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MARC BLOCH
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PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
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CAPITULO I
L - A opção do historiador
*
No século X da nossa era, um golfo .profundo, o Zwin,
recortava a casta flamenga. Depois, assoret'lu-se. Em que
secção do conhecimento ·havemos de situar o estudo deste
INTRODUÇAO A HISTORIA
*
Do carácter da his~ória como conhecimento dos homens
decorre a sua posição :particular perante o problema da
expressão. :E: a história «ciência» ou «arte»? Os nossos
Nsavós, por volta de 1800, gostavam de dissertar com
gravidade a seu respeito. Mais tarde, cerca de 1890, rf's-
·pirando uma atmosfera de positivismo um tanto ou quanto
rudimentar, houve especialistas do método que se indigna-
.vam com o facto de, nos trabalhos históricos, o público
atribuir uma importância, em seu entender excessiva,
àquilo a que eles clulJmavam «a forma». Arte contra ciên-
INTRODUÇÃO A HISTORIA 29
m. -o tempo histórico
MARC BLOGH
*
Seria interessantíssimo/ promover uma investigação
acerca desta obsessáo embriogénica tão arreigada em
toda a preocupação de ~xegera:s;, «Não compreendo a sua
emoção:t>, confessava Barrês- a um sacerdote que perdera
a fé. <~Que têm que ver com a minha sensibilidade as dis-
cussões de um punhado de sábiDs à volta de alguns
nomes hebraicos? Basta a atmosfera das igrejas.:t> E
Maurras dizia, por sua vez: «Que me importam os evan-
gelhos de quatro judeus obscuros?» («obscuros» quer aqui
dizer, penso eu, plebeu~~ porque a Mateus, Marcos, Lu-
cas e João parece difícil não reconhecer, aD menos, uma
certa notoriedade literária). Esses ~)antomineiros disse-
ram coisas incríveis; nem Pascal nem Bossuet teriam fa-
lado assim, com certeza. Podemos conceber uma experiên-
ci&. religiosa que não deva nada à história. Ao deísta puro
basta uma iluminação interior para crer em Deus. Não
para crer no Deus dos cristãos. !Porque o cristianismo,
jó. o disse, é por essência uma religião histórica: quero
dizer, uma religião cujos dogmas primordiais assentam
em acontecimentos. Tornem a ler o Credo: «Creio em
Jesus Cristo ... que foi crucifi•cado sob o poder de Pôncio
Pilatos ... e ressuscitou dos mortos a:o terceiro dla.:t> Aqui,
os princípios da fé são também os seus alicerces.
Ora, ·por um contágio sem dúvida inevitável, estas
preocupações, que, em certa forma de análise rellgiosa,
teriam a sua razão de ser, alargaram-se a outros domí-
nios de investigação, onde a sua legitimidade era muito
mais contestável. Domínios em que uma história tendo
por centro os princípios das coisas foi posta ao serviço
da ~preclação dos valores. !Perscrutando as «origens» da
França do seu tempo, que se propunha Taine senão de-
nunciar o erro de uma politica procedente, em sua opinião,
de uma falsa filosofia do homem? Quer se tratasse de
\ nvasões germânicas ou da conquista normanda da In-
INTRODUÇAO A HISTORIA
"
r glaten:a, o passado apenas foi tão activamente empregado
1
*
Voltemos, entretanto, aos estudO'S cristãos. Para a
inquieta consciência que se 'busca, uma regra de fixar
a sua atitude perante a religião católica, tal como ela se
define quotidianamente nas nossas igrejas, é/uma coisa; ···,.;~
mas já é outra, para o historiador, explicar como um
facto de observaçã::> o catolicismo do presente. O conhe- '~i.~
cimento dos primórdios dos fenómenos religiosos actuais
é inclíspen.sávcl, escusado é dizê-lo, à sua justa compreen-
são, mas não basta para os explicar. :Para simplificação
do problema, renunciemos mesmo à questão de saber até ":J,.··
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MARO BLOCH
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*
. ,., A ·história religiosa foi aqui citada apenas como
exemplo. Em todas e1s modalidades de estudo da activi-
dade humana, o mesmo risco espreita os indagadores de
\ ~origens: confundir uma f!llação com uma explicação.
· ( · •Era já., afinal, a l~usão <los velhos etlmologistas, que
l pensavam. ter dito tudo quando confrontavam a signifi-
. i cação'. actual de uma palavra com a significação mais
i antiga que se conhecia; quando tinham demonstrado,
\ eupoDhamoa, que bureau designou, primitivamente, um
\tecido, ou timbre um "Wm.bor. Como se o problema im-
porta~te não fosse o de saber -como e porquê de uma
significação se deslizou para outra. Como se, principal-
, mente, tanto quanto o seu próprio passado, uma palavra
'não tivesse o seu papel, em uma língua, determinado
pelo estado .contemporâneo do vocabulário, vocabulário
que, por sua vez, estã dependente das condições sociais
do momento. Bureaux, no caso das repartições de minis-
t~rlo,' significa uma burocracia. Quando peço timbres
· (selos) nos oorreios, o uso que faço do termo pressupõe,
além da organização lentamente ela:bOTada de um serviço
postal, a transformação técnica decisiva para o futuro
das permutas entre pensamentos humanos, que substituiu
recentemente a impressão de um carimbo pela ruposição
dó uma vinheta gomada. Isto foi possível somente porque,
··~
especializadas por mesteres, as diferentes acepções da
velha palavra a tal ponto se afastaram uma da outra
que não hã con<fusão possivel entre o selo que colo no
meu. sobrescrito e o timbre de um instrumento musical
c0r1g~)) do.' regime feudal~·•. é costume dizer. Aonde
ir buscã-lâs? Responderam uns: c:a Roma>. Outros: .<à
· Germânia>. As razões de tais miragens são clarissimas.
Num lugar como noutro existiam, com efeito, certos costu-
mes -relações de cllentela, companhel~ismo guerreiro,
função da tenêncla como salário dos l:lerviços -· que as
1,~..J" ._: ~:.r.~-.......:·.;..~J:1(}.:1'i~r-1~t(~:~-~~~.r:,~;~'~~·.:~·~·:<~~-(~.::.~:~ ~ · ·..,.~:~·~.:f.-,V~it~~~~:~
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INTRODUÇAO Ã HISTóRIA 35
INTRODUÇÃO A HISTORIA 37
*
'No vasto fluir dos tempos, julgamos poder pôr à parte
uma fase pouco extensa. Rela'tivamente pouco distante
de nós no seu ponto de partida, ela abarca no seu termo
os próprios dias que vivemos. Nesta fase, nem os carac-
teres salientes do estado social ou politico, nem a ferra-
menta material, nem a tonalidade geral da civilização,
nada, apresentam -parece- diferenças profundas com
o mundo em que temos os nossos hábitos. Parece, di-
gamos, afectada, em relação a nós, por um fortíssimo
<:oeficielite de «contem!poraneidade:.. E 'dai a honra, ou
.a tara, de não ser confundida com. o resto do passa'Clo.
«De 1830 para cá já não é história», dizia um dos nossos
professores do liceu, multo velho já, quando eu era ainda
multo novo, «é política.» Hoje já se não diria: «de 11830
para cá» -as Três Gloriosas, !pOr sua vez, envelhe·
ceram - , nem «é políti'Ca». LMas, antes, num tom respei-
toso: «sociologia»; ou, com menos consideração: «jor-
nalismo». Muitos, contudo, repetiriam de bom grado:
desde 1914 ou 1940, já não é .Wstória. Sem se entende-
rem bem, aliás, acerea dos motlvoo deste ostracismo.
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;_ .. _ ·38 MARO BLOCH
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. Alguns, julgando que os factos que estão mais perto
de nós são por isso menos refractários a qualquer estudo
-verdadeiramente sereno, desejam sõmente evitar à casta
'Clio inflamados contactos. Assim rpensava, creio eu, o meu
'Velho professor. O que é minimizar o dom1nio que temos
dos nossos nervos. li: esquecer também que, quando as
ressonâncias sentimentais entram em jogo, o limite en'tre
o actual e o lnactua•l não se regula necessàrlamente pela
medida matemática de um intervalo de tempo. Tinha
tã.o pouca razão o meu bom reitor que, no liceu do Lin-
guadoque onde assentei praça como professor, me adver-
tia com a voz grossa da capitão de ensino: ~-t\..qui, o. Sé-
culo XIX não é multo p~rigoso. Ma!'i, quando chegar às
guerras da religião, tenha cuidado.~ Em boa verdade.
aquele que, à sua mesa de trabal'ho, não tenha força
suficiente para subtrair o cérebro aos vírus do momento,
eerá capacfssimo de deixar inquinar de toxinas um comen-
tário da Ilíada ou do Ramayana.
, Outros sábios, pelo contrário, julgam com razão que o
/presente humano é perfeitamente susceptivel de conheci-
! mento cientifico. Mas pensam-no, reservando o seu estudo
\. e. dlsclplinas muito diferentes da que tem por objecto o
I passa-do. Por exemplo, analisam e pretendem compreender
I 6 economia contemporânea à custa de observações limi-
tadas, no tempo, a algumas décadas. Em suma, consi-
deram a época em que vivem serpanda das antecedentes ·
por contrastes grandes de mais para não ter em si mesma
a sua ·própria explicação. Tal é tnmMm a atitude instin-
tiva de muitos que são simples curiosos. A história dos
periodos um pouco longlnquos sedu-los apenas como um
Inofensivo luxo do espirlto. De· uma banda, um punhado
de antiquários ocupados, por deleite macabro, em desen-
faixar os deuses mortos; de outra, sociólogos, economistas,
publlclstas: os únicos exploradores das coisas vivas ...
•
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INTRODUÇAO A HISTORIA 89
*
J
O homem passa o tempo a montar mecanismos de que
se torna depois prisioneiro mais ou menos voluntário.
Que observador, percorrendo as nossas províncias do
Norte, se não impressionou com o estranho desenho dos
eeus campos? A despeito das atenuações que as vicissi-
tudes da propriedade trouxeram, no decurso das idades,
ciO esquema primitivo, o espectáculo dessas fitas, desme-
euradamente estreitas e alonga'das, que dividem o solo
arável num número ·prodigioso de parcelas, ainda hoje é
de molde a confu:1dir o agrónomo. Não pode ·contestar-se
e diS'Si'pação de esforços causada por 'tal disposição das
terras, n~m os incómodos que impõe aos cultivadores. Como
explicá-lo? Pelo Código Civil e seus inevitáveis efeitos
responderam publiclstas apressados em demasia. Modl-
!ical, portanto, as leis sobre hera11ça, acrescentavam ~les,
e suprimireis assim todo o mal. iSe soubessem mais his-
tória, se tivessem 'também interrogado melhor uma men-
talidade camponesa formada por 6écu1os de empirismo,
haveriam de julgar o remédio menos fácil. Com efeito,
et\sa estrutura remonta a. origens tão recuadas que nenhum
sâbio, até agora, a. explicou de modo satisfatório; provà-
. . .. ·:
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,:~':':i\' ; '40 MARC BLOCH
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*
Com muita ma1or razão, o processo escrito facilita
·bastante, entre gerações por vezes deveras afastadas,
INTRODUÇÃO A HI81'6RIA 41
*
I
//Além do mais, não. é apenas a tx.luco..çã.o da senslbili-
!:iade hl~tórica que está em causa. Acontece que, numa
1
determinada Hnha, o conhecimento do presente lnlere~a,
(mais directamente ainda à Inteligência do passado. I
\. Seria, com efeito, erro grave julgar que a ordem adop-1
tada pelos historiadores nas suas Investigações tenha
nt·cessàrlamenle de modelar-se pela dos acontecimento!'!.
T11·aram frequentemente proveito, sob a condição de H'~
tltuirem depoi3 à história o seu movimento verdadeiro.
de começa1em a lê-la, como dizia Maitlanct, "às ave~sa:n.
Porque o caminho natural de qualquer Investigação se
.faz do mais bem ou do menos mal conhecido para o lllals
obscuro. Não é certo que a luz dos documentoH se torne
regularmente mais viva à medida que s~ d(SCe ao longo
uu tempo/, Estamos incomparàvelmente menos bem lnfor-
ma·dos acerca do século x da nossa era, por t'Xl'IIIp1o,'
· que a respeito da época de César ou de Augusto:', Na.
n1alorla dos casos, no entanto, os períodos mais próxinJO!i i
coincidem com zonas de relativa claridade. Devemos 9.cn·s-
centar que procedendo Jnecünicamente de trás para a 1
. frente corremos sempre o risco de perder o tenq)o à cac;ai
j do:; prlmóz'dlos ou das causas dos fenómenos que depoi!i/
a luz da experiência, st~ revel·arão talvez imaginários. Por
não terem praticado, quando e ondE' se impunha, -~;Í
111étodu prudentemente tPgresslv,> .~ que algunH dos IHéli.S
INTRODqÇAO A HISTORIA 45