprio (Tr 7.
todo gemátrico, isto é, que dá às cifras o valor 24; SI 81.12-14; Mt 15.19). A
obediência é
de sua letra correspondente, e isso explicaria a resposta viva, ativa, de um ser às palavras
porque, em certos manuscritos, se copiou 616 por de outro.
666, pois a transcrição gemátcica de 616 dá
Gaius César, isto é, o sanguinário Calígula. 1. Aobediência, relação da criatura com o
Criador. O equilíbrio bíblico das relações entre
No entanto Calígula, que reinou de 37 a 41.
não pode estar em causa. Outros interpretaram Deus e o mundo funda-se inteiramente sobre o
princípio de que é Deus quem fala, e a criatura
o 666 gemàtricamente por Nero redivivas do ;

é. quem escuta e obedece. Deus fala e, falando,


faio a transcrição hebraica de Neron Qcsar dá
cria o seu auditor (Gn 1; SI 33.9). Na sua
o famoso 666. Mas o fato é que o Apocalipse
utiliza o alfabeto grego (1.8; 21.6; 22.13). O
—> Palavra estava a vida (Jo 1.4). Não há
possibilidade de existir para as criaturas, fora
nome que o autor velava com este número, apa-
da obediência à Palavra divina (Dt 8.3; Am
rentemente fica perdido para sempre. Notemos
8.11-13; Jo 4.32ss). Portanto, o homem no jar-
que o procedimento gemátrico possibilitou enfar-
dim do Éden (Gn 2.17), os seres celestes (SI
pelar com o 666 todos os tiranos que no trans-
103.20), os elementos naturais (Jó 2.17) só
curso da história perseguiram a Igreja, perma-
existem na medida que se conformam com o
necendo assim êste número bem vivo através da
que Deus deseja para êles. Adão, no Éden, obe-
história. A tríplice repetição do algarismo 6
dece livremente no duplo sentido de que nada
apresenta-se à nossa ignorância como uma recusa
o constrange a conformar-se mecânicamente, e
de pasar até ao 7 o 666, estacionário, incapaz
:

que existem diversas maneiras de obedecer, po-


de ir até o 7, ... nos dá o consolo de pensar
rém, uma só de desobedecer.
que é o perfeito algarismo do homem exclusi-
vamente ocupado a glorificar-se a si mesmo 2. Rompimento da relação. No contexto de
que se nega a entrar no desígnio de Deus.
Gn 3, a desobediência do homem consistiu em
e) Devemos mencionar ainda a multiplica- ter êle provocado um "curto circuito" na rela-
ção dos pães o número desempenha nela um
:
ção vivificante com Deus, prestando ouvidos à
papel evidente (Mt 14.13-21; Mc 6.30-44; Lc voz de outro (vers. 17), duvidando da bondade
9.10-17; Jo 6). Jesus alimenta uma multidão
de Deus, procurando orgulhosamente a vida e
enorme com cinco pães e dois peixes (5+2 a felicidade numa autonomia face a face da Pa-
= 7), sendo recolhidos doze cestos de pedaços
lavra de Deus. Da mesma forma, no VT, a de-
sobrantes (12). O alcance teológico que se de-
sobediência define-se sempre como a recusa
preende do fato pode ser enunciado como segue
do homem de escutar a Deus para dar prefe-
1.° Jesus derrama a plenitude da graça (5 + 2
rência a outras vozes ( =
dos falsos profetas,
= 7), e sua graça é inexaurível: sempre sobra- das nações, de si mesmo). A desobediência ge-
rá graça para a Igreja de todos os tempos e
ra, como fruto normal, o sofrimento físico, por-
de todos os lugares (12 cestos) 2.° os 5 pães
;
quanto destrói a única relação vivificante (Dt
+ os 2 peixes simbolizam o próprio Cristo no 28). A História "sagrada" poderia denominar-
qual habita corporalmente a plenitude da divin- se simplesmente "História da Desobediência dos
dade. Partindo o seu corpo na cruz, Jesus con- homens": os homens recusam obedecer (Zc
segue um efeito totalmente disproporcionado 7.11-13) e, logo não podem mais obedecer (Jr
com a humildade de sua pessoa não somente os
:
6.10), como bem observou São Paulo (Rm
contemporâneos, mas a Igreja tôda saciar-se-á 8.7).
eternamente sem que nunca diminua a riqueza da
redenção. Esta interpretação da multiplicação 3. Deus diante da desobediência dos homens.
dos pães é recomendada pelo fato de que, 3.° o a) Por um lado. a revolta dos homens não
relato (de João, em especial) visa, evidente- derrota a Deus, porquanto nenhuma desobediên-
mente, prefigurar e explicar a Santa Ceia, a cia escapa ao controle divino. No entanto, Deus
eterna Ceia da Igreja. — Asegunda multipli- leva a sério a nossa desobediência. Sem jamais
cação de pães (Mt 15.29-39; Mc 8.1-10) está abandonar-nos a nós mesmos, endurece os deso-
colocada sob o signo do número 7. 0 7 sugere bedientes (Ex 7.3; Jo 12.40), entrega-os ao
que é Jesus quem satisfaz plenamente, em nome pecado (Rm 1.24), permite que a criação por
do Pai, todos os que vivem dos seus dons. sua vez se revolte contra êles. Muito mais ain-
da, Deus se serve da desobediência, a qual em
J.-J. VON ALLMEN vez de contrariar a salvação, colabora com a
OBEDECER mesma tornando-a gratuita, "graciosa". Median-
Aetimologia dá boa conta da significação do te elaprova Deus seu amor para conosco (Rm
termo. Obedecer é ouvir, escutar a voz de al- 5.6), graças a ela Deus pode ser misericordio-
.

OBRAS 233

so (Rm 11.32). Além de ser um justo retribui- portuguesa "obras", duas acepções que, embora
dor, Deus pode manifestar plenamente o segre- correlativas, divergem-se evidentemente. O ter-
do de sua essência, o —> amor. mo grego designa, além de o resultado de uma
atividade (— sentido óbvio do termo português),
b) Por outro lado e paralelamente, Deus
a atividade em si (acepção que passou, graças
preparará o caminho para o advento de uma
ao latim teológico, ao português, porém limi-
nova humanidade obediente. Escolhe Abraão,
tada às atividades morais).
elege Israel, outorga sua lei a fim de criar um
—> remanescente, um resto de homens obe-
Nos textos onde nossas versões do VT
pregam o substantivo "obra", o original he-
em-
dientes, graças aos quais perdoará aos demais
braico possui diversas palavras designando ora
(Gn 18.24ss; Jr 5.1). Êste resto fiel reduz-se
finalmente a uma única pessoa inteiramente passivamente a obra feita, ora e mais frequente-
atenta a Deus, Jesus Cristo, cumprindo não sua mente a própria ação, atividade; em certos ca-
sos, juntam-se ambos os sentidos, ativo e pas-
vontade mas a vontade do Pai (Jo 6.38), obe-
sivo.
diente até à morte (Hb 5.8; Fp 2.8). Só por
sua obediência a justificação se estende a todos 1. Deus e suas obras, a) Para o Velho
(Rm 5.18-19). Sua obediência é imputada aos Testamento, as obras de Deus são essencialmen-
desobedientes ( 1 Co 1 30 ) .
te as façanhas divinas, formação de Israel, liber-
tação do Egito, peregrinação de Israel pelo de-
4. A O homem dora-
obediência do cristão.
serto, entrada na terra prometida (Ex 34.10:
vante não deve mais procurar estabelecer uma
obediência pessoal fundada sóbre as obras, mes- Dt 3.24; 11.3,7; Js 24.31; Jz 2.7,10; SI 66.
mo imitando a Jesus Cristo. É mister que esteja 3-6; 77.12-21). Todas essas façanhas divinas
revestido da obediência do próprio Jesus Cristo inspiraram a noção israelita da obra de Deu;,
(Fp 3.4ss). Paulo explica, na epístola aos Ro- que podemos definir a intervenção soberana do
:

manos, cap. 6, como os homens desobedientes Senhor na História de seu povo.


tornam-se obedientes em Cristo. Mergulhado Os profetas não deixaram de proclamar que
na morte do Cristo pelo —>
batismo, o velho
homem desobediente é destruído, e a vida obe-
esta intervenção não se reduz às épocas passa-
das, mas se estende ao presente (Is 5.12,19;
diente do Cristo é dada ao homem nôvo. A obe- 22.11; Jr 10, etc). Insensibilizar-se a esta in-
diência do cristão é a fé em Jesus Cristo (Rm tervenção seria a mesma coisa que denunciar a
1.5) a fé que, nesta troca batismal, aceita ter
:
—> aliança a merecer o juízo de Deus.
por vida, não mais a que o homem poderia dar- No entanto, a tal noção original, graças à
se a si mesmo, mas a que Deus lhe comunica mensagem profética, recebe paulatinamente uma
em Jesus Cristo (Cl 3.3ss). Tudo se dá nesta ampliação em dois sentidos. Por um lado, Deus
obediência da fé mas sem ela o homem fica intervém cada dia mais com suas obras na vida
;

com sua desobediência sob a ira de Deus (2Ts das —> nações, sem que isso diminua o papel
central de Israel (Is 19.25; Jr 50.25; 51.10;
1.8).
A obediência do cristão não é a do judeu, re- Hb 1.5) Destarte os pagãos são atingidos pelo
.

gulamentada por uma lei feita de preceitos e de julgamento e pela graça de Deus, do Deus de
Israel. Por outro lado, forma-se a convicção de
proibições. É ampla como outrora no Éden.
"Tudo Tudo Vós que Deus se revela, mediante suas façanhas na
é permitido.
chamados para a liberdade".
é
no exer-
puro.
O limite
fostes
História, como o —> criador que tudo provi-
dencia para a criatura. Textos como Is 45.11-
cício da liberdade cristã, característica da obe-
13; 60.21; 64.8, revelam de maneira típica a
diência da fé, é o reconhecimento da obra de
ampliação da noção de aliança até abarcar o
Cristo no próximo (Rm 14.13ss; ICo 8-9) e
conceito da criação. A luz da aliança, Israel
da vida de Cristo em sua própria vida (Rm
descobre que seu Senhor não é apenas o senhor
6.3). Eis porque o amor de Cristo para conosco,
sua humilde obediência até à morte no patí- das nações, mas o criador do universo inteiro.
bulo, conduz o crente no caminho do amor fra- Tudo é obra das suas mãos (Gn 2.2-3: êstes
ternal (ljo 4.12) e da submissão mútua (Ef versículos, bem como Gn 1.1-2.4, pertencem ao

5.21s) em particular, submissão da esposa ao


:
documento sacerdotal, posterior ao exílio). Nes-
esposo, dos filhos aos pais, dos servidores aos ta obra, salientam-se em especial duas maravi-
amos, dos fiéis às autoridades políticas, jurídi- lhas os céus (SI 8.4; 19.2; 102.26) e o ho-
:

cas (Rm 13 Iss) e eclesiásticas (Hb 13.17;


.
mem (SI 138.8; 145.10; Jó 10.3; 14.15). Os
cf Dt 17.9-13). livros mais recentes do VT, bem como tòda a
A. LELIÈVRE literatura judia posterior de expressão grega,
desenvolvem êste tríplice aspecto, universalista,
OBRAS cósmico e antropológico, da obra de Deus.
O substantivo grego "tá érga" (que nossas b) Para o NT, as façanhas de Deus resu-
yersões do NT traduzem por obras) comporta, mem-se na redenção. As obras salvadoi as de
de maneira bem mais explícita que a palavra Cristo (Mt 11.2,19), ponto de junção da Pa-
234 ORAÇÃO

lavra e da Obra (Lc 24.19), são obras de Deus. à fé. A


própria profissão, se fór exercida na fé,
Contudo João é o único evangelista que utiliza é coonestada maravilhosamente (lTs 4.11; 2Ts
normalmente a expressão "as obras de Deus",
: 3.10-12; Ef 4.28). Mais ainda, o homem é cha-
para designar o conjunto da salvação realizada mado a colaborar, com o auxílio do Espírito,
em Jesus Cristo. Coisa aliás normal para quem na lavoura de Deus e na edificação da Igreja
se lembra de que João foi o único que procurou (ICo 3.9; 9.1; 16.10; Fp 2.30; At 13.2; 14.
olhar para o Cristo sintèticamente : os três sinó- 26; 15.38). Sua vida mais recôndita está liga-
ticos contentaram-se com reunir, sem qualquer da à obra de Deus. São Paulo incessantemente
elaboração consciente, os diversos elementos o proclama com esplendor (Cl 1.24; 2Co 4.7-
da tradição primitiva. As obras que Cristo rea- 15; 12.7-10; e também 2Ts 2.6-7, caso seja
liza dão testemunho dêle e da salvação por êle o próprio Paulo "o que detém" a manifestação
trazida (Jo 5.36; 10.25; 14.11; 15.24), por- do mistério de iniquidade, como muitos opinam
quanto salientam que Jesus cumpre a obra una com bastante razão).
e única do próprio DeUs (Jo 4.34; 5.17; 9.3; Numa palavra, a boa obra é a obra de Deus,
\7.4).A intenção e a finalidade destas obras é à qual Deus, por Jesus Cristo, quis associar o
fazer os homens participarem delas pela fé (Jo
6.29). Pois, assim como Deus fêz suas obras
crente conferindo-lhe um —
^> ministério.

em Jesus Cristo, assim também as fará, me- J.-L. LEUBA


diante o Cristo glorificado, nos seus crentes
(Jo 14.12).
ORAÇÃO
Uma concepção análoga, embora mais explí- Escrever uma teologia da oração equivale a
cita e mais universal, anima os escritos de Pau- escrever uma teologia completa. Contudo, con-
lo e o Livro dos Atos. A obra de Deus, tal co- cede-se frequentemente à oração um lugarzinho
mo Habacuque a contemplou extasiado (Hb apenas no "apêndice". Não falta quem afirme
1.5 citado por At 13.41), realiza-se de fato no ser "ela o fenómeno central da vida religiosa"
plano da Nova Aliança e se concretiza na for-
(Heiler), porém os teólogos, até os mais rea-
mação da nova comunidade (=na edificação
da — -ylgrcja: Rm 14.20; ICo 15.58; Ef
não tiveram suficientemente em conta o
listas,
ponto central que a oração ocupa na Bíblia,
4.12; Fp 1.6). mesmo de modo formal.
2. A inserção do homem na obra de Deus. Qual é, pois, para a Bíblia a primeira obra
Assim definida, a obra de Deus comporta um do Espírito Santo em nós, senão a oração? Ela
é, na expressão de K. Barth (La prière, Neu-
juízo de Deus sobre as obras dos homens, reve-
lando que umas são boas e outras más. No con- châtel e Paris, 1949, p. 14) o limite extremo

ceito do VT, são boas as obras que o homem da graça de Deus a nosso respeito. É caracterís-
tico que São Paulo, ao esboçar sumàriamente
faz de conformidade com a divina vontade, e
a História da salvação (por ex. em Gl 4.4-7).
más as que contrariam ou se subtraem a ela
dê, como coroa da obra divina, o grito do Es-
(SI 28.4-5; 90.7; 2Rs 22.17; Is 57.12, etc). O
NT, desejando obviar às deformações do judaís- pírito em nós Abba: =
Pai (ver também Rm
mo decadente, determina que classe de relação 8.12-15).
entre Deus c o homem torna boas as obras hu- A definição mesma da oração tem sido bem
manas. Tal relação é a fé ( —>
fé), o aban-
dono do homem a Deus. Fora da fé. as obras
'vacilante. Considerou-se, às vêzes,
so do homem a seu Deus :
como discur-
noção bem imprecisa
do homem, embora bem intencionadas, só podem a menos que se leve em conta o poder "ope-
ser más (}o 6.28-29; Cl 1.21-23). No entanto,
opor à fé o conjunto das obras seria um equí-
rante" da
zes define-se
— >como
palavra na Bíblia. Outras vê-
comunicação, comunhão do
voco grosseiro, porquanto a fé opõe-se exclu- homem com Deus. Não
faltou quem, evadindo-
sivamente às obras da —>
Lei (Rm 3.20:
Gl 2.16). A fé genuína suscita, na realidade,
se do campo teológico para o plano poético, de-
clarasse ser a oração "a respiração da alma".
suas obras próprias, "as obras da fé" (Gl 5.6; Cumpre aclarar, de início, que Deus entra em
lTs 1.3: 2Ts 1.11), as quais são indispensá- comunhão conosco antes que nós oremos (é a
veis à salvação (Rm 2.6-7; Mt 3.8; At 26.20
—> Recompensa).
Palavra dêle e não a nossa que é fonte desta
comunhão) .Tais definições, embora total-
Portanto só vale perante Deus a obra huma- mente falsas, possuem o agravo de ligar, de
na que fôr consequência da fé. Em procedendo modo artificial, a oração à salvação que Deus
da fé, faz-se ela plenamente válida e urgente- nos concedeu, ou mesmo de fazer da salvação
mente necessária (Mt 5.15 Ef 2.10; Tg 2.17-
; o fruto natural de nossas orações. Ora, eviden-
26). A palavra, no crente como no Cristo, vai temente, a Bíblia não conhece tais 'frutos na-
de mãos dadas com a ação (Rm 15.18; 2Co turais" exceto para combatê-los (Jo 3.6; ICo
10.11) tôda a vida, nos seus aspectos mais pro-
: 1.17-2.16), e, pelo contrário, afirma que Deus.
fanos inclusivamente, torna-se obra boa, graças quer que seu povo ore de certa forma, ritual (o
. :

ORAÇÃO 235

Saltério é a compilação das orações de Israel) VT


e sobretudo profunda (Is 29.13; 5.24). Am
Iavé não escuta qualquer oração ou qualquer Os numerosos termos designando a oração,
pessoa. Não se lhe pode falar, portanto, como
em sua maioria, são derivados um de sacrifi-
:

car, outro de cortar (fazer incisões?), outro


se falaria a qualquer deus.
de acariciar (a imagem do deus), ou ainda de
Definiremos, pois, a oração como a partilha
postar-se, e até de saltar. Guardemos apenas a
voluntária que Deus jaz conosco de sita vontade,
relação implicada por êstes têrmos com os ges-
de seu poder e de seu amor por meio da palavra
tos, pois os gestos, etimologicamente pelo menos,
humana. (O segrêdo desta partilha está no
precederam a oração vocal. (O gesto tem valor
Cristo por quem a oração torna-se especifica-
de palavra)
mente cristã). Cf K. Barth, ibid. p. 21: "Dans
la prière Dieu nous invite à vivre avec lui".
1. Há no AT um livro que foi o cânon da
A
Bíblia apresenta-nos a oração como dota- oração israelita {onde e quando pouco importam
da de poder sôbre tôdas as coisas sujeitas ao aqui) o livro dos Salmos. Após haver Baila
:

poder do próprio Deus (como nosso destino: feito justiça da interpretação coletivista dos sal-
Salmos; os demónios: Mc 9.29; a doença: Sal- mos e demonstrado que êstes, em sua maioria,
mos; as decisões de Deus: Gn 18, etc.) foram escritos por indivíduos para pintar infor-
Pela oração o homem, graciosamente, torna- túnios pessoais, faz-se entretanto justiça, hoje, à
se súdito, compartilhar a divina
é admitido a antiga interpretação de que os salmos tinham
causalidade. A
oração constitui, antes de tudo, também um destino cultual e, desta maneira,
avanço do reino de Deus, e, mediante nossa ainda que individuais, não podem ser separados
participação neste avanço, antecipação do reino da comunidade que os ouviu e os utilizou.
onde Deus será tudo em todos ( Reino).
Eis porque o "Pai nosso" gravita em torno da
—> O não fala a um Deus definido ou
israelita

petição "Venha a nós o teu reino" eis porque


: ;
indefinido em
si, porém, ao Deus da alian- —>
ça, isto é ao Deus tal como definiu-se com rela-
a oração da Igreja é: "Vem, vem logo!" (Ap
ção a Israel. É pois no grande contexto da
22.17,20; cf ICo 16.22) eis porque orar, orar
;

aliança que devemos compreender os salmos.


bem, é tão importante e grave. Feitos filhos ado-
Isto não impede de nenhuma forma que os sal-
tivos de Deus, é-nos mister aprender a viver e,
portanto, a falar como filhos de Deus. mistas saibam que o Deus, autor da aliança com
Israel, é o Deus do universo (SI 8; 19; 104:
A oração é o meio que Deus nos concede para
mesmo quando, no caso dos SI 19 e 104, só
levá-lo a querer o que nós queremos ; mas deve temos empréstimos, a nossa afirmação não está
ser também o meio que nos impele a pedir que infirmada, mormente quando tais empréstimos
êle nos leve a querermos o que êle quer. "Seja são corrigidos). "Se Iavé, criador universal,
feita tuavontade" (Mt 6.10; cf 2ó.39ss). Quem é por nós, quem será contra nós?" tal é o racio-
procurasse levar à unidade esta ambiguidade cínio do israelita, quer nos salmos coletivos.
paradoxal ou retirar uma destas afirmações quer nos salmos individuais onde "nós" enco-
ocasionaria o desmoronamento da oração. se- A bre os piedosos, isto é, os que se atêm à única
gunda afirmação é esquecida em muitos livros aliança de Iavé e, portanto, à sua única lei.
devocionários onde as orações aparecem com- Eis a razão porque a oração constitui aí uma
piladas como se fosse fórmulas mágicas. E a grande audácia fala-se na qualidade de bene-
:

primeira afirmação é olvidada por grande nú- ficiário e da aliança. Não resta senão
de fiel

mero de teólogos excessivamente preocupados permitir aproveitamento dêste diálogo a todos


por evitar antropomorfismos partindo de uma
: os que são fiéis, ou seja, pràticamente, a quan-
definição de Deus e da sua imutabilidade, não tos participam do culto de Israel (à grande
encontram para a oração outro lugar senão assembléia: SI 22.26; 35.18; 40.10). O Salmo
pedagógico. Ora, a noção bíblica do Deus vivo narra o que êste membro suportou. Tal narra-
está na base secreta da oração a oração deve
: ção motiva-se, em primeiro lugar, no desejo
ser estudada como a segunda fase da relação de tornar a experiência do salmista bem tangí-
Deus- Vivo à pessoa-viva, ou seja de u'a ma- vel aos ouvidos de todos em segundo lugar, na
;

neira dinâmica e, diríamos, existencionalista. convicção de não se contenta com


que Deus
Não esquecemos que já se rezou antes de qual- infortúnios abstratos, anónimos pois, êle não :

quer reflexão e antes de qualquer teologia sôbre compreende os que lhe falam por meias-pala-
a oração. Em
suma, a oração é a prova de que vras. e tornar-se surdo aos que falam muito
o crente é realmente salvo e que pode realmente baixo. Eis a razão pela qual grita (expressão
viver sua salvação. A
oração é e deve ser sua a ser tomada realisticamente
verdadeiros cla-
:

primeira obra, a primeira expressão de sua fé mores), chega-se até a rugir. A


oração em voz
(cf o episódio dos dez leprosos a ação de gra-
: baixa era excepcional (Eli crê que Ana está
ças é reclamada por Jesus como primeira ex- embriagada quando a oração dela não é audível
pressão da fé, Lc 17.11ss). ISm 1.14). Quando nós nos fazemos bem
236 ORAÇÃO

escutados, Deus atende nossas petições. Então por tua causa


que intercedo e que tu deves
damos-lhe graças. As
causas de aflição mais co- escutar, pois em
nós mesmos não existe qualquer
muns são a doença, quer como consequência causa de intercessão e ainda menos de atendi-
de um erro (SI 32), quer por causa de um mento". Temos aqui explicada a fórmula: "em
feitiço (SI 59), a falsa acusação, as disputas
e rabulices clericais. Poucas angústias mera-
nome
Para
de", "em teu nome" (ver
falar, o intercessor cobre-se
—com>
o nome
nome).

mente espirituais ; mas sempre a premência ma- e, portanto, com a pessoa de Deus e sua obra.
terial produz uma profunda premência espiri- bem certo que a intercessão corresponde a uma
tual. Às vêzes, ora-se como um réu (SI 51: promessa precisa (Dn 9 llss) Por causa desta
. .

32 :êste último notável porque a principal promessa, Deus colocou-se ao lado dos que
culpabilidade confessada é de não ter declara- oram, ainda que pecadores.
do seu pecado mais cedo).
A 4. É mister ainda saber que a oração era fre-
aliança, tendo sido transgredida, pede-se a
Deus que cubra o pecado e introduza novamen- quentemente acompanhada por um sacri-
fício (SI 66. llss) a tal ponto que cabe per-
—>
te o réu na sua aliança. Isto pressupõe eviden-
temente que Deus se digna a ouvir o pecador. Às guntar se a oração não constituía a parte oral
vêzes, orar-se-á como um "justo", embora em do sacrifício. Houve, sem dúvida, orações sem
todos os casos seja bem visível que é diante de sacrifício (SI 50; 51; 69.32); porém, no que
diz respeito aos salmos 51 e 69, ("anti-sacrifi-
tal acusação precisa que o autor se justifica,
ciais"), é preciso lembrar que Jerusalém estava
diante de uma acusação que se fundamentada,
um destruída: condena-se o sacrifício fora de Je-
valer-lhe-ia a morte ou castigo similar (cf
rusalém, enquanto o Templo não fôr recons-
SI 3; 4; 5 e outros). Seria êrro grosseiro ver
truído (SI 51.18-19), posto que o sacrifício
nesses salmos documentos de "justificação pró-
nada é fora da presença objetiva de Iavé, isto
pria" no sentido que esta expressão receberá
mais tarde. Pois êles não passam de defesas, é fora do —>
Templo. Existem também sa-
crifícios sem orações (o Levítico é pouco lo-
com frequência de acusados persua-
corajosa,
didos de que Deus saberá confundir as falsas
quaz sobre a oração). Às vêzes, substituem-se
testemunhas. mutuamente. Entretanto, mesmo constatando a
concorrência de ambos em determinadas épocas,
2. Há no AT numerosas orações, em par- não se deixa de ver o lugar de escolha que os
ticular o livro de Jó, que não é outra coisa se- dois merecem e vrificar que antes de tudo êles
não uma
oração prolongada. Cumpre sobretudo se completavam a oração reagindo contra qual-
:

reter, na meditação de Jó, a espantosa sinceri- quer magia sacrificial, o sacrifício objetivando
dade, e o longo desenrolar que culmina harmo- (e sabe autenticando) a oração. O
quem je- —>
nizando a vontade de Jó e a vontade de Iavé. jum, "o saco e a cinza" frequentemente acom-
Se nos é permitida uma hipótese a respeito panharam a oração.
dêste livro, cremos ser êste um dos temas prin-
cipais de Jó. "Quem quer que enfrente proble-
5. Quanto à prática^ sem dúvida foi ela variá-
mas árduos só obterá resposta após uma luta vel no tempo e no espaço. Salientemos em par-
ticular que lei e liberdade existiram conjunta-
longa e sincera com o Criador, porém, logo dei-
xará êsse alguém de disputar". A oração é a mente. Atitude: ora-se de pé, com as mãos aber-

primeira resposta. Eis a tese defendida por Jo a tas para o alto (a fim de receber alguma coisa?)
(SI 28.2; 134.2; ISm 1.26; lRs 8.22), ou
propósito do problema mais delicado como é :

possível um homem íntegro sofrer tanto? de joelhos (lRs 8.54; Dn 6.10; Ed 9.5). sen-
tado com a cabeça entre os joelhos (lRs 18.42).
3. Há
ainda as grandes orações de Moisés Outras vêzes levantam-se as mãos ora em dire-
(Ex 32.11-13; 33.12-16; 34.9; 11.11-15: Nm ção ao altar, ora em direção ao céu (lRs 8.54;
14.13-19; 21.7; Dt 9.18-21; 10.10 e Dt 33), Lm 3.41; numerosos salmos). Outras vêzes
a de Abraão por Sodoma (Gn 18.22ss), as de volta-se para o lugar santo se se está no Tem-
Davi .Notemos que a intercessão, pouco apa-
. . plo, ou em direção ao Templo se se está alhu-
rente nos Salmos, encontra-se melhor atestada res. (Cumpre aliás subir ao templo tantas vê-
nestas outras orações (Jó 42.8-10; Is 37.14-20) ; zes quanto possível para lá orar, pois ali faz-se

ela, porém, parece ter sido o apanágio de a oração mais "operante": Dt 2.11; Is 56.7;
certos homens excepcionais representando o pa- Dn 9.3,20 texto a traduzir por: em direção da
pei de advogados diante de Deus profetas, sa- : montanha). Pode-se orar a qualquer hora; po-
cerdotes, reis. Para Moisés, esta intercessão rém, há também horas fixas (Dn 6.10; SI
constitui um verdadeiro ministério. Ê ademais 55.17). Igualmente há fórmulas fixas; disso o
interessante notar que na maioria das vêzes o saltério é a melhor prova todavia o mesmo sal-
;

intercessor recorre a um argumento que hoje tério demonstra que existiam orações pessoais
em dia nos surpreende "porque tu és aquêle : que a comunidade podia adotar. Existe uma
que és, perdoa, Senhor senão deixarás dizer de
; norma de oração e existe a possibilidade de
ti que és injusto, que abandonaste teu povo. É não ficar prisioneiro dela. Por que, entretanto,
: ::

ORAÇÃO 237

tem-se insistido cada vez mais sóbre a neces- divergirá, sendo preciso que nossa vontade se
sidade de um local especial (ou de determinada molde ao querer de Deus (2Co 12.8ss). Até
postura) com horários e formulários? Seria en- haverá casos em que a discrepância se deve
gano ver nisso uma regressão da espiritualidade à nossa irresolução (porquanto somos dividi-
e mobilizar os profetas em apoio a esta crítica. dos ou, mais exatamente, duplamente anima-
Pois. fora de um desvelo pedagógico evidente, dos: Tg 1.6-8). A oração é, pois, operante,
cumpre reconhecer aí, antes de tudo, o sinal de embora não por si mesma nem imediatamente
uma tomada de consciência, progressivamente com frequência, entre os rogos e o atendi-
mais nítida da realidade e da unidade israelitas, mento visível, intermediará um prazo que
e da decisão de manifestar e de aperfeiçoar os deverá ser preenchido por constante oração (Lc
valores nacionais. Quanto ao assunto das ora- 18.1ss; 11.5-9). Neste intermédio as petições
ções, abarca todos os domínios da existência hu- poderão tomar tôda classe de variantes para
mana. Mencionemos, por exemplo, a linda ora- coincidir com o atendimento. Cada oração pos-
ção de Eliézer (Gn 24.12-14 e 27) firmemente sui uma história, e compõe-se de várias petições
prêso à promessa feita a Abraão. Finalmente que deverão ser tomadas em seu conjunto e em
escutemos a grande sabedoria do Eclesiastes seu desenrolamento (Cf as orações de Cristo
(5.1-5). em Getsemani) Perseverança, pois esta é a pri-
.

meira qualidade da oração. A confiança é a se-


gunda. Uma permite atingir o resultado, isto
NT é a harmonia entre a vontade de Deus e a nos-
O XT conhece quase dez têrmos para "orar". sa a outra sabe que êste resultado é certo.
;

1. Encontra-se também aqui um cânon da Jesus nos assegura que, no plano invisível, esta
oração, não sob a forma de um compêndio, mas harmonia já se realizou (Mc 11.24; cf ljo
sob a forma de uma oração, o Pai nosso, que 5.15).
Cristo deu como modêlo de tôda oração cristã Com respeito à oração de Jesus, cumpre no-
em resposta ao "ensina-nos a orar" dos discí- tar ainda que: a) Parece que Jesus orou muito
pulos (Lc 11.1-4). Se o pedido dos apóstolos pouco de modo pessoal e livre com seus discí-
é autêntico (e não há razão para duvidar), pulos, preferindo usar com êles fórmulas litúr-
êle nos ensina, por um lado, além do desejo de gicas ;
b) retirava-se a lugares escondidos para
mimetismo nos apóstolos em face dos discípulos orar pessoalmente (Mt 14.23; Lc 5.16; 9.18.
de João Batista, que Jesus tinha uma oração etc). c) Pelo menos nos dias da Paixão, va-
bem "característica", e por outro lado, que os leu-se grandemente dos alunos (Mt 26.30; 27.
apóstolos, quer como judeus (conhecedores dos 46; Lc 23.46; Jo 19.28). d) O Pai nosso foi.
salmos), quer como homens, sentiam-se insufi- aparentemente, o resumo da oração própria de
cientes para orar cristãmente. Jesus confirma Jesus que tanto intrigava os discípulos, e) Je-
êste fato quando diz "Quando orardes dizei
:
sus não começa por "Senhor", mas por "Pai
...", atestando assim que nos é mister apren- nosso", inaugurando assim uma nova era na His-
der a orar e aprender com êle. O Pai nosso tória da oração /) o essencial da grande "ora-
documenta-nos sóbre o alcance, o sentido e o ção sacerdotal" (Jo 17) é a unidade da Igreja.
limite da oração. Pouco se notou que o Pater
é a nossa principal participação nas três pri- 2. Para o apóstolo São Paulo, a oração é a
meiras petições. De fato o Pater é santificação palavra do Espírito Santo pronunciada por um
do nome de Deus, avanço de seu reino e cumpri- membro do corpo do qual Cristo é cabeça. Sem
mento de sua vontade. Por meio de nossa ora- expressá-lo terminantemente, Paulo demonstra
ção Deus avança seu reino mediante ela, ou-
que a oração é a formulação do amor ou, quando
;

trossim, nós trabalhamos para êle. Orando, menos, seu veículo mais ordinário culmina no :

nós nos integramos ao que pedimos e disto grito Abba =


Pai; querendo relembrar seu
participamos bem longe de evitarmos um "com-
:
amor pelas Igrejas, o apóstolo sublinha tôdas as
promisso" mais radical, orando, nós nos enga- vêzes que êle intercede por elas. Além disso,
jamos irremediàvelmente. considera a oração como uma palavra do Cris-
Deus quer ter necessidade de nós até nas to (Cf ICo 1.4ss; 2Co 1.3ss; Cl 17, etc). Há
coisas que são de sua exclusiva alçada. Sem muitas observações a serem feitas sóbre esta
dúvida, a última instância de tôda oração (par- oração: palavra do Espírito Santo no sentido
cialmente como corretivo para uma ambição de que ela "sobe", palavra do Cristo no sentido
humana desmedida) é a terceira petição: "seja de que ela edifica e faz-se normativa. Porven-
feita a tua vontade!" A vontade de Deus, po- tura temia Paulo um Espírito Santo como pos-
rém, não está considerada in abstracto a pri- : sível concorrente do Cristo ? É bem provável
meira vontade de Deus é que nós oremos. A de qualquer forma a História teria justificado
vontade de Deus é "aberta", favorável e gene- tal apreensão. Notemos simplesmente que Paulo
rosa: às vêzes poderá e desejará desposar a coloca no mesmo plano as orações da Igreja
nossa vontade mas haverá casos em que ela
; de então e as palavras do Cristo estas orações
:
:

238 ORAÇÃO

são a Palavra atual do Cristo edificando sua santos e mártires louvando o Cordeiro e cla-
Igreja. mando por vingança (6.9ss), ou seja, eviden-
O
apóstolo fala da oração do Espírito Santo temente, celebrando uma liturgia. É permissí-
(Rm 8.15-16 e 26-27) no sentido de que a vel pensar que se realmente êles oram (e assim
oração cristã vem do Espírito Santo. Porém, o crê o Apocalipse), nada os impede de inter-
antes de mais nada, descartemos o sofisma ora- : ceder pelos vivos. No que concerne à interces-
ção espontânea =
oração espiritual. Quando são, (à qual os apóstolos, em particular Paulo,
Paulo fala de suspiros inexprimíveis, pretende deram tanta atenção, instruídos pelo exemplo
mesmo declarar que nós não podemos exprimí- do Senhor;cf At 7.58: Estêvão, usando a mes-
-los ainda que fôsse em línguas. O Espírito vem ma intercessão do Cristo no Calvário, oração-
em nossa ajuda mediante uma oração paralela, padrão de todo mártir), mereceria ser objeto
pois nós não sabemos bem o que é preciso pedir, de um estudo especial não pressupõe ela uma
:

com muito mais razão se se tratar do inexpri- espécie de osmose da graça? Não é ela, ade-
mível. Significa isso que cumpre calar-se e con- mais, a partilha de um dos ministérios essen-
fiar em tal intercessor? Não, pois há suspiros ciais do Cristo? De fato, o sacerdócio de inter-
exprimíveis que constituem orações espirituais cessão do Cristo é transmissível.
(lembremos que espiritual, para Paulo como
para João, significa não-natural) das quais cer- 5. No NT, ora-se sem cessar, recomendando
tos sinais exteriores podem garantir a inspira- Jesus as orações curtas reza-se pelo pão, pelo
;

ção. Entre estes sinais, notar-se-á o grito Abba perdão dos pecados, para dar graças, para hu-
— Pai, a confissão de Jesus como Senhor Ccf milhar-se; ora-se pelas autoridades (lTm 2.
ICo 12.3), a aprovação dos que possuem o dis- lss), pelos irmãos, pelas outras Igrejas, para

cernimento dos espíritos (ICo 12. lOs) e espe- ,


conseguir a divina luz antes de qualquer de-
cialmente o consenso da comunidade a qual, cisão importante ; ora-se pela fé, pela sabedo-
ria, pela perseverança, pela vigilância, e (que
se a oração foi autenticamente cristã, não dei-
xará de reconhecer-se edificada (ICo 14.12ss). inovação!) ora-se pelos inimigos e pelos que
Eis porque o inspirado usará amplamente os nos mandam matar (Mt 5.44; Lc 6.28; 23.
hinos e orações de seu tempo. 34).

Assim, tôda vez que nossa oração é verda-


Quanto às modalidades exteriores da oração,
seguiu-se no princípio os hábitos judeus (Pedro
deiramente cristã, opera-se uma espécie de inter-
e João sobem ao Templo à hora da oração:
câmbio entre o Espírito e o Pai enquanto nós
:

falamos, o Pai presta ouvidos ao Espírito que At 3.1), retomando-se as orações judias. Mas
fala por nós. Jesus previne contra as orações muito exterio-
rizadas ou feitas para ostentar-se, e contra as
3. O Espírito não é o único que intercede por rezas maquinais (Mt 6.5ss; 7.21). Paulo igual-
nós. O Cristo também (Rm 8.34). Especial- mente não quer que, na oração, fique repou-
mente o autor da Epístola aos Hebreus sistema- sando a inteligência (ICo 14.14). Contudo, não
tizou êste propósito. Cristo é mediador de nos- é menos certo que, desde o princípio, existiram
sas orações pois as transmite e transfigura (4. orações litúrgicas (orações judias, o Marana-
14ss; 7.25). Folga dizer que, na perspectiva tha, o Abba, o Amém cf também as doxolo-
;

de tôda a epístola, a primeira coisa oferecida gias das epístolas e do Apocalipse). E, sem
por Cristo é seu sacrifício porém esta. obra,
; negar êste dever ao cristão comum, compreen-
realizada uma vez por todas e para sempre, deu-se que uma das atividades apostólicas es-
conipleta-se hoje pela intercessão do Cristo, a
qual, mesmo nada acrescentando ao sacrifício, ainda que a oração acompanhava a —
senciais era a oração (At 6.4). Assinalemos
"> impo-
faz possível que nos tornemos beneficiários do sição das mãos ou a cura. Enfim a oração comu-
sacrifício. nitária considerava-se mais poderosa que a indi-
vidual (Mt 18.19).
4. Para Joãor o essencial na oração, a fim de
que ela seja atendida, é que se faça em nome 6. Qual pois o elemento novo da oração cristã?
de Jesus (Jo 15.16; 14.13; 16.23-24). A É que ela é efetuada em filiação direta com a
locução "em meu nome" deve ser entendida de oração do Senhor. Eis porque é feita "em nome
duas formas significa primeiramente "Cobrin-
: de Jesus", com nova certeza de ser atendida
do-vos com aquilo que eu fui", referência à precisamente porque "tudo está consumado" na-
mediação passada Cristo salvou nossas orações
: ; quele Jesus, do qual se vale, a oração implora
logo, significa "tendo recurso naquele que eu
: que o "tudo está consumado" se manifeste. Desta
sou agora, em minha mediação presente" (cf forma a oração se refere não apenas a uma
ljo 1.9; 2.1). O Apocalipse descreve o culto promessa de Deus ou a uma obra passada,
da Igreja triunfante (aliás em estreita aderên- transitória, anunciadora de uma obra por vir,
cia ao culto terrestre, o que significa pois que mas à grande obra da Encarnação da qual é
a nossa oração não pode ser independente da uma consequência. Cabe afirmar que a oração,
oração da Igreja triunfante) faz-nos ver os
; hoje em dia, é um dos meios mais importantes
PALAVRA 239

de ação ou transmissão de tudo que Jesus, em intelectualizar a noção bíblica de "palavra", b)


sua vida e antes de ressuscitar, cumpriu "uma nem limitá-la a u'a mera expressão oral.
vez por todas". Parece-nos, como o sublinhou Grande é, pois, a tentação de reduzir a noção
0. Cullmann, que o evangelho de João con- bíblica de "palavra" a um conceito filosófico,
cedeu um lugar capital à oração (em particular como seria "a expressão racional duma verda-
nos últimos capítulos), como sendo, ao lado dos de eterna", e de confundir em consequência
sacramentos (sem que o plano seja o mesmo), (sendo-lhes comum o têrmo: logos) as perspec-
a causa pela qual Cristo concede hoje em dia tivas bíblicas com o pensamento grego. In-
a seu povo o que êle fêz ontem. (Ver O. CULL- discutivelmente têrmos estranhos foram introdu-
MANN, Les sacrements dans 1'Evangile johan- zidos na linguagem bíblica, porém, com o fito de
nique, Paris, 1951). Atendimento é transmis- infundir-lhes sentido nôvo e absolutamente ori-
são. É também curioso constatar que ações de ginal. Enquanto os filósofos alexandrinos en-
graças, bênçãos e doxologias estão frequente- tendiam, por logos, uma razão, uma ordem in-
mente em relação com o Evangelho salvador. A temporal inscrita no decurso eterno das coisas,
oração cristã não é pois simplesmente uma ora- a Bíblia ligava o logos à Palavra, a um fenó-
ção racional, mais profunda que a prece israe- meno histórico único a Palavra designa aqui
:

lita, ou seja melhor conhecedora de seu obje- a interpelação direta e pessoal de Deus ao
tivo e significado ; mas ela constitui o movi- homem. Uma figura intermediária e não um
mento vital dos membros em direção da cabeça: instrumento de comunicação racional. Quão sig-
é ela edificação da Igreja, é realização perfeita nificativo neste respeito que, para a Bíblia, a
da obra de Deus em nós, expressão e fórmula Palavra é algo que pode ser anunciado, um
principal do amor. Pela oração, Jesus Cristo
prossegue sua obra em nós e por nós. Ademais
objeto de —>pregação (At 8.4, etc) A Pa-
lavra não é, portanto, uma referência, mas
.

uma
a oração que realiza a união do hoje e do realidade; não é menção duma realidade, nem
é.

ontem: "Venha teu Reino!!" — "Vem cedo!" expressão intelectual desta realidade, mas a
própria realidade, o próprio evento não é uma
;

A. MAILLOT razão, mas um fato.


Eis porque a realidade da Palavra não fica
PALAVRA nunca esgotada pela sua expressão vocal. O
1. Importância da Palavra. O
lugar que mérito da teologia reformada foi ter descoberto
ocupa a palavra nas relações entre Deus e o a importância central da "Palavra de Deus" sob
mundo, entre Deus e o homem, e entre os ho- todas as luzes. Porém, esta mesma teologia
mens no mútuo trato, é de tal importância que corre o grande risco de ser vítima duma con-
se estende a todo o campo da revelação. A pa- fusão de têrmos, assimilando superficialmente
tudo que costumamos entender comumente por
lavra não se refere apenas a êste ou àquele as-
"palavra" com a noção bíblica mais ampla de
pecto da obra divina, não comunica apenas os
elementos intelectualmente acessíveis da Obra "Palavra". A pregação da Palavra não é da
divina, mas ela é o modo essencial da inter- alçada exclusiva do discurso, por muito aplica-
venção de Deus no mundo pela sua palavra
:
do que êste fôr na transmissão fiel do pensa-
Deus cria o céu e a terra (Gn 1), pelo seu mento bíblico. A
revelação é primordialmente
verbo revela-se aos homens (Jo 1) pela pro- um fato, fato que constitui em seu conjunto a
clamação de sua palavra realiza e estende a Palavra. A
Palavra de Deus, muito mais do
História da Igreja (At 4.29-31). Não podemos que um discurso de Deus, é um ato de Deus.
esperar, fora da palavra divina, algum outro Pois Deus obra falando, e fala obrando.
modo de —> revelação, mais intuitivo ou mais
imediatamente sensível. O Espírito Santo, com
3. A Palavra de Deus. Reveste importância
para o crente, não a palavra em si, o verbo ou
sua vinda, nada cria que seja nôvo, conten-
gesto desligado de seu autor, mas aquilo que
tando-se simplesmente com iluminar a Palavra
êste Deus vivo comunica ao homem. A Palavra
e facilitar-lhe a audição e a proclamação (Jo
recebe interêsse e vida exclusivamente por ser
14.26).
Palavra de Deus.
Igualmente não podemos fazer distinção na
Ora, quando analisamos a noção da Palavra
Bíblia entre "palavras", ou vocábulo articula-
divina no VT e NT, não tardamos em desco-
dos, e "fatos", ou atos históricos, milagres, si-
brir a presença de dois elementos, às vezes,
nais, sacramentos, manifestações do reino, coi-
identificados e outras vêzes distintos : um ele-
sas que, embora tácitas, são eloquentes ou mento de conhecimento e um elemento dinâ-
"elecutivas". Todo o conjunto da História da mico.
Salvação narrada pelas Escrituras é palavra
que Deus dirige ao mundo. a) A Palavra de Deus, elemento cognosci-
tivo. Pela sua Palavra, Deus comunica ao ho-
2. Noção bíblica da Palavra. Destas obser- mem uma verdade e lhe inculca uma ciência e
vações prévias decorre que: a) nem devemos uma sabedoria. A divina Palavra comporta uma
240 PALAVRA

virtude informativa. Dirige-se ao homem como ções de vida duma nova ordem, livre do peca-
a uma pessoa responsável, quer dizer, capaz de do e da condenação. Quem pôde dizer ao para-
dar ou de negar uma resposta (Is 50.2). Atinge lítico: "levanta-te e anda!", tem o poder tam-
a inteligência, e instrui cognoscitivamente (Dr bém de perdoar os pecados (Mt 9.1-8).
4.36; 2Tm 3.16). Êste aspecto didático da Pa-
lavra deve ser sublinhado tanto mais quanto 5. A
Palavra profética. A
expressão: "a pa-
lavra de Iavé dirigiu-se a..." "a palavra de
anteriormente temos salientado que ela não é
um conceito filosófico, nem um modo de ex- Iavé veio a..." é frequentíssima no (lRs VT
6.11; 13.20; Jr 1. 4,11; 2.1; 13.8; 16.1;
pressar uma verdade impessoal e intemporal,
24.4; 28.12; 29.30; Ez 3.16; 6.1; 7.1; 12.1;
nem um objeto de especulação. Nunca vem a
Os 1.1; Mq 1.1; Sof 1.1 Ml 1.1 etc). Na His-
ser uma realidade em si, mas um ser que se
tória da profecia esta "palavra" se manifestou
relaciona sempre com aquele de quem procede.
cada vez mais em forma de declarações ou
Portanto sua verdade reside na relação que con-
oráculos divinos, pois Iavé interpela os seus
serva com Deus, e não no teor das palavras
vocacionados mediante vozes e falas, fazendo-os
ou das fórmulas. Na realidade, ela instrui na
testemunhas de coisas ouvidas. Entretanto con-
medida que coloca o homem em face do Deus
vivo, fazendo-lhe tomar consciência de sua quali-
vém notar que a Palavra do Eterno nem sempre
se apresenta com êste caráter auditivo, senão
dade de "respondente" perante quem interpela, de
"interpelado" perante quem pergunta ou manda.
que amiúde vem expressa mediante imagens.
A palavra depende da inteligência, declaremo-lo "Foi-me dirigida a palavra do Eterno, dizendo:
que vês tu, Jeremias?" (Jr 1.11-13) Neste caso
bem, não porque ela é veículo duma sabedoria
.

a imagem nunca aparece sem palavras explica-


impessoal e geral, mas porque é Palavra de
Deus. Por seu intermédio conhecemos a Deus
tivas (p. ex. a visão de Isaías c. 6). imagem A
comporta uma revelação, uma palavra do Se-
e nos conhecemos a nós mesmos, descobrimos
nhor (Am 7.1-2; 8.1-2; 9.1-2). Noutras ex-
a criação, a natureza, a ordem ou desordem do
pressões o profeta é levado algumas vezes a
universo, e o lugar que o Criador dá a cada
"ver" a Palavra, a comprender a revelação,
uma de suas obras.
não apenas através da audição, mas também
b) A Palavra dc Deus, elemento dinâmico. da visão. Também a imagem fala. Proféticas se-
Enquanto a sabedoria grega via no logos (na rão não somente as palavras, mas as visões dos
palavra) um elemento impessoal duma verdade videntes, e até a própria História de Israel.
eterna, a revelação bíblica faz dêle um elemento A Palavra de Deus além de criar vozes e
temporal. A Palavra entra na História com locuções, suscita formas, sinais e eventos, cria
uma carga explosiva pois é potencial de ener-
:
mesmo a História. Precisamente através desta
gia e força de vida. Ela representa a irrupção História, iluminada e circunstanciada mediante
duma força criadora no mundo. Sua interven- o verbo oral, é-nos dado receber a Palavra,
ção não pode deixar indiferentes os sêres ou "vê-la", e contemplá-la tanto como ouví-la.
pessoas que atinge, pois possui poder fecundan- Acontecerá mesmo um dia em que o Verbo se
te portanto, nunca volta para Deus sem efeitos
; fará carne e, deixados os sinais proféticos, per-
(Is 55. 10-11) Ora, mais uma vez, a Palavra só
. mitirá que contemplemos sua glória (Jo 1.14).
se torna dinâmica na medida que é Palavra de
Deus, emanada da mesma fonte da vida. 6. O Verbo feito carne. Mesmo julgando, a
Em Palavra de Deus expressa o seu amor. O pior
consequência, a Palavra, simultaneamente
elemento de saber e de poder, cria entre Deus e não é que esta Palavra seja dura —
pois em-
bora condene, ela reconcilia, provoca arrepen-
o mundo, entre o interpelante e o interpelado,
entre o orador e o ouvinte, uma relação de ver- dimento e salvação —
mas que ela emudeça
dade e, logo, uma relação de energia. Êste duplo e se retire (ISm 3.1). Entretanto Deus não

aspecto da divina Palavra acompanha tôda a quis privar o mundo de sua Palavra num ex- ;

revelação bíblica. cesso de seu amor, mandou-a "habitar entre


nós" (Jo 1.14). Jesus, muito mais que um
4. A Palavra criadora. Deus fala e o efeito mestre de sabedoria que ensina e fala, mais que
surge. Por sua palavra,
do nada os sêres
— > Além
de suscitar
e as coisas.
cria o mundo, tira um pregador da Palavra que lança a mensagem,
é a própria Palavra substancial. Por ser a Pa-
a vida mediante seu Verbo soberano, ordena lavra é que Jesus fala com poder e autoridade
o caos (Gn 1). A
palavra criadora não deixa desconhecidos dos escribas e doutores. As Pa-
de ser também ordenadora, atribuindo a cada lavras de Jesus reclamam a fé naquele que as
ser seu lugar, restaurando cada coisa na sua pronuncia. Não dizem respeito a uma verdade
ordem original que o pecado tinha destruído. geral, mas à sua própria pessoa. Não passarão,
Ademais ela é redentora pois ela que pôde: não porque emanam duma sabedoria eterna, mas
criar os mundos e organizá-los, suscitar os ele- porque são as suas palavras (Mc 13.31). Pa-
mentos dominá-los (SI 147.15-18; Mi 8.24-
e lavras e obras de Jesus são inseparáveis. Sua
27) ; também pôde criar os elementos e condi- Palavra é operante, age em —>
milagres (Mt
: : ;

PÃO 241

8.16; Mc 1.25; 4.39, etc). Perma-


Lc 7.14; Nempor isso deixa de ser certo que o teste-
necer na palavra equivale a permanecer
sua munho tributado à Palavra e consignado no
nele mesmo (Jo 8.31). A palavra portanto não VT e NT nos é transmitido essencialmente atra-
se dá paralela a Jesus, ao lado de Jesus, mas vés de palavras. Estas palavras, porém, bem hu-
confunde-se com êle, manifesta-se na sua pes- manas, nada são em si mesmas, nem têm auto-
soa e no próprio fato histórico da sua vinda ridade qualquer. Para que se tornem elementos
Jesus é a Palavra. Em Jesus torna-se realidade de saber e de poder, é preciso que o Espírito
a união fundamental do verbo e do ato, do fa- Santo as ilumine e as "leia" então, através dos
;

lar e do agir. Em
Jesus o Verbo tem sua força têrmos humanos ressoará a Palavra de Deus
dinâmica integral, e o ato, tôda sua virtude então, como sob a ação dum banho revelador,
elecutiva e expressiva. O primeiro capítulo do aparecerá, não mais palavras, mas a figura do
quarto Evangelho soa como um eco do primeiro Salvador, profeta, sacrificador e rei, centro de
capítulo do Génesis, e, de fato. êle nos entrega tôda a História da Salvação então a palavra
;

a chave viva do mistério da criação do mundo pserita se tornará por sua vez Palavra de
mediante a Palavra. Pois em Cristo têm sido Deus.
criadas todas as coisas tudo tem sido criado
; J.-PH. RAMSEYER
por e para êle. e nêle subsistem todas as coisas
(Cl 1.16). PÃO
7. A Palavra apostólica c a Palavra pregada. VT
O ministério da Palavra foi confiado à Igreja.
Etimologia do têrmo hebraico incerta. Talvez
Para êste fim, a Igreja foi habilitada para rece derive dum radical que significa "triturar,
ber a Palavra, levá-la no seu seio e comunicá-la moer". Observemos sua afinidade com palavras
ao mundo. Anunciada pelos profetas, encarnada muito diversas, como guerra, destruição e, se
entre nós em Jesus o Nazareno, a Palavra foi
o texto de Sf 1.13 não é uma corrupção, com
transmitida por aquêles que a presenciaram
a palavra carne (afinidade análoga no idioma
ocular e auditivamente (Lc 1.2). Sobre o tes-
dos árabes nómades). De qualquer jeito, o pão
temunho dos profetas e dos apóstolos é que se foi considerado martirizado (triturado pelos
edifica a Igreja (Ef 2.20).
dentes: Nm 14.9 anunciando a destruição dum
Apregação da Igreja não consiste pois em povo declara que êle será o pão dos Israelitas)
lembrar meramente e proclamar as palavras de ou como resultante da paixão do trigo assim no:

Jesus, mas em anunciar o próprio Jesus. Pregar ritual de Ugarite, o Deus Verbo, filho divino,
a Palavra é pregar a Jesus Cristo. é triturado, cortado e britado.
Aliás, Jesus não é anunciado apenas mediante No VT considerava-se o pão
palavras e frases, pois uma pregação fiel não
se apoia em discursos persuasivos da sabedoria,
1. Antes de mais nada, — como o símbolo dos
dons que Deus outorga para que possamos vi-
mas acompanhada duma demons-
necessita ser
tração de Espírito e de poder (ICo 2.4). Os ver — frequentemente com a água (a perspec-
tiva, como veremos, embora diversa, completa o
milagres, o amor fraterno, a lei do reino vivida
simbolismo do vinho. Pão e água, logo, pão e
e aceita em suma a vida da Igreja, uma, santa,
apostólica e universal, é uma pregação da Pa-
—> vinho. Ver Ex 23.25; Nm
21.5; Is
33.16; Ez 4.17). Carecer de pão é portanto
lavra à qual os nossos coetâneos prestarão mais
atenção que a todos os nossos discursos. uma terrível maldição (SI 37.25; 2Sm 3.29.
etc). Sem dúvida o homem não vive apenas de
8. A Palavra escrita. A Bíblia não é um flo- pão (Dt 8.3), mas sem êle não pode viver. O
primeiro dever de caridade será partir o seu
rilégio de sentenças. Do princípio até o fim, ela
é um
testemunho dado à Palavra, isto é à obra pão com o faminto (Is 58.7).
criadora, conservadora e redentora de Deus em
2. Na mesma linha de idéias, o têrmo lembra
Jesus Cristo. Esta é a causa porque as Escri-
que esta vida depende de Deus. Indispensável,
turas testemunham primeiramente uma História
o pão nos demonstra que somos apenas uma
e não palavras nesta História as palavras estão
;
criatura (Dt 8.10-18) e, ainda mais,
inseparàvelmente inseridas nos eventos. Portan-
to, devem comprender-se em função dêstes even- 3. pelo trabalho que requer, simbolizará bem
tos (mormente em função da Encarnação do a maldição do homem. Deus continua dando-
Verbo em Jesus) todas as palavras referidas nos o pão, mas nós o comemos no suor do
pela Bíblia. Quem
pretendesse tirá-las deste rosto (Gn 3.19). Ooriginal usa uma aliteração
invólucro temporal e libertá-las de sua História interessante que em
português pode expressar-
com o fito de erigi-las em princípios gerais, se com "pão
de pena". Explica-se assim a pro-
despí-las-ia de sua verdade e de seu poder de messa, para a idade messiânica, de "um pão
Palavra divina, reduzindo-as a meros preceitos sem pena" (embora não sem trabalho) e "sem
filosóficos ou éticos. dinheiro" (como o vinho e o leite: SI 132.15).
; : :

242 PARÁBOLA

Is 55 não menciona o pão, contudo a idéia é NT


idêntica não mais necessitaremos então de pena
:

nem de dinheiro para comer. Também se ex- O pão é uma das coisas essenciais que deve-
plica porque o maná recebido sem dinheiro nem mos pedir a Deus (Mt 6.11). Entretanto parece
cansaço será chamado "pão (descido) dos céus"
bem significativo que nas duas parábolas sóbre

(Ex 16.4; Ne 9.15), pois é o pão que Iavé a oração (Lc 11.11 e 11.5-10) Jesus escolhe o
envia. (Ex 16.15).
pão como objeto simbólico da petição. Induz-
nos isso a ver no pão mais do que um mero
4. O pão asm o da Páscoa rememora o êxodo símbolo. De fato o grande texto de Jo 6 nos
do Egito; é chamado "pão de miséria" (Dt revela que Jesus é o pão de Deus, isto é
16.3). Deve lembrar que os Israelitas foram
a) o alimento de todos os homens êle, ex- :

escravos, resgatados por Iavé, e, juntamente com clusivamente, é quem dá a vida aos homens.
o ritual da festa, que os Israelitas continuam
sendo estrangeiros e peregrinos sobre a terra b) o maná (conforme o VT, não era o pão
(SI 39.13; lCr 29.15). Como o vinho, o pão do céu, mas o pão descido dos céus; contudo
levedado é o sinal da instalação. Contudo não SI 78.24 o declara: trigo do céu) era apenas
esqueçamos que o fermento tem sido considerado temporário, porquanto prefigurava o verdadeiro
não poucas vêzes como corruptor. pão que Jesus Cristo nos dá.
c) sua vinda e sacrifício são o dom defini-
5. Partir o pão com alguém não denota me- tivo do verdadeiro pão ao mundo isto é da
ramente um ato de caridade, mas significa tam- verdadeira vida
bém a paz com êle (Gn 14.18; Jz 8.5-6 e 15).
Na cerimónia de sua consagração Arão recebeu d) quem desejar viver deve comer êste pão.
nas mãos "um pão, um bôlo de pão, e uma Mediante êste pão, o Cristo comunica a vida
obreia do cesto dos pães asmos" (Ex 29.23-24), que tem, em si mesmo, recebido de seu pai
sem que o texto nos explique o simbolismo dês- (v. 57). Mas como comeremos hoje em dia
êstepão? Pela fé (v. 29,35,40) e pelo sacra-
te gesto.

O pão umelemento sacrificial importan-


mento da —>
eucaristia (vs. 53-56) .

6. é Consta pois que Cristo escolheu o pão para


tíssimo : a mesa dos pães de proposição é uma espécie sacramental, porque simboliza a vida
mesa sacrificial (Ez 41.22). Acompanha amiú- e porque, necessàriamente, nos lembra a neces-

de os —> sacrifícios. Por substituição? Como


o vinho substituía o sangue, assim o pão teria
sidade do Cristo. Folga dizer que, na Eucaris-
tia, o pão significa também a carne sofredora

e misericordiosa partir o seu pão marca e sig-


substituído a carne das vítimas Esta hipótese
:

nifica a reconciliação: aceitamos por comensais


torna-se mais plausível para quem lembra o
aquêles com quem repartimos o nosso pão.
parentesco "pão e carne" Ou mero rito agrá-
rio? Hipótese corroborada pelos mitos mesopo-
tâmicos para quem o pão (e o trigo) é uma
A. MAILLOT
divindade materializada, presente nos banquetes
dos deuses Ou para alimentar a Deus, necessi- PARÁBOLA
tado como nós de pão? O cap 21 do Levítico
chama os sacrifícios o pão de Deus Neste caso
:
1 . A
parábola é uma comparação protraída
supõe-se que Deus come, mas precisamente não
em narração, entre dois fatos ou eventos de do-
mínios diferentes, com o fito de explicar o fato
come pão (v. 6,8,22). Ademais se, de confor-
desconhecido à luz do fato conhecido.
midade com o texto aludido, Deus come, êle o
faz quando o sacrifício está consumado (v. 6), O NT
dá também o nome de parábola ao
através da manducação vicária dos sacerdotes nosso provérbio (Lc 4.23) ou à simples compa-
(v. 22). Ou, quiçá, por estar o pão ligado es- ração (Mc 13.28), por cujo motivo não é tão
treitamente à própria vida? Pois é pela morte fácil delimitar uma parábola bíblica como se

do trigo que o pão sustenta a vida. Esta idéia delimita uma figura retórica.
da vida que surge de u'a morte necessária é Por regra o ensino encerrado na pa-
geral,
comum aos povos orientais. (Jesus a utilizará rábola encara um ponto bem definido como o :

em outro plano morte do grão na terra, con-


: reino de Deus tão precioso que merece qual-
dição para êle frutificar, Jo 12.24). Nesta su- quer sacrifício (Mt 13.44), a alegria de achar
posição o pão é "sacrificado" por causa da o que estava perdido (Lc 15.8-10). Acontece,
vida particular que contém e que comunica me- porém, que uma parábola encerra várias lições
diante a manducação e mais completamente assim Lc 15.13-32 (alegria de perdoar para o
mediante o sacrifício. coração de Deus, o arrependimento do peca-
Sem dúvida estas diversas noções entraram dor...).
todas em jôgo, sendo difícil declarar qual fôsse A Igreja costumou interpretar as parábolas
primitiva e qual preponderante. como alegorias: não sendo então o conjunto da
: ;

PASTOR 243

narração, mas cada um dos seus elementos que Contudo o sentido das parábolas pode perma-
encerra uma imagem ou um tipo (assim em Lc necer oculto, sendo necessária uma explicação
10.30-35: O viajante ferindo o homem peca- = ou aplicação (2Sm 12.7; Is 5.6-7). Os ouvintes
dor ;o Samaritano =
Cristo Jesus o azeite ; talvez discrepam e rejeitam o conteúdo da pa-
e o vinho =
os sacramentos a hospedaria ; a = rábola (Mc 12.12; Mt 21.45). O reino de
Igreja, etc. Por reação contra a arbitrariedade Deus não se apresenta como os Judeus pen-
destas interpretações, caiu-se no outro extremo savam (Lc 17.20-21); deve ser compreendido
de pretender que os elementos alegóricos são e aceito pela fé, como é pela fé que Jesus é reco-
invenções da Igreja primitiva. Porém, consta nhecido por Cristo. As parábolas participam do
que várias parábolas são alegorias e interpreta- mistério do Cristo compreendemo-las quando
:

das como tais pelo mesmo Jesus (Mt 13.4-9, recebemos a Cristo e nêle cremos.
18-23, 24-30, 36-43, 47-50; 21.33-41) e que Mc 4.11-12 insinua que as parábolas são um
outras contêm traços alegóricos indiscutíveis meio de endurecer os incrédulos em vista do
(Mt 22.2-14; Lc 13.25-30; 19.11-27). juízo último, conforme Is 6.9-10; mas estas
palavras de Jesus, citadas igualmente por Jo
2. Encontram-se algumas parábolas já no VT
12.40 e At 28.26, apontam para o resultado do
o rico e o pobre (2Sm 12.1-4), a vinha (Is
conjunto ministerial "para os que não crêem,
:

5.1-6), o espinho e o cedro (2Rs 14.9), o agri-


tudo acontece em parábolas", isto é, êles não
cultor (Is 28.23-29). Os profetas realizam atos
ultrapassam os sinais terrestres, não alcançam
e têm comportamentos parabólicos (Is 20.1-4;
ver as realidades anunciadas pelas parábolas
Jr 13.1-7; 19.1-2,10; 18.1-4). discursos me- Os
não discernem quem é Jesus nem qual a sua
tafóricos e as visões entram abundantemente
mensagem. É para o evangelista Marcos, não
nos Apocalipses (Ez, Dn, 4Ed, Enoc).
para Jesus, que as parábolas são um meio de
Os rabinos contemporâneos de Jesus gosta- endurecimento.
vam de ensinar em parábolas. Valiam-se delas
para explicar a Lei Jesus lhes dá um conteúdo
; 5. O Evangelho de João não contém pará-
novo conforme a finalidade de seu ministério. bolas, mas declarações de Jesus que iluminam
Porém, a exemplo dos rabinos, utiliza as coisas quem forma de imagens pastor, por-
é êle, sob :

que vê em tôrno de si, na natureza ou na vida ta, caminho, Conforme Jo 16.19,25, Jesus
luz.
humana os fatos costumeiros, o fermento, a
:
falou aos discípulos figurativamente e por com-
lâmpada, a semente; os fatos ocasionais, o juiz parações o Espírito virá
sobre êles, e então
;

iníquo, o amigo importuno, os meninos que não saberão com


certeza as coisas que Jesus veio
querem brincar. Outras vêzes é um relato inve- revelar. A
revelação do Espírito não será dife-
rossímil, mas dominado pela verdade profunda rente da de Jesus Cristo (Jo 16.13-15; 14.26;
que encobre os trabalhadores da vinha, os la-
:
15.26).
vradores perversos (Mt 20.1-15; 21.33-40). F. BAUDRAZ
3. Jesus usa parábolas para anunciar o reino
de Deus como o reino é apregoado, como é
:
PASTOR
recebida a mensagem (Mt 13.4-9; 18-23); a O VT mostra-nos com muita frequência Iavé
certeza de sua vinda (Mt 13.31-33; Mc 4.
como o Pastor do seu povo (Gn 49.24; SI 23.1;
26-29) seu valor para os homens (Mt 13.
;
28.8; 78.52; 80.2; Is 40.11; Mq 7.14; Zc
44-46) a ameaça inerente ao juízo final (Mt
;
10.3, etc) e Israel como o rebanho do Senhor
13.24-30, 36-43; 47-50) a instantaneidade ines-
;
(SI 79.13; 95.7; etc, ver 2Sm 24.17; Jr 13.
perada de sua vinda, a necessária vigilância e a
17). Dupla imagem que, herdada pelo NT, apli-
natureza desta vigilância (Mt 24.45-51; 25.1-
car-se-á a Cristo, o bom Pastor, e à Igreja,
13; Lc 16.1-1; 19.11-27; 12.25-40).
grei de Cristo. Em
ambos os Testamentos, os
Jesus expressa também em parábolas sua ministros de Deus ou de Cristo denominam-se
situação pessoal, em face da reação dos Jiomens pastores (Is 63.11; Jr 17.16; Jo 21.16; At
ao seu ministério: os pecadores regozijam-se 20.28, etc). O
uso desta comparação deve-se
pela graça de Deus, os justos nada compreen- ao fato de que o povo escolhido foi, pelo menos
dem (Lc 15.1-32); o povo de Deus rejeita o no princípio de sua História, um povo de pas-
Filho de Deus (Mt 21.33-44). tores nómades (Gn 46.32; Ex 12.38, etc), e
Algumas parábolas tratam do amor ao pró- muitos dos heróis israelitas foram pastores (Ex
ximo (Lc 10.30-37) do perigo das riquezas
; 3.1; ISm 16.11; SI 78.70s; Am
1.1 etc). A
(Lc 12.16-21; 16.19-31). A perseverança na comparação, porém, cobra sua maior importân-
oração (Lc 11.5-13), é também relacionada cia na teologia, porquanto interessa a doutrina
com a vinda do reino de Deus (Lc 18.1-8). —>
— Jesus Cristo, do —>
ministério e da

4. Jesus deixar-se entender (Mc


fala para > Igreja. . .

4.21ss, 33) mercê das figuras e parábolas aco-


; 1. Jesus é o bom pastor (Jo 10.1-16): veio
moda-se à capacidade dos ouvintes. para salvar a grei de Deus (Mc 6.34; IPe
)

244 PAZ

2.25; Mt
15.24; Jo 10.16), para recenseá-la tagens, defendê-las
dos inimigos, conservá-las
(Lc 15.3-7; Mt 18.12; Jo 10.3,14), conduzí-la na união paz (comparar por contraste a ima-
e
(Jo 10.4), guardar e defendê-la (Lc 12.32; gem dos maus pastores: Ez 35; Jr 23.1-4).
Jo 10. lis), levá-la às pastagens da salvação Não lhes é lícito enriquecer-se a custo da grei
(Mt 2.6; Jo 10.9; Ap 7.17; SI 23.2), julgá-la, (Ez 34.2-3; IPe 5.2), mas têm o direito de
ou seja, purificar e segregá-la dos demais reba- subsistir por meio "do leite do rebanho" (ICo
nhos (Mt 25.31-46; IPe 5.4). Ter Jesus por 9.7).
pastor é ter paz e descanso (Mt 9.36), e vida Tôda a doutrina bíblica do ministério refere-
plena (Jo 10.10), porquanto nêle é que nós nos se fàcilmente à comparação pastor-ministro.
achamos no lugar certo, reintegrados e orde-
nados ao nosso fim. Há um paralelismo evidente 4. Vista na perspectiva geral do ensino evan-
entre Jesus-o-Pastor e Jesus-o-chefe que reca- gélico, a imagem bíblica pastor-grei serve para
pitula e reordena todas as coisas (Ef 1.10); situar em particular os três aspectos seguin-
tes
tanto mais que Jesus é o pastor não só da Igreja :

mas do mundo inteiro (Ap 2.27; 12.5; 19.15). a) A Igreja tem um pastor ou chefe em Je-
Para comprender o ministério pastoral de "Cristo sus Cristo (Jo 10), mas deve reconhecer tam-
profeta (Jo 10.3), sacerdote (Jo 10.11,15) e bém pastores subalternos, depositários ordi-
rei (Ap 2.27), é preciso rejeitar as piedosas re- nários do ministério pastoral: a Igreja que in-
presentações conforme as quais o ofício pas- tentasse derrubar o ministério se descaminharia
toral seria uma atitude de mulherzinha, e a perdendo sua coesão e falsificando-se (Mt 26.
incorporação à grei um convite a balir como 31). Aliás, ter um
chefe não pode ser para eia
cordeiros. uma provação um penhor de seguran-
;
antes, é
ça, paz e consolação, uma segurança de que
2. Jesus é o sumo Pastor (Hb 13.20), o arqui- doravante a solidão está vencida e a comunhão
Pastor (IPe 5.4) resume em si todo o minis-
: possível (lRs 22.17; SI 119.176; Is 53.6; Mq
tério pastoral (Jo 10.11). Êle, porém, antes da 2.12; Mq 2.12; Mq 9.36 etc). Por todas essas
sua vinda bem como após a sua ascensão, de- razões, a imagem da grei conduzida por um bom
lega suas funções a seus ministros (
—> —>
Minis- pastor encarna uma das promessas essenciais
VT
tério Servo). concedidas à esperança do (Jr 31.10; ver
também IPe 2.25), e constitui o prenúncio do
Portanto, não há pastor ou ministro por
a)
escolha própria ou por eleição da grei, mas
—> descanso esperado.

exclusivamente por graça, vocação e mandato b) A Igreja é um povo congregado: certa-


do Senhor da grei. Assim como Deus era quem mente cada membro do rebanho possui o seu
estabelecia na velha aliança pastores para o seu nome (Jo 10.3), conhece-se o número das
povo (Jr 3.15; 23.4; SI 78.71, etc), assim ovelhas (Jr 33.13), não obstante isso, o
agora é Jesus (ou o Espírito Santo, At 20.28) cristão que se afastar da grei, isolando-se
quem confia suas ovelhas a Pedro (Jo 21 15ss .
e ambicionando ser uma "ovelha-só", corre o
e estabelece pastores para a Igreja (Ef 4.11; perigo de morrer e não reaverá a salvação se
Mt 10.6). Portanto o ministério pastoral está não se integrar à grei. Não basta que o bom
subordinado ao Senhor os pastores do Evan-
:
Pastor nos encontre (Mt 15.24), é preciso para
gelho são perante o Senhor responsáveis, pela nos salvar que êle nos reintegre ao resto do
grei que lhes fôr confiada (Ver por oposição
rebanho (Mt 18. 12s Lc 15.3-7). Sem figuras,
;

a Igreja é uma comunidade fora da qual só há


Jr 23.2; Ez 34.10; ICo 4.1-4).
ameaças de perdição e de morte.
b) O
ministério pastoral exige, além de co-
Igreja é una, pois há um só pastor.
A
ragem (ISm 17.34ss; 25.7; Is 31.4; Am
3.12; c)
Eis porque a dispersão e divisão do rebanho de
Jo 10.12), sendo da responsabilidade (Mt 18.
Deus pelo cisma, depois de Salomão, foram re-
1; Lc 15.6), amor e paciência (Is 40.11; Ez
provadas como uma deturpação do povo esco-
34.4), competência no ofício Pv 27.23), ale-
(

lhido e 'corno uma calamidade cujo fim se espera


gria no trabalho e abnegação (IPe 5.2-3),
com angústia. A
promessa de um ajuntamento
ordem e lógica (Jr 33.13; Jo 10.3), humildade >
dos restos da grei (— remanescente) e da
(Ez 34.4; IPe 5.3), juízo (Ez 34.17; Mt
volta à unidade constitui uma das maiores espe-
25.32; IPe 5.3). Omitido ou mal exercido o
ranças do VT
(Ez 37.15-28), realizada somente
pastorado, a própria Igreja rui (Is 13.14-16;
pela vinda do Pastor único (Jo 10.16).
Jr 50. 6s; Ez 34.4ss) os pastores são impres-
:

cindíveis na Igreja. /.-/. VON ALLMEN


c) Os pastores estão na Igreja, porém dife- PAZ
renciados da grei confiada a sua responsabili-
dade são os chefes da grei (Nm 27.12-23; 2Sm
: Resulta não poucas vêzes difícil, quando não
5.2; 7.7s; lRs 22.17; Jr 25.35s, etc) e os seus impossível, discernir entre os numerosos textos
guardiãos. Devem levar as ovelhas às boas pas- que falam de paz, quais os que tratam da paz
:

PAZ 245

de Deus (ou com Deus), e quais os da paz dos paz que não resulta das emprêsas ou traficân-
homens (ou reinante entre os homens). O rea- cias humanas, mas que se recebe na fé pelo Es-
lismo bíblico não separa a paz interior (espi- pírito Santo (Jo 20.19,22). A paz de Jesus
ritual) e a exterior: sendo esta o sinal da pri- existe para aquele que ouve dos lábios do Mes-
meira e aquele anúncio e condição da segunda tre o "vai-te em paz" (Mc 5.34; Lc 7.50;
(p.ex. SI 122.6-7). Teologicamente a paz é dom 8.48; etc).
de Deus (Nm 6.26), sinal da sua bênção (SI Esta centro da mensagem que os
29.11) ligada quase sempre à
; —>
graça que
levou Deus a estabelecer sua aliança (Is 54.10;
apóstolos
é a paz,
proclamar, não mais como
deverão
um ideal, mas como uma realidade posta e
Ez 34.25; 37.26); é portanto sinónimo então realizada em Jesus e por Jesus de modo que o
de —> "reconciliação" ; mas também, às vezes, amor entre os homens funda-se no amor que
;

——>
paz é sinónimo de tranquilidade, de des- > Deus lhes tem em Cristo assim a paz entre
;

canso por oposição ao estado de guerra os homens baseia-se na paz que lhes concede
entre os indivíduos e os povos, sendo essa paz Deus em Jesus Cristo.
tarefa confiada à boa vontade e às orações dos
d) A
pregação apostólica consiste em "anun-
homens, pois êles devem "obrar esta paz" con-
forme declaram os sagrados textos (Mt 5.9; ciar o —>
evangelho da paz de (por) Jesus
Cristo que é o nosso comum Senhor". A defini-
Mc 9.51. 2Co 13.11: Pv 17.1; lTm 2.2; Rm
ção é de Pedro (At 10.36) mas a maior parte
12.18, etc).
das epístolas abrem-se ou terminam com a fór-
a) As promessas messiânicas são frequen- mula "que a graça e a paz vos sejam dadas
:

da parte de Deus nosso Pai e de Jesus Cristo


temente acompanhadas do anúncio da paz Mel- :

nosso Senhor!" Fórmula que não é apenas


quisedec, em quem Hb vê um tipo do Cristo,
uma rotina literária, mas a afirmação que desde
é rei de Salém = rei da paz (Gn 14.18; Hb já em Jesus Cristo a paz é concedida por Deus
7.2). Salomão é rei pacífico e reina em Jeru-
a todos os homens para que todos vivam desta
salém (= o lugar da paz) (Is 33.20). O Mes- paz. Reaparece pois aqui a dupla acepção da
sias se chamará "Príncipe da Paz" (Is 9.5) e
palavra paz antes indicada
a sua vinda inaugurará uma era de paz para a
criação universal (Is 2.2-4 =
Mq 4.1-3; Is 1. ° —
Enquanto graça oferecida e dom divino,
11.1-9; 32.15-20), cujos pródromos serão a a paz é o próprio Cristo "êle é a nossa paz"
:

paz de Jerusalém, a reconciliação de Judá e de (Ef 2.14-17). "Justificados mediante a fé, nós
Samaria, e a submissão de todos os povos (Is temos paz com Deus mediante nosso Senhor
49.8-12; 60.17-18; Zc 9.9-10; Mq 5.4). O eco Jesus Cristo" (Rm 5.1). Cristo estabeleceu "a
destas esperanças está ainda presente no Evan- paz pelo sangue da sua cruz" (Cl 1.20). obra A
gelho do nascimento (cânticos de Zacarias: Lc redentora do Cristo é de "
das as coisas" com Deus, de
—> —>
reconciliar "to-
justificar
1.79; dos anjos: 2.14; de Simeão 2.29). :

gratuitamente os pecadores pela mediação da


b) Entretanto o anúncio e a proclamação nova aliança tarefa magnificamente resumida
:

da paz comportam o enunciado das condições, na palavra paz Por Jesus e em Jesus nós
—>
: !

e principalmente da justiça de Deus que sabemos que Deus é "Deus de paz" (Fp 4.7-9;
nós devemos observar não há paz sem justiça
: Cl 3.15; 2Ts 3.16).
(SI 85.9-11; Is 32.17). Eis porque,
72.3-7; 2. ° — Esta paz de Deus,
porém, que se recebe
no fogo da batalha pela suprema defesa de Je- mediante a fé em Jesus Cristo é uma paz ativa,
rusalém, os Profetas denunciam as falsas espe-
que devemos viver (como devemos viver o
ranças alimentadas pelas palavras de paz que
proferem os pseudo-profetas (Jr 6.14; 8.11;
— ]> amor de Deus por nós, amando por nossa
vez os nossos irmãos). A exemplo do amor, a
Ez 13.10; Mq 3.5). O próprio Jesus denun-
ciará a paz ilusória dos homens em face do
paz é "fruto do —>
Espírito" (Gl 5.22). Por-
tanto, a pregação do Evangelho da paz com-
juízo iminente (Lc 17.26-36; ITs 5.3). Eis
porta a exortação a "viver em paz", a "estar
porque, em suma, não há paz para os ímpios
(Is 48.22; 57.21).
em paz", a "procurar a paz com todos" (Rm
12.18; 14.19; 2Co 13.11; 2Tm 2.22; Hb 12.
c) estranha! Pouco fala em paz o
Coisa 14; IPe 3.11; 2Pe 3.14). O zêlo que comu-
Evangelho se a sétima bem-aventurança pro-
: nica o Evangelho da paz (Ef 6.15) não pode
clama os pacificadores "filhos de Deus" (Mt ser um zêlo amargo, sendo "irênica" a sabe-
5.9), consta que Jesus não traz nem promete a doria de cima: "o fruto da justiça semeia-se em
paz segundo o —>
mundo ; antes, declara que
não veio trazer a paz à terra, mas a divisão
paz para os que promovem a paz!" (Tg 3.
14-18).
(Mt 10.34; Lc 12.51). Dissipa assim qualquer O ensino escriturístico permite definir a ati-
equívoco quanto a sua função messiânica a paz
que éle dá, é a sua paz, esta paz cujo autor
: tude cristã em face da —>
guerra e da paz
internacionais ? Atendendo-nos ao exposto, cons-
e mediador é êle mesmo (Jo 14.27; 16.33); tatamos duas coisas: 1.° —
O evento da paz
:

246 PECADO

universal está relacionado com o evento do do homem, provoca nêle uma enfermidade que
Salvador e com a manifestação da unidade de seca as forças da vida.
sua Igreja. As guerras ficarão até o final dos
2. Muitos são os têrmos que significam pecado
tempos como um dos sinais do mundo caído.
na Bíblia. Embora o VT costume usá-los indi
2.° —
Entretanto, êste mundo é, desde agora, ferentemente (ver Dt 19.15: iniquidade, falta,
-

o mundo ao qual veio Jesus para "reconciliar peçado), não deixa de ser interessante remon-
tôdas as coisas" e revelar sua vitória sôbre o tar ao sentido original das palavras e haurir
pecado e a morte. Se vive nesta esperança, a através delas a essência da concepção bíblica
Igreja e os seus filhos devem logicamente ma- de pecado. O têrmo mais usado provém do ra-
nifestar também neste campo a realidade da re-
dical hebraico, significando extraviar-se, dese-
denção feita e do mundo porvir. Refugiar-se
caminJiar-se, errar a meta. Designa uma ação
numa concepção meramente espiritual da paz sem valor, porque sem resultado (2Rs 18.14:
e resignar-se à guerra é absolutamente ilógico; Ezequias, caindo na conta do extravio que —
como seria ilógico confundir a paz prometida,
como consequência do reino de Cristo, com
foi revoltar-se contra Nínive exclama —
"Errei o caminho" ou "obrei sem discernimento"
a paz que dão, buscam ou desejam os homens
isto é "pequei"). A
ação boa é aquela que dá
levados pelas suas ideologias ou interesses hu-
um resultado positivo a ação pecaminosa, pelo
;

manos. Cabe à Igreja, pelo fato de ela ser a


contrário, fica sem resultado. Muitos são, na
anunciadora do "Evangelho da paz por Cristo,
Bíblia, os pecadores cujas obras são definidas
Senhor de todos" (At 10.36), mostrar: a) que com um extravio, uma extravagância. se- Um
nenhuma guerra pode desmentir sua fé, nem gundo têrmo de uso diário deriva de um radical
romper o "laço da paz" entre seus filhos, a indicando a idéia de torcido, curvado a ação :

despeito de nacionalidades ou raças (pois, em pecadora opõe-se à ação direita, reta. Rebelar-sc
Cristo, não há mais grego, nem judeu... Cl
aparece também, com frequência, associado ra-
3.11) b) que nenhuma paz é desejável se não
;
dicalmente à idéia de pecado, tanto no sentido
fôr condicionada pelo reconhecimento e aceita- profano como no religioso (ver lRs 12.19: "Is-
ção da justiça de Deus. Só a justiça parirá a rael se mantém rebelado contra a casa de Davi
paz" (Is 32.17). Nem adianta gritar hipocrita- até ao dia de hoje"). Os pecadores, alhures,
mente: Paz! —
quando não há paz (Ez 13.10). são chamados os —>
maus, os ímpios, os per-
versos, o que implica num juízo: os maus são
PECADO os que têm sido declarados culpados perante o
tribunal, por oposição aos justos, declarados
VT inocentes.

1 . O Israelitanão faz distinção entre uma 3. O pecado aparece, pois, como algo que se
ação e o seu autor a ação em todo caso é a
:
afastou do normal, da ordem divina, como algo
expressão de quem a faz e, portanto, um juízo que se opõe à vida. Ora, a Bíblia nunca consi-
sôbre sua pessoa. Para compreender a noção dera o homem como isolado, precisamente por-
do pecado no VT, é preciso ir à fonte da ação. que ela o apanha lá onde êle está de fato, isto é,
isto é, ao homem que age. É boa a ação nor- na vida a vida existe somente onde o homem
:

mal, feita pelo ser são e normal, ou, na expres- aparece inter-relacionando com outros homens,
são bíblica, pelo homem íntegro, todo inteiro na comunidade. Base essencial da noção de
(Gn 6.9: Noé era justo e íntegro). A esta obra
normal e boa, expressão do homem normal e
—> aliança. O pecado é essencialmente aquilo
que prejudica a comunidade, a aliança, amea-
equilibrado, opõe-se a obra má, feita pelo ser çando sua vida. Noutras palavras, pecando, fere-
dividido, sem força e sem verdadeira saúde, o se necessariamente a outrem, quer a Deus, quer
pecado. ao homem. Deus e Israel estando de fato unidos
Entretanto, a visão que Israel tinha do mundo na aliança. A
exemplo da justiça, a injustiça ou
caracteriza-se pelo otimismo. A
felicidade era pecado tem o aspecto de uma relação. O pecado
hóspede desta nossa terra humana, morada de viola uma relação e um dever que foram aceitos.
luz e vida. Deus criador era também Deus Daí a expressão frequente de "pecar contra"
conservador. Qualquer tentativa contra a vida alguém supõe ela que existem obrigações vio-
:

do mundo criado por Deus, e contra a livre ex- ladas. Como garantia da vida e da ordem, Deus
pansão das forças vitais, é coisa má. Define-se pôs normas ordenadoras da vida de Israel.
assim o pecado com relação a Deus, garantia Quem as violar, entra em rebelião contra Deus
da vida e do bem. Porém, a vida e a morte, (ver 2Sm 12.13; "Pequei contra Iavé". SI
como o bem e o mal, não são considerados co- 51.6). Anoção do pecado estende-se, portanto,
mo contrários, pois, há realmente uma só enti- à vida tôda do indivíduo e da nação à vida :

dade de valor a vida, a luz, o bem. A expe-


: religiosa (pecado é não observar tal rito ou
riência leva a admitir a existência de forças tal instituição, p.ex. o sábado), à vida moral
opostas que chamamos pecado, mal, maldição, (há pecados sexuais, pecados contra os direitos
morte. Quando o pecado se instala no interior do próximo, pecados contra os desválidos, hu-
PECADO 247

mildes, viúvas, órfãos). O fato de a vida do dor desde minha nascença, e também o grande
povo inteiro depender do Deus providente, co- cap. 3 do Génesis. O escopo do relato da queda
munica à noção de pecado no VT uma signifi- é explicar uma realidade de fato todos somos
:

cação infinitamente profunda. pecadores, o mundo decaiu da perfeição origi-


nal. Se, entre o pecado de Adão e o nosso pe-
4. Xão menos que qualquer outro povo vizi- cado, há uma relação de causa e efeito, isso
nho, Israel possuía uma legislação muito porme- não interessa ao VT, que é absolutamente mudo
norizada que regulava a vida da comunidade e a êsse respeito. É preciso esperar até o ano 200
o comportamento dos indivíduos. A
legislação
antes de Cristo para que na Sabedoria de Jesus,
visava manter a coesão do povo de Deus. Seja filho de Siraque, se formule a doutrina do peca-
qual fôr a procedência destas leis —
muitas de-
do original, que receberá de São Paulo o de-
las comuns a todos os povos semíticos o — .

senvolvimento que todos sabem (Sir 25.24:


fato particularmente notável em Israel é que
"Pela mulher é que o pecado se originou, por
tódas elas são atribuídas a Moisés, e mediante
causa dela morremos todos") . Silêncio que não
Moisés, ao próprio Iavé, Mestre de Moisés. In-
se deve interpretar em sentido excessivamente
fringi-las constitui um pecado, pois. é obrar
rstritivo, tôda vez que o ensino paulino da uni-
contra a vida, comportar-se como um demente versarialidade do pecado em Adão podia estar
(ISm 26.21), ir contra Deus, pecar contra presente no relato de Gn 3, sem que os israe-
Iavé. Não há diferença entre pecados religiosos
litas se preocupassem com os problemas que
c outros pecados: todos ofendem a Deus. êle suscita.

5. Todo pecado chama o castigo, pois é impe- 7. A natureza do pecado de Adão é sempre
rativo que a ordem e a vida sejam mantidas, objeto de numerosas discussões. Qual é a rea-
preservadas. Visto ser guardião da vida. Deus lidade profunda tipificada pelo Éden, pela árvore
se encarrega de castigar. Fá-lo. enviando des- de vida, pelas árvores do conhecimento do bem
graças catástrofes cósmicas, militares, doenças
: e do mal? Pois Gn 3 é certamente uma pará-
e morte. Idéia que originou outra tôda des-
:
bola. Seu ensino é que, apanhando o fruto proi-
graça é consequência do pecado. Os dramas que bido, o homem transgrediu um mandado divino
marcaram a História de Israel explicam a im- e cometeu um pecado. Conhecer o bem e o mal
portância cada dia maior que o sentimento do significa dominar o bem e o mal assenhorear-
;

pecado tomou neste povo, com o seu natural se dêles, implica então em ser como Deus
corolário a necessidade de expiação mais e
:

mais vivamente experimentada. É só ler as


(—> conhecer, em hebraico, comporta posse e
domínio). O pecado do homem consistiu, pois,
perguntas angustiosas dos Salmos de lamenta- em pretender igualar-se a Deus, único privilé-
ção (3; 5; 6; 7; 13; 22; etc.) ou o debate gio que lhe faltava. Nesta perspectiva, que pen-
consignado no livro de Jó. Daí o interêsse de sar da vida e da morte? Era o primeiro Adão
Israel pelo sofrimento dos inocentes, daí o imortal por natureza? O pecado trouxe a con-
culto à consideração dos pecados involuntários, sequência de proibir-nos o acesso à árvore da
dos pecados não conhecidos, pelos quais impor- vida, cujos frutos conservavam a força vital.
tava pedir perdão (SI 19.13; Lv 4). Uma vez O homem não era imortal por natureza; mas
por ano, no grande dia das expiações, o Sumo devia retornar à terra da qual fôra tirado po-;

Sacerdote procedia à expiação dos pecados do rém, sua condição mortal estava suspensa todo
povo o bode emissário, caregado dessa iniqui-
:
o tempo em que permaneceu perto da árvore
dades, era expulso para o deserto (Lv 16). da vida.
6. Qual é, no VT, a origem do pecado? Em- O problema da origem do pecado tem por co-
bora proclame a realidade do pecado na vida rolário o da causa primeira do pecado. O VT
do homem, o VT
conhece homens que se dizem não dá solução uniforme. Em ISm 18.10, um
livres de qualquer pecado (SI 18.24; Jó 33.9) ser divino aparece como causa da loucura ho-
e cujas declarações permitiriam supor que o micida de Saul; em lRs 22.21, um espírito
homem não é pecador por natureza. Outros, divino impele os reis de Israel e de Juda à»
entretanto, insistem sobre a universalidade do catástrofe. Os males de Jó são atribuídos a
pecado (Gn 8.21; Jó 14.4; SI 14.3; 130.3; Satã (Jó 1.6), o pecado de Adão e Eva é
143.2). Como conciliar dois ensinos tão contra- atribuído à serpente. Temos aqui os intentos
ditórios? Israel não tinha, na expressão de hoje, bíblicosde explicar o mistério da origem do
uma ontologia do pecado ; não se importava com mal. Xo judaísmo, caracterizado pela prepo-
as origens remotas do pecado, senão com a rea- tência da Lei, o pecado se define como a vio-
lidade circundante, afirmando, portanto que o lação de determinado mandamento. Legalismo
pecado grassava pelo mundo inteiro, embora sem dos contemporâneos de Jesus Até mesmo a
!

elucidar se o homem era ou não por natureza inclinação ao mal mencionada em Gn 8.21 será
pecador. Xeste sentido deve ser entendido o explicada pelos rabinos em têrmos dêsse lega-
SI 51.5: "em pecado me concebeu minha mãe", lismo estéril.
quer dizer como todos os demais, eu sou peca-
: G. PIDOUX
;

248 PECADO

NT as emboscadas do diabo. Em ICo 5.9-11 e


6.9-10, Paulo lembra que nem os impudicos, nem
1. O NT pressupõe em todas as partes que o os ladrões, nem os caluniadores, nem os bê-
pecado descansa, em última análise, sobre um bados, nem os idólatras poderão herdar o reino
desconhecimento da vontade divina. Mas, nem
de Deus (ver também Ef 5.5; IPe 4.15). As
por isso considera a obediência cega aos man-
Pastorais indicam ainda outros pecados de que
damentos de Deus como um ideal de piedade.
o cristão há de fugir, como a inveja, o espírito
O coração do homem deve purificar-se (Mt de discórdia, os maus pensamentos (lTm 6.4-5).
5.8) de tal modo que deteste o mal: só se afas-
a avareza, o orgulho, a dureza de coração, a
tará do mal se o destestar. Inversamente, o bem
cobiça sensual (2Tm 3.1-7), pecados mais re-
deve ser feito por amor a Deus e ao próximo. preensíveis tratando-se de bispos, de "anciãos"
A Epístola aos Hebreus não hesita em falar ou de "anciãs" (Tt 1.7-12; 2.2-5).
de faculdades (lit. órgãos) da alma que, dila-
Únicamente o autêntico amor cristão nos pre-
tadas pela prática, permitem discernir não so-
servará dêstes pecados. Conforme ICo 13, o
mente o bem. mas também o mal (5.14). Eis
amor ignora o fanatismo, a falta de tino, o
porque o Evangelho nos aconselha contra o orgulho, o egoísmo a ira, a vingança (sentido
legalismo. isto é, contra a frieza de coração
da citação de Zacarias 8.17 em ICo 13.5), bem
no cumprimento dos mandamentos. Por amor
como o hábito perverso de se regozijar do mal
e por misericórdia é que devemos socorrer o
(Schadenf rende) feito a outrem. Esta virtude
infeliz, perdoar o ofensor, e. se fôr preciso, dar
restauradora, esta caridade constitui a origina-
a vida pelos irmãos.
lidade da doutrina neo-testamentária sobre vir-
Portanto, Jesus denuncia a hipocrisia como
tudes e vícios, cujo catálogo, aliás pode encon-
um vício muito perigoso. Pois ela cumpre obras
trar-se quase idêntico nos filósofos gregos da
pretensamente boas para ficar "desobrigado"
época, por exemplo, nos estóicos.
perante Deus ou para ganhar méritos. À hipo-
crisia costuma juntar-se à vaidade, outro pe- 3. Outro ponto muito original merece ser su-
cado que espreita os piedosos e os incita a blinhado no ensino do NT : a relação entre o
aparentar e cobiçar os aplausos por suas obras pecado e a consciência mais ou menos formada
(Mt 23.6). A ideologia evangélica é absolu- do crente. Já o próprio Jesus, na afirmação de
tamente hostil à concepção farisaica do pecado um texto conservado pelo manuscrito de Teo-
os fariseus, incapazes de compreender que o que doro de Beza e dado em nota por várias ver-
sai do coração mau é que o contamina, acre- sões modernas (depois de Lc 6.5), dizia a um
ditam ser um pecado máximo trabalhar no sá- homem que trabalhava no sábado: "Se sabes o
bado, mesmo quando seja para socorrer o ne- que estás a fazer (=se compreendeste que o
cessitado ou comer sem lavar as mãos (Mc sábado foi criado para o homem e não o homem
7.15 par). para o sábado), bem-aventurado és tu. Porém,
Nesta linha de idéia convém lembrar, como se ignoras o que estás a fazer (=se na tua
particularmente significativa, a confissão do pu- consciência tu te sentes ligado pela letra sabá
blicano (Lc 18.13). Depois de ouvir a jactan- tica), maldito és tu como transgressor da Lei".
ciosa enumeração dos méritos feita pelo fariseu, A mesma idéia aparece nos famosos perícopes
alguém talvez esperava a enumeração dos pe- paulinos sôbre os "fortes" e os "frascos". Há
cados da bôca do publicano. Mas este simples- de fato frascos na fé que têm escrúpulo de comer
mente confessa seu estado de pecado e. de fato. carne, quer temendo se trate de carne sacrifi-
esta é a única coisa que importa perante Deus. cada aos ídolos, quer obedecendo a princípios
Não obstante é certo que o quarto Evangelho de vegetarianismo. Outros tinham escrúpulo de
e as Epístolas joaninas identificam usualmente
ausência de pecado com cumprimento dos man-
beber —> vinho. Ora, no parecer de Paulo,
se um "fraco" procede contra sua consciência,
damentos. Mas depois de os mandamentos te- comete pecado (ICo 8.7-12). Portanto, os "for-
rem sido reduzidos ao mandamento supremo do tes" cuidarão de não escandalizar "os fracos",
amor (Jo 15.12; ljo 3.18-19; 4.7-8: 5.1-2). e os fracos de não julgar os fortes. Estas con-
o legalismo farisaico fica desde já superado. siderações levam Paulo a dar uma definição do
pecado, quiçá, de todas, a mais evangélica "o :

2. Esta subordinação de todos os preceitos pecado é tudo o que não provém da fé" (Rm
morais ao —> amor, não impede o NT de
livrar-se de uma série de pecados particulares.
14.13-23). Mencionemos ainda o papel da cons-
ciência religiosa na epístola aos Hebreus aliás,
;

Os autores bíblicos sabiam que, na realidade, o não insistiremos aqui sôbre êstes pontos de dou-
crente nem sempre vive nas alturas de seu ideal,
mas necessitará ainda de um código de moral,
trina que interessam o problema do
dão (Hb 9.9,14).
—> per-

uma barreira que o salve da decadência. Assim


Paulo, embora resumindo os mandamentos na 4. Outro aspecto especialmente interessante do
lei do amor (Rm 13.9-1), formula vários ca- ensino de Paulo diz respeito às origens do pe-
tálogos de vícios para nos resguardar contra cado. Os textos capitais encontram-se na epís-
:

PERDÃO 249

tola aos Romanos (por um lado, Rm 5, e por do corpo desta morte poderá participar da "gló-
outro, Rm1.18-2.11). O capítulo 5 lembra ria", isto é,da integridade (Rm 7.24-25). En-
que a rebelião de Adão causou a queda da hu- tretanto, João aparentemente opina que sim
manidade. Definamos claramente que não é ques- todo aquêle que vive nêle (=em Cristo) não
tão duma culpabilidade hereditária. Cada um peca (3.5). "Aquêle que peca procede do dia-
peca por conta própria mas hereditária é a
; bo" (3.8), mas aquêle que é nascido de Deus
corrupção do ser humano inteiro e, portanto, a não vive em pecado (5.18). Contudo, a mesma
degradação de nossa natureza doravante devo- Epístola trata de mentiroso aquêle que se pre-
tada à morte. tende ser sem pecado (1.9-10); embora certos
Rm1.18-2.11 é mais detalhado. Comporta comentaristas interpretem o texto no sentido
uma breve dissertação sobre a História moral de pecado passado, antes da conversão, é mais
da humanidade pagã. Seu pecado inicial consis- exato pensar com Beda, o Venerável, que os
tiu na recusa de dar glória a Deus (1.18-19), cap. 3 e 5 pintam o retrato do cristão ideal, en-
na preferência do culto de animais e ídolos. A quanto o cap. 1 pinta a realidade empírica. O
primeira consequência desta apostasia foi de sentido então seria "Na medida que perma-
:

ordem intelectual o espírito dos homens obs-


: necermos em Cristo, não mais pecamos".
cureceu-se (1.22-23), aceitando depravações de
ordem moral (1.24-25), como natural conse- 6. Consideremos agora o laço que existe entre
quência da cegueira intelectual. Concepção pro- o pecado e a —>
morte (Rm 5.12-13; ICo
15.26). O pensamento atual vê com razão na
gressiva da queda pois ignorância e deprava-
:

ção não tinham atingido idênticas proporções


morte uma lei da natureza o ;não a con- NT
tradiz, mas afirma que a natureza de "nosso
em todos os homens quando o Evangelho apa-
receu.
mundo" não é mais fiel ao plano primitivo de
Deus, que não incluía a morte dos sêres vivos.
Não obstante, a queda foi universal. "Todos
Aliás convém ampliar o debate em que medida
carecem da glória" perante Deus (Rm 3.23), :

os sofrimentos da humanidade são consequên-


"Não há justo, nem sequer um" (3.10). Note-
mos ainda que a concepção do pecado original cia do pecado? O Evangelho proíbe acreditar no
como u'a mácula, ajuda a explicar porque não "karma", ou seja, crer que êste ou aquêle even-
to infeliz (destruição da torre de Siloé. ma-
é apenas o nosso espírito o responsável em nós
tanças ordenadas por Pilatos, Lc 13.1-5; ce-
pelos atos de pecado.
diferentes natureza A gueira de nascença Jo 9.1-3) seja a conse-
humana (aquilo que hoje gostamos de chamar
de "o subconsciente") foi atingida. "Há nos quência ou o índice de pecados excepcionalmen-
te graves. Há, porém, uma relação geral entre
nossos membros uma lei" que se insurge contra
a —> lei de Deus (Rm 7.21-23; 6.13-14):
compenetremo-nos bem deste fato para entender a
o pecado e a desgraça por ter-se entregado a
:

humanidade a Satanás, tem poder o ]> diabo —


ambivalência em Paulo do têrmo "carne".
Carne, por um lado, designa o mesmo princípio
—> de atormentá-la (Lc 13.16, etc). O fato de
que, no relato de Mc 2.1-12, a cura do doente

do pecado, isto é, a revolta contra Deus (Com- vai seguida do perdão, é revelador. Por esta

parar a "sabedoria carnal", 2Co 1.12); por razão a vitória de Cristo sóbre as potência*
outra parte, a natureza humana enquanto conta- sobre as ^potências adversas, traz a esperança
minada e transformda em cidadela do pecado, de que o poder do Maligno será destruído em
adversário de Deus e do género humano (Pe- suas manifestações todas.
cado as vêzes personificado: Rm
5.21; 6.6,12,
7. Finalmente, qual é o significado do "pe-
14,16,17, etc). Nãoesqueça que tôda a cria-
se
ção aspira ver-se livre da corrupção (Rm 8.1Q-
cado contra o —>Espirito Santo" (Mc 3.29
par) ? Permite o contexto opinar que se trata
23). pois a natureza humana é inseparável da
aqui da blasfémia contra Deus na boca de quem
natureza em conjunto.
supostamente O conhece. Sem dúvida o "pecado
Para esta rebelião da carne, a primeira Epís-
para a morte" (ljo 5.16-17) designa também
tola de João inventou uma expressão doravante
a blasfémia, possivelmente na sua mais atroz
clássica "concupiscência da carne, concupis-
:

forma de apostasia e idolatria, por cujo motivo


cência dos olhos e soberba da vida" (ljo 2.16).
o Apocalipse nos precave contra a tentação de
O melhor comentário desta tese encontra-se em adorar "a Besta".
F. Nietzsche. La volonté de puissance, com esta
diferença, porém, que Nietzsche exalta o que
/. HERIXG
o NTcondena. A mesma Epístola nos deixa ou-
tra fórmula admirável "O mundo passa, com
: PERDÃO
suas concupiscências aquêle, porém, que faz a
;

vontade de Deus permanece eternamente" 1 . Definições do perdão. O ato de perdoar


(2.17). é expresso em ambos os Testamentos mediante
uma longa série de elocuções que possibilitam
5. Mas, é possível permanecer o cristão sem uma definição clara. Em
primeiro lugar, a ex-
pecado? Paulo declara que não. Só libertado pressão comum de "remitir", "desistir", como se
250 PERDÃO

remite uma
dívida ou se desiste dum direito (SI impossíveis ao homem entregue a si mesmo.
32.1; Mt
9.2; Lc 7.48); e, logo, "não impu- O homem é um devedor insolvente (Mt 18.
tar" (Nm 12.11; SI 32.2; Rm
4.8), "cobrir", 23-35). O pecador está na incapacidade de rea-
tapar de maneira que fique invisível (SI 85.3; bilitar-se perante cumprir a lei. Xão
Deus e de
Rm 4.7), "olvidar", esquecer tal coisa cuja lem- pode salvar-se a si mesmo (Mc 10.26-27 par).
brança não mais se guarda (Ez 33.16), "apa- Do lado humano, o perdão aparece impossível,
gar", "purificar", como se lava uma mácula (Is b) benevolência a despeito da incapacidade hu-
:

6.7; 43.25; SI 51.4). Também merecem men- mana, êste perdão é anunciado e proclamado
ção locuções como "lançar para trás" (Is 38. (Mc 2.5 par; Lc 7.47-49; Lc 1.77) boa nova :

17), "pisar aos pés", "lançar nas profundezas do espontâneo dom de Deus ao homem pecador.
do mar" (Mq 7.19). Às vezes, o próprio verbo Isso é o que significa a parábola do Filho pró-
"perdoar" aparece no seu significado absoluto digo (Lc 15.11-32). Em
virtude meramente da
(Mc 4.12; Mt 6.15; 12.32). Seguido de com- compaixão paterna, tem êle novamente acesso
plemento, perdoar diz respeito essencialmente à casa do pai e à vida.
ao pecado ou aos pecados (SI 32.1; 51.4; Mc Além de proclamar êste perdão, os Evange-
2.5; Lc 17.4), à transgressão, à iniquidade (SI lhos o relacionam estreitamente com aquêle que
32.1-2; Rm4.7), às ofensas (Mt 6.14) e blas-
fémias (Mc 3.28).
traz, a
sus
—>Jesus Cristo que dá o perdão. Je-
aparece como quem tem o poder de per-
O perdão aparece pois como o ato de Deus doar os pecados, poder semelhante ao poder
que põe fim à situação infeliz criada pelo pe- de Deus (Mc 2.5, 7,10, etc). Sua morte, aliás
cado do homem, situação ultrajante para Deus figura como o ato redentor que torna possível a
e opressiva para o homem. É o ato que resta- remissão dos pecados (Mc 10.45; Mt 26.28
belece o homem na sua autêntica relação com
Deus, tirando o elemento perturbador desta
par. —> Crus) .

Desta maneira, tudo que diz respeito ao per-


relação, qual seja o pecado, a transgressão do
dão converge em Jesus Cristo. Mediante Jesus
homem.
Cristo o perdão vem a ser para nós um ato
Deve-se notar porém que, em todas estas
vivo. de capital importância para o estabeleci-
perspectivas bíblicas, o ato de perdoar não con-
siste em negar pura e simplesmente a ofensa do
mento da nova —>
aliança (Hb 9.15,22)
êle temos a certeza de que todo pecado será
Por .

homem e proceder como se ela não existisse.


perdoado aos homens. tTnicamente o pecado
Mas deliberadamente faz cessar uma situação
contra o Espírito Santo foge do perdão tanto
de fato perfeitamente reconhecida. Deus, o au-
neste mundo como no mundo porvir. Quem blas-
tor do perdão, procede com pleno conhecimento
femar contra o Espírito Santo não terá salva-
de causa e total soberania. Misericordiosa e
ção (Mt 12.31).
pacientemente, deixa de executar uma sentença
merecida e concede prorrogação.
4. O perdão na comunidade cristã. Para a
2. Condições do perdão. O VT descreve certo Igreja, o perdão é inseparável de Jesus Cristo.
número de atitudes humanas que possibilitam a Ela prega o perdão por causa de Jesus Cristo,
remissão dos pecados. Os profetas declaram a ela perdoa em nome de Cristo (At 13.38; 10.43:
inutilidade dos sacrifícios e ritos exteriores (Mq Lc 24.47; Cl 1.14; Ef 1.7; Jo 20.23; ljo
6.6-7; Jr 6.20). Importa reconhecer e con- 2.12; Tg 5.15). Esta graça do perdão encon-
fessar a falta (Jr 14.20) sofrer por causa de
;
tra os seus sinais máximos nos sacramentos do
tal estado de coisas, conhecer o peso do pecado,
experimentar a dor de ter ofendido a Deus, a

Mc
> batismo e da
1.4; Mt 26.28).
—A>
santa Ceia (At 2.38;
Igreja, fiel aos ensinos
contrição do coração (SI 51.19; Is 57.15; SI de Cristo considera como uma exigência e uma
6). A conversão, a volta atrás, a mudança de decorrência lógica que, quem recebeu o perdão
caminho, a busca de Deus (Jr 3.14; Ez 18. de Deus, saiba perdoar seus irmãos (Mt 6.
30-32; 33.11,14-16, etc), estas são as condições 12-14; 18.21,35; Mc 1.25; Lc 6.37; 7.47-49:
capitais para que se exerça o perdão. Ef 4.32; Cl 3.13). Como conceber que quem
João, o Batista, desenvolverá êste tema na sua vive do perdão de Deus negue o perdão a seu
pregação do —> arrependimento, necessário
para a remissão dos pecados (Mc 1.4 par). A
próximo ?
Assim, contràriamente ao judaísmo, o perdão,
mesma necessidade do arrependimento consta na para a Igreja do Cristo, não somente se estende
pregação messiânica de Jesus onde aparece
sobre as coisas passadas. O perdão é o gesto
—>
:

paralela com a vinda do reino de Deus


vivo de Deus. sempre em ato, e sempre esten-
(Mc 1.15 par).
dido para o porvir dom escatológico, diz res-
;

3. Operdão em Jesus Cristo. O XT coloca peito à vinda do Espírito e acompanha-nos na


o perdão numa perspectiva dupla: a) gratui- espera do reino de Deus (At 2.38).
dade :o perdão é imerecido. Xa realidade as
condições estipuladas já pelo VT são exigências H. MEHL-KOECHLIN.
PERMANECER 251

PERMANECER vive nos crentes e êles em Cristo (Gl 2.20;


etc). Declara João, por sua vez, que assim como
1. No VT e NT, "permanecer", aplicado a Cristo encarnado está em Deus (14.20; 15.10),
Deus, significa a duração ininterrupta de sua e Deus em Cristo (14.10), da mesma forma os
pessoa e ação. Têrmos como "reino", "eterni- crentes permanecem em Cristo e Cristo nêles
dade", reforçam este conceito permanecer, po-
;
(6.56; 15.4-17; ljo 3.24), bem como os cren-
rém, salienta melhor o contraste entre Deus e tes habitam em Deus e Deus nos crentes (ljo
o mundo divino que perduram, e a criatura e as 4.12-16). O crente que cumpre a vontade de
coisas criadas eme passam, privadas de dura- Deus, permanece eternamente (ljo .17), mas o
ção e de estabilidade (SI 102.26-28; comparar incrédulo permanece no pecado (Jo 9.41) e na
com Hb 1.10-12). Iavé é o "Deus vivo que morte (ljo 3.14).
permanece para sempre, cujo reino não será des- Em suma, embora vivam num mundo que
truído e cujo domínio não terá fim" (Dn 6.26) passa e não tenham aqui cidade permanente (Hb
enquanto os impérios da terra passam (Dn 7. 13.14), os crentes, absolutamente falando, per-
1-12) e rui a fortuna do homem (Jó 15.29). manecem, isto é, vivem, a partir do dia de sua
Como Deus, permanece também a Palavra de fé. a vida de Deus e do Espírito que não terá

Deus, mas tôda criatura seca-se como a erva fim.


(Is 40.6-8). Os planos de Deus permanecem
3. Esta situação teológica coloca a vida cristã
os projetos humanos cambaleiam (Pv
firmes,
19.21). Precisamente nesta perspectiva, a espe-
em moldes e formas próprias. Pela —>
crente é tirado do plano das cousas efémeras
fé o
rança escatológica baseia-se na certeza de que
(que é o plano do mundo) e elevado ao plano
Deus e seu reino subsistirão, mesmo que desa-
das coisas duradouras, divinas, cristãs e espi-
pareça a primeira criação (Is 66.22 a compa-
rituais. O verbo permanecer expressa pois muito
rar com 2Pe 3.13; Hb 12.27).
bem o imperativo fundamental da existência dos
No VT
aparece já a idéia de que o justo, por crentes. Esta começou no dia feliz em que, pela
ser justo, escapará da efemeridade do mundo fé, êles conheceram em Jesus, o seu Cristo e
e permanecerá para sempre (SI 112.3,9; com- Senhor incumbe-lhes doravante cuidar de não
parar 2Co 9.9). Esta idéia receberá do NT sua
;

decair, de persistir na decisão, de perseverar no


plena ressonância.
comportamento adotado no dia de sua fé e en-
trada na vida espiritual.
2. Avinda de Jesus ao mundo não muda o
Eis porque o NT, escrito de primeira inten-
caráter do mundo. Enquanto o reino de Deus
são para crentes, contém mais exortações a
não vier em poder e glória, "este mundo é uma
figura que passa" (ICo 7.31). No entanto.
perseverar na fé, do que apelos à fé. Acada
página, com as expressões mais variadas e as
Cristo traz aos crentes a vida divina, tornan-
figuras mais diversas, rememora que a vida
do-os participantes desde já do mundo perma-
cristã é uma condição duradoura, um estado
nente. Para o Salmista a vida sem fim era ape-
no qual se deve perseverar a custo de vigilân-
nas uma esperança para o crente faz-se ela,
;
cia e tenacidade incansáveis. Cristo, nas suas
mediante a vinda de Jesus e a efusão do Espí-
parábolas, compara os discípulos fervorosos a
rito, uma certeza plenamente vivida já agora.
servidores que, esperando a vinda do amo, pas-
Os quatro evangelhos mencionam que sóbre sam a noite vigilando sem impaciência nem des-
Jesus, batizado no Jordão, desceu o Espírito maios (Mc 13.34.37). João lembra que, certa
Santo e, na precisão de João (1.32), nêle per- vez, Jesus declarou aos crentes judeus "Vós
:

maneceu. Antes de ascender ao Pai, Jesus trans- sois verdadeiramente meus discípulos se per-
mite o Espírito a seus discípulos (Jo 20.22; manecerdes na minha palavra" (8.31) noutros
;

7.39). Do conjunto neo-testamentário depreen- têrmos o ato de fé pelo qual reconhecemos em


de-se que o tempo da Igreja ( —> Igreja) é
o tempo da efusão do Espírito Santo nos cren-
:

Jesus o Revelador enviado pelo Pai, deve ser


seguido de um "permanecer-na-palavra-de-Jesus"
tes, ( —> Espírito) nos fiéis é que o Espírito
:

doravante manifestará a sua presença e poder


de uma instalação permanente no seu ensino
que dá alimento e vida. "Se guardardes os meus
(At 2.17s; 10.44s; Rm 8.23; Gl 3.2; Hb 6.4, mandamentos, permanecereis no meu amor" (Jo
etc), criando nêles uma nova vida que mais 15.9-10), "na minha luz" (ljo 2.10). Esta é
nada poderá matar (Jo 11.25s; Rm 8.36-39). a condição necessária para permanecermos na
Afirma-se assim categoricamente que o Espí- comunhão de Cristo e de Deus. Bem compreen-
rito permanece na Igreja e nos fiéis, que a sua deram-no e de mil maneiras repisaram-no os
presença é permanência, e não apenas alguma apóstolos "Permaneça em vós o que ouvistes
:

irrupção ocasional mediante êxtases ou inspi- desde o princípio. Se em vós permanecer o que
rações. desde o princípio ouvistes, também permane-
Na expressão de Paulo, O Espírito habita cereis vós no Filho e no Pai" HJo 2.24). São
realmente no cristão, e os cristãos estão no Paulo, expressando a mesma idéia, compara a
Espírito (Rm 8.9-11), como também Cristo vida cristã ao crescimento ( —> crescer) a :

252 PERSEGUIR

nova criatura nascida por obra do Espírito ra, porém, a rebelião dos homens contra Deus
Santo (ICo 3.1 2.6; Ef 4.13; Cl 1.28) cresce;
;
é denunciada, e seu ódio revelado. Que cada
ou a uma carreira lançada pelo ato de fé (ICo discípulo o tome em conta (Lc 14.26-33), pois
9.24-25; Fp 3.12-13). O Livro de Atos de- o discípulo não está acima do mestre (Mt 10
nomina este "permanecer na fé" perseverança. 24-25).
"Perseveravam na doutrina dos apóstolos e na
comunhão, no partir do pão e nas orações" (At
O instrumento de suplício, a —>cruz, contra
tôda espera dos homens, tornou-se a marca da
2.42). Nestas quatro fidelidades específicas re- misericórdia divina; embora rejeitada ou des-
sume-se tôda a vida cristã se delas se afastar,
: conhecida, esta marca permanece entre nós.
a Igreja deixará de permanecer no seu Se- como Deus permanece. O sofrimento, a cruz é
nhor. (Ver Ph. MENOUD, La vie de 1'Église instrumento de martírio (que quer dizer teste-
^ théologiques 31, Neuchâtel
naissante, Cahiers munho). Bendita pois a cruz, benditas as perse-
et Paris. 1952). guições, aflições e tribulações. Por elas o amor
Ph.-H. MENOUD de Deus se revela, e em breve triunfará na
ressurreição no Juízo.
Quem compreenderá isso? Aquêle a quem
PERSEGUIR muito tem sido perdoado, e que, portanto amará
muito e se apegará ao Cristo e o seguirá. Êste
1. O VT relata que o povo de Deus, objeto
amor lhe merecerá o ódio do mundo ( ^mun-
da bênção e da promessa, sofreu em seu conjun-
do). Pois o mundo o sentirá em si como um
to bem como nos seus membros o ódio violento
corpo estranho, "como um tumor que se mexe.
dos homens e dos povos. Enquanto avança rumo sensível e vivo" o mundo intentará livrar-se
;

à terra prometida, Israel é atacado por muitos dêle seja por assimilação (seduções astutas),
povos invejosos do país de Canaã que lhe é seja,caso tropeçar em resistências irredutíveis,
destinado (Êxodo e Juízes) Davi, o ungido ;
por perseguição. Mas, desde já, o discípulo sa-
de Deus. é ameaçado na sua vida por Saul re- berá seguir o caminho do Mestre com segurança
jeitado de Deus; o profeta Elias deve fugir: (Mt 5.12; At 14.22; IPe 4.13-14).
Amós é expulso do santuário de Betei (Am Nos tempos do NT, a perseguição emana
7) ;Jeremias é aprisionado e condenado como quase exclusivamente dos judeus (At: a justiça
traidor (Jr 38). Os fatos são narrados com de Roma protege Paulo contra êles), mas. em
uma objetividade desapaixonada e com abso- breve, o mundo se formará ao lado dos judeus
luta fé na justiça de Deus. A
dor e a humilha- com todo o poderio do Império romano (Apo-
ção dos profetas (lRs 19.14; Jr 15.15-21) não calipse?).
deixam de confrontar-se com as promessas fiéis Através das pessoaspropriedades dos cris-
e
de Iavé (lRs 19.15-18; Jr 1.8: 1.7-19). Idên- por de-
tãos, a perseguição visa a pessoa viva,
tico paralelismo nos Salmos (35; 79; 130) nem :
mais viva, do Cristo ressuscitado. A
Jesus é
sempre haverá perseguição, Deus obrará justiça que persegue Paulo em Jerusalém e no cami-
(SI 126; Is 40-55). Mas há uma coisa ainda nho de Damasco (At 9.5) a perseguição pro-
;

muito melhor: a perseguição desde já acrisola cura atingir o corpo de Jesus, a Igreja, espe-
a esperança, e o perseguido participa na reali- cialmente através dos apóstolos. A Igreja não
zação dos planos secretos de Deus. O signifi- é visada por si mesma, mas por sua pregação
cado íntimo da perseguição descobre -se no cap do Cristo. Portanto ela não deve inquietar-se de
53 de Isaías que proclama as aflições do suas tribulações, quando elas não são frutos de
— ^> ''servo de Iavé" como fonte de redenção seu próprio pecado (IPe 4.15-16). Sabe que
para muitos pecadores. O pobre "servo" expia seus perseguidores não lutam contra ela. mas
voluntariamente a culpa dos réus seu futuro :
contra o Senhor todo-poderoso orará pois por
:

triunfo, além da recompensa pessoal, lhe trará êles (Mt 5.44; Rm12.14), pronta para os re-
a revelação de ter feito uma obra autorizada de ceber sem temor e sem triunfo na sua comu-
reconciliador a favor de muitos. nhão (At 9.10-17). Não tendo a perseguição
um valor próprio de obra meritória, os discí-
2. No pórtico do NT, Jesus proclama: "Bem- pulos a evitarão no possível (Mt 10.23: At
aventurados os perseguidos por causa da jus-
13.51; 16.37). Simplesmente, no espaço que
tiça, porque deles é o reino dos céus" (Mt 5.10;
intermedeia entre a cruz e a segunda vinda de
A perseguição não figura mais como exceção, Cristo, a perseguição é um elemento necessário
mas como uma das marcas autênticas da entrada da História (lTs 3.3-4), para glória de Deus
ao reino. Donde procede tamanho paradoxo? (Ap 17.14), e edificação da Igreja (2Co 4.16:
Do andamento que seguiu o ministério de Cl 1.24).
Cristo contrariamente às esperanças de todos,
:

eis-lo rejeitado e crucificado. Nem por isso 3. A


perseguição apresenta-se em forma de
deixa de ser o Cristo ressuscitado, fiel e hu-
: tribulações. Os judeus esperavam essas tribula-
milde através de seus sofrimentos inocentes, exa- ções para o final dos tempos, mas eis que os
tamente tal como os profetas anunciaram. Ago- cristãos pretendem que elas já se iniciaram com
PIEDADE 253

a crucifixão de Jesus é chegado pois o final


; amor fiel, Oséias, vitupera Israel cuja piedade
dos tempos Perseguindo Cristo e sua Igreja,
! é esporádica e superficial "A
vossa piedade é
:

os judeus apenas apressam o cumprimento das semelhante à nuvem matinal e ao orvalho que
profecias. As tribulações derradeiras serão de com a madrugada passa" (6.4, e 6: "... pie-
diversas classes (2Co 11.23-28), tendo porém dade quero e não sacrifício") assim Jeremias
;

em comum um implacável poder de morte (2Co lembra para Israel o tempo do seu primeiro
4.10) para golpear o homem na sua existência amor a Deus (2.2). Posteriormente o adjetivo
pessoal (2Co 7.5-6), corpo e alma. Mesmo "hasid" (e seu plural substantivado hasidim)
quando dão lugar à tentação constante (lTs servirá para designar os judeus piedosos que,
3.3; Ap 2.10), as tribulações revelam a per- fiéis a Iavé, se opuseram a qualquer compro-
severança, a consolação e a alegria da fé (Rm misso com a civilização helenística ou gentílica.
5.3-4; lTs 1.6; 2Co 8.2), porque o mundo Dêste é que o Saltério evoca tão frequentemente
chegou ao término de seu poder. a figura: os piedosos (4.3), os fiéis, os bem-

4. Perante as tribulações, o cristão


ainda é hóspede do mundo —
que
não deixa de sen-
— ainados de Deus, os que amam a Deus, cuja
piedade é feita de intensa vida espiritual, de
amor, de oração, bem como de certos atos de
tir a "aflição". Sabe contudo que esta é a tran-
piedade tais como votos, sacrifícios, oblações,
sitória (Ap 21.4; 22.12), mesmo que por agora
faça parte de sua íntima existência de crente.
esmolas e —>
jejuns (2Sm 76.12; 2Cr 32.32;
Ne 13.14). Quando, em virtude de influências
Ressente-a dolorosamente (2Co 7.9-11), sabe
diversas, o grupo dos "Hasidim" se fraccionou
porém que ela é um sinal da derrota do mundo
em partido (essênios) e em partido
rigorista
no próprio coração, uma prova da fôrça vital
político-religioso os mais humildes
(fariseus),
operante na própria alma (Fp 3.10). presente A dêles, desprezados e amiúde perseguidos, aban-
solidão dos discípulos (Jo 16.20-22), efeito de
sua união com o Cristo invisível, é já o início
donaram êste nome e se chamaram os "po- —>
de sua alegria.
bres" entre esses o
; NT
mencionará Zacarias e
Isabel (Lc 1.6), Simeão (2.25), a profetiza
C. BIBER Ana (2.37), Ananias (At 22.12) e prosélitos
como Cornélio e um dos seus soldados (At
PIEDADE 10.2,7).
Se a piedade aparece presente em páginas
incontáveis da Escritura, especialmente nos 2. O NT
multiplica os ensinos de piedade,
Salmos, a mesma palavra só aparece nas ver- quer nos Evangelhos (Mt 6.1-18; Lc 18.1-14,
sões latinas e neolatinas. Pois a realidade tra- etc), quer nas Epístolas (Rm 12; 2Co 8-9;
duzida transborda amplamente esta palavra, ne- Fp 4, etc). Porém, fora do qualificativo apli-
cessitando frequentemente o auxílio de outros cado aos pobres citados e outros fiéis piedo-
substantivo: Fidelidade,
mor, etc.
amor, —> te- —> sos (At 2.5; 8.2), a palavra "piedade" só apa-
rece, nas Epístolas pastorais, em Hebreus e na
segunda de Pedro, ou seja, nos textos tardios
1. No VT, a piedade (Hesed) comporta uma
relação : para quem é unido a nós
é a lealdade
do NT. Reação contra o perigo crescente da in-
telectualização da fé? acautelamento contra os
por laços de parentesco, amizade ou favores.
doutores, inchados de orgulho, que não concor-
Na acepção mais geral, a piedade é o
sua
dam com a doutrina de piedade? (lTm 6.3; ver
respeito e sincero dos deveres inerentes a
fiel
Tt 1.1; Hb 12.28). É permitido crer que sim.
qualquer relação interumana, como entre pai
Daí as instantes admoestações a Timóteo "se- :

e filho, filho e pai (Gn 47.29), entre parentes


gue a piedade... exercita-te na piedade" (lTm
(Rt 2.20), hóspedes (Gn 19.19) ou beneficia-
6.11; 4.7). Aliás, a piedade é muitas vêzes
dos e benfeitores (Jz 1.24). Designa tanto a mencionada juntamente com virtudes morais co-
benevolência do superior do seu inferior como
mo a honestidade (lTm 2.2: "com tôda pie-
a devotação do inferior a seu chefe (2Sm 9.1;
dade e honradez"), a justiça (lTm 6.11 segue :

16.17). Daí a multiplicidade e diversidade das


"a justiça, a piedade, a constância, a mansi-
traduções. Dêste significado geral nós sconser-
dão..."), a santidade (2Pe 3.11); portanto,
vamos apenas algumas idéias na nossa denomi- piedade passa a designar a vida espiritual do
nada "piedade filial" (ver lTm 5.4). cristão (adoração, oração, meditação) parale-
Nasua acepção religiosa, a "hesed" caracte- lamente à sua vida moral. A piedade penetra o
riza a fidelidade benévola de Deus para com seu próprio mistério da f é a revelação de Deus
:

povo, amiúde traduzida por bondade (SI 33.5;


em Jesus Cristo (lTm 3.16; 2Pe 1.3). Ela
136. lss), misericórdia (Ex 20.6), graça ou
benignidade (SI 86.5). Ademais, como na acep-
é a fonte de lucro por excelência (lTm 6.6),
ainda quando nos leve fatalmente a ser perse-
ção profana, aqui também o têrmo hesed designa
a atitude feita de respeito, amor e obediência, guidos (2Tm 3.12).
do fiel perante Deus, atitude que nós costuma- Mas, a exemplo de Jesus que denunciou a hi-
mos chamar de piedade. Assim, o profeta do pocrisia piedosa dos fariseus (Mt 23), as Epís-
254 POBRE

tolas acautelam contra a piedade interesseira Encontramos pois nas Escrituras duas acep-
(lTm 6.5) e superficial (2Tm 3.5). Pedro, ções correlativas da pobreza: a pobreza mate-
quando da cura do paralítico, defende-se de o ter rial e a pobreza espiritual, sendo a segunda
feito andar "pelo seu próprio poder ou pie- consequência da primeira.
dade" (At 3.12) e declara: "Pela fé em o nome
de Jesus, esse mesmo nome devolveu as forças
b) A presença do pobre em Israel foi o re-

homem..." (3.16).
sultado duma evolução histórica.Quando o povo
a êste
tomou posse da Palestina, a terra se repartiu
A
verdadeira piedade é pois sincera, perse- entre todas as famílias. Todos gozaram da
verante e totalmente humilde dela é que está
;
abundância, não houve lugar para pobres (Dt
escrito "a piedade para tudo é proveitosa tem
: :
8.6). No correr dos anos, a situação mudou.
a promessa da vida que agora é e da que há de Após o exílio (587 a.C) especialmente, surge
vir" (lTm 4.8). uma classe de pobres formada por gente espo-
S. AMSLER liada por compatriotas inescrupulosos. O livro
dos Salmos é, por excelência, o livro dêsses
POBRE "pobres de Israel". Por não terem mais nada,
por serem desprezados e caluniados, esperam
1 . O VT
conhece dois termos para designar a vingança de Iavé (SI 58.11-12), justiça esta
o pobre. O
pobre é, antes de mais nada, aquêle que sabem radicada só em Deus (SI 40.18; 109.
que a própria necessidade coloca em posição 31; 69.34). Dêles declara o NT
que "espera-
subordinada e, reduzindo-o a pedir, torna escra- vam a consolação de Israel" (Lc 2.25). Simeão,
vo dos outros (Dt 24.14-15; SI 22.69). Por José, Maria, pertencem ao grupo que só vive da
transposição o pobre é aquêle que se encontra esperança messiânica, os pobres (Lc 1.51-63;
perante Deus em estado de dependência, obe- 2.8-14, 25-38). A
despeito de suas reivindica-
decendo-lhe como o escravo obedece a seu ções, comumente bastante terrestres, os pobres
amo (SI 25.9; 34.2-3), sujeito à sua vonta- foram os mais dispostos a dar acolhida ao Mes-
de (SI 25.15). sias. Comprensível é, portanto, o carinho e sim-
No NT, os pobres são, literalmente, aquêles patia que Jesus lhes dedicará, e a sublime rea-
que de outrem, os mendigos (Mt
dependem "Bem-aventurados vós
bilitação que lhes trará :

19.21; 26.11; Mc 12.42-43; Lc 14.13-21; 16. que sois porque vosso é o reino de
pobres,
20-22; Jo 12.5-6; 2Co 6.10; Gl 2.10; Tg 2. Deus" (Lc 6.20). Palavra fundamental digna
2-7), e, por transposição, aquêles que, por causa de ser examinada minuciosamente.
de sua situação, precisam particularmente do
socorro divino, não podendo contar senão com 2. Antes de mais, notemos a famosa divergên-
Deus (Mt 11.5; Lc 4.18; 7.22). O NT usa cia entre Mateus e Lucas. Enquanto Lucas es-
alguns têrmos que poderíamos traduzir por creve "Bem-aventurados vós que sois po-
:

bres...", Mateus explica: "Bem-aventurados os


"pobre", e que expressam literalmente as idéias
pobres de espirito, porque dêles é o reino dos
de "mansidão (Mt 5.5), de humildade" (Lc
céus" (Mt 5.3).
1.52).
Muitas são as interpretações que se têm dado
a) Oprimido, caluniado, escarnecido, despre- com respeito à adjunção de Mateus. (Uma de-
zado, "sem capacidades políticas, nem habili- las até passou na versão revista e atualizada
dades comerciais, o pobre está desarmado e im- do Brasil os "humildes de espírito", = evi-
:

potente em face de seus adversários" (Causse). dentemente anti-literal) Certos intérpretes con-
.

"Não possui qualquer recurso neste mundo para sideram o texto de Lucas como autêntico e pri-
se apoiar e descansar. Totalmente desnudo, real mitivo Mateus acrescentou, conforme êles, a
;

e conscientemente privado de tudo, sem posses cláusula "de espírito" para aclarar melhor o
mentais nem recursos materiais, esta nudez físi- significado da expressão aramaica usada por
êste salientava o caráter espiritual da
ca e mental é que o torna pobre" (Ellul). A Jesus :

pobreza, que se torna privilégio e significa então


indigência encaminha o pobre a Deus, estabe-
a disponibilidade ao Evangelho, a base de re-
lecendo-se assim uma estreita relação entre a
núncia interior. A esta pobreza são feitas as
pobreza material e a fé "Simultâneamente ex-
:

promessas messiânicas. Calvino nota que o texto


terior e interior, a pobreza cria uma situação
de Mateus expressa mais claramente a intenção
tal que os necessitados se encontram reduzidos de Jesus, pois a só pobreza material de por si
a esperar tudo só de Deus; e suas disposições pode ser acompanhada de ingente orgulho. As
interiores se tornam tão humildes e confiadas palavras "de espírito" definem a pobreza evan-
que na realidade esperam tudo de Deus" (Sch- gélica como uma pobreza plenamente aceita e
niewind). "... provados e domados pelas afli- assumida: "São Mateus ajuntando êste epíteto
ções, êles se sujeitam inteiramente a Deus, e, restringe a bem-aventurança a somente aquêles
humilhados no próprio interior, vão ter com êle que, disciplinados pela cruz, aprenderam a ser
para encontrar auxílio" (Calvino). humildes" (Calvino).
: ; :
:

POMBA 255

Pobreza de espírito não é, porém, estupidez c) Tg 2.2-7: a Igreja teria de ser o lugar
como alguns opinaram, menos ainda penúria de por excelência onde qualquer distinção social
Espírito Santo, nem um desprendimento exclu- fique abolida. A Igreja primitiva conhecia já ri-
sivamente "espiritual" para com a riqueza cos escandalosos, sendo preciso que Tiago sa-
( > Dinheiro), mas um vácuo, um vazio inte-
— liente o privilégio dos pobres.
rior, uma espera que anseia por ver-se atendida
por Deus. Os "pobres em espírito" são, pois, os d) "... nem sabes que tu és infeliz, mise-
que, plenamente cônscios da própria indigência,
rável, pobre, cego e nu..." (Ap 3.17). O cren-
esperam tudo de Deus. "Aqui Jesus descreve te nunca se considere como espiritualmente rico
situações humanas que provocam, nos que as e colmado, mas seja sempre "um mendigo da
vivem, uma espera e uma esperança, juntamente graça".
com u'a maneira de ser, uma atitude ao mesmo 4. O grandioso afresco do juízo último (Mt
tempo interior e prática, consequência de tudo 25.31-46) demonstra que o pobre não apresenta
que lhes falta" (H. ROUX). para a Igreja, abstratamente, a "questão social",
porém lhe traz uma questão bem mais séria
Ambas as redações, de Lucas e de Mateus,
pergunta se ela saberá reconhecer no indigente
expressam simplesmente o duplo caráter da po-
o próprio Cristo pois Cristo, misteriosamente,
;
breza que há de ser "interior e prática". Esta
apresenta-se na pessoa do pobre, para convidar
dupla acepção servirá para precaver-nos contra
falsas interpretações a pobreza material sozi-
:
a Igreja a praticar o
ximo.
amor ao—> pró- —>
nha de nada serve se não nos orienta a Deus
mas também de nada serve tal espírito de po- A. PÉRY
breza, a pobreza espiritual, se não se acom- POMBA
panha de uma verdadeira pobreza material.
Para o NT, os ricos estão sempre numa situa- AHistória Sagrada menciona repetidas ve-
ção cheia de perigos (Mt 19.21-23). zes a pomba ou rola. Apresenta-no-la como "en-
ganada, sem entendimento" (Os 7.11), mas
A pobreza evangélica não é, portanto, privi- anota seus "olhos límpidos" (Ct 1.15), sua
légio de uma do que uma
classe social, é mais "brancura" (SI 68.13-14), e reconhece nela
virtude ou um merecimento "ela deve ser o : o símbolo da pureza e da simplicidade (Mt
acordo da vida espiritual e da condição mate- 10.16) e a imagem da ternura (Ct 2.14; 5.2;
rial" (Ellul). 6.8).

Única entre as aves, serve para vítima em


3. Continuemos examinando outros textos do
muitos sacrifícios. Os relatos iavistas, escritos
NT, relativos à pobreza
no séc. VIII antes de nos mostram a
Cristo,
Abraão sacrificando uma rôla e uma pombi-
a) "...os surdos ouvem, os mortos são res-
nha (Gn 15.9), conforme um costume legado
suscitados, e aos pobres está sendo anunciado o
pela antiguidade mais remota. Já Noé, para
Evangelho" (Mt 11.5). A
pregação do Evan-
marcar o fim do dilúvio sacrificara aves puras.
gelho aos pobres significa que o reino de Deus
Os legistas exílicos e tomaram a
pós-exílicos
está próximo. Ao mesmo título que a cura dos iniciativa de prescrever pombas para os sacri-
enfermos, a libertação dos pobres é um signo fícios, em particular por ocasião de certos ritos
anunciador do —>
Reino ver nesta mesma de purificação (Lv 4.4-5; 14.29-30; 15.14),
perspectiva: At 2.45, etc. (Mas a coleta de levados, quiçá, pela pobreza reinante a facilitar
Paulo a favor dos pobres de Jerusalém

— Gl assim aos indigentes a oblação de um holocausto
2.10; Rm
15.26, etc. há de interpretar-se (Lv 5.7; 12.8; 14.21-22).
preferentemente no contexto da unidade da —> Nenhum traço específico da pomba, nem se-
Igreja).
quer seu uso para sacrifícios, nos dá a explica-
ção do texto enigmático de Mc (1.9-11 par):
b) "... pobres sempre tereis entre vós, mas sobre Jesus batizado "o Espírito desceu como
a mim nem sempre me tereis" (Mt 26.11) Tex- pomba". Ainda quando, não se cogite aqui de
to amiúde deformado, para fazer de Jesus um qualquer identificação entre o Espírito e a pom-
inimigo do progresso social. Jesus, na realidade, ba, há evidentemente algo mais do que mera
não está a condenar qualquer esforço leal con- comparação. Tal modo de aparição é revelador
tra o pauperismo, mas salienta simplesmente qualifica o —>
Espírito como o poder de
que, êle presente, o importante é aproximarem- Deus obrando no Cristo batizado uma era nova ;

se todos dêle. Depois sobrará tempo para a se inicia abrem-se os céus em cima de Jesus.
;

Igreja ocupar-se dos pobres: para o qual Je- Assim como Jesus aparece no Apocalipse qual
sus deixa preceitos positivos, embora sublinhan- Leão de Judá ou qual Cordeiro imolado, assim o
do que os pobres nunca deixarão de ser uma Espírito aparece aqui como uma pomba. Será
questão que Deus faz à sua Igreja. êste um sinal da iminente aliança nova? Possi-
256 PORTA-POVO

velmente. Pois quando Deus selou sua aliança Evangelho (At 14.27; ICo 16.9; 2Co 2.12;
com Xoé e com Abraão, imolaram-se pombas Cl 4.3). Inversamente também, "porta fecha-
e rolas. Emtodo caso, consta que, no seio do da" indica a execução irrevogável do juízo de
judaísmo, a pomba
sugeria a presença ativa do Deus quer seja questão da porta da arca que o
:

Espírito, em particular para expressar a obra próprio Deus fecha sôbre o justo Noé antes do
criadora ou reconciliadora de Deus. Nesta pers- dilúvio (Gn 7.16) ou da porta da sala de
pectiva não carece de interesse relacionar tam- bodas depois da chegada do esposo (Mt 25.10).
bém com o texto em foco, o segundo versículo Assim torna-se bem significativo o uso na
do Génesis "O Espírito de Deus pairava sobre
:
bôca de Jesus do simbolismo da porta: a) em
as águas, como uma pomba estendendo as asas Mt 7.13, a "porta estreita" é esta, única, pela
por sóbre sua ninhada. qual acedemos à vida caminhando pelo atalho
M. CARREZ e da divina graça; b) em Jo 10.1-10, o próprio
Jesus se declara "a porta do aprisco" (=reino
PORTA dos céus), já que só êle dá acesso à graça me-
diante o cumprimento da justiça. Jesus é "o
Além do sentido próprio, porta significa, figu- santo, o verdadeiro, aquêle que tem a chave de
radamente a) uma casa, cidade ou lugar de ha- Davi, que abre e ninguém fechará, e que fecha
bitação (metonímia: a parte pelo tudo. Ex e ninguém abrirá" (Ap 3.7).
20.10; Zc 8.16: "fazei justiça nas vossas por-
Entretanto, por um paradoxo que contém todo
tas") ;
b) um ponto vulnerável: possuir a porta
o mistério da pregação evangélica. Jesus é tam-
dos inimigos =
derrotá-los (Gn 24.60) c) a :

bém aquêle que "está à porta e bate" como um


iminência dum evento, ou dum perigo "o pe-
cado está à porta" de teu coração (Gn 4.7;
:

mendigo ou um pedinte, esperando que alguém


ouça sua voz e lhe abra (Ap 3.20).
Mc 13.29: "o Filho do Homem está à porta";
Tg 5.9: "o Juiz está às portas") d) o lugar; H. ROUX
onde se criam as boas e as más reputações, pois
nas portas da cidade tratam-se os negócios, POVO
circulam as novas, exerce-se a justiça nas as-
sembléias de anciões (Pv 31.23; Jó 31.21;
VT
SI 69.13; 127.5; Rt 3.11; Am
5.10-15) e) o ; O VT conhece várias palavras, aparentadas
lugar donde o servo do rei (Dn 2.49) ou de Iavé com os conceitos de reunião, comunidade ou to-
(SI 8.11) dirige-lhes seu requerimento ou seu talidade, para traduzir os nossos têrmos de povo
louvor. ou nação. Com muita frequência, estas palavras
Teologicamente a porta ou as portas evocam usam-se paralelamente uma por outra (Gn 27.
a idéia duma potência perigosa e temível, quer 29; SI 2.1; Pv 14.28; Is 34.1; Jr 51.58; Hb
se trate das "portas da morte" (Ez 38.10, SI 2.13), designando o conjunto dos povos ou das
107.16-18), ou da morada dos mortos (Mt nações da terra (Dt 3.8; SI 9.9; 44.3,15; 57.
10; Is 41.1; 43.9; 49.1; 60.2; Mq 1.2), e, ou-
16.18) que só Deus pode abater; que se trate
tras vêzes, os povos e nações por oposição ao
da "porta dos céus" que Jacó descobre em
povo de Deus (Gn 49.10; Dt 14.2; SI 7.8;
Betei e que lhe aparece um lugar "temível" (Gn
33.10; 47.4; 67.5). Mas quando Deus fala e
28.17) pois dêle pode a todo momento sair o
diz "meu povo", trata-se evidentemente do povo
Deus santo. Por regra geral, a abertura das
eleito (Is 51.4; Sf 2.9).
portas do céu, ou das portas de Iavé, das portas
do lugar santo, simboliza a livre saída dos No que acabamos de expor, está a distinção
dons que Deus derrama sôbre suas criaturas básica que estabelece o VT
entre um povo se-

ou seu povo (SI 78.23; Ml 3.10), bem como a gregado e todos os demais povos da terra.

livre descida e o glorioso retorno ao reino do


Rei de glória (SI 24.7-10). Da mesma maneira 1. O povo que ouviu a promessa. Israel é o
abrirem-se as portas, ou transpormos as por- povo de Iavé (Jz 5.11; ISm 2.24) pela mesma
tas de Jerusalém, cidade santa, ou do Templo razão que Moab é o povo de Kamoch (Nm
(como na visão de Ezequiel), simboliza o livre 21.29), porque lhe pertence em propriedade (Dt
acesso à divina graça para o povo santo (Is 14.2; 26.18); é herança de Deus (Dt 4.20).
60.10; Ez 43.6-11), pois do limiar dêste templo O Faraó chama Israel "o povo dos filhos de
sai o rio das águas da vida (Ez 47.1). Estevão Israel (Ex 1.9 —>
Israel), em lembrança do
moribundo (At 7.55-56) e João em Patmos (Ap ancestre Jacó-Israel. Um texto do Deuteronô-
4.1) são reconfortados pela visão dos céus mio define perfeitamente Israel "Tu és um
:

abertos. É sem dúvida por analogia com êste povo santo para Iavé teu Deus; Iavé teu Deus
significado geral de graça oferecida sem limites te escolheu para que fosses o povo de sua pro-
que a expressão de "porta aberta" é muitas priedade entre todos os povos que há sôbre a
vezes usada pela Escritura (NT) para desig- terra. Iavé não se afeiçoou por vós porque fôs-
nar as possibilidades oferecidas à pregação do seis mais numerosos que todos os demais povos,
; ;

FOVO 257

mas vos excolheu embora éreis o menor de to- gãos (2Rs 17.24-27), ciando assim às famí-
dos os povos, porque vos amava e quis guardar lias de Judá a possibilidade de realizar a nova
a promessa que fizera a vossos pais..." (7. unidade a seu benefício. Agora que a indepen-
6-8). Na realidade, a —> eleição divina reve- dência nacional não passa de mera recordação,
la-se mediante uma promessa, feita primeira- (os Persas dominam absolutamente todo o
mente a Abraão, de tirar dêle uma grande na- Oriente Próximo, Iavé é quem reina, dando à
ção (Gn 12.2; 18.18) a promessa é logo feita unidade do povo um caráter essencialmente re-
eficaz mediante uma
15) :
—>
;

aliança (Gn 17.1-


a aliança entretanto não subsistirá senão
ligioso. Para compreender a diferença que exis-
te entre Israel pré-exílico e Israel post-exílico,
pela fidelidade de ambos os aliados. Deus e Is- basta considerar a evolução sofrida pela expres-
rael. O amor de Deus por seu povo mostra-se são "o povo do país", tão frequente na Bíblia.
:

na História, nos acontecimentos que realizam Antes do destêrro, "o povo do país" designava
concretamente a unidade do povo saída mila-
: todos os moradores sem exceção em. torno do
grosa do Egito, peregrinação no deserto, con- rei (Rs 16.15) e dos sacerdotes (Jr 34.19),
quista dum país, constituição dum Estado. O conjunto que até hoje constitui o "povo". De-
maior evento, o mais importante para a coesão pois do exílio, a expressão designa a povoação
do povo escolhido, é certamente a permanência Palestiniana que não observa rigorosamente as
de quarenta anos no deserto, sob a irradiação prescrições da Lei mosaica (Ed 4.4; 10.2,11 Ne ;

da personalidade de Moisés. A obra de Moisés 10.31). A


discriminação antes de ordem político-
foi imensa e duradoura reagrupou no deserto
: histórica, passou a ser de ordem religiosa. O
as tribos outrora escravas, dando-lhes uma le- povo tornou-se a comunidade dos que perten-
gislação englobando os diversos aspectos da cem a Iavé em virtude da fidelidade à Lei. A
vida, congregando-as na adoração de Iavé, e marcha trágica do povo escolhido através da
assim formando um povo coeso que só precisava História provocou em torno de Iavé um mag-
agora de um território para se radicar. Os nífico reagrupamento de todas as energias e
tempos nómades duraram pouco mais duma ge- esperanças.
ração, deixando na História de Israel a lem- Neste conjunto pré e post-exílico, apenas os
brança mais imperecível. Veio a seguir a pe- homens são tidos em conta, conforme o uso
netração em Canaã, perniciosa para a unidade geral dos semitas de negligenciar as mulheres
de Israel, pois ressuscitou então o particularis- daí que o judaísmo é antes de mais nada uma
mo tribal até o extremo que a palavra "povo" religião masculina.
aparece para designar uma das tribos (Zabu-
lom Jz 5.18). Os Juízes, chefes locais afano-
2. As —> nações. O povo eleito considerou
com interêsse seus vizinhos e os povos do mun-
sos por impedir a fusão das tribos ou duma
do de então. Prova disto é o índice genealógico
tribo determinada com os antigos povos de Ca- que lemos no cap. 10 do Génesis. O próprio Iavé
naã, não perdoaram esforços para remediar a
não se desinteressava da sorte das nações, e até
anarquia em marcha; seu êxito foi muito par- confiou, a favor delas, mensagens proféticas a
cial, conforme a menção assaz resignada do vários videntes. Elias recebe mandados que vi-
livro dos Juízes "Não havia, então, rei em
: sam estender a influência de Iavé além das fron-
Israel" (19.1). Os reis, de fato, particular- teiras de Israel (lRs 19.15); Eliseu (2Rs 5),
mente Davi e Salomão, reataram a unidade de Amós cujo livro começa com uma série de
Israel dentro do país recebido de Iavé. Todos oráculos contra as nações, Isaías com suas
os elementos duma unidade duradoura pare- advertências a Damasco, Egito e Assíria (17.
ciam finalmente juntos, mas a unidade laborio- 1-11; 20.1-6; 37.33-35), e Jeremias com seu
samente adquirida durou pouco, como se Iavé título assaz eloquente de "profeta para as na-
temesse que o hábito de viver na pátria terres- ções" (Jr 1.5), testemunham o interêsse do
tre prejudique a sua busca, único e verdadeiro Senhor pelas nações. Jeremias, particularmente,
princípio da unidade. Terminado o reino de Sa- mesmo ficando dentro da linha profética tradi-
lomão, o povo escolhido cinde-se em dois reinos, cional, singularizou-se por uma verdadeira pre-
conhecidos doravante como o povo de Judá e o gação dirigida às nações (Jr 12.14-17), pre-
povo de Israel (2Sm 19.41) mesmo assim, a
; ludiando assim aos tempos escatológicos onde
consciência da unidade não desaparece nêles muitas nações terão com Iavé e integrarão o
sabem-se irmãos e gostam de chamar-se Israel povo santo (Zc 2.11), enquanto o mais humilde
(Is 5.7). As sucessivas deportações não desar- membro de Israel eleito se tornará uma pode-
raigarão o sentimento da unidade, nem bem re- rosa nação (Is 60.22).
gressados do exílio os deportados reformarão Enquanto não acontecer isso, o povo eleito
o povo de Deus em torno do Templo reedificado e as nações estão confiados espiritualmente a
e da Lei mosaica. O diferente trato dos terri- seus respectivos —>
anjos custódios cujos
tórios ocupados foi causa de maior cruzamento conflitos se refletem na História terrestre (Dn
racial e religioso nas tribos do norte, pois o 10.13.20; 12.1).
antigo reino de Samaria foi colonizado por pa- H. MICHAUD
258 PREGAR

NT a Igreja amalgamada de judeus e de pagãos


No NT, as expressões "povo" ou "povo de não forma uma terceira raça, como também o
Deus" se aplicam à —>
Igreja que reúne os varão e a mulher constituídos um em Cristo
(Gl 3.28) não formam um terceiro sexo. Po-
Judeus e os pagãos na unidade dos que crêem
em Cristo. Pois, a condição necessária para ser rém as diferenças naturais que subsistem enquan-
agregado ao povo de Deus na nova Alian- —> to
fé.
dure o mundo presente são vencidas pela
Vitória que encontra sua expressão mais ní-
ça não é mais a vocação outrora dirigida a
Abraão e. mediante êle, à sua descendência, tida na celebração da santa Ceia que congrega

nem a — ;> circuncisão, rito de integração a na mesma mesa do Senhor —


fonte da sua uni-
Israel, mas a —> fé em Jesus Cristo. Messias dade —
todos os crentes de todas as raças e
de Israel e Senhor do mundo. Por definição o condições.
povo de Deus em Cristo comprende homens de
tóda raça e de tôda língua por ser êle uma 3. Por sua existência e composição, a Igreja
;

realidade essencialmente religiosa, o povo de lembra que a redenção cristã é uma obra cole-
tiva e comunitária. Deus quer a salvação e a
Deus em Cristo é universal.
unidade do género humano, não apenas de al-
Segundo Lc 1.17, a missão de João, o Batista,
guns homens, quer judeus somente ou somente
foi "preparar para o Senhor um povo habilita-
pagãos. Certamente Deus chama a si crentes in-
do" no entender do evangelista, êste povo ul-
;
dividuais, pois as vocações divinas são sempre
trapassa os limites de Israel, pois o Batista de-
individuais e pessoais mas a vida nova dos
;

clara "que das pedras que aqui estão, Deus pode


fiéis só se desenvolve mediante sua incorpora-
suscitar filhos a Abraão" (Lc 3.8). Não é
ção ao povo de Deus.
outra coisa que faz a pregação apostólica. A
conversão do centurião Cornélio prova que PH. H. MENOUD
"Deus escolhe para si um povo entre os pa-
gãos" (At 15.14). Em Corinto, o Senhor ani- PREGAR
ma Paulo" (At 18.10), povo feito de judeus e 1. Os verbos pregar, anunciar, proclamar, tra-
de pagãos (At 18.4-8). duzem imperfeitamente os verbos do original.
Nas suas Epístolas, o apóstolo Paulo lembra Especialmente pregar perdeu para nós seu pri-
constantemente a unidade do povo de Deus, for- meiro sentido. Pois para nós evoca êle um dis-
mado de Judeus e de gentios unidos pela mes- curso mais ou menos pessoal, mais ou menos
ma fé no mesmo Senhor (Ef 2.11-22). Que os teórico e doutrinal, dirigido a um grupo fecha-
gentios são o povo de Deus ao mesmo título do de gente convencida lá dentro do recinto do
que os judeus crentes, é verdade anunciada pe- templo quando pregar deveria evocar exata-
;

los profetas (Rm 9.25; 2Co 6.16; Tt 2.14). mente o contrário, pois o original se refere à
A Igreja ademais confessa ser Jesus Cristo o proclamação feita pelo arauto ou pregoeiro pú-
Messias anunciado na velha aliança ela é, por- ;
blico (pregoeiro =
pregar), na praça ou nas
tanto, quem vive em continuidade teológica com esquinas da cidade, para todos, com estampido
o passado, enquanto os judeus incrédulos acham- de trombeta, "em o nome do rei". Também
se momentâneamente rejeitados pelo plano sal- anunciar é um têrmo muito inexpressivo. A
vador até sua volta à fé. O
título "povo de palavra original, a que se relaciona com uma
Deus", com todos os direitos que inclui, pas- mensagem vinda de Deus, deriva do mesmo
sou a pertencer à Igreja. Ela é o Israel de radical que formou as palavras "evangelho" e
Deus (Gl 6.16), o verdadeiro Israel (Rm 9.6), "anjo". Significa uma proclamação solene e pú-
a verdadeira descendência de Abraão (Gl 3.29; blica, seria portanto melhor traduzida por "pro-
Rm 9.7-8), a verdadeira circuncisão (Fp 3.3), clamar" ICo 11.26: "Proclamais a morte do
:

o verdadeiro templo de Deus (ICo 3.16). Senhor, até que êle venha"; ljo 1.3: "O que
Aprimeira Epístola de Pedro (2.9-10) de- temos visto... proclamamos"; Lc 9.60: "Tu
clara igualmente que o título de povo de Deus porém vai, e proclama o reino de Deus". Estas
transferiu-se para a Igreja com todos os pri- reflexões despretenciosas não carecem de impor-
vilégios inerentes. tância salientam o caráter claramente público
:

Para resumir, o título de povo de Deus que e universal do evangelho não uma doutrina
;

a Igreja assume doravante salienta bem os três entre tantas; mais uma verdade; mais uma so-
carateres essenciais da Igreja: lução entre outras à escolha uma opinião que ;

por razões pessoais possa reter a preferência.


1. A
Igreja é a continuação da antiga alian- Não O Evangelho
! é a proclamação do rei, di-
ça que encontra a sua perfeição na fé dos fiéis rigida a todos, a cuja autoridade ninguém es-
e não na rejeição de Jesus pelos judeus. capa. Aquêle que prega o Evangelho, dêle é
devedor para todos.
2. A Igreja constitui um cume e um valor
meramente religioso onde estão ultrapassadas 2. Pregador significa arauto, pregoeiro; pre-
as diferenças étnicas e sociais. Evidentemente gar significa cumprir com o ofício de pregoeiro
; ;

PREGAR 259

público. Do pregoeiro
público exige-se, antes — 2Co 2.16 — e que nunca se devem osten-
de tudo, uma fidelidade
absoluta não lhe per- ; tar), mas relativa a verdade da pregação, a sua
tence emitir ideias da sua lavra, mas deve trans- necessidade, possam trazer o mundo à presença
mitir a mensagem que lhe é comissionada não ; do mesmo Deus ouvintes, para que saibam que
;

se lhe pede sua opinião sobre os assuntos em não comunica conceitos pessoais, discutí-
se lhes
referência, pois ele não passa de ser o porta-voz veis tanto como os pregadores mesmos, mas a
de quem o comissiona. Êle, portanto, está ao verdade da que depende a salvação ou a perdi-
abrigo da autoridade que representa, e a sua ção (2Co 2.14-16). Cristo veio ao mundo, não
palavra é revestida duma autoridade plena. O porque o mundo estava psicológica e religiosa-
pregoeiro nada é em si mesmo, apenas é men- mente preparado para o receber, mas porque o
sageiro em virtude do seu mandante e da pala- mundo precisava de ser salvo. Da mesma ma-
vra recebida deste. Assim os Doze não vão em neira, a pregação vem ao homem, não como ex-
nome próprio proclamar o Evangelho: procla- pressão do que êste já pensa ou vive por si
mam-no porque são enviados "Ide, pregai e : mesmo, mas como a interpelação que o tira de
dizei :
"É próximo o Reino dos céus" (Mt si mesmo para submetê-lo a Deus e ao divi-

10.7). São mandatários, simples porta-vozes no desígnio. Portanto: "prega a palavra, apre-
sua missão baseia-se não sobre a força ou a senta-te (não: insta) na hora e a desoras" (2Tm
sinceridade de suas convicções, mas sobre aque- 4.2) não te deixes iludir por disposições que
:

le que os envia dentro do conjunto histórico


:
tu julgas favoráveis, nem paralizar por con-
da vinda do Cristo, dentro da obra de Deus, dições psicológicas que estimas desfavoráveis
figura a sua missão, e precisamente por esta embora não devamos ignorar os tempos e as
razão êles estão ao abrigo da autoridade do disposições —
pois fazem parte da realidade do
Cristo que os envia. Absolutamente nesta pers- homem a quem deve ser proclamado Cristo —
pectiva é que Paulo dirá: "Como pregarão se nos convém muito mais saber que só Deus cria
não forem enviados?" (Rm 10.15), convenci- e conhece a ocasião (Col 4.3-6).
díssimo de não ser a pregação uma iniciativa do
crente, mas um elemento do próprio desígnio 3. O objeto, eternamente idêntico, da pregação
de Deus, do movimento pelo qual Deus desce aparece diversamente designado e mais ou me-
aos homens e os salva Deus é o autor da obra
:
nos explicitamente descrito. Jesus, e logo os
redentora e simultaneamente da pregação que seus discípulos, pregoam o
evangelho do —>
proclama esta redenção (2Co 5.18). O prega- —> reino (Mt 4.23;
9.35; Lc 8.1; At 20.25;
dor não se prega a si próprio Êle não é um ; 28.31), quer dizer a vinda de Deus para a sal-
prestidigitador da religião, uma espécie de vir- vação, e o término do reino do Maligno. pre- A
tuoso que obre mediante algum magnetismo ou gação corre paralela com os milagres, —>
contágio, ou subjugue mediante sua persona- curas de enfermidades e, particularmente ex-
lidade ; mas êle é o servo daqueles aos quais pulsões de espíritos maus pregação e milagres
;

fala em nome de Jesus (2Co 4.5). Paulo che- são dois aspectos necessàriamente conjuntos do
ga mesmo a afirmar que pouco importa em que mesmo acontecimento o reino vem, os laços
:

condições, puras ou não, Cristo é pregado, uma que atam o homem começam a romper-se. A
vez que Cristo de qualquer modo está sendo —> palavra de Jesus não é apenas um ensino,
proclamado (Fp 1.15-18). Não implica isso mas proclamação de um fato, da intervenção
em dizer que a vida do pregador seja indi- decisiva de Deus na História (Mt 10.7-8).
ferente. Absolutamente, não! "Pois se viver Quando João Batista, Jesus ou os discípulos
êle conforme a carne, corre o perigo de pregam o —>
arrependimento (Mt 3.1; At
ver-se rejeitado depois de ter pregado aos 10.37; Mt 4.17; Mc 6.12), não obedecem à
demais, além de que a vida moral do prega- exigência do moralista, mas, explícita ou im-
dor tem sempre a virtude de confirmar ou de plicitamente, proclamam a salvação, obra de
contradizer a mensagem pregoada (ICo 9.27; Deus é a hora de arrepender-se, porque o reino
:

lTm 3.1-7; 2Tm 4.5). Sendo a pregação ini- e a salvação são iminentes e já secretamente
ciativa de Deus, ordenada à obra de Deus, e presentes. O reino de Deus não é uma realidade
manifestação do próprio Deus em Jesus Cristo, diferente de Jesus Cristo em Jesus é que o
;

ela é a palavra do próprio Deus e receber-se-á reino irrompe em é que o devemos


e, Jesus,
como tal "Quem vos recebe a mim me recebe,
: reconhecer (Mt 11.5-6; Lc 7.22-23; 11.20).
e quem recebe, recebe aquele que me enviou" Razão pela qual é possível dizer simplesmente:
(Mt 10.40) "quem vos ouvir a mim me ouve,
; pregar o Cristo (At 8.5 ;Fp 1.15), pois a
e quem me recebe, recebe aquêle que me enviou" pregação proclama que Jesus é o Cristo, o Fi-
e quem me rejeitar rejeita aquêle que me en- lho de Deus, o cumprimento e realização das
viou" (Lc 10.16). Nestes textos Jesus visa a promessas de Deus (At 9.20). Razão pela qual
pregadores e a ouvintes pregadores, para que,:
também, no Evangelho segundo São João, o
livres de qualquer dúvida relativa não a suas próprio —>
Jesus aparece como o único obje-
próprias qualidades (que aqui de pouco servem to da pregação. A morte e a ressurreição de
26Ò PROFECIA

Jesus são os fatos centrais do evento salvífico sar que Jesus é o Senhor e crer que Deus o
e os objetos essenciais da pregação (ICo 1. ressuscitou dos mortos (Rm 10.9).
17-25; 15.12-20; Rm
4.25). Esquematizando,
poderíamos dizer que a pregação da morte de CHR. SENFT
Jesus, mostrando o final normal do homem que
rejeitou a Deus e que Deus abandona, procla-
PROFECIA
ma o juízo e a morte do homem: pois, morrendo VT
por mim, o Filho revela minha própria morte
como a parede que o julgamento divino erige 1 . Todo o VT testemunha acerca de uma
contra meu desejo de viver eternamente; mas, a espera, a espera da vinda de Deus. Uma espe-
pregação da ressurreição proclama que Jesus, rança imensa, baseada no que o Deus de Israel
cuia morte, arrasta-nos a morrer, é também fêz e disse no passado, anima suas páginas.
aquele em quem começa para nós a vida con- Todo o VT está voltado para o porvir, e parece
cedida por Deus, a vida do mundo futuro (Co viver exclusivamente em função de uma pro-
5.14-15: Gl .20; Rm
6.5). "Anunciavam em Je-
messa cujo cumprimento ainda desconhece; en-
sus a ressurreição dentre os mortos" (At 4.2). xerga além de si mesmo, visa um alvo que o
isto é. os apóstolos além de pregar que Jesus
ultrapassa plenamente cônscio que, abandonado
ressuscitou, proclamavam que, em Jesus, ontem a si mesmo, ficaria inacabado. Até poderia afir-
crucificado pelos homens, a vida do século vin- mar-se que o VT inteiro é uma imensa profe-
cia, porquanto anuncia, prefigura e prepara um
douro irrompeu neste mundo a favor dos quais
somos mortos (ICo 15.20). acontecimento vindouro. Só possui significado
verdadeiro em virtude de um ato de Deus o
4. Pregar é anunciar a palavra (Mc 2.2; At qual marcará ao mesmo tempo o acabamento e
4.29-31; Fp 1.14; Hb 13.7). Nenhures na Bí- a coroação da História bíblica. O VT, por-
blia encontra-se a moderna depreciação da pa- tanto, é apenas um esboço do que será um dia

lavra oposta aos fatos, ou a suspeita romântica a realidade.


com respeito à palavra oposta ao sentimento ou É
surpreendente constatar, mesmo nos escri-
ao silêncio místico. Prende-se isto à própria no- tos aparentemente menos proféticos, a impor-
ção de —>
Deus e da —>
revelação. Não e
Deus o sentimento, nem o entusiasmo, nem o
tância desta espera do "Dia de Iavé". Sem esta
esperança do —>
Reino de Deus, tanto a His-
irracional (tampouco é a razão) é aquele que
: tória como o culto de Israel carecem de qual-
enfrenta o homem e que lhe fala. o Eu sobe- quer sentido é bem significativo que os livros
:

rano dirigindo-se pessoalmente ao homem. Deus históricos da Bíblia estejam classificados junto
revela-se ao homem pela palavra, o que não com os documentos proféticos, pois a Bíblia
constitui, como o deseja o romantismo do sen- refere-se tanto ao porvir como ao passado do
timento, uma realidade derivada, arrefecida e povo de Deus. Os salmistas atestam de uma
inferior, porém a manifestação da essência, da espera apaixonada do Deus de Israel, sem cujo
realidade mesma é ela que cria e fundamenta advento tornar-se-iam absurdas a fé e a luta
as relações entre as pessoas mediante ela, um imposta pela fé. Um
ciclo regular de festas
—>
;

Eu dá-se e faz-se conhecer a outro, o Eu divino ( festas) recorda aos israelitas os altos
feitos de Iavé a fim de fortificar-lhes a espe-
ao eu do homem. Assim a palavra é inseparável
rança. O Pentateuco mesmo já entrevê, instruí-
da realidade, faz ela parte integrante do evento
da salvação como a morte e a ressurreição do do por Moisés, pelo Êxodo e pelo Sinai, o
tempo quando Israel, livre enfim de tôda ser-
Cristo "Deus estava em Cristo, reconciliando o
vidão, será a nação santa do Deus Santo. Em
:

mundo consigo (...) e pôs em nós (ou estabe- :

breve, o VT, a uma voz, canta e clama sua fé


leceu entre nós) a palavra da reconciliação".
na vinda de seu Deus.
(2Co 5.19). Deus salva mediante Jesus Cristo;
contudo pode-se dizer também, o sentido é exa-
2. Êste aspecto da mensagem profética aparece
tamente o mesmo, que êle salva pela pregação
(ICo 1.21 posto que, por ela a salvação é pro- mais claro nos livros propriamente proféticos
clamada é ela a presença revelada e ativa.
:
do VT. Porém não formulam êles de nenhum
A
pregação é a palavra da fé (Rm 10.8) modo um ensino sistemático sôbre o porvir do
Não se pretende dizer que o pregador exponha povo de Deus. As profecias permanecem em
sua fé pessoal, a fim de convencer por sua sin- todo caso parciais, diríamos quase que ocasio-
ceridade ou fervor, mas simplesmente opor a nais achamo-las dispersas desde o Génesis até
:

mensagem cristã à Lei, que se poderia chamar Malaquias, sendo impossível enumerá-las, com
a palavra das obras (cf. Rm 3.27). A prega- esta agravante que, além de variadíssimas, elas
ção cristã não proclama outra coisa senão a obra às vêzes parecem abertamente contraditórias.
cumprida por Deus em Jesus Cristo, obra funda- Os profetas não tiveram em geral a intenção
mentada pela pregação ou pela fé (ICo 15.14), de fornecer um quadro completo e definitivo dos
declarando que para ser salvo é preciso confes- acontecimentos futuros é mister não confun-
;
:

PROFECIA 231

dí-los com os autores apocalíticos que sonha- contro das evidências da história humana. Anun-
vam escrever a história antecipada dos derra- cia, em tempos felizes, catástrofes impensáveis,
deiros tempos até em seus mais íntimos deta- promete aos desesperados liberados libertações
lhes, perdendo-se frequentemente em elucubra- imprevisíveis em todo tempo, testemunha ela
;

ções fantásticas e duvidosas. Os profetas são a extraordinária fidelidade de Deus para com
antes que tudo pregadores ( —>
Ministérios suas promessas.

\
T
T). 4. A
profecia tem por objeto o próprio Deus,
e nãoum certo número de ensinos sobre os
A profecia não é apenas uma simples predi- acontecimentos do porvir. Não enuncia esta ou
ção, mas uma proclamação das intenções divi- aquela verdade, mas rende testemunho à Ver-
nas acerca do povo escolhido e do mundo é ;
dade. Não fala de julgamento nem de salvação,
uma mensagem pronunciada quer em vista de mas de Deus que se faz presente para julgar
alguém ou em vista de um determinado aconte- ou perdoar. Coloca a Israel diante de Alguém
cimento. A
profecia pressupõe um determinado e não diante de alguma coisa, revela ao povo

auditório, dirige-se a um público definido e escolhido a pessoa que está em frente dele, o
responde a uma situação precisa. Implica um Deus bem próximo, o Deus vivo que caminha
tempo e um lugar bem definidos, sem nada de ao encontro dos "seus" e intervém nos assun-
vago nem de abstraio. É uma pregação dirigida tos do mundo.

a israelitas num momento determinado de sua A


profecia está portanto ao serviço de Deus,
História e, para comprendê-la, é preciso conhe- isto é,do inspirador da profecia. Não está Deus
cer a História. Não é uma mensagem de al- ligado pelos oráculos dos profetas, depende ex-
cance geral, válida em qualquer circunstância, clusivamente de si mesmo, de sua —>
Palavra
mas varia com o destino do povo de Deus sua :
eternamente viva, concreta e pessoal. Não se
diversidade espantava já os contemporâneos de deve colocar as profecias do VT acima do Deus
Isaías o qual lhes recordava que havia um tem- de Israel mesmo os profetas devem receber
;

po para cada coisa, para lavrar e para semear, sempre de novo os oráculos destinados ao povo,
para anunciar a salvação e para predizer o jul- não estando portanto isentos de surpresas (cí
gamento (Is 28.23-29). Jr 28).
Importa pois, bem compenetrar-se do caráier A profecia não depende das fórmulas em
histórico num sentido único, de cada uma das
e, que se expressa, mas de Deus; sob uma forma
profecias do VT. Amós, Isaías, Jeremias, Eze- incessantemente adatada à realidade histórica,
quiel intervém em etapas diferentes da His- ela anuncia o Deus que se aproxima pessoal-
tória santa, plenamente conscientes das circuns- mente dos homens.
tâncias movíveis e multifárias às quais sua pre-
gação deve adaptar-se.
5. O VT está todo tenso para sua realização
Já conhece sem dúvida um certo cumprimento,

3. No entanto, a profecia não está ligada e pois a palavra de Deus nunca permanece sem
efeito. Os acontecimentos o confirmam e a His-
não importa qual acontecimento, mas faz parte
tória o realiza cada dia, mas no entanto eviden-
de uma História: a História do povo de Deus.
Ela pressupõe uma —>
aliança entre Iavé e cia-se que tudo quanto acontece ao povo de
Deus reenvia a um futuro no qual a promessa
Israel, depende do contrato que une Deus e
e
um povo particular, ainda mais ela tem por de Deus receberá plena realização. Encontra-
missão de confirmar a validade dêste pacto e mos no VT uma bem curiosa de pro-
dialética

de recordar suas implicações. fecia e a promessa realiza-se na


cumprimento :

história, porém, esta por sua vez, torna-se pro-


A
profecia transmite a cada geração israe-
fecia cada realização da Palavra de Deus anun-
;

lita a Palavra que Deus outrora deu aos Pa-


cia um nôvo evento mais decisivo ainda para o
triarcas, ela a atualiza, torna-a a pensar em
mundo, cada cumprimento está repleto de uma
função das novas circunstâncias nas quais o povo nova mensagem concernente ao porvir do povo
eleito se encontra. Em certo sentido, ela nada escolhido. Desta maneira, os juízos de Deus que
inova limitando-se a reformar. Com efeito, a caem sobre Israel prefiguram um ulterior juí-
profecia intervém nas horas críticas da Histó- zo o qual constituirá o ponto final do destino
ria sagrada quando decididamente Israel se humano as liberações sucessivas outorgadas a
;

desvia de Iavé e cede às tentações do mun- —> Israel anunciam uma libertação mais total; a
do. A profecia endireita e corrige o povo de realeza davídica prefigura na realidade, além
Deus, ela o recoloca diante da Palavra divina de um soberano, o fiel —>
Servo de Iavé.
fora desta função a profecia careceria de qual- A História, através de suas realizações mes-
quer sentido. Mas, de fato, ela chama o povo mo, revela que ainda não atingiu a finalidade
à fé suplicando-lhe tome sem tardar decisões anunciada pelos profetas. A profecia, de etapa
que comprometam o seu porvir. profecia A em etapa, renova-se e torna-se mais precisa e
não cessa de reagir contra Israel e ir ao en- profunda.
262 PROFECIA

Neste sentido dialético, o VT


não cessa de ções do inspirado Simeão (Lc 2.25-35) e da
cumprir-se, porém também não pára de profe- profetisa Ana (Lc 2.36-38), a profecia não
tizar não pára de anunciar a vinda de Deus
: podia desaparecer a vida, a morte, a ressur-
:

entre nós e, a medida que reflete sôbre a pro- reição de Jesus realizando as profecias antigas
messa de Deus, esta vinda apresenta-se-lhe co- sem todavia esgotá-las, deviam pelo contrário
mo um mistério cada vez maior e mais rico. O consolidar a espera de sua realização completa,
VT atesta pois que o povo da velha aliança e invocar ao mesmo tempo que permitir previ-
"não obteve o que lhe havia sido prometido, sões novas sôbre o cumprimento dos desígnios
porquanto Deus tinha em vista alguma coisa de Deus agora e no derradeiro dia.
melhor, a fim de que não atinja sem nós o
a) Notemos que indevidamente se chamou
alvo" (cf Hb 11.40). —-> Jesus de profeta (Mc 6.15; 8.28 par;
R. M A R TIX-A CHA RD Mt 21.11,46; Lc 7.16; 9.8; 24.19; Jo 4.19;
NT 9.17). É fato que êle não desdenhou de desig-
No NT, "profecia" designa em primeiro lu- nar-se como tal (Mt 13.57 par; Lc 13.33):
gar as declarações dos profetas da antiga alian- porventura não trazia êle a revelação do
ça (Mt 13.14; 2Pe 1.20), tais como estão
—> mistério do —<Reino de Deus? (Mt
contidas nas Escrituras (e não somente nos li- —> mistério do —>Reino de Deus? (Mt
vros propriamente proféticos) e mesmo em ou- 11.25-27; Mc 4.11 par). Não penetrava seu
olhar no futuro? (Mc 13 par; 14.62 par). Efe-
tros escritos não incorporados na Bíblia (cf
tivamente não se limitou a comunicar ocasional-
Jd 14). Aplica-se também a uma atividade pro-
fética inédita, característica da Igreja cristã.
mente uma revelação divina mas seu conheci-
:

mento dos divinos desígnios o conduziu sem ces-


1. A profecia antiga, invocada e citada sem sar num ministério de aspectos diversos (Lc

cessar no NT, sob o ponto de vista de seu 24.19) que absorveu sua existência tòda. Mas
NT
cumprimento em Cristo e na Igreja ( ^> cum-
prir). O próprio Jesus recorre a ela para de-
— não obstante o vê em Jesus mais do que um
profeta nunca declara que Jesus profetisa nem
;

clarar ser êle o Messias (Lc 4.16-21; ver Mt


guarda qualquer menção de profecias feitas
por Jesus, mas na realidade, a palavra de
11.4-6). É a profecia que ilumina os discípulos
Cristo aparece aos cristãos, superior a qualquer
após a crucificação e ressurreição do Mestre
palavra profética da antiga e da nova aliança:
(Lc 24.25-27, 44-47), como na ocasião do Pen-
enquanto a profecia empírica apenas conhece
tecoste (At 2). É ela que serve de base para
demonstrar a messianidade de Jesus junto aos uma parte (ICo 13.9), Jesus conhece o Pai
judeus e outros leitores do VT (Mt 1.22; 2.6; pessoalmente (Mt 11.27; Jo 14.6-11); ainda
mais, Jesus é a palavra própria de Deus (Jo
2.15-18; 2.23, etc Jo 1.45s; At 13.27-29;
A
;

1.14; ver Mt 24.35), Jesus é o Senhor. no-


17.11; Rm 1.2; 16.26; IPe 1.10-12). Note-
mos a interpretação da profecia, não deve ser ção comum de profecia resulta pois inadequada
abandonada ao arbítrio individual produção do :
para designar a Jesus, a menos que se lhe chame
Espírito Santo, não pode ser realmente enten-
de "O Profeta" no sentido absoluto, ao estilo
dida sem o socorro do mesmo Espírito (2Pe 1. do quarto evangelho (Jo 6.14; 7.40), "O Pro-
20-21; ver Lc 24.45; 2Co 3.14-16; 2Pe 3.2,
feta" anunciado por Malaquias (3.1 4.5-6
;

16). A
profecia do VT
não se limita a esclare- Dt 18.15) e que virá no fim dos —> tempos
cer o cristão presente quando se encontra rea- com a missão de preparar Israel para o juízo
final. Jesus a êste nível aparece como o supre-
lizada. Como tudo que ela anuncia não está
ainda realizado, ela contribui para alimentar a mo e perfeito revelador de Deus.
esperança dos crentes, inspirando a nova espera b) Em compensação, trata-se de nôvo de
profética e dando-lhe temas, imagens e fórmu- profetas e de profecias no sentido comum destes
las (Cf Mc 13 par; 2Ts 1 e 2 2Pe 1 19 Ap).
; .
;
têrmos quando o NT expressa-se a respeito da
vida da Igreja primitiva. Com exceção da
2. A profecia nova apresenta-se de fato como profecia das duas testemunhas do Ap 11 que,
a retomada e a continuação da antiga, ilumi- à semelhança da do VT, parece como a reve-
nada porém pelos acontecimentos da salvação lação bíblica dos julgamentos que cairão sôbre
dos quais atesta o NT. Após saudar o Cristo a terra e um apêlo ao arrependimento, a—
que há de vir, pela bôca do sacerdote Zacarias profecia nova está em relação mais ou menos
(profetizando excepcionalmente no mesmo dia estreita com o culto. Ela é uma função interna
do nascimento de seu filho João o Batista Lc : da vida da Igreja. Os recém convertidos que
1.67-70), após ter preparado o caminho do recebem o Espírito Santo profetizam quando
Senhor pelo ministério do Batista, consagrado confessam sua fé e comunicam a seus irmãos a
profeta antes mesmo de nascer (Lc 1.15-17, respeito da revelação que vem de iluminá-los
76-77; 3.17-17 par; Mc 11.32; Mt 14.5; 21. (At 19.6). Neste sentido, a profecia pode ser
26) após ter reconhecido o Messias esperado
; o fato de qualquer crente (At 2.17). Qual quer
na criança de José e de Maria, pelas declara- crente, homem ou mulher (ICo 11.4-5; cf con-
.

PROMESSA 263

tudo 14.34) pode ser chamado a comunicar para povo, na velha aliança, ocupa um lugar central
a comunidade uma revelação que o Senhor lhe no pensamento teológico dos escritores de Is-
deu no curso do culto (cf ICo 14.30). A
profe- rael. Porém, se nos referimos somente ao voca-
cia, entretanto, aparece também e principalmente bulário, não há nada a língua hebráica des-
:

como um dom que Deus outorgou apenas a conhece qualquer palavra que corresponda ao
certos cristãos (At 11.27-28; 15.32; 21.9) pa- termo promessa ou ao verbo prometer. Tal
ra utilidade comum (ICo 12.7-11), em vista da silêncio não nos autoriza contudo a declarar
edificação da greja (ICo 14.5). Esta dádiva que a idéia de uma promessa esteja ausente
está na origem de um —> ministério reconhe- dos livros do VT. Pelo contrário, se bem a
cido e tido em muito alto conceito, o de profeta, palavra não existe, a noção está presente em
que São Paulo coloca sempre imediatamente todas as partes sem recorrer a tal ou qual têr-
após o de apóstolo (ICo 12.28; Ef 4.11: cf mo especial verbos como dizer, falar e outros
2.20). — :

que tanto perderam sua força em nossas lín-


"Aquele que profetiza, (lê-se em ICo 14.3), guas modernas, —
bastavam para dar a com-
fala aos homens para edificá-los, exortá-los, preender que uma palavra pronunciada, espe-
consolá-los". A profecia distingue-se do ensino cialmente por Deus, tinha o valor de uma pro-
(—> Doutrina) por seu caráter de mensagem messa solene fato bem notável nos textos nos
:

direta em relação com a situação do irmão ou quais nossas versões empregam a palavra "pro-
da comunidade à qual se dirige, e por sua refe- messa". texto original usa apenas um verbo
O
rência a uma revelação divina particular (cf como dizer (amar),, ou falar (dabar), e isto
ICo 14.30). Revelação que pode ser também basta. Tal constatação é pletórica de sentido teo-
uma predição concernente o porvir de um mem- lógico :pois sublinha a importância de certas
bro da comunidade (At 21.10-14) ou da comu- expressões que assinalam incessantemente as
nidade inteira (At 11.27-28), um conhecimento páginas bíblicas: Deus falou; assim fala lave:
mais profundo do Evangelho (ICo 14.6; 13.2; palavra de lave, etc.
cf 2.7-17), a resposta a um problema criado
pela fé (ICo 15.50-57) ou uma série de visões
A —> palavra de Deus não tem necessidade
de ser reforçada por fórmulas particulares, por
pertinentes ao fim do mundo e à aparição de juramentos ou compromissos excepcionais quan- ;

um mundo nôvo, como é o caso do Apocalipse do é pronunciada é verdadeira, e Deus mantém


(= da revelação) de São João. O texto de a sua palavra a palavra de Deus tem, para o
;

Ef 3.2-7 é bem típico da linguagem que um homem, o pêso das promessas mais solenes. Mais
apóstolo usa diante da comunidade em benefício
tarde, no TTelenismo e no rabinismo judeu, não
de uma revelação profética. A profecia repre- contentes com o verbo falar para sancionar a
senta ademais um papel decisivo quando se
importância e firmeza da palavra, os israelitas
trata de reconhecer o ministério que o Senhor
inventaram um têrmo mais forte, análogo ao
confia a um irmão (lTm 1.18; 4.14; cf At
nosso "prometer" (os rabinos utilizaram uma
13.1-3; 9.10-19). Intervenções como as des- ter con- =
palavra derivada da raiz batah
critas em ICo 5.3-5 ou At 5.1-11 e 8.20-23, têm
fiança).
igualdade um caráter profético. Estas constata-
tações permitem apreciar o caráter capital da 2. É inútil ressaltar aqui as passagens onde o
profecia na Igreja: por ela é que Cristo reina homem falando ao homem lhe faz uma promes-
sobre a Igreja. sa, frequentemente confirmada por um —> ju-
Como tôda coisa excelente, a profecia acha- ramento (Ne Seria preciso neste caso
5.12).
se ameaçada: pode ser suplantada, como em estudar os verbos "jurar", "fazer um jura-
Corinto, por discursos extáticos e ininteligíveis mento", "fazer um voto", etc. As mesmas pa-
(ICo 14) um profeta pode aventurar-se além
;
lavras são empregadas quando o homem dirige-
do que lhe permite a medida de fé recebida se a Deus e toma um compromisso com êle (Dt
(Rm 12.6). Devem portanto guardar-se os 23.23). O
que interessa aqui é a promessa que
fiéis dos falsos profetas (Mt 7.15; Mc 13.22
Deus faz ao homem quando fala ao homem.
par; ljp 4.1), sem, não obstante, menosprezar
Sem dúvida reciprocidade de promessa,
existe
as profecias :experimentem antes as coisas e como consta em particular no Dt 26.17-18: "Tu
retenham o que é bom (lTs 5. 20-21; cf ICo fizeste prometer a Iavé que êle será teu Deus. .

14.29; ljo 4.1; Ap 16.13, etc). O dom de e Iavé fêz-te prometer que tu serás um povo
profecia invoca pois e exige o dom comple-
que lhe pertencerá".
mentar do discernimento dos espíritos (ICo
Se buscarmos as circunstâncias nas quais a
12.10).
palavra de Deus teve mais especialmente o ca-
/. BURNIER ráter de uma
promessa, gostaríamos de reter
PROMESSA dois casos típicos a promessa feita a Abraão
:

VT e a promessa feita a Davi.

Acostumado com o vocabulário do NT, pen- a) A origem da História de Israel, a pala-


samos que a noção de promessa de Deus a seu vra solene de Deus a Abraão (Gn 13.14-17;
264 FRXDMESSA

17.3-8; 22.15-18), repetida a Isaque (26.3) e b) O VT grego (versão dos Setenta) não
a Jacó (28.13-14), e reproduzida pela., diver- contém os têrmos prometer e promessa. Em
sas tradições das quais se constitui o Livro do compensação ambos têrmos aparecem nos textos
Génesis, marca sem dúvida alguma uma tríplice que datam da época judáica. Quando possuem
promessa de Deus para os antepassados do povo. um significado religioso, referem-se às decla-
Quando, nos demais textos, faz-se alusão a uma rações feitas por Deus aos hc.nens. Debatia-se
ou outra destas promessas, é a Abraão que se entre os rabinos a questão de que condições de-
refere de uma forma explícita ou implícita: a viam preencher os crentes para ser beneficia-
promessa inicial anuncia uma posteridade nu- dos com as promessas divinas.
merosa como as estrelas do céu ou como o pó
da terra (Ne 9.23; lCr 27.23) logo assegura
;
2. A promessa ocupa um lugar de destaque
a dádiva do país de Canaã, "manando leite e no Nt. Pode-se dizer que todo o NT gravita
mel", futura terra de Israel e local da resi- em torno da ideia que as promessas feitas por
dência de Iavé no meio de seu povo (Dt 1.21 ;
Deus outrora aos Patriarcas e ao povo de Is-
6.2; 19.8; 31.20-23; Êx 12.25; 32.11;Nm rael cumprem-se em Jesus Cristo, que "todas
Ne 9.8,15,23) finalmente anuncia uma bênção
; as promessas divinas são "sim" em Jesus Cristo"
de Deus para com seu povo, o qual receberá (2Co 1.20). Já tinham sido realizadas na antiga
a prosperidade e os bens materiais necessários aliança : Abraão, por exemplo, habitou a terra
para sua felicidade e sua paz (Lv 26.3-13; Dt da promessa porém esta era apenas uma mo-
;

11.13-17; 28.11-14; Nm
10.29). rada imperfeita e passageira, onde morou como
estrangeiro, na espera da cidade definitiva cons-
b) Quanto a promessa feita a Davi de ter
sempre uma descendência sobre seu trono, en- truída pelo próprio Deus (Hb 11.8-10,11). So-
contramo-la em 2Sm 7.12,16,28-29, e repetida mente em Jesus Cristo recebem as promessas
por muitas vezes por causa de sua importância divinas seu perfeito cumprimento ( cum- —>
prir) (At 13.23; 13.32-33; Rm 15.8; G13.14).
no destino do povo (2Rs 8.19; lCr 17. 26-27;
2Cr 1.9; 7.18; SI 132.11-12). A realeza de O evangelho, a boa nova que a Igreja deve
Davi foi considerada como a idade de ouro e deixar ouvir ao mundo, consiste precisamente
como a época ideai do passado do povo em em proclamar que as promessas outrora trans-
Canaã a lembrança desta promessa na tradi-
;
mitidas pelos profetas cumprem-se agora na
ção posterior permanecerá viva e será evocada pessoa de Jesus de Nazaré (Rm 1.2-3).
cada vez que se fale do porvir de Israel e do Os profetas predisseram que, nos últimos tem-
rei que há de reinar sobre êle. pos, o Espírito do Senhor derramar-se-ia sobre
Poderíamos
mencionar outros textos onde toda criatura (Jl 2.28-29). Jesus cumpriu esta
as palavras do Eterno têm a equivalência de promessa no dia do Pentecoste (Lc 24.49; At
uma promessa, mas acreditamos que nenhuma 1.4-5; 2.16-21,32-33). O tempo de espera está
outra poderia tão bem como as duas promessas pois completo a vinda de Cristo inaugurou o
:

a Abraão e a Davi representar o papel que elas —> tempo derradeiro, o tempo da realização.
representam. Basta relembrar quanto, nas pre- A consumação de todas as coisas é iminente
ocupações escatológicas e messiânicas do VT, (Hb 10.25,37). É verdade que esta não se efe-
éstes dois elementos ocupam um lugar de des- tuou e os escarnecedores têm ocasião favorável
taque na esperança de Israel : o reino de Deus para taxar de loucura a esperança dos cristãos
(2Pe 3.3-4) eis a razão porque os crentes
será como a dádiva da verdadeira terra prome- ;

tida ao povo (Jr 32.37-3S; Ez 34.24; 37.24- devem ser exortados a perseverar na fé, pois
25). ainda podem recair na incredulidade e exclui-
F. MICHAEL1 rem-se da promessa (Hb 6.11-12; 10.36; 4.
1-2). Deverão tomar-se de coragem: se o Se-
PROMESSA nhor retarda a execução de sua promessa, não
é por fraqueza, mas em virtude de sua paciên-
NT cia,a fim de dar a todos os homens uma opor-
] . a) No grego profano, a palavra promessa tunidade de arrepender-se (2Pe 3.9). dia O
foi um íêrmo jurídico: designava um decreto chegará certamente em que dará aos "seus" o
promulgado pelo Estado ou a apresentação de que lhes prometeu, posto que está comprometido
uma queixa. Na língua corrente, prometer signi- por juramento (Hb 6.13-20). Além disso, Deus
entregou aos crentes umas arras, um penhor tan-
ficava anunciar antecipadamente o que se pre-
tende fazer. Com uma única exceção, trata-se gível do cumprimento de sua promessa, colo-

sempre de declarações feitas pelo homem a um cando sóbre esta promessa o sêlo de seu Espí-
de seus semelhantes ou a um deus, mas nunca de rito: o Espírito Santo constitui as primícias,
um compromisso da divindade para com os as arras e o aval da realização final ( ar- —>
homens. ras. Rm 8.23; 2Co 1.22; 5.5; Ef 1.13-14).
;

PRÓXIMO 265

3. Os autores do NT utilizam diversas ima- o Senhor que as outorga. A promessa divina


gens para descrever o conteúdo da promessa de é pois o fundamento da obediência do cristão
Deus afirmando que os crentes serão elevados
: assim como a base de sua esperança.
à condição de filhos de Deus (Rm 9.8; Gl 4.
28) que, nesta qualidade, receberão algum dia
A. GOY
uma
;

—>
herança (Gl 3.18,29), a qual está
PRÓXIMO
definida como o —>
reino e como a
eterna (Tt 1.2; Tg 1.12; ljo 2.25). Numa
vida —> VT
palavra, as promessas concernem a salvação tra- Os termos hebreus que nossas Bíblias portur-
zida pelo Messias no fim dos tempos. As tais guêsas traduzem por "próximo" designam às
promessas são bem melhores do que aquelas vêzes simplesmente "o outro" (Jr 23.27: "os
que fundamentaram a antiga aliança, tanto mais sonhos que cada um dêles conta a seu próxi-
que coisa nenhuma pode entravar sua execução mo"), mas em geral, o têrmo "próximo" de-
(Hb 8.6). signa um membro do povo de Deus e torna-se
sinónimo de irmão (cf. Lv 19.17-18).
4. Mas quem são os beneficiários da divina O têrmo "irmão"é aplicado primeiramente
promessa? Ela está dirigida a Abraão e à sua no VT para os filhos de um mesmo pai e, por
posteridade (Rm 4.13), ou seja em primeiro extensão, aos membros da mesma tribo, do mes-
lugar ao povo de Israel (Rm 9.4). Na antiga mo povo. Na lei mosaica, o laço não é tanto
aliança, os pagãos eram excluídos da promessa consanguinidade como verdadeira fraternidade na
(Ef 2.12). Eis porque Cristo exerceu seu mi-
nistério primeiramente junto aos membros de
—> aliança. O têrmo "irmão" ou "próximo"
designam a todos os que participam da aliança
sua nação, os circuncisos (Rm 15.8). Alas a de Deus. Esta aliança tem como consequência
nova aliança é nova, entre outras inovações, obrigações morais bem definidas (Êx. 20.16,17;
por não excluir a homem nenhum. verdadeira A Lv 25.14; Dt 15.7-11). Algumas delas são niti-
posteridade de Abraão não são seus descenden- damente limitadas aos membros da aliança as- ;

tes segundo a carne, mas aqueles que vivem da sim a remissão das dívidas do sétimo ano
mesma fé que êle, qualquer que seja sua origem "Poderás constranger o estrangeiro, mas se
(Rm 4.16). Falando adequadamente, só Jesus tiveres negócio com teu irmão, far-lhe-ás re-
Cristo é quem merece o título de filho de missão daquilo que te deve" (Dt 15.1-3); ou
Abraão (Gl 3.16). Mas aqueles que lhe per- ainda o tratamento dos escravos (Dt 15.12;
cf Lv 25.39-46). Todos os mandamentos rela-
tencem, ou seja os que estão unidos a êle pela
tivos ao próximo resumem-se no seguinte "Ama-
fé e pelo —>
bafismo, sêlo desta união, tor-
rás o teu próximo como a ti mesmo" (Lv 19
nam-se membros da posteridade de Abraão e.
18). Notemos que o Levítico estende êste man-
portanto, herdeiros das promessas. (Gl 3.26-29).
damento ao estrangeiro que se fixa no país
Deus tem o poder de executar o que êle pro- (Lv 19.33-34).
meteu duvidar disso é causar prejuízo à sua
;
O têrmo irmão é empregado também excep-
glória (Rm 4.20-21). Eis porque a herança cionalmente quando um
pacto é efetuado entre
está reservada àqueles que pela fé se apropriam um Israelita e um no caso
não-Israelita, assim
da palavra do Evangelho (Hb 4.1-2). O cumpri de Salomão e Hirão, rei de Tiro (lRs 9.13).
mento da promessa depende de Deus sozinho,
e não dos esforços do homem (Rm 4.16). Aciuè-
NT
le que procura obter a herança pela observa- 1. Sentido literal. Trata-se em diversas oca-
ção da Lei anula de fato a promessa, visto que siões dos irmãos de Jesus, no sentido literal
se comporta como se ela fôsse sem valor (Rm (Mc 3.31-32 par; 6.3 par; Jo 2.12; 7.3,5,10;
4.13-14; Gl 3.18). A herança foi garantida At 1.14). Aquêles que, por razões dogmáticas,
pelo testamento. A Lei que só interveio muito aceitam a tradição da virgindade perpétua, de
tarde, não pôde modificar nada das disposições
Maria invocam o costume judeu segundo o qual
o têrmo irmão ou irmã pode designar parentes
dêste Deus deu-a para que o homem descubra
:

próximos, meio-irmãos ou primos. É em par-


seu pecado e sua incapacidade de salvar-se a
ticular a interpretação da Igreja romana.
si mesmo, a fim de que seja assim levado à fé

(Gl 3.15ss). 2. Sentido religioso. A palavra irmão conti-


Isto não está em contradição com 2Co 7.1; nua sendo aplicada no NT aos membros da co-
efetivamente, neste texto, o dever de santifica- munidade judaica (At 2.29; 3.22; 7.2, etc).
ção do cristão não é apresentado como uma con- Mas não tarda a designar essencialmente os
dição a ser preenchida para receber os bens membros da comunidade cristã. Aparece até
prometidos ao contrário, é pelo fato de terem
;
130 vêzes nos escritos de São Paulo.
recebido promessas eminentes que os crentes a) Jesus considera seus discípulos como sua
são convidados a se santificarem, para honrar verdadeira família "Quem é minha mãe e quem
:
:

266 PURO

são meus irmãos?" Logo correndo o olhar pelos Em


Jesus Cristo, não há mais nem judeu
que estavam assentados ao redor dele, disse nem grego, nem escravo nem liberto, nem ho-
"Eis minha mãe e meus irmãos Qualquer ! . . . mem nem mulher (Gl 3.28-29; cf Cl 3.11); o
que faça a vontade de Deus é meu irmão, irmã escravo torna-se "um irmão bem-amado" (Fm
ou mãe" (Mc 3.32-35). Esta passagem funda- 16) tôda mulher cristã torna-se "uma irmã"
;

mental mostra que o que nos constitui irmãos, (Rm 16.1; lTm 5.2), partícipes das mesmas
é nossa obediência a Deus, é o fato de compor- graças e do mesmo serviço.
tarmo-nos como filhos do mesmo Pai. Mas este Assim, o ato pelo qual o Filho de Deus fêz-se
Pai é o que "faz nascer o seu sol sobre maus nosso próximo, nosso irmão, tomando sobre êle
e bons". Daí o nôvo mandamento de não amar nossa condição humana, torna-se o fundamente»
somente seu "próximo" mas seu inimigo (Mt de tôda a ética cristã, de todo nosso compor-
5.43-48). Jesus quebra aqui de maneira deci- tamento com nossos semelhantes.
siva as normas de noção judaica do próximo.
Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37), S. DE DIÊTRICH
o próximo não é, como se poderia esperar,
o homem socorrido mas o Samaritano que o
PURO
socorre, que se comporta como próximo.
VT
b)Jesus vindo buscar e salvar o que estava 1 . As leis de purificação (ver especialmente
perdido, constituiu-se no próximo de todos os Lv A
distinção entre puro e impuro
11.-15).
homens e neste sentido a Igreja antiga tinha não é exclusivamente bíblica existe nas nações
:

razão de ver no Samaritano da parábola uma que confinam com Israel, e, generalizando, po-
figura de Jesus Cristo. Seguí-lo é comportar-se deria afirmar-se que ela é um dos elementos
desde então como próximo não somente com fundamentais da "religião". Porém na Bíblia,
relação aos irmãos segundo a carne, nem mesmo estas noções tomarão um significado nôvo. A
com os irmãos na fé, mas com relação a todo fim de compreendê-las, a maneira mais simples
o homem. é considerar os efeitos da impureza.

c) Jesus fêz mais ainda tomou sóbre êle,


;
Se o sacerdote infringe as leis de purificação,
moribundo na cruz, a doença, o sofrimento, o deve ser considerado impróprio para as funções
pecado de todos os homens e de cada homem sacerdotais (Lv 21.1-15). Ao leigo em estado
em Permite-lhe
particular. isto dizer às de impureza não é lícito comer coisas consa-
— > "nações" (isto é, aos pagãos) que o gradas (ISm 12.4), viandas sacrificiais (Lv
7.20-21), nem entrar no Templo (Lv 12.4),
rodeiam na cena do Juízo final (Mt 25.31-46)
que aquilo que foi feito ao mais pequenino irmão nem participar das festas cultuais (2Cr 30.17-
a êle lhe foi feito. A exegese tradicional tem 20), nem fazer a guerra santa (Dt 23.9-14;
geralmente admitido que êstes "irmãos" eram Nm 31.19-20). Em
caso de curar-se um leproso,
os discípulos, em vista do sentido habitual dado cuja impureza o afastara do acampamento, êle
a êste têrmo no NT. Pensamos nós (com TH. não poderá assomar de nôvo ao Templo senão
PREISS, cf Le Fils de l'Homme, ETHR, por escalões progressivos, sendo-lhe lícito pe-
Montpellier, 1951, n.° 3, p. 39-43) que se trata netrar no acampamento, porém não na sua ten-
aqui de apoucar o pensamento de Jesus "Colo- :
da, logo na sua tenda, mas não na tenda de

cou-se no lugar de todos os miseráveis. Não "assignação" (Lv 14.1-11), finalmente poderá
somente num registro, contando como feitos a ser apresentado diante da tenda de assignação.
si mesmo os mínimos atos de caridade e serviço, Tudo o que toca ao culto deve ser puro (Ex
os mínimos pecados de omissão de amor e de 25.31; 30.35; Lv 4.12; também Ne 12.30;
serviço, mas realmente, em carne e osso, tomou 13.30). A impureza exclui da esfera sacra. A
o lugar do menor, do último de seus irmãos." pessoa que, em estado de impureza, faz um ato
que requer o estado de pureza, deve ser elimi-
d) Jesus enfatiza que os dois mandamentos
de — > amor a Deus e amor ao próximo são
indissoluvelmente ligados (Mt 22.35-40). O
nada do povo de Deus (Lv 7.21).
10.10 coloca em paralelo sagrado e profa-
Lv
VT já denotava isso. O que há de nôvo é a no, e impuro. Evidentemente não se trata
puro
extenção da noção mesma do próximo, irmão de qualquer equivalência. Aquilo que pertence
e a qualidade dêste amor (Jo 13.13-34). Deus a Deus é sagrado, e o que pertence à criação é
chama os crentes a serem conformes à imagem profano. Porém esta distinção não constituijima
de seu Filho, a fim de que seja êste "o primo- repartição estática, pois entre o transcendente
génito entre muitos irmãos" (Rm 8.29). No e a contingência material não existe fronteira.
amor ao irmão reconhece-se a autenticidade da Para compreender isto, é mister relembrar a
fé (ljo 2.9-11; 3.12-17; 4.20-21). Os "for- noção fundamental da psicologia israelita: a
tes" deverão conduzir os "fracos", posto que st* saber, a noção de alma, ou melhor de poten-
trata de irmãos pelos quais Cristo morreu (Rm cialidade. Quando um sêr ou um objeto mani-
14.13-15; cf ICo 8.9-13). festa uma eficácia ou uma intencionalidade, tal
: :

PURO 267

sêr ou objeto é animado de potencialidade re- : participar tôdas as coisas sagradas do estran-
velando-se assim no profano a presença do sa- geiro. Esta é a fonte da discriminação entre
grado e do divino Deus é potencialidade abso-
; animais permitidos e proibidos, provàvelmente
luta; Iavé tem ciúme de qualquer outra poten- em grande número de casos (pois, em outros
cialidade. casos a distinção deve-se à presença no animal
Consequentemente o profano pode ser puro ou de uma potencialidade estranha o que daria lu-
impuro. A maior ou menor potencialidade do gar a classificar tais animais no parágrafo se-
objeto profano revela a sua maior ou menor guinte). Inversamente, os pagãos não poderão
participação na santidade. Porém, se sua po- comer na mesa israelita, pois Israel deve conser-
var-se santo (Lv 11; 20.25-26; Dt 14.1-21;
tencialidade fôr estranha a Iavé, haverá opo-
sição entre tal objeto e Iavé; define-se assim Gn 43.32). 2.° — As carnes oferecidas aos
o impuro que deve ficar afastado do sagrado, ídolos. Esta proibição aparece tardiamente,
enquanto o profano-puro pode, pelo contrário, quando Israel não está mais "a parte" das na-
tornar-se sagrado. Seria um erro julgar apres- ções, mas disperso pelo mundo na diáspora,
sadamente que impuro e santo são equivalentes, onde encontram diàriamente oferecidas nos_mer-
cados as carnes provindas de sacrifícios pagãos
pois, ao contrário, repelem-se o que é sagrado
:

para uma religião é imundo aos olhos de outra (Ver IMacab 1.65-66; At 15.29). 3.° — Os
(em particular da israelita). Do impuro deve-se frutos de Canaã durante os três primeiros anos
fugir sempre, mas se acontecer que se deva afas- de colheita, porquanto estão ligados à adoração
anterior do deus Baal, divindade do solo (Lv
tar do sagrado, é porque se carece das dispo-
sições necessárias para o encontro com o sa- 19.23-25). 4.°
(Lv 1.25;

Nm
O país ocupado pelos pagãos
33.51-56; Ed 9.11), as casas
grado, que constitui em si uma fonte de bên-
çãos. dos pagãos (cf a proibição lançada
terdito" — — o "in-
sobre as cidades cananéias durante
Oque é imundo é imundo em si mesmo e
a instalação: Js 6.24; 7.26). Proibido faz-se o
pode contaminar, comunicando sua impureza.
Portanto quem contrair tal imundície deverá
oposto de
contramos o
——> > santo. Na raiz do vedado en-
ídolo, fonte e conjuntamente
purificar-se, quer dizer, santificar-se para en-
símbolo de uma totalidade de alma diferente da-
trar de nôvo em relação com Iavé, o Santo,
quela do povo de Israel (Gn 5.2; 2Cr 34.3;
quer no culto ou simplesmente na sociedade do
Ez 23.17).
povo de Deus. Assim, fora de Deus, é santo a
quem Deus escolhe e se reserva, comunicando- b) Tudo o que manifesta uma potencialidade
Ihe sua própria potencialidade, ou melhor, seu independente de Deus. Cumpre mencionar apar-
Espírito (SI 51.12-13).
O profano santo (pode dessacrar-se
feito
te o —> sangue, veículo por excelência da
alma, impuro ou sagrado conforme os casos,
— profanar-se, para retornar à vida banal. Esta portanto fonte de impureza (Nm 35. 33 )_ou de
profanação é boa somente se cumprida conforme purificação (Lv 14.52), mas que não se deve
certas regras (ritos de saída, oferta e mandu- comer (Gn 9.4; Lv 7.27). Antes de enumerar
cação sagrada do dízimo e das primícias ver : as coisas impuras que seguem, notemos que
Dt 14.22-23) é má tôda vez que coloca brutal-
;
elas inspiraram, muito provàvelmente, temores,
mente o profano-puro já consagrado em con- por ter-se constatado nelas um perigo, originan-
tato com coisas ou pessoas destinadas a ficar do-se-lhes portanto um carácter misterioso sua
:

sempre profanas-impuras ou, pelo menos, pro- proibição deve-se mais a um "tabu" do que a
fanadas (ver ISm 5-6; 2Sm 6.6). precauções de higiene. São elas: 1.° — Os ca-
dáveres de homens (Nm 19.11; 2Rs 23.13-14;
2. As coisas impuras. Tudo se encontra mais Ez 39.12), de animais impuros (Lv 11.27-28),
ou menos manchado e profanado pela presença ou de animais puros mortos naturalmente
dos pagãos, os pagãos são impuros por causa dos (=não abatidos pelo homem para alimentação
ídolos que adoram. Porém perante Israel tudo ou sacrifício, Lv 17.15). Os sepulcros devem
isto é impuro em si, porquanto participa de uma
ser caiados antes da Páscoa para serem vistos e
totalidade de alma (=de uma potencialidade) evitados pelos peregrinos. Os mortos entram
oposta a Iavé. Cumpre enumerar as diversas numa esfera de santidade incompatível com
coisas que para Israel são fonte de impureza
reduziremo-las a dois parágrafos para maior
Deus. 2.° — As vítimas sacrificiais nos dois
primeiros dias (Lv 7.16-18). 3.° —A lepra
clareza da classificação no seio desta totalidade das pessoas, das vestes ou das casas (Lv 13-14).
hostil.

a)
É impuro
Tudo
que está ligado ao paganismo
4.° — Tudo que está ligado ao mistério da
geração: o parto (Lv 12), o fluxo menstrual
1.° —Certos animais. Veda-se, não tocá-los,
mas comê-los, pois comer é apropriar-se de
:

ou qualquer outro fluxo normal ou doentio (Lv


15), as relações sexuais normais (ISm 21.5;
uma parte da alma daquilo que se come o ; 2Sm 11.4). Impureza aumentada pela culpabi-
povo santo comerá exclusivamente aquilo que lidade em se tratando de atos ilegítimos ou antí-
a sua alma pode assimilar e vê-se proibido em naturais (Lv 18). 5.° —A novilha vermelha e
.

268 PURO

sua cinzas (Nm 19), ainda que sagrada, talvez A impureza vem de fora. No obstante, con-
precisamente porque ela serve para o rito da sentí-la é pecado interior inversamente o pe-
;

expiação. cado constitui uma impureza. A infidelidade


Os objetos em contato com coisas imundas para com Deus é uma imundície semelhante ao
tornam-se impuros devendo ser evitados (Lv adultério e à prostituição (Os 2). Uma alma
15.4). Somente são imunes do contágio a água impura não logra desenvolver-se, mas se faz
das fontes e as sementes (Lv 11.36), em vir- raquítica a relação da aliança com Deus per-
:

tude talvez da potencialidade purificadora da turba-se. Tais consequências eram, inicialmente,


água e do mistério germinativo. A impureza automáticas porém, depois de aparecer a rela-
;

é mais contagiosa do que a santidade (Ag ção pessoal entre Deus e o homem, o Deus san-
2.11-13). to manifesta-se zeloso e ciumento e o homem
não consegue viver sob a cólera do seu Senhor.
3. A pureza moral. Na mensagem profética,
a impureza toma um sentido ético ligado à von-
4. A purificação. Deus é santo; o homem é

tade de Deus santo (Is 6.5; Jr 13.27; Hc


impuro (Lv 11.44; Jó 4.17; Hc 1.13), impuro
por contágio, por comportamento e até por na-
1.13; ver SI 19. 9s; Pv 15.26). A
pureza legal
tureza (Jó 14.4; SI 51.7). É preciso uma puri-
não é simplesmente uma lição e um símbolo de
ficação, e depois de conseguida esta, um esforço
pureza moral. Ainda que tardiamente os fari-
por permanecermos puros (como o esforço de
seus tenham exagerado a primeira em detri-
mento da segunda, e que a segunda chegou a Jó 33.9).
separar-se da primeira tornada hipócrita, isto a) Notemos primeiramente o duplo papel
não nos deve induzir em êrros. Passa-se da pu- representado pelo fogo: êle purifica certos obje-
reza legal para a pureza moral não por um ex- tos como os metais (Nm 31.22-23; Ml 3.3), e
cesso do corpo ultrapassando-se a si próprio em quem sabe devido a isto os tesouros inimigos
benefício da alma, e sujeitando-se rigorosamente podem entrar no tesouro de Deus visto que o
às obediências exigidas pela lei de pureza, — país está "purificado" pelo fogo (Js 6.24)
também o fogo consome a oferta, purificando-a
;

mas por uma profundidade espiritual, refletindo


sobre a noção de temor de Deus. O impuro é e. desprendendo o princípio de vida que sobe ate
contrário em si à potencialidade de lave. Não Deus. É evidente porém que sua ação destrui
habitualmente aquilo sobre o qual age daí para :
se purificar quando se está (legalmente) imun-
Israel e seus bens, o papel desempenhado pela
do é um pecado moral em virtude não da mera
:

água.
desobediência à ordem de purificação, mas da
oposição a Deus em sua essência mesma por-
Uma ablução deve sempre efetuar-se, com
;
ablação às vêzes dos pêlos que são considera-
que Deus é o Santo por excelência (Lv 11.44-
dos como uma sede do princípio vital, portanto
45). Se as leis de purificação, bem antigas, se
facilmente contamináveis (Nm 8.7). ablu- A
redigem tardiamente durante o exílio, é sem
ção tem por base o banho e a ação purificadora
dúvida para não esquecê-las maugrado a ausên-
cia do Templo, mas é também como eco à
da —> água lavagem parcial ou total, po*-
:

ocasião do nascimento (Ex 16.4), do casamento


mensagem dos profetas a purificação física é
:
(Rt 3.3; Et 2.3), para buscar e exprimir saúd^
um sinal, um sacramento da purificação moral. e alegria (ver —>
Unção), limpando-se
A moral decorre da definição de "puro". A perfumando-se (o corpo, os pés, as mãos, o
ação feita pelas mãos ("ter as mãos puras" = rosto).

—> —
"estar sem falha", 2Sm 22.21; Jó 17.9) pro- Frequentemente deve efetuar-se o sacri- >
vém do todo da alma ela é reta se êste todo fíciode uma vítima cujo sangue evacua
—>
;

está implicado. Ora a impureza destrói a inte- a potencialidade impura ( Expiação) e


gridade da alma e arruina o ser (Mq 2.10). de uma outra cujo sangue religue à potencia-
Um coração puro (Gn 20.5) é o contrário de lidade divina (holocausto) após um parto (Lv
:

um coração dividido, de uma alma quebrantada 12.6) após um contato de um cadáver (Nm
por uma vontade estranha. O que está apartado 19; 2Sm 12.15s), após a lepra (Lv 14), após
e santificado por Deus não recebe sua vontade um fluxo (Lv 15). A
duração da impureza é
como uma ordem exterior, mas está colocado Variável: até a tarde após o contato (Lv 11.
na esfera da santidade de Deus e participa de 24), sete dias após a cura (Lv 14.8-9) ou o
seu Espírito. Então será possível a aproxima- contato de um cadáver humano (Nm 19.11),
ção a Deus: a oração (Jó 16.17), o acesso ao quarenta dias após o parto (Lv 12.2-5; e o
Templo (SI 24.4). O —>
pecado é revolta,
isto é, oposição ontológica para com Deus, sub-
dobro se a criança fôr uma menina).
O
sacerdote, pessoa sagrada, preside esta ce-
missão a uma outra vontade e, portanto, a uma rimónia, não somente para aquêle que é imun-
outra potencialidade (portanto, o pecado de do ocasionalmente, mas para o povo, o país e
—>
:

Israel é maior do que o dos pagãos 1 : Am especialmente o Templo (centro do país c


1-3.2). ligado ao povo) tudo o que vai ao Templo
:
PURO 269

deve ser purificado, e a santidade do Templo Esta pureza vivida, resultado de uma comu-
(onde o homem impuro reencontra o Deus san- nhão constantemente renovada e reafirmada em
to) deve ser mantida pela extinção anual do Cristo, excede infinitamente em grandeza e
pecado (Lv 16). A fim de executar tudo isto força todos os princípios a que desejariam os
os sacerdotes e levitas devem purificar-se a si homens reduzí-la: o apóstolo Pedro (segundo o
mesmos (Nm 8.6-22; 2Cr 29.15-19; Ed 6.20). Livro de Atos 10.15; 11.9) vê-se constrangido
b) Mas nema ablução (Jr 2.22; Jó 9.30), a reconhecer que os pagãos não são mais impu-
nem o (SI 51.18) possuem valor
sacrifício ros que os judeus e que a fé somente cria entre
mágico são sinais. Não se trata de purificar-se, ambos uma distinção, não sua raça.
—>
:

mas de ser purificado, pelo perdão de O apóstolo Paulo retoma esta idéia da pureza.
Deus (SI 32.1-2) e não por um rito humano. Para descrever as diversas situações humanas
Deus conduz misteriosamente o culpado em diante de Deus e do seu Cristo, usa êle diver-
direção à necessidade de perdão (2Sm 12; Is sas palavras que poderiam ser traduzidas todas
38.17; Dn 11.35) o qual será implorado na em português por: sem mistura, intato, (Rm
oração, qualquer outro rito sendo substituído 16.19; Fp 2.15), irrepreensível (atualmente)
pela confissão dos pecados (SI 51). (Fp 2.15), sem reproche (Fp 2.15), postos à
A ação purificadora nem por isso é supri- parte (Fp 1.10), que não melindram (Fp 1.10).
mida; porém ela provém de um ato criador Não é tanto a variedade de expressões, com
de Deus (SI 51.9-12; Is 1.18; Ez 36.25-26; certas nuanças quase imperceptíveis, que im-
Dn 12.10). O
sacrifício em si mesmo não fica porta, mas a realidade espiritual expressa pelo
excluído mas será ofertado pelo próprio Deus apóstolo.
na pessoa do Messias (ver Is 53.12). O maior Jesus dizia já aos cristãos de ser "sem mis-
crime é recusar-se de ser purificado (Ez 24. tura como as pombas" (Mt 10.16). O apóstolo
13).
deseja que os crentes sejam sábios no que con-
D. LYS cerne o bem e "sem mistura no que concerne
NT o mal" (Rm 16.19). É o resultado da obediên-
Nos evangelhos sinóticos, aparece Jesus co- cia à fé (Fp 2.12-15). "Fazei todas as coisas
mo aquele que transforma certos seres decla- sem murmurações nem discussões para que
rados impuros em seres puros. Graças ao seu sejais irrepreensíveis e sem mistura, filhos de
poder curativo, leprosos são sarados. Os evan-
Deus sem reproche no meio de uma geração
gelistas dizem "Os leprosos são purificados".
:

perversa torcida) e corrompida (lit. estrá-


(lit.
Esta purificação não se reduz meramente a um
ato milagroso que transforma homens doentes
bica)". A
retidão e a simplicidade do coração
permitem ao crente "discernir" o que é impor-
fisicamente em seres ritualmente puros, irrepro-
tante na conduta diária e elas o conduzirão até
váveis diante da lei judaica. Seu sentido c bem
ao dia do Cristo, até sua volta, quando deverá
mais profundo manifesta a intervenção divina
:

estar puro a fim de não ser objeto de escân-


que transforma o que está corrompido, quer o
corpo ou o ser total. O episódio dos
dalo (Fp 1.10). A
pureza atual da conduta
do cristão (Fp 4.8) apenas possui valor no sen-
dez leprosos é significativo a êste respeito (Lc.
tido de permitir o encontro final com o Cristo.
17.11.19): Jesus reclama não somente a cura
É desde já o resultado da esperança e da ale-
mas a conversão.
gria da vida futura, na presença visível do
A pureza ritual, mesmo de parte de homens
Senhor que nos purificará inteiramente e para
sadios, decerto insuficiente
é : Jesus afirma-o sempre.
em termos virulentos aos fariseus (Mt 23.25-26:
Lc 11.39). Única verdadeira é a purificação
É neste sentido que as epístolas pastorais

que concede pureza da alma e comunhão real falam de um coração puro (ITm 1.5; 2Tm 2.

com Deus (Mt 5.8). A pureza não é pois o 22), ou de uma consciência pura, e que a pri-
privilégio de certos homens íntegros em si mes-
meira carta de São Pedro cita a conduta pura
das mulheres cristãs (IPe 3.2). Pois a puri-
mos, pois ela resulta da intervenção de Deus
ficação do ser (da alma) (IPe 1.22) resulta
que torna puro o coração impuro do homem
da obediência à verdade.
(Mc 7.18-23). Traduz-se por uma conduta con-
forme à vontade de Deus. Esta não pode ser Na epístola aos Hebreus, a purificação, obra
obtida exclusivamente pela aplicação de prin- humana, resultado de ritos destinados a desa-
cípios rígidos. Um
homem não é puro pelo parecer, está oposta à obra purificadora rea-
fato de ter feito seu dever ou porque tem umn lizada pelo sacrifício de Cristo cujo fruto é de
consciência sã. É puro quando o Senhor atua levar-nos a servir a Deus vivo (Hb 9.13-14:
éni sua vida. Ninguém é puro em si, mas cada ver 10.2).
úm fica puro pela fé no Senhor. O quarto evan- Em suma, pode-se reconhecer através das di-
gelho faz dizer a Jesus: "já estais puros por versas palavras que servem para traduzir a
causa da palavra que vos tenho anunciado" (Jó idéia de pureza em todos os escritos do NT
15.3). uma unidade de opinião muito notável o ho- :
;:

270 RECOMPENSA

mem feito impuro por causa de seu afastamento darem fiéis às obrigações do pacto e escaparem
de Deus, torna-se puro pela comunhão constan- destarte à ira divina, amparados pela aliança,
te com o Cristo. Sua pureza jamais é adquirida, única fonte de vida (Am 3.2; 2.6.14-15; Os
porém constantemente recebida até o dia em que 6.7; Is 5).
Cristo voltará e tornará visível esta pureza O pensamento grego clássico, falto de qual-
até lá é apenas o fruto da fé. quer noção análoga à idéia israelita da aliança
divina, não concebe possível que o homem te-
M. CARREZ nha alguma referência que não seja o bem sobe-
rano. Na perspectiva grega, a remuneração ca-
RECOMPENSA rece de sentido, jp bem leva em si mesmo sua
O termo grego que nossas versões portu- retribuição, ou melhor dito, o bem constitui sua
guesas traduzem geralmente por recompensa, própria retribuição. Para o Israelita, pelo con-
significa literalmente o salário devido ao tra- trário, os atos humanos não têm valor próprio,
balhador pelo trabalho realizado (Lc 10.7: mas se valorizam apenas em virtude de ser o
lTm 5.18; Tg 5.4; Mt 20.8), ou a remune- meio de permanecer êle na aliança firmada
ração dum serviço prestado (At 1.18; 2Pe por Deus.
2.15: "o salário de iniquidade" significa o be- A noção de retribuição, em Israel, paulatina-
nefício pecuniário que Judas e os falsos dou- mente enriqueceu-se, aliás de maneira absolu-
tores tiraram de seus pecados). Igual signifi- tamente legítima, pelo menos nos inícios desta
cação, embora no figurado, há em Jo 4.36 e evolução. Em primeiro lugar, passou-se, devido
em ICo 9.17-18. Na maior parte dos contextos, à influência de Ezequiel, duma concepção cole-
a noção de salário conserva o sentido essencial tiva a uma concepção individual da remuneração
de recompensa que Deus concede aos homens (Ez 18). Logo, descobriu-se o aspecto positivo:
que têm feito sua vontade divina (Mt 6.1,4. assim como, transgredindo a aliança, incorre-
6.18; ICo 3,8,14; 2Jo 8, etc), embora também, se na ira divina, também, permanecendo no pac-
excepcionalmente, expresse a retribuição divina, to, recebe-se parte da bênção divina, geralmente
prémio ou castigo (Ap 22.12; 2Pe 2.12-13: em forma bem material. O Deuteronômio é a
aqui "salário de iniquidade" forma trocadilho
expressão típica desta progressão ideológica,
com a mesma expressão que, a seguir, aparecerá tanto no livro originalmente escrito com êste
no sentido literal dois versículos mais abaixo nome, quanto na remodelação que fêz de textos
ela significa o justo castigo da iniquidade). O
anteriores, como por exemplo Juízes (Dt 28:
NT tomou do VT, não apenas o têrmo de 30.1-20; Jz 2.6-22).
recompensa, mas também a concepção legal que
Todavia esta evolução, legítima em si, podia
presidia ao uso e repartição das recompensas.
levar, e de fato levou, a uma deformação da

A VT. Nas suas mais antigas


retribuição no noção autêntica de retribuição. Por uma parte,
escrituras, o VTnos apresenta a retribuição a remuneração individual, concebida de modo
excessivamente racional e temporal, deu lugar
divina de maneira essencialmente negativa Deus
:

a problemáticas insolúveis (Jó, o Justo, vítima


pune os homens que violando as disposições da
—> aliança, se excluem dela. Assim acontece
com Adão e Eva (Gn 3.16-19; ver 2.17), com
da dor), que ecoam no ceticismo do Eclesiastes
(8.14). Por outra parte, a remuneração foi pau-
latinamente separada da aliança e veio a cons-
a humanidade nos tempos de Noé (Gn 6.5-7),
tituir um dogma independente admitiu-se que
:

com os habitantes de Sodoma e Gomorra (Gn


os atos humanos davam, ipso jacto, ao seu autor
18.20-21), etc. Ainda mais nitidamente depois
um direito à salvação, como se a aliança dei-
do Sinai, Deus deixará correr sua ira contra
xasse de representar seu papel permanente e
os transgressores da aliança (Nm 25.3; Js
essencial. Contràriamente ao pensamento israe-
22.20, etc). Uma vez firmada a aliança, em
lita primitivo, o legalismo judeu ulterior devia
Adão, em Noé, em Abraão, em Moisés, uma
finalmente juntar duas nações absolutamente
vez unido o homem com Deus em virtude da so-
antagónicas dentro da perspectiva bíblica as :

berana iniciativa deste, a atividade do homem


de retribuição e de mérito.
torna-se decisiva permanece na aliança, ou sai
:

dela. Deus, por sua vez, não faz outra coisa A remuneração no NT. Como em muitos
senão reagir em função da fidelidade ou infi- outros particulares, também aqui o NT
reata,
delidade do homem. Os primeiros profetas se acima do judaísmo, confirma e aperfeiçoa a
contentam em salientar êste aspecto fundamen- noção genuína do VT. De modo geral, cons-
tal, essencialmente negativo, da remuneração tatamos que a noção equívoca de retribuição
(negativo, por fundar-se sobre a aliança positiva cede lugar à noção mais clara de recompensa.
de Deus). Os Israelitas erram gravemente pen- Como outrora no Israel autêntico, recompensa
sando que a sua vocação basta para garantir- e castigo não são, no NT, duas espécies, embora
lhes a salvação, seja qual seja a sua conduta; contrárias, dum mesmo género neutro mas, em ;

pelo contrário, esta vocação os convida para face da aliança, revelam-se duas realidades es-
viver nas exigências da salvação, para se guar- pecificamente diferentes entre si.
RECONCILIAÇÃO 271

1 . Notemos em primeiro lugar que fora da Cristo dá fruto (Jo 15.5). O ato de fé não é
aliança, isto é, em linguagem
evangélica, fora uma aventura que desemboca no nada, mas é a
do reino de Deus anunciado por Cristo, ou em própria sabedoria (Mt 7.24; 25.1-13), fun-
linguagem paulina, fora do Cristo, o Homem, dada em Deus mesmo (ICo 2.12-14) e que de-
seja êle quem fôr, fica entregue à ira divina semboca na plenitude das promessas divinas
(Mt 3.7; Rm
1.18). Para o homem não há fGl 6.7-10).
salvação senão mediante a —>
fé, o aban-
dono à misericórdia de Deus manifesta em Je- J.-L. LEU BA
sus Cristo. Impossível merecer esta salvação,
desde que ela tenha sido dada de graça (Lc
RECONCILIAÇÃO
19.9-10). 1. Entre as diversas palavras que descrevem
a nova situação do mundo causada pela morte
2. Concluiremos então que as ações humanas
de Jesus na cruz, "reconciliação" ocupa um lu-
são indiferentes ? De modo nenhum. Pelo con-
gar privilegiado. Pois, embora pelo seu con-
trário, elas se tornam tanto mais decisivas, de-
monstrando se os homens têm realmente fé. O
teúdo relacione-se estreitamente com
vação, —<
justificação, —>
sal-
paz, etc, recon-
—>
importante pois não é o que diz o homem, mas
ciliação goza da peculiaridade de não ter, quanto
o que êle faz. Só temos um meio de demons-
a sua forma, nenhum ancestre direto, nem no
trar a nossa fé para os demais e para nós mes-
mos precisamente, essas
:

28-32; 25.14-30; 25.31-46;


— >Rm obras (Mt 21.
2.6-11; Tg
VT, nem no léxico religioso
evento redentor iniciou uma mudança tão radi-
helenístico. O
cal para a humanidade e, simultaneamente tão
2.14-26).
específica para a teologia, que se necessitava
3. Todavia, crente nenhum pode atribuir às um vocábulo nóvo e original para o designar
suas obras a capacidade de o salvar. Como tais, adequadamente. Vocábulo, aliás, destinado a co-
estas obras são inúteis (Lc 17.7-10; 3.27- Rm nhecer no pensamento cristão uma fortuna que
31), o crente portanto não se pode gloriar delas. ultrapassa absolutamente o lugar que tinha
Por que? Porque não é norma natural mas ex- no contexto do NT. Encontramo-lo, na sua sig-
clusiva graça de Deus que as boas obras rece- nificação teológica, apenas cinco vêzes em textos
bem recompensa. Somente em virtude da divi- de inspiração paulina: Rm
5.10-11; 11.15; 2Co
na graça, as obras boas são imputadas a quem 5.18-20; Cl 1.20-22; Ef 2.16. Cinco textos ape-
as fizer tal é o significado da parábola de Mt
:
nas, mas textos de pêso extraordinário.
20.1-16. Significação muito bem formulada em
A do vocábulo grego é allos (latim:
raiz
Rm 4.4: "ao que trabalha, o salário não é dado alius) que corresponde a nosso adjetivo outro.
como favor, mas como dívida" (= o salário
Os primeiros derivados guardam êste sentido
não é uma gratificação, mas uma dívida ao tra- radical de tornar outro (assim em At 6.14: Es-
balhador). Negar-se a fazer as boas obras re- têvão é acusado de ter declarado que "Jesus
clamadas por Deus, é portanto demonstrar que tomará outros os usos que temos recebido de
não aceitamos viver do Espírito de Deus (Gl
Moisés) mercê dum prefixo, o grego clássico
;

5.16-25).
conseguiu um têrmo cuja significação primeira
4. A
recompensa, nestas condições, não se dis- era mudar, trocar, no sentido ora de transformar
tingue Pois da própria salvação. Ela é a sal- ora de permutar, derivando-se daí a idéia de
vação, não mais oferecida mas aceita. Portanto reconciliar, usual na linguagem corrente (recon-
a salvação não pode constituir um móvil inte- ciliar adversários, reconciliar esposo e esposa).
ressado antes, ela é dada exclusivamente àque-
; O substantivo evoluiu da mesma maneira de :

lesque renunciam a si mesmos (Mc 8.34-35). outro, para permuta e para reconciliação.
Neste sentido, a recompensa está "no céu" (Mt
2. Temos salientado já que êste têrmo care-
5.12; 6.20; 19.21) embora não seja exclusiva-
mente futura, pois os crentes recebem desde já
ce de equivalente exato no hebraico (os LXX
somente o utilizam no Livro dos Macabeus).
as arras dela (2Co 5.5; Mc 10.28-30).
Todavia podemos reunir todo um conjunto de
5. Portanto nem a fé, nem as obras são as textos que, de maneira mais ou menos precisa,
que salvam. Mas Deus em Jesus
Cristo. Toda- anunciam e prefiguram o tal vocábulo no VT.
via, o homem, mediante a fé, aprova o plano Pode-se por exemplo citar os trechos que alu-
divino de salvação e sua realização em Cristo, dem a uma volta à divina graça do povo peca-
e, mediante as obras, demonstra que sua fé é

sincera. A proposição: "Deus recompensará os


dor. Pode-se, ainda mais, invocar os sa-
crifícios de propiciação, as cerimónias do grande
—>
crentes pelas obras que lhes inspira a fé" equi- dia das expiações do ano sabático, do jubileu
vale pois a dizer que "Deus na realidade dá ao
: (Lv 16.17,25). O Jubileu de fato significava
homem, mediante a fé, o poder de viver no reino para Israel, um nóvo comêço, umasituação
que fundou em Jesus Cristo. Qualquer possibi- permutada : as transações comerciais e as dívi-
lidade de recairmos no legalismo fica assim ex- das, as culpas e as impurezas, vinham a ser
cluída, pois unicamente quem "permanecer" em anuladas ; o pêso do passado não mais intervi-
272 RECONCILIAÇÃO

nha nas relações com Iavé nem nas relações embora aqui no seu sentido UNIVERSAL, a
mútuas. Invocou-se também a morte dos sete humanidade, toda a criação sujeita ao pecado
mártires que, na opinião de 4Mac 17.1, iniciou (v. 19). Para Cl 1.20: "todas as coisas, quer
uma nova era em Israel. E também podem ser sobre a terra, quer nos céus". Cl 1.22 especi-
invocados muitos textos proféticos, por ex. Is fica: "a vós outros que éreis estranhos (lem-
11, onde o Reino messiânico aparece operando brar que esta palavra tem a mesma raiz que o
uma reconciliação cósmica das criaturas, Os verbo reconciliar) e inimigos pelos pensamen-
2.23 (citado por Paulo em 9.25: "Chama- Rm tos e pelas obras malignas, agora, vos reconci-
rei povo meu o que não era meu povo, e amada liou..." Ef 2.16 ensina que Deus reconciliou
a que não era amada". Acrescentemos enfim os dois troncos da humanidade, judeus e gentios
tantas profecias e orações que prenunciam ou outrora igualmente colocados debaixo da ira
invocam a intervenção definitiva de Deus a fa- de Deus e mutuamente opostos e divididos por
vor de seu povo, a instauração final da Jerusa- uma parede de separação. Êstes diversos depoi-
lém triunfal, muitas vezes dada por sinal duma mentos coincidem em afirmar duas coisas a :

reconciliação universal. Sem dificuldades, pois, reconciliação tem um alcance universal os be- ;

acharíamos antecedentes eventuais explicando a neficiados até agora tinham manifestado apenas
introdução no léxico da palavra reconciliação. hostilidade para com Deus c relutância uns con-
Focalizaremos, para concluir nossas reflexões tra os outros.
sobre o VT, os raros textos onde o termo grego
figura, usado pelos LXX. São estes: 2Mac 1.5: c) As circunstâncias. Os textos concordam
"Que Deus ouça vossas súplicas e convosco se em afirmar: cm Jesus Cristo, o Filho (Rm 5),
reconcilie"; 2Mac 5.20: "... por ocasião da o primogénito de tôda a criação (Cl 1.15).
reconciliação com o Senhor"; 7.33: "Deus se Mais determinadamente ainda: Sua morte sôbrc
há de reconciliar de nôvo com seus servos" a cruc. descrita e evocada diversamente nos
9.20. É significativo constatarmos que para a
;

diversos textos pela : —<


cruz, pelo
gue da cruz (sangue evocador, além do sangue
san- —>
piedade judaica da época uma volta à graça apa-
rece inevitavelmente a uma iniciativa
ligada do sacrifício ritual, da morte livremente consen-
humana: arrependei-vos, oferecei sacrifí-
orai, tida) .Cada texto a seu modo corrobora êste
cios e o Senhor se deixará aplacar e afastará depoimento essencial a reconciliação está liga-
:

de vós a sua ira ("Voltai para mim e eu vol- da a um acontecimento que se produziu num lu-
tarei para vós". Esta constatação permitir-nos-á gar e numa hora determinados, através da morte
compreender a extraordinária doutrina do NT. amaldiçoada dum supliciado sôbre um patíbulo.
Portanto a reconciliação origina-se e nasce não
3. Para determinar o sentido que a palavra
da psicologia, da religião, do culto ou do rito.
toma no NT, focalizemos os diversos textos que
mencionam a reconciliação e estudemos quais mas da História. O sentido desta morte aparece
também claramente especificado Cristo morreu :

são o sujeito, o objeto, as circunstâncias e con-


sequências desta.
por nós (Rm 5.6-7) =
vicàriamente em nosso
lugar; por todos (2Co 5.18-21). êle foram A
a) O sujeito. Em Rm
6.11; 2Co 5.18ss, imputadas nossas ofensas. Êle sofreu o juízo de
Deus é o sujeito, o autor da reconciliação. Em Deus e a condenação da Lei (Ef 2.13ss) e tudo
Cl 1.20-22, é "o pleroma", quer dizer o pró- que oponha os homens. Israel e gentios; êle foi
prio Deus, também, conforme a terminologia vítima, arrastou na sua morte tôda a inimizade
peculiar da Epístola. Efésios declara ser o Cristo (Ef 2.15); sua rejeição prefigurou a rejeição
o autor da reconciliação, salientando porém que de Israel que provocou o acesso à graça para
o Cristo figura lá apenas como o executor do todos. (Ver Rm 11). Numa fórmula lapidária
plano de Deus sobre Israel e as nações. Consta e inesquecível, 2Co 5.21, recapitula: Êle foi fei-
pois unanimidade nos depoimentos sem dúvida :
to pecado por nós.
nenhuma, é Deus só que tem a plena iniciativa
d) As consequências. Aqui especialmente é
desta reconciliação, não intervindo as disposi-
que aparece a novidade que encerra o têrmo
ções de seus parceiros. Deus é quem decidiu,
"reconciliação". Pois a análise precedente bem
realizou e anda continuando esta obra até seu
término "Tudo provém de Deus que nos re-
:
pode convir à —< justificação, à —> re-

conciliou" (2Co 5.18). denção, à salvação, pois todos êstes conceitos


revestem valores mais ou menos idênticos e
b) O objeto. Quem tem sido reconciliado? equivalentes. Embora não faltassem autores para
Responde Rm 5 : N ós, os inimigos de Deus decidirem que a justificação visava o lado pes-
(Não: nós, os crentes!) e 11: O mundo, Rm soal individual da redenção, e a reconciliação o
entendido tecnicamente, isto é, o mundo das seu caráter universal, parece-nos que a justifi-
nações pagãs, até agora privadas da cidadania cação tem por si mesma um aspecto cósmico,
em Israel, alheias às alianças da promessa, sem bem como o juízo último que a tornará patente
espernça e sem Deus (Ef 2.12). Também para para todos. Outros opinaram que a reconcilia-
2Co 5, o objeto da reconciliação é o mundo, ção é o corolário da justificação, opinião pos-
:::

REFEIÇÃO 273

sivelmente bastante exata, todavia evidencia-se nha. Tôdas as decorrências da lei do talião, as
bem difícil estabelecermos uma espécie de cro- hostilidades e maldições tôdas, têm sido assu-
nologia entre os diversos temas de que se vale midas por Cristo, e portanto deixam de circular
o NT para ensinar-nos tòda a plenitude da entre nós não mais têm cursos os ódios, as
:

obra redentora em Jesus Cristo. Se a justifi- vinganças, as represálias e afrontas entre pró-
cação triunfa da Lei, se a redenção vence o pe- ximos ("ouvistes que foi dito... Eu porém vos
cado e a desobediência, a reconciliação, por sua digo..."). Mcditem-se Mt 5.38 e ss Lc 14. ;

vez, remediará a desordem inimiga que tem 12-14, ou Mt 18.23: a parábola do credor in-
transtornado a divina criação. Todos os trechos compassivo). A
extraordinária atitude de Deus
citados coincidem em afirmar taxativamente pretende repercutir através duma atitude ex-
tudo agora mudou, pois, pela sua soberana inter- traordinária da Igreja em face dos homens; pre-
venção, Deus transformou a situação do mundo. cisamente para êste efeito é que foi criado desde
Evidentemente a criação ainda não recebeu sua já o homem nôvo de que fala Ef 2.16.
nova figura, a do último dia, porém, desde já, Também enforcar-se-á o surpreendente para-
como na alvorada, cada ser se banha na luz lelismo entre a reconciliação tal como aparece
invasora. A
cruz tem sido uma sentença de nos textos paulinos e a noção joanina do
morte rematando o passado e inaugurando"
"o-totalmente-diverso". "Para quem está em
—> amor (Veja-se aliás 5.8; "Deus faz
resplandecer o seu amor por nós..." e 2Co
Rm
Cristo, uma nova criação surgiu : as coisas an- 5.14: "O amor de Cristo nos constrange...";
tigas caducaram e tudo se fêz nôvo" (2Co 5. compare-se ljo 4.10: "Xisto consiste o amor:
14-17). A paz se estende ao cosmos inteiro, ao Não fomos nós que amamos a Deus, mas êle
céu bem como à terra, pois tanto o céu como a nos amou. ". .
.

terra acham doravante em Cristo o princípio


Todo o NT
retine com o eco da reconciliação,
de sua reorganização (Cl 1.20). Anova cria- iniciativa soberana de Deus, empreendimento
ção está iniciada em Cristo, no "homem nôvo", vitorioso de Deus que, através da cruz, abriu o
no corpo de Cristo onde são reconciliados e caminho do amor, reconciliando desta maneira
ajuntados sem distinção os judeus e os gentios consigo o mundo que antes nunca tomara a
(Ef 2.15-16). Doravante a graça da aliança iniciativa de qualquer gesto. O NT está aqui
faz-se extensiva a tôdas as nações (Rm 11).
bem consciente da sua oposição radical com
Temos sido feitos "justiça de Deus" (2Co 5. qualquer religião passada ou futura da huma-
21), temos acesso ao Pai (Ef 2.18), somos nidade, pois tem plena consciência de ser, abso-
introduzidos à sua presença, santos e sem má-
lutamente, o evangelho da graça.
cula ( = no sentido cultual), irrepreensíveis
( no sentido legal, pois se trata do Juízo úl-
=: M. BOUTTIER
timo) (Cl 1.22). E, como corolário da recon-
ciliação, temos o penhor da redenção final REFEIÇÃO (Banquete)
portanto podemos ousadamente encaminhar-nos 1 A Bíblia, tão próxima da
. vida, não podia
para o Juízo, com a promessa certa da salvação evitar de mencionar frequentemente as coisas
na mão, seguros de participar da vida de Jesus relativas ao comer e ao beber. Evidente-
Cristo (Rm 5 e 11). Eis porque nos exultamos mente muitas destas alusões não contém qual-
de alegria e de gratidão por causa da graça de quer alcance teológico imediato. No que res-
que temos sido objeto em Jesus Cristo (Rm peita ao comer em geral, salientaremos os pon-
5 e 11). tos seguintes: a) desde a queda (Gn 3.17ss),
Todavia, não está acabada a reconciliação o direito de comer é condicionado ao trabalho
instaurada em Cristo, ela deve continuar na (ver 2Ts 3.6-10) êste direito entretanto deve
;

terra a ressurreição final, da qual aliás


até ser respeitado tôda vez que o trabalho é feito
ela é o evento anunciador (Rm 11.5). Deus (ver ICo 9.4-14) b) o alimento comunica e
;

escolheu portanto embaixadores para exercerem conserva a vida em virtude dum intercâmbio,
o ministério desta reconciliação ( —> minis-
tério), e o Senhor glorificado continua fazendo,
isto é, mediante a destruição de outra vida
(Gn 9.3; Ex 12.1-12; Jo 6.48-58); c) o ali-
através deles, o seu serviço nesta terra, e con- mento é uma graça de Deus merecedora de nos-
vocando a todos os homens "rogamos que vos
: sa gratidão (lTm 4.3ss) consta isso particular-
:

reconcilieis com Deus" (2Co 5.20). mente no fato de Deus alimentar e dessedentar
o seu povo (Ex 15.22ss; 16.1.36; 17.1-7; Jo
4. Quem pretender examinar tôdas as conse-
2.1-10; Mt 14.13-21) ou os seus servos (lRs
quências da reconciliação, deverá mencionar tam
17.4,9; Mt 4.11); consta também da necessi-
bém, mesmo quando o termo não figura expli-
dade de orar pelo pão de cada dia (Mt 6.11
NT
citamente nos textos, os muitos lugares do
que anunciavam um nôvo comportamento do par). ( —> Pão).
homem reconciliado perante o sen próximo. A 2. Os banquetes
e refeições têm na opinião
pregação de Jesus, antecipadamente, delimita da Bíblia outro alcance muito mais profundo:
os traços desta novidade no sermão da Monta- são fontes e sinais de comunhão mediante o :
:

274 REINO

jantar, um laço "metafísico" estabelece-se entre reservar para Deus a gordura (== o pão de
os comensais. "O
da bênção que aben-
cálice Deus, Lv 3.11 ; Nm
28.2) que o sacerdote deita
çoamos (= consagramos) e o pão que parti- sóbre as brasas do altar (— mesa de Deus, Ml
mos, não fazem porventura de nós um sangue e 1.7.12), o sacrificador e seus convidados co-
um corpo com Jesus Cristo? Como há um pão mem a carne da vítima (ISm 1.3ss; 9.13ss.
só, embora nós sejamos muitos, assim nós so- etc). Desta maneira estabelece-se uma comu-
mos um corpo só, porque todos temos parte nhão não apenas entre os comensais, mas entre
deste único pão" (ICo 10.16-17). Afirmação êstes e Deus, o Senhor da aliança (Ex 24.
paulina que, de modo muito exato, resume a 3-11; Dt 27.7; SI 50.5, etc). Conforme o NT,
comunhão realizada entre os comensais de qual-
quer refeição o fato de participarem todos da
:
pela ceia eucaristica (
uma comunhão,
—>
Eucaristia) cria-se
documenta-se um pac-
sela-se e
mesma fonte de vida, cria entre os convidados Quiçá São Pau-
to entre Jesus Cristo e os seus.
uma identidade de vida. lo não dista muito de contemplar a ceia cristã
através da perspectiva vetero-testamentária dos
a) Esta comunhão estabelece-se primeira- "sacrifícios de comunhão" : insinuação confir-
mente no plano humano, ou seja entre os ho- mada por ICo onde a polémica contra as
8-10,
mens comer juntos une, ou confirma a união,
:
comidas cultuais pagãs é baseada sôbre a euca-
sela uma aliança (Gn 26.26-31; 31.45-55; Js ristia e o seu eminente alcance unitivo e comu-
9.3-19). Daí que seja tão digno de vitupério nitário.
que um comensal traia esta comunidade (SI
41.10; ver Jo 13.18,26-27; Mt 26,23 par); daí d) A refeição comunitária desempenha um
que tôda a diplomacia de José seja necessária grande papel nas esperanças do povo de Deus
para conseguir fazer comer juntos egípcios e é prometido a êste o banquete messiânico (Is
seus irmãos (Gn 43.32). Pois, comer juntos 25.6; 34.6ss; Sf 1.7, etc), banquete esperado
compromete e une. Resulta assim bem com- também pela Igreja (Mt 8.11; 26.29; Lc 22.
preensível a violência com que Paulo lutou em 29-30) êste banquete escatológico, porém, ban-
Antioquia para impedir que os judeus conver- quete das bodas do Cordeiro (Mt 22.2ss; Ap
tidos a Cristo e os pagãos cristãos se separem 19.9), já se antecipa nas refeições que Jesus
para suas refeições eucarísticas, pois tal sepa- toma com os seus (Mt 11.16-19; Jo 2.1-10),
ração equivalia a uma total ruptura da unidade na multiplicação dos pães (Mt 14.13-21 par),
da Igreja (Gl 2.11ss); compreensível também nas comidas nas quais participa Jesus ressusci-
o vigor com que o apóstolo proibe a comunhão tado (Lc 24.30-31; 41 ss Jo 21.9ss; At 10.41).
;

da ceia com aquêles que pecando comprome- e, resumindo todas estas refeições, na eucaris-

tiam a santidade da Igreja (ICo 5.11). tia (ver ICo 11.26; Ap 3.20), por cujo moti-
vo a primitiva Igreja soía celebrar a ceia na
b) Esta comunhão se estabelece, em segundo alegria da salvação (At 2.46; 16.24).
lugar, no plano religioso : entre os homens e os e) Quando vemos a Igreja dos apóstolos ne-
deuses. Eis porque Deus se irrita tanto contra gar a comensalidade com os pecadores (ICo 5.
os membros de Israel que, seduzidos pelas fi- 11), cabe perguntar se, assim fazendo, ela não
lhas Moabe, tomaram parte em banquetes
de contradizia o seu próprio Senhor que não va-
celebrados em honra a Baal-Pe or (Nm 25.1-5), cilava em comer com os pecadores (Mc 2.15ss
e geralmente contra todos os que violavam a par; Lc 15.2; contudo, ver At 11.3). Isso nos
antiga aliança participando de festas pagãs leva a notar os dois pontos seguintes primei- :

(Jz 9.27; Ez 18.6, 11,15; 22.9. etc). Pois pela ramente, aceitando comer com os pecadores.
comensalidade com as divindades pagãs cria-se Jesus (como outrora no seu batismo) se soli-
uma unidade, comparável à cópula sexual to- : dariza com êles declarando que por êles é que
mar parte em banquetes pagãos constitui por- veio; e a Igreja, por sua vez, embora não proi-
tanto, para Israel, uma espécie de prostituição. bisse comer com pecadores ainda não membros
Sôbre esta base é que podemos compreender os de Cristo (ICo 5.10; 8.7ss; 10.25-31), não
textos paulinos relativos às carnes imoladas pode tolerar no seu próprio seio os escandalosos
aos ídolos (ver ICo 8-10). que desmentem sua santidade, pois ela é, desde
c) Se autoras bíblicos manifestam tanta o dia de Pentecostes, o corpo de Cristo e o
hostilidade à presença de israelitas e cristãos Templo do Espírito.
nos banquetes sacrificiais dos gentios, é porque A. LELIÈVRE
sabem que Deus e Cristo também desejam unir-
se a Israel ou à Igreja mediante banquetes. O
REINO
VT conhece certos —>
sacrifícios, comumente
chamados "sacrifícios de ações de graça" embora
O repetidíssimo uso deste têrmo no NT, par-
ticularmente nos Evangelhos sinóticos, sem qual-
seria preferível chamá-los com os "sacri- LXX quer definição ou explicação, mostra claramente
fícios de paz", e "sacrifícios de comunhão" (Lv que designava uma realidade bastante familiar
3.1ss; 19.5ss) Depois de sangrar a vítima e
: aos ouvintes de Jesus e aos cristãos da primeira
REINO 275

geração. Trata-se de fato duma noção muito 1. O Evangelho do reino. Esta expressão dá
em favor na literatura apocalíptica do 1.° século razão de um acontecimento a proclamação do
:

antes de Cristo que, ademais, a emprestara,


;
reino, a promulgação sobre a terra e dentro da
por sua vez, dos escritos do VT. Pois, não so- História dos homens, da decisão soberana de
mente os Salmos e os Profetas, mas os documen- Deus de manifestar e exercer agora sua realeza.
tos mais arcaicos da antiga Lei conhecem o Não fica portanto lugar para conceber o reino
"reino de Iavé" ou "o reino dos céus" (Nm de Deus como um "soberano bem", um ideal pro-
23.21; Dt 33.5). Expressões que não desig- posto ao esforço e prometido ao logro huma-
nam o lugar ou extensão do reino de Deus (co- no ainda menos como um estado ou um lugar
;

mo poderia sugerir o nosso moderno termo de privilegiado. É pelo contrário, o reino que vem
reino), mas simplesmente o fato de que Deus a nós, que entra dentro em nós, perguntando-
é rei, o reinado e o senhorio de Deus. Êste rei- nos se lhe pertencemos ou não, se estamos dis-
nado pode ser contestado, desconhecido e mesmo postos a recebê-lo, a nêle participar, sofrer a sua
rejeitado, mas nem por isso deixa de existir vinda e compreender o seu ministério. Ora, a
atualmente, porquanto é "de Deus" ou "dos maneira de o reino apresentar-se aos homens, a
céus" ; esta precisão demonstra que o reino forma de êle vir, qual é? Em primeiro lugar
de Deus não fica manifesto neste mundo divi-
dido em muitos reinos terrestres, mas que "o
e essencialmente é —>a Palavra: "a Pala-
vra do reino", que Cristo prega, esta boa nova
dia vem" em que terá de manifestar-se plena- que veio trazer ao mundo (Lc 4.43; 8.1; 9.11;
mente, em que o reino de Deus se estenderá 16.16). Esta pregação faz-se geralmente em
ao mundo inteiro e à criação universal, tanto
terrestre como celeste. Esta "vinda" do reino de
—> parábolas, quer dizer de maneira indireta,
escondida, por analogia, pois a vinda do reino
Deus, manifestação poderosa e gloriosa da jus-
tiça e misericórdia divinas, está relacionada (na
constitui um —>mistério cuja penetração é
possível somente àqueles que têm olhos para
literatura post-exílica) ao advento do Messias- ver e ouvidos para ouvir (Mt 13.10-17). Jesus
Rei, filho de Davi, e Filho do Homem, a quem confirma sua pregação com atos prega o evan-
:

será conferido o reinado do próprio Iavé. Seja gelho do reino e cura, prega e expulsa demó-
qual fôr a forma e o conteúdo desta deradeira
manifestação da real soberania de Deus nos
nios, prega e opera "obras de poder", —>
lagres, sinais. Estas obras são parte integrante
mi-

últimos tempos, a esperança do reino de Deus


da própria mensagem, acompanham-na e subli-
constituía o elemento principal das esperanças
nham-na. Os evangelistas declaram categorica-
e da piedade desses "temerosos de Deus" que
menciona o NT fora das comunidades judias. É mente que êstes sinais são a confirmação de
ela que, mesmo quando expressa sem discerni- quanto prometeu a Palavra de Deus (Mt 8.17)
mento, ecoa intimamente na pregação do Batista e o próprio Jesus assim o declara aos discípu-
e do próprio Cristo (Lc 17.20; 19.11; Mc los de João Batista (Mt 11.4-5), aludindo dire-
12.34; 15.43, ver o episódio da entrada em tamente à profecia de Isaías que dá as carac-
Jerusalém: Mc 11.10 par). terísticas da vinda do reino (Is 29.18-19; 35.
Consta pois que, ao falar do reino de Deus 5-6; 61 lss) Pregação e sinais do reino atestam
. .

(ou, em Mateus, do reino dos céus), do reino pois a realidade da presença do reino eterno
do Filho do Homem, Jesus empresta um tema de Deus que agora se manifesta, e ao mesmo
muito familiar aos seus ouvintes. O assunto não tempo confere a Jesus esta "autoridade" que
é nôvo. Nova é a afirmação de que "o tempo tanto surpreende os ouvintes (Mt 7.29; Mc 1.
cumprido está" e que "o reino agora se apro- 27), e cuja origem êle se nega revelar (Mt 21.
ximou" esta é a novidade própria do 23-27), embora deixando evidente que ela vem
—>
:

Evangelho, da "boa nova" anunciada por de Deus (Mt 12.25-28). De maneira especial
Jesus e confiada ao apostolado dos Doze. Nas mediante a expulsão dos demónios, Jesus deixa
numerosas referências à pregação do Mestre ver que a sua presença e o seu ministério signi-
conservadas pelos Evangelhos, os diversos ver- ficam a irrupção, dentro do mundo" sujeito à
bos que dizem respeito ao reino salientam inva- vaidade", da potência libertadora do Senhor en-
riavelmente esta vinda, proximidade e iminên- trando em posse do reino. Assim a realeza de
cia de Deus entre nós, mormente entre o seu Deus surge no horizonte e brota "como uma
povo, para manifestar o seu senhorio sobe- semente confiada à terra", precisamente àquela
rano (Mc 1.15; Mt 3.2; 4.17; 10.7; Lc 10. terra até agora entregue ao senhorio diabólico,
9-11; 21.31, etc). Em
declaração de Jesus, o embora o seu legítimo Senhor e Rei seja o
tempo (o momento) que, na pregação profética, Deus celeste. Não é de jeito nenhum por ca-
estava "por vir", está agora em via de cumpri- sualidade que Jesus emprega figuras e imagens,
mento, está se realizando, está se tornando pre- como as da semente, da luz, das lâmpadas ace-
sente; precisamente nesta declaração é que con- sas, do germe que cresce, do fermento que le-
siste essencialmente a novidade e que reside o veda; pois elas ilustram já nas profecias do
conteúdo próprio do Evangelho. VT e nos Salmos a vinda do reino messiânico
276 REINO

(lRs 11.36; 2Cr 21.7; 119.105; Os 2.23s; 19.28-30) e aceitam seguir a Jesus no caminho
Jr 31.27; Is 55.10, etc). da renúncia e do sacrifício (Mc 9.47; Mt 19.
Finalmente a pregação do reino que vem, e 12; Lc 9.60-62). Pobreza, pequenez, humildade
que pela fé deve ser discernido através das pa- não são virtudes que nos tornam dignos de en-
rábolas e dos milagres de Jesus, concentra-se trarmos no reino, mas elas são o sinal e o
sobre a própria pessoa de Jesus, o seu prega- fruto do verdadeiro arrependimento e da fé
dor. Pois, na realidade, Jesus não é apenas o autêntica que a Palavra de Jesus suscita no
pregador do reino, mas carrega o reino sobre coração. Convém observar aqui que o Sermão
si e o realiza em si. O mistério do reino vem da Montanha, que tantas vêzes é chamado pelos
a ser pois o mistério messiânico de Jesus. Por- intérpretes de a Carta Magna, a nova Lei do
que Jesus é presente, é presente também o rei- reino, não pode ser comprendido como tal a
no na própria presença secreta dêle (Mt 12. não ser que seja não apenas pregado por Je-
28). Tal parece ser o significado da resposta sus, mas também cumprido por Jesus. A en-

de Jesus àqueles que lhe perguntam quando virá trada ao reino identifica-se com o movimento
o reino de Deus "Não vem o reino de Deus
:
e a decisão da fé no próprio Jesus seu rei. A
como alguma coisa que possamos espreitar. Não vinda do reino, afinal de contas, deve entender-
dirão: Ei-lo aqui ou lá está! porque o reino se na sua relação com a pessoa e o ministério de
de Deus está dentro em vós" (Lc 17.20-21). A Jesus Cristo. O cumprimento por Jesus e em
luz desta correlação estreita entre a vinda do Jesus da justiça real de Deus é que possibilita
reino e a presença de Jesus torna-se clara a a revelação derradeira e plena desta "realeza
palavra misteriosa de Mateus 11.12: "Desde de cima" que clausurará todos os tempos e to-
o dia de São João Batista até agora o reino das as esperas "ajuntando todas as coisas" sob
dos céus é forçado e os violentos se apoderam o cetro do Rei dos reis e do Senhor dos Se-
dêle". Lucas no texto paralelo (7.24-35; 16. nhores.
16) escreve simplesmente "o Evangelho do rei- 3. O reino de Deus e a realeza de Jesus Cristo
no de Deus é anunciado". Ambas as versões se De tôda evidência, conforme o próprio testemu-
harmonizam, pois é precisamente o anúncio do nho da História evangélica, o ministério inteiro
reino e sua presença na pessoa do seu rei Je-
de Jesus dirige e leva ao acontecimento central
sus que provocam a violência da fé, a decisão
de sua morte na cruz e de sua ressurreição. A
vitoriosa pela qual se entra ao reino. Cabe por •

proclamação do reino, o anúncio de sua vinda


tanto dizer que, ao pregar o reino, Jesus se
iminente e de sua manifestação não rematam
prega a si próprio. O Evangelho não é ape-
num advento glorioso, numa tomada de poder
nas a mensagem de Jesus, mas a mensagem
ou intronização, mas, pelo contrário, na cruci-
relativa a Jesus. Por cuja razão a entrada ao
fixão e morte do Messias, Rei de Israel. Todo
reino está condicionada totalmente à fé em Je
o drama do ministério de Jesus no seio de seu
sus Cristo.
povo se desenvolve em torno dessa pedra de
2. A
entrada no reino. Toda a virulenta an tropeço e dessa rocha de escândalo na qual os
gústia da —> pregação evangélica provém da
problemática da entrada no reino de Deus. Pois.
próprios discípulos escorregam :
"É necessário
que o Filho do Homem sofra muitas coisas, seja
além de ser promessa, proclamação, boa nova crucificado e depois de três dias ressuscite"
do acontecimento, a pregação é também apelo (Mc 8.31 par; 9.31 par; etc). Mais ainda, será
ao —> arrependimento e à fé: "O tempo
cumprido está, o reino dos céus está próximo.
precisamente porque Jesus afirmou ser o Mes-
sias e pretendeu ser o Filho de Deus, o rei do
Arrependei-vos e crede no Evangelho" (Mc reino dos céus, que êle haverá de ser rejeitado
1.15). Certamente não contradiz o significado e crucificado como "rei dos Judeus". Assim o
profundo destas expressões quem as entender mistério do reino reside não apenas no fato de
na sua relação com a vinda do reino o arre- : sua presença invisível na pessoa daquele Jesus
pendimento implica na grande mudança, no que o traz para nós em forma de palavra e pro-
grande retorno, na conversão do homem, no messa mas também no fato de se estender to-
;

abandono do próprio senhorio bem como da talmente para além do têrmo da História ter-
própria justiça; e a fé, por sua vez, implica restre de Jesus enquanto esta História termina
:

na aceitação e no reconhecimento da realeza com o cumprimento da cruz, o reino de Deus só


e da justiça de Deus. Assim consta que todas virá quando fór cumprida e manifesta total e
as condições de entrada ao reino reduzem-se
invencivelmente a esta dupla exigência: ao
radicalmente a —> justiça de Deus, isto é.
sua vitória sobre a injustiça dêste mundo. "Ago-
—> arrependimento e à fé. —>
O reino é
dado àqueles que o esperam, buscam e desejam
ra o meu reino não é dêste mundo", diz Jesus
a Pilatos (Jo 18.36). Deixando de lado a ques-
como seu único tesouro é dado aos "pobres",
; tão de quando esta realeza será manifesta no
aos que se fazem "humildes como criancinhas"
(Mt 18.3-4), aos que "nascem novamente" (Jo
porvir ( —> Advento), digamos que Jesus
ensinou aos discípulos que esta manifestação
3.3-5), aos que tudo deixam por sua causa (Mt derradeira do reino fica subordinada a s*ia
REMANESCENTE 277

própria vinda gloriosa depois de sua morte e (Rm 14.17; ITs 2.12; 2Ts 1 .
5 ; 2Pe 1 . 11 ;
Tg
ressurreição. O relato da última ceia pascal 2.5; 2Tm 4.1).
e da instituição da Eucaristia, se bem orientado Sujeita ao reino de Cristo cuja realeza con-
para o iminente cumprimento do sacrifício da fessa e proclama, a Igreja não constitui o reino
cruz, orienta-se ainda mais para o derradeiro de Deus até o fim ela somente pode anunciar
;

cumprimento do reino de Deus (Mt 26.29; Mc o reino como objeto de sua esperança e da es-
14.25; Lc 22.16-18). Neste relato, conforme perança do mundo. Pois se, desde já, ela pode
Lucas, declara Jesus "Vós sois os que tendes
:
recolher as sinais precursores do mundo nôvo. o
permançcido comigo nas minhas provações. As- reino atual de Jesus Cristo não se distingue
sim como meu Pai me confiou um reino, eu vô-lo pela razão, mas unicamente pela fé, enquanto es-
confio para que bebais e comais à minha mesa peramos o dia em que entregará ao Pai o reino
no meu reino" (Lc 22.28-30). Jesus, pois, dis- cabal e completo depois da derrota do "supremo
põe do reino a favor dos seus, precisamente a
favor dos que, participes das suas provações,
inimigo: a —>
morte". (ICo 15.24 ss). En-
tretanto a Igreja não tem mais outro poder se-
do corpo e do sangue entregues por êles, terão não o da oração: "Vem, Senhor Jesus!" (ICo
parte também no banquete celeste e "se sen- 16.22; Ap 22.17) até que ressoe a grande voz
tarão com o rei para julgar as doze tribos de do Apocalipse Agora chegou a salvação, o po-
:
'

Israel". der e o reino do nosso Deus juntamente com a


autoridade do seu Cristo!" (Ap 12.10; 11.15).
Convém a distinção, luminosamente
anotar
estabelecida mercê dos trabalhos de O. Cull- H. ROUX
mann, entre o reino de Deus e o reinado de
Cristo. Pois os textos falam ora em reino de REMANESCENTE
Deus, ora em reinado ou reino do Filho (do
Quatro têrmos hebraicos são traduzidos por
Filho do Homem). Ver Mt 26.29 e 16.28. A
nossas palavras de restos ou remanescentes dois :
distinção não visa o conteúdo de ambas as no-
nossas palavras de restos ou remanescentes:
ções pois elas dizem respeito à mesma reali-
dois designam os sobreviventes salvos dalgum
dade, mas visam a diferença temporal entre o
perigo; um terceiro conota a existência dum
reinado de Cristo e o próprio reino. Nem bem
excedente, e o quarto designa aquilo que fica
cumprida a salvação mediante a justiça da cruz,
depois duma seleção, segregação ou depuração.
Jesus Cristo ressuscita e logo é elevado à des-
tra de Deus, entra na sua glória e toma posse
Êstes têrmos são usados com frequência na sua
de sua realeza onipotente (Lc 24.26; Mt 28.18). acepção corrente, sem qualquer implicação teo-
lógica. Por sua vez, a conhecida noção de "o
O reino de Cristo começa portanto com a As-
censão e, já no Pentecoste, pode o Espírito remanescente de Israel" nem sempre necessita
dêles para fazer-se presente na idologia bíblica.
Santo proclamar pela boca dos apóstolos "A :

êste Jesus que vós crucificastes, Deus o jêz


1 . O
resto, obra do julgamento de Deus. No
Senhor e Cristo" (At 2.36). Logo, o reinado VT "o resto de Israel", "o remanescente de
de Cristo vigora desde já na terra e nos céus.
Israel" provém, regra geral, de alguma catás-
Esta é a certeza que anima a Igreja e dá base
trofe que destruiu o conjunto do povo, seja ela
à pregação apostólica. Porém, o reino de Deus
de natureza física como o dilúvio, seja mais
fica todo no futuro, sua manifestação depende
ordinariamente de ordem militar como a queda
da incidência final do tempo e será marcada,
então, pela segunda vinda de Jesus Cristo (At
de Jerusalém no ano 586. A
ausência de "resto"
para os Filiteus, bem como a conservação de
1.11). A
pregação e o anúncio do reino de
"um resto" para Israel, são devidas não a aci-
Deus que constituía a substância mesma da men-
dentes inerentes à História, mas ao juízo sobe-
sagem de Jesus, permanece mensagem da Igreja
rano que Deus, mediante a História, exerce so-
que testemunha ser êle o Senhor.
bre os homens.

4. O reino de Deus e a —> Igreja. Para Falar do "resto de Israel", na era das grandes
os Apóstolos o reino na realidade, objeto de
é,
derrotas militares dos 8.° e 9.° séculos antes
pregação (At 19.8; 20.25; 28.23). Pregar a de Cristo, equivale evocar a ira de Deus contra
Jesus Cristo crucificado e ressuscitado, e pre- os pecados de Israel. A maior reducião do resto
gar o reino de Deus são uma só e mesma coisa, correspondente sempre maior destruição e maior
uma vez que é pela sua morte e ressurreição que pecado. Deus julga êsse pecado destruíindo o
Jesus veio a ser Senhor, sendo ademais a fé conjunto do povo. O remanescente aparece pois
no seu nome a que merece o perdão dos peca- como o testemunho da ira divina sobre o con-
dos e a admissão ao reino. Paulo designa fre- junto. "Subsiste apenas um resto". O resto,
qúentamente o reino como a —>
herança
prometida ao crente (ICo 6.9-10; 15.50; G1
pela sua mera subsistência, constitui
forma o documento justificativo testemunho a
em certa

1.13) e situa tôda sua ética na perspectiva da


; destruição do conjunto (Am 3.12: "Como <>
vinda do reino mediante a parusia de Cristo pastor livra da bôca do leão as duas pernas,
278 REMANESCENTE

ou a ponta da orelha, assim serão salvos os Aredução numérica dos membros que Deus
filhos de Israel, instalados na Samaria num considera como seus não afeta absolutamente as
canto de cama, numa parte de leito". coisas o povo continua, pouco importando sua
:

Êste remanescente atesta, às vêzes, além da extensão, número, identidade ou qualidades. To-
condenação dos demais, a própria rejeição (Ez da previsão humana sai frustrada: assim, na
14.21-23), desempenhando o papel dêste "vaso época dos Reis, não será a tribo de José, filho
de ira" no qual Deus decretou manifestar o mais ilustre de Jacó na perspectiva do Génesis,
seu justo juízo sobre o pecado. Daí as grandio- nem Efraim o grupo mais povoado, que consti-
sas imagens com que descrevem-no os profe- tuirão o "resto", mas a tribo de Judá. Nenhum
tas rebusco das uvas esquecidas pelos vinha-
:
critério moral preside a seleição dos restantes,

teiros, respiga depois da ceifa, joeira desespe- finbora certos profetas salientem os traços de
rada em procura do grão olvidado (Am 9.8ss: justiça, fé e obediência (Sf 3.12-13), ou a pe-
Ez 17.5-6; Jr 6.9). quenês social dos que formarão o remanescente
(Jr 23.3; Is 7.22); tais traços particulares
2. O resto, obra da graça de Deus. "Um re>- distam de caracterizar o resto. Pois o resto não
to, porém subsiste". Não em
virtude dêsse refle- representa qualquer grupo humano determinável
xo imanente da História que preserva minorias, naturalmente, nem qualquer casta moral ou so-
ou da astúcia e poder de certos indivíduos que cial .de homens. Disso nos dão evidências os
conseguem escapar ao desastre e formar uma textos de Ez 14.12-23, e de Lc 13.1ss (queda
reserva (Am 2.14ss; 9,lss). da torre de Siloé) ambos afirmam a solidarie-
:

Aconservação de alguns é um milagre do dade da vida e a identidade de conduta entre


próprio Deus pois exclusivamente Deus con-
: o conjunto e o remanescente (aliás não faltam
cede êste favor imprevisível e meramente gra- os textos proféticos que exigem conversão e
tuito de deixar subsistir uma reserva no meio arrependimento precisamente dêsses restantes
das piores catástrofes. ímpios: Is 4.3; 10.20; Ez 11.18-19; Jr 24.
Os preservados não devem sua salvação à 6-7).
pureza de sua vida, a seu arrependimento, a A identidade do "resto" é um mistério fun-
qualquer título pessoal, nada devem a coorde-
nadas institucionais. O resto é o aspeto caris-
dado exclusivamente sôbre a
ção de Deus. Êle se reserva a escolha daqueles
livre —> elei-

mático do pqvo de Deus nas horas críticas. Os que formarão o resto preservado (ver lRs
acápites § 3 e 4 mostrarão que êste aspecto, 19.18).
longe de ser oposto à instituição do povo de
Deus, é a sua manifestação. 4. Relações do resto com o povo futuro. Con-
Portanto o "resto" é obra de Deus (Is 1.9). tinuação do conjunto destruído, o resto é estrei-
Sua sobrevivência atesta o duplo exercício da tamente ligado ao povo do porvir. Forma de
justiça e da misericórdia através da História. certo modo a ponte entre dois momentos
os
O VT não concebe estas duas atitudes divinas históricos de Israel, entre omomento da pro-
como dois movimentos interiores e opostos no messa fundação e o
e momento do cumpri-
coração da divindade. Deus não exerce, por mento. O
resto somente subsiste em vista dêste
um lado, sua ira sobre uns, e por outro lado povo escatológico, por êle torna-se ingente mul-
sua clemência sobre os restantes trata-se ape-:
tidão (Ex 32.10; Nm 14.12; Is 60.21-22).
nas de ambos os aspectos da mesma obra, de.
pois, por meio do remanescente preservado, é
ambas as maneiras de Deus manifestar o seu que a vida do povo antigo será transmitida ao
eterno amor para com o seu povo. Destarte
povo do porvir (Mq 4.6-8; Is 37.31-32).
permanece Deus fiel às promessas feitas e as
Paralelamente à imagem dum resto destinado
torna possíveis a despeito do pecado (Jr 31.
a ser o ponto de ajuntamento (Is 30.17), ou-
2-3).
iros textos salientam o papel importantíssimo
3. Relações entre o resto e a parte destruída dêsse remanescente : instrumento da graça de
de Israel. O resto de Israel fundamentalmente Deus para com os demais, canal estreito pelo
não difere do conjunto destruído. Pois, neste qual Deus repartirá sua misericórdia (Gn 18.
remanescente o antigo Israel vai continuar vi- 26; Jr 5.1; Mq 5.6). O ofício destinado a
vendo nêle é preservada a vida do povo eleito
:
Israel e sua responsabilidade para com as na-
através do julgamento catastrófico de Deus. ções (Gn 12.2; Ex 19.6) incumbem agora ao
Êste remanescente é que constitui a continuação "resto" perante os demais membros do povo
o prolongamento do povo antigo, nunca vindo
a ser uma comunidade nova que substituísse a
de Deus, incumbem especialmente ao
de Iavé do segundo Isaías (49.5-6; 53).
servo —>
antiga (Is 6.13).
Avida do antigo Israel reconcentra-se, coa- 5. Relações do resto com o Messias. O resto
gula-se nalguma forma neste resto, sobre o do povo, comparado amiúde ao tôco do carva-
qual as promessas feitas ao conjunto se dão lho abatido ou do terebinto derrubado (Is 6.13),
cita agora. deve ser comparado ao Messias, que também
REMANESCENTE 279

foicomparado ao renovo, ao rebento (Is 4.2; criarem-no, demarcarem bem os seus contornos.
H.l; 53.2; Ez 17.22; SI 80.15ss). Assim fazendo, êles negam o caráter instantâneo
Na
realidade o coração e a medula do resto do resto característica fundamental da "seita"
:

é o Messias. Êle vivifica e reanima somente :


é precisamente negar a História para lhe subs-
tituir uma idéia, uma regra que possa uma vez
em tórno dêle é feito possível um resto, por-
quanto nêle é que são enxertados os membros por tôdas operar a discriminação entre os ho-
restantes para participarem de sua vida (Jr mens.
23.3-6; Mq 2.12-13; 5.1-8). A seita constitui-se afci própria; delimita suas

Quando representamos geometricamente o es- fronteiras conforme de ordem moral,


critérios

quema da História da revelaçãj, podemos com- teológica ou social pretende ser separada dos
;

parar a seu desenvolvimento a um cone cuja demais, abandonando-os a sua perdição e guar-
base sentada no Êxodo do Egito vai reduzindo- dando para si exclusivamente o monopólio da
se ao longo dos séculos, ficando no cimo um vida divina tem em si mesma o seu fim não
; ;

resto cada vez menor, finalmente reduzido ao mais é um órgão de transmissão da vida e da
"único restante", Jesus Cristo, que "resta" atra- graça, mas uma "auto-conservação". Daí os
vés da morte na cruz e da ressurreição. Em seus traços próprios orgulho, egoísmo e au-
:

Jesus Cristo cumpre-se a dupla obra de Deus. o sência de amor fraterno.


julgamento e a graça (ver § 1 e 2). Os profetas Jeremias e Ezequiel nos descre-
ÍL bem esquema dos Evan-
significativo êste vem repetidas vêzes homens que pretendem re-
gelhos : o menino Jesus escapa só da chacina ferir para o futuro o atual remanescente e ligar
cios santos inocentes a redução progressiva de
;
sua existência a outra coisa que não à livre
seu séquito durante o ministério galileu as
:
iniciativa de Deus:

grandes turbas, logo o abandono de muitos, in- Após a destruição do reino de Samaria, in-
clusive de discípulos (Jo 6.66), a deserção de tenta-se ver no reino de Judá o verdadeiro rema-
Judas, a fuga dos Onze, finalmente Jesus fica nescente (Is 28.5) logo, após ambas depor
;

só, pendurado na cruz. tações de hieroso-limitas, os felizardos que lou-


O têrmo grego "/>o//ín" traduzido em portu- graram permanecer na terra santa, ou na cidade
guês por "muitos" (Mt 20.28; 26.28) designa do Templo, ou também as pessoas ligadas aos
o conjunto dos homens em oposição a Jesus, últimos pequenos reis de Judá reinvindicam o
"único restante". título de remanescentes de Israel. Por fim, des-

Depois da ressurreição, o cumprimento e per- truído o Templo, procura-se o resto de Israel


feição da História da Salvação não mais com- em tórno de Guedalia e depois da fuga ao ;

porta o princípio do "resto". A êste respeito o Egito, os Israelitas intentam cerciorar-se de


Livro dos Atos aparece particularmente claro serem êles o resto de Israel assegurando a pre-
com suas menções numéricas crescentes (1.13, sença entre êles do profeta Jeremias (Jr 24;
26; 2.41,47; 5.14 etc) e com seu plano geográ- 40.15; 42; 43). Até nos tempos do próprio
fico salientando a difusão da comunidade cristã Jesus, há círculos fechados de essênios retirados
sobre a terra. Não mais pode subsistir êste mo- no deserto de Judá, e há o partido dos fariseus
vimento de redução cónica próprio do VT pois :
acampado na sua própria justiça e pureza ra-
este era o movimento que conduzia para o Cris- cial, que pretendem ser o remanescente de Is-

to. A Igreja cristã não mais é o "resto" mas o rael; e hoje em dia os Judeus dos cha- EUA
povo do porvir nascido do "resto-Jesus". Agora mam-se a si mesmos "o resto".
a representação geométrica é exatamente o con- Contràriamente a estas concepções antropo-
trário não mais o cone reduzindo-se cada vez
:
cêntricas de "um resto" que os homens pro-
mais, porém o cone expandindo-se a partir da curam delimitar ou criar, a História bíblica
ponta comum. Mesmo quando em determinados
aparece cheia de surprêsas Jacó o filho mais :

momentos da História opera-se uma brutal re-


nôvo, Judá, logo o resto de Judá recrutado
dução numérica (como acontece p.ex. com uma
não entre os nobres e os grandes ou os que
perseguição) não mais se consegue deter esta
expansão pelo contrário, a aparente pausa será ficaram radicados na terra prometida depois da
;

seguida de desenvolvimentos maiores. "O sangue catástrofe de 597, mas entre os primeiros emi-

dos mártires é semente de cristãos". grados, entre os que capitularam e se entre-


garam a Nabucodonosor, entre os infelizes e
6. O resto e o desenvolvimento preparatório
da História da Salvação. Acabamos de ver no
os —> pobres, os famosos "pobres" do Livro
dos Salmos.
capítulo precedente que a coordenada essencial No NT, o "resto de Israel", que misteriosa-
do "resto" é o —>
tempo, durante o qual
Deus prepara sua salvação.
mente subsiste durante o tempo da Igreja, é
constituído pelos judeus-cristãos êstes são o
;

Tanto no curso da História de Israel como penhor da conversão final de todo o Israel (Rm
nos tempos da Igreja, foi grande tentação para 11.1-5).
os teólogos determinarem êsse resto, e mesmo A. LELIÈVRE
. : .

280 RESGATAR

RESGATAR 33.24; IV 6.35; 13.8; Js 43.3-4). No pri-


meiro caso, o resgate consistia geralmente no
Resgatar é uma noção característica da Bí- pagamento de uma soma de dinheiro no se- ;

blia, em particular do VT onde detsempenha, gundo, Deus aceitava, por efeito de uma graça,
em diversos termos hebraicos, um papel social o sangue, isto é, a vida de um animal em troca
e religioso importante. daquela do culpado, a quem considerava desde

VT
êste instante como quite ( —> Sacrifício)

3. Israel conheceu finalmente uma série de


1 . A
noção de resgate aparece a princípio em têrmos equivalentes a nossas palavras, resgatar,
relação ao antigo direito familiar. Estipulava resgate, remir, redentor, os quais não afetam
este que podiam ser resgatados daquele que os qualquer determinação particular, com exceçãu
tinha adquirido, os bens e as pessoas dos pa- de que o resgate tem por objetivo somente os
rentes mais próximos (Lv 25.23-55; cf Rt 2.20; sêres vivos. Tais têrmos, formados pela raiz
4.1-8). Aquele que podia prcvalecer-se deste pdh, servem também para designar o resgate
direito (denominava-se em hebreu o gocl) era de um escravo (Êx 21.8), como o resgate dos
exatamente, como dizem as nossas traduções, o primogénitos e animais consagrados ao Eterno
vingador do sangue êste devia, de certa forma,
:
(Êx 13.1-16; 34.19-20; Nm
3.46-51; 18.15).
resgatar o sangue de seu parente, derramando Aplicam-se da mesma forma ao Eterno enquan-
o do homicida (Nm 35.10-28; Dt 19.1-13; to libertador de seu povo (Dt 7.8; 13.5, etc;
Js 20) 2Sm 7.23; Ne 1.10; SI 25.22; 44.27, etc),
foi dado pelo Segundo Isaías (Is
Êste título ou a determinados de seus membros (2Sm 4.9;
40ss ao Deus de Israel. As versões tradu-
) lRs 1.29; SI 144.10; Jr 15.21; etc). Note-
zem-no pelos termos de salvador ou redentor mos que o VT cita apenas um texto que fala
(Is 41.14; 43.14; 44.24; etc). Revela êle sobre o resgate, pelo Eterno, de tôdas as ini-
as relações estreitas que unem Iavé a seu povo quidades (SI 130.7-8). Tem isto sua expli-
a —>
eleição liga o Eterno a Israel e compro- cação pelo uso regular da instituição sacrifi-
mete-o para com o seu povo como se houvesse cial de expiação. Em compensação, espera-se
parentesco de sangue (cf. Is 41.8). "O Santo que Deus resgate a alma (=a vida) de seus
de Israel é teu redentor", quer dizer, teu Deus fiéis, da morte que os ameaça (SI 34.23;
que, em
virtude de sua santidade, castigou-te e 49.16, etc), e de qualquer outra angústia (SI
vendeu-te como escravo (Is 50.1), é, não obs- 26.11; 31.6, etc). Tal resgate mediante a
tante, teu gocl. Eis porque te resgatou da providência de Deus não implica em resgate
escravidão (Is 43.1-3). Se, conforme afirma real, como já o temos observado: pois Deus

a última citação, o Egito, a Etiópia e Sebá dispõe de tudo na medida de sua soberania
foram dados como resgate por Israel, tal não universal. Salientemos ainda que, enquanto o
pode ser interpretado no sentido de uma tran- verbo "resgatar", estudado no parágrafo 1.
sação real. O profeta contenta-se em aplicar a indica mais determinadamente uma libertação
Deus e à libertação de Israel, apenas na pro- que Deus concede em virtude de sua fidelidade
porção possível, a imagem do resgate. à aliança, de sua responsabilidade para com ò
Individualizando-se, a piedade israelita trans- povo escolhido, êste mesmo verbo, agora, insinua
portou a noção de Deus redentor, do plano mais bem que Deus intervém com absoluta li-
nacional ao plano individual. Desta forma (Jó berdade, e gratuitamente.
19.25) o infeliz clama por assim dizer ao Deus
que o castiga e o torna moribundo, mas que, não
NT
obstante, é seu redentor, seu gocl, o restaurador A idéia de frequente no VT,
resgate, tão
da justiça depois de sua morte. não se apresenta com mesma
assiduidade no
a
2. O VT
conhece ainda outra noção caracte- XT. Mas a despeito disso, ela assume papel
importantíssimo. De fato, além de dar-nos o
rísticado resgate. Expressa-se pela raiz kpr,
significado da morte de Cristo, ela nos faz
de onde provém, por um lado, um nome de uso
compreender o que é a libertação dos fiéis espe-
mais ou menos profano correspondente ao por-
rada para a vinda do Senhor.
tuguês resgate (lit. cobertura), e, por outro
lado, um verbo pertencente quase que exclusi- 1 . Filho do Homem não veio para ser
"O
vamente à linguagem religiosa e até à lingua- servido, mas para servir e dar a sua vida em
gem sacrificial com o significado de expiar, resgate por muitos" (Mc 10.45 Mt 20:28) = :

em geral por meio de um sacrifício sangrento. texto capital ecoado por diversos versículos dos
Trata-se sempre de uma compensação oferecida escritos apostólicos (ICo 6.20; 7.23; lTm 2.6;
para arrebatar à morte ou outra triste sina, Tt 2.14; Hb 9.12; IPe 2.18-19; Ap 5.9).
uma vida humana sentenciada em consequên- Nêle dá Jesus o sentido de sua obra messiânica
cia de uma falta contra os homens ou contra
Deus (Êx 21.30; 30.11-16; 35.31-32; Jó Nm
(

é
—> Jesus, rubrica "Filho do Homem"), que
servir até dar a própria vida, morrendo por
:
. ):

RESSURREIÇÃO 281

aqueles a
serve. quem
Esta morte, declara sob a influência da fé na vinda em breve do
Jesus, o resgate por muitos
constitui em : reino de Deus, um relêvo especial e um des-
troca da vida obterá a libertação de outras taque de particular fervor, cujos ecos ressoam
vidas. Mas, libertação de quê? Libertação ainda em Lc 1.68; 2.38; 21.28. Tal liberta-
apenas do afastamento de Deus, do pecado que ção concebia-se, pois, como total e definitiva.
domina os homens desde que a êle se sujeita- Entrementes, tôda vez que São Paulo fala da
ram. Jesus libertá-los-á padecendo, em seu redenção, alude à realidade, quer ainda espe-
lugar, a morte a que estavam reservados, a rada pelos crentes (Rm 8.23; Ef 1.14; 4.30),
triste morte no abandono, longe de Deus (Mc quer já possuída em Cristo (Rm 3.24; ICo
15.34) resgate que será pago somente a Deus
: 1.30; Ef 1.7; Cl 1.14), pois, para o cristão,
cuja ira santa e justa pesa sôbre os pecadores. a redenção já está presente, pelo menos par-
Jesus não explica porque Deus exige tal res- cialmente, em virtude do Espírito Santo rece-
gate indica apenas o sentido de sua morte, sem
: bido, por cuja razão, sua espera das coisas
dar a razão dela. Esta razão inutilmente a ainda vindouras (a redenção do corpo, a liber-
buscaríamos nas especulações da teologia me- tação da nossa atual forma de existência, etc.
dieval sôbre a natureza de Deus ( nas re- = faz-se mais firme e mais ardorosa.
lações entre a misericórdia e a justiça divinas ;
3. Convém mencionar ainda outro sentido do
ou na divina honra que, ofendida, exige satis-
verbo resgatar, desligado de tudo que precede
fações) ou nas considerações antropocêntricas
;
e que encontramos nos dois textos paralelos de
dos modernos ( =
os homens precisavam de
uma prova de amor ilimitado de Deus) assim :
Ef 5.16 e de Cl 4.5: "remir o —
^> tempo"
(Literalmente resgatar o tempo). Aqui resgatar
buscando, sairíamos do plano onde se move o
significa comprar esgotando até as últimas
pensamento de Jesus. Jesus só cogita em acei-
possibilidades, e tempo designa a ocasião, o mo-
tar as implicações de sua comunhão única com
mento propício, sendo o sentido como segue
o Pai, cumprindo a missão de reconciliar os
lucrar plenamente a ocasião ( Masson ), apro-
homens com Deus. Jesus anuncia simples-
veitar tôda ocasião (Goguel), para testemunhar
mente aos pecadores o perdão de Deus, com
do Cristo mediante vossa conduta (Ef) e vossa
o risco de os desmoralizar, isto é, de os induzir
palavra (Cl).
a minimizar a gravidade do pecado e a perder
/. BURNIER
a fina consciência das exigências divinas. Êste
risco, aliás, será poupado a quem medite na
prova de total sujeição a Deus santíssimo dada
RESSURREIÇÃO
por Jesus aceitando a sentença de morte vicária Para expressar melhor aidéia de ressurrei-
pronunciada contra êle. Para arrancar os ho- ção, a Bíblia (tanto hebraica quanto grega)
mens à dominação do pecado, Jesus teve de usa vários verbos que possuem sentido mais
padecer à vista deles o castigo que lhes estava amplo e mais usual que o próprio têrmo "res-
reservado. Tal foi o preço de nosso acesso à surreição". Êstes verbos significam despertar,
nova vida. à vida feliz de total submissão a suscitar, construir, curar, etc, ou, intransitiva-
Deus mente, levantar-se, aparecer, manifestar-se. Não
Entre os desenvolvimentos teológicos e pa- há, na Bíblia, nenhum têrmo reservado à idéia
renéticos que São Paulo escreveu sôbre êste de ressurreição. O Verbo (egueirein) mais
tema, mencionemos especialmente A) 1 Co 6.20 frequente no NT implica que a ressurreição de
e 7.23: tendo sido reugatados, os cristãos dei- Jesus e dos mortos é essencialmente um ato do
xam de pertcncer-se a si mesmos ou a outros divino poder, enquanto outro verbo (anistanai,
lit. levantar-se, pôr-se de pé) insinua antes a
homens, pois, são de Deus: Bq Gl 3.13 e
vitória da vida sôbre a morte mediante êstes
4.5: numa argumentação para nós difícil, por- ;

têrmos bastante vagos e que não se devem so-


que se conforma aos métodos sutis dos rabinos.
licitar por si mesmos, o contexto bíblico
São Paulo mostra os efeitos do sacrifício de
expressa ideias que não carecem de precisão.
Jesus com respeito à Lei mosaica: nascido sob
a —> Lei, Cristo foi
dos pecadores, o objeto da maldição legal, de
feito, em substituição 1. Comparado às velhas doutrinas de ressur-
reição que caracterizam as antigas religiões do
tal modo que em virtude dêle nada devemos à Próximo-Oriente (Osíris no Egito, Tamuz em
Lei ;
podemos desde já dispensar-nos de sua Babilónia, Attis na Ásia Menor), o VT
reve-
tutela, feitos filhos de Deus que somente de- la-se excessivamente sóbrio com respeito à
pendem de Deus. ressurreição. Deus não é concebido como uma
divindade da fecundidade vegetal ligada à evo-
2. Vimos aparecer na linguagem do VT uma lução das estações mas domina o ciclo das
;

noção da Redenção que abandona praticamente estações e da vegetação não participa do acon-
;

a ideia de resgate e conserva apenas a de li- tecer natural, mas o define e o governa. Por-
bertação. No judaísmo já, e logo no cristia- tanto, Deus não tem motivo para renascer cada
nismo primitivo, esta ideia de libertação tomou. ano, no início da estação chuvosa, nem os ho-
: s:

282 RESSURREIÇÃO

mens motivo para participar e colaborar com da ressurreição relaciona-o a um fato histó-
o drama cósmico mediante magias, celebrações rico muito próximo, isto é, à morte e ressur-
estacionais ou mistérios. No parsismo, con- reição de Jesus. As perspectivas absolutamente
tudo, encontram-se algumas das idéias capitais originais do pensamento cristão primitivo per-
da Bíblia sôbre a ressurreição relacionada a mitem determinar os pontos peculiares que a
um julgamento, ao final dos tempos, de cará- seguir indicamos
ter pessoal, e sôbre a espera duma purificação
a) Os depoimentos mais antigos sôbre o
universal de tôdas as coisas rematando-se numa
próprio fato da ressurreição de Jesus não se
completa restauração da humanidade e do mun-
encontram nos Evangelhos, mas nas Epístola
do. Entre os israelitas, elaborou-se muito tar-
e nos trechos mais arcaicos de Atos (ICo 15.
diamente, isto é, na época do exílio, uma con
4,12; 2Co 4.14; 5.15; Rm 1.4; 4.24-25; 6.4,9;

cepção da ressurreição, aplicada primeiramente


7.4; 8.11,34; 10.9; Gl 1.1; Ef 1.20; Fp 2.
a Davi, pastor ressuscitado de Israel (Ez
9-10; Cl 2.12; lTs 1.10; 4.14; 2Tm 2.8:
34.23-31; 37.24-28), e logo a Israel inteiro
IPe 1.21; At 3.15; 4.10; 5.30; 10.40; 13.30,
restituído à vida pelo poder exclusivo de Deus
37). O traço mais surprendente dêstes textos,
:

"Farei entrar meu espírito em vós e vivereis


é que a ressurreição de Jesus nunca é descrita,
novamente" (Ez 37.1-14. Os 2.16ss e Jr
mas sempres afirmada como um ato do divino
3.19ss; 29.10ss não tratam de ressurreição,
poder tão imprevisível antes de acontecer como
mas do restabelecimento de Israel. Note-se que
inexplicável depois de acontecido. Os apóstolos
no cap. citado de Ezequiel, a idéia de ressur-
não provam a ressurreição de Jesus é para êle^ ;

reição está a serviço da promessa da restaura-


um objeto de fé, mais ainda, a certeza funda-
ção e prosperidade definitiva de Israel) . No mental de sua fé (ICo 15.12). Entretanto, a
cap. 53 de Isaías, parece evidente que uma
ressurreição nunca está reduzida a uma mera
ressurreição é prometida ao servo de Iavé
convicção espiritual do crente pois, por uma
:

(vs. 10-12) em Jo 19.25ss a idéia de ressur-


;

parte, Jesus ressuscitou "segundo as Escrituras"


reição reveste caráter mais individual e desem-
(ICo 15.4), isto é num momento especial e
boca no conceito duma comunhão definitiva com
previsto por Deus da História da Salvação
Deus: "em minha carne verei a Deus". Nos
por outro lado, o Cristo ressurreto "apareceu"
Salmos tardios, finalmente, a idéia duma res-
a homens que podem, na hora ainda em que
surreição pessoal aparece esporadicamente e
Paulo escreve, dar testemunho de tudo que
com extremada sobriedade (SI 16.10-11; 49.16;
73.26; 17.15. O sentido dêstes textos, aliás,
viram. Os —> apóstolos são por definição as
testemunhas da ressurreição de Jesus, no sen-
é muito contestado) .Somente mais tarde, na
tido de testemunhas oculares. Contudo, de con-
apocalítica judia (Is 26.19; Dn 12.1ss), toma
formidade com os textos, Jesus apareceu ape-
consistência e figura e dupla ressurreição de
nas a seus discípulos ou àqueles que tornar-se-
justos e de ímpios e a idéia dum juízo último
seguido de uma total restauração da humani- iam discípulos o testemunho da ressurreição
;

dade (4.° Esdras. Ap de Baruc). Em tempos de Jesus não é pois concebido como uma prova
de Jesus ainda não concordavam todos os dou- conveniente e "objetiva", mas como um depoi-
tores : os saduceus até rejeitavam a idéia da mento de fé com o fito de provocar a fé dos

ressurreição pregoada pelos fariseus (Mc ouvintes.


12.18ss; At 23.6-8. textos corroborados por b) A despeito da desordem que reina nos
depoimentos de Josefo :Guerra judaica II. escritos neo-testamentários no tocante às apa-
8.14). rições do Ressuscitado (principalmente no que
2. Quem abre o NT, não deixa de ver que diz respeito ao lugar e ao número das aparições,
repentinamente a idéia da ressurreição cobra e à data das aparições relativamente à ascensão
uma importância e uma precisão que nada pa- de Jesus), há perfeita concórdia em descrever ao
rece explicar à primeira vista. Sem dúvida a Ressuscitado não como "um espírito puro" mas
intuição básica é idêntica à do VTe do par- como uma pessoa viva revestida de corpo (Mc
sismo a ressurreição de Jesus e dos mortos
:
16.6,11,1,14; Mt 28.6ss; Lc 24.34,39; Jo 20.
aparece não como uma vitória cíclica (esta- 17-19, 26-29) êste corpo aparece, ora idêntico ao
:

cionai) e cósmica da vida sôbre a morte, mas corpo ferido do Jesus terrestre, ora como o "cor
como um ato escatológico de Deus que gratui- po glorificado, espiritual" cuja idéia aparece
tamente põe termino definitivo ao império da freqúentemnte no NT (Mt 22.30 par; ICo 15.
—> morte. A
morte, então, não é conside-
rada como um eclipse provisório da vida, mas
50-52; 2Co 5.1; Fp 3.21). O que pretende sa-
lientar o NT é antes de mais nada a perfeita
como um aniquilamento total do homem, ani- identidade pessoal entre aquêle que sofreu e
quilamento tal que somente a onipotência de aquêle que agora foi elevado. Êste sofrimento
Deus Criador pode fazer o homem "ressurgir". e esta glória comunicam mutuamente o seu sig-
E mais que qualquer outra novidade, o NTtem nificado. Quem quiser permanecer fiel ao NT
a particularidade seguinte tudo que afirma
: não os deve confundir nem separar.
REVELAÇÃO 283

c) De fato, a ressurreição de Jesus, con- 2.12). 4.° —


Ao modo do próprio Jesus, os
forme o NT, não é meramente êste fato histó- ressuscitados não serão puros espíritos, mas re-
rico que acabamos de definir, mas é um julga- vestidos ("por Deus", ICo 13.38, e não em vir-
mento de Deus que, agora, atinge qualquer pes- tude de algum processo de espiritualização)
soa humana. Nenhuma fórmula melhor que Rm dêste mesmo corpo espiritual e incorruptível
4.25 declara êste conceito para nós: "Jesus foi que Cristo, primeiro, revestiu (ICo 15.50-57).
entregue pelas nossas ofensas e ressuscitado para
nossa justificação". O que Deus fez ressuscitan-
5.° — Não faltou quem opinasse que o pensa-
mento paulino evoluiu desde a esperança da res-
do a Jesus, fê-lo por nós, para nossa salvação. surreição futura, recebida do ambiente judaico,
A ressurreição de Jesus expressa pois esta von- até a concepção mais espiritualista duma comu-
tade particular de Deus que, tendo aniquilado nhão individual com o Cristo a iniciar-se logo
o homem pecador, chama-o agora milagrosa- após a morte, concepção haurida da mística he-
mente a uma nova vida. Pela sua ressurreição, lenística então em moda (comparar lTs e ICo
somos restituídos à vida, desde agora, ainda 15 com 2Co 5 e Fp 1.23). Mas tal não pare-
que numa forma por enquanto velada (Rm ce ser a verdade quando muito, admitiremos
:

6.4-11; Gl 2.20; Cl 2.12ss; Ef 2.1,5; 2Co que o Paulo que escreve aos Filipenses não
4.10ss; IPe 1.3). Não é transformado o ho- espera ver, enquanto estiver vivo, a segunda
mem num ser celeste ou imortal, por via de vinda do Cristo porém, o Paulo que suspira
;

magia ou espiritualmente, mas pela pregação por "estar com Cristo" (Fp 1.23) logo após
que lhe aplica pessoalmente o veredito de Deus a morte, aguarda firmemente a consumação fi-
pronunciado uma vez por todas na ressurreição nal da História redentiva de consonância com a
de Jesus; assim, desde já durante sua vida ter- esperança escatológica que domina o seu pen-
restre, o homem reconciliado com Deus é feito samento todo (Fp 3.10-11 20.21 2Co 9.4-14).
; ;

partícipe de Jesus sobre a morte.


P. BONNARD
d) Porém, somente nos últimos dias é que os
efeitos da ressurreição de Jesus para os crentes REVELAÇÃO
aparecerão na sua amplitude total. Desta ressur-
reição final e definitiva, as diversas ressurreições
VT
relatadas pelos Evangelhos são os sinais precur- Deus é o sujeito e o objeto da Revelação, o
sores atestam que os "tempos são cumpridos",
:
autor e o conteúdo da Palavra. O
homem co-
que Jesus é o inaugurador do reino —>
por (
nhece de Deus somente aquilo que Deus lhe
enquanto velado), e que ao império da morte vai comunica eis porque o Deus do VT
é o Deus
—>
:

suceder a vitória da vida (Mc 5.41 par; Lc escondido (Is 45.15) que só pode ser desco-
7.11-17; Jo 11; 5.21; 12.1,9,17). Êste sentido berto na medida que êle mesmo se descubra (Dt
escatológico é que também se deve dar aos 29.28). O
fato da revelação expressa-se na
anúncios da paixão e da ressurreição de Jesus Bíblia com a ajuda dos têrmos seguintes Deus :

frequentes nos sinóticos pois são anunciados


:
se descobre (Gn 35.7), se deixa ver (Gn 12.7).
os sucessivos momentos previstos da História se dá a conhecer (Ex 6.3; Nm
12.6). mani-
da Salvação que todos tendem a restaurar e festa sua vontade, revela os acontecimentos
reconstituir definitivamerte a humanidade sob o
porvir, ou, mais em geral, Deus fala. Relativa-
mando do Ressuscitado (Mt 16.21; Lc 9.22; mente a estas iniciativas de Deus, a atitude do
Mt 17.9,23; 20.19; Mc 14.28). Os Evangelhos homem define-se mediante os verbos ver, con-
aludem esporàdicamente a esta ressurreição do? templar, escutar e conhecer. Deus dá-se a co-
mortos (Mc 12.23ss par; 14.25 par; Mt 8.11; nhecer ao homem, e o homem deve conhecr a
Lc 13.22.30; Mt 25.31.46; Jo 5.28ss; 6.39-40; Deus nestas duas afirmações resume-se tôda a
:

17.24). As Epístolas entram em maiores de-


teologia e tôda a piedade do VT. Êste conhe-
talhes: 1.° —
A ressurreição dos mortos é cimento que de si próprio dá Deus, é uno pelo
absolutamente condicionada pela ressurreição
seu objeto, embora seja múltiplo pelos meios
de Cristo. O —>
homem como tal não tem di- usados sendo Deus o Senhor de todas as coi-
:

reito de ressuscitar não tem, em si, qualquer


;
sas, pode valer-se de tôda a criação para se reve-
princípio de imortalidade (alma ou espírito),
lar, muito embora nenhuma instrumentalidade
mas Cristo ressuscitado é "as primícias dos que
dormiram" (ICo 15.20-23; lTs 4.14). 2.°
A ressurreição geral será o sinal da vitória
— possa expressar a totalidade e plenitude da
divindade.

definitiva do Cristo sobre os seus inimigos, espe- Deus pode aparecer cm pessoa. O VT
cialmente sobre a morte (ICo 15.26). 3.°
Embora se trate principalmente duma ressur-
— 1.

abunda em textos onde Deus aparece e age ao


modo dos homens Iavé fecha a porta da arca
:

reição dos crentes, não deixa de ser pressuposta sobre Noé (Gn 7.16), visita a Abraão e a Lot
e mesmo afirmada amiúde a ressurreição dos operando na sua presença os atos normais de
injustos para o julgamento (At 24.15; Jo 5. um ser humano (Gn 18-19), luta com Jacó
28-29; Mt 11.24; Ap 20.4-5,12-13; lTs 1.9-10; (Gn 32. 24ss), apresenta-se perante Moisés e
.

284 REVELAÇÃO

intenta matá-lo (Ex 4.24), derrota pessoal- (ISm 17.45; 2Sm 6.18; 2Rs 2.24; Am
6.10).
mente o exército egípcio quando da passagem Em certos textos, o nome de Iavé figura como
pelo Mar Vermelho (Ex 14.25-26). Devemos uma realidade própria e como independente da
notar, contudo, que mesmo nas narrativas de mesma pessoa de Iavé, como uma forma de
aparições propriamente ditas, como Ex 24 e
33 e SI 18, Deus envolve sua revelação de mis-
aparição análoga ao anjo ou à face
nos aludidos textos (Ex 23.21; Is 30.27 p.
—> ;

tério e esconde o esplendor de sua majestade ex.) o nome vem a ser então um substituto
detrás duma nuvem SI 18.12 ss).
( de Iavé.

2. Em
geral a visão direia de Deus c reser- 6. O VT, como todas as religiões, conhece a
vada exclusivamente a certos seres especial- revelação de Deus na natureza. Os céus nar-
mente escolhidos para êste desígnio. Moisés ram a glória de Deus (SI 19.2; Is 40.26). Tôda
podia —>
contemplar a face de Deus, porém sob a criação é uma revelação de Deus textos como
:

certas condições. Os profetas afirmam ter visto Gn 1 e o Salmo 104 declaram, pelo mero fato
a Deus. entretanto, mesmo nas visões proféti- de descrever minuciosamente as obras da cria-
cas, Deus permanece o Deus escondido na vi- : ção, que Deus fêz cada coisa no seu devido
são de Isaías (ó.lss) a face de Deus é velada tempo e a colocou no seu exato lugar. natu-A
pelos serafins que, por sua vez, velam o próprio reza vem a ser portanto o espelho de Deus
rosto para não ficarem aniquilados pelo brilho uno e soberano. Entretanto, observa muito jus-
da divina majestade. Isaías é não obstante um tamente O. Procksch (Theol. A.T. p. 82), a
homem que tem recebido uma revelação pes- natureza é apenas a vestimenta de Deus e não
soal de Deus. o seu corpo :nas religiões dos povos vizinhos

3. O
proféticas que
—> sonho, bem diferente
não comportam a inconsciência
das visões
de Israel as divindades são, pelo contrário, quase
sempre identificadas com as forças da natureza.
Entre os elementos da natureza Deus escolhe
(perda da consciência), pode ser outra ocasião alguns preferentemente a outros para que sejam
de revelações. Consta frequentemente nas tradi- o veículo de sua revelação o vento (2Sm 5.24),
:

ções patriarcais (Gn 20.12; 46.2) 41e a. lss ; ; o trovão, chamado de a voz de Deus (SI 18.14;
tradição israelita em conjunto reconhece ser o 29.3), o terremoto Hb 3.6) e sobretudo o fogo
sonho um meio de revelação (Nm 12.6; Dt que, pelo seu aspecto luminoso, simboliza melhor
13.2; ISm 28.6,15; Jó 4.13; Jl 2.28; Dn 2.1 ; a essência da divindade, pois Deus é luz. Con-
7.1), embora mereça, pelo seu caráter ilusó- tudo devemos reconhecer que os fenómenos da
rio e subjetivo, as severas críticas dos profe- natureza servem bem mais para acompanhar que
tas, tanto mais que era praticado pelos pro- para manifestar a divina presença na cena
:

fetas de mentira (Jr 23.25-32; 27.9; Zc 10.2). conhecidíssima de Elias no Monte Horebe, a
4. Deus revcla-se por meio dos
No Génesis, os preceitos de Deus são amiúde
anjos. —> tempestade, o terremoto, o fogo e a harmonia
suave e sutil são apenas sinais precursores da
comunicados por um anjo (Gn 16.9; 22.11) revelação de Iavé, revelação esta que se faz
que figura às vezes no lugar de Deus, sendo exclusivamente através da palavra divina (lRs
mesmo uma das formas da aparição divina. Mas 19.9ss).
o VTconhece os anjos que, como mensageiros,
têm encargo de executar os mandatos divinos 7. É pela sua —>
palavra que Deus se revela
mais completamente e com maior predileção. A
(SI 103.20) e constituem os auxiliares de Deus,
o seu exército (Js 5.13-14; lRs 22.19, etc). palavra reveste a forma da lei, do oráculo pro-
Depois do exílio a revelação torna-se mais rica, fético ou da máxima sapiencial.
em virtude da forte acentuação dada à transce-
dência divina, vindo a ser então os anjos inter-
a) As leis mais arcaicas são chamadas "de-
barim", quer dizer "palavras" eram sentenças
mediários entre Deus e o homem (ver Jó 4.18;
:

33.19-23; ver especialmente Zacarias e tôda a brevíssimas que expressavam uma ordem ou
literatura apocalítica) uma proibição. Os Decálogos iavista (Ex 34)
e eloísta 20) são palavras (Ex 20.1; 34.1,
(Ex
5.
ser
O —>
nome que expressa a essência dum
ou duma coisa constitui também uma reve-
27-28). Palavras pronunciadas pelo próprio Deus
e sem referência a casos muito precisos como
lação. É pelo seu nome que um ser vivo se soem ser quase todos os textos legislativos,
torna autónomo e capaz de entrar em relação muito embora tenham um alcance que ultrapassa
com outro ser. No exórdio da História da sal- as fronteiras do momento presente. Ora, estas
vação encontra-se a revelação a Moisés do nome palavras constituem radicalmente uma revelação
de Iavé que equivale à revelação do mesmo ser de Deus. O preâmbulo do decálogo de Êxodo
divino bem como ao convite para o homem en- 20 começa pela lembrança da revelação de Deus
trar em relação com êle pronunciar o nome de
;
a Moisés e de sua obra de libertação no Egito.
Deus é portanto declarar que pertencemos a As leis do código de santidade (Lv 17-26) são
Deus e desejamos colocar-nos sob sua proteção em geral motivadas pelo fato da revelação de
:
;

REVELAÇÃO 285

Iavé: "Eu sou Iavé" (Lv 19.32,34,36, etc). A c) As máximas de sabedoria não são reve-
tora, têrmo que acabou por designar a lei
codificada no Pentateuco, primitivamente era a
—> ladas por Deus tão diretamente como os oráculos
dos sacerdotes ou profetas pois elas são con-
:

sentença pronunciada pelo sacerdote em res- selhos baseados simultaneamente na revelação e


posta a uma consulta a um caso
respeito de na experiência. Porém o têrmo mashal que
particular (cf um exemplode tora em Ag ordinàriamente serve para designar estas sen-
2.11 ss). Esta sentença, o sacerdote dava-se ou tenças (= literalmente, oráculos de conteúdo
após ter consultado a sorte sacra, os urim e misterioso e secreto, Nm
23.7; 24.3) salienta
tummim (Dt 33.8-10), ou recorrendo a uma es- que o elemento-revelação era aqui também o
pécie de direito costumeiro do qual os santuários principal. Os sábios estavam organizados em
eram os depositários. corporações como os sacerdotes e os profeta*
(Is 5.21; Jr 9.23; 18.18; Ecleciástico-Siraci-
b) Apalavra é a marca característica do
—> profeta (Jr 18.18). Associada na alvo-
des 38.24-39.11) tinham o seu círculo de alu-
:

nos desejosos de aprenderem dêles a arte de


rada do profetismo a diversos outros fenómenos
bem viver. O seu ensino, aparentemente muito
(êxtases, delírio sagrado), paulatinamente ela
profano humanístico, estava baseado na afirma-
virá a ser o único critério distintivo Nata e :

ção de que o temor de Deus é o alicerce da sa-


Elias, primeiros da linhagem profética, apare-
bedoria (Pv 1.7) e que esta, por sua vez. é o
sem como os varões da palavra (lRs 17.2,8;
privilégio exclusivo de Deus (Jó 28).
18.1; 19.9; 21.17,28). Esta palavra não é
contudo um
atributo permanente do profeta 8. A
revelação de Deus mediante a História
acontece até que ela lhe seja negada (ver Jr constitui a marca característica da religião de
42.6-7). Só fala o profeta quando Deus o inter- Israel. Determinados acontecimentos salientes
pelou para lhe comunicar uma mensagem por deram às suas testemunhas a oportunidade de
transmitir. Não carece de interesse observar apanhar no vivo a ação de Deus certos mila- ;

que a fórmula que geralmente introduz os gres, como os que narra Êxodo (passagem pelo
oráculos proféticos "Assim fala Iavé" encon-
:
Mar Vermelho) ou como a derrota dos exérci-
tra-se idêntica na linguagem profana para co- tos assírios diante de Jerusalém no ano 701.
municar a mensagem enviada por um rei pois ; davam a prova da intervenção direta de Deus
o mensageiro deve transmitir a palavra fiel- na conduta dos acontecimentos. Esta interven-
mente sem mudá-la no mínimo (Nm 22.16; ção se manifestava tão soberana e completa,
Jz 11.12,14-22; lRs 20.2-3; 22.27; 2Rs 18.28; tão real, que até mesmo os fenómenos da natu-
a fórmula encontra-se aliás idêntica nos povos reza obedeciam a Iavé (Josué pára o sol, re-
vizinhos de Israel). A palavra é colocada na trocede a sombra sóbre o relógio de Acaz, Js
bôca ou nos ouvidos do profeta (Jr 1.9; Is 10.12-13; Is 38.8) de tal modo que para Israel
:

a revelação divina através da História impres-


5.9) ; êste, depois de assistir aos conselhos divi-
sionava e convencia muito mais do que sua re-
nos (Jr 23.18,22), transmite fielmente tudo
velação através da natureza. Não se pense,
que lhe tem sido confiado, ainda quando a men-
porém, que a revelação de Deus na História
sagem lhe atraia a hostilidade dos destinatários
se limite a alguns milagres espetaculares êstes :

de fato, não raras vêzes, haverá de comunicar-


são apenas, conforme declara seu nome hebreu,
lhes que, enquanto êles não aceitaram a revela-
os sinais da soberania universal de Deus. ação A
ção, ver-se-ão privados da revelação, pois Deus divina na História exerce-se de maneira contí-
acabará por endurecer completamente aquêles nua, e consiste propriamente em dirigir os
que lhe têm fechado o coração. O profeta é ho- acontecimentos conforme um plano determinado
mem da mensagem, a pessoa subordina-se à e para uma finalidade definida, isto é, a instau-
mensagem a tal ponto que se funde com ela ração na terra do reino de Deus. O profeta
acontecerá pois que a missão afete o mensa- Isaías é quem falou com maior precisão do
geiro com tanta plenitude que a própria pes- plano divino (Is7.7ss; 8.10ss; 14.24-27: 19.12;
soa do profeta venha a ser uma revelação de 23.8-9). Iavé não se desinteressa por coisa algu-
Deus. Simplesmente com ver ao homem de ma que passa na terra, mas, através da História
Deus, e antes de ouvir a mensagem, Israel tre- do mundo, aparentemente tão contraditória, per-
mia de ansiedade e de esperança (assim com segue a sua obra (Is 5.12,19; 10.12; 28.21).
Elias. lRs 17.18) outras vêzes, mediante sua
: Deus persegue o seu plano conforme as normas
vestimenta excêntrica ou seus atos simbólicos de sua sabedoria conciliadora de contrários, (ver
(p. ex. a nudez de Isaias, Is 20, ou o jugo de a parábola do agricutor, Is 28.23), para a qual
Jeremias, Jr 28, ou o matrimónio de Oséias. construir e destruir, julgar e salvar, são cami-
Os 1-3) o profeta ilustra sua mensagem dan- nhos absolutamente normais para o estabeleci-
do-lhe maior eficiência. Podia também a pa- mento do reino.
lavra apoderar-se do profeta com tanta força Outros insistem igualmente sóbre o
escritos
que o projetava em estados psíquicos anor- plano divino o grande texto histórico do autor
:

mais (p. ex. Ez 3.15, etc). iavista apresenta a História da humanidade e


;

283 REVELAÇÃO

de Israel especialmente até a entrada na terra e de confessores que entraram em comunicação


da promissão como a ação de Deus a favor com o Todo-poderoso e o Santíssimo. Quem
dos homens que, pela sua desobediência, incor- não adotar êste ponto de vista, apenas tropeça
rem no castigo, e que a graça de Deus leva à em trevas ou ilusões sem encontrar nada mais
salvação. O livro mais novo do VT, Daniel, do que um Deus escondido. O NT, colocando-se
nos dá na famosa visão da estátua um resumo na luz do Deus revelado, dá à Igreja e ao mundo
comovedor da história universal culminando no o testemunho dos eventos mediante os quais
reino de Deus (2.26ss). Deus deu-se a conhecer. A possibilidade teó-
Entrementes, a própria História torna-se re- ricada revelação não entra em linha de dis-
velação apenas mediante a palavra o desígnio :
cussão pois está resolvida pelos mesmos fatos
;

secreto da sua ação faz conhecer Deus a seus e a sua autenticidade comprovar-se-á por qual-

servos, os profetas (Am 3.7). A sucessão quer homem que a receber. Cada qual está con-
quase ininterrupta dos profetas constitui a ga- vidado a recebê-la, pois o NT, relatando a re-
rantia da presença permanente da palavra. A velação divina em Jesus de Nazaré, Cristo de
redação deuteronomista da História de Israel Israel, convoca firmemente a todos que têm

aplica-se a provar que a História não passa de ouvidos para a obediência da fé (Rm 16.26;
ser o cumprimento das profecias a palavra, ;
Jo 20.31 Lc 1 .2 as testemunhas oculares feitas
; :

pois, não somente se faz cargo de interpretar ministros da palavra).


os acontecimentos, mas cria os eventos.
2. O autor da revelação. A
revelação vem
9. Nunca, no VT, a revelação está ligada de de Deus, seja qual fôr o seu grau. Pois, antes
maneira particular à palavra escrita. Muito de mais nada, o próprio Deus é quem toma a
cedo, porém, Israel manifesta o seu respeito pela iniciativa da revelação. As coisas veladas ao
palavra de Deus, confiando-a à escritura. A re- homem em virtude de sua condição de criatura
forma do rei Josias no ano 621 assinala o exór- (ICo 2.9,14) e de pecador (Rm 1.18), não
dio da noção de —>
Escritura sagrada (Dt
30.11-14). Os escritos post-exílicos citam ou
lhe serão reveladas à luz de suas pesquisas or-
ganizadas ou de seus encontros afortunados (os
mencionam amiúde escritos anteriores que pos- próprios anjos não as podem descobrir, IPe
suíam para êste um valor normativo. Entre- 1.12), mas somente lhe serão descobertas pela
tanto, o argumento propriamente escriturístico vontade explícita de Deus. Deus é quem, de-
"está escrito", com a implicação do caráter fixo pois de decidí-la (Gl 4.4), opera, sem que nin-
e intangível da nunca é utilizado no YT. guém possa ditar-lhe momentos, dias ou horas,
letra,

ED. JACOB
a revelação para o mundo em —> Jesus Cris-
to. Jesus Cristo, enviado de Deus e uno com
NT Deus, nos revela Deus e faz-se com Deus o
sujeito da revelação (Lc 10.22-24; Jo 17.6-8).
A revelação é o acontecimento por cujo inter-
médio Deus dá-se a conhecer aos homens: êste Por Jesus, Deus é revelado ao mundo, mas Deus
vinda entre nós de Jesus não se contenta com êste gesto universal feito
acontecimento é a
uma vez por tódas, senão que, a todo momento,
Cristo.
êle pode, livremente habilitar-nos para receber
1. O conhecimento da revelação. Revelando- a revelação (Mt 16.17; Gl 2.15-16; lTs 2.13) :

se aos homens, Deus se entrega ao conhecimento dá seu —> Espírito aos homens para que
humano sem deixar de ser o iniciador e o se- possam compreender o seu Criador (Mt 11.27;
nhor de sua própria revelação. Fazendo-se o
ICo 2.10ss; 12.3). Sua revelação torna-se efi-
caz naqueles que entram na sua comunhão e
objeto do conhecimento humano, não deixa de
aí reconhecem-no por seu Senhor nos outros,
;

ser o sujeito que obra o nosso conhecimento


ela fica sem efeito ou mesmo suscita a revolta.
ativa, livre e misteriosamente. Não se submete
Deus é portanto revelador em duas maneiras:
passivamente às investigações humanas, nem co-
objetivamente em Jesus Cristo, subjetivamente
loca-se simplesmente à disposição do homem
mediante o Espírito Santo que concede aos ho-
para êste fazer pesquisas religiosas ou metafí-
mens.
sicas. Deus revelou-se, e não se arrependerá
Finalmente, a revelação final, universal, está
sua revelação porém visita apenas aquêle que
também sujeita à decisão soberana e exclusiva
a recebe devidamente, como criatura humana, Não será provocada por
de Deus (Mc 13.32) :

localizada e datada, salva e agradecida. Assim


alguma conjuntura metafísica dos tempos, mas
pois, a perspectiva em que se colocam os auto- por Deus mesmo, Senhor de todos os tempos.
res do NT
para falar da revelação de Deus,
não é a perspectiva de quem se situa acima dos 3. O conteúdo da revelação. É a si próprio
fatos e, contemplando o processo da revelação, que Deus revela para os homens, Ser que nin-
formule um juízo, mas a única perspectiva obje- guém alcança ver (Jo 1.18), Ser que o peca-
tiva possível neste caso : a de destinatários e dor teme encontrar (Lc 5.8; Rm 1.18). A
beneficiários da graça divina, a de testemunhas revelação é total Deus não comunica aos ho-
:
:

REVELAÇÃO 287

mais apenas um conjunto de conhecimentos


inacessíveis ao humano entendimento e relati-
26.13; o ministério de São —>
Paulo). Pre-
gado, porém não universalmente recebido, pois
vos a certas realidades escondidas ou a acon-
tecimentos futuros, nem lhes dá um saber que
não é possível recebê-lo fora do ato de >. fé;
e a fé nunca chegará a ser universal (2Co 4.

os venha iludir e envaidecer persuadindo-os de 3-4). São Paulo dirá numa fórmula tão abre-
que são semi -deuses e capazes de dispensar o viada como exclusiva Deus revelou-se "aos
:

divino auxílio. Mas revela-se a si próprio comu- que crêem" (Rm 3.21-22) "àqueles que o
nicando-lhes o seu segredo capital, isto é, co- amam" (ICo 2.9), "a seus santos" (Cl 1.26).
municando-lhes que os ama (ljo 4.9), que Analogamente. São João insiste no fato de que
êste seu amor, ofendido pelo pecado e tornado
ineficaz desde a intervenção da morte (Rm 5),
o —> inundo não conhece a Deus porque não
aceita a revelação, e que Jesus, aliás não con-
levou-o a entregar seu próprio Filho unigénito sente dar-se a conhecer senão na fé (Jo 7.4).
pela salvação do mundo (Rm 3.21: a "justiça" Não obstante isso, permanece a intenção univer-
de Deus). Nesse Filho é que Deus dá-se a co- sal da revelação em favor dos homens e da
nhecer como perdoador do pecado e vencedor criação inteira (Rm 8.19-22), devendo ser de
da morte, sendo assim esse Filho o conteúdo fato realizada no juízo último e para o mundo
explícito da revelação (Jo 14.9; Gl 1.16; Mc novo (Ap 20-22).
1.1 intitula-se "Evangelho de Jesus Cristo").
E não sendo Jesus Cristo apenas uma realidade 5. O tempo da revelação. A revelação de
exterior, simples objeto de contemplação, mas Deus encarna-se no evento histórico da vinda
como, para se revelar, êle vive e age entre os de Jesus Cristo, e como tal situa-se na Histó-
crentes.vdevemos compreender que a forma con- ria. Ou, melhor a História humana tóda
dito,

creta em que se manifesta ao mundo é precisa- situa-se em torno da revelação em Jesus Cristo
mente sua vida no corpo da Igrja. Portanto Antes de Cristo, corre o tempo da espera
também sua vida na Igreja é objeto da revela- (=antiga aliança com as profecias: Lc 10.24;
ção (sua vida se revela em nosso corpo, 2Co Hb 11; IPe 1.10-12. O Deus do VT não difere
4.10; Cristo em vós, Cl 1.27; a fé, Gl 3.23). do Deus do NT, porém, no NT torna-se trans-
Portanto, não é o lado humano de Jesus (seu parente o mistério de Deus na pessoa de Cristo),
caráter, suas virtudes ou opiniões) que nos o tempo das trevas e das tentativas para as
traz a revelação de Deus, mas o que Jesus nos
fala da parte de Deus (sua palavra), o que faz
—> nações. A
revelação de Deus, Jesus Cristo,
aparece no fim dos tempos (IPe 1.20) mar-
por nós da parte de Deus (sua humilhação e cando a entrada não de outra era de idêntica
vitória), o que opera em nós como Senhor da natureza, mas do tempo definitivo (a "vida
Igreja da parte de Deus (sua autoridade pre- eterna", Jo 3.36). O NT
afirma indiferente-
sente), o que êle é e será para o mundo inteiro mente que a revelação aconteceu no fim dos
da parte de Deus (sua vida final). Finalmente, tempos ou em Jesus Cristo, sendo Jesus Cristo
no último dia, esta mesma revelação total, idên- precisamente o fim dos tempos. Mediante a pre-
tica e inconfundível, é que brilhará no mundo: gação dos Apóstolos e a edificação da Igreja,
Deus tudo em todos (ICo 15.28) a —> glória torna-se êste tempo final crítico para todo o
de Deus e dos seus filhos (Rm 8.18-19; Cl 3.4; mundo e tôdas as nações. Clareou a hora do
ljo 3.2). Desde o início até ao fim, é o próprio anúncio universal da salvação iminente (Rm
Deus que se revela e, ao mesmo tempo, desco- 13.11-12; ljo 3.2), da vigilância, da lembrança
bre todos os tesouros da sabedoria e da ciên- atenta (ICo 11.24-26, "até que êle venha") e
cia (Cl 2.2-3). da oração (Rm 8.19; IPe 4.13; Ap 6.10:
22.17-20). A manifestação gloriosa duma cria-
4. Os destinatários da revelação. Destina-se
ção perdida e, salva está em marcha desde a
a revelação a todos os homens (Lc 2.31; 3.6;
vinda do Cristo; a revelação já começou; e
lTm 2.4) ao universo humano todo é que ela
a aparente demora é apenas uma última opor-
;

se dirige pelo intermédio dos Filhos de Israel.


tunidade outorgada ao mundo para se arrepen-
Apresentada a Israel que também espera e recal-
derem e entrarem na fé (2Pe 3.9-10). Êste
citra, a revelação torna-se perceptível ao mundo
caráter constrangedor da revelação de Cristo
e é acolhida por homens estranhos à aliança
diferencia-a de qualquer especulação e exclui
por "crianças" (=pelo povo ignorante das in-
as esperas ascéticas e estéreis.
terpretações teológicas, Mt 11.25-27), e mesmo
por pagãos (Mt 8.10-12; 15.24-28, com sur- Arevelação atinge-nos de diversas manei-
prêsa de Jesus!).
pelo mundo cego —A rejeição — por Israel e
de Jesus crucificado, sua
6.
ras. Não se cinge o cumprimento da divina
revelação a qualquer forma peculiar. Jesus Cris-
vitoriosa ressurreição, fazem de Jesus entre to foi manifestado na carne e ressuscitou por- :

nós um acontecimento de alcance universal e tanto tudo que constitui a vida, inclusive a
exaltam a revelação muito acima da simples morte, é doravante afetado. Os apóstolos, mor-
História rotinária. Doravante o Evangelho será mente São Paulo, (Gl 1.12; 2.2; 2Co 12.1)
pregado a tôda criatura (Mc 16.15; Mt 24.14; tiveram disso clara consciência, e, a partir dê-
:

283 REVELAÇÃO

de Israel especialmente até a entrada na terra e de confessores que entraram em comunicação


da promissão como a ação de Deus a favor com o Todo-poderoso e o Santíssimo. Quem
dos homens que, pela sua desobediência, incor- não adotar êste ponto de vista, apenas tropeça
rem no castigo, e que a graça de Deus leva à em trevas ou ilusões sem encontrar nada mais
salvação. O livro mais nôvo do VT, Daniel, do que um Deus escondido. O NT, colocando-sc
nos dá na famosa visão da estátua um resumo na luz do Deus revelado, dá à Igreja e ao mundo
comovedor da história universal culminando no o testemunho dos eventos mediante os quais
reino de Deus (2.26ss). Deus deu-se a conhecer. A possibilidade teó-
Entrementes, a própria História torna-se re- rica da revelação não entra em linha de dis-
velação apenas mediante a palavra o desígnio :
cussão pois está resolvida pelos mesmos fatos
;

secreto da sua ação faz conhecer Deus a seus e a sua autenticidade comprovar-se-á por qual-
servos, os profetas (Am 3.7). A sucessão quer homem que a receber. Cada qual está con-
quase ininterrupta dos profetas constitui a ga- vidado a recebê-la, pois o NT, relatando a re-
rantia da presença permanente da palavra. A velação divina em Jesus de Nazaré, Cristo de
redação deuteronomista da História de Israel Israel, convoca firmemente a todos que têm

aplica-se a provar que a História não passa de ouvidos para a obediência da fé (Rm 16.26;
ser o cumprimento das profecias a palavra,
;
Jo 20.31 Lc 1 .2 as testemunhas oculares feitas
; :

pois, não somente se faz cargo de interpretar ministros da palavra).


os acontecimentos, mas cria os eventos.
2. O autor da revelação. A revelação vem
9. Nunca, no VT, a revelação está ligada de de Deus, seja qual fôr o seu grau. Pois, antes
maneira particular à palavra escrita. Muito de mais nada, o próprio Deus é quem toma a
cedo, porém, Israel manifesta o seu respeito pela iniciativa da revelação. As coisas veladas ao
palavra de Deus, confiando-a à escritura. A re- homem em virtude de sua condição de criatura
forma do rei Josias no ano 621 assinala o exór- (ICo 2.9,14) e de pecador (Rm 1.18), não
dio da noção de
30.11-14). Os
—>
Escritura sagrada (Dt
escritos post-exílicos citam ou
lhe serão reveladas à luz de suas pesquisas or-
ganizadas ou de seus encontros afortunados (os
mencionam amiúde escritos anteriores que pos- próprios anjos não as podem descobrir, IPe
suiam para êste um valor normativo. Entre- 1.12), mas somente lhe serão descobertas pela
tanto, o argumento propriamente escriturístico vontade explícita de Deus. Deus é quem, de-
"está escrito", com a implicação do caráter fixo pois de decidí-la (Gl 4.4), opera, sem que nin-
e intangível da letra, nunca é utilizado no VT. guém possa ditar-lhe momentos, dias ou horas,

ED. JACOB
a revelação para o mundo em —> Jesus Cris-
to. Jesus Cristo, enviado de Deus e uno com
NT Deus, nos revela Deus e faz-se com Deus o
sujeito da revelação (Lc 10.22-24; Jo 17.6-8).
A revelação é o acontecimento por cujo inter-
médio Deus dá-se a conhecer aos homens : êste Por Jesus. Deus é revelado ao mundo, mas Deus
vinda entre nós de Jesus não se contenta com êste gesto universal feito
acontecimento é a
uma vez por todas, senão que, a todo momento,
Cristo.
éle pode, livremente habilitar-nos para receber
1. O conhecimento da revelação. Revelando- a revelação (Mt 16.17; Gl 2.15-16; lTs 2.13) :

se aos homens, Deus se entrega ao conhecimento dá seu —> Espírito aos homens para que
humano sem deixar de ser o iniciador e o se- possam compreender o seu Criador (Mt 11.27;
nhor de sua própria revelação. Fazendo-se o
ICo 2.10ss: 12.3). Sua revelação torna-se efi-
caz naqueles que entram na sua comunhão e
objeto do conhecimento humano, não deixa de
aí reconhecem-no por seu Senhor ; nos outros,
ser o sujeito que obra o nosso conhecimento
ela fica sem efeito ou mesmo suscita a revolta.
ativa, livre e misteriosamente. Não se submete
Deus é portanto revelador em duas maneiras
passivamente às investigações humanas, nem co-
objetivamente em Jesus Cristo, subjetivamente
loca-se simplesmente à disposição do homem
mediante o Espírito Santo que concede aos ho-
para êste fazer pesquisas religiosas ou metafí-
mens.
sicas. Deus revelou-se, e não se arrependerá;
Finalmente, a revelação final, universal, está
sua revelação porém visita apenas aquêle que
também sujeita à decisão soberana e exclusiva
a recebe devidamente, como criatura humana, Não será provocada por
de Deus (Mc 13.32) :

localizada e datada, salva e agradecida. Assim


alguma conjuntura metafísica dos tempos, mas
pois. a perspectiva em que se colocam os auto- por Deus mesmo, Senhor de todos os tempos.
res do NT para falar da revelação de Deus,
não é a perspectiva de quem se situa acima dos 3. O conteúdo da revelação. É a si próprio
fatos e, contemplando o processo da revelação, que Deus revela para os homens, Ser que nin-
formule um juízo, mas a única perspectiva obje- guém alcança ver (Jo 1.18), Ser que o peca-
tiva possível neste caso : a de destinatários e dor teme encontrar (Lc 5.8; Rm 1.18). A
beneficiários da graça divina, a de testemunhas revelação é total:Deus não comunica aos ho-
:

REVELAÇÃO 287

meus apenas um conjunto de conhecimentos


inacessíveis ao humano entendimento e relati-
26.13; o ministério de São —>
Paulo). Pre-
gado, porém não universalmente recebido, pois
vos a certas realidades escondidas ou a acon-
tecimentos futuros, nem lhes dá um saber que
não é possível recebê-lo fora do ato de
e a fé nunca chegará a ser universal (2Co 4.
fé; —>
os venha iludir e envaidecer persuadindo-os de 3-4). São Paulo dirá numa fórmula tão abre-
que são semi-deuses e capazes de dispensar o viada como exclusiva Deus revelou-se "aos
:

divino auxilio. Mas revela-se a si próprio comu- que crêem" (Rm 3.21-22) "àqueles que o
nicando-lhes o seu segredo capital, isto é, co- amam" (ICo 2.9), "a seus santos" (Cl 1.26).
municando-lhes que os ama (ljo 4.9), que Analogamente. São João insiste no fato de que
este seu amor, ofendido pelo pecado e tornado
ineficaz desde a intervenção da morte (Rm 5),
o —> mundo não conhece a Deus porque não
aceita a revelação, e que Jesus, aliás não con-
levou-o a entregar seu próprio Filho unigénito sente dar-se a conhecer senão na fé (Jo 7.4).
pela salvação do mundo (Rm 3.21: a "justiça" Não obstante isso, permanece a intenção univer-
de Deus). Nesse Filho é que Deus dá-se a co- sal da revelação em favor dos homens e da
nhecer como perdoador do pecado e vencedor criação inteira (Rm 8.19-22), devendo ser de
da morte, sendo assim êsse Filho o conteúdo fato realizada no juízo último e para o mundo
explícito da revelação (Jo 14.9; Gl 1.16; Mc nôvo (Ap 20-22).
1.1 intitula-se "Evangelho de Jesus Cristo").
E não sendo Jesus Cristo apenas uma realidade 5. O tempo da revelação. A revelação de
exterior, simples objeto de contemplação, mas Deus encarna-se no evento histórico da vinda
como, para se revelar, êle vive e age entre os de Jesus Cristo, e como tal situa-se na Histó-
crentes.vdevemos compreender que a forma con- ria. Ou, melhor a História humana tóda
dito,

creta em que se manifesta ao mundo é precisa- situa-se em tôrno da revelação em Jesus Cristo
mente sua vida no corpo da Igrja. Portanto Antes de Cristo, corre o tempo da espera
também sua vida na Igreja é objeto da revela- (=antiga aliança com as profecias: Lc 10.24;
ção (sua vida se revela em nosso corpo, 2Co Hb 11 IPe 1.10-12. O Deus do VT não difere
;

4.10; Cristo em vós, Cl 1.27; a fé, Gl 3.23). do Deus do NT, porém, no NT torna-se trans-
Portanto, não é o lado humano de Jesus (seu parente o mistério de Deus na pessoa de Cristo),
caráter, suas virtudes ou opiniões) que nos o tempo das trevas e das tentativas para as
traz a revelação de Deus, mas o que Jesus nos
fala da parte de Deus (sua palavra), o que faz
—> nações. A
revelação de Deus, Jesus Cristo,
aparece no fim dos tempos (IPe 1.20) mar-
por nós da parte de Deus (sua humilhação e cando a entrada não de outra era de idêntica
vitória), o que opera em nós como Senhor da natureza, mas do tempo definitivo (a "vida
Igreja da parte de Deus (sua autoridade pre- eterna", Jo 3.36). O NT
afirma indiferente-
sente), o que êle é e será para o mundo inteiro mente que a revelação aconteceu no fim dos
da parte de Deus (sua vida final). Finalmente, tempos ou em Jesus Cristo, sendo Jesus Cristo
no último dia, esta mesma revelação total, idên- precisamente o fim dos tempos. Mediante a pre-
tica e inconfundível, é que brilhará no mundo: gação dos Apóstolos e a edificação da Igreja,
Deus tudo em todos (ICo 15.28) a —
y> glória torna-se êste tempo final crítico para todo o
de Deus e dos seus filhos (Rm 8.18-19; Cl 3.4; mundo e tôdas as nações. Clareou a hora do
ljo 3.2). Desde o início até ao fim, é o próprio anúncio universal da salvação iminente (Rm
Deus que se revela e, ao mesmo tempo, desco- 13.11-12; ljo 3.2), da vigilância, da lembrança
bre todos os tesouros da sabedoria e da ciên- atenta (ICo 11.24-26, "até que êle venha") e
cia (Cl 2.2-3). da oração (Rm 8.19; IPe 4.13; Ap 6.10:
4. Os destinatários da revelação. Destina-se
22.17-20). A
manifestação gloriosa duma cria-
ção perdida e, salva está em marcha desde a
a revelação a todos os homens (Lc 2.31; 3.6;
vinda do Cristo; a revelação já começou; e
lTm 2.4) ao universo humano todo é que ela
a aparente demora é apenas uma última opor-
;

se dirige pelo intermédio dos Filhos de Israel.


tunidade outorgada ao mundo para se arrepen-
Apresentada a Israel que também espera e recal-
derem e entrarem na fé (2Pe 3.9-10). Êste
citra, a revelação torna-se perceptível ao mundo
caráter constrangedor da revelação de Cristo
e é acolhida por homens estranhos à aliança
diferencia-a de qualquer especulação e exclui
por "crianças" (=pelo povo ignorante das in-
as esperas ascéticas e estéreis.
terpretações teológicas, Mt 11.25-27), e mesmo
por pagãos (Mt 8.10-12; 15.24-28, com sur- Arevelação atinge-nos de diversas manei-
presa de Jesus!). A rejeição
pelo mundo cego — — por Israel e
6.
ras. Não
se cinge o cumprimento da divina
de Jesus crucificado, sua revelação a qualquer forma peculiar. Jesus Cris-
vitoriosa ressurreição, fazem de Jesus entre to foi manifestado na carne e ressuscitou por- :

nós um acontecimento de alcance universal e tanto tudo que constitui a vida, inclusive a
exaltam a revelação muito acima da simples morte, é doravante afetado. Os apóstolos, mor-
História rotinária. Doravante o Evangelho será mente São Paulo, (Gl 1.12; 2.2; 2Co 12.1)
pregado a tôda criatura (Mc 16.15; Mt 24.14; tiveram disso clara consciência, e, a partir dê-
:

288 SABEDORIA

les, é através da palavra dos mensageiros e da


ação do Espírito Santo na Igreja que a reve-
na não está relacionada com a
mas com a atividade criadora. Na
——
>
cria->
aliança.

lação avança até os confins do mundo, pouco ção do mundo é que brilha a sabedoria de Deus
importando as formas exteriores que assume tal é o ensino global da literatura sapiencial
para obrar. Deus vale-se de tudo para que os canónica e extra-canônica, israelita e egípcia.
homens cheguem ao livre conhecimento de sua Ora salienta-se a maravilhosa criação do uni-
revelação em Jesus Cristo. verso (Pv 3.19ss; 8.22-32), ora e mais fre-
quentemente a do homem (Pv 14.31; 17.5;
7. Os escritos do NT, (Evangelhos, Atos, 22.2; Jó 4.17; 10.8ss; 12.7-10; Ec 3.14; 7
Epístolas, Apocalipse), não são a revelação, mas 13; 11.5; SI 94.9; 104.24; Is 40.13 Jr 10.12;
simplesmente os testemunhos dela, a narração 51.15; Tb 3.11; Br 3.32ss, etc). Certos tex-
e simultaneamente a proclamação da revelação tos dos mencionados aqui deram base a uma cor-
divina em Jesus Cristo. Únicos e insubstituíveis rente de especulações relativas ao caráter pre-
em virtude do seu lugar histórico e da sua qua- existente ou hipostático da sabedoria conforme :

lidade de testemunhos esclarecidos (os escritos Pv 8.22ss, parece ter existido a sabedoria an-
chamados apócrifos dêles se distinguem não ape- tes da criação do mundo e ter sido associada,
nas pela sua idade mais nova mas pela sua como mente ordenadora, ao próprio Deus, mente
atitude menos esclarecida espiritualmente), unâ- criadora. Mas se tratando dum texto sem pa-
nimes embora não concebidos em vista de uma ralelo, único, será mais correto ver nos ver-
unidade literária, êles são o manancial donde a sículos que falam da sabedoria como duma pes-
Igreja tira o seu conhecimento de Jesus Cristo soa, glorificações poéticas dum
dos mais cons-
( —> Escritura) Êles são a garantia e o juiz
.

da fidelidade e da apostolicidade da Igreja.


pícuos atributos divinos. Ademais a História
é por seu lado o teatro onde a sabedoria divina
Êles anunciam a Jesus Cristo sem pretender se revela fato anotado especialmente em textos
:

qualquer infalibilidade que não seja a de men- extra-canônicos como no Siracides (Eclesiás-
sageiros autorizados da vinda de Cristo entre tico das Bíblias católicas), entre os quais deve
nós. É por Jesus Cristo, e não por um livro, ser lido o famoso elogio dos antepassados, 44-50.
que Deus se tem revelado todavia os escritos
;
Ver também a Sabedoria de Salomão.
do NT
são "servos por meio de quem crestes"
(ICo 3.3-5), que ninguém pode dispensar-se 2. Oconhecimento, e ainda mais a ação carac-
de escutar e estudar até na sua mesma letra. terísticada divina sabedoria manifestam-se tam-
Mas exclusivamente ao Mestre é reservada a bém nas afirmações do VT
relativas à sabe-
fé, a obediência e a glória. doria do homem pois também o homem pode
:

C. BIDER e deve ser sábio, a condição de se deixar ins-


truir nos caminhos da sabedoria. Na verdade,
SABEDORIA certos textos apresentam a sabedoria como apa-

VT nágio privativo de Deus e condenam qualquer


tentativa humana por adquirir a sabedoria como
1 . O VT menciona frequentemente a sabedoria impia e ilusória; Jó parece aludir a uma tra-
em textos de caráter profano, porém, não obs- dição asseverando ter consistido o pecado ori-
tante, afirma que a sabedoria provém de Deus ginal no intento de Adão furtar a sabedoria,
e lhe pertence plenamente e com exclusividade privilégio divino.(15.7-8). Tradição aliás insi-
(Is 31.2; Jr 8.9; 2Sm 14.20; Pv 21.30; Dn nuada também na proibição feita a Adão da
2.20-23). A sabedoria é em Deus a totalidade árvore da ciência do bem e do mal, ou seja
e plenitude do saber que se estende a tudo sem do conhecimento total (Gn 2.17). Outros tex-
exceção (Jó 10.4; 26.6; 31.4; Pv 5.21; 15.3; tos insistem sobre a diferença irredutível entre
24.12). Êsse conhecimento absoluto, próprio a sabedoria de Deus e a ignorância do homem
de Deus, consiste num discernimento entre o bem (Jó 11.6-9; Is 40.14; SI 92.6; 139.12; Pv
e o mal e quando ela é compartilhada pelo
; 8.22) o Eclesiastes funda todo o seu pessi-
;

homem, fá-lo discernir igualmente o bem e o mismo na impossibilidade de encontrar-se ja-


mal vemos com efeito que um dos ensinos es-
: mais a sabedoria divina com a limitação humana.
senciais dos sábios, não apenas de Israel mas A solução é-nos dada pelo livro de Jó que. de-
de todo o antigo oriente, tem sido a recompen- pois de demonstrar num capítulo admirável (28)
sa dos justos e o castigo dos perversos. Tema que Deus exclusivamente conhece a sabedoria
êste que repetidas vezes reaparece na súmula misteriosa e escondida, conclui que há, não
constituída pelos capítulos 10.22 do livro de obstante, uma sabedoria reservada ao homem,
Provérbios, e constitui o tema inicial de Jó e porém sabedoria de ordem prática que consiste
do Eclesiastes, bem como fundo dos Salmos apenas na submissão a Deus e na fuga do mal
ditos sapienciais (1; 37; 49; 73; 111). Note- (28.28). A
corrente representada pela sabedo-
mos contudo que, a diferença da teologia deu- ria (Provérbios, Eclesiástico-Siracides)
oficial
teronômica com a qual a literatura sapiencial é ainda mais afirmativo o Eclesiástico declara
:

guarda evidente parentesco, a retribuição divi- que Deus espalhou a sabedoria sobre todas as
:

SABEDORIA 28&

suas obras e sôbre tóda carne, cada homem alma (ver Eclesiastes) Antes do Siracides, (o
.

recebe dela a sua parte (1.10). Esta sabedoria Eclesiástico, ano 130 a.C), a religião da sabe-
acessível a qualquer um é primordialmente o pri- doria não é o sujeito à lei escrita (Sir 19.20).
vilégio dos que o VT
chama de sábios e que O temor de Deus é, antes de mais nada, a fé
têm em Salomão o seu tipo mais acabado (lRs na justa retribuição divina e uma atitude obe-
3.12). Os sábios formavam ao lado dos sacer- diente e humilde perante Deus. A exigência
dotes e dos profetas (Jr 18.18) um grupo cuja religiosa domina a tal extremo a sabedoria que
missão era ensinar a sabedoria da sabedoria: frequentemente ambas aparecem confundidas e
tinham recebido copiosamente o carisma, quer identificadas o sábio é o homem piedoso por
—>
:

por revelação quer por tradição. Sua fun- excelência (Jó 37.24; 42.8). A piedade de Jó
ção era pois de aconselhar. Dar conselhos consti- e a impiedade de seus amigos encarnam bem a
tuia um verdadeiro ensino cujo caráter enciclo sabedoria do primeiro e dos segundos. A reli-
pédico não deixa de admirar, pois, nesta época gião de Israel tão caracteristicamente dinâmica
remota, versava sôbre os assuntos mais diversos apoderou-se do campo da sabedoria êste não
:

(lRs 4.32ss) porém, o elemento intelectual-


;
era privilégio de Israel, mas Israel imprimiu-
especulativo cedia o passo ao elemento prático. lhe a marca específica da santidade do Deus
Ser sábio não consiste tanto em desvendar o único zeloso de nada deixar do que concerne
mistério último da existência como em orien- ao homem fora de sua soberania.
tar bem a própria vida: o sábio é alguém que
está bem sucedido.
ED. JACOB
NT
3. Quem se decidir a escutar a voz da sabe- 1 .Êste têrmo tomou na linguagem moderna
doria deverá lembrar três pontos
uma acepção peculiar a sabedoria serve de in-
:

a) A a prudência a procura do
sabedoria é :
termediária entre o saber e o agir, entre o
equilíbrio, da moderação, o horror a qualquer conhecimento e a vida. É constituída essencial-
excesso é ensinado por inúmeros textos de mente por um estilo de vida, porém baseado
Provérbios, bem como por muitos textos sapien- num conhecimento certo. Não acontece o mesmo
ciais egípcios. Ser sábio é dar mostras de dis- no NT. Pelo contrário, a sabedoria do NT,
cernimento na escolha de suas relações, e guar- antes de mais nada, significa um conhecimento
dar muita reserva nelas todas inclusive nas e radica na ordem do conhecimento, vindo a
matrimoniais. Ser sábio é refrear a língua o si- :
ser o desabrochamento do saber inerente à fé.
lêncio merece os maiores elogios (Pv 10.19: Eis porque o têrmo "sabedoria" aparece tantas
11.13; 17.27). vêzes corroborado e acompanhado pelo têrmo
"ciência" (ICo 12.8; Cl 2.3) ou "inteligência"
b) O
sucesso na vida não pode absolutamente
(Ap 17.9).
ser alcançado por qualquer m-eio. As exigências
morais da Lei e dos Profetas dominam os pre- Mas o mesmo têrmo serve para mencionar
ceitos da sabedoria israelita dando-lhe uma to- duas realidades diferentes, dando lugar a uma
nalidade diferente da dos povos vizinhos. Por- ambiguidade denunciada prolixamente por São
tanto não há sabedoria fora do respeito da pos- Paulo. A sabedoria é, primordialmente, sabedo-
soa e dos bens alheios: Pv 1.13ss; Jó 24.2. ria segundo a carne (ICo 1.26), rebuscada pe-

Balança enganosa é abominável para o Senhor los gregos e geralmente pelos filósofos (ICo

(Pv 11.1). O
adultério não é condenado pelos 1.21), própria do —> "mundo" porquanto
êle afirma sua independência em face do Cria-
dissabores que acarreta, mas pela violação dum
laço estabelecido por Deus e quem não tomar
;
dor esta sabedoria é a suma do saber que os
:

cuidado do pobre insulta a Deus que também homens podem acumular mediante o uso de
criou o indigente (Pv 14.31). suas faculdades naturais, que Moisés p. ex. ad-
quiriu entre os egípcios (At 7.22). Caracteriza
c) O próprio aspecto moral da sabedoria o homem adulto, pois dela é que os homens se
e junção do seu fundamento religioso "O temor : gloriam (Mt 11.25 onde os sábios e inteligen-
do Senhor é o princípio da sabedoria" (Pv 1.7; tes estão opostos aos meninos e crianças). Mun-
9.10; 15.33; SI 111.10; Jó 28.28), quer dizer dana, não carece de poder. Paulo implicitamente
que a religião não apenas é o ponto de saída, lhe reconhece certa superioridade, a ela e à lin-
mas o ponto culminante e a meta do ensina- guagem usada por ela (ICo 2.1) desta supe-
;

mento dos sábios pois é o temor de Deus que


: rioridade mundana nasce-lhe o seu poder de
permite abster-se do mal (Pv 3.7; 8.13). A persuasão "linguagem persuasiva de sabedo-
religião dos livros de sabedoria não funda no ria" ICo 2.4). Enquanto esta sabedoria não se
culto o seu centro de gravidade as exigências
; incha de orgulho e não pretende ultrapassar o
propriamente cultuais importam pouco para seu domínio próprio, não é alvo de qualquer
ela (Pv 3.9ss) pelo contrário, a oração não
;
crítica ou menosprêzo no NT. Mas quando ela
deixa de ser recomendada (Pv 15.8,29) ainda pretende equiparar-se a outra sabedoria, à sabe-
que corra o risco de cair num formulismo sem doria de Deus, vê-se confundida então ela não
:
;

290 SABEDORIA

passa de orgulho e vaidade, e Deus não deixará as vezes de qualquer saber e se torna objeto de
de "destruir a sabedoria dos sábios" (ICo 1.19). conhecimento supremo e suficiente "Julguei
:

Com efeito, é ela totalmente inadequada na sua não dever saber coisa alguma entre vós, senão
pretensão de conhecer Deus : "O mundo com Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado" (ICo
a sua sabedoria, não O conheceu na sabedoria 2.2).
de Deus" (ICo 1.21). É mais ainda: neste
desafio entre a sabedoria dos homens e a sa- 3. Se pois Cristo, como cumprimento do de-
bedoria de Deus (ICo 1.24), opera-se uma revi- sígnio histórico de Deus, é a sabedoria de Deus,
ravolta surpreendente : a sabedoria dos homens teremos a possibilidade de o identificar cosn
perde suas prendas, retorna-se contra si mesma aquela sabedoria hipostática do VT, especial-
e faz-se loucura (ICo 3.19) até o extremo de mente dos escritos sapienciais pessoa divina ou
:

tomar, no mais trágico quiproquó, por loucura espírito de Deus (Sabedoria de Salomão, ver
a sabedoria do próprio Deus (ICo 1.21). na Bíblia católica, 1.6-7; 7.22; 8.1). Desta
hipóstase, apenas alguns traços literários fi-
2. Embora desconhecida pela sabedoria huma- guram no VT como Lc 11.49, ou possivel-
:

na (nisso consta que não há homogeneidade mente na enigmática conclusão do ensinamento


entre ambas as sabedorias e que a segunda não de Jesus sobre o Batista : "A sabedoria teve
é de jeito nenhum o desabrochamento da pri- a sua justificação nas suas obras" (Mt 11.7-19:
meira), a sabedoria de Deus é realmente uma J. WEISS, Die Schriften des NT, 1, p. 295,
sabedoria autêntica, e mesmo uma sabedoria opina tratar-se aqui do próprio Cristo). Porém,
triunfante, porém "não a sabedoria dêste século, ainda quando a sabedoria-hipóstase não mais
nem a dos poderosos dêste século condenados a desempenha papel relevante no pensamento do
perecer" (ICo 2.6). É característico da sabe- NT, o Cristo herdou os atributos dela: identi-
doria de Deus ser "misteriosa e oculta" (ICo ficado por sua vez com o espírito de Deus
2.7). Não se reveste portanto da evidência (ICo 15.45; 2Co 3.17). Entretanto sua rela-
racional, diferente nisso da primeira que, con- ção com o Pai é bem diferente êle é o Filho
:

forme frisa Paulo, possui certa evidência ra- igual em dignidade ao Pai. A sabedoria de
cional que provoca a adesão e exerce alguma Deus está doravante unida a Deus pelo laço
dominação sobre os espíritos (ICo 2.1 e 2.4). preciso e concreto da filialidade. Assim, visto
Logo, a sabedoria divina não consiste nalguma ser o Pai de Jesus Cristo, feito sabedoria para
verdade intemporal, universalmente viável, ime- nós, Deus será chamado "o único sábio" (Rm
diatamente inteligível, mas num desígnio bené- 16.27).
volo para com a História dos homens. Precisa-
mente porque concerne ao plano divino relativo 4. Ligada destarte a sabedoria ao mistério tri-
à História é que a sabedoria de Deus não se nitário de Deus e à ação redentora através da
nos revela tôda duma vez. Quando São Paulo História da Salvação ela revestirá também pa-
fala do mistério da cegueira inacreditável de ra nós um novo significado não mais o acúmu-
:

Israel, cegueira mediante a qual Deus persegue


lo do saber realizável com o uso das próprias
através da História seu desígnio redentor, ex- faculdades, mas um dom carismático. Sendo.
clama maravilhado: "O' profundidade da rique- Deus manifestando Deus esta sabedoria
sábio, e
za, da cabedoria e da ciência de Deus!" (Rm
em Jesus Cristo, assim como tudo nos deu
11.33). A loucura da humana sabedoria está
abundantemente em Jesus Cristo (Cl 2.10),
precisamente na incapacidade de reconhecer o
grande desígnio de Deus que está se realizando também nêle deu-nos a sabedoria. Dom caris-
na História da salvação e especialmente no mático, a sabedoria está ligada à palavra do
evento da —"> cruz (ICo 1.20), a loucura
Cristo conferindo-lhe substância: "Habite em
vós a palavra de Deus em tôda sua riqueza
da humana sabedoria está a seguir na sua in-
compreensão perante os profetas e os apóstolos, instruí-vos em tôda a sabedoria" (Cl 3.16)
reveladores do plano divino (Lc 11.49-50). Ao Mediante a —> palavra suscita-se e alimen-
ta-se a sabedoria, como mediante ela nasce e
dar graças ao Pai que revelou seus segredos
essenciais não aos sábios e inteligentes mas aos vive a fé. Não podia portanto faltar a sabedo-
humildes despretensiosos e às crianças (Mt ria no rol de carismas inventoriado por São

11.25*), Jesus tem em mente a relação secreta Paulo (ICo 12.8). Efésios 1.17 relaciona cla-
do Pai e do Filho em cuja virtude somente o ramente o dom de sabedoria à revelação de
Filho pode revelar o Pai (Mt 11.27) : tem em Deus em Cristo, pois mediante êste carisma é
mente o próprio âmago da História da Sal- que conhecemos perfeitamente, nas limitadas
vação. Eis como o têrmo de "sabedoria" será perspectivas da fé, ao mesmo Deus.
aplicado eminentemente ao próprio Cristo, cen- A sabedoria do crente consistirá logo em
tro desta História, que, pela vontade do Pai reconhecer a sabedoria de Deus desvendada na
"se nos tornou sabedoria, justiça, santificação e História da salvação. O ofício próprio desta
redenção" (ICo 1.30). Vem a ser possível pois sabedoria carismática é "confessar o mistério
falar do Cristo como duma sabedoria que faz de Deus, o Cristo, em que estão ocultos todos
SACERDÓCIO 291

os tesouros da sabedoria e da ciência" (Cl 2. isso. entretanto, que os sábios, segundo o mundo,
2-3). Sabedoria e ciência aparecem associados ver-se-ão excluídos da compreensão da revela-
no desígnio divino sabedoria e ciência serão
: ção. Está escrito sem dúvida que entre os cha-
pois dadas também ao homem (ICo
12.8). Sen- mados, poucos há sábios segundo a carne (ICo
do separar
difícil em Deus
a sabedoria da ciên- 1.26), e mesmo basta gloriar-se alguém de sua
cia (ver Ch. MASSO
v
\ Commentaire des Co- sabedoria para se ver tornado louco (Rm 1.22).
lossiens, Neuchâtel et Paris, 1950, p. 118), re- Mas não obstante isso, as boas novas da salva-
sulta-nos trabalhoso perceber o matiz que separa ção serão anunciadas igualmente aos sábios,
o dom da sabedoria do dom da ciência (ver como aos areopagitas de Atenas (At 17.16-34).
J. HÉRING, Commentaire de la première Ep. Êstes sábios de Atenas não foram então condu-
aux Corinthiens, Neuchâtel et Paris, 1949, p. zidos à fé, nem por isso Paulo deixará de afir-
109). Em
qualquer hipótese, sabedoria não é mar "Sou devedor a gregos e bárbaros, a sá-
:

gnose respeita o que há oculto no mistério de


: bios e ignorantes" (Rm 1.14). Será pois pre-
Deus. Ap 13.18 e 17.9 mostra bem que a sabe- ciso que o sábio segundo a carne se converta,
doria é e não deixará de ser a inteligência das abandone sua sabedoria (pelo menos para o
coisas misteriosas. Ela não é dada a todo ho- uso orgulhoso que dela pretendia fazer) e se
mem, nem virá a ser uma faculdade geral dos faça louco e insensato aos olhos do mundo só :

homens "Aqui manifesta-se a sabedoria quem


: : assim tornar-se-á sábio perante Deus (ICo
tiver inteligência calcule o número. ." (13.18). . 3.18).
R. MEHL
5. Tal sabedoria não tem apenas um alcance
SACERDÓCIO
mas necessàriamente reveste um ca-
intelectual,
ráter prático e moral. Caráter salientado por VT
São Paulo, como p. ex. Cl 4.5: "portai-vos com Muito embora os relatos referentes aos pa-
sabedoria para com os de fora", máxima de triarcas Abraão, Isaque e Jacó, não mencionem
prudência espiritual que insta a "apanhar as sacerdotes, podemos supor que, desde os exór-
oportunidades para manifestar o Cristo" (Ch dios. Israelcomo as demais nações, um
teve,
MASSON, ibid., p. 152). Com
unica- efeito, sacerdócio. A
época de Moisés conhecia um
mente os perfeitos logram compreender à pri- sacerdócio muito completo, conforme consta no
meira vista a sabedoria divina e reconhecê-la Pentateuco, porém este documento deve ser
pelo que ela é na realidade (ICo 2.6). Consta usado com prudência, pois o sacerdócio e o
pois que, de conformidade com esta sabedoria culto descritos no Êxodo e no Levítico são o

da —
prática, não é possível prescindir do mistério
*> revelação nas tarefas do ensino e da
reflexo do sacerdócio e culto observados pelos
autores no Templo de Jerusalém. Moisés apa-
evangelização. Quando Paulo declara (Ef 5. rece, contudo, como juntando na sua pessoa as
15) "Vigiai pois a vossa vida prudentemente:
:
funções tríplices ou ministérios de rei, sacer-
portai-vos não como insensatos, mas como sá- dote e profeta. Quando Israel entrou finalmen-
bios", êle visa um
comportamento que seja o te na terra de Canaã, encontrou-se em presença
fruto não da moderação pagã, mas do nôvo nas- de uma abundância de santuários atendidos por
cimento à nova vida, e que testemunhe do acesso sacerdotes. Com toda naturalidade adotou-os.
à dignidade de "filhos da luz", isto é de filhos Os sacerdotes tinham por missão concertar os
esclarecidos, conhecedores da sabedoria miste- sacrifícios e dar respostas a quem vinha con-
riosa e escondida de Deus. Tiago não inova, mas sultar a Deus. Usavam-se para êste efeito meios
simplesmente acentua ainda mais o sentido prá- proporcionados, como os Urim e os Tumim, es-
tico da sabedoria cristã esta é ligada à pa-
: pécie de dados que o Sacerdote levava num
ciência em sofrer as provações
(1.5; 3.17), à avental guarnecido do ephod (bolso, ISm 23.9,
mansidão (3.13-15), quer dizer, a todas as não confundir com o ebhod de linho, vestido
virtudes que são sinais da renovação do homem muito curto que vestia Davi para dançar diante
apanhado pela graça e sabedoria de Deus. A da arca: 2 Sm 6.14. ou com o ephod de Gedeão
origem sobrenatural desta sabedoria prática é que era um ídolo: Jz 8.27). A decisão conse-
evidente, pois aparece oposta à sobedoria "ter- guida mediante êstes dados era chamada tôrâh.
restre, carnal, diabólica" aliás o hino à sabe-
:
O sacerdote era o intermediário entre o povo
doria de Tiago 3.13-18 assemelha-se surpreen-
e a divindade a aue pertencia, pois. como o rei

—— >
dentemente ao hino à caridade de ICo 13.
( Ministério VT), era ungido com a
Há pois, evidentemente, através do NT intei- unção de óleo. O
cargo sacerdotal trans-
ro, umaoposição radical entre a sabedoria hu- mitia-se hereditàriamente. O VT
conhecia fa-
mana, cuja origem não procura o elucidar NT mílias e mesmo dinastias de sacerdotes, como
filosoficamente, e a sabedoria misteriosa de a dinastia oue fundou Eli em Silo ou Aquime-
Deus. Consta com meridiana luz que a sabedo- leaue em Nobe (ISm 21). Quando Davi se
ria carnal não pode perceber a revelação de apoderou de Jerusalém, viu-se senhor duma ci-
Deus nem as coisas de Deus. Não significa dade que tinha santuário, culto e clero. Não fal-
292 SACERDÓCIO

tam indícios que insinuam que Davi os guardou, quiel. Além dos levitas, Esdras menciona ainda
Sadoque representante do sacerdócio cananeu cantores, porteiros e netineus (2.41ss).
figurando ao lado de Abiatar descendente de Sabemos que depois do exílio o número de
Aajrão.
sacerdotes subiu a cifras consideráveis. Esdras
Visto ser pessoa sacra, o sacerdote devia ob- enumera seis mil (2.36-39) e o Cronista men-
servar numerosas prescrições visando conservar- ciona 24.000 levitas, 4.000 cantores e 4.000
lhe seu caráter. Repetidas purificações espera- porteiros (lCr 23.4-5). Por muito lendárias
vam-no, pois tinha ocntato com o Santo entre que possam parecer estas cifras, elas explicam
os Santos, Deus. Devia ser isento de qualquer bem o fato de os sacerdotes não terem a possi-
defeito físico ou doença (Lv 21.16). Não devia bilidade de morar em Jerusalém, bem como a
raspar a cabeça nem cortar a barba (21.5), sua divisão em vinte e quatro classes (lCr 24.
nem tocar num cadáver (21.1). suaA —>
timenta aparece descrita com grande luxo de
ves- 7-18) que funcionavam por turnos semanais e
logo se retiravam fora da capital daí os nu-
:

pormenores em Ex. 28. Cada uma das peças merosos povoados de sacerdotes na vizinhança
dessa indumentária servia para distinguí-lo do de Jerusalém.
profano, a proclamar o que levava gravado na Os sacerdotes desempenhavam a missão do
lâmina de ouro puro afixada a sua mitra "Con-
:
culto oficial, isto é do conjunto de orações e de
sagrado ao Senhor!", isto é, propriedade de gestos simbólicos que visavam conservar a san-
Iavé. (Ex 28.36). Aordenação dos sacerdotes
dava lugar a uma cerimónia solene que tendia
tidade. Neste ritual destacam-se as
tas religiosas que tomavam tanta amplitude
—>
fes-

a afirmar que os consagrados pertencem a um que as 24 clases sacerdotais precisavam ser mo-
campo peculiar, ao campo do sacro (Ex 28.41: bilizadas.Em outubro celebrava-se o grande
29.7; 30.30; Lv 8.12,33). dia das expiações: o Sumo Sacerdote, chamado
O sacerdócio geralmente aludido na Bíblia Arão no Lv 16, penetrava no Santo dos Santos
é o do Templo de Jerusalém. Era chefiado pelo e fazia a aspersão de sangue. Cada sábado es-
Sumo Sacerdote cujo protótipo é Aarão, e que tava marcado com cerimónias onde os sacerdo-
presidia o colégio constituído pelo Vice-Sumo tes desempenhavam o papel principal. Centrali-
Sacerdote, por um superintendente do Templo,
por porteiros e uma legião de simples sacerdo-
zava-se o culto em tôrno do —> sacrifício
que é uma oblação feita a Deus. Os particulares
tes. A suprema autoridade tanto civil como reli- ofereciam sacrifícios para expressar sua grati-
giosa descansava nas mãos do rei, proprietário dão, para pagar uma promessa, para conseguir
do Templo. O censo dos judeus regressados do a remissão duma culpa, para apoiar uma sú-
exílio insinua que os sacerdotes foram vários plica. Sacrificavam-se animais ou produtos ve-
milhares (Ed 2.36ss). Eram divididos em di- getais, azeite, farinha, sal, incenso. Salientavam-
versos grupos e classes, além dos sacerdotes se os sacrifícios oferecidos em nome do povo
propriamente ditos também divididos por famí- e cujos gastos estavam a cargo do rei ou dos
lias. Os levitas desempenhavam funções subal- tributos pagos ao Templo. Por Lv 1-7, texto
ternas ; eis por que não suspiram muito por essencial para a legislação sacrificial, sabemos
reintegrar a Palestina, pois, na Babilónia, a que os sacrifícios dividiam-se em cinco classe
ausência de Templo permitiu-lhes tomarem uma conforme a intenção da oblação e segundo o
importância que, de volta a Jerusalém, não po- ritual este, no dizer da Bíblia, veio a ser tão
:

diam conservar. Contam-se apenas 74 que an- elaborado que exigia para o serviço do altar a
seiam por ver mais uma vez os muros de Jeru- colaboração dos sacerdotes, especialistas das
salém (Ed 2.40). Sua origem constitui um pro- coisas santas. Cada dia. sôbre o altar do tem-
blema de difícil solução. Embora a existência plo, oferecia-se o sacrifício quotidiano chamado
duma tribo de Levi fique fora de dúvida, levita sacrifício perpétuo (Nm 28.10,15,24,31, etc.) que
figura como um nome comum dando-se assim na época de Esdras, consistia na imolação dum
pretexto a várias hipóteses —
seriam quiçá des- cordeiro sem defeito, de madrugada e à tarde
cendentes dos sacerdotes cananeus espoliados (Ex 29.38-42; Nm
28.3-8). Esta oblação acom-
pelos israelitas, hipótese confirmada pela sua panhava-se duma oblação vegetal e de libações.
aliança com o estrangeiro, o gèr (gèr, repre- Terminado o sacrifício, os levitas davam início
senta o remanescente nunca totalmente extinto a seus cantos enquanto dois sacerdotes soavam
dos autóctones cananeus; Dt 26.12); ou, se- a trombeta (2Cr 29.26-28; Nm 10.1-2) e o
gundo outros, os levitas seriam os sacerdotes povo congregado no santuário postrava-se para
dos santuários eliminados pela reforma de Jo- a oração. Vários Salmos (24; 48; 81; 82; 92:
sias (no ano 621, 2Rs 22-23) em proveito do 93: 94; etc.) formavam parte do programa
Templo régio funções acessórias teriam sido
;
conforme os dias da semana. Naturalmente, um
confiadas a êstes sacerdotes no santuário de ritual tão pomposo requeria a presença de mui-
Jerusalém. Esta segunda hipótese explica me- tos sacerdotes, levitas e funcionários encarre-
lhor a distinção entre sacerdotes e levitas, des- gados da ordem e limpeza dos numerosos recin-
conhecida do Deuteronômio e afirmada por Eze- tos do templo. Outra atividade dos sacerdotes
SACERDÓCIO 293

era dar resposta aos que vinham a procura da


divina vontade. O VT
contém muitos oráculos
único e perfeito oferecido por
uma
—>Jesus Cristo
vez por todas sóbre a cruz. Na realidade
que são parte destas respostas sacerdotais. é no seu ofício supremo de Sumo Sacerdote que
Os sacerdotes desde os exórdios mais lon- Jesus revelou o mediador perfeito, o sacrifica-
gínquos aparecem como a casta intelectual da dor acabado e a vítima consumada. O perfeito
nação. Nos santuários conservaram-se as tra- mediador: por ser verdadeiro Deus e verdadeiro
dições que estão na base dos escritos bíblicos Homem verdadeiro Deus, Filho de Deus desde
;

Nos círculos sacerdotais, as tradições desenvol- tóda a eternidade (1.1-4) embora confirmasse
veram-se, enriqueceram-se até formar verdadei- entre nós a sua filialidade levando-a à suprema
ras teologias. Quando, no transcurso dos séculos, perfeição mediante sua obediência total e vito-
os escritos bíblicos foram submetidos a reedi- riosa (5.8-10) verdadeiro homem que mani-
;

ções sucessivas, os sacerdotes foram os encar- festou sua solidariedade conosco participando
regados dessa tarefa. A prolongada permanên- de nosso sangue e de nossa carne (2.14-18), so-
cia na Babilónia, longe do Templo, contribuiu frendo as nossas provações e tentações (4.15),
também para desenvolver a atividade dos escri- penetrando até o mais profundo da dor e da
bas que aparecerão tão importantes na época de morte com gemidos e lágrimas (5.7). O sacri-
Jesus. ficador acabado por sê-lo segundo a ordem de
:

Assim como antes do desterro o templo e o Melquisedeque, quer dizer, por exercer o seu
sacerdócio estavam sujeitos à autoridade do cargo para a eternidade sem necessitar de qual-
rei,( assim a situação muda com a desaparição quer instituição carnal (7.1ss), ordem estabe-
da realeza, dando ao clero uma importância cada lecida por um juramento divino excepcional (7.
vez maior, política e religiosamente, e vindo 20ss). Sacrificador eternamente vivo, sem ne-
a ser o Templo a propriedade do sacerdócio. cessidade de sucessor ou de substituta (7.23-
Nos tempos de Jesus o Sumo Sacerdote chefia 25), santo, inocente, sem mácula (4.15; 7.26).
uma verdadeira aristocracia clerical e faz figura Não experimentou a necessidade de oferecer
de rei. cada dia sacrifícios pelos próprios pecados mas
:

Muito embora nos causem uma impressão pe- foi totalmente devotado aos outros (significa-
nosíssima os conflitos entre Jesus e a clerica- ção, aliás, do batismo de Jesus, também). Final-
tura do templo, não podemos esquecer o papel mente não ofereceu outra vítima mais que a st
essencial assumido pelos sacerdotes na conser- mesmo. Em Jesus ofício e oblação, sacerdócio e
vação das escrituras sagradas sem êles, não
: sacrificício, se confundem absolutamente. Por-
estaríamos na posse da Bíblia. tanto êle é também a consumada e perfeita ví-
G. PIDOUX tima da nova aliança a que voluntàriamente se
:

NT ofereceu (7.27; 10.4-10) para expiação dos


Singularmente paradoxal aparece a atitude do pecados do povo (2.17), a que tem sido consa-
NT perante o acerdócio Jesus Cnsto penetra
:
grada pelo Espírito eterno (9.14) de tal modo
no seio da vida cultural de Israel sem desvir- que seu sacrifício é verdadeiramente definitivo e
tuar a legitimidade das instituições sacerdotais irrevogável como é irrevogável a própria mort?
vetero-testamentárias, porém, nem bem passam (9.27) ; seu sacrifício insere-se não num ciclo
uns poucos meses, não mais há cristão que par- litúrgico mas dentro da mesma História que
ticipe do sacerdócio israelita. Como nunca, Deus não retorna Cristo morreu sóbre a cruz "uma
;

aproximou-se dos homens em Jesus Cristo e vez por todas" (9.12,26; 10.10,14) estendendo-
da maneira mais misteriosa entretanto, como
;
se — mercê de Deus —
o benefício da sua
nunca, ficará afastada sedulosamente a palavra morte a todos os homens (2.9).
"sacro". Jesus Cristo oferece um sacrifício sem Mas o sacerdócio de Cristo não termina lá:
precedentes na História, de incalculável alcance, na opinião do autor de Hebreus "o ponto es-
de maneira surpreendente e aparentemente in- sencial" (8.1) é que, pela oblação do próprio
justa porquanto o mundo está somente atento
sangue, o nosso Sumo Sacerdote penetrou uma
à profecia; entretanto não mais há clericatura
vez por todas no Santo dos Santos, além do véu.
e todos os crentes são sacerdotes Para escla-
!

Como se formassem um gesto único, a morte


recer êste paradoxo, disporemos de pouquíssi-
da cruz e a majestosa entrada do Cristo no
mos textos mencionando expressamente as coisas
Santuário celeste aparecem estreitamente as -

sacerdotais um primeiro grupo de citações de


;

ciadas. Jesus é verdadeiramente nosso Rei.


Hebreus nos permitirá contudo relevar a figura
sentado à destra de Deus, e nosso Sumo Sacer-
de Cristo Sumo Sacerdote, e um segundo grupo
dote, que nos abriu caminho e que, perante o
de textos tirados das epístolas esclarecem dèbil-
trono, incansavelmente, intercede em nosso fa-
mente o chamado ''sacerdócio real" da Igreja.
vor (6.19-20; 7.25; 8.1-2; 9.11; 10.11-12;
1 . Jesus Cristo, nosso Sumo Sacerdote. O au- 12.25). Nesta perspectiva o sacerdócio de
tor de Hebreus dá testemunho da nossa reden- Cristo aparece como o caminho real que nos
ção à luz das instituições sacerdotais do VT. O leva à vida, por oposição à lei e aos sacrifícios
VT aparece realizado e cumprido no sacrifício da antiga aliança que conduziam à morte.
! :

294 SACERDÓCIO

Cristo caminhou antes de nós, intercede por nós constante presença do Cordeiro imolado diante
nisto reside a nossa esperança do trono de Deus. Por que êste "templo es-
piritual" na terra, se o Cristo entrou no san-
2. O sacerdócio real da Igreja. Assim somos
tuário celestial? Porque o culto prestado nos
nós, crentes da nova aliança, santificados desde
céus deve continuar da mesma forma na terra,
já e levados uma vez por tôdas à perfeição
até o fim. Por que tal "sacerdócio real"? Por-
(Hb 2.11; 10.14,29). Temos sido feitos par-
que a igreja é a corporação sacerdotal ligada à
tícipes do Cristo pela fé, introduzidos por
Cristo ao —>
descanso de Deus (4.10), uma
vez que não mais recai sôbre nós a obrigação
pessoa do Rei, encarregada de proclamar a
mediação e o senhorio do Cristo. Jesus inter-
cede, santifica-se pelos seus (Jo 17.19): nêle
desesperadora de renovar sacrifícios sem fim
a Igreja ora, intercede, está chamada a santifi-
que só trazem à memória a lembrança de pe-
car-se pelo mundo. Jesus ofereceu-se em sa-
cados sempre renovados (10.3). Do mesmo crifício: nêle a Igreja está destinada a ofere-
modo como tinha a Lei multiplicado as trans-
cer-se em sacrifício (não tem ela outra coisa
gressões, assim o sacerdócio levítico confirmava
para oferecer senão a si mesma), aí será a
a escravidão do pecado, encerrando Israel
oferta viva e santa de nossos corpos que é o
numa pureza meramente carnal. Também, do
culto racional da nova aliança (Rm 12.1).
mesmo modo que agora, nós temos sido justi-
Jesus carregou-se no Gólgota de todos os
ficados para poder viver na obediência; assim
nos vemos livres de qualquer necessidade de
— ^sofrimentos
participa
redentores: nêle a
de seus sofrimentos, não para com-
Igreja

sacrificar (Cristo é nosso sacerdote único e


pletá-los, visto que na cruz tudo está cumpri-
nossa única vítima expiatória) Liberdade que
.

do, mas para conhecer na sua plenitude o so-


nos permite viver no louvor e na ação de gra-
frimento próprio do corpo de Cristo pelo qual
ças que convém a filhos de Deus, inteiramente
asseguramos as dores dos últimos tempos, às
devotados ao serviço do testemunho e da gra-
do parto do nôvo mundo, as do testemunho,
tidão (13.15).
da missão e do martírio (Cl 1.24). Jesus
É dentro desta perspectiva que se inserem
agora os diversos textos que nos falam do nôvo
verteu somente o —> sangue da nova aliança:
nêle, portanto, seu apóstolo pode também ver-
sacerdócio. Na sua misteriosa palavra sôbre ter seu sangue como uma libação que consagra
o templo, Jesus tinha anunciado que o recons-
a fé dos fiéis (Fp 2.17). Até mesmo na Co-
truiria (ver O. CULLMANN, Les sacrements
leta em favor da Igreja de Jerusalém, encon-
dans 1'Évangile johannique, Paris, 1951, p. tram os têrmos sacrificiais do VT. São Paulo
41 ss) sôbre as ruínas do sacerdócio levítico,
:
vê nisso o duplo sinal da oferta de nossas vidas
Cristo reconstruiu de fato um templo nôvo no
e da comunhão dos santos, mas colocado sob
intervalo dos três dias de sua morte e ressur-
a insígnia do serviço da Igreja: o auxílio mútuo
reição edificou o corpo de Cristo, a sua
—> —> e a diaconia, ao mesmo tempo que a adoração
:

Igreja, Templo do Deus Vivo (2Co ou a intercessão, constituem seu sacerdócio.


6.16), casa espiritual (IPe 2.5). Se, pois, em
nenhum lugar do NT
achamos qualquer alusão Assim, visto que pouco a pouco acaba-se a
a um ministério sacerdotal especial ( que = ruptura entre a Igreja nascente e o culto da
guarde a distinção entre sacerdotes e fiéis e antiga aliança (os apóstolos não sobem mais
quem reconstituir uma clericatura ou renovar ao Templo de Jerusalém senão para orar),
o sacerdócio redentor, torna inútil o sacrifício enquanto que se afirma o desaparecimento de
da cruz e desconhece a atual intercessão do
Nosso Senhor), é, entretanto, êste mesmo texto
todo clericato no seio dos —> ministérios da
nova comunidade, pode-se pelo menos reencon-
de IPe 2.5 que declara: "...vós vos edificais trar ao longo .dos escritos do NTum vocabu-
numa casa espiritual para serdes um sacerdó- lário sacerdotal que concerne tanto à edificação
cio santo que oferece sacrifícios ESPIRITUAIS como à missão da Igreja, mas que recebeu do
agradáveis a Deus... Vós sois a raça eleita, sacrifício do Gólgotaum sentido completamen-
o sacerdócio real ..." Texto ao qual responde a te nôvo. Não haverá, pois, nada institucional
"liturgia celeste" do Apocalipse: "Lavou-nos neste sacerdócio tão particular à Igreja; ori-
êle de nossos pecados pelo seu sangue, e nos ginou-se de um movimento mesmo do Espírito
constituiu reis e sacerdotes para Deus seu Santo. É êle que faz dêste templo reconstruí-
Pai..." (Ap 1.6; 5.10; 20.6). Oferecendo-se do em três dias, sua morada, e a palavra
como vítima pura e sem mancha, o Cordeiro de "espiritual" volta como um leitmotiv em tôdas
Deus que tira os pecados do mundo fêz de seu as passagens, para caracterizar bem que esta
povo de crentes um povo de sacrificadores. casa em que o sacerdócio, os sacrifícios e ofer-
Porém, se doravante não há mais sacrifício
redentor para ser oferecido, por que então "êste
tas, o — >— >
louvor, os
culto (em espírito e verdade), o
hinos e as —>orações da
povo de sacerdotes"? A fim de dar testemunho, Igreja, tudo isto é a obra de um só e mesmo
diante do mundo, pelo louvor e pregação, do espírito.
sacrifício cumprido uma vez por tôdas, e da M BOUTIER
SACRIFÍCIOS 295

SACRIFÍCIOS (Am 5.25), mas os textos mais arcaicos re-


velam claramente que têm sido ofe-
sacrifícios
VT recidos de fato, sendo, pois, falsa neste ponto
1. Oferecer sacrifícios à divindade não é uso a perspectiva histórica dos profetas.
peculiar a Israel. Em
formas muito diversas,
NaHistória do sacrifício em Israel, constata-
quase todas as nações o conheceram e prati-
mos que o exílio de Babilónia marcou um
caram. Embora seja vão intentar descobrir uma corte profundo. Os acontecimentos políticos e
origem única de todos os sacrifícios, parece
as catástrofes militares que repercutiram tão
evidente que várias idéias têm contribuído para
tràgicamente na consciência popular deviam
sua formação e desenvolvimento. Na época fatalmente atingir os hábitos cultuais e fato ; —
mais remota que atingem nossas documentações
(e a Bíblia não remonta muito longe), consta-
digno de estudo —
somente depois do exílio
é que se redatam textos legislativos prolixos re
tamos a coexistência de sacrifícios muito varia-
lativos ao culto, dando-nos uma exposição siste-
dos uns são uma oblação festiva e alegre à
:
mática e uma especificação dos sacrifícios que se
divindade (Ex 23.15; Dt 16.16) outros devem
;
deviam oferecer nesta ou naquela circunstância.
selar umaaliança entre os homens (Gn
Antes como depois do exílio encontramos os
31.44-54) ou entre homens e a Divindade (Ex
mesmos sacrifícios, mas constatamos que sua
24.9-11); e outros têm por meta alimentar
importância relativa foi modificada enquanto os;
realmente a divindade (Cf os pães da proposi-
sacrifícios de expiação tomaram lugar e signifi-
ção, ISm21.1-6). A
expressão "o pão de
cação maior, os outros passaram para o segundo
Deus" que nossas versões acostumam traduzir
plano.
por "o alimento de Deus" aparece amiúde no
Código Sacerdotal para significar o sacrifício Antes do exílio temos apenas narrações, e
(Lv 21.6,8,17). Alhures, os sacrifícios são sobre elas estamos reduzidos a tentar recons-
oferecidos para expiação dos pecados (Lv truir um sistema sacrificial vemos bem as cir-
;

16.11). Perante esta diversidade, não é possí- cunstâncias em que os sacrifícios foram ofere-
vel afirmar que de um para o outro se realizou cidos, mas em parte nenhuma encontramos
uma transição cujo desenvolvimento orgânico alguma teoria sacrificial. Nos exórdios, os
poderíamos observar. Não remontando os sa- hábitos sacrificiais de Israel parecem ter sido
crifícios a uma mesma e única fonte, é certo idênticos aos das tribos vizinhas de mesma
que desde os exórdios eles têm sido muito di- raça. E para épocas mais remotas, os textos
versos. Igual constatação parece evidenciar-se de Ras Schamara da Fenícia setentrional nos
entre povos muito mais antigos que Israel. fornecem indicações muito preciosas. Através
Qualquer reconstrução teórica desta suposta dos relatos do VT
não podemos encontrar um
evolução corresponderia mais aos nossos mol- quadro algo sistemático, porém os traços gerais
des lógicos do que aos pensamentos dos povos nêles insinuados correspondem à realidade.
antigos. As práticas ainda vigentes entre os
povos da Austrália ou da África não nos auto- 3. Todas as circunstâncias da vida quotidiana,
rizam a estabelecer analogias e concluir em tristes e alegres, prestam ocasião a sacrifícios.
qualquer paridade para o remoto Israel. Ade-
mais, convém não esquecer, ao falarmos de sa-
Nos dias
com grande
—> festivos, celebram-se sacrifícios
júbilo (ISm 20.6). Uma peregri-
crifícios, que existiam oblações sangrentas e
nação anual permite sua celebração numa forma
ofertas não sangrentas, e que ambas tinham,
bem mais íntima (ISm 1.3-8). Na ocasião
nas épocas mais arcaicas, igual importância e
da colheita da fruta, do grão, do vinho, do
valor teológico ambivalente.
óleo, parte dela é oferecida à divindade em
2. Conforme certos textos, os sacrifícios re- prova de gratidão. Muito embora êste senti-
montam-se às épocas mais longínquas Caim : mento de gratidão domina desde os tempos
e Abel ofereceram sacrifícios (Gn 4.3-4). mais remotos, não deixamos de ver com igual
Porém, na afirmação dos Documentos sacer- clareza que ainda mais remotamente a oferenda
dotais, Moisés foi quem recebeu revelação das das primícias tinha por finalidade retribuir à
pautas sacrificiais estabeleceu regulamentos
e divindade a parte que lhe correspondia de todos
muito precisos. Esta
teoria passa por 'alto os produtos da terra, podendo assim os fiéis
totalmente a atividade sacrificial dos patriarcas comer sem temor a parte restante. Era u'a
que fontes mais antigas evidentemente relatam. maneira de libertar a colheita do tabu e tor-
Assim Noé (a narração do dilúvio pertence ná-la utilizável na vida profana (primícias).
às fontes iavistas), nem bem saído da arca. Se, voluntàriamente ou não, alguém omitisse
oferece um sacrifício ao Deus que o salvou estas a terra tornava-se menos
cerimónias,
(Gn 8.20-22) o relato eloísta (sacerdotal)
; fecunda (Os 9.3ss). Quando uma criancinha
paralelo nada diz respeito a tal sacrifício. Os é desmamada (Gn 21.8), quando celebram-se
profetas afirmam igualmente que mesmo no bodas, quando se recebe a visita dum hóspede
deserto os israelitas não ofereceram sacrifícios ilustre (Gn 18.6), um banquete festivo con-
: . :

296 SACRIFÍCIOS

grega a gente e o cerimonial principia com recer o sacrifício, tanto o rei chefe do povo
um sacrifício, seja êste mencionado ou não pelo como o simples chefe de família. Mas, desde
texto sagrado: o sacrifício é parte integrante muito cedo, vemos intervirem homens especia-
da festa. Por outra parte, antes do Deutero- lizados, melhor qualificados, que assumem o
nômio, ninguém pensaria em imolar um ani- ofício de sacrificadores (Jz 17.1-13). Êstes
mal de maneira profana a carne, aliás, não
; tomam cada vez maior importância até con-
pode faltar num banquete sério. Celebra-se um
tratado, o sacrifício selará sua conclusão (Gn
seguir o privilégio de sacrificar (
tério NTe Sacerdócio VT)
Minis-
Nada anormal.
—>
31.54). Inicia o homem alguma empresa im- que cada santuário do país tenha tido usos e
portante, o sacrifício implorará a ajuda divina. costumes sacrificiais particulares mas, de fato, ;

No campo de batalha, o sacrifício ajudará a só conhecemos as sistematizações descritas pelo


conhecer a vontade de Deus e o comprometerá Códex sacerdotal estabelecidas na base do que
a acudir para auxiliar os seus (ISm 7.8ss; se praticava no Templo de Jerusalém que a
13.8ss). Outras circunstâncias obrigam maior reforma deuteronômica erigiu em único santuá-
prudência o fiel restringe-se a fazer um voto
; rio autêntico. Não consta que êste Códex
"Se Deus fôr comigo, oferecer-lhe-ei tal ou aportasse grandes inovações mas sistematizou
;

qual sacrifício" (Gn 28.20ss; 11.30ss). Jz o que desde muito tempo vinha praticando-se
Parece que não houve diferença entre cumprir disto, contudo, não temos prova alguma formal.
um voto e oferecer um sacrifício de ações de A sistematização sacerdotal não deixou, como
graça. Temos a impressão de que, nas épocas é natural, de refletir os novos sentimentos e
mais remotas, o fiel pensava sinceramente em as novas necessidades do povo post-exílico, e de
compartir o seu alimento com a divindade; daí colocar em plano de relêvo coisas antes menos
a expressão "pão da divindade" que designa acentuadas
amiúde o sacrifício. Se Deus está justamente
irritado contra os seus, como sentar-se a comer 6. No sistema sacerdotal, a parte oferecida à
sem mais nem menos com Primeiro é êle? Divindade é que determina a classificação dos
preciso aplacá-lo (2Sm 24.15ss; ISm 26.19) sacrifícios holocaustos e sacrifícios de ação de
:

antes de compartir o "pão da Divindade" em :


graça. Entre ambos, não há diferença qua-
determinados casos, o sacrifício é queimado litativa, mas só quantitativa. Pois, no ho-
totalmente sobre o altar, para que chegue se- locausto, a vítima, de preferência animal, é
guramente à divindade holocausto, menos fre-
: queimada inteiramente sóbre o altar (ISm 7.9:
quente que os demais sacrifícios. Dt 33.10), coisa bem clara em nossa palavra
4. Aolado dos sacrifícios oferecidos pelos
"holocausto" (de holos — todo, inteiro e

fiéis, figuram naturalmente os oferecidos re-


Kaio — queimar) embora não precisada pela
palavra paralela do texto hebraico. No sacri-
gularmente nos diversos santuários a favor de
fício de ação de graça, parte apenas da vítima
tôda a comunidade e que presupõem uma orga-
era queimada e o resto era servido aos sacri-
nização muito complexa e um clero já organi-
ficadores e aos sacerdotes. Êste foi o sacrifício
zado. A esta categoria pertenciam outrora os
comum antes do exílio, com características de
pães da proposição (ISm 21.4). Mais tarde,
festa e de banquete que mesmo degeneravam
no Templo de Jerusalém oferecia-se diàriamen-
te, de manhã um holocausto à tarde um sacri-
;
amiúde em licenciosidades e excessos razão —
pela qual os profetas reagiram tão profunda-
fício alimentar (lRs 18.29; 18.36; 2Rs 16.15).
mente (ISm 1.14). Chega-se até a dizer sim-
5. As narrações também nos fornecem as es- plesmente "comer e beber diante de Iavé"
:

cassas indicações que temos relativas à ma- para indicar um sacrifício (Dt 12.18; 14.26;
neira de oferecer os sacrifícios. Com o óleo 15.20; Ex 32.6; Jz 9.27; 2.8, etc). Am
unge-se a pedra sagrada (Gn 28.18), mas o Lemos também que, próximo ao altar, encon-
vinho e a água são derramados perante Iavé trava-se às vêzes uma sala destinada aos ban-
(ISm 7.6) Os pães colocam-se no santuário
;
quetes Cl Sm 9.22; Jr 35.2).
(ISm 21.3ss), e, mais tarde, no móvel ad-hoc Não pode oferecer um sacrifício quem não
construído para o templo de Jerusalém. Estas
classes de sacrifícios, porém, não são os mais
estiver em estado de > —
pureza legal. Conhe-
cemos mal as regras que eram, sem dúvida,
frequentes. Muito mais frequentes são os
diferentes dum santuário para outro; cremos,
casos nos que o fogo devora as vítimas quer
sangrentas, quer incruentas (Jz 6.21). Amós contudo, que todas elas refletiam a mesma
relata que bolos são depositados aos pés da linha geral embora variassem nos detalhes.
divindade e queimados (Am 4.5) para que Para a época mais antiga, devemos mencio-
cheguem mais diretamente ao augusto destina- nar os sacrifícios humanos parecem ter sido
:

tário. sempre excepcionais e repugnaram sempre ao


No sacrifício não há cerimónia secreta que iavismo (Gn 22.1-18; Jz 11.29-40; lRs 16.34;
exclusivamente o sacerdote possa legitimamente 2Rs 16.3). Durante o reinado de Manassés os
celebrar. Primitivamente cada qual podia ofe- sacrifícios de crianças, praticados pelos cana-
SACRIFÍCIOS 297

neus, volveram a conhecer o favor do povo, sados, osProfetas consideravam-nos caracte-


sob influências aparentemente estrangeiras. rísticos dos cultos idolátricos ou pelo menos
influenciados por êles (Jr 7.18; 32.29). No
7. O regresso do exílio marca uma nova Códex sacerdotal, a libação de água ou de
época, para nós abundam textos muito
pois vinho acompanha os sacrifícios sangrentos o ;

mais sistemáticos: leis de Ezequiel, e Códex óleo reserva-se aos sacrifícios incruentos (Lv
sacerdotal nas suas diversas estratificações his- 2.1ss). Nesta época o termo minkha que an-
tóricas e sobretudo um espírito novo anima
;
tigamente designava qualquer forma de sacri-
a vida religiosa repercutindo diretamente sobre fício reveste a significação doravante técnica
o conceito do sacrifício em Israel A siste- .
de sacrifício incruento primícias, bolos, grão
:

matização é importante : ela subsistirá até a torrado, pães de proposição. As minkhas acom-
destruição do Templo em 70 e corresponde a panham e alternam com os sacrifícios sangren-
tudo que transparece nos textos do NT. Porém, tos (Nm 15 lss) . oferecidas por gente pobre
;

ainda nos pontos que a falta de documentos são válidas também para a expiação. Os per-
não permite elucidar, as modificações rituais fumes usados comumente entre os Cananeus
foram pouco importantes somente nas estrati-
;
não estão mencionados nos textos para os Israe-
ficações mais novas do Códex sacerdotal fa- litas; não obstante isso, é de supor-se que os
zem-se presentes algumas inovações, assim, ao empregavam, não chegando a ocupar lugar de
final desta longa evolução, vemos que conse- relêvo senão no Códex sacerdotal. Acompa-
gue uma posição dogmática especial o Sumo nhavam outras oferendas, significando prova-
Sacerdote (Lv 21.10-15), chamado incorreta- velmente uma coisa muito preciosa. Nos sa-
mente de o Grande Sacrificador, em muitas crifícios de ação de graças, distinguiam-se
de nossas versões. Pela sua centralização do sacrifícios de louvor, sacrifícios para o cum-
culto exclusivamente em Jerusalém, a reforma primento dalgum voto, e os sacrifícios volun-
deuteronômica tinha consumado já a separação tários, isto é, não prescritos pela Lei (Lv
entre sacrifícios e vida diária tendência ainda;
7.11-21 22.17-25;
;
Nm
15.1-16) O holocausto
.

robustecida após o exílio. Mas, sobretudo o toma lugar preponderante no Códex sacerdotal,
exílio modificou a concepção geral dos sacri-
e aparece frequentemente revestido dum valor
fícios. Êstes deixam de ser ações de graça expiatório. Sendo sua importância tão grande,
para celebrar os benefícios recebidos de Deus. admite-se que os pobres só ofereçam para ser
O sentimento do pecado, sob os golpes dos queimados animais muito pequenos como rolas
castigos justamente anunciados pelos profetas, ou pombas. Deviam oferecer-se holocaustos em
aguçou-se profundamente, e, consequência na- certos casos bem definidos, entre os quais se
tural, a inteligência dos sacrifícios expiatórios nos mencionam a purificação depois do parto
generalizou-se. Certamente os sacrifícios de (Lv 12), o cumprimento do nazireado (Nm
expiação não são uma novidade ('.Sm 3.14: 6.14). No caso de juntar-se várias oblações
26.19), mas em tempos anteriores não tinham numa só cerimónia, necessariamente deverá
o mesmo valor. Seja qual fôr a sua origem, queimar-se um holocausto. Portanto, nos sa-
eles são um meio pôsto por Deus à disposição crifícios diários, que eram como a oração da
dos homens para possibilitar-lhes reconciliar-se comunidade e que deviam dissimular os pecados
com a Divindade ultrajada e irada pelos peca- do povo contra a ira de Iavé, os holocaustos
dos. Expiar equivale em certo modo pagar
desempenhavam o papel principal. Êstes sa-
uma dívida e um resgate; contudo, na expli-
crifícios pela comunidade eram também ofere-
cação do sacrifício expiatório nunca vemos a
cidos a favor das autoridades e consta, certa-
noção de "satisfação vicária", noção presente,
aliás, em diversos outros contextos do VT mente a partir da época grega, que as autori-
(p. ex. Is 53.4ss). A
vítima não é carregada dades estrangeiras suportavam parte dos gastos
dos pecados em substituição do réu, pois neste bastantes subidos.
caso ela deixaria de ser apta para o sacrifício, Os sacrifícios pelo pecado e os de culpa
como acontece com o bode (Azazel) emissá- nem sempre aparecem bem distintos. Os sa-
rio, que no dia das expiações está carregado crifícios de culpa oferecem-se quando há viola-
dos pecados do povo o bode não é imolado,
; ção da propriedade alheia com o acompanha-
mas expulso ao deserto (Lv 16.20-28). A mento da restituição dos bens roubados. Os
idéia básica, portanto, deve ser outra o sacri- : sacrifícios pelo pecado celebram-se tóda vez
fício é alguma coisa muito preciosa, ainda que um indivíduo tenha transgredido involun-
mais preciosa quando sangrento. Assim expli- tàriamente este ou aquêle mandamento de Deus.
ca-se melhor a classificação sistemática das ofe- Neste caso o pecador impõe as mãos sôbre a
rendas em sacrifício cruentos e incruentos. cabeça da vítima, não para lhe transmitir os
Aliás, encontram-se não raras vezes juntos na próprios pecados (pois tornar-se-ia ela impura
mesma cerimónia, os cruentos e os incruentos. e imprópria ao sacrifício), mas para identi-
Os sacrifícios incruentos, perfumes e libações, ficar-se melhor com ela. Na época da reforma
desempenhavam escasso papel em tempos pas- sacerdotal, vem a ter papel considerável a
:

298 SACRIFÍCIOS

idéia da expiação, mormente da expiação pelo de expiação, passaram a ser meras recordações
sangue (ver —> sangue) não faltam, porém,
;

textos que asseveram que o perdão é conce-


dum passado, matéria de idealizações genero-
sas, aparecerão sublimações da idéia sacrificial.
dido independentemente de qualquer sacrifício. Não mais existindo a prática que podia contra-
Aparente contradição que se resolve distinguindo dizê-las dia após dia, as exaltações pulularam.
o domínio da lei e o domínio da consciência O mesmo aconteceu entre os cristãos que fize-
no domínio da lei, o fiel é considerado obrando ram dos sacrifícios a imagem de realidades
como membro da comunidade, e logo obrigado mais sublimes precisamente em virtude de não
a reparar o dano causado à comunidade pelo mais praticarem-se os sacrifícios.
seu pecado no domínio da consciência e da vida
;

interior, entretanto, é que cada qual entra di-


G. NAGEL
retamente em relação com a divindade. So- NT
mente para os pecados contra a aliança serão
os sacrifícios úteis e eficazes restaurando a 1. Nunca vemos Jesus declarando sem sen-
ordem perturbada pela culpa; entenda-se, pela como era praticado
tido o sacrifício judaico tal
culpa involuntária, pois tratando-se de pecado no Templo de Jerusalém, embora o considere
voluntário ( =
a mão estendida, diz a Bíblia), como pertencente à velha aliança. Mas Jesus
não há mais reparação possível somente a
; rejeita expressamente a concepção errada da-
morte o expiará. Reconheçamos, contudo, que queles que se estimam em regra com as exi-
para os doutores da Lei, o campo do involun- gências da vontade de Deus pela simples obla-
tário era muito extenso, mais certamente do ção dum sacrifício, mesmo que êste seja de
que pensaríamos hoje em dia. Nas relações grande custo (Mt 12.7; 9.13; 23.23). Pois.
pessoais com Deus, a consciência do perdão o sacrifício que, quando muito, podia vir a
não está ligada aos sacrifícios, embora sacrifício ser um meio parcial de encontro com Deus,
e expiação deveriam sempre, na perspectiva torna-se então uma ocasião de endurecimento
teológica post-exílica, ir de mãos dadas. Os e pretexto para uma boa consciência aparente
Salmos, p. ex., acusam nitidamente a oposição e ilusória. Estas são as razões porque Jesus
entre ambos os meios de alcançar o perdão não se interessa pelos sacrifícios da velha
(SI 32.5: 50.7-15; 51.18-19; 69.32; 103.8-15. aliança.
etc). Alhures o perdão é condicionado pela
emenda e não pelo sacrifício (Mq 6.6-8; Pv ça)
A superioridade da nova aliança (

é salientada por certas palavras nas quais


—> alian-

21.3; Dn 4.27; Is 55.7; 58.6-9). Em todos Jesus se dá pelo Messias inaugurando a nova
os casos aqui citados, trata-se de pecados indi- aliança "Eu vos digo, aqui está quem é maior
:

viduais que os sacrifícios normalmente deviam


que o templo ( —>
Templo. Mt 12.6), ou:
"Posso destruir êsse templo e reedificá-lo em
expiar; entretanto, vemos bem claramente
três dias" (Mt 26.61; Jo 2.19; 4.21).
expresso o sentimento de que o perdão está
alhures e não nos sacrifícios. Para conciliar Destas afirmações decorre a) que Jesus é
ambas as concepções, aparentemente contradi- maior que o Templo na sua pessoa Deus se
:

tórias, lembremos que na base de ambas está


faz presente como nunca foi presente no san-

a noção da —> graça e do amor de Deus.


pois tanto o sacrifício como o perdão direto
tuário de Jerusalém; b) que Jesus funda a
nova aliança (ver os três relatos da santa ceia:
nos vêm de Deus. Qualquer consciência reta Mt 26.26-29; Lc 22.15-20; Mc 14.22-25) e
ficará só com os sacrifícios, cuja
insatisfeita que a sua mediação ultrapassa em todo sentido
disproporção com a falta cometida é tão evi- a mediação parcial e provisoriamente realizada
dente. Para encontrar a paz, é preciso obter, pelos sacrifícios. (O autor da Ep. aos He-
além do sacrifício, a graça de Deus, é preciso breus retomará e desenvolverá êste tema.)
oferecer ao Senhor o —>
arrependimento e
o fervoroso desejo de emendar-se. De jeito
Ademais, Cristo é a viva expressão da vontade
de Deus; isto nunca aconteceu com os sacri-
nenhum excluem-se o ato interno e o ato exte- fícios.
rior, devendo, pelo contrário, o interior acom-
panhar e legitimar o externo. Para as almas 2. a) São Paulo, apóstolo dos Gentios, co-
mais fervorosas, o rito sempre acaba ocupando nhecendo profundamente a forma judaica do
um lugar subalterno: sem destruir o sacrifício, sacrifício, menciona-a muito parcamente. Em
elas contam inteiramente com a graça divina. compensação considera com muita atenção a
A ruína do Templo no ano 70 de nossa era. forma pagã do sacrifício. O problema da con-
marcou a interrupção dos sacrifícios num mo- sumação pelos cristãos das carnes imoladas
mento em que, para muitos ambientes judaicos, aos ídolos e as intranqúilidades, que entre os
êles pareciam supérfluos, embora ninguém primeiros cristãos suscitou a dualidade de ati-
tivessem o valor ou a vontade de os abolir. tude (uns a favor, outros contra), pertencem
Quando, por força dos acontecimentos, os sa- a determinada concepção do sacrifício. O pró-
crifícios em geral, e mormente os sacrifícios prio apóstolo aparentementemente vacilou entre
:

SACRIFÍCIOS 299

duas maneiras de compreender o sacrifício pa- também na primeira epístola de Pedro (2.5).
gão: 1.° —
A manducação da carne de víti- 3.° —O único texto paulino em que o têrmo
ma imolada a um ídolo acarreta certa comunhão sacrifício é aplicado a uma oferta monetária
com o falso Deus. O cristão, porém, não deve está em Fp 4.18: Epafrodito me passou às
temê-la uma vez que Cristo já venceu todos os mãos o que me veio de vossa parte uma certa
:

poderes e que todos os principados lhe estão soma para aliviar minha penúria, e que recebo
sujeitos; mas deve abster-se (ICo 10.20). como perfume de suave odor e como sacrifício
2.° — O demónio carece de realidade (ICo 8.4: aceitável e aprazível a Deus.
sabemos que não há ídolo neste mundo e que
há um só Deus), logo, comer carnes que lhe 3. A epístola aos Hebreus, embora raramente
foram imoladas é coisa indiferente unicamente ; empregue o têrmo mesmo de sacrifício, é de
a deferência para com um irmão mais fraco todos escritos neo-testamentários o que nos traz
motivará a nossa abstenção. maiores considerações sobre esta idéia. Com
efeito estabelece uma comparação sistemática
b) Ambas
as atitudes do apóstolo perante
entre o sacrifício da antiga aliança e o de
o pagão assemelham-se profundamente,
sacrifício
Cristo que funda e inaugura a nova aliança.
pois ambas afirmam vigorosamente a vitória
do Cristo. Desta vitória analisaremos aqui um a) O da velha aliança tem sido
sacrifício
aspecto só Paulo por duas vêzes a assemelha
: instituído por Deus, mas agora está ultrapassa-
a um sacrifício de grande valor e de eficácia do pelo sacrifício de Cristo. Era apenas o
sem par. Aos
Coríntios escreve: "Cristo, nossa anúncio do sacrifício real e único eficaz que
Páscoa, imolada" (ICo 5.7)
foi e aos Efé- ; foi oferecido por Cristo, simultâneamente sumo
sios: "Andai na caridade a exemplo de Cristo sacerdote e vítima (Hb 7; 8; 9; 10); b) o
que nos amou e se entregou a si mesmo a sacrifício da antiga lei era temporário e reno-
Deus como oferta e sacrifício de suave odor" vado, o sacrifício de Cristo é eterno e único
(5.2). O Cristo não é uma vítima oferecida (9.25-26) c) o sacerdote era um ser mortal
;

contra sua vontade, mas êle se ofereceu. O e pecador, mas Cristo é o Filho de Deus, o
caráter espontâneo de seu sacrifício é muito Messias, o imaculado (7.11; 8.6); d) o
importante; pois êle é que lhe confere um al-
cance universal a vítima, em vez de ser ofe-
—> sangue do Cristo não sofre comparação
:
com o sangue dos animais (9.12) ;e) o san-
recida por uns poucos e para divina comunhão tuário da nova aliança é o céu e não o Templo
de poucos, ofereceu-se a si mesma, sendo assim terrestre (9.1,11,24).
o seu sacrifício válido para todos e em todos Êste valor sem par do sacrifício "daquele
os tempos. Não tem alcance negativo como na
que se manifestou uma só vez para aniquilar
antiga aliança não apenas apaga as culpas, não
o pecado pelo sacrifício de si mesmo" (9.26)
:

apenas retira o abismo que nos separa/ de Deus,


traz para o crente uma confiança tão segura
mas introduz os pecadores à nova vida cujo que desde já pode aproximar-se de Deus.
ponto inicial é marcado pela ressurreição de
Inversamente quem desprezar e rejeitar o sa-
Cristo.
crifício de Cristo nada mais tem a esperar
c) O
apóstolo emprega igualmente diversas "não lhe resta mais sacrifício pelos pecados,
palavras, todas elas relativas a este conceito mas a expectativa horrível do juízo" (10.27).
de sacrifiício para falar de sua própria vida
ou da vida dos crentes 1.° Se expira em
: — O quarto evangelista é o único que não fala
de sacrifício a propósito da morte de Jesus
consequência duma condenação motivada pelo
Cristo. Antes, considera a Jesus crucificado
seu apêgo ao Cristo (considerado como sacrí-
como "elevado" (3.14), "ascendido ao Pai"
lego pelos tribunais imperiais), Paulo "servirá
(20.17) ou "glorificado" (12.16, etc.) três
:

de libação para o sacrifício e para o serviço da


têrmos que descrevem o conjunto dos atos rea-
fé" dos Filipenses. Esta eventualidade não
lizados por Jesus desde a crucificação até a
deixará de ser para Paulo e para os Filipnses
Ascenção. O primeiro têrmo menciona a ele-
um motivo de alegria e congratulação (Fp 2.17).
vação como ponto de saída, o segundo vê nela
Declarações estas que se situam na mesma linha
a realização da obra, e o terceiro o seu resul-
que a afirmação "para mim o viver é Cristo
:

e o morrer é lucro" (Fp 1.21) 2.° O mi- . — tado.

nistério apostólico faz de Paulo um "liturgo", Encontramos aqui certos aspectos da epístola
um ministro de Jesus Cristo. Os pagãos con- aos Hebreus, porém, sem qualquer menção do
vertidos constituem a "oblação" que leva ao sacrifício de Jesus. A
morte do Messias parece
Senhor (Rm 15.16). Na mesma ordem de coisa natural e necessária.
exortadas a oferecer seu
idéias, os crentes são Em suma, todos os autores do NT, com
ser inteiro em
oblação viva e santa, agradável exceção do quarto Evangelho, dão um lugar
a Deus, sendo isso da parte dêles uma litur- preponderante à morte de Jesus Cristo conce-
gia, um culto lógico (Rm 12.1). Maneira
de compreender o sacrifício que encontramos
bida como um sacrifício ( —>
Cru2). Entre-
tanto, todos sentem a insuficiência desta afir-
;
:
;

300 SALVAÇÃO

mação: Cristo mesmo salienta a vontade do escravidão, etc. a palavra, então, toma um
;

Deus vivo cumprindo-se no seu sacrifício sentido matizado conforme a circunstância em


Paulo apresenta a nova vida (decorrente da causa sarar, viver feliz, vencer, ver-se liber-
:

ressurreição) como necessário corolário do tado, etc. Destarte passou a um plano ainda
perdão (decorrente da morte) a epístola aos
; mais geral relacionando-se com o conceito da
Hebreus focaliza a entrada de Jesus na glória salvação do homem ou do povo, ou do julga-
celeste corno entrada num santuário eterno ao mento final de Deus,
ao final dos tempos.
qual todos nós teremos acesso por nossa vez Veio, pois, a ligar-se às concepções escatológi-
e, finalmente, o autor do quarto Evangelho re- cas e messiânicas.
sume tôda a obra de Cristo na sua morte (3.4) Um substantivo se derivou dêste verbo
seguida de seu retorno ao céu, retorno que nos (mochia') com o significado de: salvador. É
dá acesso à glória celeste. dado de atributo a homens que libertaram
Aí. CARREZ Israel dalgum inimigo ou dalgum opressor
(v.g. os Juízes, Jz 3.9,15). Podem coexistir
SALVAÇÃO vários salvadores (Ob 21). Quase sempre,
porém, êste têrmo é reservado a Deus Deus
VT
:

é quem salva o homem ou o povo e não há :

Como para muitas outras noções bíblicas, outro salvador (Is 45.21). Digno de menção
bastante difícil é reunir numa
perspectiva sin- é ter dado êste verbo o famoso Hosannak :

tética o conjunto de idéias diversas relativas (Hochia'na =


salva pois!), bem como entrar
à salvação. Pois a concepção não é absoluta- radicalmente na formação de vários nomes
mente idêntica nos diferentes livros do VT, e, próprios célebres Isaías, Oséias, Josué e Jesus.
:

de um profeta para outro, encontram-se dife- Formou igualmente o têrmo yécha, usado para
renças notáveis. Não sairemos aqui do plano cumprimentar e expressar votos ( salve, vi- =
geral, nem analisaremos minuciosamente os múl- tória, ventura, prosperidade, paz. Corresponde,
tiplos aspectos do problema. às vêzes, à palavra Schalom =: paz).

1. A idéia de "salvação" encontrou, para se 2. A noção da salvação comporta, pois, cer-


expressar no vocabulário hebraico, vários ter- tos elementos que agora intentaremos elucidar
mos dos quais mencionaremos três principais. e delimitar :

Frequentemente encontraremos o verbo pedah a) A


salvação é primeiramente uma liber-
que significa primordialmente: "adquirir algu- tação material e concreta diz respeito à vida ;

ma coisa ou pessoa como propriedade, a preço do homem ou do povo nas múltiplas peripé-
de dinheiro ou dalguma outra coisa", pràtica- cias em... que corre perigo.
Ser salvo equivale
mente o nosso comprar, ou melhor, vol- a sair ileso de uma situação perigosa em que
ver-a-comprar (Ex 13.13; 34.20; Jó 6.22-23), se arriscava um fracasso, uma derrota ou à
resgatar. Quando é Deus quem resgata seu morte. O Israelita sóbre o campo de batalha
povo, não há preço Deus obra por mera graça,
:
(Dt 20.4), ou o fiel atacado pela doença ou
gratuitamente, sem nada pedir em troca. a angústia moral (SI 6.5; 69.2, etc), volta-se
Assim é como salvou Israel da escravidão do para o seu Senhor em procura de libertação
Egito (Dt 7.8). Em
idêntico sentido é usado
ou de saúde. Salvar é, pois, ajudar no sentido
o verbo gaal: antigamente gaal representava mais material, como um amigo que cuida de
o ato da vingança, pois, cometida alguma
seu enfêrmo, como um batalhão que socorre
ofensa ou crime contra um membro da tribo
outro atacado por forças superiores.
ou do clã, o parente mais próximo da vítima
devia vingar o sangue derramado, vindo a ser b) No VT, a salvação aparece mais fre-
o go'el ou vingador do sangue. Depois o mes- quentemente como uma libertação coletiva e
mo verbo veio a ser empregado extensivamente nacional do que individual. Evidentemente, a
para re-comprar, libertar um escravo, salvar salvação individual ocupa lugar importante, es-
um condenado, vindo a ser o go'el o redentor. pecialmente na expressão da piedade individual
Verbo aplicado inclusive a Deus (Ex 6.6). cujos numerosos e prolongados ecos ressoam
O verbo, porém, que significa mais exatamente nos Salmos contudo, mesmo nessas efusões
;

salvar, é yacha, mais usado na voz passiva (ser individuais ou nesses socorros individuais, não
salvo) e causativa (fazer salvar, mandar sal- é fácil discernir o que pertence ao indivíduo
var) . Primordialmente, esta raiz parece conter do que concerne à comunidade o caráter litúr- ;

uma idéia de espaço, de amplitude, de largura gico do Saltério proíbe qualquer discriminação
estar à larga, à vontade. Seu contrário é algo radical que gostaríamos de fazer. Geral-
tsarar, estar muito junto, estar em dificuldade, mente falando, é questão da imediata salvação
viver com mesquinhez e com angústia. Do ou da futura libertação do povo ou da nação
sentido primitivo passa-se logo a uma significa- israelita. A
salvação apresenta-se ligada às
ção mais vulgar libertar ou salvar dum mal
: circunstâncias políticas que urdem a História
qualquer enfermidade, perigo, guerra, morte,
: de Israel, não sendo, pois, uma libertação em
SALVAÇÃO 301

geral, independente dos casos particulares ;


pelo etc.) Uma segunda noção aparece no VT,
.

contrário, a Bíblia fala de tal ou qual salvação desenvolvendo-se, porém, na literatura extra-bí-
especial da escravidão do Egito, da opressão
:
blica: a noção apocalíptica da salvação, sobre-
dos povos vizinhos, das ameaças assíricas, das vindo esta na forma duma catástrofe geral que
invasões babilónicas, do desterro, da conflagra- destruirá o universo inteiro a seguir começará ;

ção geraí dos povos escatológicos, da ira de o julgamento divino ao qual aparecerão todos
Deus quando do advento do reino. A esperança os mortos ressuscitados finalmente o advento
;

messiânica de Israel foi sempre revestida (se do Messias para a instauração do reino eterno
cabe a expressão) dum manto nacional e po- sôbre novos céus e nova terra (Is 65.17; Dn
lítico a salvação coincidirá com a restauração
: 7 e 12).
do trono de Davi, com a reconstrução nacional, A
noção de uma salvação pessoal íntima,
e)
com o restabelecimento do reino livre, próspero, isto da libertação do pecado com a conse-
é,
vitorioso e eterno. guinte alegria do perdão, não é alheia ao VT,
c) Semelhante salvação é obra, exclusiva- porém aparece muito raramente (p. ex. SÍ
mente, de Deus. Deus é quem salva tanto o 51.14).
povo como o indivíduo. Os verbos que acaba- Isaías, o maior profeta da era do exílio,
mos de enumerar no § 1 aparecem quase sem- escreveu sem dúvida as páginas mais explícitas
pre com Deus por sujeito. E mesmo quando do VT
sôbre a salvação, dando a esta noção
homens são enviados como salvadores, Deus é o seu sentido mais completo e as suas pers-
quem os envia e os dirige para libertar Israel. pectivas mais vastas descreve a salvação como
;

Embora portadores de mensagens diferentes, nacional e ao mesmo tempo universal, como


os profetas coincidem em afirmar que nem o imediata e como futura, de alcance coletivo e
rei de Israel ou de Judá, nem a aliança com juntamente individual (Is 40-55).
os Assírios ou Egípcios, nem o poderio militar
são capazes de salvar Israel, mas quem salvará
F. MICHAELl
é Deus (Os 5.13; Is 31.1; SI 33.16-17, etc). NT
De modo mais preciso, a obra da salvação di-
vina caracteriza-se por três aspectos Deus :
O verbo salvar e o substantivo salvação
obrou no passado, salvando Israel da escravidão aparecem mais de 150 vezes no NT, correspon-
do Egito. A saída do Egito ficou na tradição
dendo mais de 100 vezes ao verbo, ora no
ativo, ora no passivo. Esta constatação limi-
bíblica como o ato capital que manifestou a
nar não carece de importância, pois para o NT
salvação de Deus. No presente, Deus salva
não interessa tanto a idéia da salvação como
seu povo em qualquer situação de perigo,
pois ele é fiel às suas —> promessas e
o
em
fato histórico
—>
do resgate
Jesus Cristo e
"cumprido"
em
à—
em
]> aliança. De modo especial, se permitiu,
castigo dos pecados, o exílio de Israel na
1 . Porém, o NT
conhece também o signifi-
breve "manifestado".

Babilónia, não deixará de salvá-lo desta pro-


cado mais comum do
verbo salvar no grego :

clássico deriva de "são" e significa devolver


vação no tempo da misericórdia e o devolverá
a saúde ao doente, a segurança ao ameaçado,
à terra da promessa. Isso mesmo abre pers-
pectivas de porvir até o mais profundo fim arrancar da morte o moribundo (Mt 8.25;
dos tempos Deus salvará seu povo na hora
:
14.30; 27.40,42,49; Mc 3.4; Lc 6.9; Jo 12.27;
do cumprimento final das profecias. At 27.20; 4.9; 14.9; Hb 5.7). Aliás, nesta
primeira série de textos, Jesus figura muitas
d) Neste domínio escatológico é que, apa-
vezes como o autor desta salvação imediata
rentemente, variam mais as perspectivas. Com
e concreta salva os discípulos da tempestade,
o natural risco de quem esquematiza excessi- :

vamente, diremos, contudo, que podemos distin- Pedro do afogamento; paralelamente, não se
guir uma dupla noção da salvação escatológica. salva da cruz. Na realidade o não faz NT
Uma noção profética que descreve os últimos distinção entre uma salvação espiritual, da
acontecimentos relacionando-os com a volta do alma, e uma salvação corporal que possa ser
exílio e a restauração de Israel na Palestina: tido por menos decisiva mas encara a pessoa
;

esta restauração preludiará a instauração do inteira considerando que um homem doente ou


reino eterno de Deus sôbre a terra (reunião levado pelas ondas corre perigo total, e não
dos dois reinos —
de Jerusalém e de Samaria hesitará, pois, em invocar a ajuda de Jesus
— purificação e santificação do povo, nova (o verbo salvar não significa outra coisa em
aliança com Deus, julgamento das nações pelo muitos textos do VT). Por outra parte, muito
Messias que será um descendente de Davi e embora Cristo veio para "socorrer" o homem
herdará o trono de Jerusalém, reino eterno de ameaçado por tôda classe de perigos imediatos,
paz, de amor, de justiça, sendo a mesma na- esta ajuda reveste, na intenção do NT, um
tureza renovada e morando o lobo com o cor- caráter peculiar: anuncia e começa já num
deiro (Is 11.1-10; Jr 31.31-34; Ez 37.21-28, setor limitado da vida a salvação definitiva e
. :

302 SALVAÇÃO

universal prometida, testemunhando assim que sitamos ser salvos, à condenação divina para :

os tempos da salvação escatológica estão no o homem da Bíblia não há pior ameaça do que
limiar e que Deus entra a socorrer-nos como a desaprovação de Deus. Eis porque o NT
nunca antes (Mt 11.2-6). A
este respeito os guarda tanta sobriedade na descrição da sal-
Evangelhos conservaram uma expressão que a vação obtida. Refere-se a ela como a uma
mesma ambiguidade torna característica "Tua
fé te salvou" 5.34; Lc 8.48; Mc 10.52;
(Mc
: alegria, uma —> vida, um reino,
supõe invariavelmente que a salvação consiste
pois pres-

Lc 18.42; 7.50; 17.19). O contexto denota antes de mais nada na comunhão restaurada,
aqui que a salvação é primordialmente a cura na paz restabelecida com Deus.
física da pessoa, sendo possível traduzir (como
d) Quando menciona o evento, o fato ou
muitas versões o fazem): "Tua fé te curou";
operação da salvação, o NT emprega igual-
acontece, porém, que a mesma expressão se
mente diversas fórmulas. Temos citado já a
encontra em narrações que não relatam curas
expressão "Tua fé te salvou" que faz coin-
—>
:

(Lc 7.50 onde explicitamente é questão do cidir o fato da salvação com o ato da fé.
perdão; Lc 17.19 mostra bem que a salvação
Coincidência que não é uma relação de causa
não pode limitar-se à cura física somente)
a efeito: Jesus é quem salva, e não a fé;
2. Passemos, pois, à segunda série de textos
nestes textos a salvação ou cura são apresen-
que expressa com mais clareza o pensamento
tados como um fato inscrito no passado em-
específico do NT.
bora ainda presente (o verbo grego está no
a) A primeira constatação que se nos impõe: perfeito) .Numa perspectiva semelhante é que
a salvação não mais é considerada como uma as epístolas falam amiúde tanto dos crentes
libertação particular ou provisória, mas como como dos salvos (literalmente "os que estão a
algo total e definitivo. Abundam os textos onde salvar-se, ou a caminho de serem salvos", ICo
o substantivo salvação entende-se absolutamente 1.18; 2Co 2.15; Ef 2.5,8, etc.) o crente ainda
:

sem qualquer precisão (At 4.12; 13.26; 16.17; não possui a salvação no sentido de uma se-
Rm 1.16; 10.1,10; 11.11; 13.11; 2Co 1.6; gurança religiosa interior, mas êle é o objeto
7.10; Ef 1.13; Fp 1.28; 2.12; 2Ts 2.13; Hb da ação salvadora de Deus mediante a prega-
1.14, etc). Daí consta que a fé cristã primi- ção apostólica isso é que insinua Paulo ao
;

tiva tomou muito cedo consciência da salvação falar do "evangelho de vossa salvação" (Ef
propriamente dita, preocupando-se por anun- 1.13): o evangelho não apenas os fala da
ciá-la como um fato realizado já ou por ser salvação, mas vos introduz à vossa salvação;
realizado, mais do que por definí-la. então compreende-se porque o apóstolo declara
não envergonhar-se do evangelho, "porque o
b) A salvação, no NT, concebe-se sempre
evangelho é o poder de Deus para a salvação
como uma libertação, um livramento, nunca
de todo crente" (Rm 1.16; ICo 15.2; Tg 1.21).
como o acesso a uma vida superior ou mais Os tais textos concebem, pois a salvação como
espiritual. Entre o estado do homem caído e uma realidade atual, uma relação nova com
escravo e sua nova condição de resgatado e Deus cheia de eficácia em virtude do evan-
salvo, não há simples evolução, elevação ou gelho pregado e recebido com fé.
espiritualização, mas ruptura, descontinuação e
e) Impossível, porém, permanecer lá. Com
morte : desta morte é que Jesus salva esta ;

efeito não tardamos em constatar que os mes-


revolução na condição nossa descreve-se-nos,
mos textos que declaram a salvação uma rea-
muitas vêzes, mediante verbos na forma passiva
lidade bem atual, apresentam-na, na realidade,
o homem é salvo (entenda-se, por Deus; Mt
como inaugurada e ao mesmo tempo como fu-
9.21; 10.22; 24.13; 19.25; 24.22; Lc 8.12;
Jo 3.17; 5.34; 10.9; Rm
5.9-10; 10.9; 11.26;
tura: somente no —>
reino, depois do juízo
último, é que o homem será definitiva e com-
ICo 1.18; 3.15; ?Co 2.15; Ef 2.5; 2Ts 2.10;
pletamente salvo. Devem ser lembrados aqui
lTm 2.4, etc).
os verbos em tempo futuro da tradição^ sinó-
c) Mas de quê somos salvos por Deus em tica (Mt 10.22; 24.13; Mc 13.13; 16.16; Lc
Jesus Cristo? Responde o NT
com variadas 8.50), do texto joânico (Jo 10.9), dos Atos
formulações que revestem u'a mesma con- (At 2.21; ver Rm
10.13; At 16.30-31) e
cepção muito coerente. Somos salvos de nos- sobretudo das epístolas (Rm 5.9-10; 9.27;
sos —> pecados (Mt 1.21 Lc 1.77; At 5.31;
;

Lc 7.50; Tg 4.12), da condenação (Jo_3.17;


10.9; 11.26; ICo 3.15; 10.33; lTm 2.15:
2Tm 4.18); todos estes verbos apresentam a
12.47; Mc 16.16; ICo 5.5; 3.15; lPe'4.18), salvação como obra a realizar-se plena e defi-
da perdição (Mt 16.25; Mc 8.35; Lc 9.24; nitivamente após o juízo final salvos seremos
:

ICo 1.18; 2Co 2.15; 2Ts 2.10; Mt 18.11; definitivamente quando se cumprir a obra re-
Lc 19.10), da —>
morte (Tg 5.20; Lc 6.9;
2Co 7.10), da cólera de Deus (Rm 5.9; lTs
dentora de Deus em Jesus Cristo. Analisando
o sentido estrito dos têrmos gregos, vemos que
5.9-10). Essas indicações são coerentes por- os crentes não são salvos, mas virão a ser
quanto todas reduzem o perigo do qual neces- salvos, terão ainda de enfrentar as emboscadas
; :

SANGUE 303

deste mundo,
e, sobretudo, o julgamento de ta (Mt 23.30,35). O sangue perdido na mens-
Deus. Neste sentido, os textos mais significa- truação (Lv 15.19ss; Ez 22.10), bem como o
tivos do NT acham-se em Rm 5.9-10, onde sangue derramado num homicídio (Nm 35.33ss)
São Paulo mostra bem que não funda sua se- causa uma imundície legal.
gurança, de ser salvo definitivamente sóbre A água tornada em sangue (Ex 7.14ss; Ap
alguma experiência já feita, através dalguma 8.8-9) impossibilita a vida. Na o
escatologia,
salvação parcial, mas exclusivamente sóbre o sangue é sempre de morte e de catástrofes
sinal
fato de "que Cristo morreu por nós" também ;
irremediáveis (lua tornada em sangue, Jj_2.30-
em Rm
8.22-25 que descreve os crentes sus- 31 banquetes de sangue nos dias do juízo, Ez
;

pirando, esperando a salvação, apenas salvos 39.17ss, etc. Ver analogia de ICo 11.27 e 30).
na esperança (v. 24), necessitados da ajuda do Tendo pois a vida sua sede no sangue, Deus,
Espírito até a consumação final da salvação; Senhor da vida, é o único Senhor do sangue
e finalmente Rm
11.25 que declara que a sal-
exclusivamente a êle consagrar-se-á o sangue.
vação ainda não é consumada, nem sóbre o Não é lícito ao homem dispor dêle. Daí as três
plano da vida individual nem sóbre o plano da
interdições e o uso exclusivo sacrificial que
História, pois "todo o Israel será salvo" de-
veremos nos § 2 e 3.
pois de a multidão dos gentios ter entrado na
Igreja. 2. a) Interdição de comer o sangue ou a
P. BONNARD carne sangrenta: absoluta e passível de morte
SANGUE no VT. Não apenas prescrição higiénica mas
1 .

blia o
a)
a) O sangue é a —>
vida. Na Bí-
sangue não é um mero elemento do corpo
altamente religiosa, pois pretender aumentar a
própria vitalidade comendo o sangue dalgum
animal lesa o direito de Deus, único dispen-
é de todos os elementos corporais o principal.
sador da vida (Lv 3.17). A proibição vigora
"O sangue é que anima a carne", eis o axioma
também para os pagãos (Gn 9.4; Lv 17.12ss).
que dá sentido às definições fundamentais de
Gn 9.4; Lv 17. llss Dt 12.23; a alma da
;
Todo animal beneficiado deve ser sangrado e
seu sangue recoberto com pó (Lv 17.13).
carne está no sangue a alma de tôda carne é
;

o seu sangue. Aqui, alma não tem qualquer Esta interdição figura entre as regras que os
relação com o dualismo grego, ontológico, de cristãos gentios de Antioquia aceitam (At 15.
alma, princípio estranho, oposto ao corpo. Pois, 19-21), embora apenas por consideração aos
na antropologia bíblica, a alma, pelo contrário, cristãos judeus, pois o Cristo foi feito desde já
faz parte do corpo: a "alma" (o sangue) "ani- Senhor dos vivos e dos mortos (Rm
14J7
ma a carne dos "animais". Nestes textos a pa- b) Interdição de derramar o sangue de outro
lavra hebraica "alma" seria bem traduzida pelo
termo nosso: "vitalidade".
homem. O VT não considera no homicídio a
faltamoral nem o prejuízo causado a outrem ou
b) O sangue é a vida limitada. A vitalidade à sociedade; salienta a violação dum direito
do sangue não é concebida como uma capacidade divino (Gn 9.5-6). Deus toma conta do sangue
ou uma reserva de vida posta à disposição da vertido e vinga-o o boi homicida é lapidado
:

carne. Prolonga-se apenas na medida em que por assassínio, embora não caiba qualquer repa-
se transmite pela paternidade ou pela mater- ração de prejuízos (Ex 21.28). No caso de
nidade (Jo 1.13), único modo de ser o sangue homicídio voluntário, o sangue vertido recai
gerador da vida. Como característica da espécie obrigatoriamente sóbre a cabeça do homicida
humana (At 17.26) o sangue salienta bem a (Ex 21.12). Deus manda ao "Vingador do
precaridade da vida, aliás proclamada pela ex- sangue" que cubra o sangue inocente com o
pressão "a carne e o sangue" sem qualquer rela- sangue do assassino (Nm 35.21ss) (encobre
;

ção ao pecado (como consta também do fato de a voz dêste sangue, isto é sua alma: Gn 4.10;
Cristo ter participado de nossa carne e sangue: Jó 16.18; 27.8-9). O
vingador cumpre pois um
Hb 2.14) esta expressão opõe a vida humana
:
dever religioso que ulteriormente passará a ser
limitada à vida divina eterna (ICo 15.44-50; um atributo do magistrado (Rm 13.4). "Vida
ver Mt 16.17; Ef 6.12; Gl 1.16). Perspectiva por vida" tal é o grande princípio de Ex 21.23.
que mostra o antagonismo entre a antropologia No caso de homicídio involuntário, o que ma-
bíblica ( =o homem não tem a vida em si mes- tou é sempre passível de morte; se, porém, se
mo. Gn 2.7; 3.22) e o relato babilónico da refugiar numa das cidades de refúgio, "aí ha-
criação (=os animais, criados dum pouco de bitará... até que morra o sumo sacerdote que
terra misturada com sangue do Deus Marduc, fôr naqueles dias; "então será absolvido: a
participam de per si da vida divina). morte do sacerdote cobrirá neste caso o sangue
c) O sangue é a vida limitada pela morte. vertido. (Js 20.6).
Quando há sangue derramado, é devido ao fato No NT permanece a interdição (Mt 5.21ss)
de um ser ter perdido a vida: foi vítima da e castigo (Ap 16.6). No caso porém
também o
—> morte (Gn 37.31ss), geralmente violen- dos mártires cristãos, tôda a atenção do NT
304 SANGUE

concentra-se sobre Cristo, cujo sangue encobre e representava a oblação que se fazia a Deus
a voz do seu sangue vertido (Hb 12.24; Ap da vida vicária da vítima prèviamente identifi-
6.9-11 a comparar com 7.14); desde já a te- cada com o ofertante pela imposição das mãos.
mível imprecação "Caia sôbre nós o seu sangue Lv 17.11 define bem o papel e o uso do sangue
e sôbre nossos filhos !" entender-se-á à luz desta sacrificial "A alma da carne está no sangue,
:

súplica "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o dei-vos êsse sangue para o altar, a fim de que
que fazem". êle sirva de expiação por vossas almas, porque
c)Interdição de oferecer o sangue aos demó- é pela alma que o sangue expia". Embora seja
nios. Portanto o sangue exclusivamente será incerta sua etimologia, fazemos derivar "ex-
vertido sôbre o altar de Deus perante o santuá- piar" da raiz hebraica cobrir. Pois, como no
rio (Lv 17.3ss; SI 16.4; 106.38). caso dum
homicídio (ver § 2,b), os pecados de
Israel são tapados pelo sangue da vítima, e,
3. a) O sangue, instrumento de aliança en- desta maneira, purificados. Tal é a significação
tre Deus
e o povo. VT. Ex 24 refere o— da festa das expiações (Lv 16) onde os peca-
com o sangue
rito de aliança do Sinai. O
sangue dos animais dos do ano inteiro são cobertos
sacrificados é derramado parte sôbre o altar do bode. De idêntica maneira fazia-se a purifi-
(a mesa, a ara de Deus), parte sôbre o povo. cação do leproso, da casa leprosa (Lv 14), do
Aceitados os mútuos compromissos, êste sangue altar ou da sacerdote (Lv 8). A purificação do
estabelece entre Deus e Israel o laço duma vida sacerdote ordena-se evidentemente a preparar
comum. Romper a —>
aliança equivaleria
então a contradizer a vida comum com Deus.
sua consagração ao serviço de Deus.

NT. Hb 9.22 menciona êste papel funda-
O VT frisará êste vínculo do sangue quando mental do sangue conforme a Lei, o sangue
:

quiser lembrar que Deus é o Pai dos filhos purifica quase tudo não certamente por virtude
;

de Israel (Zc 9.11; Ex 4.24-26). própria, mas em virtude da dispensação divina


NT. — A
nova aliança prometida em Jr
31.31-34 será selada pelo sangue de Jesus imo-
que, no sangue das vítimas anuncia e figura o
sangue verdadeiramente purificador de Jesus
lado sôbre a cruz. Será uma aliança eterna, Cristo. Enquanto a aspersão do sangue de Jesus
inviolável (Hb 8.6), de maior eficácia que a não os purificar, os judeus devem celebrar com
primeira (Hb 13.20). Pela instrumentalidade a maior seriedade os ritos cruentos da Lei. Ês-
do sangue de seu próprio Filho, Deus realiza tes, aliás, tinham para nós u'a missão pedagó-

uma prodigiosa comunidade de vida entre si gica, e obravam perante Deus a expiação em
e os homens, tornando a estes "co-participantes virtude de sua relação ao sangue de Cristo (Hb
da natureza divina" (2Pe 1.4) e das divinas 9.8ss). O NT salienta muitas vêzes esta obra
riquezas e, como no grego profano a palavra
:
purificadora do sangue de Cristo (remissão
"aliança" (diatheke) significa também "testa- dos pecados) (Rm 3.25; Ef 1.7; Hb 9.12; ljo
mento", Hb 9.15ss revela a validade da trans- 1.7; 2.2; Ap 1.6), obra única, feita uma vez
missão da divina herdade aos homens em conse- por tôdas e para todos perdão dos pecados que
:

quência da morte do Filho, herdeiro legítimo. santifica os fiéis para o serviço de Deus (Ap

Como corolárias da noção de aliança, cabe 5.9; Hb 13.12; 10.29), para o serviço sacer-
indicar a —> reconciliação e a
quiridas pelo sangue do Cristo entre Deus e os
—> paz ad-
dotal da Igreja (Ap 1.5-6) e para a entrada
ao lugar santíssimo ante a face de Deus (Hb
9.24; 10.19).
homens (Rm 5.9-10; Cl 1.20), entre os judeus
e os gentios
mo
irmanados na participação do mes-
sangue de aliança (Ef 2.13).
4. Sangue e —>Eucaristia, a) Conforme
os sinóticos e ICo 11. Os fiéis permanecem na
A
doutrina da redenção pelo sangue cabe bem aliança do sangue da cruz mediante a partici-
aqui (At 20.28; Hb 9.14; IPe 1.18-19). O pação do cálice. O sangue eucarístico comuni-
"redentor" para o VT
era o parente mais pró- ca-lhes a reparação necessária, a restauração
ximo que tinha direito de preempção sôbre uma diária da aliança guarda-os e confirma-os no
;

pessoa ou uma coisa agora o Cristo, desatando


: perdão de seus pecados. Observemos que as f ór-
o vínculo que une, conforme nossa frágil vai- mulas de Mateus e de Marcos são um destaque
dade, os filhos a seus pais, e fazendo-se o nosso da fórmula de Êxodo 24.8.
irmão primogénito, nos faz entrar na família
b) Em ICo 10.16. Participar do cálice é
do Pai. comungar com o sangue do Cristo derramado
b) Uso
do sangue tios —>
sacrifícios. sôbre o altar da
dos pecados.
—> cruz para a expiação
No da aliança sinaítica, o sangue foi o
rito
elemento sacrificial destinado a restaurar cada c) Em Jo 6.53-57. A alusão eucarística é
dia a aliança profanada pelos pecados de Israel evidente. A expressão "beber o sangue", radi-
(Lv 16.15). calmente escandalosa para um Judeu, deve ser
Derramava-se ainda quente (= ainda vivo) colocada em parallo com lCr 11.19 onde ela
total ou parcialmente sôbre os cornos do altar evoca a idéia de morte para ser bebido, o
:
SANTO 305

sangue precisa ser antes vertido. Entretanto gem, que radicalmente significa separação, por
aqui, o sangue derramado não indica apenas oposição a profano. Para traduzir Kadosh, os
que o Cristo perde a vida. mas que êle dá a LXX escolheram a palavra grega háguios que,
vida. Êste sangue é pois um sangue vivificante de quantas palavras expressavam a idéia de
para quem o beber éle é verdadeira bebida, isto
: santidade, era a menos corrente. Do VT o ter-
é. bebida que dessedenta para a vida eterna. Com mo háguios passou ao NT
vindo a ser um dos
efeito o sangue do Cristo, veículo de sua vida têrmos-chave da linguagem cristã. Se pois o
de Filho, opera a geração dos filhos de Deus. conceito de santidade é compartido pelo cristia-
que não pode obrar o sangue dos homens (Jo nismo e pelas religiões ambientes, o termo há-
1.13; ver § l,b). guios que serve para a Bíblia expressar êste
Não menção da
é impossível que esta dupla conceito não carece de originalidade; aliás não
carne e do sangue seja uma alusão ao sacrifí- tardaremos em constatar que a idéia bíblica de
cio do cordeiro pascal (Ex 12.7-8) cuja carne
santidade comporta certos caracteres específi-
alimenta e cujo sangue protege contra a morte cos.

(ver Jo 1.29,36; Ap 5.12). 1. A santidade de Deus. Iavé é santo: esta


d) Em
Jo 19.34 e l/o 5.6. De por si só, idéiadomina todo o VT, expressando a intuição
o sangue serve para caracterizar a eucaristia. fundamental na qual arraigam todas as demais
doutrinas particulares de santidade. Santo é
Todo o realismo sacramental de São João está
Iavé em dois sentidos principais, aparentemente
subordinado à obra da cruz. A eucaristia não
pode ser descuidada como não pode ser descuida- contraditórios, mas, na realidade, ambos os poios
da religião de Israel. Santo é Iavé no sentido
do o batismo. Precisamente no paralelismo da
água —
representante do batismo
=
e do— primordial de que domina totalmente o mundo
criado Iavé é o todo-outro, o incompreensível,
sangue (não do vinho realismo sacramental), :

achamos a fonte de uma hierarquia sacramental o insondável, o indefinível. Intuição expressa


ulterior. já nos textos narrativos mais arcaicos (Gn 28.
16ss; ISm 6.19ss; Js 24.19) e culminando nas
Falar no "sangue do Cristo" não é mera fór-
declarações proféticas (Is 6; 57.15; Os 11.9;
mula, intercambiável com outras fórmulas pois
12.1; Ez 1.; 28.25; 36.22 ;23: "Vindicarei a
:

ela evoca no NT
a própria humanidade de
minha glória e santidade, e me darei a conhecer
Cristo a realidade de sua morte tão física como
:
aos olhos de muitas nações, e saberão que eu
a morte de qualquer outro homem, a sua morte
sou o Senhor."). Nesta primeira perspectiva,
violenta o fato de esta morte ser antes de
;

mais nada um ato sacrificial por cujo meio


santidade e —>
glória de Iavé são conceitos
amiúde equivalentes. Por outra parte, santo é
Deus sela a sua aliança conosco, perdoa os Iavé porquanto se comunica no ensejo de fazer
nossos pecados, opera a nossa redenção e en-
os homens participarem do que êle é, porquanto
trega a própria vida.
os julga e tem misericórdia dêles. Sua santi-
A LELIÈVRE dade é ativa, operante e exigente interpela e;

SANTO visita o homem para lhe dar nova vida. Esta


vida achará explicação e critério exclusivamente
A ideia de santidade (que muitas vezes se no desígnio de Iavé (Dt 7.6; Is 8.13; Lv 11.
sobrepõe à de sagrado ou de pureza) é comum 44; 19.2; 20.7,26; Nm
15.40: santos sereis por-
a todas as religiões, porém com matizes bas- que eu sou santo). Fórmula que expressa não
tante fortes, conforme os tempos e os lugares. principalmente uma exigência moral, mas uma
Basicamente encontramos quase sempre as duas necessidade religiosa o povo pertencerá a seu
:

idéias de separação (reserva) e de poder espi- Deus e distinguir-se-á dos demais povos me-
ritual :é santo aquilo que tem sido reservado e diante a escrupulosa obediência às leis cultuais.
separado para os deuses (santuários, oferendas, Do contexto consta muito claramente que a
sacerdotes, mágicos, fórmulas litúrgicas, obje- santidade de Israel não tem outra origem nem
tos de culto etc.) seja para ser oferecido em outra explicação que a libertação que Deus
sacrifício seja para ser devotado a seu culto. lhe deu: "Eu sou o Senhor, que vos tirei da
Em consequência, também é santo aquilo que terra do Egito para ser o vosso Deus" (Nm
está revestido de certos poderes tanto sobre os 15.41; ver também Is 40.25; 57.15; 45.18;
deuses como sobre o destino dos homens. Quase
sempre, porém, acrescenta-se a estas duas idéias
41.14; 43.3,14 onde —
idéia cara a Oséias
a santidade de Iavé, "a essência iávica de Iavé".

de consagração e de poder espiritual, o con- não é o seu horror pelo pecado mas o seu amor
ceito bem humano de temor e de respeito de- ativo). Tal é o sentido profundo da expressão
vidos à santidade. "o Santo de Israel" (Is 1.4; 5. 19,24; 10. 17.
Enquanto o grego antigo dispunha de toda 20; 12.6; 17.7; 29.19,23; etc).
uma série de termos para expressar as diversos Bem significativo é o fato de o NT
expressar
aspectos da santidade, o hebreu só conhecia a apenas raramente a idéia da santidade de Deus.
palavra Kadosh provàvelmente cananéia de ori- O motivo é simples não é o : NT
um escrito
;

306 SANTO

especulativo sobre as divinas perfeições, e só dos julgamentos e das libertações históricas


se interessa pela santidade de Deus na medida que lhe concede. Reciprocamente o VT insiste
que ela se revela na pessoa de Jesus Cristo (ver sobre a santificação de Deus pelo seu povo (Nm
abaixo § 2). Contudo fórmulas como Ap 4.8; 20.12; 27.14; Is 5.16; 8.13; 29.23; Ex 20.
Jo 17.11; IPe 1.15-16; Mt 6.9, atestam que 41), que, no correr dos tempos, reveste as for-
não caiu em olvidio a intuição vetero-testamen- mas mais diversas nos exórdios, porém, como
:

tária. Quando na sua oração pedem Jesus e os até o fim do Templo, realiza-se sobretudo no
discípulos "santificado seja o teu nome", certa-
mente têm em mente menos o respeito que é de-
—> culto congregando-se no "lugar Santo"
;

e amparando-se sob o sacrifício vicário de mise-


vido ao nome inefável, que a definitiva reve- ricórdia é que Israel se santifica, se consagra
lação que de si próprio Deus dará a todos os e se dedica a seu Deus daí a importância ca-
;

homens ao final dos tempos. pital, ao longo da História tôda, dos lugares,
instrumentos, tempos e pessoas reservados ao
2. A santidade de Jesus e do Espírito. Nunca
encontramos no NT a afirmação de que Jesus
culto,
13.22;
—ISm>sábados (Gn 2.3; Ex 20.8 Ne
16.5), ofertas (Lv 6.11,20), alta-
foi santo, ou "o santo por excelência" (nem res (Ex 29.37; 40.10; ISm 16.5), templo
sequer em Lc
1.35: "o ente santo", pois isso CHbc 2.20; Jn 2.5; lRs 9.3), sacerdotes (Lv
viria simplesmente a afirmar que Jesus cumulou 8.12; Ex 19.22; lCr 15.14; 2Cr 29.34), e so-
em si todas as perfeições morais e religiosas. bretudo, no período post-exílico, a Tora
Pelo contrário, as expressões "o santo de Deus"
(Mc 1.24; Jo 6.69; Lc 4.34; Ap 3.7), ou "o
(—> Escrituras) É pois mediante tôda sorte
.

de diligências, normais e concretas, instituídas


santo servo" de Deus (At 3.14; 4.27,30. ver e previstas, que o Israelita piedoso se consa-
Mt 12.16-17) salientam que Jesus é aquêle em grava ao serviço de seu Deus. Sua piedade, tão
quem e por quem Deus realiza definitivamente profunda como concreta, corria entretanto dois
sua obra de julgamento e de misericórdia. Para perigos primeiramente o perigo de identificar-se
:

êste fim foi Jesus "escolhido" e ungido do Es- com as formas, os gestos, os instrumentos do
pírito, a exemplo de servo de Isaías 53 (ver culto mais do que com o próprio Deus, objeto
SI 106.16: aqui o santo é Arão). Igual obser- do culto. De fato os profetas não deixaram de
vação convém para as palavras —>
"Espírito
Santo" elas não pretendem atribuir ao Espírito
:
precaver contra tal materialização da santidade
israelita "é o Senhor que vós deveis santifi-
:

tôda sorte de virtudes extraordinárias mas subli- car!" (Is 8.13; 1.4; 31.1; Os 11.9; Is 55.5;
nham exclusivamente sua origem e autoridade 60.9). Instituições, ritos, festas e sacrifícios
divinas "Espírito Santo" e "Espírito de Deus"
: apenas são santos na medida em que permane-
são duas expressões estritamente ambivalentes cem ao serviço do único Santo de Israel. Outro
(ver Is 63.10 ss aqui a santidade do Espírito
: perigo estava em olvidar que a santificação de
diz respeito meramente à sua eficácia histórica Iavé não existe quando não vai acompanhada
ver SI 51.13 onde, no plano da vida pessoal, de uma submissão pessoal à sua lei. Assim é
o Espírito de Deus, "teu Espírito", realiza uma como se une o conceito de santidade com a
operação similar de vida e de libertação). Por-
tanto, o adjetivo "santo" nada novo acrescenta
idéia bíblica de
sentido muito moral
—>
"justiça" entendida num
santificar-se não apenas
:

ao substantivo "Espírito". Conforme presunções


é purificar-se, separar-se das outras nações ou
bem fundadas, êle foi muitas vezes acrescen- sujeitar-se escrupulosamente aos ritos do culto;
tado ao texto original, na intenção de distin-
santificar-se é antes de mais nada "observar
guí-lo dos espíritos diabólicos com os quais os
todos os mandamentos" (Dt 26.16). Neste con-
cristãos gentios corriam o risco de compará-lo,
texto do Deuteronômio, os mandamentos não
senão de confundi-lo. Ora, a ação do Espírito
concernem apenas à vida chamada religiosa
divino é necessariamente incomparável, "santa"
(culto, primícias, levirato, etc), mas a vida
(Mt 12.32 par: ICo 6.19; Ef 2.19; 15. Rm moral da cada dia (a viúva e o órfão, o estran-
16; 2Tm 1.14, etc. ver Is 40.25; 43.15), não
;

geiro, os indigentes, os marcos das proprieda-


suscetível de entrar numa categoria pré-estabe-
des, os falsos testemunhos, etc.) "o Deus santo
;
lecida.
será santificado mediante a justiça" ((s 5.16
3. A santidade do povo eleito. Sabemos já cuja tradução incerta, expressa bem, nesta ver-
que a santidade de Deus, no NT, não é uma são nossa, todo um aspecto do profetismo).
perfeição estática, mas é a própria divindade Tem-se repetido, até à saciedade, que Je-
comunicando-se aos homens e operando na His- sus e os primeiros cristãos eliminaram os as-
tória. O primeiro escopo da ação divina é de pectos cultuais e rituais da santificação vetero-
congregar, de eleger um "povo santo" (Lv testamentária para guardardêles apenas a ex-
21.6-8; Ez 37.28, etc), isto é reservado para pressão e conteúdo moral e "espiritual" con- :

o serviço de Iavé. Portanto é o próprio Iavé forme as melhores probabilidades, tal afirmação
quem santifica inicialmente ( =quem se apro- é absolutamente errada. Apenas é certo a) que
pria) o seu povo, em virtude da —> eleição. o NT insiste antes de mais nada sôbre a obra
:

SEGUIR 307

divina para a santificação do nôvo Israel, obra 2. No NT, a expressão seguir recebe sentido
realizada uma vez por todas em Jesus Cristo, nôvo, mais particular e mais amplo ao mesmo
alicerce do nôvo santuário, a
17.19; ICo 1.2; Rm
—>
Igreja (Jo
15.16; ICo 6.1 e todo
tempo. Enquanto, às vêzes, o verbo, de sentido
bastante próximo, imitar, tem por objetivo ao
Hebreus) ;
b) que o NT
possui, exatamente próprio Deus (Ef 5.1), o mesmo não sucede
como o VT, uma CO cpção cultual da vida
:i com o verbo seguir. Êste tem por exclusivo ob-
moral, sendo os fiéis ch amados a oferecer os jetivo a Jesus Cristo. Aparece, aliás, somente
próprios corpos (=seu comportamento concre- nos quatro Evangelhos e uma vez no Apoca-
to) a Deus em sacrifício vivo e santo (ver Rm lipse (14.4 por alusão a Mt 10.38). Nas epís-
12.1 ; 15.16; Fp 2.17) c) que a idéia de san-
;
tolas, encontra-se, todavia expressões que tra-
tidade permanece portanto fundamentalmente duzem a idéia de imitação (Imitar, imitador),
comunitária, "eclesial" é na qualidade de mem-
: com o sentido mais frequente de submissão ao
bros dum povo, solidários e responsáveis uns com Senhor glorificado e a seu espírito.
os outros, na qualidade de irmãos, que os santos Ressalta-se bem claramente destas constata-
estão congregados e "organizados" pelo Espí- ções que o cristianismo primitivo desejou tra-
rito em um corpo diferenciado (Ef 4.12; ICo duzir pelo verbo seguir o elo particular que
16.15; 2Co 8.4; ICo 7.14; 9.1, etc). Todos unia os discípulos ao Cristo da História. A
apli-
êstes textos asseveram que a santidade não é cação exclusiva no NT
do têrmo aos discípulos
o apanágio de alguns especialistas da vida reli- de Jesus prova que se estava cônscio do ca-
giosa e moral, mas pertence a todos os irmãos ráter único desta relação.
porquanto todos estão a beneficiar-se da obra Êste caráter exclusivo manifesta-se desde o
de Deus em Jesus Cristo: os "santos" de Jeru- primeiro encontro do discípulo com o mestre.
salém a cujo favor se organiza a coleta, nada "Segue-me' 'é o imperativo do Cristo que está
:

têm de especial para merecer tal socorro; d) no ponto de partida da nova relação que se
que a santidade permanece o constante tema
das exortações prementes nas Epístolas, como
estabelecerá. Para o —> discípulo traduz a
irrupção na vida de um autoridade extraordi-
o fora nos escritos da antiga lei. Os "santifi- nária, de uma exigência verdadeiramente messiâ-
cados" por Jesus Cristo são vocacionados a "se nica, à qual é mister responder pela obediência
santificar" e destarte a "santificar o Senhor
total e imediata que os evangelistas comprazem-
Jesus Cristo" (Ef 1.4; 5.27; IPe 1.15; 3.15; se de sublinhar (Mc 2.14; Mt 4.19-20; Lc
lTs 4.3ss; Rm 6.19-22; Ap 22.11) e) que se ;
9.59; Jo 1.43).
percebe nitidamente já no NT
um cuidado por
nos precaver contra as doutrinas "espiritualis-
É possível precisar a condição de discípulos
que define o têrmo "seguir"
tas" que tendem a fazer da santidade uma "espe-
cialidade de caráter ascético; "pcis tudo que a)Seguir a Jesus implica em primeiro lugar
Deus criou é bom, e, recebido com ações de uma ruptura com o passado. O discípulo deve
graça, nada é recusável, porque é santificado abandonar tudo, cortar todos os laços anterio-
pela palavra de Deus e pela oração (lTm 4. res ao encontro com Jesus, a fim de pertencer
4-5). Análogas precauções para a moderação totalmente a seu nôvo mestre (Lc 9.61; Mc
no comer e para a pureza (Rm 14.20: Tt 10.28; Mt 19.21).
1.15).
b) Seguir a Jesus implica logo .numa parti-
P. BONNARD cipação em seu destino terrestre. É a obrigação
SEGUIR de compartilhar sua vida de nómade (Mt 8.19)
e participar de certa forma em sua paixão (cf
1. No V.T. a expressão hebraica implicando Mt 26.40). Entretanto importa ressaltar que
a ação de seguir é empregada mais corrente- jamais se trata de uma imitação total do Cristo.
mente para designar a idolatria de Israel, isto Alguns eram discípulos de Jesus, sem seguí-lo
é, o fato de seguir os falsos deuses, abandonan- completamente em sua vida errante. A
sorte do
do o Eterno (cf. Jz 2.12; Dt 4.3; 6.14; IRs discípulo não pode assemelhar-se totalmente à
21.26; Jr 7.6, 9; 9.13; 11.10; Os 1.2, etc). de seu mestre.
É empregada com menos frequência para ex- Jesus esforça-se para fazer compreender a
pressar o apêgo ao culto de Javé (Dt 1.36; seus discípulos a necessidade de seus sofrimen-
IRs 14.8; 18.21; 2Rs 23.3; Jr 2.2) e esta tos e de sua morte. Mas os discípulos não po-
discreção explica-se sem dúvida justamente por- dem seguir a Jesus até sua própria morte (Jo
que tal expressão, muito concreta e materialista, 13.36-37; Mc 10.38). Contudo se o seguimento
era o têrmo consagrado para designar a prática do discípulo estaca-se no limiar do evento úni-
dos cultos pagãos e suas procissões de devotos co da morte e ressureição do mestre, não deixa
levando as imagens dos ídolos. Importava pre-
servar a idéia de um Deus transcendente, não
de ser verdadeiro que um destino de —>
sofri-
mento, análogo ao do Mestre, lhe está reser-
tolerando nenhuma representação material de si vado, se o mesmo permanecer fiel a Jesus. Jesus
mesmo. alude a possibilidade de seguí-lo mesmo depois
308 SÊLO

de sua morte (Jo 13.36; 21.22) é tanto neste


:

porvir como no presente que o discípulo terá de


lar
que,
designará 1.° —
lacrar e 2.° atestar,
combinados, darão a singular expressão

levar sua cruz que não era a do Cristo (Mc 8.34 que definiremos para terminar: 3.° selar
par). do Espírito Santo.
c) Finalmente ao que segue a Jesus fêz-se 1. Lacrar, guardar secreto. Esta significação
a promessa de participar na salvação ofertada aparece principalmente entre os autores apoca-
em Cristo. Mesmo não conferindo um privilégio lípticos; para êstes o sêlo é um símbolo dos
especial ao discípulo (cf Mcl0.40), o fato de se- mais familiares (usam-no também no
guir a Jesus torna o propício ao
de Deus (Lc 9.61s) e participe da
— >
reino
—>
vida
aliás
gundo sentido). Assim vemos em Dn 8.26;
se-

12.4 e 9, ou no Ap 10.4, que o vidente recebe


eterna (Mc 10.28; Jo 8.12). O destino do dis- mandato de guardar secreta a visão com que
cípulo é doravante ligado ao de Jesus (Jo 12. acaba de ser favorecido: "estas coisas ficarão
25.26; Jo 10.27.28). escondidas e seladas até o tempo marcado".
Porém, importa ressaltar, em conclusão, que, Compraz a Deus manifestar seus desígnios aos
para viver esta condição de discípulo, trata-se seus servos sua revelação, porém, preservar-
menos de esperar uma espécie de imitatio
tal como preconizam certas interpretações pos-
— ;

se-á até o dia do cumprimento os grandes se-


:

gredos do Estado Maior de nenhum jeito devem


teriores da Igreja
—> —
do que de entrar, de
permanecer e avançar numa nova depen-
filtrar às mãos do inimigo. Deus, não obstante,
quer comunicar seu plano a esta ou aquela tes-
dência marcada pela confiança e obediência a temunha, para iluminar-lhe a fé e para que,
Jesus Cristo. Seguir, no NT, expressa um even- "aberta no tempo marcado" a profecia ateste
to, não uma noção, um estado. O têrmo está a presciência e onipotência de quem a revelou.
estreitaemnte ligado com a aparição do Cristo Isto é indireta mas claramente confirmada por
histórico, propondo aos homens u'a mudança de Ap 22.10: "Não seles as palavras proféticas
caminho radical (expresso no NT
pela idéia de dêste livro, porque o tempo está próximo" inú-
—> arrependimento) orientando-os em seu
,
til guardar secreta esta profecia, sendo iminen-
:

séquito em direção de um nôvo porvir que é tes os acontecimentos ao inimigo não resta tem-
:

a vida eterna e o reino de Deus. po para impedir curso. Iavé. em Is 29.11. de-
clara: "As visões (proféticas) se vos tornaram
H. MEHL-KOEHNLEIN como palavras seladas" com efeito, pelas suas
;

infidelidades, os profetas fizeram-se indignos de


SÊLO receber comunicação dos planos de Deus em :

Desde a mais remota antiguidade encontra- vez de os servir, trai-los-iam. Isaias 8.16. nesta
mos o uso do SÊLO. Também na Bíblia figura mesma linha de pensamento, sela do sigilo a
êle repetidas vêzes. Embora muito variado na própria doutrina esotérica do profeta.
matéria, cunho e forma, o sêlo servia comu- No célebre texto de Apocalipse 5-6, o próprio
mente a duas funções: lacrar ( selar = guardar livro profético figura como o depositário dos
secreto) e confirmar (o sêlo, como o —>
me, compromete o testemunho da pessoa que êle
no- acontecimentos futuros guardados por sete se-
los a cada sêlo corresponde um drama da his-
:

representa). Eximia das muitas formas usadas tória,romper os selos significa, pois, desatar o
entre nós hoje, como garantias de autenticidade, curso do drama, dar acesso às sacudidelas que
certificados de identidade, assinaturas, lacrea- precedem a parusia. Eis que ninguém é achado
das jurídicas, marcas de propriedade, carimbos digno de promover o reino, ninguém a não ser
oficiais ou sinêtes convencionais, etc. A
Bíblia o Cordeiro, único capaz de nos encaminhar para
conhece numerosos exemplos de tais usos é : o fim êle possui as chaves.
:

selada a pedra que não se deve violar (a pedra


Salientemos ainda Dn 9.24: "selar as trans-
que tapa a bôca da cova dos leões em Dn 6.17; gressões" encerrá-las num saco lacrado, de tal
a pedra sepulcral de Cristo em Mt 27.60; a modo que ninguém mais as possa achar o sêlo, :

pedra que fecha o abismo sobre Satã de Ap


aqui, significa o divino perdão. Pelo contrário,
20.3) são colocados selos ao pé dum texto
;
por uma curiosa inversão de sentido, em Jó
de aliança (Ne 9.38) acunha-se o cunho real
;
14.17, a mesma expressão ("selarás a minha
que torna executória tal ou qual disposição da transgressão num saco") designa a ira de Deus
corte (Et 3.10; 8.2-8; ver lRs 21.8: decreto
que solenemente confirma através das desgra-
acunhado "em nome do rei") mediante o sêlo
;
ças de Jó a lembrança de seu pecado assim :

legaliza-se uma ata de venda (Jr 32.10) ou


chegamos ao segundo sentido de selar, ou seja,
uma marca de identificação (Gn 38.18).
Em virtude precisamente da importância que 2. Atestar, confirmar, que se encontra em tôda
toma na vida quotidiana, o sêlo não tarda em a Bíblia e nos contextos os mais variados. Selar
tornar-se o símbolo encarregado, de alguma ma- entra em relação com as grandes noções bíbli-
neira de uma função teológica que devemos aqui
examinar. Também nesta acepção figurada se-
cas do —>
testemunho e do sinal-sacramento.
Assim a aliança da promessa celebrada entre
:

SÊLO 309

Deus Abraão, está confirmada com o sêlo


e nhecimento, de proteção e de posse os que foram
—>
:

da circuncisão que Abraão recebe na sua marcados por êle não mais se pertencem, pode-
carne e perante a qual primeiro Deus assume rão pois comparecer ao supremo juízo impá-
compromisso: Deus garante a justiça de Abraão vidos confirmados na sua fé. possuem a cer-
—>
:

(Rm 4.11) da mesma forma a


; aliança teza da salvação. Interessante é notar que, para
sinaítica está selada pelo sangue (Zc 9.11) as ;
indicar a marca da bêsta, o Apocalipse usa ou-
desgraças de Jó são como a atestação da sua tro têrmo (13.16; 14.9; 16.2; 19.20; 20.4);
iniquidade a presença do bem-amado e seu am-
;
notemos igualmente que a marca da bêsta se
plexo aparecem nos Cantares como o sêlo do recebe em vista duma sedução apremiante, mas
amor (8.6). Em Jo 3.33, "quem aceita o en- a marca de Deus se recebe em virtude duma
viado de Deus e recebe a sua mensagem, sela eleição eterna. Finalmente observemos o paren-
(certifica) que Deus é verdadeiro". Assim, pela tesco entre a expressão "sêlo de Deus" e a ex-
sua fé, o crente é chamado a certificar a Pala- pressão "em nome de Deus", usada comumente
vra de Deus, especialmente neste caso a Pala- no contexto do —>
batismo.
vra de Deus feita carne entretanto, em Jo ;

6.27, é o Pai quem marca o Cristo com seu 3. Selar do Espírito Santo. Tudo que foi dito
sêlo quer dizer com o milagre da multiplica-
:
do sêlo escatológico explica a origem desta
expressão e a esclarece vigorosamente. A signi-
ção dos pães, pois êste é um dos sinais com os
ficação, porém torna-se aqui muito mais vasta
quais Deus atesta a messianidade do Filho do
e o símbolo atinge tôda sua plenitude: abar-
Homem. Para Paulo, a Igreja de Corinto é o
quemos numa só perspectiva todos os diversos
sacramento de seu apostolado a autenticidade de
sua vocação recebe daqueles que êle tem gerado
;

usos do sêlo indicados no início dêste artigo. A


expressão é três vezes repetidas: 2Co 1.22; Ef
para a vida cristã uma decisiva e divina confir-
1.13; 4.30.
mação (ICo 9.2). Quando Paulo, portador da
"Pelo Espírito Santo, somos selados para o
coleta dos Macedônios, chega a Jerusalém, (Rm
15.8) êle "sela o fruto" dos doadores: con- dia da Redenção". O Espírito Santo, paracleto,
firma os benefícios desta generosidade que foi Defensor fiel, que todos os dias nos assiste e
poderoso testemunho da unidade da Igreja. O nos assistirá o dia supremo, que intercede por
sinal disso está na sua chegada a Jerusalém. nós com suspiros inefáveis, que, a despeito das
Finalmente em 2Tm 2.19, o fundamento inque- experiências e falhas de nossa pobre vida cristã
brantável da salvação está selado com as duas e contra tódas as acusações do adversário, tes-
palavras de Deus, confirmação uma da outra, temunha a nosso espírito que somos filhos de
que decidem de nossa justificação (eleição de Deus, êste Espírito finalmente que temos rece-
Deus) e de nossa santificação (ordem de Deus). bido como um batismo, está em nós como o
autêntico sêlo do Deus vivo, a marca da vida
Examinemos ainda dois textos nos quais o
eterna, o "sim" inequívoco do Deus fiel (2Co
sentido da palavra é

a)
bem mais amplo
perícopes de Ex 28.11,21,30 e 36, que
Os
1.22), as —>
arras de nossa herança (Ef
1.13), o penhor de nossa Redenção, a garantia
descrevem as —>
vestimentas sacerdotais. Pei-
toral. Efode, cintura e tiara dos sacerdotes leva-
da morte em nós do velho Adão e a certidão do
nascimento do homem nóvo, recriado à imagem
rão selados os nomes dos filhos de Israel. O do Cristo (Ef 4.22ss). Entretanto, êle é ape-
sêlo é simultâneamente memorial e consagração. nas o dom divino gratuito, que não nos perten-
Quando o sacerdote se aproxima do altar, apre- ce no momento mesmo que confirma e garante
:

senta-se perante Deus, realmente "em nome do a vida nova, fruto duma aliança nova, êle a
povo" inteiro os nomes gravados nas diversas
:
lacra, a sela, foge à nossa introspecção e pes-
partes da vestimenta manifestam-no inesqueci- quisa, como um segrêdo máximo, como uma
velmente. maravilhosa surprêsa que Deus esconde da co-
b) Os mencionam o chamado sêlo
textos que biça do Inimigo e preserva misteriosamente para
escatológico, isto o sêlo que marca e protege
é, o último dia. O homem nóvo aí está dentro em
os eleitos através das vicissitudes finais reco- :
nós, já temos disso o penhor irrefutável, porém
nhecidos por causa desta marca sairão vitoriosos temo-lo selado, pois a nossa vida está escondi-
das provas do Juízo. Convém evocar os textos da com Cristo em Deus (Cl 3.3) quando Cris- ;

da Páscoa (Ex 12) o sangue do cordeiro guar-


:
to vier, o sêlo se abrirá e então eu conhecerei
da as casas judias da última praga do Egito: como foi conhecido (ICo 13.12).
o texto de Ez 9.4: na Jerusalém devotada ao Um último problema o sêlo do Espírito San-
:

castigo, os fiéis recebem na sua frente o sinal to designa mais especificamente o batismo ? Cabe
da salvação (ver Is 44.5). Sobretudo citemos de fato justapor os textos que associam batis
Ap 7.2 e 9.4: O anjo detentor do sêlo de Deus mo e dom do Espírito Santo (Mt 3.11; At
vivo. com gesto anunciador das tribulações apo- 1.5; 8.17; 19.6; Tt 3.5, etc). Muito cedo os
calípticas, marca com êle a frente dos servos de Padres da Igreja assemelham o sêlo simples-
Deus êste sêlo é simultâneamente sinal de reco-
; mente com o sacramento do batismo. Semelhan-
): :
:

210 SERVO

ça justificada sem dúvida, mas não deixa de atitude moral do povo ou do indivíduo perante
da fé cris-
ser significativa das transformações Deus, na fidelidade aos seus mandamentos Is- :

tã no NT, os textos todos designam o Espí-


: rael é o "servo de Deus" (lRs 8.23; SI 69.37;
rito como o selo da Redenção sem alusão explí- 102.15; Is 41.8-9; 43.10; 44.1-2, etc). Expres-
cita ao batismo. Muito cedo, vemos a certeza sa esta afirmação tôda e qualquer relação de
da salvação ligada à recepção do batismo, em- Israel com seu Deus e de Deus com seu povo:
bora primitivamente tal certeza era determi- Deus chama Israel "o seu servo", porque o tem
nada pela efusão do Espírito. escolhido e exige-lhe obediência exclusiva à
sua vontade, temor e fidelidade, amor e con-
M. BOUTTIER fiança. Deus é zeloso e não tolera que Israel
sirva a outros deuses mais que a êle. Entre-
SERVO mentes, o povo recebe de Deus as bênçãos e
O
têrmo "servidor", "servo", "servir" (Hebr. promessas que lhe tem especialmente reservadas
cbed ou abad), conota trabalho e submissão; posteridade numerosa, proteção, libertação, gra-
conforme predomine uma ou outra destas duas ça, perdão. Os caps. 40-55 do Livro de Isaías
conotações, teremos o sentido de trabalhador insistem mormente sobre esta relação de Deus
ou de escravo, e o verbo traduzir-se-á por tra- com seu servo Jacó ou Israel, expressando-a
balhar ou por obedecer. Todos êstes sentidos do modo mais exaustivo.
acham-se no campo da vida profana bem como Em vários contextos do VT, a palavra apli-
da religiosa. ca-se não a todo o povo, mas a parte dêle, a
um grupo restrito da coletividade ao grupo dos
;

1. Aplicado ao campo da vida profana, a pa-


fiéisque não se deixam arrastar longe do ver-
lavra servidor emprega-se nos casos de "servi- dadeiro serviço de Iavé (SI 34.22-23; 35.27; Is
ço", designando comumente um escravo, mor- 65.8-14; Ml 3.17-18). Os servidores são os
mente um escravo varão (para as mulheres usa- justos; todos os demais são os perversos. Fi-
se outra palavra que implica amiúde outra coi- nalmente, a palavra toma um sentido indivi-
sa além do trabalho de criada, p. ex. os ofícios dual e pode designar uma determinada pessoa
de concubina, como em Gn 16.1-3; Ex 2 1.7- 11). Abraão (Gn 26.24), Moisés (Ex 14.31), Davi
Noutros contextos, servidor é quem está sujeito (2Sm 3.18). Os Salmos oferecem muitos exem-
a um superior; assim, no político, é o sujeito do plos desta individualização, mesmo quando fi-
rei. do chefe (ISm 8. 17; 2Rs 10.5), no militar, que anónima como consta nas queixas e la-
;

é o soldado ou oficial "ligado" ao serviço (ISm mentos do justo que clama a Deus em demanda
17.8; 2Rs 18.24). A mesma palavra designa de libertação das mãos inimigas (SI 19.12-14;
também uma personagem importante e de gran- 31.17; 109.28; 119.17,23,38; 143.2, etc). Con-
des responsabilidades, porém submissa a um tudo, se o servo é o justo perante Deus, é pri-
rei como o seu ministro (Lat. minister
: ser- = meiramente aquêle que recebeu de Deus deter-
vidor) ou arauto (Gn 40.20; 2Rs 22.12; Et minada missão: quer como rei, quer como pro-
1.3). Finalmente nas fórmulas de cortesia e feta (Is 37.35; Jr 33.21), ou mesmo como
saudação, o uso da palavra "servidor" aparece instrumento provisório da vontade de Deus, não
como marca de respeito e de submissão "Eu :
sendo necessário para isso pertencer ao povo
sou teu servo" (Gn 32.4; 33.5) e substitui-se eleito: um pagão pode ser o servo de Deus
às vezes ao pronome pessoal: eu. (2Rs 19. ("Meu servo Nebucadnetsar, Jr 25.9; 27.6).
19-20).
3. Notemos finalmente o emprêgo específico
2. No campo religioso é que êste têrmo toma da palavra "servo" nos quatro textos bem co-
o seu sentido mais rico "servo" é quem está
:
nhecidos de Isaías e chamados os cantos ou poe-
sujeito a Deus e trabalha no seu serviço. O mas do "Servo de Iavé" (Is 42.1-7; 49.1-6;
"serviço de Deus" contém, antes de mais nada 50.4-9; 52.13-53.12). De quem se trata nestes
uma significação cultual e litúrgica, que até trechos poéticos tão ricos para o pensamento
hoje em dia vigora entre nós: o serviço de cristão? É um dos problemas mais discutidos
Deus é o —>
culto divino. Portanto servo
de Deus é o povo que celebra o culto, a comu-
do VT e os doutos formulam numerosas hipó-
teses de interpretação. Impossível repassá-las
nidade de Israel na sua atividade litúrgica (esta- aqui minuciosamente. Mencionemos simplesmen-
belecimento da
—> —>
aliança, celebração das
festas, assembleias no —
Templo, etc.
te os traços principais. Para muitos, o Servo
de Iavé representa, aqui, uma personagem indi-
(SI 113.1; Ex 7. 16; Ez 20.40). Os servos vidual em oposição ao povo (de fato, Is 49.6
de Deus, pois, são os homens encarregados de representa-o desempenhando seu papel em prol
celebrar o culto, os sacerdotes e os levitas (Nm do povo; e também 53.3-8) enquanto nos de-
18.7; Ne 11.3; Ed 6.18). mais capítulos de Isaías o servidor designa cla-
Entretanto, seria inexato restringir êste sen- ramente o próprio povo (p. ex. 44.21). Em
se
tido exclusivamente ao campo ritual e litúrgico tratando porém dos pormenores de caracteriza-
o serviço de Deus é em primeiro lugar uma ção de tal personagem, os autores estão dividi-
:

SOFRER 311

dos: algum herói do passado (Moisés, Davi, ou Se, na linguagem atual, o sofrimento evoca
um dos seus descendentes), ou do presente (um de início as dores físicas do doente ou do ferido,
profeta, o próprio Isaías), ou do futuro (o Mes- a palavra reveste-se na Bíblia duma significação
sias, algum rei glorioso dos tempos escatológi- muito mais profunda e existencial. A
Bíblia
cos) ? A
dificuldade não data de hoje; pois apa- não ignora a dor física, por exemplo, as dores
rece já nos Atos ("A quem se refere o pro do parto (Gn 3.16; Jo 16.21), da enfermidade
feta? A si mesmo ou a algum profeta?" 8.34). (Jó 7.5; SI 102) ou do martírio (Mt 27.27-30;
Outros comentaristas conservam um sentido At 5.41). Mas, embora não o minimize a modo
coletivo e persistem em ver neste Servo de Iavé dos estóicos ou da "Ciência Cristã", a Bíblia
o próprio Israel dos demais capítulos de Isaías nunca fala do sofrimento salientando e rele-
O povo israelita será a luz das nações, desti- vando a dor física. Amiúde é questão de dor
nado a sofrer perseguição e morte pela salvação moral suscitada ora pelo desprezo, ora pela
dos demais povos. Quando menós, trata-se dum calúnia, pelo abandono, pelo ódio ou pelo endu-
pequeno grupo de fiéis, remanescente escolhido recimento dos outros homens (SI 55. Jr 15.18;
entre êste povo e perseverantemente devotado a Mt 27.39-44; Gl 4.19). Longe de ser conside-
Iavé e destinado a servir de testemunha para os rado simplesmente como mal físico ou moral, o
tíbios e pagãos. Outros opinam para uma per- sofrimento assume nas Escrituras um caráter
sonificação do povo visto duma perspectiva pro- espiritual aparece como uma humilhação diante
;

fética. de Deus, uma marca de reprovação ou de ira


Diante de teses tão diversas, parece verdadei- divina (Jó 10.2; SI 107.12,39; Mt 27.45-46;
ro, conforme muitos hoje em dia o salientam, 2Co 12.5-10). Portanto o contrário do sofri-
admitir que esta noção do "Servo de Iavé" é mento não é precisamente a saúde ou o bem-
uma noção fluída, passando da coletividade para estar (Jó 42), mas a consolação (2Co 1.5-7)
o indivíduo, do presente para o futuro, sem que
seja necessário guardar para esta expressão o
e a —> glória (Rm 8.18; IPe 1.11), quer
dizer a reabilitação mediante a graça perante
rigor da lógica reclamado pelo nosso espírito Deus.
moderno. Jesus viu nestes textos a imagem da Êste sentido espiritual ou teológico é que *
sua missão, e a Igreja cristã viu no servo dolo- revelado pela Escritura
rido e humilhado por causa dos pecados de seu
povo, o anúncio profético do Cristo crucificado
Nos primeiros capítulos do Génesis, o sofri-
pela salvação do mundo.
mento somente aparece depois da queda (Gn
Assim como — sendo a pessoa do Cristo uma
individualidade bem definida — o corpo do
3.16).
to boa"
Acriação original é descrita como "mui-
(Gn 1.31), harmoniosa e ordenada,
isenta de sofrimento. Também o mundo novo.
Cristo é não obstante a Igreja na sua realidade
UCo 12.27), assim o "Servo de Iavé" desig- objeto da esperança tanto do VT
como do NT,
será um mundo livre de qualquer sofrimento (Is
na a comunidade dos crentes da antiga lei bem
como a pessoa particular a quem Deus confiará 65.16ss; 21.4). Portanto a dor não é uma
Ap
fatalidade sendo ligada apenas à con-
eterna,
a missão de salvar as nações. Esta é a pessoa
dição do homem pecador ela é um dos sinais
que Jesus encarnará ao vir para a nossa terra. ;

Esta interpenetração do sentido coletivo e do da desordem completa que a rebelião do homem


individual corresponde muito bem ao pensa- introduziu na criação. Na atual situação do mun-
mento dos autores bíblicos que não costumavam do pecador, o domínio do sofrimento é tal que
separar o indivíduo da comunidade na vida ninguém lhe escapará. O
próprio Cristo, dese-
religiosa de Israel. jando assumir plenamente a condição humana,
F. MICHAELI sujeitar-se-á ao sofrimento (Hb 2.14-18).

SOFRER A relação fundamental do sofrimento com o


pecado implica, por acaso, que as penalidades
O sofrimento ocupa um lugar considerável sejam proporcionadas às desobediências pessoais
nas Escrituras. Desde Caim até Jó, e desde o dos povos e dos homens? Frequentemente, o VT
Gólgota até as visões do Apocalipse, há poucas apresenta as desventuras como castigos enviados
páginas bíblicas que não tocam de perto ou de por Deus às nações infiéis (Am 1-2). Neste
longe esta dura realidade da existência humana. sentido é que interpretaram os profetas a His-
Todavia, não sendo a Escritura uma filosofia, tória de Israel e das nações. Contudo não dei-
em parte nenhuma nos dá uma explicação defi- xaram êles de reconhecer no castigo doloroso
nitiva e racionalmente satisfatória do sofri- um apêlo ao arrependimento (Jr 18.11), en-
mento. Ador fica, para a mensagem bíblica, quanto, pelo contrário, o Deuteronômio (28), os
exatamente o que ela é na vida terrestre um : Salmos (49; 52; etc.) e Provérbios conside-
problema dado cujo segredo é descoberto exclu- ravam-no como a punição definitiva e atual re-
sivamente pela fé perante os sofrimentos de servada aos ímpios e poupada aos justos. Ulte-
Jesus Cristo, manifestação suprema da desordem riormente no judaísmo amadurecido e daí no
da criação como também do amor redentor de NT, a punição dos pecados mediante as penali-
Deus. dades rejeita-se para depois da —>
morte,

312 SOMBRA

no lugar de dores chamado inferno (Lc 16.24; qual o crente pode desde já regozijar-se pois
Ap 20.10). ela é o penhor da glória vindoura (At 5.41;
É contra a doutrina da retribuição imediata, Rm 8.17s; Fp 3.10; IPe 4.13).
que une a justiça divina aos méritos humanos Vê-se então como esta concepção do sofri-
e choca-se assim com o escândalo do sofrimento mento poderia, perdendo seu caráter cristocên-
dos justos, que se insurge o livro de Jó em : trico,conduzir a Igreja antiga à busca merece-
resposta a seus amigos que consideram seu so- dora do mártir, volta paradoxal à doutrina
frimento como causa de seu pecado, Jó clama judia da retribuição.
sua inocência (Jó 31) e, deixando de lado a S. AMSLER
revolta (Jó 7), submete-se em humildade à
soberania de Deus (Jó 39, 37s). Não conside- SOMBRA
rando o discurso de Eliú que vê no sofrimento
Têrmo que significa ora uma ameaça, ora
uma pedagogia divina (Jó 36,15), o livro de Jó
uma proteção, ou também uma insuficiência
deixa intato o mistério do sofrimento do ino-
perante a realidade plena.
cente, que constitui o tormento de tantos Salmos
(7: 44, etc.) bem assim como de muitos tre- 1. A
"sombra da morte" (Mt 4.16; Lc 1.79;
chos proféticos (Jr 15,18). Is 9.1; SI 23.4) denota o temor e o sofri-
Únicas no VT, as páginas do segundo Isaías mento dos homens pecadores sobre os quais
deixam entrever que o sofrimento do Justo tem paira a morte, mas que são visitados pela luz
um valor expiatório "Homem de dores, conhe- divina e salvos por Jesus Cristo (ver ^Mor-
:

cendo o sofrimento..., foi pisado por causa de te e —> Luz).


nossos pecados, esmagado por causa de nossas 2. A sombra benéfica e protetora: da árvore
iniquidades..." (Is 53.3-5). (Mc 4.32), da casa (Gn 19.8)
a proteção di-
Os sofrimentos de —> Jesus Cristo, o Ser-
vidor de Deus e o Filho do Homem estão no
vina, poderosa e fiel
;

(SI 19.1; 121.5). Espe-


ra-se que a sombra de Pedro cure (At 5.15;
coração da mensagem do NT. Os Evangelhos At 19.11-12 alude ao poder dos vestidos de
contam esta "paixão" deixando entender que é Paulo como Mc 6.56 das
sus)
—>
vestes de Je-
não é porém a sombra nem o vestido que
ela a imagem de toda sua vida, de Belém (Mt :

2.13ss) a Gestsêmani e Gólgota. Nêle, os sofri- curam, mas Deus pela fé (At 19.11; Mc 5
mentos físicos e morais culminam no sofrimento 25.34).
espiritualdo inocente rejeitado por Deus: "Por
Asombra do Altíssimo (Lc 1.35) evoca a
nuvem do Sinai (Ex 19.9,16,18) na qual Deus
que me abandonaste?" (Mc 15.34). Não é o
estava simultaneamente presente e escondido:
martírio glorioso e voluntário de um herói, mas
pois Deus age pelo poder criador sem trair o
humilde obediência à vontade misteriosa de
seu segrêdo.
Deus "Era preciso que o Filho do Homem
:

sofresse muito" (Mc 8.31). Se êles ressaltam 3. Sombra


serve para designar instituições e
com insistência esta necessidade divina dos sofri- práticas judias e israelitas que possuíam um
mentos do Cristb (cf. Jo 12.27), os Evangelhos sentido provisório mas, depois da vinda de Je-
apenas deixam entrever o papel expiatório (Mc sus Cristo, perdem sua razão de ser.
10.45; cf. Jo, 12.24). Pertencia aos apóstolos Cl 2.16-17: não provar certos alimentos, abs-
proclamar explicitamente o valor substitutivo ter-se de carne e de vinho, santificar certas
e expiatório resumindo todos os sofrimentos do festas judias, era considerado como meio para
Cristo nos de sua —>
cruz. separar-se do mundo e merecer favores de Deus.
Os sofrimentos do Filho do Homem são com- Ora os bens esperados, como perdão (vers. 13).
pletos e definitivos no que resumem diante de libertação da carne e dos poderes maléficos
Deus todo o sofrimento humano. Eis porque (vers. 11-15), vida e glória futura (3.4), res-
São Paulo vê em seus sofrimentos de apóstolo surreição (vers. 12; 3.1), em Cristo estão:
o prolongamento das do Cristo (Cl 1.24) e dêles participam os crentes mediante sua incor-
acumula em Jesus Cristo todo o sofrimento dos poração ao corpo de Cristo que é a Igreja.
crentes (Rm 8.17) humilhação e perseguição
:
"Não mais apetece a sombra quem participa
livremente aceitas pelo crente fazem-no parti- do corpo" (Ch. Masson).
cipar no destino mesmo de seu Senhor, quem, Oculto israelita era imagem e sombra das
por seu sofrimento, entrou na glória (2Cr 1.5ss; coisas celestiais cuja realidade é o Cristo (Hb
Fp 3.10; IPe 4.1-2; 5.1). Quer fale do pade- 10.1). O santuário verdadeiro é aquêle que
cimento pela doença física (Mt 17.15; Tg 5. Cristo erigiu nos céus o santuário mosaico
:

13), pela tentação moral (Hb 2.18; Tg 1.12s) não passa de esboço imperfeito e de imagem
ou, mais frequentemente, pela —>
perseguição
(2Tm 3.10s), o NT proclama que o padeci-
do templo vindouro (Hb 8.2-5)
bém os —>
Assim tam- ;

sacrifícios: o verdadeiro sacrffíi


mento é vencido pelo Cristo porém ainda não cio é aquêle que Cristo celebrou oferecendo a
aniquilado; torna-se pela fé uma graça da própria vida (Hb 9.11-14; 10.1-10).
;

SONHO TEMER 313

4. Tg
1.17: Deus é o Pai das luzes, isto é, dos (Gn 31.24), os oficiais do Faraó (Gn 40.5ss).
astros os astros conhecem variações astro-
: Faraó (Gn 41.7ss), os Medianitas (Jz 7.13-
nómicas, períodos de escuridão Deus, entre- ;
15), Nabucodonosor (Dn 2.1ss), os Magos
tanto, ignora sombras, permanecendo fiel a si (Mt 2.12), a mulher de Pilatos (Mt 27.19).
mesmo (ljo 1.5). Como Deus, assim também Salvo os casos em que a imprescindível veloci-
são os favores de Deus puros, isentos de todo
: dade da ação acarreta a imediata compreensão
mal, próprios para nos salvar perfeitamente. do sonho, os estrangeiros necessitam receber a
explicação do sonho de bôca dum membro do
F. BAUDRAZ povo eleito. Assim imaginamos os Medianitas
compreendendo de imediato a significação do pão
SONHO de cevada que dando de encontro à tenda do
comandante, derrubou-a mas os oficiais do Fa-
1 As circunstâncias do sonho.
. exame dos O
textos bíblicos permite definirmos o sonho como raó bem como o próprio Faraó açudem a José,
uma visão que se produz durante o sono (Jó e Nabucodonosor a Daniel. Que Deus dê um
33.15; Is 29.7) e se dissipa ao despertar (lRs sonho a estranhos, não deixa de ser um favor
portanto, a não ser que Deus também conceda
3.15; SI 73.20), para desaparecer sem retorno
A
fugacidade do sonho valeu-lhe a interpretação, será missão dalgum dos seus
(Jó 20.8).
filhos abrir o sentido da divina revelação.
ser considerado amiúde como o contrário da
realidade (SI 126.1; Ec 5.7; Is 29.8; Jr 23. b) Quando Deus concede um sonho a algum
32) ou da verdade (Jd 8: aparentemente contra membro de Israel, concede-lhe também a expli-
os gnósticos). Para o Eclesiastes, os sonhos re- cação necessária, caso de não lhe ter falado
sultam da atividade diária (5.3) porém a ; claramente: José (Gn 37), Daniel (Dn 2;4;7),
idéia antiga e geralmente admitida, é que Deus São Paulo (At 16.9).
se vale deles para comunicar-se com os ho-
mens (Gn 20.3,6; 31.11-12; 31.24; 12.6: Nm 4. Houve profecia onírica f Cabe afirmar, se
lRs 3.5), ou para atemorizá-los com a sua considerarmos atentamente Dn 13.1-5 (onde o
majestade (Jó 7.14; 33. 15ss). profeta está mencionado ao lado do "sonhador")
Intentou-se, pelo menos para o hebreu e o e Jr. 23.25-32. Aliás ISrn 28.6 cita como pri-
aramaico, relacionar o vocábulo que significa meiro entre os meios adivinhatórios a revela-
sonho, de uma raiz que tem o duplo sentido de ção mediante os sonhos. E Nm
12.6-8 consi-
"sonhar" e de "pubescer". Se fór válida esta dera o sonho, provavelmente em forma de ima-
aproximação, nem por isso deveremos concluir gens, como uma modalidade inferior de reve-
que os sonhos são próprios apenas dos adoles- lação profética pois a modalidade superior é
centes com efeito, salvo José, filho de Jacó.
:
a — ;

;> Palavra direta, mormente a palavra


dirigida a Moisés. Ulteriormente a revelação
todos os outros personagens que foram favore-
cidos com sonhos eram núbeis todavia reco- ;
mediante sonhos foi atacada violentamente pelo
nheçamos que os sonhos concediam-se prefe- representante autêntico de Iavé aue vivia no
rentemente a pessoas na plena fôrça da idade: contato íntimo com Deus (Jr 23.25-28; ver
portanto compreendemos que no dia de Iavé, Zc 10.2).
quando tudo será diferente do acostumado, os Opondo aos sonhos dos falsos profetas a
sonhos serão para os anciões a certeza de que Palavra de Deus ouvida na comunhão direta,
o espírito divino se derramou sobre êles (Jl Jeremias dizia "Que tem a palha com o tri-
:

2.28: profecia citada por At 2.17 e aplicada go?" (Jr 23.28). Sem desprezar qualquer meio
ao Pentecoste). usado por Deus para revelar-se aos homens,
retenhamos preciosamente como conclusão esta
2. A
forma dos sonhos, a) O sonho se de- palavra de Jeremias.
senvolve por imagens sucessivas (Gn 37; 40; H. MICHAUD
41; Jz 7.13; Dn 2; 4; 7; no aramaico é usual
a expressão "ver um sonho"), aproximando-se TEMER
destarte da visão pura (assim At 11.5-11).
b) O
sonho pode conter igualmente uma pa- VT
lavra direta de Deus e tomar a forma dum O VT carece do têrmo "religião" (mesmo
diálogo (Gn 20.3-7: 31.10-13: lRs 3.5-15; no NT êste aparece apenas duas vêzes : At 26.5
Mt 1.20-23; 2. At 9.10-16; 10.3-6). eTg 1.26-27). Para indicar a atitude do ho-
Ademais, ambas as formas anteriores, ima
c) mem perante Deus realizando uma >
conosco, a Escritura usa a palavra "temor de
— aliança
gens e palavras, aparecem combinadas na visão
noturna relatada por At 16.9. Deus". Mas, a Bíblia fala-nos também de
outros temores convém, pois, examinar a ori-
;

3. Significação e explicação dos sonhos, a) gem e a evolução dêste conceito assim com-
;

O sonho revela o porvir a homens extranhos ao preenderemos melhor qual é a resposta do ho-
povo eleito: Abimeleque (Gn 20.3,7), Labão mem à graça de Deus.
. .

314 TEMER

1. O temor original. Só colocando-nos no


contexto da psicologia antiga, entenderemos a
cadáver, etc),
e
com a distinção entre puro
impuro e com a introdução de tabus alimen-
—>
noção de temor que vigorava no ambiente his- tares e sexuais.
tórico-geográfico de Israel, antes de conver-
c) Daí a ambiguidade da noção de temor.
ter-se êste tema banal em uma realidade cheia
de novidade para o VT. Na longínqua anti-
O homem busca sua segurança; foge logica-
mente de quanto inspira temor mas a fuga é;
guidade o conceito de temor estava subordinado
bem inútil quando tudo inspira temor. Aliás, a
basicamente à idéia de potencialidade
potencialidade não é a aparição, aqui, ali ou
a) Tôda e qualquer realidade é virtualmente acolá do sobrenatural na natureza, mas é o
um foco de potencialidade constatá-lo-emos
:
próprio sobrenatural aflorando na vida da na-
cada vez que um acontecimento surpreendente tureza. Como poderia ser então o temor uma
ou um evento fortuito tornam manifesto o seu simples fuga? Deverá ser a procura positiva
poder ou a sua intencionalidade. Então o ser dêste princípio de vida.
ou objeto, sede da potencialidade, é considerado Cada um, quer queira ou não, comparte a
mero, portador de "mana". busca para sobreviver o povo identificando-se
:

Apotencialidade não se restringe a determi- com o rei "fôlego da sua vida" (Lm 4.20), o
nados lugares ou momentos, mas está presente pequeno confessando-se à mercê do grande te-
em todas as partes e em todo o tempo, em- mido do qual receberá qualquer parcela de pros-
bora não reconhecida e localizada apenas quando peridade. O
forasteiro nunca é indiferente,
surge um sinal revelador. tornando-se, portanto, atividades sacras a hos-
Tal potencialidade total, global, gosta de pitalidade, a saudação e a mesma guerra.
manifestar-se em totalidades psíquicas em re- A —> guerra é um combate psíquico. O
soldado que teme ao inimigo, teme a totalidade
dor de determinados centros, quer lugares sa-
grados ( —> Templo) ou pessoas sacras (ca-
pitão, rei, sacerdote —> Ministérios VT)
psíquica do inimigo; caso de desconfiar da to-
talidade psíquica própria, êle não deve parti-
Destarte u'a moabita passa a ser, além de tal cipar da batalha, não unicamente por ser o
indivíduo, o representante de todo Moabe, a temor contagioso psicologicamente, mas por
encarnação da totalidade psíquica moabita em romper a unidade ontológica do exército.
face da totalidade psíquica israelita (Dt 23.3-4). (Ver Dt 20.8; Jz 7.3).

b) Pôsto diante do extraordinário, inerente 2. Objetos do temor no NT. O VT constata


a qualquer manifestação de poder, o homem que o homem é naturalmente inclinado a temer
experimenta uma sensação que varia, indo da muitas coisas, as quais não podem ser separa-
surpresa até ao espanto, e que designamos com das em campos de valores para maior clareza
:

a palavra "temor" . Proclamando que o porta- agrupá-las-emos como segue, tendo em consi-
dor de mana é tabu (do polinésio tapui =
tor- deração a fonte básica do temor, isto é, a re-
nar santo), parecemos gritar: "Cuidado! Aqui velação da força vital.
há uma coisa reservada!"
Ainda não há aqui qualquer idéia de mora- a) O
temor constitui a relação básica entre
lidade violar um tabu não acarreta castigo,
:
criaturas. O cavalo é intrépido (Jó 39.25).
os animais temem, contudo, ao homem, senhor
provoca apenas uma reação automática (ao
e mestre de suas vidas (Gn 9.2) O homem .

modo de uma descarga elétrica, 2Sm 6.6-7). vive atribulado, atento a qualquer sinal cósmico
Mas, inversamente, quando tal descarga atinge (SI 46.3; Jr 10.2); se fôr atingido por algu-
alguém, é porque êste violou um tabu qualquer
:
ma desgraça, sente-se envolvido por uma fata-
desgraça revela um pecado escondido indepen- lidade, quer seja justo (Jó 3.25) ou pecador
dentemente de tôda intenção. Destarte, o ho- (SI 38.19).
mem vendo-se rodeado por um mundo hostil,
vive numa perpétua angústia temor e má
:
b) Temer torna-se a atitude de niti em pre-
consciência sempre vão juntos. sença do outro: seja por respeito de sua auto-
ridade emanada de Deus (do ancião: Jó 32.6;
Para vencer a angústia, o temor procura
dos pais: Lv 19.3; do chefe: ver infra), quer
"organizar-se" a sua vez sobre outros centros
pelo perigo que sua fôrça representa (Gn
sagrados, na esperança de participar do prin-
4.9-14; ISm 15.24; Jr 1.8); falando concre-
cípio da vida emanada do centro ( =: da pessoa,
tamente teme-se a morte.
do lugar onde Deus mora) e de incorporar-se
à sua totalidade psíquica: assim surge o temor c) O
objeto do espanto maior é a totalidade
ao chefe (manifestado em ritos, festas de intro- psíquica: a terra estranha e os estrangeiros
dução ao sagrado) Como repercussão, gera-se
. (Gn 46.3; Nm
14.9), os inimigos (Dt 20.1;
uma oposição contra qualquer outra totalidade Jz 7.13; Is 7.16; 10.24; SI 27.3); em parti-
psíquica, com o consequente temor a tudo que cular o capitão ou rei inimigo (ISm 17.24;
leva um poder desconhecido (ao estranho, ao Is 7.16; Jr 42.12); os deuses pagãos (2Rs
.;

TEMER 315

17.35-38; Jr 10.5). Inversamente os Cananeus ser o temor do rei ou do profeta uma simples
(Ex 15.16; Js 2.11), os Edomitas (Dt 2.4) extensão do temor de Deus —
2Sm 23.3; ISm
temem a Israel, isto é, ao poderoso Deus, cen- 12.18) (Dt 1.17; Jr 17.8, e, especialmente Is
tro da totalidade psíquica de Israel (Ex 23.27). 8.12s; 2Sm 23.4).
Deus, por ser o criador das forças incom-
d) Teme-se em Israel todo o sacro. Evi-
preensíveis, é também necessariamente o único
ta-se qualquer contato visual e qualquer proxi-
salvador. Será, portanto, o temor de só Deus
midade
veis e
As moradas de Deus são temí-
local.
Betei (Gn 28.17), Orebe (Ex
tabus:
a resposta humana à —>
aliança divina. Eis
porque o pecado, quebrando a aliança, ressus-
3.5), a Arca (ISm 5-6), o Templo (Sl 5-8;
cita inexoravelmente todos os outros temores,
68.36; Is 6). Teme-se o contato dos mortos
Moisés teme olhar para temor dos inimigos (Lv 26.14-17; Sl 38.19-20),
e outras impurezas.
Deus (Ex 3.6) o povo receia aproximar-se
temor de qualquer poder (Gn 4.12-14) e temor
;

servil de Deus (Gn 3.10). Por outra parte,


de Moisés cujo rosto resplandece (Ex 34.29-35),
o temor de qualquer outro, fora de Deus, não
e de Josué, seu sucessor (Js 4.14). Falar mal
passa de uma cilada inútil (Pv 29.25) que
de Moisés acarreta consequências nefastas (Nm
12.8). O povo teme o profeta e Deus (ISm
nos levará a ser infiéis a nosso Deus (Is 57.11).
12.18). Saul, rejeitado, teme a Davi porque
Assim, temer a Deus equivale reconhecer a
onipotência e. em última instância, a unicidade
Deus está com o jovem (ISm 18.12). Final-
divina.
mente, quando Samuel hesita relatar sua visão
a EH (ISm 3.15), não é unicamente por sen- O temor de Deus constitui-se em fundamento
timentos de respeito e afeto que êle se apavora. da moral (Ex 18.21; 20.20; Jó 23.28; 2.3;
Assim surge o caráter positivo do temor não : Pv 8.13), porquanto inspira a pureza na pre-
é êste um simples instinto de fugir e de com- sença daquele que é o Santo. A Bíblia fala
bater, mas o desejo de conhecer e de aplicar muito mais do temor de Iavé que do temor de
a receita preservadora, de beneficiar-se e de Deus, por ser Iavé o nome pessoal do Se-
beber na fonte da vida. nhor insinua-se-nos, pois, que devemos temer
:

_e) O homem teme sobretudo a Deus (Gn a Deus mais pelo que êle é, e menos pelo
que pode fazer. Em suma, devemos temer a
31.42,53; Ex 24.17; 33.20; Dt 5.26), teme
o —>nome de Deus (Sl 99.3; 111.9), o anjo
de Deus (Jz 6.22; 13.6; Lc 2.9 —>
Deus não por temor do castigo (Jr 3.8) na
doutrina do VT, os castigos formam a peda-
:

anjo) gogia de Deus fundados no amor nos levam


;

Deus, para entrar em contato com o homem, ao temor positivo de Deus (Dt 13.11).
necessitará valer-se da fórmula de revelação:
A sabedoria, da qual o princípio é o temor
"Não temas!" Não me temas a mim, mesmo divino (Sl 111.10), não é mero voluntarismo
quando para tudo e em tudo precises da minha humano. Pois o temor de Deus, fundando-se
proteção (Gn 26.24; Jz 6.23; Ag 2.5; Lc na sensação angustiosa de impotência, estágio
2.10). Temer a Deus significa temer a fôrça mais íntimo da consciência pecadora, leva-nos
de Deus. Só o amor de Deus evitará que Iavé
a considerar exclusivamente a potencialidade di-
use sua fôrça fatal (Jz 13.22-23; Gn 32.30:
vina (Sl 51.12-13), a submeter-nos à revela-
"vi a Deus face a face, e eis-me com vida!"
ção de Deus e a obedecer a sua palavra Ex
= verdadeiro milagre, consequência totalmente
9.20; Is 66.2,5; Sl 2.11). O temor assim en-
anormal !) .

tendido é um atributo do Messias (Is 11.2):


o. O
temor de Deus. Ainda mais frequente- êste virá como um "Servo de Iavé" (Is 53).
mente, Deus manda que não temamos deter- Ainda mais, tal temor desabrocha fatalmente
minados objetos nem a êle mesmo; formando-se
assim um novo "temor de Deus". Autores
em amor ( —>
amor), laço essencial de todos
que vivem em comunhão (Dt 10.12; ljo 4.18),
intentaram classificar o temor de Deus, dis- e, por êstes caminhos, o temor de Deus confun-

tinguindo um temor servil mau, e outro filial de-se com honrar, reverenciar e adorar a Deus,
bom : Deus exclu-
classificação gratuita por ser que é a síntese do culto (2Rs 17.24-41) reli-
sivo. Na
realidade a potencialidade divina não gioso. Paradoxalmente, o temor torna-se a fonte
suporta ser apenas uma entre tantas, mas tende da confiança, e a fraqueza faz-se o manancial
com ciúme derrubar qualquer reverência por de fôrça (Jo 4.6) eis as façanhas da graça.
:

outra potencialidade e até a existência mesma


D. LYS
das outras. Esta é precisamente a novidade do
VT o temor não inspira mais a complexa cor-
:
NT
rente psicológica na qual o homem de antes Temer é um
verbo que pode introduzir um
procurava reverenciar todas as potencialidades infinito, p. eu temo pecar, ou uma proposi-
ex.,
agora deve-se reconhecer que o poder de Iavé ção conjuntiva, p. ex., eu temo que meu irmão
é o único temível, vencedor de todos os demais peque, não incluindo necessàriamente um con-
poderes e temores (com a ressalva, porém, de teúdo especificamente religioso (assim Mt 1.20;
316 TEMER

2.22; At 23.10; 2Co 11.3, etc). No entanto, temor que tinha dos judeus" (Jo 19.38). A
usado absolutamente, temer (e seu substantivo mensagem das mulheres não deu muita segu-
temor) define uma atitude humana em função rança aos discípulos permaneceram, "as por-
:

das circunstâncias e do móvil do temor. O tas trancadas, com mêdo dos judeus" (Jo 20.
sentido do verbo transitivo varia se o seu obie- 19). A atitude de Pedro tampouco é isenta de
to direto fôr Deus, o homem, os atos de Deus fraqueza "porque se tornara repreensível". é
:

ou do homem, ou um acontecimento qualquer. repreendido por Paulo, "pois depois de comer


A noção de temor perde no NT
a preponderân- com os gentios... afastou-se e por fim veio a
cia que tinha na Lei antiga até a acepção da
; apartar-se, temendo os da circuncisão" (Gl
palavra não pode ser já definida com rigor. 2.12).

1. O
temor, sentimento humano, a) O temor
c) O
temor e a reação humana ante a divina
manifesta a incredulidade dos homens. O Evan-
revelação. Quando Deus manifesta o seu Rei-
gelho nota que os opositores ao desígnio de no, assombram-se os homens. Descobrem vaga-
Deus estão sujeitos ao temor. Pilatos, ouvindo mente, afetivamente, a distância incomensurável
a acusação dos judeus contra Jesus ("a si mes- que os separa de Deus vivo, e o pavor junta-se
mo se fêz Deus"), "ficou ainda mais atemori- então ao assombro. O Evangelho relata nume-
zado" (Jo 19.8), pressentindo quiçá o caráter rosos milagres que suscitam tal reação na mul-
único do acusado. O epílogo do drama da cruz tidão e mesmo entre os discípulos. A
tempes-
e sua repercussão cósmica inculcam aos sol- tade acalmada (Mc 4.41 par), as curas feitas
dados um terror sagrado (Mt 27.54). O anjo por Jesus, mesmo sendo a expressão da mise-
da ressurreição manifestou bem a fraqueza dos ricórdia de Deus e os sinais do Reino por vir
guardas do sepulcro, os quais "tremeram espa- (Mt 9.8; Mc 5.15 par), infundem temor na
voridos, ficando como se estivessem mortos" assistência,igual acontecendo mais tarde com
(Mt 28.4). Bem notável é o fato de que os "os prodígios e milagres obrados pelos apósto-
principais, enquanto não vêm assegurada sua los" (At 2.42-43). A
mulher curada pelo mero
pessoa e salvo seu cargo, falam e obram "te-
mendo o povo" (Mc 11.18; Mt 21.26 par;
toque dos —>
vestidos de Jesus, postra-se ate-
morizada e tremendo (Mc 5.33). E, ressusci-
Mt 14.5). Após ouvir a parábola dos lavra- tado o jovem de Naim, todos ficam "possuídos
dores infiéis, na qual se reconhecem pintados de temor e glorificam a Deus, dizendo: Um
em plena luz, os chefes dos sacerdotes e os fari- grande profeta se levantou entre nós, Deus vi-
seus, contêm a sua ira "temeram as multi-
:
sitou o seu povo" (Lc 7.16). Ao levantar-se o
dões porque estas consideravam a Jesus como paralítico curado, todos ficam atónitos, glorifi-
profeta" (Mt 21.46 par). Vemos também que cando a Deus e possuídos de temor exclamam:
a declarada hostilidade das autoridades contra Hoje vimos prodígios! (Lc 5.26). O homem
Jesus impede o povo de tomar parte aberta- natural treme quando Deus descobre o seu po-
mente a favor de Jesus, "por ter mêdo dos ju- der misericordioso às vêzes, o temor torna-se
;

deus" (Jo 7.13). um grandioso ato de fé coletivo, embora passa-


b) O
temor manifesta as dúvidas dos dis- geiro. Com maior razão é tomado de pavor,
cípulos. O
Evangelho narra como os mesmos quando Deus manifesta sua justiça. Depois da
que respondem ao chamamento de Jesus quase morte de Ananias e de Safira "sobreveio gran-
nada entendem acêrca do Reino. Ficam aterro- de temor a tóda a Igreja e a todos quantos
rizados no seu barco ao ver Jesus andando so- ouviram a notícia dêstes acontecimentos" (At
bre as águas. Pedro, atirando-se ao encontro 5.11). (Ver também At 5.5). O Evangelho
de Jesus, "reparando na força do vento, teve profetiza a repercussão tremenda do juízo de
mêdo" (Mt 14.26ss). Apesar das promessas Deus quando da segunda vinda de Jesus "Ha- :

feitas pelo Salvador, a perspectiva da paixão verá homens que expirarão de terror na expec-
e da morte, a previsão dos próprios riscos admi- tativa das cousas que sobrevirão ao mundo" (Lc
ram-nos sobremaneira "seguiam tomados de
:
21.26; Ap 18.10-15).
apreensões" (Mc 10.32ss). Como compreende- d) Deus revelando-se livra os crentes de
riam o anúncio do ressurreição feito por Jesus? qualquer temor. Medite-se em torno do comêço
Como acreditariam neste portentoso triunfo de do Evangelho de São Lucas. Deus prepara o
Jesus? As mulheres, descobrindo o sepulcro nascimento de seu Filho, ato decisivo da
vazio, longe de interpretar tal fato como o
da vitória de Cristo, "fugiram, possuídas de
sinal —> revelação, enviando um anjo. Quer se
trate de Zacarias, de Maria ou dos pastores, o
temor e assombro... e de mêdo nada disseram anjo tranquiliza e fortalece os interlocutores
a ninguém" (Mc 16.8). Mateus, porém, nota- para que entrem nos divinos desígnios: "Não
as "tomadas de mêdo e grande alegria" (28.8). temais!" A
magnitude e o mistério do plano
O
temor dos homens não é o privilégio dos redentor espanta os chamados (Lc 1.65). Je-
ímpios. José de Arimatéia que cuidou do corpo sus, quando chama a Simão, tranquiliza-o (Lc
de Jesus, era o seu discípulo "ocultamente, pelo 5.10). No seio da tempestade, aproxima-se e
: :

TEMER 317

tranquiliza os discípulos (Mt 14.27 par). No tizantes pagãos (At 10.35; 13.16). O Apoca-
monte da transfiguração, Deus fala testemu- lipse concede a êstes temerosos de Deus um
nhando a divindade de seu Filho, "os discípulos assento entre os servos de Deus. Os vinte quatro
caem de bruços, tomados de grande mêdo. Apro- anciões saúdam a vinda do Reino de Deus nos
ximando-se dêles, Jesus lhes toca, dizendo termos seguintes "Chegou o tempo de serem
:

"Erguei-vos e não temais!" (Mt 17.6-7). A julgados os mortos, de se dar o galardão aos
profecia de Zacarias, citada por Jesus entrando teus servos, os profetas e santos, e aos que
em Jerusalém, (Zc 9.9) para manifestar o rei- temem o teu nome, pequenos e grandes" (11.
no messiânico, dizia "Não temas, filha de Sião,
: 18; ver 19.5). Ausência de temor impiedade =
eis que o teu Rei aí vem, montado em um filho ou revolta assim, o Juiz iníquo da parábola
:

de jumenta" (Jo 12.15). O vidente do Apoca- (Lc 18.2-4), assim o segundo ladrão crucifi-
lipse cai morto, aos pés do Senhor glorioso, mas cado com Jesus (Lc 23.40). A ausência do te-
êste caridosamente o levanta (Ap 1.17). O mor de Deus é a marca própria do pecado da
anjo da ressurreição parece fazer eco às pala- humanidade (Rm 3.18).
vras do Natal: "Não temais!" (Mt 28.5). Je- a) O temor glorifica a Deus
e a Cristo. O
sus, aparecendo às mulheres, confirma as pa-
Apocalipse associa inevitàvelmente o temor aos
"Não temais!" (Mt 28.10).
lavras angelicais:
louvores e à adoração dos escolhidos. O cântico
O dominical:
imperativo "Não temais I" dos vencedores enaltece o Cordeiro, dizendo
abarca bem além das circunstâncias em que fôra "Quem não temerá, Senhor, e não glorificará
pronunciado. A missão do Doze é escatológica; o teu nome?" (15.4) O anjo, portador do Evan-
tôda a Igreja deve saber que não mais haverá gelho eterno, anuncia o juízo de Deus: "Temei
de temer os inimigos (Mt 10.3,26ss). Os discí- a Deus e dai-lhe glória, pois é chegada a hora
pulos têm bem segura a possessão do
no (Lc 12.32) os Atos mostram o Senhor
Rei-—> do seu juízo. Adorai aquêle que fêz o céu, a
;
terra, o mar e as fontes de águas!" (14.6-7).
fortalecendo o apóstolo Paulo para os próximos O temor é portanto durante nossa vida terrestre
combates (At 18.9; 27.23-24). uma das manifestações da fé.
As epístolas trazem a confirmação de quanto
b) O temor na vida do crente. Deus, que o
já dissemos. As mulheres crentes sujeitem-se a
crente chama de Pai e ama com espontaneidade
seu marido "não temendo perturbação alguma"
não deixa de ser O que há de julgar cada
filial,
(IPe 3.6). No sofrimento não se amedrontem
um conforme suas obras. Jesus, nesta perspecti-
os cristãos mas glorifiquem a Cristo (IPe 3.14;
va, podia declarar: "Não temais os que matam
Ap 2.10). Hebreus 11.23,27 aplica aos cristãos o corpo, temei antes aquêle que pode fazer pe-
a declaração do SI 118.6: "O Senhor está co-
recer na geena tanto o corpo como a alma"
migo: não temerei", ilustrando-a com o exem-
(Mt 10.28 par). Todos temos de comparecer
plo de Moisés repetidas vezes. A encarnação e
ante o tribunal de Cristo e receber cada um
morte de Cristo têm a virtude de nos livrar da
segundo o bem ou o mal que tivermos feito...
apreensão da morte que escraviza tôda a huma-
"assim conhecendo o temor que devemos ter do
nidade (Hb 2.15).
Senhor" (2Co 5.10-11). A doutrina paulina da
Paulo nos dá numa impressionante síntese a salvação é profundamente paradoxal por ser a :

chave desta libertação "Não recebestes um es-


:
salvação um dom de Deus, a segurança do cren-.
pírito de escravidão para viverdes ainda atemo- te pode estar exclusivamente em Deus, mediante
rizados, mas recebestes o espírito de adoção a fé: "Tu, mediante a fé, está firme. Cuidado
pelo qual clamamos "Aba, isto é, Pai" (Rm com ensoberbecer-te antes teme" (Rm 11.20;
;

8.15). A obra redentora de Deus, cujos efeitos ver também em IPe 1.17 a mesma doutrina).
se estendem mediante o Espírito Santo, exonera
os crentes de qualquer temor. João, na sua lin-
A Igreja ensina que o temor de Deus se ma-
nifesta observando os mandamentos, sendo a
guagem tão peculiar e pessoal, nada afirma
obediência condição ineludível da santificação
que não ratifique esta doutrina. Declara que o
dos crentes e motivo último da luta cristã, na
divino amor, fonte do amor nosso a Deus, "lan-
companhia da gratidão e da esperança: "Tendo
ça fora o mêdo, pois o mêdo supõe castigos, e
pois tais promessas, meus amados, purifique-
aquêle que teme não é perfeito no amor" (ljo
4.18). mo-nos de tôda impureza da carne e do espí-
rito, aperfeiçoemos a nossa santificação no
e
2. O temor, expressão da fé. A
despeito das temor de Deus" (2Co 7.11). "No temor de
aparências paradoxais e contraditórias, o temor Deus a Igreja se edifica e progride" (At 9.31).
é uma das expressões da fé ( —>
fé), moti-
vando isso o costume de chamar-se os crentes
Temer a Deus significa para nós concreta-
mente sujeitar-nos uns aos outros (Ef 9.31).
do NT "os que temem a Deus". Expressão ge- É muito significativo que os apóstolos convi-
ral que bem pode convir aos crentes de ambas dem os cristãos a obedecer ao Senhor (Cl 3.22;
as alianças (Lc 13.43), aos prosélitos piedosos, 1P2 2.17) precisamente quando tratam do res-
como Cornélio (At 10.22) e mesmo aos simpa- peito devido às —>
autoridades. Tal respeito,
318 TEMPLO

na realidade, é a expressão ética da obediência


a Deus. Eis porque a mesma atitude vale para
os cristãos perante os magistrados (Rm 13.3-7)
— >No
2. curso de sua existência, o Templo de
Jerusalém conheceu três períodos suces-
sivos o primeiro templo ou templo de Salomão,
:

e perante os co-servidores de Deus (2Co 7.15), que deveria durar de 960 até a ruína de Jeru-
para a esposa perante o marido (Ef 5.33; IPe salém en 587; o segundo templo, edificado pelos
3.1-2) e para os escravos perante seus amos judeus vindos da Babilónia consequentemente
(Ef 6.5; IPe 2.18). ao édito de Ciro (539). Seu esplendor estava
Finalmente o temor é um dos elementos da longe de igualar o do primeiro (Ed 3.12; Ag
disciplina eclesiástica, êle prova a eficácia da 2.3). Finalmente, o templo construído por He-
repreensão pública dos réus (lTm 5.20; 2Co rodes, o Grande, aquêle que conheceu Jesus
7.11), membros da comunidade. Aos que não (
—> Templo N.T.). Êste último monumento
cuja construção durou de 20 a.C. até 60 d.C,
são membros mas "que vos pedir razão da espe-
rança que há em vós, contestai com mansi- . . .
ultrapassava em grandeza a todos os que lhe
dão e temor (= respeito)" (IPe 3.15). Con- haviam precedido.
tudo a Igreja não deixará de sentir, em pre- O Templo de Jerusalém, chamado a casa de
sença de certos indivíduos, ''uma compaixão Iavé, a casa, esta casa (SI 23.6; lRs 8), por-
amalgamada de temor, detestando até a roupa que Iavé estava aí presente, está descrito em
contaminada pela carne" (Jd 23).
lRs 6; Ez 40.42; 2Cr 3. Muitas passagens do
E. DISSERENS Pentateuco relativas ao tabernáculo do deserto
foram inspiradas diretamente por êle. Nenhuma
TEMPLO dúvida é admissível sôbre sua localização. Eri-
gia-se sôbre a colina nordeste da cidade, ocupa-
V.T. da hoje pela mesquita de Omar, local santo de
Islam após tê-lo sido dos judeus, circunb
1. Quando os israelitas entraram em Canaã cia que impede de aí praticar escavações arqueo-
no fim do século XIII a.C, encontraram-se lógicas. É hoje uma grande superfície plana em
num país onde os locais de culto eram nume- forma de trapézio, sendo que os lados mais
rosos. Longe de destruí-los, adotaram-nos e con- compridos medem 462 x 491m, os outros 281 x
sagraram-nos a seu Deus, Iavé. O testemunho 310m. Esta esplanada está agora ocupada por
da Bíblia está aqui apoiado pelas escavações diversas construções, caracterizando-se especial-
arqueológicas. O antigo santuário cananeu en- mente em sua parte média pelo famoso rochedo
contrava-se geralmente sobre uma altura. Além
sacro (17,9m x 13,8m, altura 2m) que sustinha
o altar dos sacrifícios.
do altar, havia esteias de pedra nas quais pen-
sava-se que a divindade morava (cf Gn 28.18), O edifício do templo de Salomão
principal
um edifício para os banquetes que seguiam os tinha proporções modestas. No interior, media
sacrifícios (ISm 9.22). É nos santuários que 60 cóvados sôbre 30 (o côvado tinha um com-
os devotos ofereciam os primogénitos de seus primento de 50 cm. aproximadamente) e com-
rebanhos e as primícias das colheitas e dos preendia dois locais de tamanho desigual, o
frutos. Pelo fato de oferecerem isto à divin- hêkal, local (40 x 20) e o debir, local santíssimo
dade, conseguiam a bênção sôbre o rebanho e
(20 x 20). A altura dêles era também de 30
as colheitas do ano.
cóvados (texto grego: 25 cóvados). É prová-
Em Jerusalém, como nas
outras cidades, eri- vel que o debir eleva va-se de 5 ou 10 côvaderc
gia-se um Êste estava dedicado a
santuário. acima do nível do hêkal ao qual se tinha acesso
uma divindade local. Possuía seu clero, sua litur- por uma escada. Enquanto janelas iluminavam
gia. Gn 14.18ss permite chegar a conclusão que o lugar santo, o local santíssimo estava mergu-
tal deus chamava-se Elion, que significa o Altís- lhado na escuridão total, assim feito para con-
simo, têrmo que é muito repetido nos Salmos formar-se com a ordem de Iavé (lRs 8.12).
(cf 18.14; 21.8; 47.3; 57.3; 78.56, etc). Quan- As paredes são revestidas de madeira de cedro
do Davi apoderou-se da cidade, colocou o lugar e de cipreste com esculturas e ornamentos de
santo de Jerusalém a serviço de seu Deus que ouro. O edifício está precedido de um grande
tornou-se Iavé Elion. Em
2Sm 7, a Bíblia con- vestíbulo (10 x 20), flanqueado em sua entrada
servou um relato relativo à construção do Tem- por dois pilares de cobre, as colunas Jaquim e
plo. Davi preocupa-se, efetivamente, em subs- Boaz CIRs 7.15-22). Pelo norte, sul e oeste, o
tituir o tabernáculo que agasalha a arca da edifício do templo propriamente dito estava
aliança por um edifício digno dela. Esta tra- rodeado por uma construção secundária que con-
dição atesta especialmente a admiração susci- tinha elevado número de salas destinadas a
tada pelo Templo de Salomão que sobrepassava guardar os objetos do culto. Um pátio rodeava
em esplendor tudo o que se tinha até então e êste conjunto de construção. Ezequiel atribui-lhe
que, nesta qualidade, parecia como um monu- 100 x 100 cóvados, enquanto que o livro dos
mento completamente nôvo. Reis não fala de suas dimensões. É o pátio ou
:

TEMPLO 319

átrio interior, em contraste, ao grande átrio, 4. Herdeiro dos santuários locais que nunca
que abrangia todos os edifícios reais, inclusive desapareceram completamente, o Templo real
o templo e o palácio. Quanto às portas, sobre de Jerusalém acabou por atrair a grande massa
cuja ornamentação a Bíblia não deixa de elo- dos fiéis. As tentativas para suscitar-lhe um
giar, conduziam às diferentes partes do san- émulo no reino do Norte não tiveram sucesso
tuário. (cf lRs 12.26ss). Vinham em multidões para

No Santo dos Santos conservava-se a


as —> festas magnas do ano que eram em nú-

—> arca da aliança, sinal visível da presença


mero de três a Páscoa ou festa da primavera.
:

a festa das semanas ou Pentecoste, a festa das


de Iavé. Era o santuário nómade por escelén- cabanas ou dos tabernáculos no outono, às quais
cia, era fácil de transportar ao acaso das mu- acrescenta-se mais tarde em fevereiro-março a
danças. Tinha a forma de um baú de madeira festa de Purim, a qual somente é mencionada
e continha em sua origem pedras sagradas. Êx pelo livro de Ester.
25.10 dá-nos as dimensões em côvados : ....
Além das grandes festas, o templo possuía
2y2 x \y2 altura: 1%. Sôbre a arca erigiam-se
,
um ritual muito complicado. Os sacrifícios, que
dois grandes querubins em madeira de oliveira
se ofereciam, eram de natureza muito diferente
recobertos de ouro. Suas asas estendidas, que
(cf Lv 3 4; 5 6; 7). Correspondiam aos diver-
mediam 10 côvados, tocavam de cada lado as ; ;

sos aspectos da vida dos homens alegria, tris-


paredes do debir. Os querubins eram quadrú- :

pedes alados com cabeça humana, inspirados teza, luto, enfermidade, cura. reconhecimento.
nos génios guardiões dos templos mesopotâmi- Como o confirmam seu nome. muitos sacrifí-
cos. A placa de ouro que servia de base aos cios são herançada época cananéia. O livro dos
querubins era o propiciatório, que se tornou o Salmos, que contém os cânticos executados por
local, por excelência, onde Iavé manifestava-se ocasião das festas e serviços divinos, constitui
cm sua glória (Ex 25.17). num sentido a liturgia do templo. É mister
No Santo encontravam-se as mesas de
local também sublinhar o papel importante do —> rei
madeira de cedro em número de dez. Tinham que, no santuário real, que era seu santuário»
elas a forma de um altar e recebiam os pães da conduzia o culto, no qual êste representava, ou
proposição. Dez candelabros de ouro, cinco de melhor, personificava o povo diante de Deus.
cada lado, serviam para iluminar êste local, Os reis sufragavam abundantemente o culto.
uma vez que as janelas com grades davam ape- Sua generosidade, juntamente com a dos fiéis,
nas uma luz insuficiente. É no átrio interior que e as terras, propriedade do templo, asseguravam
se erigia o grande altar dos sacrifícios que se a êste último rendimentos consideráveis.
situa sôbre o rochedo sacro, o qual ainda está
visível no lugar. Havia também o famoso mar 5. No
decorrer dos séculos, o templo tomou
de fundição, imenso reservatório assentando-se uma importância cada vez maior. Desde a volta
sôbre doze bois do mesmo metal. Seu conteúdo,
do exílio, tornou-se o centro de tôda a vida na-
segundo o livro dos Reis é de 45.000 litros. Con-
cional e religiosado país. Quanto mais Israel
servava-se a água necessária para o serviço do
toma consciência de seu pecado, tanto mais faz-
altar. É possível também que a água tinha como
tal representado um determinado papel no culto
se sentir necessidade de uma instância expia-
cuja finalidade era também assegurar a ferti- tória. Na descrição ideal de Ez 40
ss, o templo

lidade do solo (cf as palavras de Jesus em Jo. é uma imensa onde a finalidade è a
instituição
7.38). Para transportar a água do mar de expiação dos pecados. O fato de que o Deus de
bronze para o altar, havia ainda dez carros que Israel aí morava, criou também a idéia de que
levavam cubas de metal. Finalmente, o primeiro o rochedo de Sião, sôbre o qual se elevava, era
livro dos Reis (7.48) é o único a colocar no inviolável. Nenhuma empresa humana poderia
hckal o altar de incenso que era de ouro. ousar tal coisa. Esta certeza foi reforçada em
701, quando os exércitos de Senaqueribe levan-
3. As riquezas acumuladas no curso dos taram o cêrco de Jerusalém por razões miste-
séculos no templo não deixaram de suscitar co- riosas (cf o cântico irónico de Is 37.22). Só
biças. Já sob Roboão, o faraó Sisaque pilhou a presença do santuário real constituía para os
a casa de Iavé (2Rs 14.25), como os babiló- judeus a garantia da salvação. Também respon-
nios em 587 (2Rs 25) e os Romanos de Tito dem a Jeremias que lhes suplicava converter-se
em 70 de nossa era. Quando os soberanos de "Aqui está o templo de Iavé" (Jr 7.4). Esta
Judá necessitavam de dinheiro, sabiam extrair crença recebeu tremendo choque em 587, quando-
das reservas do templo (cf Acaz em 2Rs 16.8. o templo foi entregue à destruição. Parece que
Ezequias em 2Rs 18.14). Em
diversas ocasiões na época de Jesus voltou a existir novamente.
também, trata-se na Bíblia de trabalho de em- Ao redor dos numerosos sacerdotes e dos can-
belezamento e restauração empreendidos no tores cuja presença era necessária para o ser-
templo por diferentes reis (cf 2Rs.22). viço do culto, gravitavam funcionários de atri-
320 TEMPLO

buições diversas muitos dos quais deviam fazer O TEMPLO DE HERODES


imperar a ordem no santuário e suas proximi-
dades (cf Jr 20, e —>
Sacerdócio), um nú-
mero avultado de profetas ligados ao santuário
A
real (Ministérios VT). Entre o palácio real e
o templo as comunicações eram bem fáceis e
frequentes, como demonstram Jr 26.10; 2Rs
11.13.
g|f|e| d c B
G. PIDOUX
N.T.

1. Deixando de lado o templo de Ezequiel,


que conhecemos melhor, porém que nunca exis-
tiu, recordamos que houve três templos suces- A
sivos em Jerusalém: o de Salomão, o de Zoro-
babel e o de Herodes. É o terceiro que nos inte- A = Átrios dos pagãos
ressa aqui. Em
20-29 antes de Jesus Cristo. He- B = Átrios de mulheres
rodes começou a demolir o templo precedente, C = Átrio de Israel
relativamente modesto, para substituí-lo por um D = Átrio dos sacerdotes
edifício rico em mármore e em ouro, destinado E = Pórtico
a substituir dignamente o templo de Salomão. F z= Local Santo

O essencial da construção foi terminado rapi- G = O Santo dos Santos


damente, mas trabalhava-se ainda na época de
Jesus nos edifícios acessórios (Jo 2.20), e so- Êste segundo pátio, um pouco mais alto e
mente entre 62 e 64 o conjunto do templo rodeado igualmente por salas e câmaras, divi-
dia-se em duas partes de tamanho desigual: a
foi terminado, pouco antes de sua destruição.
leste encontrava-se um espaço acessível a todos
Segundo o historiador Josefo, êste templo de os judeus e chamado por êste motivo o átrio
Herodes ocupava a área de um estádio qua- das mulheres. Ali deveria encontrar-se o gazo-
drado, isto é aproximadamente 14 hectares. O filácio mencionado em Mc 12.41-44 par. O outro
lado, mais vasto, chamado pátio dos israelitas,
lado do sul sobrepassava a colina de Sião. Eis
estava reservado aos judeus do sexo masculino.
porque foi aumentado por uma espécie de pla-
Entrava-se neste pátio por uma porta ricamente
taforma sustentada por arcos (fazendo lembrar
decorada, chamada a "Porta Formosa" (At
a catedral francesa de Puy em Velay). Uma vez
3.2). No interior do pátio dos israelitas encon-
franqueado o recinto exterior, formado por al- trava-se o santuário propriamente dito, num
tas muralhas com quatro portas, entrava-se átrio especial "o pátio dos sacerdotes". Aqui
num adro acessível a todos, chamado "pátio dos estava colocado o matadouro para os animais a
serem sacrificados, bem como o altar dos holo-
pagãos". Era guarnecido, em todo o contorno
interior, de pórticos e de numerosos edifícios
caustos. Umpouco mais a oeste, sempre no
mesmo átrio, porém, sobre uma plataforma ain-
acessórios. Perto de uma das entradas (pro- da mais alta, erigia-se o edifício abrigando" o
vàvelmente a porta oriental) encontrava-se o Santo" e "o Santo dos Santos".
pórtico dito de Salomão, onde conforme algu- É por um pórtico (lado leste) que os sacer-
mas tradições, tinham-se incrustrado restos de dotes entravam no local Santo" para oferecer
os sacrifícios quotidianos (não sangrentos) (cf
uma porta do primeiro templo (Jo 10.23; At
Lc 1.8-10). Achava-se aí a mesa para os pães
3.11; 5.12). A oeste encontrava-se a sala de
da proposição (lado norte), o altar para o in-
reuniões do sinédrio. Era nesse átrio exterior censo (no centro), bem como o candelabro de
que os vendedores de reses e cambistas dedica- 7 ramos, que ficava, sem dúvida, aceso durante
vam-se a seu comércio (Mc 11 . 15-17 par). Adós o dia, em vista da ausência de janelas. O Santo
estava separado do Santo dos Santos (êste
ter atravessado êsse pátio exterior encontrava-
mais a oeste) por um véu. A Epístola aos He-
se uma outra barreira, que os pagãos não tinham
breus reconhece dois véus; o primeiro
(9.3)
direito de franquear. Uma inscrição, encontra- seria então o véu separando o "Santo" do ex-
da, proibia-os expressamente sob pena de morte. terior, conforme o texto de Josefo (Guerra dos

Mesmo os soldados romanos respeitavam esta judeus 5:5.4-5). O véu que se rasgou no mo-
mento da morte de Jesus, segundo Mc 15.38
proibição, que quase custou a vida ao apóstolo
par, era possivelmente o véu do "Santo dos
Paulo, acusado de ter introduzido não-circunci- Santos" (cf Hb 6.19). Neste recinto somente
dados no átrio interior (At 21.27s). o sumo sacerdote podia penetrar, e uma vez por
:

TEMPO 321

ano somente. Teoricamente deveria aspergir com TEMPO


sangue a tampa da arca. Porém esta havia desa-
parecido há muito tempo, ao mais tarde na oca- 1 . A
noção bíblica do tempo não atinge em
sião do saque do Templo pelos babilónios (587). nenhuma parte o nível da abstração. Apraz-nos
O "Santo dos Santos" do templo de Herodes fazer do tempo um conceito geral englobando
(e já no de Zorobabel) estava vazio, e o papel tôdas as noções cronológicas existentes. Os au-
do sumo sacerdote consistia unicamente em co- tores bíblicos jamais fazem o mesmo não dando
locar aí sobre uma pedra que se encontrava no tal sentido a qualquer das palavras que em-

meio, o incensório. Quanto às indicações da preguem.


Epístola aos Hebreus sôbre o conteúdo do "San- Platão ensinou-nos a opor o tempo à eterni-
tíssimo", reproduzem algumas especulações rabí- dade. Esta antítese é estranha ao pensamento
nicas sôbre o que ali deveria encontrar-se e bíblico, na medida em que se baseia numa con-
estão desprovidas de valor histórico. cepção filosófica de ambos.

2. Quanto à importância religiosa do templo


A ciência moderna habituou-nos a considerar
o tempo como uma dimensão do universo, uni-
e do culto aos olhos dos judeus, era sempre
forme e mensurável. Na Bíblia, as noções cro-
muito considerável. Porém, na prática, espe-
nológicas possuem ainda uni caráter impreciso
cialmente para os judeus da Diáspora, era a
a hora, o dia, o ano, o século constituem gran-
observação dos mandamentos regendo a vida
dezas muito pouco variáveis. Muito mais do
quotidiana que se tornou o essencial. Ademais,
que um tempo, encontramos tempos mal coor-
a pregação de certos profetas, que tendiam rela-
denados, dificilmente comensuráveis. Cada um
tivar o valor do culto sacrificial, não era es-
dêstes corresponde a uma vida, à qual perma-
quecida, e conhece-se a atitude negativa dos
nece inseparavelmente ligado. Deus, a criação,
Essênios a este respeito. É significativo também
o povo de Israel, o indivíduo, cada um possui
que os evangelistas não assinalem o mínimo in-
seu tempo próprio, que constitui uma das di-
teresse de Jesus pelo culto sacrificial, com ex-
mensões de sua existência.
ceção do rito do cordeiro pascal, que precisa-
mente não tinha nada que ver com o templo.
Apesar disso ele amava o templo somente, se-
;
2. O
tempo de Deus é a eternidade. Esta pa-
lavra não é muito empregada nos escritos bíbli-
gundo suas declarações (Mc 11.17 par), o mes-
cos apenas um pouco mais de vinte vêzes, quase
mo deveria ser um lugar de oração. Porém foi :

mais longe: a —> oração "em espírito e em


verdade" não tinha mais necessidade de templo
sempre em expressões adverbiais como "para a
eternidade", "de eternidade em eternidade", etc.
No único trecho onde a palavra poderia ter um
(Jo 4.21-24) e eis porque anunciou, não como
;
matiz filosófico (Ec 3.11), o contexto demons-
uma catástrofe, mas como um progresso, a pró- tra que o autor considera tôda especulação co-
xima desaparição do templo e sua substituição
mo impossível "Ninguém pode chegar a com-
:

por um edifício espiritual a que, segundo o


preender... a obra que Deus faz."
quarto evangelho (2.19-21), como segundo o
apóstolo Paulo (ICo 12.27 e alhures) é o Outrossim, o N.T. grego não possui termi-
corpo do Cristo ressuscitado. O primeiro teó- nologia para dizer "eternidade" fala somente
;

logo que tirou da pregação profética, bem como de "idades", "séculos". Pelo contrário, o adie-
tivo "eterno", os advérbios e as locuções adver-
da atitude de Jesus, consequências francamente
anti-ritualistas, foi Estêvão (At 7. especialmen- biais significando 'eternamente", são frequente-

te v. 48-50). que opôs ao culto de Arão as de- mente aproximados do nome de Deus. seu reino,
seu trono. etc. (cf p. ex. Dn 6.26; SI 29.10).
clarações de lRs 8.27 (=2Cr 2.6) e de Is
66.1-2. Certamente não foi êle o único a assim Quando traduzem —
um pouco livremente —
"Eterno" o nome sacro de
pensar. Porém há lugar para crer que naquela
época somente os "helenistas". entre os judeus-

pela palavra
"> Deus no hebraico, certas versões do V.T..
cristãos, tomaram esta posição. Visto que so- como por exemplo as francêsas. não são pois
mente sôbre êles desencadeou-se a perseguição infiéis ao pensamento do original.

que matou Estêvão e que baniu Felipe o evan- A eternidade de Deus manifesta-se primeira-
gelista de Jerusalém, enquanto que a maioria da mente no que era e fazia antes: antes do indi-
Igreja cristã de Jerusalém foi poupada, por- víduo (Jr 1.5), antes do povo de Israel, antes
que seus membros continuavam a honrar o de tôda criatura (SI 90.2). É êle também o
templo sob a direção de Tiago, o irmão do que ficará após tôda a existência criada. É êle
Senhor, a quem os próprios judeus chamavam também o que ficará após tôda a existência
de "o Justo". o alfa e o ômega, o comêço e o fim" (Ap 21.6:
Sabe-se, por outro lado, como mais tarde o cf 22.13). Seu tempo transborda, enquadra, en-
apóstolo Paulo e o autor da Epístola aos He- volve todos os outros. Êle é Deus "de eternidade
breus justificaram a abolição do culto judeu a eternidade" (SI 90.2).
pelos cristãos. Porém êste "antes" e "após" constituem ape-
/. HÉRING nas as duas extremidades de uma cadeia. A
;

322 TEMPO

seu tempo próprio entre a —


vida de Deus não cessa naturalmente de ter
"> Criação e o
criação
Mt
(Gn
19,4-8, Hb
ao qual comparar Jo 1.1-2;
1.1,
1.10). Organizado por Deus em
—> Julgamento. Deus é "aquêle que é, que era dias (Gn 1), em estações (Gn 8.22), etc. Diri-
e que vem" (Ap 1.4; 4.8) e seu Filho perma- ge-se para seu fim (Mt 10.22; 24.13; 28.20;
nece "o mesmo ontem, hoje e por tôda a eter- Mc 13.13; ICo 1.8, etc), ao qual os trechos
nidade" (Hb 13.8). Não sofre os golpes do bíblicos dão nomes diversos "fim dos dias"
:

tempo das criaturas; pelo contrário, permanece (Is 2.2; Jr 23.30; Ez 38.16, etc); "naquele
o mestre absoluto do tempo "Diante do Se-
: dia" (cf por ex. Zc 12ss) "um dia do Eterno"
;

nhor, um dia é como mil anos e mil anos são ou "dia do Senhor", estas duas expressões não
como um dia" (2Pe 3.8; cf SI 90.4). se diferenciam senão só no português (cf por
ex. At 2.20; ICo 1.8; 5.5); "derradeiro dia"
3. Em face da eternidade de Deus. os dias do (Jo 6.399 ss; 11.24; 12.48); "dia do julga-
indivíduo somam um tempo bem precário. Nu- mento" (cf por ex. Mt 10.15), etc. (A expres-
merosos são os trechos bíblicos que insistem são de "último julgamento" não se encontra na
sobre seu caráter fugaz, perpètua-
limitado, Bíblia). Êste fim depende somente da vontade
mente frágil. "Nossos anos se dissipam como de Deus. Os homens não podem prevê-lo "Nin-
;

um sòpro. Isso que os incha de orgulho não é guém sabe o dia, nem a hora" (Mt 24.36).
senão dor e tormento tudo isso passa rápido
:
visto que "o dia do Senhor virá como um la-
e nós desaparecemos (SI 90.9-10). "Os dias drão (lTs 5.2). O fim é concebido no N.T.
do homem são como a erva" (SI 103.15: cf como uma catástrofe cósmica, acompanhada
Is 40.6). Acontece que o
—> —>
homem sofre da —> ressurreição dos mortos e seguida de
o castigo de seu pecado, porque suscitou um julgamento geral (Mc 13 par; Ap 6ss).
a ira de Deus (Gn 3.22). Entretanto, Deus não
o puniu como o homem merecia. Deixou-lhe o 6. A idéia de julgamento e da —>recom-
pensa concedida aos justos levanta inevitàvel-
tempo, que o homem organiza conforme lhe
apraz, pondo cada coisa em seu lugar na exis- mente a pergunta; que acontecerá após o últi-
tência humana. "Há sob o céu um momento para mo dia?
cada coisa..." (Ec 3.1-8). Na vida de cada A resposta dos profetas post-exílicos e da
homem fixa Deus horas decisivas quando a tradição judia posterior foi aceita por Jesus e
morte ameaça, e que são a "hora", o "tempo", os primeiros cristãos é o anúncio do reino
:

"o fim" deste indivíduo (Gn 6.11; Ec 7.17; eterno de Deus estabelecido sobre uma terra
Jo 16.21; cf todos os trechos do quarto Evan- nova, o —> reino de Deus, como o chamam
gelho referentes à "hora" de Jesus). nossas versões portuguêsas. No plano temporal,
equivale a dizer que um nôvo tempo será criado
4. Constituirá a História de Israel o povo — por Deus para sua nova criação. É a êste nôvo
escolhido por Deus tendo em mira sua obra tempo que os autores do N.T. chamam de
de redenção — um tempo mais estável que o século Por vir.
..A esta expressão corespondem às de século
do indivíduo? Muito pouco. Certo é que se
conta por "gerações", e não mais por "dias". Presente, êste século, designando a época com-
Além disso, Deus apõe sua marca neles insti- preendida entra a criação e o julgamento.
tuindo os "dias santos" (Ne 8.9),
começando pelo dia do sábado.
festas. —> "Século presente" é, às vêzes, substituído por
"os séculos", especialmente na expressão "o
Porém tempo do povo fica estreitamente
fim dos séculos" (ICo 10.11; Hb 9.26); en-
êste
contra-se uma vez a expressão "os séculos por
limitado, incessantemente em perigo. Houve um
vir", no mesmo sentido que no singular (Ef
"começo" (Is 40.21), o dia em que Deus cha-
2.7). A palavra século é igualmente empregada
mou Israel para fora do Egito. Especialmente,
está constantemente ameaçado por um fim bru-
em diversas expressões semi-adverbiais como
"antes (de todos) os séculos" (ICo 2.7; 2Tm
tal. Ao povo que espera com certeza o dia do
Eterno, os profetas anunciam efetivamente que
1.9; Tt 1.2 —
antes da criação) ou "aos
séculos dos séculos", que tem o sentido de "para
êste dia será aquêle de sua ruina, pois seus pe-
sempre" e que nossas versões frequentemente a
cados suscitaram a ira divina (Amós 5.18-20;
traduziram por "eternamente". A oposição entre
Is 13.6-11; Ez 7.5 ss). Sem dúvida, esta catás-
"século presente" e "século por vir", está bem
trofe não é sempre considerada como definitiva
marcada. O século presente é em efeito o reino
sem dúvida, os profetas
um
póst-exílicos
"dia do Eterno" que marcará o triunfo de
prometem
de —"> Satanás e do pecado, destinado a desa-
parecer "(Rm 12.2; 2Co 4.4; Gl 1.4; 2Tm
Israel (cf por ex. Zc 12-14). Porém estas pa-
4.9). enquanto que o século vindouro é o reino
lavras de esperança ficam permeadas de amea-
de Deus que não terá fim. O adjetivo grego que
ças e referem-se a uma época além do tempo
nossas versões traduzem por "eterno" poderia
da criação.
aliás ser traduzido, sempre que se aplicar aos
5. Êste é — se se deseja — um "o tempo" por dons de Deus, por: "vida (herança, glória, etc)
do século (por vir)".
excelência. Êste tempo possui começo, a
TENTAÇÃO 323

7. O esquema judeu dos dois "séculos" foi ção positiva, favorável e boa. Assim Deus é
aceito, digamos, por Jesus e os primeiros cris- frequentemente cognominado o que prova os
tãos. Porém estes fizeram-no sofrer uma trans- rins e os corações, a fim de fazer jorrar a luz
formação importante. Jesus efetivamente estabe- sóbre os sentimentos secretos do homem (SI
leceu um laço estreito entre sua própria pessoa 7.9). Provar é frequentemente usado paralela-
sua morte e ressurreição ,e a vinda do reino
de Deus (cf por ex. Mc 14.62 par). Sua res-
mente com —>
purificar, a imagem do cadi-
nho no fogo estando mais ou menos desenvol-
surreição, seguida pela dadiva do Espírito Santo vida. Esta imagem esclarece bem o sentido das
aos discípulos, deu a êstes a convicção que o palavras hebraicas e gregas (a palavra grega
reino do Cristo, primeira fase do reino de Deus. para prova significa exatamente a pedra de to-
tinha já começado de maneira oculta, que o que pela qual prova-se uma peça de moeda). É
"século por vir" encontrava-se então misterio- válido dizer que aquele que coloca minério aurí-
samente realizado no meio do "século presente". fero no cadinho sabe que obterá muito resíduo
Assim, em vez de estar nitidamente separados e escória, porém espera adquirir um pouco de
no tempo, os dois "séculos" misturaram-se du- ouro puro: essa é sua exclusiva intenção. (Zc
rante o período que separa a ressurreição do 13.9; Jó 23.10; IPe 1.7; ICo 3.13). É certo
Cristo e sua volta. O "século presente" parece que a prova pode ser rude e penosa (doenças,
continuar, mas para os que sabem ler os "signos guerras, "as provas da vida" como dizemos),
dos tempos" (Mt 16.3), é claro que enviando contudo é sempre boa, favorável e benéfica,
seu Filho e ressuscitando-O, Deus inaugurou pôsto que conduz a uma purificação e à santifi-
o "século por vir". A ressurreição do Cristo cação dos provados. O
sentido positivo dos ter-
marca efetivamente o comêço da ressurreição mos demonstra-se pelo fato de que o adjetivo
geral (ICo 15.20,23). A dádiva do Espírito provado tem o sentido de "à tôda prova", en-
Santo atesta que os "últimos dias" começaram quanto seu antônimo reprovado é uma das pa-
(At 2.16-17). Os cristãos são arrebatados do lavras mais funestas da Escritura. Pode-se rela-
século presente (Gl.l) e provam já as forças cionar prova com correção que indica sempre
do século por vir (Hb 6.5; cf 2Co 1.22; 5.5). uma intenção educadora de melhoria (ICo 11.
Sua vida é pois uma tensão perpétua entre um 32; Ap 3.19; Hb 12.4-11).
presente já revolucionado e um porvir já pre- Diz-se que o homem prova Deus no caso em
sente. É-lhes preciso viver "no século presente" que o povo de Deus, ou o cristão, busca conhe-
sem deixar-se seduzir por êle (Tito 2.12: cf cer a bondade de Deus e receber um sinal de
2Tm 4.10). Resta-lhes —>esperar e aguar- seu favor (Mt 3. 10, 15; SI 95.9; 12.2>.Rm
dar o dia em que o 'século por vir" será esta- Quando a Escritura nos convida a submeter-nos
belecido de maneira visível, no retorno do a provas, não tem outro sentido senão desco-
Cristo (—> Advento).
Assim, a vinda de Jesus Cristo no mundo
brir em nós a imagem de Deus, os méritos, a
comunhão ou a pessoa de Cristo (ICo 11.28;
marcou o fim de um tempo e o comêço de um 2Co 13.5).
O
emprego, pelas nações da Europa, da
outro.
era cristã constitui o reconhecimento

bem — 2. Sedução —
Seduzir. A
sedução é sempre
inconsciente deste estado de coisas. querida e conduzida por um inimigo que deseja
(Cf sóbre os problemas do tempo. O. CULL- o mal. Eva declara ter sido seduzida pela ser-
MANN, Cristo e o Tempo. Neuchâtel e Paris. pente (Gn 3.13; lTm 2.14). A
sedução possui
1947). a intenção de desviar-nos da obediência devida
E. TROCMÊ a Deus (Dt 13.6; Ef 5.6). Pode enganar-se a
si mesmo (Jr 37.9) e deixar-se seduzir por seu
TENTAÇÃO próprio coração, pelo amor ao dinheiro, a cobi-
Esta palavra possui na Bíblia um sentido ça, o orgulho, etc. (Tg 1.26; Mt 13.22; Hb

essencialmente religioso seu significado moral 3.13; ljo 1.8). A


sedução deve ser relacionada

— >— >
;

é secundário, contràriamente ao uso atual. Não com a cobiça, por ocasião do tropeço, com
impomos pois a este termo bíblico nossos con- o escândalo o destino de tódas estas
:

ceitos, porém deixamo-nos instruir pela Es- palavras é a queda e o mal daquele que assim
critura. é visado. O sedutor faz-se anjo de luz (2Co

Tentação, prova e sedução não são sinónimos. 11.14; Mt 24.4,24).


Prova exclusivamente positiva é seguidamente Aexpressão enganar a Deus, seduzí-lo signi-
reunida à purificação sedução exclusivamente
;
fica que o diabo imagina poder enganá-lo e se-
negativa significa arrastamento para a desobe- duzí-lo (Jó 2.3). Portanto, João denomina o
diência. É preciso comprender tais termos para diabo de sedutor (Ap 12.9; 20.10).
perceber o que é a tentação na Bíblia. Como explicar que o próprio Deus seduza os
homens? (2Sm 24.1; Jr 4.10; 20.7; Ez 14.9).
1. Prova
guém ou alguma
— Provar. Aquele que prova al-
sempre com inten-
A correção do cronista (lCr 21.1) prova que
coisa, fá-lo tal idéia chocou-o. Entretanto Jeremias acusa
324 TENTAÇÃO

Deus de enganado (comparar 1.8; 15.18


tê-lo (1.17-18). Esta garantia dá alegria e força
e 20.7) palavras que recordam a dor de
; tais para resistir ao diabo (4.7).
Jó (Jr 20.14-18 e Jó 3) jorraram da batalha da A tentação de Jesus. Por intermédio dela,
fé, sem pretenção doutrinal. Porém, um trecho
nossas tentações elucidam-se. Jesus foi tentado
como Jr 4.10 ensina que nada escapa à onipo-
em tudo como nós, salvo o pecado tal é o tes-
tência divina (cf 9.17; 8.38). Rm :

temunho apostólico explícito dos Sinóticos (Mt


3. Tentação —tentação na Bí-
Tentar. A 4.1-11; Lc 22.28; Mc 8.27-33; Mt 22.18; 27.
46) e da carta aos Hebreus (2.18; 4.14ss),
blia expressa a tensão espiritual na qual todo
implícito de João (12.20-32), de Paulo (Fp
homem está destinado a viver e a morrer. Dois
2.5-11; Gl 4.14; 2Co 5.21) e de Pedro (IPe
chamados contrários ressoam simultâneamente
4.1ss, 12s). Jesus foi tentado como homem,
na alma do tentado, compelem-no a uma decisão
num sentido ou no outro. Por ex., Eva entre a chamado por Deus a ser o Messias sofredor
anunciado desde seu batismo pela voz celeste
promessa de Deus (Gn 2.16s) e a sedução da
serpente (3.5) Abraão entre a aliança (Gn
(Mt 3.17) Jesus é o Filho real (SI 2), po-
:

rém deverá assumir o cargo tornando-se o


21.12; Hb 11.18) e o sacrifício ordenado (Gn
22,ls); Jó entre seu Deus (2.10; 27.11) e
—> Servidor do Eterno (conforme o 2.°
Satanás dissimulado em sua mulher (2.5,9) ;
Isaías). Em todo o curso de seu ministério, o
Cordeiro de Deus foi obediente à sua vocação,
Davi entra a pureza de coração (SI 51.12) e
portanto vencedor na tentação; renunciando ao
sua fraqueza (2Sm 11.27) Israel entre a pro- ;

va da fé (SI 81.8) e as murmurações da incre- caminho fácil de um Messias carnal e glorioso,


dulidade (Ex 17.1ss) o cristão entre o Pai e
;
Jesus vai de despojo em despojo até a humi-
o Maligno (Mt 6.13). lhação extrema da morte e do abandono da
cruz. O grito de Gólgota "Deus meu, Deus meu,
A
tentação é pois ao mesmo tempo boa e má.
por que me abandonaste?" expressa o ponto
posto que nela ecoam o chamamento à fé e o
mais crítico da vida tentada de Nosso Senhor:
contra-chamamento ao pecado. Poderia definir-
nesse momento, Deus e Satanás, com o mais
se a tentação como uma prova sedutora e uma
enérgico poder, chamaram a Jesus. Satanás ja-
sedução purificadora, se o uso permitisse tal
mais foi tão forte (porque Jesus lhe é abandona-
justaposição de palavras.
do). Porém, ao mesmo tempo, Deus nunca esteve
Deus deseja nossa tentação porque quer ver- tão perto de seu Filho, pois, se Jesus orou, isto
nos livres. "Coloquei diante de ti a morte e a ->ignifica que Deus estava oculto no próprio
vida; escolhe a vida!" (Dt 30.15-20): estas coração de Jesus abandonado. Através da ten-
palavras dizem exatamente que Deus pede de tação, Jesus manifestou-se nosso Cristo, Salva-
nós uma adoração livre essa é a ordem da ;
dor e Senhor. Pela tentação vitoriosamente atra-
criação que durará, do começo ao fim, na ten- vessada, a redenção completa a criação. Eis a
tação. importância da tentação na vida de Jesus.
Quem tenta? Deus ou Satanás? É preciso A vitória de Jesus ilumina toda a vida hu-
responder sem temor Deus e Satanás. Satanás
:
mana. É a obra do Espírito Santo em nós que
é denominado não somente sedutor mais ainda nos permite exclamar "Abba, Pai, não nos
tentador (Mt 4.1,3; 1 Co 7.5; 1TsJ.5). Sata-
induzas em tentação, mas livra-nos do Maligno!"
nás apenas tenta para seduzir. Deus não so-
Efetivamente, ao mando da criação caracteri-
mente prova (isso jamais se disse de Satanás),
zada pela tentação, garantia de nossa livre ado-
mas tenta (Gn 22.1; Dt 8.2,16; 13.3; Jz 2.
ração e de nosso culto responsável, e ao mando
22: Ex 15.25-26; 16.4; 20.20; SI 26.2; Mt
de nossa redenção, certeza do amor do Pai, deve
4.1; 6.13: ICo 10.13). Portanto, o diabo tenta
responder a obra de nossa santificação, a vida
e seduz não prova está submisso à permissão
: ;

divina (Jó; ICo 10.13; Mt 4.1); Deus seduz,


dos filhos de Deus sob o signo da obediência
vitoriosa de Jesus Cristo.
Deus tenta, Deus prova. Tg 1.12-16 não o con-
tradiz. É evidente, no pensar de Tiago, que Deus Esta vida cristã, é a— ;> fé. Tal foi a vida
de todos os crentes de todos os tempos (Hb
opera na tentação, posto que nela há uma prova
da fé que obtém a coroa da vida eis o que deve :
11; Jo 8.56ss; Mt 13.17; Fp 2.8-11). Todo
saber e confessar o crente (1,2, 12). Quanto ao crente deve, como o Cristo, conhecer a tentação,
incrédulo, que não tome pretexto disso para mas com a certeza vinda da vitpria e do so-
desculpar seu pecado Deve saber apenas uma
!
corro do Cristo. Sob formas muito variadas —
pessoais, comunitárias, políticas, morais, reli-
coisa na tentação, somente sua própria cobiça
:

o atrai e engoda, a qual, pelo pecado concebido giosas — a tentação é o clima em que a fé
e consumado, produz a morte (1.13-16). Na deve desabrochar-se (ICo 10.13).
incredulidade, é aberrante invocar a desculpa O N.T. dirige nitidamente nossos pensamen-
de uma intenção malévola de Deus o mal está ; tos para o fim da tentação e a vinda gloriosa do
no coração do incrédulo, e em nenhuma outra reino de Deus. O espírito das bem-aventuranças
parte! Em Deus, existe apenas o bem perfeito deve presidir nas tentações que assaltam o cris-

TESTEMUNHA 325

tão: bem-aventurado é aquele, que por sua fide- TESTEMUNHA


lidade, receberá a coroa da vida (Tg 1.2s, 12ss;
5.11; IPe 1.6; 4.12ss; At 14.22; Hb 10.34).
Os têrmos "testemunha, testemunhar, teste-
A tentação não é um jôgo, mas uma luta contra
munho" possuem em primeiro lugar um sentido
as potências diabólicas (Ef 6.12). Estamos sub-
estritamente jurídico. A
testemunha é a que
tem conhecimento direto de certosfatos, e que
missos à palavra que Deus pronunciou à ser-
declara diante de uma corte de justiça o que
pente antiga (Gn 3.15), com os riscos, perigos
viu e ouviu. "Testemunha" aquilo que sabe.
e feridas (Gn 32.25,31; 2Co 12.7). Porém a
esperança invencível que faz nascer em nós a O sentido dêstes têrmos estendeu-se na lín-
vitória de Jesus deve encher-nos de alegria to- gua corrente. O testemunho não se estende sò-
tal (Tg 1.2). ment sobre fatos concretos mas sóbre perspec-
tivas,convicções impostas como verdadeiras ao
Resta explicar a sexta petição da oração do- que as proclama. Entra em tal testemunho um
minical. É mister primeiramente traduzi-la cor- elemento de fé que escapa a todo controle pura-
retamente. A tradução mais literal é a mais mente empírico.
clara, e pergunta-se porque tentou- se .tantas pa-
ráfrases que não representam senão uma parte
A Bíblia êstes têrmos em seu sentido
emprega
do sentido original "e não nos induzas a ten-
:
literal e em
seu sentido extensivo. Notemos, à
propósito, que a Bíblia faz um grande emprêgo
tação, mas livra-nos do Maligno." Induzir tra-
da linguagem jurídica. Sua revelação, essen-
duz bem o fato de que Deus, em sua providência,
cialmente, diz respeito a relações relação de
conduz-nos para o reino. O sentido locativo de :

tentação (conforme se diria, de ir a Massa — Deus com o homem e do homem com o >pró-
cf Ex 17.7 —
como se diz de ir a Canossa), o ximo. A linguagem jurídica expressa quão sérias
que daria êste sentido "não nos conduzas até são essas relações.
o ponto de murmurar contra ti, e duvidar de
1 . testemunho tomado em seu
Testemunha,
tua graça", é sem dúvida muito restritivo. Esta
sentido jurídico Atestar na justiça é
literal.
petição deve antes ser posta em contato com as
idéias apocalípticas contemporâneas de Jesus
uma coisa grave. A lei mosaica exige em caso
de acusação podendo trazer a pena de morte o
(Mt 24 par; Ap 3.10). Da mesma forma que depoimento de muitas testemunhas. Têm sanções
a vida de Jesus desenrolou-se numa tensão cres-
cente até sua morte na cruz, —
assim o mundo
terríveis em caso de falso testemunho (Dt 17.
2-13; 19.15-19; 35.30).Nm sinédrio, con- O
irá de sobressalto em sobressalto numa tensão
serva uma aparência de legalidade suscitando
cada vez mais insustentável para culminar na
diversas falsas testemunhas contra Jesus (Mt
grande tentação do final e no último julgamento
— é relevar aqui que tentação e
preciso
26.60; cf At 6.13; 7.58).
A
—> julgamento são os dois têrmos bíblicos Igreja apostólica insiste também na plura-
expressando nêles mesmos o caráter paradoxal lidade das testemunhas como garantia neces-
e pasageiro dessa divina. Segundo a
emanação sária em todo julgamento pronunciado pela au-
definição palavra tentação, como pedir
mesma da toridade eclesiástica (lTm 5.19; 2Co 13.1;
a Deus para não nos induzir à tentação posto cf Mt 18.16).

que estamos mergulhados nela? Efetivamente.


somos prisioneiros do diabo e invocamos a 2. Testemunha, testemunho na linguagem da
Deus. nosso Pai, para nos livrar eis precisa- :
revelação, a) O testemunho no sentido p; ò-
mente a tentação, ter Deus como pai e Satanás priamente bíblico faz-se sentir nos fatos po- :

como padrasto e príncipe (Rm 8.20s; Jo 8.44; rém tais fatos são atos, palavras de Deus;
14.30). possuem um sentido profundo que somente a
fé discerne. Aqui o fato e sua interpretação
Jesus recomendou pois que orássemos olhan-
estão indissoluvelmente ligados. A "nuvem de
do para diante com espçrança e fé para que a testemunhas" que evocam os cap. 11 e 12 da
grande tentação do fim não marque nosso fim Epístola aos Hebreus está composta de homens
derradeiro, o que será a sorte do diabo e de que acreditaram nas promessas de Deus, que
seus aliados, mas nossa libertação definitiva reconheceram a mão dêle nas libertações ou
em vista (ICo 15.28).
da plenitude do reino julgamentos dos quais foram objeto, que espe-
Então, o mundo será passado, o diabo e_a morte raram a libertação vindoura, sendo êstes pri-
aniquilados. A antiga criação terá desaparecido meiros eventos o sinal precursor dela. O povo
com a tentação. Na nova criação, a fé será mu- de Deus é sua testemunha entre as nações êle ;

dada em visão. Esperando, não há descanso da anuncia, confessa o Deus vivo (Is 43.10-12).
fé. mas em Jesus Cristo e na tentação, um des- As testemunhas, no NT, são primeiramente
canso na fé e o aguardo da manifestação de os que conheceram Jesus, que se associaram a
nosso Senhor Jesus Cristo (ICo 1.7). seu ministério, que foram testemunhas oculares
de sua paixão e de sua ressurreição. Seu tes-
P. VALLOTTON temunho diz respeito a fatos. Porém seu de-
;

326 TRABALHO

poimento não termina aqui quem é Jesus ? ressurreição, a testemunha por excelência será
:

Únicamente pode ser sua testemunha quem re-


conhece nêle o Enviado de Deus anunciado nas
o —> Espírito Santo. Sela êle a palavra de
Deus no coração dos fiéis. Êle não fala de si
Escrituras, confessando-o como Senhor e Sal- mesmo", mas daquilo que ouviu (Jo 16.7-15).
vador. Trata-se, portanto, de uma verdade re- A primeira Epístola de João menciona três
velada e proclamada, e esta revelação é a obra testemunhos: o Espírito, a água do batismo,
do Espírito Santo (Lc 24.48; At 1.8, 21-22; o sangue do Crucificado (ljo 5.6-9), três tes-
2.32; 5.32; 10.37-43; 13.30-31; 26.16). Mais temunhos que constituem um só.
tarde o têrmo testemunha estendeu-se àqueles O Apocalipse emprega frequentemente o
que, sem ter conhecido Jesus segundo a carne, têrmo "testemunho de Jesus" para designar a
conheceram-no e confessaram-no como o Vi- proclamação do evangelho (Ap 1.2; 12.17;
vente, o Senhor; é o caso de São Paulo (At 20.4). Finalmente ela menciona o testemunho
22.15; 26.16; cf ICo 15.1-11), e de todos os dos anjos (22. 16) .

que a exemplo dos apóstolos confessam publi-


camente o Cristo crucificado e ressurreto.
3) Em
caso de contrato, objetos podem ser-
vir de "testemunhas" ou documentos de con-
O testemunho é confissão da bôca, proclama- vicção desta maneira a pedra, o "monumento"
;

ção do evangelho. Mas, para ser autêntico, erigido por Jacó e Labão (Gn 31.45-48; Galed
exige o compromisso da pessoa em sua tota- significa testemunho) Também Josué erige
.

lidade, a vida inteira da testemunha. Já no uma pedra-testemunha em Siquém "Eis que :

judaísmo tardio muitos crentes tinham selado esta pedra servirá de testemunha contra nós;
com seu sangue a confissão de sua fé e a pa- pois ela ouviu tôdas as palavras que o Eterno
lavra testemunha tornou-se sinónimo de mártir. nos tem dito" (Js 24.27) .

A Igreja apostólica reconhece êste caráter ine- As


tábuas da Lei contida na arca são chama-
lutável dos sofrimentos e das provações que das "tábuas do testemunho" visto que ali se
acompanham a confissão de fé. É significativo encontram inscritos os mandamentos de Deus
que a palavra grega "testemunha" tenha passa-
do na língua portuguêsa pela palavra "mártir"
por extensão a —
;> arca chama-se, às vêzes,
"O testemunho" (Ex 25.16,21,22; 26.34; 31.18;
(cf Ap 6.9; 17.6). 32.15; Nm
17.4). O cântico de Moisés, o
b) O testemunho de Deus Pai, Filho e Es- livro da Lei "testemunham" contra o povo que
pírito Santo. lhe desobedece. A Escritura tôda testemunha
a obra de Deus.
1) Frequentemente Deus é invocado como
testemunha, pelo contra seus adversá-
crente,
5. DIÉTRICHDE
rios. Assim Samuel invoca Deus e seu ungido
como testemunhas de sua conduta (ISm 12.5). TRABALHO
São Paulo toma Deus como testemunha de sua 1. O
trabalho de Deus. É a própria ação de
conduta, de seus sentimentos, dos motivos que
Deus que constitui o protótipo do trabalho.
o inspiram (2Co 1.23; Rm
1.9; Fp 1.8; lTs Efetivamente os textos bíblicos afirmam com
2.5,10). Inversamente, Deus, convocando seu
vigor que Deus trabalha. Êle trabalha desde o
povo para as magnas sessões do julgamento,
princípio é o criador, o conservador, o sal-
:

invoca como testemunha os céus e a terra


vador do mundo (Gn 1.31; 2.3; SI 19.2; 65;
(Is 1.2).
Pv 8.22-31; Is 40.21-31; 45.9-13; 64.8; ljo
2) Jesus Cristo é considerado a Testemunha 1.1-3,10; 5.17; Ap 15.2-3).
fiel (Ap 1.5; 3.14). Os termos
e verdadeira Da mesma forma Jesus Cristo, o Filho, tra-
"testemunhar" e "testemunho" ocupam um lugar balha como seu Pai e com êle (Jo 5.17; 4.34;
excepcional no Evangelho segundo São João. 14.10; 17.4).
Jesus é a testemunha vinda do céu a quem
Deus mesmo, suas obras, as Escrituras, João 2. O trabalho, condição normal do homem.
Batista, rendem testemunho. Atesta o que viu Depreende-se dos textos bíblicos que o trabalho
e ouviu (Jo 3.11-13; 3.31-33; 5.31-47; corresponde à ordem divina das coisas. Às
8.13-18). Notemos aqui como o Evangelho de obras de Deus correspondem as obras dos ho-
João insiste no princípio jurídico da plurali- mens (a palavra é a mesma em tôda parte) .

dade de testemunhos, testemunho de João Ba- O primeiro homem foi colocado no jardim do
tista (cf Jo 1.7-8,31), de Moisés, de Deus, Éden para cultivá-lo e guardá-lo (Gn 2.15).
das obras. Nos processos da humanidade, o O trabalho é o destino normal prescrito para
Filho do Homem é a Testemunha, que única- o homem pelo Criador. É por meio do trabalho
mente com sua presença provoca a separação da que Deus associa o homem à sua obra criadora
luz e das trevas, de tal forma que os homens (cf ICo 3.9). É o sinal pelo qual Deus atesta
julgam-se a si mesmos pela posição que tomam que o homem é seu colaborador.
a seu respeito. Veio ao mundo "a fim de dar O trabalho faz, pois, parte das disposições
testemunho da verdade" (Jo 18.37). Após a da sabedoria divina (SI 104.19-24; Is 28.23-29).
; . .

TRADIÇÃO 327

Toda a criação trabalha (Pv 6.6-11). A ocio- o trabalho manual. Além


disso a mesma não
sidade condenada.
é O trabalho a ordem
é faz distinção entre asformas de trabalho. O
expressa de Deus ao homem (Êx 20.9; lTs que importa, é o espírito em que se efetua o
4.11; 2Ts 3.10). trabalho.
Desta forma, pois, o trabalho do homem é Desta forma o trabalho de Cristo apresenta-se
bom, enquanto fôr a resposta a esta ordem e sob dois aspectos. Êle o considerava como uma
que se insira na obra de Deus. carga que lhe fôra confiada por seu Pai por ;

outro lado (Jo 9.4), como um serviço junto


3. Decadência do trabalho pela queda. Porém, aos homens (Mt 20.28)
a ordem desejada por Deus foi transtornada Neste aspecto, o trabalho do homem pode ser
pela queda. O trabalho do homem que de- novamente qualificado. Sem dúvida não cessa
veria ser graça e alegria terá que entender-se completamente de ser penoso. No NT, só uma
com as consequências do pecado—>
Gn 3.16-19, vemos que o trabalho cumprido
Em .
das expressões gregas, definindo o trabalho,
encerra ainda a idéia de sofrimento e de fa-
pelo homem pecador torna-se penoso, um ver-
diga. Existe sempre uma acepção pejorativa
dadeiro sofrimento. O pecado do homem torna
do trabalho. É certo também que mesmo para
o trabalho árduo; u'a maldição pesará sobre os crentes, existe o perigo de cumprir obras
o trabalho do homem e da mulher. Isto não vãs (cf Jo 6.27; ICo 15.58). Entrementes,
quer dizer que, após a queda, o trabalho seja em Jesus Cristo, cada homem é chamado a
mau em si porém, o homem pecador desqua-
;
dar a seu trabalho uma qualidade nova, a saber,
lifica o trabalho. Em lugar de servir para o andamento e a dignidade de um labor vivido
louvar a Deus, o trabalho serve para glori- por sua graça e por sua glória. Será um tra-
ficar e exaltar a criatura. Torna-se uma fina- balho feito "no" e "para o Senhor". (Rm
lidade em si, uma idolatria (cf Ec 2.4-11, 20-23;
14.7-8; Ef 6.5-9; Cl 3.23-24).
Lc 12.16-22). Torna-se meio de exploração
Nesta perspectiva o homem que trabalha
e de opressão do próximo (cf Êx 1.11-14;
2.23; Tg 5.4).
apresenta-secomo um administrador dos bens
de Deus (ICo 4.1-2; cf Mt 25.14-30), como
Entretanto, e apesar de tudo, a graça divina
continua a agir nesta condição infeliz do ho-
um servidor do próximo (Mt 25.40; Gl 5.13;
IPe 4.10). Êste trabalho não será vão.
mem, o trabalho pode ainda assim, em certos
Possui certamente um valor, mesmo se êste é
casos, ser uma fonte de bênção (ex. o tra-
diferente do que parece aos olhos dos homens.
balho de Noé) Ademais a pedagogia divina
Eis por que receberá sua recompensa. É pre-
.

não cessa, nesta ordem perturbada da queda»


ciso notar, efetivamente, que a Bíblia não ignora
de recordar ao homem a significação verdadeira
a noção do justo salário (cf Lv 19.13; 2Cr
do trabalho. Êste papel é representado, espe-
cialmente, pela instituição do
sábado, efetivamente, prefigura o
—>
sábado. O
grande
15.7; Jr 22.13; Lc 19.11-27; ICo 9.7-10).
Entretanto, ela estende essa noção além dos

—> descanso reservado ao povo de Deus. Por


isto mesmo, no que se refere ao limite colocado
limites da equidade humana e do mérito hu-
mano (cf Mt 20.1-6)
no trabalho, recorda ao homem que o verda- No dia do julgamento o valor da obra de
deiro fim de sua vida não é o trabalho em si, cada um será revelado. Mas a sanção final
mas a glória e o serviço de Deus (Êx 20.8-11 para o trabalhador será um ato da graça di-
31.12-17; Is 58.13-14). vina, bem como da justiça divina (cf ICo

Quando, por outro lado, é prescrito aos


3.8-15) O que importa antes de tudo, na visão
.

nova das coisas, dada em Jesus Cristo, é que o


israelitas que sacrifiquem ao Eterno as primícias
trabalho humano seja participação no trabalho
do rebanho e das colheitas, o trabalho dos ho-
criador e recriador de Deus. Nesta medida,
mens é substituído em sua verdadeira pers-
as obras dos crentes terão valor para a eterni-
pectiva: a terra é de Deus e o homem que faz
dade, visto que estão integradas na grande obra
frutificar a terra por seu trabalho é apenas o
de Deus (cf Ap 14.13).
administrador dos bens de Deus Assim a !

graça de Deus, no decorrer dos séculos, indica H MEHL-KOEHNLEIN


.

o caminho de uma santificação do trabalho.

4. O ordem da redenção. Entre-


trabalho na TRADIÇÃO
tanto, é na nova ordem, inaugurada por Jesus A palavra e a idéia de tradição são desco-
Cristo que o trabalho do homem encontra seu nhecidos no VT. No NT, o têrmo aplica-se
verdadeiro sentido e seu real lugar. ou à tradição judaica ou à tradição cristã.
O Cristo mesmo, assim como os apóstolos, A tradição é o que é transmitido. No judaís-
deu o exemplo do trabalho. Jesus trabalhou mo, o que é transmitido, são as explicações dos
com suas mãos: foi carpinteiro (Mc 6.3). São mestres relativas à interpretação e à aplicação
Paulo tecia tendas (At 18.3). A Bíblia honra da Lei. No cristianismo, é o fato da vida, da
.

328 TRADIÇÃO

morte e da ressurreição de Jesus, e o signi- homem não separe o casal que êle uniu.
ficado teológico dêste fato, no qual se baseia Quando Jesus ultrapassa a Lei, é para res-
a nova fé. Isto é, a tradição está em relação taurar em sua plenitude a vontade de Deus.

—> —>
íntima com a rroclação que transmite e No mesmo propósito desenvolve as antíteses
com a Escritura que a expressa. de Mt 5 "Ouvistes o que foi dito por Moisés
:

e os anciões... eu, porém, vos digo..." (Mt


1. A tradição judaica é mencionada duas 5.21, etc). Em
suma, Jesus não se limita a
vêzes no NT. Em Gl 1.14, São Paulo relem- rejeitar a tradição farisaica. Substitui esta tra-
bra que antes de sua conversão era muito zeloso dição humana pela tradição divina, isto é. sua
das tradições de seus pais. É evidente que pessoa e sua mensagem vindas para cumprir
Paulo, feito apóstolo, não reconhece mais qual- a Lei.
quer valor teológico nessas tradições posto que
ao "zêlo" que o devorava então, lhe dá a classi- 2. A
tradição cristã. Segundo o NT
o teste-
ficação de "zêlo sem discernimento" (Rm 10.2). munho apostólico de Jesus e do ensino cristão
dêle decorrente, são o objeto de uma tradição
Osegundo trecho é a controvérsia de Jesus
com os fariseus sobre a Lei e a tradição, pro-
(Lc 1.2; 2Pe 2.21; Jd 3). São Paulo é quem
veniente da recriminação feita a Jesus de to- dá maior lugar à idéia de tradição. Segundo
lerar que seus discípulos se assentassem à mesa
o apóstolo, a fé dos fiéis e seu tipo de vida
sem se lavarem as mãos "segundo a tradição são determinados pela tradição (Rm 6.17; ICo
dos antigos" (Mc 7.1-13; Mt 15.1-9). A 11.2; Cl 2.6s; 2Ts 2.15; 3.6); noutras pala-
tradição é neste sentido o conjunto das expli- vras, e pela vida das testemunhas do
pela fé
cações da Lei e das prescrições relativas aos Cristo, em
cujo número figura o próprio Paulo
casos não previstos pela Lei, transmitidas de (ICo 15.8; Fp 4.9). Os elementos centrais
mestre a mestre, às quais os fariseus reconhe- da tradição são os testemunhos sobre os atos
ciam o mesmo valor coercitivo que à própria decisivos da redenção em Cristo: a instituição
Lei. Outros judeus, notadamente os saduceus, da ceia (ICo 11.23) e as aparições aos dis-
não se sentiam ligados a tal ponto pela tradição. cípulos (ICo 15. 3s).
Jesus opõe-se em princípio à atitude dos fari- A
existência da tradição cristã e sua impor-
seus. Reconhece somente como válida a Lei tância teológica não possuem nada de artificial.
de Deus e não dá nenhum valor à tradição, Eis a consequência da maneira com que Deus
que não provém de Deus, mas "dos homens". interveio para a salvação. O evangelho é um
Isto é, aos olhos de Jesus, os homens não são
ato de Deus cumprido em Jesus Cristo num
capazes de completar a Lei divina. Quando,
dado momento da História e num lugar defi-
pois intentam fazê-lo, apenas conseguem inva-
nido do mundo. Jesus viveu na Palestina no
lidar a Lei, como prova o exemplo do corban. tempo do imperador Tibério, foi crucificado
Esta palavra hebraica significa "oferta", como sob o poder de Pôncio Pilatos; as testemunhas
o diz São Marcos, e especialmente oferta feita
de sua ressurreição viveram no império romano
a Deus. Pretestando o corban, certos homens re-
em meados do primeiro século de nossa era.
servavam-se determinados bens, recusando gas-
Êste ato, ou mais precisamente, esta série de
tá-los para suprir às necessidades de seus velhos
atos de revelação e de redenção foram feitos
progenitores astutamente devotavam a Deus o
:
uma vez por tôdas não se devem renovar
;

dinheiro que devia ser dedicado à assistência


Como se situam no passado, não podem ser
de seus pais necessitados, furtando-se assim a
conhecidos senão pela atestação dos que foram
um dever elementar de piedade filial. Os fa- testemunhas, atestação que foi ela mesma trans-
riseus regulamentavam a observação minucio-
mitida após as primeiras testemunhas desapa-
sa de votos semelhantes que, na realidade, como
recerem, a fim de que a salvação operada por
frisa Jesus, anulavam um dos dez mandamen-
Deus continue sendo anunciada no mundo para
tos. A
tradição farisaica é também uma tra-
que êle creia e seja salvo. A redenção feita
dição humana, que sob o pretexto de comple-
por Deus em Cristo e a tradição apostólica
tar a Lei de Moisés, invalida-a.
que a transmite a tôdas as gerações humanas
Jesus, ao contrário, reconhece nesta matéria têm assim o mesmo valor. Sem a tradição
apenas a autoridade de Moisés, e, pela ma- que a proclama até o fim do mundo, a obra
neira soberana com que afasta a interpretação redentora ficaria sem demora desconhecida* e
farisaica, substitui a tradição por seu julga- portanto, sem efeito; não teria êste valor uni-
mento de único intérprete autorizado de Moisés. versal, no tempo e no espaço, que torna su-
Jesus é o único que pode modificar a Lei, como pérflua tôda encarnação nova. Eis a razão
dá a entender em outras ocasiões. No debate que autoriza os escritores do NT
a declarar
sobre o divórcio (Mc 10.1-12; Mt 19.1-12), o fundamento da Igreja, sem contradizer-se de
declara que a permissão concedida por Moisés forma alguma, ou Jesus Cristo ICo 3.10-11),
ao marido de repudiar sua mulher, não expressa ou os apóstolos (Mt 16.18; Ef 2.20) A fé dos
.

a vontade original de Deus, a qual é que o fiéis de todos os tempos descansa ora sobre a
TRANSFIGURAÇÃO 329

obra de Cristo, ora sobre o testemunho apostó- Deus, na tradição onde o Senhor é o próprio
lico que a anuncia a êles. autor e a fonte. Paulo que, entre todos os
Ademais o Cristo celestial, na comunhão do apóstolos, recorre mais frequentemente às re-
<jual vivem os apóstolos, garante pelo
pírito a autenticidade da tradição.
Es-
O
—> Espírito
velações que lhe são concedidas, é também o
que se apoia mais fortemente na autoridade da
que o Filho envia do Pai aos seus, dá teste- tradição em suas epístolas é ela mais segui-
;

munho a respeito de Jesus (Jo 15.26), ensi- damente citada e invocada, como acabamos de
nando tódas as coisas aos apóstolos e trazendo ver. Visto que ninguém melhor do que São
à sua memória tudo que Jesus lhes ensinou du- Paulo compreendeu e disse que o evangelho é
rante a encarnação (Jo 14.26). Relembrando todo o conjunto e, por definição, revelação e
assim o ensino de Jesus e revelando aos após- tradição. Aliás, João viu isto tão claramente
tolos as profundezas que lhes haviam escapado
como Paulo. Quando acautela seus leitores
no tempo de seu ministério terrestre (Jo 2.22), contra os falsos profetas, dá o critério que
o Espírito conduz os apóstolos em tôda a ver- possibilita distinguir os verdadeiros inspirados

dade (Jo 16.13). Pelo Espírito, Cristo per- dos que não o são e que a Igreja não deve con-
manece o autor e a garantia da tradição rela- firmar; os verdadeiramente inspirados "confes-
tiva à redenção operada na História e de uma sam Jesus como vindo em carne", isto é, pre-
vez por tódas. Eis o último sentido da afir- gam de acordo com a revelação transmitida
mação de Paulo que a tradição vem "do pelo testemunho apostólico (ljo 4.1-3).
Senhor" (lCo 11.23).
4. Tradição c — "> Escritura. A obra de
3. Tradição e revelação. O VT ignora a Deus em Cristo dá nascimento a uma tradição
apostólica que participa do caráter divino da
ideia de tradição. Dissemos no começo do ar-
revelação e que é, consequentemente, uma tra-
tigo. Efetivamente, a antiga aliança é uma
dição válida e não uma tradição humana. De-
sequência de atos de Deus ordenados de ante-
saparecendo os apóstolos, a tradição está fixada
mão para o ato central que Deus deve cum- por escrito. Já está, por fragmentos, nas Epís-
prir em Cristo no tempo devido. Instituir uma
tolas de Paulo. É na Escritura que encon-
tradição na alçada da aliança da promessa, é
tramos agora a tradição. Assim como unica-
introduzir pontos de vista humanos na His-
mente a tradição apostólica é válida, porque
tória da salvação, da qual Deus fixou o plano
somente ela se refere à obra de Deus em Cristo
e previu o desenvolvimento é acrescentar ar-
;
do qual é o comentário autorizado, a Escritura,
bitrariamente um elemento cujo único comple-
que contém o depósito apostólico é na Igreja
mento legítimo é Jesus Cristo. Eis porque a única expressão autorizada da tradição.
Jesus rejeita a tradição dos fariseus como
"tradição dos homens". A
partir de Jesus PU. H. MENOUD
Cristo, pelo contrário, a tradição que se refere
a êle é a expressão mesma da revelação divina,
como acabamos de ver. Eis a razão pela qual
TRANSFIGURAÇÃO
a tradição apostólica é a única válida, não Os três evangelhos sinóticos (Mt 17.1-8; Mc
somente em oposição à tradição dos fariseus, 9.2-8; Lc 9.28-36) preservaram-nos um relato
mas também em oposição a tôda adição que os da "transfiguração" de Jesus. Êste têrmo neo-
homens pretendem trazer a ela (Cl 2.8). latino dá imperfeitamente o sentido da palavra
As idéias de —> revelação e tradição são
orgânicamente ligadas uma a outra. Não existe
grega que figura em Mt e Mc (pois, Lucas,
versículo 29, registra simplesmente que "o as-
qualquer contradição entre elas. Isto decorre pecto de seu rosto alterou-se"). Esta palavra
do que afirmamos acima. A êste respeito ne- (cf ainda Rm
12.2 e 2Co 3.18) relaciona o fato
nhum exemplo histórico é mais significativo ao tema apocalíptico judeu da glória do Mes-
do que do apóstolo —>
Paulo. Ninguém
mais do que Paulo faz alusão às revelações
sias e dos fiéis nos últimos dias, glória repre-
sentada pela cór branca resplandecente (Ap
diretas que lhe são concedidas. É Deus que o 1.14; 2.17; 3.4-5; 4.4; 6.11 ctc. e já Zc 1.8;
detém na estrada de Damasco a fim de reve- 6.3,6; Dn 7.9).
lar-lhe seu Filho (Gl 1.15s). O apóstolo vive Aperícope não descreve, portanto, a meta-
desde então com o Filho de Deus numa comu- morfose de um homem em uma divindade, nem
nhão marcada pelas "visões e revelações" a divinização de um iniciado no sentido helenís-
excepcionais (2Co 12. Is). Ao mesmo tempo tico, nem mesmo uma espiritualização progres-
ninguém sabe melhor do que Paulo que o Se- siva, como se Jesus estivesse "maduro para a
nhor que lhe foi revelado é Jesus Cristo, já entrada imediata na existência eterna" (Godet),
crido e pregado por "aqueles que foram após- porém, como o declara a voz de Mc 9.7, que
tolos antes dele" (Gl 1.17). Não é chamado, Jesus é (não: torna-se) o Filho bem-amado,
consequentemente, para fundar uma religião ou seja, o Messias (cf a mesma voz no relato
nova. É êle inserido, pelo próprio chamado de do batismo de Jesus: Mc 1.11 levando a SI
: ;

330 UM
2.7). Jesus está "revestido" de glória por Deus; iria cumprir. A aparição de ambos os perso-
a menção de suas vestimentas resplandecentes nagens devia, ademais, marcar o começo da era
(e do rosto, em Mt e Lc) não possui nada de messiânica (cf Ml 4.5 e Ap 11.13).
restritivo ou de exterior; esta
concerne à pessoa inteira considerada em sua
—>
vestimenta
3. O "sono" dos discípulos, mencionado por
Lucas (e no vers. 7 de Mt), bem como a suges-
missão histórica e o significado que Deus lhe
tão de Pedro de construir três tabernáculos, pro-
dá. Podemos, pois, colocar o relato da transfi-
vável alusão às choças de folhagem da festa
guração na linha dos textos nos quais Jesus
dos Tabernáculos) demonstram a incompreen-
aparece em sua glória escatológica a seus ínti-
são espiritual do homem diante da glória mes-
mos (neste caso a Pedro, Tiago e João) sem
siânica. Esta incompreensão é sobretudo "im-
todavia nada perder de sua humanidade; batis-
paciência, ou seja, recusa dos sofrimentos do
mo, confissão de Pedro em Cesaréia, Getsêmani,
Filho do Homem. Tornar êste relato o teste-
aparições do ressuscitado, etc. Êste relato par-
munho de uma visão ou de uma experiência
ticular expressa, pois, uma nota constante da
religiosa dos discípulos, vai ao encontro de sua
cristologia evangélica.
profunda intenção a glória da transfiguração
;

Mas
o tema da revelação messiânica aos dis- pertence exclusivamente ao Crucificado.
cípulos (antecedente da última manifestação)
não é único que contém tal texto extraordiná- 4. Anuvem, comum aos três relatos, significa
rio. A
exegese recente viu nisto, ora o relato a presença de Deus, como a nuvem que repou-
de um sonho ou de uma visão dos discípulos, sava sôbre o Tabernáculo. Isto é, o ator prin-
cipal do relato não é Jesus, mas Deus, invisível,
ora uma etapa marcante no processo da espi-
ritualização de Jesus ora uma aparição do
;
porém presente. O mistério sublinhado pelo
Ressuscitado, deslocado no tempo, ora a pre- relato não é o da transformação de Jesus num

figuração do Cristo voltando nas nuvens ou ;


ser mais ou menos divino, mas o da presença

ainda uma cena da entronização de Jesus na ativa de Deus "sôbre" o humilde destino do
dignidade messiânica, segundo o cenário judeu Filho do Homem.
tradicional da festa do Ano Nôvo, no curso da Seja qual fôr a representação dada ao que se
qual o rei israelita, representando Iavé, era passou no monte da transfiguração (monte iden-
investido com a dignidade suprema. Todas es- tificado como Tabor por alguns, como Hermon

tas hipóteses e especialmente a última, salien- por outros), importa recolher a afirmação cen-
tam elementos incontestáveis do texto que, con- tral do relato, afirmação que harmoniza com

tudo, exige observações mais precisas um dos temas magnos da tradição evangélica,
a saber: Os discípulos de Jesus (mas unica-
1 . O local do relato,, no plano da narração, mente os discípulos), testemunhas de seus so-
é o mesmo
nos três evangelhos: a transfigura- frimentos e do revés da cruz, também testemu-
ção está situada entre os dois primeiros anún- nharam, ainda que tardiamente e com incom-
preensão espiritual, "sua glória" (Jo 1.14:
cios da Paixão. Logo após êste acontecimento
texto que, aliás não se refere à transfiguração,
(cf Mc 9.12 par), observa-se os discípulos in-
porém, de acordo com a cristologia joanina, ao
terrogarem-se sôbre o que pode significar "res-
destino do Filho).
suscitar", enquanto Jesus chama sua atenção
P. BONNARD
sôbre os sofrimentos anunciadores de Elias. Se
o relato do —>
batismo demonstra que Jesus,
solidário com o pecado de seu povo, não dei-
UM
Os termos agrupados nas linhas seguintes não
xava de ser o Filho bem-amado, nosso relato
se articulam uns sôbre os outros de uma forma
parece querer tomar êste tema, mas em têrmos
absolutamente coerente. Tanto em português
inversos aquêle que foi revestido da glória
:

como no original hebreu ou grego, êles proce-


messiânica, avança agora em direção à morte;
dem de raízes bem diversas recobrindo acepções
no desígnio de Deus, esta glória não exclui a
nem totalmente equivalentes nem exatamente
ignomínia da cruz ao contrário, compreende-a.
;
complementares ou opostas apresentam, contu-
:

do, tal parentesco que haverá mais vantagens em


2. A
aparição de Moisés e de Elias não signi-
expô-los juntos sem assinalar a cada qual um
fica, certamente, que os céus se abrem sôbre
Jesus e que êle habita temporàriamente no céu
artigo em separado.

os dois personagens representam, respectiva- 1. A


unicidade, atributo de Deus e marca da
mente, a Lei e os profetas. Somente o pode VT divina revelação. Em
numerosos trechos, entre
fazer compreender a Jesus, depois aos discípu- os quais cumpre notar Dt 6.4: Mc 12.29,32;
los, a necessidade da Paixão o versículo 31 de
; Jo 8.41; 17.3; Rm 3.29-30; 16.27; ICo 8.4;
Lc, que lhe é próprio, interpreta explicitamente Gl 3.20; Ef 4.6; lTm 1.17; 2.5; Jd 25, a Es-
esta presença do VT
junto a Jesus: "Moisés critura proclama a unicidade de Deus.
e Elias conversavam com Jesus sôbre a par- Porém, para serem entendidas corretamente,
tida" (isto é, a morte, cf 2Pe 1.15) que se estas declarações não devem ser desenvolvidas
: :

UM 331

abstratamente, à maneira de proposições filosó- cristalizatambém todo o porvir pois tôda a:

ficas. Deus, com efeito, revelou-se e explicou História posterior, constantemente confirmada,
sua unicidade numa História particular, isto é. encontra-se já nesta única vez. Portanto, não
na História da salvação, real e concreta. apenas os homens são pecadores porque Adão

a) Na História da salvação —
aliás toda
pecou, mas Adão pecou porque os homens são

subordinada à —>
eleição divina o "um" re-
presenta papel principal, suscetível de ser leva-
pecadores. Tal é o pêso e inércia da História
humana. O que acontece num só lugar (porém,
o lugar decisivo), num só momento (porém, o
do às duas determinações seguintes
momento decisivo) é revelador de tudo.
1) as nações e, de modo mais
Os homens, Entretanto o pêso da unicidade histórica, da
geral, sères animados e inanimados de
até os
qual os homens por Adão tinham tirado sua
qualquer índole, não possuem alcance a não ser
perdição (ICo 15.22), será utilizado por Deus
na medida que Deus os torna instrumentos de
para salvá-los e glorificar-se a si mesmo (Rm
sua obra e, portanto, meios de sua revelação.
5.12-17; ICo 15.21s, 42ss). Esta "uma vez por
Nessa capacidade, porém, têm alcance univer-
tôdas" de Adão será seguida, pelo poder de
sal. Só Israel foi escolhido por Deus (Am
Deus, da "uma vez por tôdas" de Cristo. A
3.2) mas em Israel serão abençoadas tôdas as
:
Adão, o primeiro homem (englobando todos os
nações (Gn 12.3; cf Jo 4.22). Igual acontece
demais homens), sucederá aquêle que, literal-
com qualquer vocação divina um só cumpre o
:

mente, é o segundo se, de Adão a Cristo, todos


destino de todos, e êste destino de todos cumpre-
os homens estavam absorvidos na unicidade
se em um só (cf Gl 1.15s; ICo 15. 9s; Rm adâmica. Um, por todos, havia pecado uma
9.3; 2Co 1.4-6; 4.11-15; Cl 1.24, etc). Tal
vez por tôdas. Também um, por todos, salvará
concepção transcende qualquer oposição entre
o pecado uma vez por tôdas (Jo 11.50-52; 18.
"coletivismo" e "individualismo".
14; 2Co 5.14-15; Hb 10.11-18).
2) De modo análogo, a História da salva-
ção é o teatro onde se representa, de fato, a 2) Cristo e a Igreja. Assim como todos
História universal na sua integridade. Ainda os homens estavam em Adão, todos os homens
mais: a História da salvação depende, ela mes- estão desde já em Cristo. Há, contudo, uma dife-
ma, de momentos decisivos e únicos que compro- rença essencial entre a maneira de ter parte
metem passado e porvir. Um
acontecimento úni- com Adão e a maneira de ter parte com Cristo.
co, "uma só vez" (Hb 6.4; 9.26-28; 10.2,12-14;
Com Adão participamos por natureza, mas é
pela fé que participamos com Cristo (Ef 2.3-8).
IPe 3.18; Jd 3), "uma vez por tôdas" (Rm
6.10; Hb 7.27; 9.12; 10.10), cristaliza todo
É preciso sublinhar contudo que esta diferença
o passado e determina todo o porvir. Tal noção na maneira de participar não acarreta que a
ultrapassa a oposição entre "contingência" (pos- unicidade englobante de Cristo seja menos real
to que, "uma única vez", determina tôdas as do que a de Adão. É, pelo contrário, mais real,
coisas) e "necessidade" (visto que "esta única visto que, sobrepassando a unicidade adâmica

vez", imputável só à liberdade de Deus, era mis- (Rm 5.15-21; ICo 15.45-49), e tornando-a
ter para determinar tôdas as outras) da evo- caduca, ela mesma fica única e definitiva.
lução histórica. Cristo é o homem nôvo que engloba todos os
Compreende-se então o alcance, altamente sig- demais : o destino dos demais homens, represen-
nificativo,de declarações como Mc 10.21; Lc tando-se em Cristo e somente em Cristo, des-
10.42; Mt 5.18s; Tg 2.10; Gl 5.14; Mc 14.37; cansa doravante definitivamente em Cristo. To-
Ap 17.12; 18.8-10. Uma única coisa é necessá- dos, literalmente, estão "nêle", não em virtude
ria para a vida humana. A
lei de Deus resume-
de alguma relação mística intemporal, mas pelo
se num só mandamento. Uma única transgres-
poder decisivo da unicidade histórica da obra
são torna culpado. Uma única hora é decisiva.
de Deus. Os homens que crêem não fazem senão
b) A noção de unicidade, tal como aqui de-
reconhecer o que deverão, algum dia, reconhecer
finida, aplica-se essencialmente a dois aspectos todos os homens (Jo 5.24ss; ICo 15.23-28). Os
fundamentais do testemunho neo-testamentário crentes, pela fé, reconheceram que sua existência
1) Adão e Cristo. A
humanidade tôda pro- e a dos demais homens está ligada indissoluvel-
cede de um só homem (At 17.26). Ora, neste mente à de Cristo. Daí o uso repetido do prefixo
único homem representou-se e perdeu-se o des- "syn" ou "com" (com o Cristo) con-viver (Rm
:

tino de tôda a humanidade (Rm 5.12). De con- 6.8; 2Co 7.3), co-sofrer (Rm 8.17), ser con-
formidade com o exposto acima, a queda de crucificado (Rm 6.6; Gl 2.19), co-morrer (Rm
Adão não é nem a causa necessária nem o 6.8; 2Co 7.3; Cl 2.20), ser co-sepultados (Rm
exemplo contingente do pecado da humanidade, 6.4; Cl 2.12), co-ressuscitar (Cl 2.12; Rm
pois transcende esta oposição insolúvel. Por um 8.32; 2Co 4.14; 13.4; Fp 1.23; Fp 1.23; Cl
lado, sem dúvida, sua queda determina o porvir 3.3-4; lTs 4.14; 4.17; 5.10), co-herdar (Rm
"uma vez por tôdas", já que uma só vez deter- 8.17), co-reinar (2Tm 2.12; cf Cl 2.13; Rm
mina tôdas as vêzes. Mas, por outro lado, ela 8.32 etc).
S32 UNGIR OU UNÇÃO

Participando no Cristo, comprometida inteira- 3. Divisão, sinal e consequência do pecado.


mente no Cristo, a Igreja, corpo de Cristo, tem Sendo a unicidade do Cristo o fundamento da
parte na mesma unicidade que êle, bem como unidade da Igreja e dos crentes, segue-se que
em todas as suas marcas (Ef 4.4-6). tôda divisão na Igreja e entre os crentes cons-
titui um tristíssimo sintoma: a unicidade de
A
comunhão com o Cristo, tal como se reali-
za essencialmente na —> eucaristia, implica
necessariamente o reconhecimento de seu único
Cristo está posta em questão e seu senhorio
contestado (ICo 1.10-13). Daí a intransigência

senhorio (ICo 10.14-22).


com que o NT
condena qualquer cisma, qual-
quer heresia, qualquer divisão dos crentes em
partidos (Rm 16.17; ICo 11.18; 12.25; Gl
2. Unidade, resultado da participação na uni-
5.20; Fp 2.3; Tt 3.10, etc). Pois a divisão
cidade da obra divina em Cristo. Todos os
entre crentes atesta que suas diferenças (legíti-
crentes, representando em esperança todos os
mas quando no seu lugar) tomaram o passo
homens (ICo 15.22s), são "um" em Jesus Cristo. sôbre a obediência ao Espírito do único Senhor.
Por obra do Espírito, são "um" com o Cristo União sem confusão, diferenças sem separação,
(ICo 6.17) e "um" entre êles (Rm 12.5; Gl eis, segundo o NT, a unidade deixada por
3.28; Jo 11.52; 17.23). Cristo a seus discípulos e fundada na própria
Esta unidade com Cristo não acarreta que, relação de Cristo com o Pai (Jo 17.10).
sendo nossa existência englobada na de Cristo,
J.-L. LEUBA
nossa pessoa se confunde com a pessoa de Cris-
to. Formamos apenas o corpo de Cristo, do qual UNGIR ou UNÇÃO
só Cristo é e haverá de ser a cabeça (Ef 1.22s;
Cl 1.18). Visto que a unidade do Pai e do 1. Para ungir usava-se um óleo sàbiamente
Filho não implica na confusão de ambos (Jo preparado (Ex 30.23ss). Mediante a unção,
17.20-23), a unidade dos crentes com Cristo não Israel consagrava a Deus para servir a obra
os coloca no lugar do Cristo. divina em Israel ou no mundo aquilo que o pró-

Da mesma prio Deus separava para si: sejam lugares


forma, a unidade dos crentes entre
£Í, sua comunhão fraternal, longe de transfor- (Gn 28.18), sejam objetos (Ex 30.26ss; 29.2),
má-los em indivíduos idênticos, cópias de um ou sobretudo homens encarregados de determi-
tipo uniforme, efetua-se precisamente através nado —> ministério rei (ISm 9.16; 16.3;
:

de sua diversidade. Ainda mais: sua comunhão lRs 1.34, etc), (lRs 19.16), sumo
profeta
alcança todo seu significado pelo fato de que sacerdote (Ex 28.41; um redator posterior es-
são diferentes. O corpo de Cristo possui mem- tendeu êste uso a todo sacerdote, em substitui-
bros diferentes esta diferença não somente não
:
ção da mera aspersão lustral, ver Lv 8.30). A
compromete a unidade, mas condiciona a uni- unção destina sempre a uma obra peculiar no
dade. Pois a unidade cristã é orgânica e estru- divino serviço Deus é o autor verdadeiro da
:

turada, isto é, exatamente o oposto da unifor- unção, embora atue mediante homens (ISm
midade. Não suprime ela, mas confirma e san- 16.15; lCr 11.3; 2Cr 22.7); daí a expressão
tifica a diferença entre homem e mulher (ICo "o ungido do Senhor" —
o Cristo de Iavé
11.3-6; 14.34s), judeus e pagãos (ICo 9.20), (ISm 26.9,16; Lm
4.20; ver Jo 6.69). Pela
livres e escravos (ICo 7.17; Cl 3.22), ricos unção o eleito é separado, introduzido na esfera
e pobres (2Co 8.9.15). Idêntico sentido dar- divina: com poder de comparecer perante Deus
se-á à comunhão entre judeus-cristãos e gentios em nome do povo, e obrar como representante
cristãos (Pelo têrmo "comunhão", Paulo desig- de Deus. Todavia esta unção nada tem de mágico
na, às vêzes, a coleta em favor dos hierosoli- e Deus está livre para rejeitar seu ungido
mitas : Rm
15.26; 2Co 8.4). A nova aliança ( Saul )!
ou desqualificar a quem usurpasse a
até cria novas diferenças entre homens no fito unção (Absalão).
de melhor uni-los. Os apóstolos e os fiéis estão
cm comunhão pelo fato mesmo das diferenças 2. Usava-se óleo (fruto da oliveira que, como
que os distinguem (At 2.42; ljo 1.1-4). O a videira, simboliza a eleição) para conferir a
mesmo se pode afirmar dos apóstolos entre si unção, por considerar Israel que êle era ma-
CG1 2.9), dos diversos ministérios e dos vários téria de saudáveis propriedades além de ser
:

serviços (ICo 12.4-30), dos fortes e dos fra- uma marca de alegria, riqueza e liberdade (SI
cos (Rm 14.1-15.13). A unidade do Espírito
manifesta-se no amor dos homens por outros ho-
23.5; Jl 1.10; Mq 6.15; ver Mt 6.17)
tanto, importante objeto de toucador
por-
o óleo——
mens que não lhes são semelhantes. Comunhão serve para a saúde (Is 1.6; Lc 10.34; Tg
não é confusão, mas participação em um ser 5.14), como tónico por excelência. Convém
diferente de si. (Na nova economia, tornar-se-ia portanto aos ungidos (saúde e santidade são
absurdo o matrimónio, se houvesse mister com- afins nas perspectivas bíblicas, pois a santidade
preender de outra forma trechos como Gl 3.28. significa um degrau superior na posse do poder
Observação válida para as outras diferenças.") vital) chamados a realizar coisas extraordiná-
;

VENCER 333

rias: em certo modo o óleo é o veículo do Es- 6.13; Tg 5.14). Quanto ao gesto da mulher
pírito de Deus (ISm 10.1-6; 16.13; 2Sm 23. derramando sôbre a cabeça e os pés de Jesus
1-2; Is 61.1) que investe o eleito de Deus da um vaso de precioso bálsamo, e que os Evan-
força necessária para cumprir a sua vocação. gelistas conservaram em diversas narrações
(Mt 26.6-13; Mt 14.3-9; Lc 7.36-50; Jo 12.
3. A conjunção do
convém particularmente ao NT, onde
—> Espírito e da unção
coisa — 3-8), aparece êle como uma confissão da mes-

digna de menção ! —
o óleo não figura mais
sianidade de Jesus.
D. LYS
como "sinal visível da graça invisível".
a) Constatação verdadeira primeiramente VENCER
para o próprio —>
Jesus. Êle é ungido por
Deus, no seu batismo, "de Espírito Santo e de
1 . Vencer : eis todo o drama da redenção do
poder" (At 10.38). Certamente êle não é um mundo em Jesus Cristo; a Bíblia inteira declara
ungido entre tantos outros, mas o Ungido por ser Jesus Cristo a vitória de Deus sôbre o Ad-
excelência (em hebr. Messias, em grego o Cris- versário.Falando absolutamente, o próprio Eter-
to) :"o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt no dos Exércitos, o Altíssimo, o Todo-poderoso
16.16 par). Êste termo de Cristo, que já na é o vencedor. Ao próprio Eterno pertence a vi-
primeira geração cristã, se tinha convertido em tória, bem como o reino, a justiça, a santidade
aposição ao nome de Jesus, designa primordial- e a glória; não como atributo, mas como modo
mente um estado. Sendo o Cristo, Jesus é antes de ser, de manifestar-se e de agir. O combate,
de mais nada o rei, o nôvo Davi esperado para prelúdio da vitória final, não é um combate arris-
o fim dos —>
tempos (Mt 2.2; 21.5; 27.11
par; Lc 23.2; Jo 12.13; At 17.7, etc), o que
cado entre duas potências iguais e homogéneas
a Bíblia desconhece qualquer dualismo: anteci-
valoriza e realiza tudo que a realeza tem sig- padamente e desde a primeira incursão do Ad-
nificado para a antiga aliança. Porém, a tra- versário no mundo, Satanás é "reprimido", e a
dição eclesiástica, apoiando-se em textos vetero- vitória é prometida "à posteridade de Eva"
testamentários que tratam da consagração, me 7 (Gn 3.15) Caim recebe ao mesmo tempo a
;

diante a unção, de profetas e sacerdotes, certa- ordem e a possibilidade de ganhar a vitória sô-
mente não errou quando afirmava que êste título bre o pecado ("mas a ti cumpre dominá-lo"
de Cristo resume e contém a plenitude dos mi- Gn 4.7). Eis porque, de Abraão a Jesus Cristo,
nistérios antigos que Jesus valorizou e realizou, ao tongo da História da salvação (=da vitória
e consequentemente o ministério profético (Lc de Deus revelada no mundo), esta vitória de
4.18ss =
Is ól.lss) e sacerdotal (diretamente Deus aparece sempre associada à vitória da
não relaciona o NT
a unção com o ministério Esta é a perspectiva da aliança (ver
sacerdotal de Jesus, a não ser em At 4.27 onde
ela é relacionada com seu ministério de

fé.
2> aliança) tôda é mister compreender os
:

—> servo que morre vicàriamente pelo povo,


numerosos relatos de vitórias alcançadas pelos
patriarcas, Moisés, Josué, Juízes e Reis, atra-
e nos textos abundantes que falam do Cristo que vés desta fé (Gn 14.13-14; Ex 14.13-14; 15.
expira sôbre a —>
crus). Aliás, já no VT,
o rei cumpria legitimamente o —>
ministério
1-27; 17.8.16; Js 6ss; Jz 6-7; ISm 17.45; etc) :
essas vitórias são sinais da presença do Eterno
profético (ISm 10.6-10; 2Sm 23.1-2) ou sacer- com o seu povo ou com o seu "ungido", o "seu
dotal (ISm 14.35; 2Sm 6.14; lRs 8.55). escolhido".
b) A unção do Espírito foi conferida não A
vitória é adquirida, em todos os casos, pelo
somente a Jesus depois da Ascensão, o Espírito "braço poderoso", pela "destra de Deus", "no
—>
:

foi espalhado também sôbre a Igreja, sua nome do Eterno dos Exércitos". Às vêzes entra
representante sôbre a terra e sua comissionada
que continua a obra escatológica da salvação
em cena o —>
"anjo", o "chefe dos exércitos
do Eterno" (Js 5.13-15; Dn 10. 13-20; Is 37.
(At 2.1ss). Esta unção do Espírito está inti- 26), ou ainda o próprio Eterno (Ex 14.14). Ao
mamente ligada ao —>
batismo, que precede
ou segue imediatamente (ver Jo 3.5; At 2.38;
invés, as derrotas e revêses sofridos por Israel
no curso da História, também manifestam a
9.17-18; 10. 44-48; 19.5-6; ICo 12.13-14, etc). vitória do Eterno, porém, desta vez, contra
Portanto todo batizado é também um "cristo"
seu povo, a fim de proclamar sua justiça e
(2Co 1.21) ( —>
Selo). Aparentemente desta
mesma unção do Espírito no batismo é que
santidade. O mesmo Eterno que marcha à testa
de seu povo para "arrasar seus inimigos" (SI
fala São João na sua primeira carta (2.20-27),
e não duma —>
imposição das mãos conferida
ao nôvo batizado (At 8.14ss: visa êste texto
68), levará também ao combate e à vitória os
inimigos de Israel, quando êste vier a romper
a aliança com sua idolatria ou sua increduli-
provavelmente sublinhar a integração da Igreja
dade, comportando-se como inimigo de Deus
samaritana à Igreja apostólica).
(Jz 2.10-21). Desta forma profetiza Jeremias
c) A unção de óleo não está porém ausente a derrota e a ruína de Jerusalém e reconhece
do NT; élembrada a sua virtude curativa (Mc no vencedor, Nabucodonosor, um servidor de
334 VER

Iavé (Jr 27.6), encarregado de executar os Entretanto, mesmo quando já conquistada, a


grandes julgamentos de Deus sobre Israel (Jr vitória de Jesus Cristo permanece ainda futura
15.1-8; etc). Assim joga-se o misterioso des- e só será manifesta na segunda vinda. Eis por-
tino de Israel, o qual, após o combate singular que a vida cristã continua sendo um combate:
de Jacó com o anjo do Eterno (Gn 32.24ss), o pecado jávencido fica ainda por vencer e do-
recebe vocação de ser conjuntamente "vence- minar (Rm 12.21). Eis o porquê do Apocalipse:
dor" e "vencido" na luta que, por ou contra anuncia êle a manifestação final do Vencedor
Deus, terá que travar como testemunha da di- (Ap 5.5; 6.2), a vitória do Cordeiro (Ap 17.
vina Justiça. 14). De todos os livros do NT, êle é que con-

2. Esta mesma relação entre vitória e justiça


tém maior número de exortações à perseve-
encontra-se no plano da vida pessoal do crente;
rãnça na fé nas promessas feitas "àquele que
vencerá" (2.7; 3.5,12; etc).
o Salmista (51.6) confessa sua derrota e sua
culpa sob os golpes da justiça de Deus ("Tu H. ROUX
serás vencedor em teu julgamento" =em tua
demanda). Tal caráter jurídico da vitória divina VER
é acusado ainda mais na pregação dos profe-
tas quando anunciam a ruína e o castigo de I. O verbo "VER", aqui, só nos interessa na
Israel e de Judá como justo veredito de uma perspectiva que oferece quando Deus ou o Cristo
"causa" que Iavé finalmente ganhará contra seu são seu sujeito ou seu objeto. De fato. nos tex-
povo (Os 4.1-4; 5.1,11; Mq 6.1-15). As mes- tos bíblicos, "Ver" impregna-se então de um

mas promessas messiânicas associam estreita- sentido teológico bem preciso, expressando uma
mente o advento do Messias, "ungido de Iavé" modalidade peculiar de relação e de revelação:
e esperado como "Rei da glória" (SI 24. 7s), o sentido visual, primordial subjacente, oculta-
com o triunfo da justiça prefigurado, ora pela se deixando lugar ao sentido espiritual. Nesta
vitória de Ciro, libertador de Israel oprimido modalidade, especial de relação, "ver" indica
(Is 45.1-'8 > 22-25), ora pelo ministério do uma proximidade imediata de Deus para o ho-
—> Servo de Iavé que "não se cansará até
que tenha feito triunfar a justiça sobre a terra"
mem, ou do homem para Deus, nada separando
mais o Criador da criatura, achando-se Pai e
(Is 42.4,21), ou ainda pelo humilde e pacífico filho "face-a-face". Na sua peculiar idéia de re-

rei de Jerusalém, "justo e vencedor" (Zc 9.9). velação, "ver" denota a possibilidade de um co-
nhecimento direto e extraordinário de Deus,
3. O tema da vitória, simultâneamente mes- condicionado quer ao nosso ser sensível e ter-
siânica e escatológica, encontra-se no NT, de restre, quer ao nosso ser escatológico e eterno,
maneira muito discreta nos Sinóticos. Os
—> milagres de Jesus, em particular as curas
e suscetível de preceder ou de acompanhar esta
outra modalidade nossa de conhecer, provisória
de endemoninhados, são sinais anunciadores da mas, aqui na terra, única decisiva, qual seja a
vitória decisiva sobre Satanás. Êste triúnfo,
implicado na parábola do forte valente (Lc
—> fé. A fé é para esta terra; será substituí-
da no Reino pela visão enfim revelada.
11.21-22), é profetizado por Jesus na oportuni-
Conhecer a Deus "na evidência intuitiva" foi
dade da volta dos 70 discípulos (Lc 10.17-20).
a mais tenaz das aspirações religiosas humanas.
A vinda do Filho do Homem "em glória" está
descrita como o advento do "juiz das nações" O esforço da piedade helenística, em particular,
(Mt 24.30s; 25.31ss). Os escritos joaninos dão almejou por esta visão do sacro que tornaria
amplitude maior ao tema, identificando a vitó- coisas e seres divinos um "espectáculo" oferto
ria final do Cristo, vencedor e juiz do "príncipe à nossa contemplação. As iniciações tinham por
dêste mundo", com seu triunfo na cruz e na finalidade introduzir-nos aos arcanos desta in-
ressurreição (Jo 12.31; 16.33). Esta vitória tuição. "Bem-aventurados os olhos que viram!"
é ganha, ao mesmo tempo, sobre "o mundo", o rezam os hinos homéricos. Sem dúvida a gnose
pecado, a morte, o Anticristo; e dela já parti- insiste no tema da invisibilidade de Deus (crian-
cipam os crentes, mediante a fé (ljo 2.13s: do assim uma fonte inesgotável para a mística
4.4; 5.4s). ulterior que procurará incansàvelmente seu Ta-
Igualmente Paulo, quando ensina a justifica- bor nas "trevas" divinas). Porém simultânea-
ção pela fé, torna estreitamente dependente o mente os mesmos gnósticos pretenderam alcan-
combate e vitória da fé em nossa vida, da vitó- çar o seu objetivo divinizando o homem e assim
ria única e decisiva do Cristo vencedor, isto é. salvando os obstáculos à contemplação imediata
da vitória conquistada pela cruz e ressurreição. da divindade.
Em virtude da livre graça de Deus e pelo de- Tornou-se clássica a oposição que coloca em
creto de sua justiça, tudo se cumpriu, uma vez paralelo, por um lado, a sêde inapagável de
por tôdas, sendo Cristo o vencedor do pecado e visão, raiz da mística conatural ao homem, e
da morte: a —> fé consiste em apropriar-se
desta vitória já ganha e vivê-la (Rm 5.1-5; 6.
por outro lado, a fé profética, própria de Israel,
"demonstração das coisas que não se vêem" (Hb
3-11; ICo 15.57). II. 1), "fé que provém do que se escuta" (Rm
;

VER 335

10.17). Tal paralelismo corre bastante parelho determinado e disse-lhe. ." (cf Gn 17.1) êste
. :

com o paralelismo "Eros- Ágape" (amor-cobiça verbo marca somente a presença do Eterno que
e amor-dom de si). A visão intuitiva semelha-se se manifesta falando com seu servo. Numerosas
a Eros, pois sendo o gozo supremo do homem, passagens atenuam, ademais, o escândalo dêste
gera a cobiça de tomar posse do Deus vivo e face à face empregando expressões como ver o
"invisível" (lTm 1.17; 6.16), despido não por —
— >>
:

anjo do Senhor (Jz ó.llss) ou ver a


certo de mistérios mas sim de santidade. O en- glória do Senhor (cf SI 27.4; 96.6).
tendimento da fé, pelo contrário, parece-se à Tem-se mesmo o curioso exemplo dos LXX que
Ágape a fé subordinada à Palavra gera a obe-
: traduzem Ex 24.10; "Moisés e os anciões de
diência austera no homem que recebe a boa nova Israel viram o Deus de Israel" por "êles viram
da graça divina. Entretanto, o pensamento bí- o lugar onde se encontrava o Deus de Israel."
blico não exclui tôda "visão" pelo contrário, Alguns textos todavia vão mais longe e afir-

——
;

a visão em atitude dialética com respeito mam o impossível homens viram a Deus, con-
:

à fé desempenha um papel ininterrupto no templaram-no, espantados de estar ainda vivos,


decorrer da História da revelação. testemunhas de sua graça. É o caso de Jacó
no caminho de volta, em Peniel (Gn 32.30).
2. Deus vê, eis a primeira revelação da Bíblia. É o caso de Moisés, nas passagens repetidas do
Seu universo abrange o universo inteiro (Jó Êxodo (cf também Nm
12.6-8) quando o vemos
28.24), acompanha cada homem (SI 33.12), subir a montanha santa e, em temor e tremor,
sonda os rins e os corações. Se o iníquo duvida ali encontrar seu Deus. Em nenhuma outra parte
dêste olhar e o rejeita, o crente tem a certeza os textos atestam uma intensidade semelhante
constante disto (SI 94.9). Êste olhar é primei- em nenhuma outra parte afirmam com mais in-
ramente a expressão perfeita da solicitude e do
— > amor de Deus amor de sua criação quan-
:
transigência a impossibilidade mortal de enfren-
tar a santidade de Deus e em nenhum outro
do se inclina desde a primeira manhã sôbre sua lugar introduzem o homem bem diante na inti-
obra para seguí-la com o olhar (Gn 1.4) amor ; midade com êle. Tudo quiçá pode ser resumido
de seu povo, do qual vê os sofrimentos no Egito na surpreendente passagem de Êx 33.17ss onde
(Ex 3.7) e ao qual não cessará de observar Moisés é admitido a contemplar o Senhor "pe-
com um olho atento; amor de cada homem em las costas": enquanto passa o Senhor, sua pró-
particular (cf SI 139), dos humildes, muito es- pria mão protege o olhar de seu amigo. São
pecialmente (SI 138.5) dos acabrunhados pela ainda os profetas: Miquéias (2Cr 18.18), Isaías
miséria (SI 25.18), dos que o invocam no se- (a célebre visão do capítulo 6), Ezequiel (cap
grêdo (Mt 6.4). A
êste olhar de Deus estão
1), que tiveram tal privilégio. Tais visões têm
suspensas suas esperas, sua esperança e a cer-
um ponto comum não vemos nunca os "homens
:

teza de intervenção final do Eterno. O olhar


de Deus" buscá-las por causa delas mesmo. São
de Deus parece efetivamente também comum ao
elas concedidas por livre iniciativa de Deus. Co-
sinal de sua onipotência (SI 104.32), o penhor
de sua justiça (cf Jó 24.23; Gn 6.12, etc), às
mo todas as experiências espirituais na Bíblia,
vezes, a prova de sua ira (Jó 7.19). O
pri-
não constituem elas o objetivo supremo da pie-
meiro capítulo de Ezequiel, considerado por dade e da fé, o cume da ascese e da mística,
Israel como a revelação suprema, descrevendo muito pelo contrário um ponto de partida: não
as rodas do carro cheias de olhos atesta assim a finalidade, porém a intervenção primeira de
o ato de fé decisivo: Deus tudo vê! Deus que se revela com poder a fim de conduzir
seu povo na História da salvação. Voltamos a
3 . Mas o homem em si, pode ver a Deus ? Não, encontrar aqui as grandes horas passadas na
proclama o V.T. Não porque Deus seja de origem das etapas marcantes da vida do povo
essência invisível, mas porque é três vezes san- escolhido. Jacó tornando-se Israel, Moisés re-
to. Após a queda, ocultou-se, o homem foi ba- cebendo a Lei, os profetas no limiar de seu
nido de diante da sua face. É por sua —
]> Pa-
lavra que, na sua graça, Deus revelará ao povo
ministério. Estas visões serviram de fundamen-
to para a revelação "da Lei e dos Profetas".
que o escuta, sua presença constante. É por O carácter excepcional destas visões é afir-
meio de sua palavra que doravante cumprirá mado com fôrça após a morte (Jó 19.26 é o
sua libertação. Esta proibição pesa desde então exemplo mais comovente), e especialmente, no
sôbre o homem pecador "Ninguém pode ver a
: judaísmo posterior, vê-se aparecer na perspec-
face do Senhor sem morrer" (cf Ex 19.21 33. ; tiva escatológica esta espera de uma aparição
20; Jz 13.22; o reflexo de Elias em lRs 19.13. final de Deus, manifestando-se para o olhar das
Em ISm 6.19 vê-se que há perigo até em dar nações, justificando a fé de uns. confundindo a
uma olhadela na arca). E contudo o. V.T. faz- incredulidade dos outros, e estabelecendo o no-
nos penetrar quase tremendo nessas horas ful- vo reino. Esta espera toma uma forma par-
gurantes em que alguns foram admitidos a con- ticular enfim na piedade dos salmos em que a
templar o Senhor face à face. Deixamos de lado manifestação da glória de Deus realiza-se, como
a expressão comum "O Senhor apareceu a um
; de antemão, na adoração cultual e a contem-

336 VER

plação do Senhor no
lém (ex SI 63.3; 27.4).
—> Templo de Jerusa- tarde. Pode-se esquecer o grito de alegria que
ressoa no dia da Páscoa: "Vimos ao Senhor!".
b) A parusia. Ver a face de Deus em seu
4. No limiar do evangelho, cumprindo esta reino, é participar de sua glória. Certos anjos
espera, ressoa a proclamação apostólica: "Nin-
já conhecem êste privilégio (Mt
18.10). Para
guém jamais viu Deus; o Filho unigénito é descrever a herança do reino prometido àqueles
aquêle que nos fê-lo conhecer" (Jo 1.18), pro-
que têm o coração puro, as Bem-aventuranças
clamação que é apenas o eco desta afirmação do declaram que êles "verão a Deus." Hebreus
próprio Jesus "aquêle que me viu, ao Pai"
:
recorda a respeito a santificação necessária (Hb
(Jo 14.9; 12.45). Mas esta aparição do Filho 12.14; cf SI 17.15). Porém nós não seremos le-
do Homem, anunciada por Daniel, em quem vados todos juntos a esta visão derradeira de
Deus revelou-se aos olhos do mundo porque Deus senão pela vinda celeste do Filho do Ho-
tanto amou, reparte-se em dois momentos a :
mem. Sua aparição, aniquilando o pecado e a
dupla vinda do Cristo, a encarnação e a paru- morte, porá fim à prova da fé, ao combate da
sia, às quais correspondem duas maneiras de esperança (Rm 8.18-27), abolirá distância e
"vê-lo". tóda separação e reintroduzirá a criação em
a) A encarnação. Esta prmieira vinda é presença do Pai. Cristo aparecerá então não
misteriosa ; como diz Pascal, Deus "quando era mais no mistério, mas em plena luz, "sobre as
nuvens do céu". "Todo ôlho o verá" (Ap 1.7).
mister que_ aparecesse, escondeu-se ainda mais
Então "nós o veremos tal como é, e nós sere-
revestindo-se da humanidade". Os sinóticos cen-
tralizam êste mistério em torno do —> reino;
mos semelhantes a êle" (ljo 3.2; cf 2Co 3.18) ;
"veremos face à face e conheceremos como —
João centraliza ao redor da pessoa de Jesus. fomos conhecidos" (ICo 13.12). O mundo terá
"Bem-aventurado os olhos que vêem o que ve- Deus por sol, "não haverá mais anátema, o tro-
des..." (Mt 13.16; cf Mt 11.4) e ao mesmo no de Deus será na cidade, seus servos o ser-
tempo "o reino não vem de maneira a chamar virão, êles verão sua face" (Ap 22.4). Tais
os olhares" (Lc 17.20). Únicamente a eleição são as promessas e esperança supremas. Assim
permite discernir pela fé (cf Mc 4.11.12). É "gememos nós" escreve Paulo, pois "andamos
exatamente o que repete, a seu modo, Jo 9.35- pela fé e não pela vista, moramos ainda longe

39. A tensão entre a fé e a vista é mais aguda


do Senhor". (2Co 5.1-8), "amamo-lo sem tê-lo
visto, cremos nêle sem vê-lo ainda" (IPe 1.8).
do que jamais ( Recomendamos o estudo que O.
experimentamos a espera ardente desta revela-
Cullmann consagrou a êste assunto "La vie :

ção da glória.
de Jésus, objet de la vue et de la foi, après lc
quatrième Evangile", cf Mélangcs offerts à 5. Contudo a alegria da Igreja já está aí*
M. Goguel, Neuchâtel e Paris 1950 ou "Les "Bem-aventurados, em verdade, aquêles que não
sacrements dans 1'Evangile johannique", Paris viram e creram!" (Jo 20.29). Colocada entre
1951, p. lOss. Analisa as numerosas passagens as duas aparições visíveis do Senhor, a Igreja
tão significativas a êsse respeito). A visão de está chamada à felicidade da fé. Está ela como
Jesus e de seus milagres é insuficiente para con- liberta do equívoco do tempo da encarnação,
duzir a quem quer que seja a descobrir nêle o ela especialmente recebeu o Espírito Santo, a
enviado do Pai mister se faz o "dom de Deus",
:
testemunha que lhe permite aprender a plenitude
a fé. Longe de serem privilegiados, os testemu- do que foi visto e saudado de longe pelos pro-
nhas oculares da vida terrestre de Jesus têm fetas e contemplado pelos apóstolos. O tempo
mais dificuldades do que nós para compreender do Espírito Santo é quando "vós me vereis",
o alcance incalculável: ainda não receberam o diz Jesus a seus discípulos (Jo 16.16, 19.22;
Espírito Santo. Não obstante são agentes indis- cf 14.19). O Santo Espírito dá-nos de perce-
pensáveis à nossa própria fé, porque só êles ber a pessoa e a presença de Jesus ainda que
podem reportar os acontecimentos desta vida seja atualmente invisível para o mundo. O Es-
terrestre. Eis o mistério único que os ^após- pírito Santo esclarece para nós êste espelho
tolos têm que cumprir durante tóda a duração que é a Palavra de Deus, onde nos podemos en-
da Igreja, êles que testemunharam dêstes even- tão contemplar, num reflexo (cf ICo 13.12:
tos da salvação (Lc 1.2; ljo 1.1), testemu- 2Co 3.18) a vida do Cristo, tal como aparecerá
nhas da cruz, da ressurreição e da elevação duas vêzes na História Jesus caminhando em
:

do Senhor. A êste respeito, as aparições do direção ao calvário, o Senhor vindo sobre as


Ressuscitado representam um papel decisivo nuvens do céu. Entre êsses dois poios, como uma
Pelo fato de ter encontrado o Cristo no cami- fagulha que salta, nossa fé está assim suspensa.
nho de Damasco, basta para qualificar Paulo Sem nada ver, mas assim iluminada pelo Es-
(ICo 9.1: não sou eu apóstolo? Não vi eu a pírito, a Igreja contempla o Filho (Jo 6.40) e
Jesus?). Frequentemente têm-se notado com ela já tem a vida eterna. Por esta razão que,
que cuidado faz a distinção desta aparição de mesmo "se não pudermos mais conhecer Cristo
todas as visões que lhe foram concedidas mais segundo a carne" (2Co 5.16), Paulo não hesita
. :

VERDADE 337

em pintá-lo para os olhos dos Gálatas ( 3 1 ) . lário religioso e teológico. Quando designa o que
Por este motivo a Epístola aos Hebreus exor- é estável c certo, palavra
fiel e constante, a
ta-nos a "olhar para Jesus", o princípio c o fim aplica-se comumente ao comportamento de Deus
de nossa fé (12.2). Arraigada à pessoa de Je- em face do homem, à maneira de Deus fazer-se
sus, a fé cristã é doravante, como Vinet
relem- presente e agir na existência humana. Nossas
brou de uma maneira inesquecível, um olhar. E versões então escrevem quase indistintamente
para que êste olhar não se perca no irreal de "Deus de verdade" (SI 31.5) ou "Deus de fide-
uma mística desencarnada, a Escritura procura lidade" (Ex 34.6) : prova tangível que ambos
levá-lo sem cessar aos sinais visíveis e imedia- os têrmos portuguêses traduzem a noção origi-
tos que nos são dados da presença do Senhor, nal parcialmente. "Tu me remiste, Deus de ver-
aos penhores concedidos aos nossos olhos que dade" (SI 31.5) a ti mesmo e à tua pro-
: fiel
nos atestam a realidade de sua vida, nosso messa, solidário com teu fiel, tu me arrancas
>próximo, rosto hoje oferecido do Filho da insegurança intervindo na minha vida, tu
do Homem, tão mais semelhante tanto mais fundamentas minha existência e lhe dás um
desprezado (Mt 25.31-36; cf ljo 4-20), a co- porvir. O salmo citado, constitui integralmente
munidade da —>
Igreja, "corpo" visível
Cristo, a água que escorre sobre nossas frontes,
do
apenas uma extensa descrição da verdade divina,
a qual opõe-se à vaidade dos ídolos (vers 5),
o pão e o vinho dispostos sobre a mesa. apoios enganosos para os seus invocadores. O
M. BOUTTIER conjunto da palavra de Deus, sua essência mes-
ma, é verdade (SI 119.160: a segunda parte
VERDADE dêste versículo elucida bem a divina palavra :

é válida definitivamente não será revogada ela


; ;

1. Para o leitor habituado a mover-se na ór- estabelece, para sempre, a existência sôbre ali-
bita do pensamento hebraico, a palavra verdade cerces verdadeiros). "Tuas palavras são verda-
evoca essencialmente solidez, certa, fidelidade e de" (2Sm 7.28) tua promessa é uma realidade
:

constância (cf Amém). Nesta perspectiva, nos- na qual podemos confiar, em cuja fé ousada-
sa concepção familiar de verdade (tal como na mente vamos para o porvir. "Ando na tua ver-
expressão: "dizer a verdade") é apenas um dade" (SI 26.3) corro o risco de viver con-
:

aspecto parcial e derivado da noção bíblica. O tando contigo, com todas as consequências reli-
israelita fala de "um homem de verdade" (Ex giosas e morais que isto implica. "As obras de
18.21; Ne 7.2; =
um homem íntegro, fiel), Deus são verdade (fidelidade) e justiça, seus
com o qual se pode contar; de um "caminho de mandamentos são verdadeiros (imutáveis), fei-
verdade" (Gn 24.48) que leva certamente ao tos com verdade e retidão" (SI 111.7-8) cons- :

alvo; de uma "planta de verdade" (Jr 2.21), tituem a manifestação da aliança que funda-
da qual cumpre esperar bom fruto de uma "paz ; menta para sempre as relações de Iavé com seu
de verdade" (Jr 14.13), duradoura e efetiva. povo (cf SI 93.5). O Cristo é o servo dos
Para êle, as riquezas verdadeiras opõem-se às
que oferecem uma se-
—> circuncisos para manifestar a verdade
(fidelidade) de Deus, a fim de confirmar as
riquezas injustas, isto é,

gurança enganosa (Lc 16.11); a graça divina promessas feitas aos pais (Rm 15.8). O sentido
é verdadeira (IPe 5.12) porquanto oferece fun- da palavra verdade não deixa lugar a dúvidas,
damento seguro. Julgar segundo a verdade (Ez quando duas frases vizinhas manifestam-no cla-
18.8) não é apenas estabelecer a objetividade ramente "a incredulidade dêles aniquilará a fi-
:

dos fatos, mas, assim fazendo, libertar a verda- delidade de Deus?" (Rm 3.3) e "se a verdade
deira relação entre as partes e restituir sua base de Deus brilha por minha mentira para sua
firme a uma existência ameaçada (cf Pv 14. glória." (Rm 3.7). Vê-se que a verdade de
25). Deus não é senão sua fidelidade às promessas
Em
muitas passagens do NT, entretanto, "ver- feitas a Israel, e a mentira dos homens é não
dade" corresponde não à palavra hebraica, mas colocar sua fé em Deus. Se Jesus Cristo é cha-
à grega "aletheia" que, sem evocar qualquer mado o verdadeiro (Ap 3.7,14; 9.11), é por-
idéia de solidez ou fidelidade, exprime bem o
que êle cumpre, com respeito à Igreja e ao
fato de alguma coisa ser descoberta, não calada
mundo, os desígnios de Deus. salvando e jul-
gando.
e oculta, mas expressa e liberta das aparências
que a velam. Assim acontece nas epístolas pau- Logicamente a palavra verdade designa tam-
linas e também, frequente e sistematicamente, bém a palavra escrita, pela qual Deus está pre-
nos escritos de João. As duas concepções não sente no meio de seu povo lei de verdade ( Ne:

se excluem, mas são complementares e conver- 9.13; Ml 2.6), testemunho verdadeiro, julga-
gentes de tal maneira que nem sempre é fácil mento (= prescrições da lei) verdadeiro (SI
optar por uma ou outra. 19.8,10) ou a doutrina verdadeira, o Evangelho;
a palavra da verdade (Ef 1.13; Tg 1.18; cf
2. A palavra "verdade", no primeiro ou no se- Tt 1.9); publicar a verdade, é anunciar o
gundo sentido, entrou naturalmente no vocabu- Evangelho (2Co 4.2) obedecer à verdade, é
;
:

333 VERDADE

crer no Evangelho (Gl 5.7). O Evan-


gelho é também chamado de verdade, por oposi-
—> como escrevem nossas versões) comida e ver-
dadeira bebida (Jo 6.55). Opõem-se assim às
ção às heresias (lTm 6.5; 2Tm 4.4; Tt 1.14: comidas que perecem (Jo 6.27), nas quais o
2Pe 2.2), como Deus é chamado verdadeiro, por homem busca sua vida mas que não podem pre-
oposição aos ídolos (lTs 1.9; ljo 5.20). muní-lo contra a morte opõem-se as árvores
;

da vida sonhadas pela humanidade que não dei-


3. Principalmente no Evangelho e nas Epís-
xam de ser a expressão de sua cobiça quem :

tolas de João, onde são usadas muito frequente-


salva a vida é só Jesus, pois êle é a manifes-
mente, as palavras verdade e verdadeira guar-
tação, a presença de Deus para o homem todo :

dam sempre o sentido grego de aparição da :

sarmento cortado seca. E porque, em Jesus,


realidade, da essência mesma de uma coisa.
Deus encontra o homem, o julgamento do ho-
Verdade, para João, não significa em primeiro mem cumpre-se nesse encontro. O juízo de Deus
lugar, sustentáculo de uma existência ameaçada, é verdadeiro, porque o Pai que o enviou está
mas luzque sobre ela recai é a revelação, a
: com êle (Jo 8.16; cf 5.30). Não significa isto
realidade divina descoberta ao homem a fim de apenas que Jesus julga os homens equitativa-
livrá-lo da mentira de quem é prisioneiro, per- mente, posto que Deus lhe dá conhecimento ín-
mitir-lhe conhecer a Deus e, portanto, conhe- timo do homem, mas que, no encontro com o
cer-se a si mesmo. A Palavra, o Verbo, Jesus Cristo, representante de Deus mesmo, opera-se
Cristo, é a luz verdadeira, isto é, a luz de Deus a separação decisiva e definitiva dos que são
mesmo que alumia todo homem (Jo 1.9). salvos e dos que se perdem: o homem é julgado
Quando Jesus diz : "Eu digo a verdade, eu pela sua atitude com respeito a Cristo. Tudo
dou testemunho da verdade" (Jo 8.40,45s; 18. quanto Jesus diz de si próprio cabe na sua de-
37), não significa isto apenas que sua palavra claração :"Eu sou o caminho, a verdade e a
são conforme com a realidade, mas que consti- vida" (Jo 14.6) onde cada têrmo encontra-se
tuem a manifestação do próprio Deus, o evento explicado pelos dois outros Eu sou o caminho,
:

em que Deus aborda o homem para descobrir o acesso para Deus, porque eu sou a verdade,
sua mentira, —
a mentira em que o homem o próprio Deus presente para os homens e a
não escuta a Deus, deseja a morte de Jesus verdadeira luz na sua existência destarte, sou
;

em quem Deus lhe fala, almeja vida indepen eu a vida, isto é, aquêle que crer em mim
dente de Deus, e torna a si mesmo vítima do As- recuperará o lugar que lhe está destinado por
sassino de homens (Jo 8.37,40,44) e chamá- — Deus, onde a vida não mais é obieto de cobiça,
lo para a sumissão, achando desta forma a vida mas dom de Deus.
a verdade é a graça que torna o homem livre
do pecado, restituindo-o a Deus (Jo 8.32,34). 4. A verdade é a realidade divina. Por ter-se
Jesus é a Palavra cheia de graça e de verdade o homem fechado a ela, a verdade escapa ao
(Jo 1.14): a realidade divina, a graça outor- homem entregue a si mesmo, não pode ser
gada ao homem, acha- se plenamente revelada descoberta pelos processos dialéticos a partir
nèle. Jesus pode também dizer "Aquele que :
dos dados naturais da vida é um fato que ilus-
:

me enviou é verdadeiro e o que dêle ouvi, isso tram os mal-entendidos incessantemente provo-
falo ao mundo" (Jo 8.26; cf 7.28), declarando cados pelo testemunho de Jesus (ver por exem-
agir e falar em completa dependência de Deus plo Jo 3.4; 4.15). O pecado e a revolta do
e ser o seu autêntico representante : Deus está homem contra Deus fazem com que o homem
com não o deixa sozinho, isto é, age e fala
êle, não veja senão mentira ou pecado na própria
nêle. Xão cumpre procurar a Deus do lado revelação de Deus (Jo 8.48s; 9.24). Até mes-
ou fora de Jesus. Jesus procura a glória daquele mo os discípulos não podem "carregar" o que
que o enviou: por isso é que é verdadeiro (Jo Jesus lhes diz, e será mister que o Espírito de
7.18; cf 5.31). Jesus não é como o homem, verdade os conduza para a verdade cabal, que
ávido da própria glória e amigo apenas de si lhes faça conhecer a Jesus, que tome o que é
próprio tal homem torna mentira seu pensa-
:
de Jesus para dar-lhes (Jo 16.12-15) : o Es-
mento e sua vida. Jesus quer somente a Deus pírito fá-los-á lembrar as coisas ditas por Je-
e só ambiciona o confronto do homem com
sus, isto é, revelar-lhes-á a realidade divina (Jo
Deus portanto, êle é a verdade é a Deus que
: ;
14.26; cf ljo 2.20,27). (O mesmo pensamento
nós encontramos nêle. Pelo contrário, seus ad- expressa-se em têrmos diferentes em ICo 2.
versários não crêem nêle, pois recebem glória
6-16). O Espírito, como Jesus mesmo, é cha-
uns dos outros, procuram o fundamento estável mado "a verdade", demonstrando isso ser êle
em si mesmos, com a aprovação de seus seme- a realidade divina agindo na Revelação para
lhantes não cuidam de amar a Deus nem de
;
torná-la (a Revelação) conhecida e reconhe-
procurar a aprovação divina (Jo 5.41-44).
cida ; o Espírito é o poder divino, iluminador,
Jesus é o verdadeiro pão do céu, a cêpa ver- da 1'alavra. Não será talvez supérfluo anotar
dadeira (Jo 6.32; 15.1), sua carne e seu san- aqui que por "culto em espírito e em verdade"
gue são verdadeiros (e não verdadeiramente. (Jo 4.23s), não se entende absolutamente de
;

VESTIMENTA 339

um culto "espiritualizado", sem Bíblia nem sa- também o descobre, istoé, o revela. Esta reve-

cramentos, sem Igreja nem templo, somente lação permite em


primeiro lugar reconhecer,
feito de pensamentos sinceros do coração mas ; pelo hábito que leva, seu portador. Por esta
trata-se do culto conforme com a Revelação de razão o V.T. proibe ao homem levar vestimen-
Deus em Jesus Cristo tornado presente pelo Es- tas femininas como à mulher levar vestimentas
pírito.
masculinas (Dt 22.5; cf ICo 11.14s), e con-
sidera, pelo mesmo motivo, o disfarce como uma
5. O conhecimento da verdade não é teórico,
mas compro-
"existencial", vital, acarretando o
mentira (Gn 27; cf 2Co 11.14s; Mt 7.15):
misso do homem inteiro. O conhecimento que o hábito deve ser de tal forma revelador daquele
dá o Espírito, é que: "Jesus é o Cristo" (ljo que o traz, sendo uma fraude escolher uma
2.20-22; cf ICo 12.3). A despeito da fórmula vestimenta contrária a seu estado. O lôgro é.
aparentemente teórico-teológica, eis um conhe- aliás, sempre descoberto (cf. ISm 28.8ss; lRs
cimento essencialmente prático, que implica ilu- 14.1-6), ou falha seu objetivo (lRs 22.30-35;
minação e conversão: reconheça-se em Jesus 2Cr 35. 22s). Entre as vestes reveladoras, nota-
o caminho, a verdade e a vida, e abandone-se se a dos anjos (Lc 24.4; At 10.30, etc), do
qualquer revolta contra Deus. Conhecer a ver- profeta (Zc 13.4; Mt 3.4; 2Rs 1.8), dos reis
dade, é ser santificado por ela (Jo 17.17,19), (At 12.21; cf Mt 11.8). dos ricos (Tg 2.2),
arrancado da mentira e anexado a Deus. A ver- da viúva (Gn 38.14.19), da princeza ainda vir-
dade se conhece somente permanecendo em Je- gem (2Sm 13.18) dos leprosos (Lv 13.45), da
sus Cristo (Jo 8.31s), no latejar incessante da prostituta (Gn 38.14.19) etc. Na base de tal
fé. De forma bem mais concreta tal conheci- : concepção das vestes, é lógico que os sacerdo-
mento só é real numa vida submissa aos man- tes também levassem uma vestimenta distintiva
damentos. Aquele que diz "Eu conheço a
: cujos detalhes acham-se minuciosamente descri-
Deus',' e não guarda seus mandamentos, é men- tos (cf Ex 28; Lv 16.32; Ez 44.17). Ora, se
tiroso, e a verdade não está nêle aquele, entre-
;
a mulher cristã deve vestir-se com decência e
tanto, que guarda a sua palavra, o amor de simplicidade lTm 2.9-10: IPe 3.3), é para
Deus está verdadeiramente perfeito nêle" (ljo revelar por este fato que ela empenha sua honra
2.4s; cf 1.6). Mandamento e palavra, nesta e sua glória em adornar-se de boas obras antes
frase, sinónimos
são de fato, a palavra, ou
: que de pedras preciosas. O fato de as vestes
seja, o Evangelho, só é compreendida quando serem reveladoras daquêle que as traz é mar-
se discerne nela o chamado à obediência e quan- cado pela mudança de roupa paralelas às mu-
do a resposta é andar assim como Jesus Cristo
andou (ljo 2.6) em outros termos, fundamen-
;
danças de —> :
(

nome) aquêle que recebe um


paramento nòvo torna-se um nòvo homem (Zc
tando tôda a vida na Revelação, que é Jesus 3.3ss; Gn 41.42: cf Lc 8.35). Sabe-se da im-
Cristo. portância que a promessa de novas vestes bran-
CHR. SEXFT cas (cf Ap 6.11; 7.9, 13s 3.5,18; etc; cf
;

Ec 9.8) representou na prática batismal da


VESTIMENTA Igreja antiga. —
As vestes de Jesus também
revelam sua pessoa e sua missão a deslum-
Se a vestimenta não constituir um sinal
;

1. a)
brante claridade de sua vestes de transfigurado
de inocência (Gn 2.25) ou a alegria do dom de
(Mt 17.2), a brancura da roupa que lhe for-
si no amor (Cantares), a nudez do corpo é
nece Herodes (Lc 23.11), sua túnica sem cos-
vergonha que não se deve descobrir (cf Lv 18),
tura (Jo 19.23) ou o cinto que leva para apa-
mas muito pelo contrário recobri-la (cf Gn 9.
recer ao vidende (Ap 1.13; cf Ex 28.8) ates-
22ss). Por êste motivo o cristão deve zelar
tam seu posto de soberano sacrificador, como
cuidadosamente a fim de que cada um possa es-
o manto escarlate que lhe colocam os soldados
conder sua nudez (cf Mt 5.40; 25.35s; Lc
(Mt 27.28) atesta seu pósto de rei.
3.11; 6.29; Tg 2.15) como Deus escondeu a
do primeiro casal (Gn 3.21; cf Ez 16.8). Es- Porém as vestes não são apenas reveladoras
tar nu, na realidade, significa estar abandonado do que se é revelam outrossim o que se faz ou
;

(cf Lc 8.27) ou então castigado por Deus (Is o estado de espírito em que alguém se acha
3.22ss; Ez 16.39; At 19.16). Sem dúvida o veste-se o hábito das bodas (Is 49.18; Ap 19.
corpo é mais do que as vestes (Mt 6.25), e 8s; 21.2, etc), ou de luto (2Sm 14.2; Jn 3.8;
nem mesmo a nudez pode separar Jesus Cristo Mt 11.21), e o vestir de tais roupas pode ser
dos que lhe pertencem (Rm 8.35) entretanto ; considerado como obrigatório (Mt 22.11: cf
a vestimenta faz parte das carências vitais do Is 52.1). A fim de mostrar sua tristeza (Gn
homem, como a alimentação e o alojamento 37.34 etc), seu temor (2Rs 22.11), sua estu-
(Gn 28.20; Ex 21.10; 22.26ss: Dt 10.18; 24. pefação excessiva ou enfurecida Mt 26.65;
(

17; lTm 6.8).


At 14.14) ou seu arrependimento Jl 2.13), cm
b) Contudo a vestimenta não tem por finali- outros termos, para marcar o que se sente, do
dade exclusiva proteger e cobrir o homem ela : uma ou de outra forma, atingido no seu ser
340 VIDA

mais intimo, rasgam-se as vestes ; a fim de de salvação (Is 61.10) como o filho pródigo,
designar sua disponibilidade, cinge-se sua rou- por sua vez recebeu "a melhor roupa" (Lc 15.
pa (Ex 12.11). 22). Trata-se de vestir a roupa branca dos es-
colhidos (cf acima), ou seja: ser renovado em
c) Notamos que mudar de vestidos pode ser
seu ser completamente, ser de alguma forma
o sinal de uma mudança muito mais profunda,
recriado. Esta veste de salvação, que não ape-
atingindo em sua pessoa mesmo o que é espo-
nas cobre o homem, mas que se torna parte
liado e logo revestido, e que rasgar suas vestes
integrante de si mesmo, é Jesus Cristo (Rui
tem finalidade análoga. Isto é, para a Bíblia
— como para o homem antigo em geral as — 13.14), o nôvo Adão (Ef 4.24; Cl 3.10):
vestimo-lo no —>
batismo (Gl 3.27), que é
vestes fazem parte da personalidade daquele que
o despojo do homem revoltado, sem porvir, o
as leva o hábito participa do próprio ser de
;

homem antes de Jesus Cristo e, revestidos pelo


seu portador. Assim, quando Jonatas dá a Davi
;

homem nôvo, ressuscitados somos em Jesus Cris-


seu manto (ISm 18.4), é o sinal que se dedica
to (cf Rm
13.12s; Ef 4.22s; Cl 3.9). Os Pa-
êle próprio ao serviço de Davi, e se êste treme
dres viam neste revestimento do Cristo não so-
fortemente por ter cortado a orla do manto de
mente a aquisição da justiça divina e uma ante-
Saul (ISm 24.5ss), é porque teme ter esten-
cipação da glória por vir, mas ainda uma res-
dido a mão contra o ungido do Senhor. Nas
tauração do estado paradisíaco, no qual, pensa-
perspectiva também é mister compreender por-
que quando Arão morreu, não se confecionaram
vam eles, a nudez do primeiro casal posto
— —
que não estava consciente estava já reco-
novas vestes sacerdotais para seu filho Eleazar,
berta por uma "estola de santidade" (Irineu)
mas lhe deram as de seu pai (Ex 29.29; Nm ou por um "vestido de inocência" (Ambrósio).
20.26ss), ou porque Eliseu herdou o poder de
Elias herdando seu manto (2Rs 2.13s; cf v.
— Revestidos pois da salvação, os crentes de-
vem aquiescer a estas vestes escolhendo-as êles
7s). Igualmente nesta perspectiva é mister com-
próprios, especialmente sob a forma de arma-
preender o poder miraculoso das vestes de Je-
dura (Rm 13.12; Ef ó.llss; lTs 5.8ss) que
sus (Mt 9.21; 14.36) ou do apóstolo Paulo
lhes permitirá enfrentar o mundo e o Maligno
(At 19.12).
sem perder a inocência que lhes devolveu o per-
A
unidade entre o vestido e a pessoa que o
dão de Deus mas também sob sua forma de
;

leva manifesta-se ainda pelo fato tão frequen-


humildade (IPe 5.5) e de misericórdia (Cl
temente atestado, que para purificar-se intei-
3.12) que os tornará um povo pacífico e afe-
ramente, é preciso também lavar suas vestes
tuoso. Quanto aos que Jesus Cristo encarrega
(cf Ex 19.10; Lv 11.25, 40; 14.8.47; 15.8;
16.26,28; Ap 7.14.22,14), ou pelo fato de su-
de um —>
ministério particular, para que pos-
sam cumpri-lo, revesti-los-á ainda "do poder
jar sua roupa, é tornar-se imundo a si mesmo do alto" (Lc 24.49).
(Ap 3.4; cf 16.15) (ver também o paralelis-
mo entre as leis concernentes a lepra do corpo /. /. VON ALLMEN
e a das vestes, Lv 13s). VIDA
2. Se as vestes têm tal importância para o V.T.
pensamento bíblico, se estão ligadas a tal ponto
Quando o V.T. fala da vida do homem, per-
com quem as veste e reveladoras de quem as
manece no terreno material e concreto da exis-
traz, não deve causar espécie que os verbos
tência, sem buscar respostas abstratas a pro-
despojar (desvestir) e revestir tenham sido co- blemas teóricos sobre o destino dohomem ou a
locados em relação com a eleição, o batismo, a
filosofia de sua vida. O
estudo das palavras em-
vocação, a salvação e a vida cristã. Achar-se nu
pregadas permite compreender bastante bem o
diante de Deus, isto é apresentar-se diante dêle
sentido desta noção que difere um pouco da
sem a nudez culpada de Adão no jardim do expressa pelo nosso vocabulário habitual.
Eden, é o que se teme mais, posto que então
novamente, seríamos banidos do reino e da pre- 1 . A vida contém em primeiro lugar uma
sença de Deus, enquanto que se êle nos encon- idéia de unidade profunda do ser vivo. Nossas
trar revestidos, a habitação celeste nos será distinções entre vida física, vida intelectual e
franqueada (2Co 5.3ss). Somente esta nova vida não existem.
espiritual homem é um O
roupa que permitirá suportar o julgamento co- todo, absolutamente uno. Seu corpo e seu espí-
mo o avental de peles do primeiro casal (Gn rito, sua respiração e sua alma estão de tal
3.21) —apenas Deus pode dá-lo, e o homem maneira associados que uma das partes pode
designar a totalidade, sem nenhuma dificuldade.
sabe bem que as tangas de folhas as quais pode
confecionar êle mesmo (cf Gn 3.7), suas ten- É o caso de uma das palavras mais frequúen-
tativas de cobrir-se do olhar de Deus, são inca- temente empregadas para falar a respeito da
pazes de assegurar-lhe a salvação para poder ;
vida: a palavra hebraica néphcsch, cujo sentido
ficar na presença de Deus, é mister que o ho- primitivo provém do verbo: respirar, soprar, e
mem receba de seu pai celestial uma vestimenta que designa o alento vital manifestado, em todo
;:

VIDA 341

ser vivente, por meio da respiração. Deus deu prego do verbo viver nos textos. Viver signi-
vida ao homem soprando-lhe nas narinas o fôle- fica não somente existir, no sentido comum da
go de vida (Gn 2.7). Desta forma esta palavra palavra, mas ainda: reencontrar a vida, reviver
corresponde à nossa alma, em seu sentido ori-
: ou sobreviver, quando a fraqueza, a doença e a
ginal (de: anima, aquilo que vive), e não no morte atacam o vivo. Aquêle que morre de fome,
sentido espiritual e místico que lhe damos. Por vive quando encontra o alimento (Gn 43.8;
exemplo, esta alma, esta vida do homem, tem 2Rs 7.4) aquêle que é ameaçado de morte vive
sua sede no —>
sangue (Lv 17,1 1 Ut 12.23),
Numerosos textos do V.T., que nossas tradu-
.
;

quando é libertado (Gn 20.7) aquêle que está


;

doente, vive, quando recupera a saúde (Js 1.8;


ções vertem por alma", antes deveriam tradu- Nm 21.8-9; 2Rs 1.2; Is 38.9), de maneira que
zir-se por ''"rida" (ter a alma vazia ou sêca, o verbo viver significa sarar e voltar u vida
:

significa ter fome ou sêde, Nm


11.6; Is 29.8). após a morte, por uma restauração plena e
A mesma palavra vem a designar o
mem em sua totalidade, e poderia traduzir-se
ho- —> inteira das forças vitais. Não se pode falar de
vida quando se está doente, fraco, provado e
também, em muitos casos, pelo pronome pessoal infeliz.

cu, me, mim...


(SI 3.2 "muitos dizem da mi- Esta intensidade de vida chega a sobrepassar
nha alma" significa "muitos dizem de mim" a pessoa e estende-se a tudo o que lhe concerne
SI 103.1, "bendize, ó minha alma, ao Senhor"). a tudo o que ela possui, fora de seu corpo. Viver
Pode-se dizer a mesma coisa de outros termos é pois não somente gozar de boa saúde, mas é
(a carne, o corpo) que representam a totalida- também conhecer a abundância e a prosperi-
de e unidade do homem. A
vida forma uma uni- dade. A vida na pobreza e na miséria não é
dade que não pode ser dividida. Cada parte do realmente vida, para os homens do V.T. Aquê-
corpo (carne coração, sangue, etc tem uma ) le que conhece a vida possui a abundância dos
função total ao mesmo tempo física e psico- bens materiais e obtém sucesso em seus em-
lógica. preendimentos. Isto é real para o gado alimen-
tado com abundância dizia-se fazer viver seu
(

2. Uma
segunda noção contida na idéia da
:

gado, isto é, dar-lhe uma alimentação abundan-


vida é a do movimento e da ação. O verbo viver
te, 2Sm 12.3; Is 7.21-22) o mesmo para uma
;

(haya) parece ter, nas línguas semíticas, como nação ou uma cidade em ruínas, que foi recons-
origem, o sentido de uma contração muscular truída e torna-se próspera (Ne 4.2) porém é
por oposição à
significa
—>
morte cuja raiz verbal
afrouxar-se.
estender-se, vida é A
mais real para o homem cuja vida e prospe-
;

:
ridade se klentificam (Dt 8.1). Daí chegamos
pois uma tensão de todo o ser, animada de um à conclusão de que vida é sinónimo de felici-
poder que se manifesta pelo movimento. Não
é o fato passivo da existência mas a presença
dade e de —> paz (que não é a ausência da
guerra, mas a felicidade perfeita, o bem estar
de uma força ativa que move o homem e o e a ventura; eis o sentido da fórmula de sau-
impulsiona a movimentar-se. Confirma-se isto dação: a paz esteja contigo! Jz 19.20; lCr
pelo emprego do adjetivo vtvo, aplicado a coisa 12.18). Possuir a vida, é pois possuir o maior
não dotada de vida, mas animada de movimen- bem que possa existir (Jó 2.4) e o que o ho-
to : uma planta viva por oposição a
fala-se de mem deseja antes de tudo é ter uma vida longa,
uma planta sêca (SI 58.9), ainda mais, de uma porquanto tal palavra significa uma saciedade
água viva por oposição à água estagnada que de felicidade (lRs 3.11; Pr 3.16; SI 34.12;
não corre (Gn 26.19; Lv 14.5). Neste sentido 91.16). A forma de aclamação: viva o rei!
também o substantivo hayya designa um animal (ISm 10.24; 2Sm 16.16) expressa o desejo não
vivo, e especialmente um animal selvagem por só de uma prolongação da vida do rei, mas de
oposição ao animal doméstico, ao gado da tropa uma vida de paz, de prosperidade e de felici-
cuja existência é mais pacífica da dos animais dade, em suma de uma vida em sua plenitude. A
dos campos e dos bosques (Gn 7.14; 8.1; Lv infelicidade, a adversidade, a doença constituem
11.2). Os mortos não possuem mais êste poder sinais de morte ou de enfraquecimento do po-
ativo da vida e tornam-se seres muito fracos, der vital que conduz à morte.
sombras sem forças, habitantes da morada dos
mortos onde a vida continua num ritmo lentís- 4. Chegamos assim à idéia capital do V.T. a
simo (SI 88.10; Is 14.9-10; 26.14). respeito da vida. A plenitude da vida, identifi-
cando-se à felicidade do homem, não pode ser
3. Uma idéia mais
importante ainda ligada encarada fora de Deus. O que dá ao homem a
à noção de vida é a da plenitude e de intensi- verdadeira vida em sua totalidade é sua atitude
dade da vida. A palavra que corresponde a nosso em face da Lei de Deus. Qualquer que obedeça
substantivo vida, é quase sempre empregada
: aos mandamentos de Deus compromete-se no ca-
no V.T. na forma plural hayyim ou hayyn êste
:
;
minho da vida aqueloutro que é infiel à Lei do
;

número não indica uma pluralidade, mas uma Eterno, caminha na estrada da morte. Vida e
intensidade particular da vida, uma perfeição e morte chamam-se obediência e desobediência à
uma plenitude, fácil de ser precisada pelo em- vontade de Deus (ou à sabidoria de Deus, nos
.: :

342 VIDA

livros sapienciais; Provérbios, Eclesiastes), ou vida longa é a recompensa dos justos. Mas a
ainda o bem c o mal, não tomados no sentido morte violenta c prematura de um justo parecia
de uma noção moral abstrata, mas no sentido colocar em dúvida a justiça de Deus, e apre-
preciso do que está bem ou mal aos olhos de sentava um problema doloroso para a fé dos
Deus. Eis a razão pela qual a felicidade e a crentes. O livro de Jó é disto testemunha como-
prosperidade da vida constituem uma bênção de vedora, e a resposta a tal pergunta aparece ape-
Deus. Não só de pão vive o homem mas de nas confusamente. Precisas serão duras expe-
tudo que sai da bôca de Deus (Dt 8.3). O ho- riências de perseguição, de morte brutal dos
mem tem uma alternativa "Eis que coloco
: mais fiéis, sob a opressão dos impérios pagãos
diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal. . (gregos e romanos) para que nasça nos espí-
Eu te prescrevo a amar o Eterno e observar ritos a luz de uma esperança: a de uma
seus mandamentos, a fim de que vivas e te — ^> ressurreição dos mortos no final dos tem-
mutipliques e que o Eterno teu Deus te aben- pos, e do julgamento de Deus condenando uns
çoe... Disto dependem tua vida e o prolonga- e outorgando a outros a felicidade da vida eter-
mento de teus dias..." (Dt 30.15-20; cf tam- na no reino de Deus. A
vida eterna não será
bém 32.47; 28.1-14; SI 36.8-9; Pr 3.1-10. uma imortalidade do ser espiritual, pôsto que
etc). A vida é um dom de Deus, uma graça o homem todo passa pela morte. Tratar-se-á
que Êle concede, em sua plenitude, aos que o de uma nova vida, a partir da ressurreição no
amam e o obedecem. derradeiro dia, até a eternidade. Os dois únicos
Isto é somente possível porque o Eterno é textos que mencionam isto explicitamente são Is
o Deus da vida. É êle,, conforme expressão
frequente no V.T., o Deus vivo (Nm 14.28;
F. MICHAELI
N.T.
2Rs 2.2; Jr 10.10; Ez 20.31; 33.11). Tal fór-
mula tornou-se de uso corrente quando pronun- 1 .A palavra vida nas traduções do N.T.
ciava-se palavras solenes ou juramentos, às vê- corresponde a um dos três têrmos gregos
zes com abuso denunciado pelos profetas (Jr zoe, psychê e bios. O primeiro é bem mais
4.2; 5.2). Que significa ela? Dizer que Deus usado. O segundo, menos frequente, significa
é vivo quer dizer, que possui, mais do que o
homem, a vida em sua unidade, atividade e
exatamente —>
alma, da mesma forma que o
hebreu néphcsch, designa o alento de vida, o
plenitude. A vida de Deus não é apenas o que princípio de vida e por conseguinte o ser vi-
o distingue dos ídolos mortos (SI 115), mas vente, especialmente o ser humano (Mt 2.20;
o que o torna ativo. Deus é a vida e dá a vida 6.25; 10.39; Mc 3.4.; Lc 12.20; Jo 10.11;
não é um ser passivo num céu longínquo. Cria At 2.41). O terceiro, que é ainda menos co-
o mundo e o homem, fala, dirige, intervém na mum, aplica-se especialmente à vida considera-
história, pune, livra Dt 32.39; Is 57.14-18;
(
da em suas modalidades, ou seja nas circuns-
40.12-26; Ne 9.6). Todas as expressões ima- tâncias nas quais decorre (Lc 8.14; lTm 2.2)
gináveis que se relacionam à vida não podem ou nos recursos necessários para sua manuten-
ser entendidas senão na relação com Deus :a ção (Mc 12.44).
árvore da vida (Gn 2.9; 3.22; Pr 3.18), o
caminho da vida (SI 16.11), o manancial de 2. Se a noção que se tem da vida no V.T. a
vida (SI 36.9), o livro da vida (SI 69.28), o encerra geralmente nos limites dêste mundo, o
país da vida (Jó 28.13, a luz da vida (SI 56. mesmo não acontece no N.T. A —> —
ressur-
13). Naturalmente esta vida dada por Deus reição de Jesus por um lado, o dom do ]>
não pode ser outra senão vida na prosperidade, Espírito Santo por outro, renovaram profunda-
na felicidade e na paz, incluindo a longa dura- mente esta noção, dilatando as fronteiras dêste
ção (SI 103.3-5). conceito.

Isto não obstaculiza os autores do N.T. de


5. No antigo Israel, visto que a morte era a
falar da vida tal como a conhece a experiência
descida à morada das sombras, longe de Deus, comum. À
idéia de vida, associa-se assim a de
considerava-se bênção suprema um prolonga- movimento (At 17.28). Vivente é aquele que
mento dos dias do homem sobre a terra, antes é dotado de força e de eficácia (Rm 12.1 Hb ;

de juntar-se a seus pais ou a seu povo no túmu- 4.12; lPel.3). A vida é passageira (Tg4.14),
mulo 89.47-49; Gn 49.33). Alguns textos do confinada a um lapso de tempo determinado
V.T. parecem indicar, entretanto, em têrmos va- (Rm 7.1-3; Hb 9.17), sendo a —>
morte seu
gos e misteriosos, que o fiel podia conhecer uma término (Fp 1.20). Não se pode viver real-
vida perene junto a Deus (SI 16.10-11; 73. mente senão com boa saúde (Mc 5.23). A vida
22-28; Jó 19.25-26?). Constituem todavia uma
é o maior dos bens (Mc 8.36-37). O homem
excepção nos livros do V.T. Costumeiramente, pode dispor livremente dêste bem e viver a seu
encontra-se, pelo contrário, a crença de que o
prazer (Lc 15.13; Cl 3.7; 2Tm 3.12).
homem recebe no decurso da vida, sua retribui- Como no V.T., a vida e a morte não são
ção por parte de Deus, e que precisamente uma consideradas como fenómenos inseparáveis e
>

VIDA 343

sucedendo-se naturalmente. Não se fala dc um c a sua revelação em Cristo, pode tornar-nos


ponto de vista científico, porém do ponto de dignos dela (Mt 25.46; Mc 10.17, 29s Lc 10.
;

vista das relações do homem com Deus, à lux 23; Jo 5.29; 12.25; Rm 2.7; 6.22-23; cf Mt
da fé. Assim, sem esquecer que é necessário 7.13-14). Esta vida será outorgada por um ato
comer para viver, o N.T. declara que a vida de Deus, análogo àquêle da criação a ressur-
:

depende essencialmente de Deus (Mt 4.4; Lc reição, que não concerne somente a alma, mas
12.15; cf Jo 6.27), quem a dá (At 17.25,28). a pessoa humana em sua totalidade, visto que o
É efetivamente o Deus vivo (Mt 16.16; At 14. pensamento bíblico, diversamente do pensamento
15) e imortal (lTm 6.16; Ap 4.9-10), aquêle grego e ocidental, não concebe a existência hu-
que faz nascer tôdas as coisas para a vida mana desprovida de qualquer corporeidade.
(lTm 6.13). Pode também tirar a vida que Tudo isto porém não passará de especulações
deu (Lc 12.20) ou destruí-la (Mt 10.28). Con- religiosas, sem o evento que constitui a pedra de
clui-se que o homem é responsável pelo uso que ângulo (At 4.11; IPe 2.4; cf Rm 10.9; ICo
faz de sua vida diante de Deus, o juiz dos vivos 15.3s) do Evangelho: a ressurreição de Jesus
e dos mortos (Rm 14.7-12; IPe 4.5). Entre- Cristo de entre os mortos, pela qual a vida in-
tanto o N.T., diversamente do V.T., insiste corruptível foi manifestada (2Tm 1.10) e a es-
menos nas consequências imediatas da obediên- perança dos crentes fundada, de maneira que é
cia e da desobediência à vontade divina, do que uma esperança viva (IPe 1.3). Os primeiros
naquelas que aparecerão no —>
juízo final. cristãos saudaram nêste evento o primeiro ato
da salvação. A ressurreição do Cristo, pois,
corresponde à uma evolução geral do
Isto
constitui o começo de uma obra que deve final-
pensamento religioso de Israel. À medida que
mente abarcar todos os homens "todos serão
o povo viu escaparam-se-lhe, como consequên-
:

vivificados em Cristo, mas cada um por sua


cia de calamidades que caíram sobre êle, as
própria ordem" (ICo 15.22-23). Assim Cristo
bênçãos que sua fé aguardava, tendeu em trans-
pode ser chamado o "príncipe da vida" (At
ladar para o porvir, a manifestação da justiça 3.15), isto é o que vai à testa dos homens
divina, especialmente o socorro prometido a
e para conduzi-los à vida "o primogénito dentre
;

seu povo. O "dia do Senhor" tornou-se o ponto os mortos (Cl 1.18; cf At 13.33), destinado a
de convergência das preocupações das pessoas ser seguido por muitos irmãos (Rm 8.29).
pias, pois nêste dia, finalmente, conhecer-se-ia
a vida em sua plenitude. Assim, constitue-se 4. Recebe o benefício desta obra de salva-
se
uma noção da vida livre de todo o que turva
a existência atual onde não mais figuram a
ção pela
Deus em
—> fé: crendo no ato salvador de
Por isso o apóstolo
— ]> enfermidade, o
:

—>
sofrimento, a morte,
Jesus Cristo.
Paulo retoma (Rm 1.17; Gl 3.11) a palavra de
nem a causa profunda dos anteriores: o
pecado uma vida em que o homem compartilha-
;
— Habacuque (2.4) "O justo viverá pela fé".
;

"Aquêle que crer terá a vida" (lTm 1.16; Jo


rá da vida gloriosa de Deus, pois nada mais o 3.15-16).
separará dêle. Como o —>
reino de Deus,
com o qual se confunde, pode caracterizar-se
Quando? Levanta-se
aí, para o leitor do N.T.
um
pelas palavras:
— —>
justiça, —>
paz e
problema delicado. Efetivamente, a vida é
demonstrada aí, não somente como uma espe-
> alegria no Espírito Santo (Rm 14.17) e mas em diversas passagens também co-
também pela palavra —> glória (Rm 2.7;
rança,
mo realidade presente. Como acontece que os
2Co 3.11; 2Tm 2.10; IPe
Apenas esta vida merece,
5.1,4; cf
em suma,
Rm
o
3.23).
nome de
crentes que vivem ainda na —> carne (Fp 1.
22), isto é, nas condições de existência comum
vida, dispensa-se qualquer outra expressão
e
a todos os homens da terra, os quais pois espe-
mais precisa para designá-la. Contudo, chama- ram ainda sua ressurreição ou a transformação
se também vida eterna. Deve notar-se que êste
por vir, se tal evento intervém antes de sua
adjetivo indica, antes do que a duração infinita
desta vida, sua relação com o —>
tempo de
salvação onde ela deve manifestar-se. Eis por-
morte (ICo 15.50-57; lTs 4.13-18), possam
declarar-se já "ressurcitados com o Cristo"
(Cl 3.1) ou escrever: "Para nós, sabemos que
que é também chamada a vida que há dc vir
já passamos da morte para a vida" (ljo 4.14) ?
(lTm 4.8). Camparada a ela, a vida terrestre
É o que nos resta a explicar.
atual,dominada pelo pecado e pela morte, não
Concebe-se sem dificuldade que um renova-
deixa de ser fundamentalmente uma morte (Mt
8.22; Cl 2.13; lTm 5.6; Ap 3.1).
mento profundo produza-se na existência de
quem sabe que tomará parte um dia na vida
3. Está visto que Deus é o único que dispõe forma, vive de outra forma também. Alcançou
desta vida como da vida natural (At 13.38), e do Ressuscitado. Êle vê as coisas de outra
que os homens somente podem herdá-la (Mc já a vida eterna à qual foi chamado (lTm
10.17; Mt
19.29; Lc 10.25; Tt 3.7; IPe 3.7), 6.12), de certa forma nela participa. Outros-
recebê-la (Mc
10.30; Lc 18.30). Entretanto a sim a ideia de que os crentes conhecem de ora
atitude que agora tomamos com respeito a Deus em diante a vida eterna encontra-se incluída na
344 VIDA

maioria das noções alegadas para caracterizar mem esta mortificação, é porque sabem que
sua existência aluai. aquéle que ressuscitou o Senhor Jesus, ressus-
A palavra de Deus, isto é o evangelho da citá-los-á também com êle, e constatam que
morte e da ressurreição do Cristo, é uma pala- enquanto o ser exterior é destruído, o ser inte-
vra viva (Hb 4.12; IPe 1.23), uma palavra rior renova-se cada dia (2Co 4.10-18; cf. 6.-1-

de vida (At 7.38; cf Jo 6.63,68), uma semente 10). A morte torna-se assim indiferente ao
incorruptível que produziu a regeneração ( =
o apóstolo, pôsto que para êle o viver é Cristo
nôvo nascimento) dos crentes (IPe 1.23; cf (Fp 1.21) :pela sua vida ou pela sua morte,
1.3). Segue-se que o ministério da Palavra es- poderá glorificar a Cristo, e nada o poderá ja-
palha "um odor de vida que dá vida" (2Co mais separar de Cristo (lTs 5.10), nem do
2.16). amor de Deus manifestado em Cristo (Rm 8..
28-39). A morte lhe proporcionaria até um lu-
O Espírito vivifica (2Co 3.6). É um espí-
cro ( Fp 1.21): ela o aproximaria do Senhor
rito de vida, baixo o regime do qual, é-se liber-
tado da lei do pecado e da morte (Rm 8.1;
(2Co 5.6-8). Paulo, contudo, prefere com cer-
teza que o que há de mortal nêle seja absorvido
cf 8.13), e entre os carismas nos quais êse se
pela vida, sem que tenha que morrer (2Co 5.4).
manifesta figura o da cura (ICo 12.9). Êste
espírito não é outro senão do próprio Senhor
Pensa êle evidentemente no cumprimento final
(2Co 3.17; cf Gl 2.20), que ICo chama um 5. Deixamos intencionalmente de lado, para
"Espírito vivificante". A presença ativa do Es- examiná-los à parte, os escritos joaninos, por-
pírito nos corações constitui apenas as primícios
quanto os mesmos testemunham de um modo
(Rm 8.23), as —> arras (2 Co 1.22; 5.5) da
plenitude de vida para a qual os crentes estão
mais radical ainda, que em Cristo, acede-sc
desde agora à vida eterna.
destinados. Os que vivem pelo Espírito estão
Constatemos primeiramente que a noção de
comprometidos a andar também segundo o Es-
pírito (Gl 5.25), a semear para o Espírito, a
vida ocupa um lugar primordial desta forma a
:

primeira epístola termina declarando que o


fim de colher, no tempo devido, do Espírito a
Deus de Jesus Cristo é o Deus verdadeiro e
vida eterna (Gl 6.8-9).
a vida eterna (5.20), e a primeira conclusão
As relações que anotámos entre o Espírito e
do Evangelho diz que esta obra foi escrita a
a vida encontram-se quando Paulo fala em Rm fim de que seus leitores creiam que Jesus é o
6 sôbre a comunhão com Cristo instaurada pelo Cristo, o Filho de Deus e que, crendo nêle.
—> batismo (que Tito 3.5 chama de batismo tenham a vida em seu nome (20.31). Efeti vã-
de regeneração). Recebendo êste sacramento, os mente, como o Pai tem vida em si mesmo, deu-
crentes reconhecem que o Cristo morreu por lha também a seu Filho para ter a vida em si
eles e que êles estão mortos em Cristo, a fim de mesmo Jo 5.26). O Filho vivifica aquêles que
(

que como Cristo ressuscitou dos mortos, êles quer (Jo 5.21). É êle o pão da vida (Jo 6.
também vivem uma vida nova (literalmente: em 35,48). Dá êle de beber a água da vida (Jo
novidade de vida, Rm 6.4). O apóstolo não diz 4.10). Pôsto que êle conduz ao Pai e revela-o,
que êles estão ressuscitados, porém somente que é êle a vida (Jo 14.6). A fé dá acesso à vida
são mortos a fim de viver para Deus, como o que está nêle (Jo 3.15-16; 6.40,47; 20.31;
Cristo com o qual tornaram-se uma mesma ljo 3.14). Eu sou a ressurreição e a vida;
planta. Assim terão êles parte finalmente da quem crê em mim ainda que csffja morto, vi-
dádiva de Deus: a vida eterna (Rm 6.23). As verá, e todo o que vive e crê cm mim não mor-
Epístolas aos Efésios e aos Colossenses vão rerá eternamente (Jo 11.25-26). A fé obtém a
mais longe e afirmam a ressurreição dos fiéis vida escutando as palavras do Cristo (Jo 5.24;
como um fato cumprido (Ef. 2.5-6; Cl 2.12-13; cf 6.63,68) e submetendo-se ao mandamento de
3.1), sem deixar entretanto de notar que esta amor (Jo 12.50; cf ljo 2.17; Jo 13.34; 15.12;
ressurreição fica, pelo momento, oculta junto ljo 2.7-10). O sinal de que passamos da mor-
com o Cristo, em Deus (Cl 3.3) e que a rique- te para a vida, é precisamente que amemos nos-
za transbordante da graça de Deus só irrom- sos irmãos (ljo 3.14). Esta passagem é se-
perá nos séculos vindouros (Ef 2.7). Notemos melhante a um nascimento, cuja origem está
ainda que tais afirmações não implicam a que os em Deus (Jo 1.13; ljo 2.29; 3.9; 4.7; 5.1.
crentes devam descansar a respeito do que sd 4,18). Êste é o nascimento mencionado por Je-
tornaram na fé, mas viver de uma maneira sus quando fala de "nascer do alto" ou de "nas-
digna desta graça (Ef 4.1) ; o imperativo vem cer da água e do Espírito" (Jo 3.3-8). Estas
logo após do indicativo (Cl 3.2, 5s). Eis por- expressões relacionam o nôvo nascimento com o
que o apóstolo e seus companheiros, suportan- batismo e a dádiva do Espírito Santo.
do na obediência os sofrimentos ligados a seu Nos escritos joaninos, a vida eterna não é
ministério, levam sempre em seus corpos a mor- pois, em primeira intenção, um bem do porvir.
te de Jesus a fim de que também a vida de Aquêle que crê, que escuta a palavra do Cristo,
forma alguma, ou Jesus Cristo (ICo 3.10-11), que ama com o amor de Cristo, tem já agora
Jesus seja neles manifestada. Se êles não te- a vida eterna. Não mais entra em juízo, mas
. >

VIDEIRA 345

passou da morte a durar até no mundo futuro, descrevendo a esperança e a ira do esposo
cuja vinda não está colocada em dúvida, nada (existe no V.T. uma tríade Israel-espôsa-vi-
de importante acrescentar-se-á ao que os fiéis nha). O salmo 80 mostra-nos esta videira ar-
já possuem na fé e obediência ao Cristo. O rancada do Egito Is 5 frisa que é uma planta
;

que são desde o presente será simplesmente ma- preciosa; (cf Jr 2.21), porém Ez 15.2 toma
nifestado (ljo 3.1-2). A espera é pois aliviada, cuidado de recordar que a videira só tem valor
pôsto que já colmada: o crente pode pois co- pelo por ela mesma é apenas um
seu fruto ;

nhecer desde agora uma alegria perfeita (Jo pau comum com o qual só pode-se fazer fogo.
15.11; 17.13, etc.) e uma paz incomparável Todos sublinham que Iavé esperou um bom
(Jo 14.27; 16.33). fruto da videira. Por esta razão plantou-a num
A
diferença surpreendente que acabamos de lugar fértil (Ez 19.10 e Is 5.1), afastou tudo
notar entre o ensino de Paulo e o de João não o que poderia prejudicá-la, e fielmente a cui-
é, enfim, tão considerável como parece no pri- dou. Iavé foi bom e fiel com ela, é o tema
meiro contato. Manifesta ela apenas a dife- do amor de Iavé. Únicamente Os. 9.10 e talvez
rença de temperamento que separa as duas tes- o SI. 80 (contudo se os profetas expressam o
temunhas do mesmo evangelho. O primeiro é ponto de vista de Iavé sôbre sua videira, o
um homem de ação voltado para a finalidade, salmo 80 expressa o ponto de vista da videira)
o outro um contemplativo atento ao que é. O afirmam que Iavé foi por um momento refres-
primeiro considera, desta forma, principalmente cado por sua videira no deserto. Porém todos
:

o que resultará da obra prodigiosa que Deus são unânimes em afirmar que na época profética
empreendeu em Cristo e para a qual êle está os frutos são maus. Ressoa então o grito de
a participar ativamente, verdadeira recriação Jr 2.21: "Como é possível?". Trata-se agora
do mundo; o outro está colmado pela vista do do tema da incompreensível desobediência de
que Deus já fêz em Cristo e seu olhar de Israel, o mistério da iniquidade. A boa videira
crente penetra tão profundamente além das apa- plantada por um bom proprietário que a cercou
rências que, a seu ver, tudo já está cumprido. de excelentes cuidados, deu maus frutos. Em
consequência Iavé devastará sua videira pois

VIDEIRA
1. BURNIER ela não era boa — ;

sua bondade era apenas


ilusória e efémera como o orvalho da madru-
gada (Os 6.4). É mistér uma outra planta,
vr.
mas uma planta que Iavé mesmo criará. Eis a
Quiçás fôsse uma videira a árvore de vida razão pela qual Jesus se apresentará como a
(
—> Vinho). De todas formas, a videira é a
árvore do país messiânico, junto com a figueira
videira verdadeira que não degenerará em vi-
deira estranha.
e a oliveira Mq 4.4; Zc 3.10). Para as reli-
(

giões ambientes a videira tem um caráter sa-


N. B. —
Faz-se mistér assinalar que nas re-
ligiõesmesopotâmicas, o rei guardião da árvore
grado cjuase divino (encontramos o eco em Dt da vida (na maioria das vêzes um cedro) era
z2.9 onde uma observação agrária aparece sa- frequentemente confundido com ela. Encontra-
cralizada )
mos esta assimilação de um rei e uma árvore
no VT (Is 53.2-8, c especialmente SI 80.15-29).
1 . A vinha é um sinal
Sinal de propriedade.
de propriedade confunde-se muitas vêzes com
;

terreno. É um dos bens mais preciosos que o NT.


homem possa ter paralelamente com a esposa
:
Em Mt 21.28-46, reencontramos êste tema
e os fnnos. O que Acabe fêz a Nabote pode de umoutro povo, contudo a videira é idêntica:
ser comparado ao que Davi fêz a Urías, não só é o reino de Deus o qual, confiado aos judeus
por causa cio assassínio mas também por causa passará às mãos da Igreja.
do roubo. Kstar debaixo de sua videira é gozar Porém o texto magno é Jo 15 onde Cristo
do —>
descanso perfeito: aquêle que se gozará
uo pais messiânico ( Mq 4.4).
apresenta-se como a videira verdadeira, quer
como videira plantada novamente, quer como
a videira que a primeira anunciou; de tôdas
2. Vinha-Israel. A vinha designa também Is-
as maneiras como o cumprimento de Deus plan-
rael como propriedade de Deus. ftste tema de ta. i!o sua vinda (possivelmente Jo 15 está ins-
" Israel- Yinha-de-Deus", constante entre os pro- pirado no SI 80.14ss onde a videira e o Filho
fetas, demonstra primeiramente o caráter pre- do Homem estão em paralelismo). O Cristo
cioso de Israel diante dos olhos de Iavé, o des- apresenta-se neste texto como o verdadeiro povo
canso que ai desejou encontrar e o fruto que e não somente o sustento dêste novo povo, como
esperava dêle. Constitui o mistério da
—> — deixa entrever a tradução, a nosso ver errónea:
eleição de Israel, e da aliança que Deus a verdadeira cêpa. Temos aqui uma concepção
fêz com êste povo antes que com outro, aliança "comunitária" do Cristo. Quanto ao sarmento,
da qual é Senhor. É um verdadeiro cântico de não tem qualquer possibilidade fora da vinha
bodas que entoa Isaías no começo do capítulo 5, senão de secar, pôsto que (cf Ez 15) é somente
. .
: :

346 VINHO

válido pelo seu fruto. Há, outrossim, três pos- nosor não c a alegria de Nebo que desejam
;

sibilidades para o sarmento: 1.°) estar cm Je- compartilhar, mas apenas a de lavé).
sus, mas é uma posição estática, e que deve ra-
pidamente conduzir à uma das seguintes posi-
É também um sinal de —> aliança e da
alegria que daí decorre também da aliança que
;

ções, 2.°) permanecer em Jesus: levar fruto e


ser podado, 3.°) estar separado do tronco por- :
fazem os homens entre si ( — ^> Refeição e
Gn 14.18-20) e da aliança feita por Deus com
que não leva fruto, e condenado a secar e ser os homens; usa-se, portanto, o vinho no sacri-
queimado. fício perpétuo (Ex 29.38ss; Nm
15.5) e ocupa
Estar em Jesus significa sem dúvida ser ba- lugar de destaque nas festas (Lv 23.13).
tizado enquanto que permanecer em Jesus sig- 3. Vinho e instalação. Beber seu próprio vi-
nifica amar, guardar os mandamentos, a pala- nho será uma grande bênção pelo contrário, não
;

vra (cf v. 9: permanecei em meu amor). aproveitar do fruto de sua vinha é considerado
como uma imensa calamidade Sf 1.13). No
A. MAILLOT primeiro caso( alegremente se deve aproveitar
VINHO tudo o qq£ Deus dá. Beber vinho, e espcial-
mente beber o seu vinho vem a ser um sinal
VT. de —> repouso, de instalação; já nos encon-
tramos no país messiânico. Eis porque todo
O predileição por dois termos, um
V.T. tem
asceta anunciando que ainda não é a hora, abs-
dêles podendo ser interpretado por vinho, o ou-
ter-se-á de vinho. Os recabitas, fiéis ao estado
tro por môsto, (há outros termos, porém pre-
nómade, que constituía para êles e para profe-
cisam apenas os tipos de vinho, ou seu teor
tas como Oséias, o estado messiânico, abster-
de álcool).
se-ão de vinho ;desta maneira anunciam que,

1 . A
etimologia é hesitante, contudo em neo- mesmo em Canaã, os israelitas continuam sendo
sumeriano, a palavra vinho contém um elemen- peregrinos e viageiros (Jr. 35). Eis porque
to que significa vida, e no panteão súmero-aca-
também, durante o seu noviciado, os narozeus
abster-se-ão de vinho. Eis porque João Batista
diano, conhecemos uma deusa chamada 'Vinho
do céu" —
"Vinho" —
"Mãe do vinho", re-
presentando ao mesmo tempo o vinho e a vinha.
também não beberá vinho (para João, como
para os recabitas e Oséias, vigora a disciplina
Da mesma maneira há uma deusa do mosto, do "deserto").
cujo nome sumeriano é Siris, (equivalente à 4. Vinho c vida. Porém o vinho está tam-
palavra hebraica,
dos deuses personificada.
=
môsto) e Siris é a vida bém estreitamente ligado a —> vida. Sem
dúvida temos aqui o símbolo primitivo do qual
(

decorrem os demais, embora seja difícil expli-


2. Vinho e alegria. Para o V.T. o vinho é car como). Recordemos o têrmo sumeriano.
um dos dons mais significativos que Deus tem M. Dhorme (RB 1907, p 271) pretende, com
feito ao homem (Gn 49. lis 27.28 SI 104. 15 )
; base, que a árvore da vida era uma videira. Se
—>
;

Pode até ser compreendido como o símbolo de o pão sustenta a vida presente, o vinho
todos estes dons. Mas sobretudo o VT ressalta proporciona, um instante, ao homem pela ebrie-
a finalidade do vinho: é para a
dos homens que é dado (SI 104.15; Ec 9.7; cf.
—>
alegria dade (que não constitui a embriaguez condena-

da pela Bíblia) uma outra vida abre-lhe a
Eclesiástico (Siracídes) 31.25-31, especialmente porta custodiada pelo anjo de espada reluzente
versículo 27). Deve o vinho consolar da mal- Porém existe aqui uma ambiguidade manifes-
dição que pesa sobre a terra e sôbre o trabalho tada por duas tendências. Enquanto evoca esta
da terra. Pelo menos isso se pode depreender outra vida, a ebriedade tem sido considerada
dos dois textos seguintes: Gn 5.29 e 9.20-27. quase com simpatia (Pv 31.6; Zc 9.15; 10.7;
Em 5.29, o nome Noé provém sem dúvida de Eclesiástico (Sir.) 31.27). Enquanto representa
uma raiz "repousar". A tradução dos o LXX a vontade demoníaca de se apoderar da vida.
interpreta como proveniente da raiz consolar foi reprovada, pois é efémera, enganadora o :

Noé "consolará", ou descansará, é nos dito, da anjo guarda bem à árvore da vida Am
maledição que pesa sôbre a terra alusão ao— Is. 5.11; 28.1; Hb2.15; cf também Lv 10.9-10.
8.8:

fato que será o primeiro a plantar a videira e onde o vinho é proibido aos aaronidas antes de
a provar os efeitos: Gn 9.20-27 além disso o entrar no tabernáculo do testemunho enfim cf
;

Noé babilónico, Uta-Naphishtim, conhece a Ef 5.18 onde estar cheio de vinho é contrário
planta que prolongará a vida) a estar cheio do Espírito Santo). Notemos sim-
O vinho alegra o próprio Deus (Jz 9.13). plesmente o caráter bem escatológico do vinho
A alegria que êle proporciona é pois um qui- ligrado à terra de promissão, à alegria futura, à
nhão de alegria divina, e também conforme ve- vida futura. Eis porque uma abstinência de
remos mais adiante, da vida divina. (Esta é, vinho é bem lícita, porém deve ser ela feita na
precisamente, a razão pela qual Daniel e seus esperança do reino por vir e não por uma
companheiros abstêm-se do vinho de Nabucodo- crítica ao vinho em si.
VINHO 347

5. VúiJu) e sangue. Em Babilónia e possivel- esgotada já, os judeus não podem mais provar
mente em Canaã, considerava-se que a uva (as- a nova, embora bem melhor). O cálice da
sim como o grão de trigo) para dar o vinho, —> eucaristia é o cálice da nova aliança.
era votada à morte no sofrimento, e, desta Do mesmo modo o cálice da ceia está em
morte sofredora, surgia o vinho da vida. O vi- ligação íntima com a alegria, o sangue, o reino.
nho passou a ser comparado ao —
]> sangue,
analogia favorecida pela côr (Dt 32.14) e pelo
especialmente em Lc 22.14-20, o qual, distin-
guindo dois cálices permite melhor perceber to-
fato especial de serem vinho e sangue direta- dos êstes matizes.
mente ligados à vida. Vinho, sangue, vida for- :

Em conclusão, frequentemente supôs-se que a


mam uma tríade. O vinho, sangue da videira única razão pela qual o Cristo recusou o vinho
(Dt 32.14) poderá ser o substituto do sangue
quando na cruz, era que não queria que seus
de uma vítima (Dt 32.38). Em Babilónia, liba-
sofrimentos fossem minimizados ; Marcos efe-
ção do vinho e sacrifício sangrento podiam ser
tivamente nos relata que êste vinho estava
idênticos; c o vinho podia ser misturado ao
misturado com mirra ( Mt. tomando outro ponto
sangue (porém em contra SI. 16.4).
de vista no episódio, no intuito de fazê-lo con-
6. Diversos. O vinho, é também o "fruto" formar com o V.T. — SI 69.21 — misturou-o
do povo ( —>Videira). Êste vinho pode ain-
da estar em íntima ligação com a ira (Jr 25.
com fel). A recusa do Cristo, porém, não obede-
ceria ao fato de ter-se comprometido a não
15), quer por antítese, ou por alusão ao ordá- beber vinho, antes de tomá-lo nôvo no Reino?
lio o vinho é bom, mas o pecado dos que o
:
De tôdas as formas, é curioso observar que
beberão faz do vinho um vinho de ira. Jesus Cristo oferece ao homem vinho como si-
nal de seu sofrimento e que o homem ofereça
N.T. ao Cristo vinho para que êste sofrimento seja
Encontramos idênticas ligações com a ale- diminuído. Êstes dois vinhos forçosamente eram
por
gria, a aliança, o sangue, a vida e o reino excluídos por aquêle que, dando seu sangue,
vir. O
nôvo vinho de Mt 9.17, representa a reabriria as portas que conduzem à árvore da
nova aliança que provocou o rompimento dos vida, porque é êle próprio a videira verdadeira,
limites que aprisionavam a antiga. Os dois vi- a verdadeira árvore da vida.
nhos de Jo 2 podem cada um representar uma
aliança (embriagados da antiga aliança, muito A. MAILLOT
ÍNDICE
ABRAÃO —> Nomes Próprios CONSAGRAR —> (Ministério, Ungir,
ADORAÇÃO — > (Eleição, Israel) ... 11 Sacrifício, Santo)
ADVENTO —> (Cumprir, Juízo) .... 11 CONSULTAR — > Buscar
AFLIÇÃO — > Perseguir CONTEMPLAR — > Ver
AGUA > (Deserto, Graça, Boi is mo) 13 CONVERSÃO — > Arrependimento
ALEGRIA 14 CORAÇÃO — > Homem
ALIANÇA —> (Justo, Pecado) 16 CRESCER 58
ALMA — > Homem CRIAÇÃO 60
AMÉM _> (Verdade) 19 CRISTO—> Jesus
AMOR — > Perdão, Próximo, Eleição .. 20 CRUZ —> (Morte, Sacrifício) 62
ANCIÕES — > NT
Ministério CULTO — > (Festa, Serro, Ministério) 64
ANDAR — > (Caminho) 23 CUMPRIR — > (Escrituras, Advento) .. 66
ANJO > Demónios)
(Autoridade, 24 DAVI — > Nomes Próprios
APÓSTOLO — > (Dose, Ministério, DECÁLOGO — > Lei
Paulo) 26 DECRETO — > Lei
ARÃO — > Sacerdócio DEMÓNIOS — > (Diabo, Autoridades,
ARCA — > (Lei, Guerra) 28 ídolos) 67
ARRAS 29 DERRADEIRO — > Tempo
ARREPENDIMENTO — > (Batismo, DERROTA _> Guerra
Pecado) 30 DESCANSO — > (Domingo) 68
ASCENSÃO — > (Glória) 31 DESCENDENTE — > Família, Geração
AUTORIDADES — > (Anjo, Diabo, DESCER — > Mundo)
(Egito, 69
Céu) 32 DESERTO — > Nomes Geográficos
BABILÓNIA — > Nomes Geográficos DEUS — > (Aliança,Um) Jesus, 70
BATISMO — > Novo, (Água,Mor- Crus, DEVER — > Obedecer
te, Circuncisão) 36 DEZ — > Números
BEM > (Dinheiro, Justo, Bênção) . . 39 DIABO 77
BEM-AVENTURADO 41 DIÁCONO — > Ministério NT
BÊNÇÃO > (Dinheiro, Aliança) 42 DIÁSPORAS —> Judeus
BISPO —> Ministério DINHEIRO — > (Autoridades, Bênção) 79
BLASFÉMIA — > (Pecado, Maldição) . .
42 DIREITA 83
BUSCAR — > (Oração) 43 DIREITO — > (Lei, Juízo, Aliança) ... 83
CÁLICE — > (Sangue, Eucaristia, Vinho) 44 DISCERNIMENTO — > Espírito
CAMINHO — > (Andar, Lei) 44 DISCÍPULO — > (Doutrina, Pregar) .. 85
CANAÃ — > Nomes Geográficos DIVÓRCIO — > Matrimónio
CÂNTICO — > Hino DOMINGO — > Festas
CEIA — > Refeição DOMINAÇÕES — > Autoridades
CEIA —>
(Santa) Eucaristia DOUTRINA — > (Pregar, Discípulos) 86
CÉU — > (Anjo, Autoridade) 46 DOZE — > (Apóstolos, Números)
CHAMAR > (Eleição, Fé, Ministério) 48 EDIFICAR — > (Templo, Reino, Igreja) 87
CIDADE — > (Igreja, Reino, Templo) 52 EGITO — > Nomes Geográficos
CIRCUNCISÃO — > (Aliança, Batismo, ELEGER — > (Israel, Chamar, Amor) 89
v^Sêlo) 53 ELIAS — > Nomes Próprios
COBIÇAR — > (Homem, Pecado) .... 54 ENFERMIDADE — .
> (Morte, Pecado,
CONFESSAR — > (Juízo) 55 Milagre) 94
CONHECER — > (Fé, Ver, Eleição, ENVIAR —
> (Apóstolos, Ministério) .. 95
Amor) 56 ESCÂNDALO 96
CÓLERA — > ( Maldição, Cálice, Juízo) 58 ESCRAVO —
> (Servo) 97
ESCRITURA —> (Lei, Cumprir, Pro- MALDIÇÃO —> (Bênção) 180
feta) 98 MÃE —> Família
ESPERAR —> (Fe, Advento) 100 MÃO —> Direita, Imposição
ESPÍRITO SANTO —> (Palavra, Re- MAR — > Nomes Geográficos
velação) 102 MARIA — > Nomes Próprios
ESPÍRITOS— > Demónios MÁRTIR — > Testemunho
ETERNIDADE — > Tempo MATRIMÓNIO — > (Mulher, Ministé-
EUCARISTIA — > (Aliança, Páscoa, rio) 181
Um, Refeição, Reino) 104 MAU — > Demónios)
(ídolos, 185
EVANGELHO — > (Graça, Pé, Pregar) 107 MENTIRA — > (Verdade) 187
FACE > (Nome, Ver)
Glória, 109 MÉRITO — > Recompensa
FAMÍLIA — > (Matrimónio) 110 MILAGRE — > (Glória) 189
FÉ — > (Evangelho, Obedecer) 112 MINISTÉRIO — > (Imposição das mãos,,
FESTAS — > (Sacrifício, Culto) 114 Ungir, Pastor, Edificar) 192
GEENA — > (Cólera, Morte) 118 MISSÃO — Nações
]> Enviar,
GERAÇÃO 119 MISTÉRIO 197
GLÓRIA 120 MOISÉS — > Nomes Próprios
GRAÇA —
> (Eleição, Perdão, Paz) . . 123 MONTE — > Nomes Geográficos
GUERRA —
> (Paz) 125 MORTE 199
HAR-MAGEDAO > Nomes— Geográ- MULHER 202
ficos MULTIDÃO 204
HERANÇA —> (Promessa, Adoção, MUNDO 204
Reino) 128 NAÇÕES > (Mundo) 208
HINO —> (Culto, P estas) 131 NOME —GEOGRÁFICOS
> (Eleger, Conhecer) 212
HIPOCRISIA —> Mentira NOMES 214
HOLOCAUSTO — > Sacrifício NOMES PRÓPRIOS 219
HOMEM 132 NÔVO 228
HORA — > Tempo NÚMEROS 229
ÍDOLOS — > (Mentira) 136 OBEDECER 232
IGREJA — > UM,
(Edificar, Templo, OBRAS 233
Pastor, Reino) 138 ORAÇÃO 234
IMAGENS — > (ídolos) 142 OURO —> Dinheiro
IMITAR — > Seguir PAI —> Família, Deus
IMPOSIÇÃO DAS MÃOOS — > (Mi- PALAVRA 239
nistério, Bispo) 144 PÃO 241
INCREDULIDADE — > Fe PARÁBOLA 242
INFERNO — > Mundo, Morte PARAÍSO—> Morte, Vida
IRMÃO — > Família, Geração PÁSCOA —> Festas, Ressurreição
ISRAEL 145 PASTOR 243
JEJUM 149 PAULO — > Nomes Próprios
JERUSALÉM — > Nomes Geográficos PAZ 244
JESUS —> (Servo, Sacrifício) 150 PECADO 246
JORDÃO — > Nomes Geográficos PEDRO — > Nomes Próprios
JUDEUS — > (Israel, Templo, Eleger, PENHOR — > Arras
Aliança, Promessa) . . 159 PERDÃO 249
JUÍZO — >
%
(Remanescente, Perdão) .. 162 PERMANECER 251
JURAMENTO 166 PERSEGUIR 252
JUSTO — > (Juízo, Jesus) 167 PIEDADE 253
LAVAR > (Puro, Batismo) 170 POBRE 254
LEI — > (Escrituras) 171 PODÊRES —> Autoridades
LEVITA — > VT
Ministério POMBA 255
LEVIRATO — > Família, Matrimónio PORTA 256
LIBERDADE — > (Aliança, Eleição) . . 176 POVO 256
LINHAGEM — > Família, Geração PREDESTINAR —> Eleição
LÍNGUA 178 PREGAR 258
LUZ — > (Palavra, Ver) 179 PRIMÍCIAS —> Arras, Sacrifícios VT
MAL — > Bem, Pecado PRODÍGIO _> Milagre
PROFECIA 260 SANTIFICAR —> Puao. Santo
PROMESSA 263 SANTO 305
PROVAR —
> Tentação SATANÁS —> Diabo
PRÓXIMO 265 SÉCULO — > Tempo
PURO 266 SEDUZIR — > Tentação
RAÇA —
> Mações SEGUIR 307
RECOMPENSA 270 SÊLO 308
RECONCILIAÇÃO 271 SERVIR —> Culto
REDENÇÃO — > Resgatar SIÃO — > Nomes Geográficos
REFEIÇÃO 273 SOFRER 311
REGENERAR — > Novo, Batismo, Vi- SOMBRA 312
da, Palavra SONHO 313
REI — > Jesus, Ministérios VT TEMPLO 318
REINAR — > Reino TENTAÇÃO 123

REINO 274 TERAFINS —> ídolos VT


REINO > (Evangelho, Parábolas) ... 274 TESTEMUNHA 325
REMANESCENTE 277 TRABALHO 326
RENOVAR > Novo— TRADIÇÃO
TRANSFIGURAÇÃO
327
RESGATAR 280 329
RESSURREIÇÃO 281 TREVAS —
> Luz
RESSURREIÇÃO —> (Morte, Apósto- TRIBULAÇÕES — > Perseguir
los, Vida) 281 TRONOS —
> Autoridades
REUNIR
REVELAÇÃO

> Enviar, UM UM
UNGIR
330
332
283
REVESTIR —
> Vestimenta UNIDADE — > Um
SABEDORIA 288 VENCER 333
SÁBADO —
> Festas VER
VERDADE
334
SACERDÓCIO 291 337
SACRIFÍCIOS 295 VESTIMENTA 339
SALOMÃO —
> Nomes Próprios VIDA 340
SALVAÇÃO 300 VIDEIRA 345
SALVAR —
> Jesus, Salvação VINHO 346
SANGUE 303 VIRGEM _> Maria
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1 1012 01172 4962

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