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NO QUARTO COM PROUST, NIETZSCHE, DELEUZE notas sobre o desaparecimento do leitor na literatura | Gilcilene Dias da Costa te texto é um convite a adentrar nos labirintos ingremes do pensamento solico-literario, tateando o quarto escuro da leitura sem falsas promessas de Alias, aqui nao se busca encontrar saidas, tampouco o espectro de um ifor anos guiar, quando muito, desejamos encontrar adjacéncias e canais por nie possa escomer a seiva da vida que nutre o fmpeto literdtio, Trata-se de rcicio do pensar por fruigo, despojado da cronologia do tempo com- © que imprime suas marcas contra a experiéncia da entrega, ¢ talvez, por 9. Se possa experimentar sensagdes adormecidas ou redescobertas nos 95 da criagio entre um “tempo perdids” e um “tempo reeni¢ontrado” itura, na companhia de Proust, Nietzsche e Deleuze. fessas linhas de entrada, proponho pensar de inicio a hipétese do aparecimento do leitor na literatura do ponto de vista de duas nogdes das: a ambiguidade da palavra ¢ o deslocamento de sentidos. Em i, jogar com a metifora do quarto da leitura como poética do ha- experimentar subir aos cumes do pensamento bordejando abismos, i uma linha invisivel e feiticcira nos labirintos da leitura, habitar uma de vizinhanga entre filosofia ¢ literatura desprovida da presenga do jue diz “ew?” e teclama por significagées, Partiremos em dirego ao primeiro encontro: pensar a hipétese do de- ecimento do leitor por meio de um duplo movimento: a ambiguidade ivra e 0 deslocamento de sentidos, para assim transfigurar a ideia de 6 da leitura como postica do habitar, juarto do Outro: uma poética do habitar tar da nogio de “desaparecimento” do leitor na literatura, pro- at com algumas provocagées: Como sinalizar a ideia de “desa- lento” do leitor se, como sabemos, ele proprio constitui o elo ou a € que interliga a dadiva do escritor a suas impressdes de mundo? Se, como aprendemos, a figura do leitor é classicamente celebrada como a de um sujeito (do conhecimento) sem a qual todo texto se configuraria uma linha morta? Mas, se a0 contrério disso, podemos nos langar ao sentido de uma hipétese do “desaparecimento” do leitor na literatura, como entio justificar que essa ideia seja plausivel? E afinal, de qual “desaparecimento” e de que “leitor” aqui se fala? Parece, em primeiro plano, que a nogiio de ambiguidade da pala- vra auxilia na analise da hipétese do “desaparecimento” do leitor, por um duplo jogo de sentidos: Por um lado, nao se trataria simplesmente de atestar uma critica ao arquétipo do leitor moderno — um tipo de lei- tor duramente criticado por Nietzsche nas suas Conferéncias de juven- tude (1872), configurado como um leitor utilitério que 1é apressado e com uma finalidade produtiva —, contrapondo a ele um outro arquétipo de leitor (um leitor calmo e atento, cuja serenidade e lentidao fariam esvair a pressa do utilitarismo da leitura). Tal exercicio pareceria um tanto bindrio ~ no obstante o refinamento da critica do jovem Nietzsche ¢ seu anseio por um leitor contemplativo que dignificasse a atividade leitora para além do utilitarismo —, de modo que essa linha de pensamento nao consistiré no caminho a set seguido no pre- sente texto, especialmente levando-se em conta que, ‘na atual temporalida- de em que vivemos — marcada por aceleradas transformagdes tecnolégicas que exigem cada vez, maior velocidade e produtividade no trabalho e em todos os setores da vida, colocando em marcha as sociedades confémpo- rineas na direg&o de parametros de conhecimentos cada vez mais prag- miaticos —, soaria, de certo modo anacrénico, atestar a figura de um leitor contemplativo como “ideal” de formagiio. Buscando trilhar uma outra via ao pensar, proponho um desloca- mento de sentidos capaz de transpor esse limiar de personifi¢agées ot de arquétipos prefigurados na figura do “leitor”, para saltar ao encontro da leitura e da literatura por meio de sensagdes ¢ afecgdes gestadas no dorso desse encontro, no livre cavalgar da imaginagdio em diego ao des- “conhecido, espreitando o que nelas hd de dlesassossego € inguictude, de “Intensidade ¢ arrebatamento, de despojamento de um “eu” leitor que tudo conhece, significa, julga, utiliza, destituindo-o de sua prépria personifica- ¢40, desalojando-o do lugar-comum de sua catedra do saber, do seu “quar to” intimo de leitura. Com tal intuito, buscamos espreitar a leitura e a literatura por entre frestas, por um arregagar de janelas e cortinas, um embaralhar de bilias, um transfigurar dé fisionomias, um deslocar da imagem classic? eS TRANSVERSAIS COM GILLES DELEUZE ae pola Uma ra me pedra... im passarinho me drvore. se, desprovido de possiveis saidas, em cuja arte é capaz de trans- ‘espacos -quebrando patedes ¢ abrindo pontes para a relagao eu- jiagem labirintica de quarto reeusa a linha reta ao pensar, recusa § © seus rebatimentos, recusa lugares fixos para habitar, 20 con- "vaguear a ‘ermo pelo quarto do mundo, da imaginagao; no do. vO se pode entrever nas s silhuetas dos autorretratos, tdo nossos siicontro com o outro devém uma poética antropofigica da leis 3 pela nudez do corpo vivo da palavra. A fisiologia do de- |a sensualidade do sentir, do cheirat, do tocar, do degusta do 108 selecionar valor sin; tados para, em segui doutrinatias; seguir | gular de uma boa leitura; ler com os sentidos apu. da, desloci-los e desapropris-los de possiveis ideias lendo os pensamentos ¢ confabulando 0 novo mesmo Ja tendo o livro fechado — tal a sabia Percepgao do poeta do infimo: “o olho x, a memoria reve, a imaginagao transvé" (Manoel de Barros). _ O habitar ruminativo da leitiita ge faz aqui por um duplo desejo sele- tivo, a0 que chamamos de eanibalismo da leitura: fortificar se ¢ padecer no outro. No quarto da leitura o outro habita; seu espectro de inquietude ¢ desassossego afloram desejos miiltiplos ¢ sensagdes desconheeidas que atraem o pensar na sua diregdo: desejar outro, desejar ser outros, encon- ‘rar sua fortaleza na desordem da ilusdo. Mas, paradoxalmente, ha que se dizer da derradeira armadilha: na fortaleza da leitura habita igualmente a sua vulnerabilidade: 0 ser afetado pelo outro com ele padece: de suas do- res, de seus temores, de seus amores... de tudo o que nele hd de grandezae fragilidade se partiha, desde que a relagao seja de pura entrega, Uma leitura ruminativa & aquela capaz de deixar-se afetar pelos sig- nos do texto, do mundo; por obra de sua carga fisiolégica, ela afeta nervos @ entranhas, move o corpo ¢ 0 éspirito em mmltiplas diregdes, ~~ Ruminar preciso! Ruminar os pensamentos, De boca aberta, degustare sentir fome pelo que se fez¢ pelo que ainds nio se fez. De olhos abertos, elevar os pensamentos a prova do alto ¢ do baixo, com leveza e gravidade. Espreitar os pensamentos e, junto deles, seus atos de bravura e coragem, de fraqueza e lassidto, Rewninay & preciso! “Ruminando, eu me pergunto, paciente como uma vaca: auais foram, afinal, as dez vitérias sobre mim mesmo?” (NIETZSCHE, 2000a, p. 55). © importante é manter os olhos, a boca e os ouvidos:~ apurados, “juntar o libertino com o libertitio, o desejo com a ebeldia” CADEU, 2005), deixar 0 pensamento algar voos mirabolantes em suas Tajadas de criagio, Romper a comodidade do pensamento para tocar na Vida ld onde ela é mais sensivel e fazé-la fremir e delirar até que ge noutros tempos, noutras relagdes, um habitar entre ou uma zona de pro- es ee entre filosofia e literatura, mediante a recolocagao do elemento for”) e sua individualidade — dai a ideia de seu hesapactineaie™ = habitar poético da leitura movido por encontros e afecgoes. 2. Cavalgar no dorso do tigre: de vizinhanga entre filosofia e literatura ‘oniraparte, base onde se assenta o habitar ambiguo da litera = da filosofia, pois, nisto consiste “o carater diabdlico do amor”: io (emblema da crianga em sua nudez e inocéncia) impunha a la destaziio ¢ da paixao langando dardos mortiferos que atingem ‘Somids afetados de amor e de ddio sempre que o gesto da leitura pro- ‘um desassossego e uma inquietude ao pensar. Quando, como em she, a propésito de seu encontro com O mundo como vontade e como nfagdo de Arthur Schopenhauer (aquele que seria o seu “primeiro e ducador”), por ocasido de sua entrada em um antiquério em Leipzig 1865, teve a sua atengao ¢ sua filosofia mudadas para sempre. O ir no dorso da leitura produz, duplamente ao pensamento, euforia 106 © embriaguez, espanto e consternagao. Na leitura como na escrita, somos afetados pelas alegrias e dores do mundo, provocados a criar procedimen- tos de intervengaio capazes de traduzir a8 Sensagbes ¢ percepgdes frente a0 que vemos, ouvimos, tocamos, ¢ a0 que nos vé, ouve, toca em meio a deslocamentos miltiplos de sentidos. . Em Hermenéutica e Poesia (1999) Benedito Nunes nos fala de uma “proximidade-na-distincia” entre poesia ¢ filosofia como uma “poetizagao da filosofia e uma reflexividade da critica” (p. 9), uma “dialogagio” capaz de recriar nossas relagdes com o mundo (p. 10), tornando hibrido o género da escrita. Deslocar os sentidos na leitura ¢ na escrita do texto poctico-filosdfico implica, nessa acepgio, nao apenas habitar uma “proximidade-na-distn- cia”, resguardadas as suas singularidades, sobretudo, néio tomar'o “pen- samento poético” por um interesse cognoscente da filosofia pela poesia, tampouco a poesia como um bilsamo frente a aspereza do pensar critic € conceitual da filosofia. Novamente aqui o deslocamento se faz necessa- tio, pois, trata-se, a0 contrdrio, de um transladar de sentidos, qual seja: dar-lhes uma ampla volta do redor dos signos (como a cobra de vidro or detrés da casa manoelesca, onde passa um pequeno cérrego), um i nos contextos ¢ paisagens, um devir pensador-poeta por uma “dialogagao” onfrontagao” no ambito do pensar-sentir. wel transito: ir da filosofia A poética, ir da poética a filosofia, de modos que “entre as duas nfo haveria conversio mutua: nem a filosofia transforma-se em poesia, nem a poesia transforma-se em filosofia, O mo- vimento de vaivém de uma & outra implica num singular confronto entre as duas” (NUNES, 1999, p. 15), uma “proximidade-na-distancia” na zona de vizinhanga em que se percorre uma dupla conversio simétrica: “da filoso- fia.em arte e da arte em filosofia” (p. 17), de modos que “no poeta desponta 0 fildsofo € no filésofo remanesce o poeta” (idem). Aqui, um jogo de trans- figuragdes entra em cena: o leitor/escritor “camaledo” métamorfoseia-se constantemente, usa de versatilidade para tramar a poesia com a filosofia (como nos lembra 0 quarto kafkiano). ‘Tal versatilidade poderia ser notada na perspectiva do encontro trava- do entre o velho fildsofo ¢ seu amigo ~ invocados por Nietzsche em suas Conferéncias sobre Educagao (1872/2003) ~ ¢ os jovens universitirios de Boom, quando, as margens do Reno, no seu impeto de filosofar, de criar a arte de sua cultura, ambos reivindicavam para si a tranquilidade e a s0- lido do pensamento. Sabiamente, Nietzsche os coloca em uma zona de vizinhanga em que tanto os jovens quanto o velho fildsofo ¢ seu amigo CCRIAGOES TRANSVERSAIS COM GILLES DELEUZE: ~ artes, saberese paitea ‘ar experimentam a forga de um pensar por meio da “meditativo generis fue juri® (reflexao geradora de futuro), j4 que ambos sao de acordo que “a cultura no pode reproduzir e crescer quando a educagio esté orientada para uma profissdo, uma carreira, uma fungdo, um cargo, quando é movida pelo ‘espirito utilitirio”” (NIETZSCHE, 2003, p. 11). Nietasche fala aos __ que ainda nao desprenderam, a pensar, que se inclinam arduamente ¢ com _ tamanho prazer sobre 0 que leem ou ouvem mesmo muito tempo depois © deterem fechado 6 livro ou 0s ouvidos. Na impetuosidade dos jovens, um im queremos filosofar!”. Na sereni dade do fil6sofo, sabias palavras aos jovens: “Como? Vocés temem que 0 l6sof0 os impeca de filosofar?”. Nesse transladar cle sentidos entre gera- -g6es, a cumplicidade do pensar € cultivada: “Aqui esto os nossos banco: €oloquemo-nos agora longe uns dos outros; néo queto impedi-los de refle. __ fir sobre'a methor maneira de se tornarem homens cultos”, O reverberar _ das vozes entre geragdes jé néio podia ser ouvido sem uma atengdio especial a0 pensar de ambos. Assim, falamos de um pensar poético que transborda a ideia de “es- fatuto” da Filosofia ou da Literatura, pois, nessa zona de vizinhanga in- __ lefsticial, habita uma filosofia que se pe a poetizar e uma poesia que se ‘poe a filosofar — um duplo exercicio, rigoroso e sensivel do pensar, uma Capacidade de tomar e entregar a palavra como dadiva, experimentando os Seus abismos ¢ suas indefinigdes, ou ainda, uma busca por existir, pensar, Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche ensaia uma elevagao do espi- ito ‘aos cumes do pensar percorrendo os labirintos de seu refiigio. E afir- ma: “Os aforismos devem ser cumeeiras, e aqueles a quem se fala devem fer homens altos e robustos” (NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra). A imagem da cavemna enseja, duplamente, ares de refiigio e perigo, fortaleza _ @indecisao, Nela encontra-se 0 abrigo necessdrio para escapar das intem- _Petles do tempo e da solidio do espirito — ao que Zaratustra desfiutou na _ Sompanhia dos seus animais (a aguia e a serpente) —, mas nela também __ Sobrevoam os assombros do pessimismo, da sotidio, do isco de um cir. = Olnscrever-se em soberba e erudi¢ao, = Cultivando a inocéncia ¢ o esquecimento, Zaratustra alcanga os cumes do pensar, sendo agil e leve se faz alto e robusto, na maturidade do espirito encontra-se envolto em sabedoria radiante, mas imerso em solidéio. De seus animais (a Aguia a e a serpente) emprestou o espirito desbravador e altivo, ¢ tendo enchido a taga que por longos anos o alimentou, nao almeja afogar-se em soberba e soliddo (alids, Zaratustra nao é um erudito, cuja sa- bedoria guardaria para si como tesouro, posse, prestigio). Nao. Zaratustra, no quer sex um erudito estéril tampouco um eremita solitério que vaga ao ermo em sua floresta infértil longe de toda perturbacdo, rejeigaio e convivio humano. Quer set Zaratustra, a0 contrario, uma aurora, uma celebragio, uma taca que transborda em diregiio a outrem, quer viver seu ocaso en- tre os homens, perigo e salvagdo, seu tinico destino e derradeira solidao, “Quando 0 vosso coragiio se dilata, amplo ¢ pleno, tal como um rio, bén- ¢Go e perigo para os que vivem as suas margens: ali esté a origem de vossa virtude” (NIETZSCHE, ZA, 2000, p. 103). ‘Alcangar os cumes do pensar exige que tenhamos asas e espirito leves no encontro com a leitura, fazer,da propria caverna um labirinto (nfio uma linha reta com entradas e saidas, no um fechamento ou um rebatimento sobre si mesmo — aqui néo pensamos na caverna de Plato ¢ seu pressu- posto representacional), um labirinto por onde possamos nos perder na desventura de nos encontrar. Aventura para a qual necessitamos de espirito aventureiro, destemido o suficiente para nos langar ao dorso do tigre e com ele galopar perigosamente, experimentando 0 risco que implica vi- ver. Chega a ser! Torna-te! E. se os aforismos so cumeeiras ¢ aqueles a quem fala devem ser altos ¢ robustos; talvez. emprestéssemos das criangas a sua destreza e plasticidade corpéreas para tocar os cumes das arvores, das montanhas, das habitagdes, para deitar nos leitos dos rios, embrenhar- -se por lugares inéspitos do pensamento em busca de frigo, encantar-se com a descoberta do novo sempre que este Ihe fascina. (Parece-me, nao obstante, que o ser maduro, alto e robusta, a quem os aforismos devem al- cangar, necesita de plasticidade no pensar, tendo sido 0 corpo e o espirito muitas vezes enrijecidos pela moral), ‘Apostar e perseguir o proprio destino. O profeta errante dispensou a procura por um deus (desconfiando que soubesse dangar), ¢ © seu diabo; achou-o “‘sério, meticuloso, profundo, solene: era o espirito de gravidade — ele faz todas as coisas cairem” (NIETZSCHE, ZA, Do ler e escrever, 2011, p. 41). Nao buscou um “além-mundo” que reconfor- tasse 0 seu pensar, preferiu o circulo da vida por onde passa todas as coisas, por onde podemos tocé-las, senti-las, imagina-las, espreitar sua gra ent cur pric san | eset sec gao ouv mos thas 109 andeza ¢ miséria. Altivez e prudéncia os seus animais o ensinaram, snroscados em circulo nupcial do anel do eterno retorno, um viver na ‘cumplicidade da vida e da criagio, O viver ¢ 0 pensar de Zaratustra sto veias por onde escorrem seu pré- ‘prio sangue: “De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o proprio -sangue. Escreve com sangue: e verds que sangue é espitito” (NIETZSCHE, ‘7A, Do ler e escrever, 2011, p. 40). Nao digere bem aqueles que lem ou _ eScrevem por passatempo, por desfastio, Nao obstante o seu falar e escrever com sangue, a lingua de Zaratustra ‘erava em “brOnzeo silencio”, suas palayras se calam na surda fermenta- 0 dos campos dos ouvintes, onde nada floresce. Zaratustra nao encontra _ ouvidos para a sua boca: 20 (1) O brénzeo siléncio — Cinco ouvidos ~e som nenhum neles! O mundo estava mudo... Escutei com os ouvidos de minha curiosidade Cinco vezes tancei o anzol sobre mim, Cinco vezes néo puxei peixe nenhum ~ Perguntei ~ resposta nenhuma cait-me na rede~ Eu escutava com 0 ouvido do meu amor (NIEPZSCHE, Fragmentos finais, 2007). Persistir amando o seu destino. Aqueles a quem falava Zaratustra ora lostravam-se perdidos ou céticos demais em seu proprio caminho, como ove- _ thas procura do rebanho, ¢ por isso falou-lhes a sua derrota e ao seu desprezo: : 20 (31) [ovelha perdida] queres pegé-los? fala para eles como ovelha perdida; “vosso caminho, 6, vosso camino v6s 0 perdestes” Eles seguem qualquer um que assim os adula, “como? tinhamos um caminho? segredam entre si: parece que realmente temos um caminho!” (NIETZSCHE, Fragmentos finais, 2007). Sabe Zaratustra que 0 riso gélido do desprezo e do orgutho sao armas contra a elevagao. Mas também com 0 iso se mata o espirito de gravidade, levando-o a sua autodestruiggo, ‘Nao com a ira, mas coin o riso é que se mata. | Eia, vamos matar o espirito de gravidade! Aprendi a andar: desde ent&o corro. i Aprendi a voar: desde ent&o, no quero ser empurrado para sair do lugar. Agora sou leve, agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora danga um deus através de mim, Assim falou Zaratustra. j (NIETZSCHE, ZA, Do ler e eserever, p. 41). Inocéncia e esquecimento. O espirito quando se faz leve coloca o leitor para dangar, contesta 0 ressentimento ¢ a soberba daquele que diz “EU”, desposa a aurora do’ pensamento em citculo nupeial afitmando 0 | Sim da criagao. Daqui partiremos ao encontro de Deleuze. / 3.2 Deleuze e a poténcia do devir-escrita Em Critica e Clinica (1997, p. 13), Deleuze escreveu: “A literaniva 86 comeca quando nasce em nds uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer EU”. 4 Percorrer os insondaveis labirintos entre texto e leitura constitui a um importante desfio aos desbravadores do limiar entre filosofia e lite Tatura nas veredas da Diferenga. De filosdfica, a postica, a literdria, a musical, a cientifica, a midiatica, a discursiva, a biogréfica, a dramatica, a historiografica, a pedagégica, a erdtica... a escrita literdria se embre-__ nha por enite tessituras de palavras e paisagens incomuns que se trans: mutam ¢ se recriam num vaivém de sentidos e siléncios incapturiveis. O “quarto” de Proust, o “tribunal” de Kafka, 0 “escritério” de Bartleby, © “labirinto” de Ariadne, o “filme” de Beckett, 0 “paleo” de Attaud — para citar alguns espectros que se embrenham no pensar deleuziano ~, soariam como perspectivas de um “arrastar a lingua para fora de seus _ sulcos costumeiros, levando-a a delirar” (DELEUZE, 1997, p. 9), um 4 “petfurar buracos” no pensar, um produzir uma “gagueira na prépria a lingiia”, transmitando a individualidade em “uma linguagem afetiva, ntensiva, € no mais uma afecgio daquele que fala” (p. 122). i | i | to ou, -- CRIQOES TRANSVERSAIS COM GILLES DELEUZE: ‘ares, seerese poliiea O movimento de transfiguragao pela leitura exige uma “operagao po- “tiga” em que 0 terceiro, ¢ seus miiltiplos atravessamentos subtrai o poder “de dizer “EU” e crava, na atividade do pensar, uina Variagaio continua que toma imperceptiveis os Seus proprio’ limites: “é como se a lingua esten- © desse uma linha abstrata infinitamente variada” (DELEUZE, 1997, p. 124). ‘olocar a lingua em “estado de devir” implica recolocar 0 acontecer do discurso na fronteira da linguagem e sua proliferagao. ~~ Assim, o “QUEM” na literatura nao remete a pessoas, ¢ sim, a forgas ~ edevires. Ariadne e set labirinto, por exemplo, néo seria uma simples <= mulher na trama amorosa situada entre dois homens (Teseu ¢ Dioniso), | geria uma forga e um arrebatamento que a arrastam indeterminadamente __= para.a vida e para a morte, serido traida, traindo ¢ atraindo as forgas de afir- | maga (Dioniso) e de negagao (Teseu). A dupla transmutagao do espirito de Ariadne perfaz. 0 limiar de seu préprio labirinto: Ariadne deve perecer . “Sé prudent, Ariadne!.. atura Tens pequenas orelhas, tens minhas orethas: iui do *Poe ai uma palavra sensata! : Nao é preciso primeiro odiar-nos se devemos nos amar?... istitui Sou teu labirinto...” . (DELEUZE, CC, 1997, p. 114) _ Mais que uma forma de eserita, o devir ¢ abertura ao novo com estilo Quando se trata de escavar por baixo das histérias, de rachar as opinides € de atingir as regiges sem tiémérias; quando & preciso destruir 0 eu, nnte ndo basta ser um “grande” escritor, ¢ os meios perinanecetn para sempre inadequados; o estilo torna-se niio-cstilo, a lingua deixa escapar uma lingua estrangeita desconhecida, para atingir-se os limites da linguagem e tomat-se outra coisa que ndo escritor, conquistando visdes fragmentadas que passam pelas palayras de um poeta, pelas cores de tim pintor ou os sons de um misico” (DELEUZE, CC, 1997, p: 129). Liberta dos grilhdes (antigos e modemos) do canon do conhecimento que airastaraim a lifiguagem a um submundo sombrio, “representativo”, “reprodutivo” das verdades produzidas por um Sujeito cijo ardor “racio. nal”, “auténomo”, “moral” resguardara a alcunha da verdade, as lingua Bens aqui evocadas se erguem cémo poténcia criadora ¢ transfiguradora para ativamente produit, fabricar, inventar, dissimilay, falsear, deslocar, adiar sentidos, proliferar discursos dos quais fala ow silencia. A eserita como devir-estilo subtrai o “EU” escritor/letor, o retira da sua zona de conforto do jé sabido e o langa ao risco do deseonhecido: de olhos ¢ bocas apetecidos a linguagem a mais turva e fagaz nos envolve, | com Seu universo de sentidos ladeados, Personagens convulsionadas, sub- jetividades transmutadas ao sabor das sensagdes. E como diria Foucault | | | { (2000, p. 5): “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo comego possivel” a A escrita como devir-estilo perfaz um limiar ténue de uma entrega livre e arriscada, pois implica, a0 mesmo tompo, estar dentro e fora de certos regimes de pensainento, contra elés, além deles, ao ponto de langar seu olhar eritico e clinico sobre dada realidade ou faticidade. Nesse limiar, a diferenga se diz de uma transmutago que poe em xeque o pensamento da identidade ~ essa interioridade que cerra as portes do seu “eu penso”, do seu “territério”, do seu “quarto” frente & radicalidade do outro. a exre, rioridade dos signos que a interpelam por todos os lados, invitando-a a se deslocar. Diferenga que irrompe omo forga avassaladora num salto sibi- {0, uma impostura ou inconformismo do pensar/agir sem pedir autorizagaio Para manifestar-se, que nao anseia ser conhecida, nomeada, classificada, tolerada, reconhecida, enfim, que nao aguarda que Ihe concedam a “pers missdo” para interrogar certos sistemas de Pensamento, pata entrar ou sair “da ordem do discurso” que Ihe interdita a presenca ¢ desauioriza a Yala sobre questdes que deseja perscrutar. Um devir-escrita que acerca 0 pensamento com um “barulho”, um _Tuido” que aturdia os sentidos e dilacera as certezas do “EU”, intriga os limites dessa zona de conforto onde costuma residir nosso pensar em aten- ¢40 aos signos do mundo. Ao tratar a questiio da escrita, Deleuze (1997, p: U1) afirma: “Escr ‘0 de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, ¢ que extravasa qualquer matéria vivivel ou vivida”. Isso indica que as relagdes entre literatura e filosofia perpassam uma “zona de virinhanga” que atravessa 0 vivido e o vivivel (ou, 0 tempo que passa, que se perde, € 0 tempo que se descobre, se reencontra — como em Proust). Dirlamos que um devir-escrita provoca um desprendimento de dominios ‘ ¢ u 1 cr m oa Bi De tipt tera Lite ling ang saga sem suby Plici TRANSVERSAIS COM GILLES DELEUZE: 413 a Filosofia e Literatura — sempre que estas arrogam para si “esta- de verdades predefinidas ~; pois um devir & forga, intensidade que ‘08 acontécimentos, as palavras, as sonoridades para além do que am, indo de um extremo a outro da linguagem, do tempo em circus E nesse registro, toda escrita conspira lugares, paisagens, trajetos, ens, cruzamentos, bifurcagdes que aproximam ou separam pessoas 9s, sendo que, “toda obra é uma viagem, um trajeto, mas que s6 pre tal ou qual caminho éxtetior em virtude dos caminhos e trajet@rias que-a compéem, que constituem sua paisagem ou seu concerto” UZE, CC, 2004, p. 9-10). Jesterritorializada do pressuposto referente, a linguagem autoral se é em vaziio polifénica, linguagem cambiante, aberta aos sentidos idos das coisas; talvez, o devir se diga de uma linguagem-outra, ed0-outra desgarrada da “mesmidade”. Gestada no dorso da 0 devit-postico da escrita transpassa os dominios da subjeti- das interpretagdes e dis Verdades, percorre as margens da “plu- da contaminagto, da instabilidade, da confusdo”, tona fecunda transfigurada em devir-de-todos, em devir-mundo, Em vez de no tridngulo edipiano que diz: “meu pai me bateu” (restando cir 40 subjetivismo da dentincia para poucos), 0 devir-escrita confia- infancia-mundo (coletiva, social, como a infancia gracilianesca, quanto a do escritor), reverberando um sonoro: “bate-se numa (Deleuze ¢ Guattari), tocando a exterioridade dos signos e sub- § que subtraem a crianga a sua propria infaincia, ~ A operacao postica da escrita alcanga, por assim dizer, o politico e 0 lo pensar, mediante um processo de desterritorializacdo da lin- Hla inventa um essilo ou uma minoragdo na propria lingua, a qual €Guattari denominaram “literatura menor” potencia do poctar/filosofar de uma “literatura menor” aciona nmul- dades de olhares e escutas extempordneas ao tempo ¢ ao lugar. A “li vmenor” avizinha-se a um poetar/filosofar que perfiura buracos na ira.¢ a destitui do poder de dizer “EU”; dissemina a proliferagao de eris-outras (aforismos, metéforas, maximas, satiras, liras...) como ‘uc ressoam extemporaneas, errantes, extravagantes; tece infinitas #0 pensamento na desventura de perdet-se para talvez se reencontrar, ‘omessas. — Ima “literatura menor” enquanto estado de devir, requer um gesto é um ato de revolta e coragem, mas também, de sutileza e sim- le fazendo da escrita “a toca do rato, o buiaco do cio”, erguendo 4 trincheiras contra os fluxos instituidos de poder; implica um gesto de /eve- 2a ¢ desprendimento do autor/leitor, para andar com pés ligeiros ¢ espirito leve, para alcangar os cumes do pensar, para ensaiar pequenos passos de daniga ¢ movimentos plasticos corpéreos, ~— Finalmente, ao encontro de Proust, espreitaremos os interminaveis deslocamentos de tempos plurais de sua escrita, um cavalgar no dorso de uma temporalidade desviante, composta por conexdes & rupturas entre 0 “tempo perdido” € 0 “tempo redescoberto” da leitura, confabulando, em sua companhia, as aprendizagens que por ai se passam. 3.3 Proust e os labirintos do quarto da leitura i i Podemos dizer que o enigma da leitura em Proust, ou o que se passa | entre o “tempo perdido” ¢ o “tempo reencontrado” de sua infincia, perfaz | um limiar de intervalos ¢ deslocamentos que adiam permanentemente 2 captura de sentidos, pois se trata de um limiar atravessado pela obscuri- dade, pela dissipagao do tempo linear, pelo transbordamento de sentidos ¢ lampejos de memérias. | Em Proust eos signos, Deleuze (2003) se refere a obra de Proust como | | uma unidade de signos tecida na heterogeneidade do tempo. A Recherche dessa escrita vai além do sentido de uma simples busca; em sentido pro- fundo, ela condiz 4 “busca da verdade” ou de uma singularidade da vida no decurso de um tempo perdido que a todos arrasta. Pensamos, ainda, que a obra proustiania n&o se refere a um “romance de formagdo” porque ndo lida com finalidades em seu percutso, nfo almeja dizer como alguém se fez desta ou daquela maneira, néio busca pintar um quadro de transfor. mages para seus personagens, alids, Proust ¢ sempre arrastado por eles € suas afecgdes; antes, poderia tratar-se de “um aprendizado dos signos” — como para Deleuzé = tiasicido da violéneia do pensar. Deleuze afirma que a obra de Proust no traduz propriamente uma rememoragdo ou exposigao de uma meméria involuntaria, ao contritio, ela se constitui por um apren- dizado de signos. “Nao se trata de uma exposigzio da meméria involuntéria, mas do relato de um aprendizado— mais precisamente, do aprendizado de um homem de letras” (DELEUZE, 2003, p. 3). Aeescrita de Proust perfaz uma “busca da verdade” porque acredita que s6 busca a verdade aquele que ésta determinado a fazé-lo, no por simples vontade ou obrigagéo, mas porque se vé afetado por uma vio- léncia que o forga a pensar, que 6 arrebata para além dos “signos mun- danos”, dos “signos amorosos”, dos “signos sensiveis” (DELBUZE, ot inten ~ em b morig na co dos 0 (2003 Ruski Carlo: de um Aide c ganizo fim de tos co paleo que de manen 5 FRANSVERSAIS COM GILLES DELEUZE: es epotlt ts __ que so comumente 0s signos que se constituem & nossa volta n respeito ao dominio material do “tempo perdido” do vivido spo limitado da busca que anula o pensar. Quem busca a ver- sredita Proust, redescobre um aprendizado novo obscurecido fempo perdido”, nesse tempo que se perde (com 0 mundo, com ‘com as sensagdes); busca @ verdade aquele/a que submerge ho do tempo comuni a t6dos para reencontrar suas proprias -recriar séiitidos. “Ele quer interpretar, decifrar, traduzit, en- Signo” (DELEUZE, 2003, p. 15). “signos mundanos”, os “signos amorosos”, os “sig- eis”, que cotidianamente nos absorvem deixando pouca mar- “6 pensar, podem ser redescobertos pela experimentagiio de hie se passa 8g, coitio “os signos da arte”, Os “signos da arte”, na Visdo Ds que mais se aproximam do sentido que o escritor éde Proust, os “signos da arte” englobam todos os outros sig- uc nele interferem ¢ reagem; neles, a propria arte ¢ a literatura se lizam na redescoberta do tempo, um “tempo reencontrado” do Vale a pena celebrar, pois nele se cterniza a duragtio da de de um instante criador. ~ “fempo perdido” da leitura, na infancia de Proust, o escritor vai | de suds verdades, recorre as paisagens longinquas de suas me- para fixar-se no saudosismo de um tempo que no retorna, iborear 0 agridoce das lembrangas dos dias felizes em que viveu mpanhia de um livro, para instigar novas buscas, reencontros, senti- is da leitura. Esse relato se faz presente no ensaio Sobre a leitura - Preficio que Proust escreveu em 1905 para o livro do amigo John skin, Sésame et les Lys (o gergelim e 0s liros), traduzido no Brasil por 1at (2003) — e dado tao belo elogio A leitura, recebeu o destaque publicagao em Livro. Por meio desse elogio 4 leitura, reportaremos O-quarto da leitura como poética do habitar. _O.quatto de Proust, conta o escritor, ele proprio organizou— ou desor- ul — subtraindo dele as inutilidades mercadologicas dispensaveis, a de tornd-1o cada vez mais desapropriado para si ¢ habitavel para os ou- quem desfrutava a companhia dos livros. Esse quarto tornar-se-ia lima “arte”, uma espacialidade-outra, uma temporalidade-outra ropriaria o leitor de séu saber, de sua individualidade, séndo per- Nessa operaciio de desapropriagao do “eu” (0 “meu quarto”) desapa- rece 0 leitor que conhece, que codifica, que estabelece as regras do jogo da leitura... para emergirem as forgas ¢ as intensidades do encontro, os afécios & 0s siléncios provocados pela atividade leitora. Dirfamos se trataé’de um exercicio do pensar gestado no dorso da Diferenga (0 quarto do Outré), em Aue a reescritura do novo deixa entrever sua tenra infaincia. Talvez. no haja na nossa infincia dias que tenhamos vivido tio | plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vive. | los, aqueles que passamos na companhia de umn livro preferido, | Era como se tudo aquilo que para os outros os transformava em dias I cheios, nés desprezissemos como um obsticulo vulgar a um prazer divino: o convite de um amigo para um jogo exatamente na passagem | mais interessante, a abelha ou raio de sol que nos forgava a enguer 09 olhos da pagina ou mudar de lugar, a merenda que nos obrigavai a levar e que deixivamos de lado intocada sobre o banco, enquanto sobre ‘nossa cabega o sol empalidecia no céu azul (PROUST, 2011, p. 9). Desta ideia da leitura proustiana como “tempo perdido” e “tempo re- descoberto”, como um deslocamento temporal das memérias de inffincia, ‘ha quem prefira caminhar por entre campos Verdes, desenvolver atividades Driticas com fins especificos, ou correr por entre o mundo fisico sem rumo,. 4 vontade de preencher seu tempo move desejos. Todavia, para os amantes da leitura, 0 convite emana dos livros, como a aventura a ser vivida, per fencida em outros lugares, em outras viagens. O corpo envolve-se col leitura em um ler mergulhado naquele habitar, momentos de entrega que geram sensagdes ¢ experiéncias vivas de memérias. Na experiéncia da entrega, 0 “tempo perdido” da leitura se faz “tem po redescoberto” de sentidos, como se com 0 livro se tecesse uma rela ‘amorosa que ativasse fascinacao e intriga ao pensar. Quem, como eu, nao se lembra dessas Icituras feitas nas férias, famos escondendo sucessivamente em todas aquelas horas do d que ‘eram suficientemente tranquilas © invioldveis para abril (PROUST, 2011, p. 10). Sensagao de repouso atento ao encontro da leitura, a curiosidade ti ca da infancia quando se deleita em prazer algoz sem notar o transcorrer tempo (“como criangas caladas que jogavam sozinhas e de pronto. vivel ciam o existente; mas seus tragos, que estavam ordenados, ficaram al das para sempre” — pequena dose do poema de Rilke Der Leser), Prous que nao tinha as horas a seu favor, tinha apenas desejo, vontade: se m IAGOES TRANSVERSAIS COM GILLES DELEUZE: mater ealca iw ") despa. De manha, voltando do parque, quando todos “tinham ido fazer um Jo jogo da . passeio”, eu me metia na sala de jantar, onde, alé a ainda distante hora of afectos do almogo, ninguém, sendo a velha Félicie, relativamente silenciosa, ‘ entraria, ¢ onde nao teria como companheitos de leitura mais do que tar de um 0s pratos coloridos pendendo nas paredes, o calendaio euja folbe da Dutro), em ‘éspera havia sido ha pouco arrancada, o péndulo e o fogo que falam sem puclor que se thes responds, ¢ cujos suaves propdsitos varios de Vivido 16 sentido no substituem — com as palavras dos homens ~ 0 sentido das ‘sem vives: palavras que se teem (PROUST, 2011, p. 10). do. ja em dias Os detalhes grafados na meméria involuntéria imprimem & leitura seu ido vivido, habitam um “pertencer” a um tempo que ndo mais regressa, za em siléncios e sensagdes inseritos no corpo. jerguer os ee rigavam a : De tempos em tempos, ouvia-se 0 barulho da bomba que fazia a agua anto sobre a Corer e também levantar olhos ¢ othi-la através dos videos fechados p. 9). da jancla, ali, bem perto, na iinica aleia do jardinzinho que margeava com tijolos ¢ faiangas em meias-luas suas platibandas de amores- ___ , Rerfeitos: amores-perfeitos eolhidos; parece, nesses c¢us to bonttos, esses céus versicolores e como que refletidos dos vitrais da igreja que fividades ___ Seviam as vezes entre os tetos da vila, céus tristes que apareciam antes mrumo, | __tempestades, ou depois, jé bastante tarde, quando o dia estava prestes a amantes terminar (PROUST, 2011, p. 11). ie, pe Admiravel siléncio a reverberar no encontto com Outi, A leitura ativan tedescoberta do tempo e das sensagdes, os sentidos ¢ as sensagdes. _Waguelam, dando margem a renovaetio do pensar, do ctiar, do recriar eon. ti uamerite, ainda que, de tempos em tempos, o prazer seja abreviado pela _pfessa c obrigacao mundanas. Eu deixava os outros terminarem de lanchar na patte baita do parque, a margem dos cisnes, ¢ subia correndo no labirinto até uma alameda oncle cu sentava, impossivel de ser encontrado, recostado nos nogueirais Podados, olhando os aspargos, a cercadura dos pés de morango, o lago, onde certos dias, os cavalos faziam a égua subir de nivel andando 4 sun volta, @ porteira branca que estava acima, no “fim do parque” e, além, °s campos de centréureas-azuis © de papoulas (PROUST, 2011, p. 23). viven- $= Otempoesuas interrupgGes sempre trairiam o deleite da leitura prous- ‘altera. - Por isso, o estado de fuga e de captura das horas vagas se convertia © 8in estado de paz. Tenra lembranga das horas em que a tnica companhia S 4 ‘ a ae i ‘A tiitima pagina era lida, o livro tinha acabado, era preciso parar a resulta corrida desvairada dos olhos ¢ da voz que seguia sem ruidos, para por qui apenas tomar félego, num suspiro profundo” (PROUST, 2011, p. 25). saberiai [.u] era preciso se recompor, eta preciso “dar aos tumultos hié muito taivezs desencadeados em mim, outros movimentes para se aclamarem Me inver (PROUST, 2011, p. 25) 4 dos tug i desejo O quarto de Proust perfaz um labirinto povoado de afligdes ¢ trans- tamente toros eminentes. Nao obstante, a leitura exerceu uma fungiio curativa e | ara pot terapéutica aos espasmos doentios, sendo a geradora da “grande satide” Ff redunda para os males do espirito, A leitura em voz alta de sua mfe ressoava um somo “f gesto de carinho e alento: 2 = construl [..] dava toda a ternura natural, toda a ampla dogura que exigiam, quelas frases que pareciam escritas para a sua voz ¢ que, por assim | dizer, cabiam inteiras no registro de sua. sensibilidade. Para atacé-las = no devido tom, sabia encontrar 0 acento cordial que thes preexiste € que as ditou, mas que as palavras nfo indicam: gragas a ele, amortecia : . de passagem toda rudeza nos tempos dos verbos, dava ao imperfeito | Ain 2 4. do Outro e a0 pretérito perfeito a dogura que hé na bondade, a melancolia que 9 ha na ternura, encaminhava a frase que ia findando para aquela qie ia comegar, ora acelerando, ora retardando a marcha das silabas para: fazé-las entrar, embora diferissem de quantidade, num ritmo uniforme 9 ¢ insuflava aquela prosa to comum uma espécie de vida sentimental ¢- : continua (PROUST, 1982, p. 30). < Noutros momentos, sob 0 efeito da leitura, restava “permanceer ett. | pleno trabalho fecundo do espirito sobre si mesmo” (PROUST, 1991, p. 27): ‘Sublime atividade ruminativa: tendo o livro fechado, o pensamento prosse: gue em voos mirabolantes: ~ Olhos ainda fixos em algum ponto que, em vio, se buscaria eM meu quarto ou fora dele, porque ele n’io estava situado send numa distincia de alma, dessas distancias que nfio se medem por metro e por Iéguas como elas quando se olham os olhos “distantes” dbs que pensam “em outra coisa” E ai? Esse livro nao era sengo iss (PROUST, 2011, p. 25). Transladar os sentidos. Bailar no jogo aberto de pergunt postas, deslocando 0 “eu penso” de seu proprio eixo, para percon gas distancias, sem a pretensiio de encerrar os sentidos em um quadio.@ rar a para 25), ito rem, CRIGOES TRANISVERs a 5, Saberes @ potting ue clas me trouxeram lores, conduzindo. [eerie etm seu espirito o ato P tenham elas mesmas 8 PoUuco a poueo [...) a tura sicolégico original chamado Leit (ROUST, 2011, p, 27), CRIAGOES TRANS ales, sabores opal 120 a ates, sabres e pol dia nossa, de sorte que é no momento em que eles nos disseram tudo aiue podiam nos dizer que fazem nascer em nds o sentimento de que sinda nada nos disseram [...] (PROUST, 2011, p. 34) BARROS, M. _Inventar no deixa de ser uma desrazio aos sentidos que flutuam dise Record, 2002, Petsos por um limiar ténue da leitura, Por vezes, precisamos ir além do sentido “encontrado”, ow ainda, se no nos for “dado” um sentido, teremos de crid-lo pela dtica de sua prépria renovagiio, com intuito de que as verda- des ndo sejam um acervo de Fespostas prontas, negando a possibilidade de caminhar na diregfio de um porvir. Entre memérias de infancia e deslocamentos literdtios, Proust Mo peteumnc. cessou em afirmar 0 papel valorativo, curativo terapéutico que a leitura Editora 34. ‘199 desempenha na vida de alguém “um milagre profundo de wma comuni- ° caso no seio da solidao” (PROUST, 1991, p. 28). A leitura nos daa ler . Prous ara além das paginas, situag6es e personagens, para além do témind do 7 Machado.» ed. livro, Nela, 0 término do livro niio demarca o fim da busca de sentidos ou da temporalidade-outra da leitura, a0 contrér io, produz um impulso para _ DELEUZE, Gs desbravar o desconhecido arriscando-se a tramar um percurso na obra. _Cintia Vieita da AS memétias involuntirias que perfazem a obra proustiana nao estdo encerradas no passado (sobretudo é do futuro que elas tratam), tampouco estiio ai para serem preservadas ou resguardadas da Passagem do tempo, __ FOUCAULT. M, Pols pertenee & incerteza da escritura sua propria fugacidade no tempo, a : ¢femeridade de seus sentidos, um jogo em aberto por onde se Possatramar f _NIETZSCHE, F 9 novo nos intersticios de um “tempo perdido” e um “tempo redescoberto”_ Rio de Janeiro: C Aleitura, por fim, se faz um convite: para transfigurat corpo ¢ espirito, para experimentar as afecgdes de seu amor ¢ Softimento (amor fari), para habi- — = . NIETZ: tar poeticamente os labirintos dos quartos, os cumes do pensar, os abismos César de Souza. § ca memoria, as asas da imaginagao... para devir-passaro e constrais ninhos nos omibros das érvores onde ambos possam se metamorfosear: COSTA, G. D. Tese de Doutc Alegre-RS: UF Reimp. Belo Ho: : » Eseritos Nodli Correia de A - Fragmen _ Kothe. Brasilia: Ec NUNES, B. O dor S - Hermenéy UFMG, 1999,

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