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17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

O Papel da Crítica na Formação de um Pensamento de Arte


Contemporânea no Brasil na Década de 1970

Fernanda Lopes Torres, professora substituta do Instituto de Artes-UERJ


Martha Telles, doutoranda em História Social da Cultura (PUC-Rio)

Resumo: O presente trabalho pretende acompanhar o processo de constituição de


nosso pensamento de arte contemporânea nos anos 1970 ao articular uma seleção de
textos publicados então com entrevistas recentes realizadas com artistas e críticos
atuantes no período.
Abstract: This work aims at following the process of the constitution of our
contemporary art thinking in the 1970’s by articulating selected texts published at the
time with recent interviews made with artists and critics that worked in the period.
Palavras-chave: arte contemporânea brasileira, crítica, anos 1970
Key words: Brazilian contemporary art, critics, 1970’s

O objetivo é acompanhar a dimensão crítica que sustenta e viabiliza a


produção artística da década de 1970, desempenhando papel decisivo na
formação de um pensamento contemporâneo de arte entre nós. Nosso
procedimento: articular depoimentos recentes inéditos de artistasi e críticos,
atuantes ou testemunhas do período, com uma seleção de textos e trabalhos
publicados no período, e/ou sobre ele. Em iniciativas individuais, em grupos ou
em parcerias, com afinidades poéticas eletivas ou “rivalidades” produtivas,
esses (futuros) profissionais se direcionam para a constituição de nosso meio
de arte. Produzir exige, afinal, se posicionar numa realidade então
praticamente inexistente – implica uma ação política.
Somente integrada ao ambiente cultural numa dimensão pública - ao
modo de um circuito, conforme termo recorrente na época -, a arte realiza seu
significado. Artistas sabem que o raio de sua ação produtiva ultrapassa os
limites do objeto material, e juntamente com críticos e agentes culturais
esforçam-se para mudar o quadro de inoperância de nosso meio de arte. A
começar pela criação de publicações especializadas para a exposição de
trabalhos e a veiculação de discussões. Uma revista como Malasartes
manifesta a urgência de assentar as atividades dos artistas e críticos no
mundo. Visam nada menos do que declarar suas próprias existências.
Sintomas de um meio de arte rarefeito, para Tunga publicações como
Malasartes e o livro O Mar A Peleii consistiriam em tentativas de satisfazer um
desejo de realização. Nesse sentido, compreendendo a um só tempo a

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elaboração de novas linguagens e a constituição de um meio de arte, a


dinâmica artística dos anos 1970 conforma um autêntico comprometimento
existencial. Daí o rigor e a vitalidade do trabalho de artistas e críticos que
circulam, por assim dizer, pela lacuna estabelecida entre arte e realidade da
arte numa espécie de movimento em mão-dupla, capaz de definir,
simultaneamente, trajetórias profissionais particulares e a atual fisionomia do
nosso meio de arte.
Entre os críticos, Ronaldo Brito se distingue pelo temperamento poético
e pelo rigor teórico. Paulo Sérgio Duarte, por sua vez, se destaca pelo talento
para uma articulação política, vide concepção e coordenação do importante
projeto ABC da FUNARTE. Já Fernando Cocchiarale e Paulo Herkenhoff,
artistas “conceituais” em meados de 1970, na década seguinte começam a
assumir efetivos cargos políticos em instituições de arte. Carlos Zílio manifesta
interesse em refletir sobre a especificidade de nossa modernidade e de nossa
história da arte: vide o texto A Querela do Brasil – a questão da identidade da
arte brasileiraiii, e a concepção e organização do curso de Especialização Lato
Sensu em História da Arte e Arquitetura do Brasil na PUC/ Rio, pioneiro espaço
de formação e de pesquisa, a exemplo do daquelas desenvolvidas sobre as
obras de Goeldi e de Guignard.
Em São Paulo, Walter Zanini abre o espaço do MAC-USP para
experimentações artísticas com o emprego de novas tecnologias, enquanto
Aracy Amaral desempenha papel decisivo para mais de uma geração de
pesquisadores em arte e gestores de organismos públicos. Em fins dos anos
1970, o jornalista Rodrigo Naves toma contato com arte, e poucos anos depois
fica responsável pela edição de Folhetim, suplemento literário do jornal A Folha
de S. Paulo, onde publica artigos críticos de arte, sem perder de vista a
qualidade gráfica. A historiadora e crítica de arte Sonia Salzstein, por sua vez,
adquire experiência em instituições artísticas públicas, tais como o Centro
Cultural São Paulo, onde, posteriormente, teve a oportunidade de implementar
importante espaço para exposição e debate da arte contemporânea.
Pontualmente, a tomada desses depoimentos visa ao registro
de fatos até então ausentes dos “arquivos” de nossa crítica/história
da arte. Em sua amplitude, funciona como uma espécie de orientação
para a (re)leitura de alguns textos e trabalhos desenvolvidos na

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época. Ao trazer para o presente - na leitura dos depoimentos e dos


textos do período - apontamos para terrenos ainda não ocupados por
nossa atividade crítica/historiográfica. Afinal, se aquela reciprocidade
por certo não encontra espaço no atual regime de ostensiva
saturação pública e mercadológica da arte, permanece o esforço para
a constituição de um contexto produtivo – agora frente a um circuito
artístico internacional que determina o valor das obras no mercado e
seu poder de circulação.
Periodização. Desnecessário, talvez, lembrar da produtividade
crítica estabelecida por Ferreira Gullar e Mário Pedrosa com nossas
linguagens artísticas modernas, cabe atentar para a modalidade da
noção de público característica daquele período, qual seja, aquela
coincidente com o poder estatal iv. Consoante à amplificação da
prática artística ao cultural – “assunto” da Pop Art -, a dimensão
pública que se encontra em jogo na arte da década de setenta abarca
novos elementos e numerosos personagens por entre os quais a obra
circula pela sociedade. Uma nova presença social da arte é
simultânea a outro modo de existência do indivíduo, num mundo de
mobilidade permanente, em que profundas modificações sociais,
econômicas e políticas coincidem com a irreversível presença das
tecnologias da informação em nossa vida cotidiana – todo um
processo crescentemente impulsionado pelos interesses do capital.
Nesse sentido, para fins da necessária e sempre difícil
periodização, consideramos a afirmação da cultura de massas entre
nós, situando nossas investigações no intervalo entre Opinião 65 e a
Bienal de 85. Ou seja, de uma mostra em que novas linguagens
visuais conhecem rara repercussão pública ao momento de euforia
dos anos oitenta, quando nossa jovem produção artística ganha
grande visibilidade na mídia, simultaneamente ao período de abertura
política do país. Enquanto o pessoal da chamada Nova Figuração
devia conquistar publicidade nas páginas da revista Cruzeiro – em
desfiles de moda ou simplesmente ao fundo de uma fotografia -, vinte
anos depois, seus jovens colegas da Geração 80 “ganhavam”
publicidade, sendo absorvidos acriticamente por uma mídia que os

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reduzia ao “prazer de pintar”. Por vias distintas, ambos os grupos


adquiriam certa visibilidade, ainda que sem uma efetiva inscrição na
realidade cultural do país.
Nesse intervalo, o Brasil conhece intensa urbanização, é
quando emerge uma classe média que começa a freqüentar as
Universidades, e a comunicação sofre grande transformação com o
início e o desenvolvimento da TV. Imersos em uma espécie de
desencanto em relação ao projeto modernista que culmina na
construção de nossa capital, artistas e intelectuais buscam um
pensamento próprio para o país. A ditadura militar radicaliza os
vários debates intelectuais e a produções artísticas da época. E
novas perspectivas críticas para o país informavam o cinema novo, a
música popular (Tropicália, Samba, MPB, Bossa Nova), o teatro
(Opinião, Oficina), CPC, a questão da cultura popular, e também as
artes plásticas. No entanto, enquanto música, teatro e cinema
ganhavam espaço na imprensa, a produção plástica, a despeito de
sua qualidade, encontrava-se praticamente dali excluída.
Assim a formação de um pensamento próprio de arte
contemporânea é inerente à efetivação de nossa arte no ambiente
cultural como um empreendimento político, mais ou menos articulado
através da ação de artistas e críticos em grupos, em parcerias, e/ou
em instituições públicas e galerias. A começar pela atuação no (1)
jornalismo cultural, através de publicações especializadas -
Malasartes, GAM -, ou não, como o jornal Opinião, orientamos os
depoimentos a partir dos seguintes pontos: (2) processamento das
questões contemporâneas por nosso experimentalismo dos anos
1960; (3) o papel de instituições públicas, como MAM-Rio e MAC-
USP, no apoio às linguagens experimentais, com destaque para a
análise da Sala Experimental do primeiro - iniciativa original e pouco
documentada; (4) as distintas ambiências de formação, que por vezes
resulta na reunião em grupos, os quais, ao modo de verdadeiras
frentes de ação, buscam efetiva inscrição no ambiente cultural; (5) a
especificidade de uma crítica que visa a legitimar as linguagens
contemporâneas e simultaneamente assentar-lhes um terreno, por

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vezes sob a forma de parcerias; (6) a pergunta pelo lugar da crítica


com a emergência do novo sistema cultural dos anos 80, quando o
circuito artístico internacional sobrepõe seus interesses à
constituição e transmissão de valores culturais próprios - tal como
requisitado nos anos 70.
Apesar do inquestionável adensamento de nosso sistema de
arte, com o incremento quantitativo e qualitativo dos nossos
profissionais, persiste a incapacidade de formular projetos claros
para uma política cultural – que, em nosso momento atual,
forçosamente deve incorporar o “fator” mercantilização globalizada.

Paralelamente ao estudo das “fontes”/publicações, de onde


selecionamos textos a serem republicados, começamos por
compreender ao que em termos de arte e produção crítica/teórica
coincide com um decisivo ponto de inflexão reconhecido entre nós
por Mário Pedrosa como “arte pós-moderna”, e por Hélio Oiticica
como antiarte. Caracterizada por uma distinta “atitude criativa dos
artistas frente às exigências de ordem ética-individuais e as sociais
gerais” v, capaz confrontar in loco, por assim dizer, os problemas da
cultura contemporânea, esta geraria uma produção social própria. Ao
incorporar a autoconsciência da marginalidade como nossa
originalidade vi, a produção de Oiticica aponta para um processamento
próprio da sensibilidade contemporânea. Em termos de arte, tal
sensibilidade conformaria “um outro ciclo”, observa Pedrosa com
propriedade, não mais puramente artístico, mas cultural,
“radicalmente diferente do anterior, e iniciado, digamos, pela Pop
Art”, chamado de arte pós-moderna vii. Entre nós tal ciclo é vivenciado
em seus próprios termos, por exemplo, pelos “‘popistas’ do
subdesenvolvimento” viii, cuja figuração “quente” se contrapõe ao frio
realismo da Pop norte-americana. Nas pinturas de Antônio Dias, por
exemplo, imagens dos fatos do dia da crônica policial convivem com
ícones do imaginário do artista, e “viram” elementos de uma
impactante engrenagem. “Um pedaço bruto de vida” ix, tipo de
denúncia à violência que não pode ser dissociada da dramática

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situação de exceção do país convive com a fluidez típica da


associação de idéias numa forte estruturação do campo visual –
herança do construtivismo -, o que garante uma potência plástica
específica. É ali patente uma capacidade (e intensidade!) específica
de explorar um território simbólico, conforme adverte Paulo Sérgio
Duarte x.
Ainda em relação às nossas propostas artísticas dos anos
1960, cabe destacar o empreendimento da Rex Gallery & Sons,
espécie de cooperativa em que Wesley Duke Lee, Nelson Leiner,
Geraldo de Barros, José Resende, Carlos Fajardo e Frederico
Nasser, “além de ter um lugar, um espaço para expor, poderiam gerar
o seu negócio” xi. Sem desconsiderar, por certo, a produção per se de
seus integrantes, destacamos sua atuação conjunta que parte da
precisa e bem-humorada detecção do provincianismo do meio de arte
brasileiro para a promoção de debates e organização de mostras,
com destaque para o que se configurou como um autêntico
xii
“happening” por ocasião do fim da galeria Rex.
Grosso modo, reconhecemos nos desdobramentos
neoconcretos, na estratégia “pop-populista xiii” do pessoal da Nova
Figuração e nos “happenings” Rex, uma espécie de exposição do
risco permanente próprio à arte, que, na contemporaneidade,
radicaliza ao problematizar todos os fatores que legitimam a obra: o
artista como criador original, os métodos e técnicas de produção e/ou
a estrutura institucional. Nas palavras de Pedrosa, é quando “as
energias se põem como um exercício experimental da liberdade” xiv, tal
como ocorre na exibição, por Antônio Manoel, de seu corpo como
obra de arte (O Corpo é a obra) no vernissage do Salão Nacional de
Arte Moderna, em 1970, após ter sua proposta recusada pelo júri.
Manoel incorporaria, por assim dizer, a subversão própria à arte, o
“irresistível e o mesmo tempo irreprimível” (Pedrosa) ato artístico
que, como tal, não se deixa subordinar a normas culturais – no caso,
àquelas do MAM-Rio.
Com O Corpo é a Obra chegamos ao nosso segundo ponto: a
instituição pública de arte. O MAM carioca é palco de conversas no

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bar e importantes mostras de arte, nacionais e internacionais, abriga


cursos de relevância para o desenvolvimento de novas linguagens de
arte (ex: Escolinha do MAM, sob a coordenação de Ivan Serpa) e
eventos artístico-culturais que se abrem à cidade a partir do Aterro do
Flamengo (“Domingos da criação”), caducos salões de arte. O museu
é o lugar público da arte moderna brasileira. Manoel destaca sua
vivência efetiva do espaço do museu nos 60, onde convivia
diariamente com artistas, cineastas, poetas, intelectuais. Nesse
sentido, onde mais ele poderia se apresentar como obra?
Praticamente a única instituição de arte do Rio, o MAM concentra as
mais importantes funções do sistema de arte.
Compreendemos o gesto de Manoel assim como outros
dirigidos contra o museu – as baratas de Lygia Pape xv, ou as
“performances” de Barrio - como manifestações do desequilíbrio das
instituições de arte. Ao invés de tentar transformá-lo, esses artistas
anárquicos utilizam perversamente os instrumentos à disposição xvi,
procurando sabotar a relação entre criação e recuperação do objeto.
Ronaldo Brito compreende tais posturas anárquicas como uma
“independência absoluta”: “axioma ético por excelência da
modernidade” ao qual esses artistas seriam compulsoriamente
conduzidos a aderir devido à “ausência de maiores pressões
mercadológicas e institucionais” xvii.
Daí a declaração feita a nós por Manoel: “procurávamos a coisa
pública, e não as instituições”. E a realização de trabalhos a partir de
jornais: o descompasso entre a dimensão da obra e o espaço
ideológico da instituição orienta desde as intervenções com crayon
sobre as páginas de jornal (1968) aos Flans de 1975, passando pelo
processo da elaboração de Exposição de 0 a 24 horas xviii (1973).
Verifica-se nos anos 1970 uma outra espécie de confronto com as
instituições, um confronto interno, por assim dizer, identificado no
MAM-Rio com o trabalho da Comissão de Planejamento Cultural do
Museu de Arte Moderna e no MAC-USP com a reformulação de
mostras como a JAC (Jovem Arte Contemporânea), em que o júri é
eliminado. Distintas, ambas as iniciativas compartilham a tarefa de

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determinar outros critérios para o museu de arte


moderna/contemporânea, compatíveis com as novas condições da
arte naqueles anos 1970 xix.
À maior compreensão do papel institucional no funcionamento
do circuito de arte segue a tentativa de articulação de uma política
cultural, com a Comissão de Planejamento Cultural xx. . Impasses
persistentes prejudicaram seu funcionamento e reduziram sua
eficácia, com destaque para a própria realidade do nosso circuito de
arte e a dificuldade que este tem de conceituar com rigor os
problemas que se lhe apresentam. Dentro dessa tentativa, cabe
destacar a consciência de um dos integrantes da comissão à época, o
crítico Ronaldo Brito, que compreende a possibilidade de concepção
e implementação de uma política cultural no MAM somente se
comprometida com a “situação concreta do circuito de arte
brasileiro” xxi.
Conforme lemos no texto que abre o primeiro número da
revista, “Análise do Circuito”, tal consciência o mobiliza em seu
trabalho junto aos outros editores da revista Malasartes. Em 1975/6,
Carlos Vergara, Carlos Zílio, Cildo Meireles, José Resende, Luiz
Paulo Baravelli, Ronaldo Brito, Rubens Gerchman e Tunga se
reúnem em um grupo – heterogêneo -, para a publicação da revista,
que tem três números. Sem o propósito de elaborar uma linguagem
artística comum, esse grupo conjuga esforços – ao modo de
verdadeiras frentes de ação - para uma efetiva presença social da
arte entre nós. Cabe a nós observar a dinâmica deste e de outros
grupos que, formados a partir de afinidades poéticas e/ou meras
circunstâncias, conformam contextos produtivos - a própria matéria
de formação de um pensamento de arte contemporânea entre nós.
Outro grupo se constitui a partir das aulas de Anna Bella
Geiger. Fernando Cocchiarale, Letícia Parente, Sonia Andrade,
Ivens Machado e Paulo Herkenhof se destacam pelo pioneirismo com
a vídeo-arte no Brasil, e encontram receptividade para sua produção
no MAC de São Paulo, então dirigido por Walter Zanini. Afora o
espaço do MAC-USP, que abriga em suas várias mostras produções

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de artistas do Brasil e do exterior, com destaque para os trabalhos


com fotografia, mail art, xerox, vídeo, em São Paulo cabe investigar a
produção de artistas e poetas ligados à poesia visual - e o alcance de
sua herança concreta -, como Regina Silveira.
Já o grupo que vem de Brasília para o Rio, formado por Cildo
Meireles, Luiz Alphonsus, Guilherme Vaz, Alfredo Fontes, surge na
cena brasileira no final dos anos de 1960 como a primeira geração de
estudantes da Universidade de Brasília. À época uma universidade
experimental que se propunha formuladora de um pensamento
eminentemente brasileiro, a UNB conformava um ambiente de
“grandes apostas”, onde era possível ter acesso em tempo real a
publicações e revistas como Domus, Art in America, Art Forum. Esse
grupo encontrava apoio no crítico Frederico Morais, que
desempenhou importante papel na abertura de espaço institucional
para a produção contemporânea, tendo divulgado as primeiras
exposições conceituais no Brasil xxii.

A reciprocidade entre arte e crítica do período resulta na formação de


parcerias, mais ou menos circunstanciais, entre críticos e artistas.
Procedimento recorrente no período, ele responde a duas demandas, distintas
e relacionadas. Com dinâmicas e densidades específicas, elas compartilham a
tarefa de sustentar as incipientes linguagens artísticas de modo a assegurar-
lhes um lugar social. Por outro lado, e decorrente da falta de tal lugar, o
estabelecimento dessas parcerias acaba por contribuir de modo decisivo para a
formação e o desenvolvimento das obras de nossos artistas e críticos. Antônio
Dias e Paulo Sérgio Duarte exemplificam uma parceria duradoura, que começa
em 1973 com o texto Antonio Dias: les moyens, les méthodes et leur
élucidation, publicado na revista francesa Art Press,, “encomendado” pelo
artista por ocasião de sua participação na Bienal de Paris. Publicações
ambiciosas como “Aparelhos” (Ronaldo Brito e Waltércio Caldas) ou em
encontros breves em textos de catálogos (Fernando Cocchiaralle e Ivens
Machado) revelam um texto desenvolvido no próprio tempo da produção da
obra, numa mesma freqüência poética, por assim dizer.

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Passadas mais de duas décadas daquele momento de enfática


reciprocidade entre arte e crítica, não se pode negar o adensamento
do sistema de arte brasileiro hoje. Persistem, no entanto, muitos dos
impasses então apontados, a saber, a ausência de uma efetiva
política do meio e de uma produção reflexiva capaz de processar a
densidade específica da história da arte no Brasil, e,
conseqüentemente, a produção artística contemporânea. Daí o
caráter ambivalente pelo qual parte da produção emergente nos anos
1990 foi absorvida pelo sistema de arte internacional. Uma vez
absorvidos de forma inconsistente pelas próprias instituições
brasileiras, esses trabalhos sofrem leituras equivocadas e/ou
estereotipadas – convenientes, em última análise, para a lógica
mercadológica dos grandes centros produtores de arte. Assim, a
rigor, as questões envolvidas no real processamento público da
produção artística contemporânea estão presentes entre nós até os
dias de hoje.
Para além da constante renovação do olhar crítico sobre obras
“consagradas”, há que se considerar, por exemplo, a produção de
artistas como Umberto de Barros, Emil Forman xxiii, Luís Fonseca.
Esporadicamente presentes em exposições, elas merecem ser
(re)consideradas, o que implica situá-las em nosso circuito de arte.
Destacamos também a atuação de Jorge Guinle, cuja obra pictórica
que adquire consistência nos anos 80, quando acaba por ganhar
(certo) espaço. Pintor por excelência, convive desde cedo com boa
arte, possuindo um conhecimento de sua história raro entre nossos
artistas. É capaz assim de articular um pensamento significativo
sobre arte/a pintura, veiculado em apresentações de mostras e na
revista de arquitetura “Módulo”. São textos xxiv críticos guiados por
uma relação direta com as obras analisadas, e inevitavelmente por
sua efetiva prática. Guinle pensa a pintura que lhe é contemporânea,
no exterior e no Brasil, fundamentalmente a partir do fenômeno
pictórico na história – e não a partir da emergência da Geração 80.

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i
Os nomes dos artistas já entrevistados por nós estão destacados em negrito.
ii
Com texto de Ronaldo Brito, fotografia de Artur Omar e projeto gráfico de Paulo Venâncio Filho, o livro,
assim como Malasartes, materializaria, segundo Tunga em depoimento a nós, o desejo comum de tornar
efetiva uma atividade, dizer: “Olha, nós existimos e fazemos isso e isso é importante e fundamental.”
iii
A Querela do Brasil – a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e
Portinari/1922-1945 constituiu tese defendida por Zílio em 1979. Publicada inicialmente sob a forma de
artigo na revista Malasartes, posteriormente, em 1982, se tornou livro editado pela FUNARTE.
iv
Em seu depoimento, a historiadora da arquitetura Sophia Telles enfatiza que o pessoal
do Sphan pertencia ao governo, e assim o mundo público coincidia com aquele do poder
oficial do governo. O círculo em torno de Pedrosa “era um grupo de pessoas próximo do
campo de efetivo poder federal (...) ou seja, era público porque o governo é público”.
v
OITICICA, Hélio. Esquema da Nova Objetividade. Rio de Janeiro, MAM, 1967.
vi
Para Sônia Salzstein, essas produções experimentais teriam suplantado a condição provinciana a que
de outro modo estariam fadadas, fazendo com que emergissem com força propositiva no cenário da
cultura contemporânea”. SALZSTEIN, Sonia. “A marginalidade cultural como (estimulante) problema:
anos 60”. In Caminhos do Contemporâneo: 1952/2002. (Cat. Expo). Rio de Janeiro, Paço Imperial, 2002,
p. 95.
vii
Mário PEDROSA. “Arte Ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”. Originalmente publicado em
Correio da Manhã, 26.06.66. Republicado em Dos Murais de Portinari aos Espaço de Brasília, pp.205-
209; ARANTES, Otília (org). Acadêmicos e Modernos, p. 355.
viii
PEDROSA, Mário. “Do Pop Americano ao sertanejo Dias”. In ARANTES, Otília (org.). Acadêmicos e
Modernos. São Paulo, Edusp, 1998, p. 368.
ix
Idem.
x
“Aquele que tenta se aproximar de um trabalho de Antônio Dias desse período, pelos filtros da Pop ou
da Nova Figuração européia, se desorienta”. DUARTE, Paulo Sérgio. Anos 60. Rio de Janeiro, Campos
Gerais, 1999, p. 50.
xi
“cooperativa em que os artistas, além de ter um lugar, um espaço para expor, poderiam gerar o seu
negócio”. LEE, Wesley Duke. Apud Cacilda Teixeira da COSTA. São Paulo, Instituto Brasileiro de Arte e
Cultura/Banco do Brasil, 1992, 2ª edição (Arte Brasileira Contemporânea), p. 27.
xii
Assim Nelson Leirner se referiu ao evento, por ele comandado e denominado “Exposição-Não-
Exposição”. O artista teria doado uma exposição àqueles capazes de se esforçar para conseguir pegar as
pinturas, presas à parede, algumas delas chumbadas (mas a Rex fornecia a serra para a pessoa rompê-
la). Segundo Leirner, “Foi espetacular. Acredito que foi um dos poucos ‘happenings’ que realmente
justificaram o nome. Houve a reação do público, os imprevistos ocorreram nos momentos precisos e a
evolução dos acontecimentos nos deu um profundo estudo do comportamento humano (nesses dois mil
anos, o homem não mudou muito sua atitude básica, inclusive, não preciso fazer um ‘happening’ para
provar isso a própria guerra no Oriente Médio atesta)”. LEIRNER, Nelson. “Morte da Galeria provoca
desvario da Paulicéia”. In Revista GAM nº 7, 1967.
xiii
Expressão de Antônio Dias em seu depoimento, ao se referir às artimanhas empregadas por ele e seus
colegas para “aparecer” na revista Cruzeiro.
xiv
PEDROSA, Mário. “Bienal e participação ... do povo”. Apud Otília ARANTES. “Mário Pedrosa diante da
arte pós-moderna.” Op. cit., p. 78.
xv
PAPE, Lygia. “É uma crítica à arte trancada e morta dentro dos museus. Não queria um resultado
meramente discursivo; buscava criar uma situação de asco, de nojo mesmo. Nada melhor que baratas
para isso, não?” Apud Paulo Sérgio DUARTE. Anos 60. Op. cit., p. 52.
xvi
Edital de Arte em Revista, nº 5.
xvii
BRITO, Ronaldo. “Fluido Labirinto”. In Antônio Manoel (cat. exp.). Rio de Janeiro, Centro Cultural Hélio
Oiticica, 1997.
xviii
O trabalho ocupa literalmente as páginas do segundo caderno do jornal de circulação
diária “O Jornal” com o “bode”. Devido à recusa, pelo MAM, da proposta de exposição de
um bode vivo no museu - “uma alusão a bodyart e ao ‘bode’ que estava acontecendo”-, a
ser “expandida” em manchete do jornal O Dia (“Deu Bode no MAM”), Manoel se mantém
firme em seu propósito de exposição pública, e busca um outro espaço.
xix
Na apresentação da JAC de 1973, Walter Zanini reconhece como imprescindível a conciliação de
interesses diversos para a sobrevivência do museu de arte do século 20: “é preciso que coexistam no
museu as funções tradicionais (apropriação, preservação, estudo e exposição das obras das coleções) e
(no conjunto de suas manifestações temporárias) novos tipos de atividade que o engajem diretamente no
próprio processo criativo e onde e acentue a presença física do artista.” ZANINI, Walter. “A Nova Jac e
seus critérios”. In Jovem Arte Contemporânea (cat. Expo.) . Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo, 1973.
xx
As reuniões ocorriam uma ou duas vezes por mês, de setembro de 1974 a, pelo menos, maio de 1976
(data da última ata de reunião encontrada nos arquivos do museu). Através de suas atas, pode-se
conhecer o revezamento dos responsáveis pelas coordenações dos distintos setores do museu - cinema,

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biblioteca, artes visuais, sala corpo/som, instituto de desenho industrial, curso de cinema, e unidade
experimental. A comissão inicia suas atividades com a participação do designer Karl Heinz Bergmiller, do
curador Roberto Pontual, de Luís Carlos Avelar (representante da cinemateca), dos críticos Olívio
Tavares e Ronaldo Brito e do artista Sergio Camargo, em sessões presididas pela diretora executiva do
MAM, Heloísa Aleixo Lustosa.
xxi
BRITO, Ronaldo. Esboço de Proposta para uma Política Cultural. Mimeo., sem data. Arquivos MAM-
Rio.
xxii
Live in your Head – when attitudes became form, realizada em Berna em 1969, e
Conceptual Art – no object, organizada pelo Museu de Leverkusen em 1969, que só
existiu no catálogo, considerado conteúdo e suporte da mostra.
xxiii
Vale lembrar sua instalação “Fotos de Antonietta Clélia Rangel Forman”, formada por
mais de 2500 imagens de sua mãe, entre fotografias, periódicos e radiografias.
Proporcional ao impacto da obra que inaugura a Sala Experimental do MAM-Rio, em
1975, a espécie de “abandono” da carreira – e não do ato artístico - no final da década,
significa coerência entre produção e conduta artísticas. A compartilhar com muitos
colegas a recusa da inserção comercial de seus desenhos, fotografias e audiovisuais,
Forman compromete-se exclusivamente com o tempo (passado) da sua vida, ligado,
talvez, ao entendimento de um caráter “fin-de-siècle da própria modernidade”. Emil talvez
seja o único artista entre nós que lida com questão da imagem, da memória, da
autobiografia e/ou dos inventários, da tensão entre público e privado, enfim – assuntos
presentes no cenário da arte na década de 80 e no início da década seguinte. Apontamos
para o interesse em pensar o lugar de sua obra discreta, mas singular, em nossa história
da arte.
xxiv
Ver “O conceito da imagem na nova pintura do século XX”, “Expressionismo vs. Neo-Expressionismo” -
em que a “existência nova” das imagens neo-expressionistas é pensada a partir de um embate real com a
produção internacional -, assim como o lúcido artigo “Os dois tempos de Iberê Camargo”.

Doutora em História pela PUC-Rio, Fernanda Lopes Torres atualmente ministra


aulas como professora substituta no Instituto e Artes da UERJ, tendo
publicados artigos em revistas universitárias.

Martha Telles é doutoranda em História na PUC-Rio.

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