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Revista de Economia Política, vol.

23, n° 3 (88), outubro-dezembro/2002

Em Busca de Novo Modelo


Celso Furtado.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002.

Celso Furtado está há muito em busca zido. Hoje, entretanto, quando os pobres já
de um novo modelo de desenvolvimento, têm acesso a uma parte desses bens, e as
embora saiba que a definição de um projeto empresas buscam desesperadamente atingir
nacional não é tarefa de uma pessoa mas de os pobres com seus bens e serviços, eu creio
toda uma nação. Em seu novo e breve livro, que o agravamento da concentração de
Em Busca de Novo Modelo, se o nosso renda, que continua a ocorrer, deve ser
economista maior não encontrou esse mo- buscado antes no enfraquecimento relativos
delo, ele pensa com grandeza e a nos oferece dos pobres em defender seus interesses, e no
pistas preciosas para reflexão. tipo de desenvolvimento tecnológico, que
Ele volta às raízes do desenvolvimento aumentou a demanda de trabalho qualificado
econômico: a revolução capitalista e a enquanto que diminuía o de trabalho não-
revolução científica. A interação entre esses qualificado.
dois processos deve ser buscada, de um lado, Para Furtado a acumulação capitalista
na intuição de Galileu de que a natureza marcha sobre dois pés – a inovação e a
seria racional e poderia ser reduzida a es- difusão. Ambos canalizam a enorme criati-
quemas geometrizáveis; de outro, ao pro- vidade humana para a racionalidade instru-
cesso de acumulação capitalista que torna a mental. No processo de acumulação, os
racionalidade instrumental dominante. homens criam instituições ou formas sociais,
Neste processo, porém, a industrializa- que são a expressão superior da convivência
ção tardia de países como o Brasil é muito política. Nesse sentido, as instituições refle-
diferente da que ocorreu nos países hoje tem necessariamente valores, e, portanto, um
desenvolvidos, porque enquanto nestes a pacto social que as legitime. As inovações
inovação e a difusão combinam-se para institucionais têm um papel fundamental de
responder às próprias necessidades das reduzir os antagonismos e as tensões sociais.
sociedades, naqueles a difusão é marcada Entre essas instituições temos, de um lado, o
pela tentativa de imitação por parte das elites pluralismo ideológico que alimenta as socie-
– as classes altas e as médias – dos padrões dades capitalistas liberais, e de outro, superi-
de consumo do centro. deologias, como o ‘nacionalismo’, a ‘segu-
Esta reprodução dos padrões de con- rança nacional’, e a “civilização cristã’ que
sumo, que foi central na análise dos anos 70 se invocam acima das estruturas de classe a
da teoria da nova dependência, e que resul- fim de impor a disciplina social.
tou no que chamei então de ‘modelo de Mais importante na análise de Furtado,
subdesenvolvimento industrializado’, conti- entretanto, é o fato de que as classes benefi-
nua central no pensamento de Furtado, na ciadas com essa concentração não se reve-
medida em que é ela que vai continuar a lam à altura de seu papel de elites. Ao copia-
determinar hoje as duas tendências centrais rem os padrões de consumo norte-america-
das economias periféricas: (1) a propensão nos, não poupam para investir, e endividam
ao endividamento externo e (2) a propensão o país no exterior. A acusação de prática do
à concentração social da renda. Ambos os populismo econômico, que essas classes
processos têm como matriz, segundo Fur- usam para atacar os políticos populares, é
tado, a alta propensão a consumir das elites indevida porque é o consumo delas e não o
brasileiras em sua ansiedade em reproduzir o dos pobres que leva ao déficit público e,
consumo central. principalmente, ao ‘populismo cambial’: a
Comparando o Brasil com a Índia, ele valorização artificial do câmbio, em nome
nos apresenta dados poderosos em favor do do combate da inflação, para facilitar o
seu argumento. Embora a Índia tenha uma consumo de bens e serviços com considerá-
renda por habitante que é um quinto da vel componente importado. Não são os
brasileira, sua taxa de poupança é considera- pobres que adquirem bens importados, nem
velmente maior do que a do Brasil. Como se que viajam para o exterior.
explica isto? Porque a renda é muito mais Celso Furtado concentra assim sua aná-
concentrada no Brasil nas classes altas e lise no consumo das elites, e nas conseqüên-
médias do que na Índia. Neste país os 20 por cias econômicas. Estou de acordo, mas eu
cento mais ricos controlam uma renda quatro seria ainda mais severo. É patético o fracasso
vezes maior do que os 20 por cento mais político dessas elites. Enquanto as elites
pobres, enquanto que no Brasil essa relação cafeeiras do Oeste paulista e mais tarde as
é 32! elites industrias e tecnocráticas, que surgi-
A busca da reprodução dos padrões de ram entre os anos 30 e os anos 50, foram
consumo norte-americanos está na raiz seja notáveis em promover o desenvolvimento
da concentração de renda, seja da baixa taxa nacional, as elites de hoje, alienadas em um
de poupança: desta, dada a própria natureza grau impensável, fracassam na sua missão de
da tentativa; daquela, na medida em que a dirigir o país. Ao reproduzirem os padrões
demanda para os bens de consumo de luxo de consumo do centro – inclusive em suas
produzidos depende dessa concentração. tristes residências ‘neoclássicas’ que consti-
A primeira relação parece-me indiscutí- tuem uma irrisão para a grande arquitetura
vel. Já a segunda, eu creio que perdeu grande brasileira daquele período – reproduzem
parte da sua validade. Nos anos 60 e 70, também, de forma acrítica, a ideologia ex-
quando muitos dos bens de consumo de terna. Ao invés de definir, caso a caso, qual
massa estavam restritos à classe média e à o interesse nacional, e defendê-lo, preocu-
classe alta, a concentração de renda já exis- pam-se apenas em ‘confidence building’. O
tente era reforçada pelo tipo de bem produ- que lhe interessa é saber o que os estrangei-

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ros pensam do Brasil, não o que o Brasil desenvolvimento-subdesenvolvimento, que,


pensa sobre seu futuro. aliás, foi o título de um de seus livros mais
Celso Furtado intui este fato quando a- importantes (1961). Para compreender o
firma que “o ponto de partida do processo de ‘atraso’ brasileiro ele chegou afinal à con-
reconstrução que temos de enfrentar deverá clusão que o subdesenvolvimento não é um
ser uma participação maior do povo no fenômeno de atraso, não é uma etapa do
processo de decisão” (p.36), mas em segui- desenvolvimento, mas uma forma particular
da, contraditoriamente, ele manifesta sua de crescimento econômico resultante de um
esperança de que os trabalhadores inte- processo de dependência na qual está envol-
lectuais ajam como uma vanguarda para vida uma armadilha que mantém o país
evitar a mancha de irracionalidade se alastre. preso ao próprio subdesenvolvimento. A
Não creio que os intelectuais tenham essa dependência se expressa na reprodução dos
capacidade ou mesmo essa virtualidade. Só padrões de consumo do centro, e em duas
vejo esperança para o Brasil na medida em conseqüências desse fato: a propensão ao
que a democracia se aprofunde, que círculos endividamento externo e a propensão à
cada vez mais amplos da população se concentração da renda. A idéia de que possa
envolvam no debate público, tanto a nível haver crescimento sem desenvolvimento
local e setorial como a nível nacional, esta- esteve no centro de sua reflexão teórica,
belecendo assim limites para a alienação das afirma Furtado.
classes médias e altas. Esta tese é pessimista, e não explica, por
Furtado tem toda a razão quando diz que exemplo, como a Coréia foi capaz de escapar
a questão central é saber se temos ou não do subdesenvolvimento. Nem explicar os
possibilidade de preservar nossa identidade avanços econômicos que, de uma forma ou
cultural e nacional. De forma talvez igual- de outra, ocorreram no Brasil nos últimos 50
mente contraditória, estou seguro que a anos. Por isso Furtado nem sempre foi final
temos, não obstante toda a força da ideologia à sua própria teoria do subdesenvolvimento,
globalista, que insiste na tese da crescente embora ela seja poderosa para explicar, por
debilitação dos estados nacionais. Na globa- exemplo, a quase-estagnação em que vive o
lização os estados nacionais são mais inter- Brasil e a América Latina nos últimos 20
dependentes, mas precisam ser cada vez anos.
mais fortes. Globalização é competição entre O fato de estarmos presos ao subdesen-
empresas nacionais (convencionalmente volvimento não nos deve perder de vista a
chamadas de multinacionais) a nível mun- possibilidade do desenvolvimento, alerta
dial. O que os governos dos países ricos Furtado. O desenvolvimento é uma realiza-
fazem é defender o capital e o trabalho ção do homem através da qual ele realiza
nacionais – ou seja, suas empresas nacionais. suas potencialidades. Potencialidades que só
O Brasil não tem outra alternativa senão são plenas nos quadros de uma sociedade
fazer o mesmo. aberta. Portanto, ele conclui, somente uma
No final do livro, em um capítulo com o sociedade democrática e pluralista é apta
título “A Responsabilidade do Economista”, para um verdadeiro desenvolvimento.
Furtado faz uma maravilhosa síntese de sua O desafio que os jovens economistas en-
vida e sua obra, e dá conselhos preciosos aos frentam continua semelhante ao que Furtado
jovens economistas. enfrentou 50 anos antes. Em seu trabalho,
Ele começa por definir o grande desafio dois ingredientes são necessários: a imagina-
que ele próprio enfrentou e que os jovens ção e a coragem para arriscar na busca do
economistas de hoje ainda enfrentam: o de incerto, e para afirmar, de um lado, os valo-
elaborar um corpo de teorias que explique, res universais, e de outro, o interesse nacio-
em termos esquematizados e simples, o nal. Furtado fez da sua vida a afirmação
funcionamento de uma economia subdesen- dessas duas virtudes maiores, e dessas duas
volvida e semi-industrializada como a bra- grandes ordens de valores. Em suas palavras,
sileira. Como essa teoria ainda não existe, o “minha longa caminhada foi balizada por
economista sai da universidade com mais duas referências que creio maiores: o com-
dúvidas perplexidades do que certezas. promisso ético com valores universais e a
O estruturalismo latino-americano, que confiança na liderança de forças sociais
Furtado ajudou a definir nos anos 50, foi cujos interesses se confundem com os da
uma tentativa de destacar a importância dos coletividade nacional”. Foi, como ele pró-
parâmetros não-econômicos nos modelos prio se afirma, um heterodoxo, que sempre
macroeconômicos. Como as variáveis eco- soube que os consensos ou os caminhos tri-
nômicas evoluem no contexto histórico é lhados são de pouca valia. Porque, conclui
impossível isolar o estudo da economia do Furtado, o economista, “à medida que pensar
seu quadro histórico. Como se vê, portanto, por conta própria, com independência,
o institucionalismo tão em voga nos últimos conquistará a auto-confiança e perderá a
anos tem pouco de novo. perplexidade”.
Segundo nos diz Furtado, seu pensa-
mento econômico se centrou na dicotomia

Luiz Carlos Bresser-Pereira


Professor da Fundação Getúlio Vargas

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