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Celso Furtado está há muito em busca zido. Hoje, entretanto, quando os pobres já
de um novo modelo de desenvolvimento, têm acesso a uma parte desses bens, e as
embora saiba que a definição de um projeto empresas buscam desesperadamente atingir
nacional não é tarefa de uma pessoa mas de os pobres com seus bens e serviços, eu creio
toda uma nação. Em seu novo e breve livro, que o agravamento da concentração de
Em Busca de Novo Modelo, se o nosso renda, que continua a ocorrer, deve ser
economista maior não encontrou esse mo- buscado antes no enfraquecimento relativos
delo, ele pensa com grandeza e a nos oferece dos pobres em defender seus interesses, e no
pistas preciosas para reflexão. tipo de desenvolvimento tecnológico, que
Ele volta às raízes do desenvolvimento aumentou a demanda de trabalho qualificado
econômico: a revolução capitalista e a enquanto que diminuía o de trabalho não-
revolução científica. A interação entre esses qualificado.
dois processos deve ser buscada, de um lado, Para Furtado a acumulação capitalista
na intuição de Galileu de que a natureza marcha sobre dois pés – a inovação e a
seria racional e poderia ser reduzida a es- difusão. Ambos canalizam a enorme criati-
quemas geometrizáveis; de outro, ao pro- vidade humana para a racionalidade instru-
cesso de acumulação capitalista que torna a mental. No processo de acumulação, os
racionalidade instrumental dominante. homens criam instituições ou formas sociais,
Neste processo, porém, a industrializa- que são a expressão superior da convivência
ção tardia de países como o Brasil é muito política. Nesse sentido, as instituições refle-
diferente da que ocorreu nos países hoje tem necessariamente valores, e, portanto, um
desenvolvidos, porque enquanto nestes a pacto social que as legitime. As inovações
inovação e a difusão combinam-se para institucionais têm um papel fundamental de
responder às próprias necessidades das reduzir os antagonismos e as tensões sociais.
sociedades, naqueles a difusão é marcada Entre essas instituições temos, de um lado, o
pela tentativa de imitação por parte das elites pluralismo ideológico que alimenta as socie-
– as classes altas e as médias – dos padrões dades capitalistas liberais, e de outro, superi-
de consumo do centro. deologias, como o ‘nacionalismo’, a ‘segu-
Esta reprodução dos padrões de con- rança nacional’, e a “civilização cristã’ que
sumo, que foi central na análise dos anos 70 se invocam acima das estruturas de classe a
da teoria da nova dependência, e que resul- fim de impor a disciplina social.
tou no que chamei então de ‘modelo de Mais importante na análise de Furtado,
subdesenvolvimento industrializado’, conti- entretanto, é o fato de que as classes benefi-
nua central no pensamento de Furtado, na ciadas com essa concentração não se reve-
medida em que é ela que vai continuar a lam à altura de seu papel de elites. Ao copia-
determinar hoje as duas tendências centrais rem os padrões de consumo norte-america-
das economias periféricas: (1) a propensão nos, não poupam para investir, e endividam
ao endividamento externo e (2) a propensão o país no exterior. A acusação de prática do
à concentração social da renda. Ambos os populismo econômico, que essas classes
processos têm como matriz, segundo Fur- usam para atacar os políticos populares, é
tado, a alta propensão a consumir das elites indevida porque é o consumo delas e não o
brasileiras em sua ansiedade em reproduzir o dos pobres que leva ao déficit público e,
consumo central. principalmente, ao ‘populismo cambial’: a
Comparando o Brasil com a Índia, ele valorização artificial do câmbio, em nome
nos apresenta dados poderosos em favor do do combate da inflação, para facilitar o
seu argumento. Embora a Índia tenha uma consumo de bens e serviços com considerá-
renda por habitante que é um quinto da vel componente importado. Não são os
brasileira, sua taxa de poupança é considera- pobres que adquirem bens importados, nem
velmente maior do que a do Brasil. Como se que viajam para o exterior.
explica isto? Porque a renda é muito mais Celso Furtado concentra assim sua aná-
concentrada no Brasil nas classes altas e lise no consumo das elites, e nas conseqüên-
médias do que na Índia. Neste país os 20 por cias econômicas. Estou de acordo, mas eu
cento mais ricos controlam uma renda quatro seria ainda mais severo. É patético o fracasso
vezes maior do que os 20 por cento mais político dessas elites. Enquanto as elites
pobres, enquanto que no Brasil essa relação cafeeiras do Oeste paulista e mais tarde as
é 32! elites industrias e tecnocráticas, que surgi-
A busca da reprodução dos padrões de ram entre os anos 30 e os anos 50, foram
consumo norte-americanos está na raiz seja notáveis em promover o desenvolvimento
da concentração de renda, seja da baixa taxa nacional, as elites de hoje, alienadas em um
de poupança: desta, dada a própria natureza grau impensável, fracassam na sua missão de
da tentativa; daquela, na medida em que a dirigir o país. Ao reproduzirem os padrões
demanda para os bens de consumo de luxo de consumo do centro – inclusive em suas
produzidos depende dessa concentração. tristes residências ‘neoclássicas’ que consti-
A primeira relação parece-me indiscutí- tuem uma irrisão para a grande arquitetura
vel. Já a segunda, eu creio que perdeu grande brasileira daquele período – reproduzem
parte da sua validade. Nos anos 60 e 70, também, de forma acrítica, a ideologia ex-
quando muitos dos bens de consumo de terna. Ao invés de definir, caso a caso, qual
massa estavam restritos à classe média e à o interesse nacional, e defendê-lo, preocu-
classe alta, a concentração de renda já exis- pam-se apenas em ‘confidence building’. O
tente era reforçada pelo tipo de bem produ- que lhe interessa é saber o que os estrangei-
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Revista de Economia Política, vol.23, n° 3 (88), outubro-dezembro/2002
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