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“Espetáculo da Natureza”1: a História Natural a Serviço da Coroa Portuguesa

(1770-1808).
Guilherme de Souza Maciel
(IFMG/UFMG)

Esse texto apresentar as primeiras reflexões de minhas pesquisas de doutorado,


ainda em estágio inicial, cujo objetivo geral é estudar como a Coroa portuguesa, no
contexto do seu reformismo ilustrado, promoveu uma política de desenvolvimento
científico, particularmente no campo da História Natural, visando superar seu atraso
econômico e cultural em relação a outros países europeus.
A Coroa portuguesa, na tentativa de se adaptar ao ambiente revolucionário do
século XVIII, promoveu reformas inspiradas no movimento das Luzes, procurando,
contudo, manter alguns traços do Antigo Regime2. Esse conjunto de reformas foram
realizadas durante os governos de D. José I (1750-1777), D. Maria I (1777-1816) e de
D. João VI (1816-1826)3. Nele, buscou-se a recuperação e a superação do atraso cultural
e econômico luso a partir de ações na área educacional – no caso da reforma da
Universidade de Coimbra (1770-1772) –, empreendida pelo marquês de Pombal, bem
como através de uma atuação mais pragmática na exploração das colônias e na
divulgação ampla do conhecimento científico – em especial na área da história natural –
como foram os casos da criação da Academia Real das Ciências de Lisboa (1779) e da
Casa Literária do Arco do Cego (1799).

1
A expressão “Espetáculo da Natureza” é o título de um dos mais importantes escritos do pensamento
científico cristão da Europa das Luzes. Escrita pelo francês, Noël-Antoine Pluche – mais conhecido como
abade Pluche – (1688-1761). A obra Le Spetacle de la Nature, ou Entretetiens sur lês particularités de
l’Histoire naturelle qui ont paru les plus propes à rendre les jeunes gens curieux et à leur former l’esprit,
publicada em 1732, vincula as novas conquistas da Filosofia Natural setecentista com os pressupostos da
Teologia, integrando Natureza, Homem e Deus. CALAFATE, Pedro. Ciência e religião. In: ______
(Org.) História do pensamento filosófico português. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, v. 3, pp. 308-309.
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A defesa e o fortalecimento do poder central frente as outras instâncias de poder, entendendo-se o
temporal como independente de qualquer outro poder e soberano em sua esfera; a utilização de conceitos
e ideias oriundas do corporativismo escolástico, paralelamente aos ilustrados e do direito natural moderno
na fundamentação do absolutismo e do regalismo como estratégia na luta política. Soma-se a isso a
manutenção da diferenciação social conforme as distinções estamentais vigentes. O acesso diferenciado
aos saberes (no nascimento, nos haveres e no gênero), de forma que grupos sociais diferentes tinham
acesso a tipos e níveis distintos de instrução: nobreza e elite letrada podiam chegar à universidade
enquanto a maioria absoluta da população (trabalhadores mecânicos e/ou rústicos) recebia apenas “as
instruções do Pároco”, ou seja, a explicação oral do catecismo, permanecendo limitados à cultura oral e
não escolar. MARTINS, João Paulo. Política e História no Reformismo Ilustrado pombalino (1750-
1777). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. Dissertação de Mestrado em História,
2008. p. 165. FERNANDES, Rogério. Os caminhos do ABC: sociedade portuguesa e ensino de primeiras
letras. Porto: Porto Editora, 1994. p. 69-114.
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D. João VI tornou regente de fato a partir de 1792, em função dos distúrbios mentais de D. Maria I, sua
mãe.
Compreende-se a criação e a atuação dessas três instituições – a Universidade de
Coimbra reformada e a sua nova Faculdade de Filosofia4, a Academia Real das Ciências
de Lisboa e a Casa Literária do Arco do Cego – como central dentro das propostas do
reformismo ilustrado português, concebidas, portanto, no sentido de promover o
desenvolvimento científico em Portugal nas décadas finais do século XVIII e início do
século XIX.
Compreendemos que, naquele período, o desenvolvimento dos estudos, das
pesquisas e das divulgações científicas acerca da história natural foram fundamentais
para que a aventura especulativa portuguesa nas colônias pudesse se concretizar. O
desenvolvimento dos campos disciplinares voltados para o estudo da natureza como
matéria filosófica baseada no método científico racional visava a promoção de um saber
com finalidades utilitárias e inserido nos termos de uma redescoberta do Novo Mundo.
O conhecimento do império colonial português passava, essencialmente, pelo
conhecimento e pelo controle de sua natureza5.
Nesse sentido, para que tal tarefa pudesse ser realizada, seria necessário que o
Estado assimilasse o saber ilustrado e tornasse aplicáveis suas determinações do ponto
de vista prático. Seria igualmente necessário promover uma maior articulação entre os
homens de letras e o poder régio, criando, assim, as condições objetivas para a
alavancagem do processo de criação cultural/científica e transformação econômica.
A criação da Faculdade de Filosofia foi o primeiro passo nesse sentido, com
foco no campo das Ciências Naturais, baseado no racionalismo científico do século
XVIII e visando a superação do caráter supersticioso e culturalmente arcaico dos
portugueses. Sua atuação visou, num primeiro momento, o desenvolvimento de
pesquisas de cariz formativo e especulativo, promovendo a educação de toda uma
geração de naturalistas luso-brasileiros através das aulas e das pesquisas desenvolvidas
nos seus laboratórios, gabinetes, museus e jardins. Já a Academia Real das Ciências de
Lisboa e a Casa Literária do Arco do Cego desenvolveram ações de cunho mais prático,

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Entre as várias alterações ocorridas nos cursos superiores da Universidade de Coimbra, foi criada a
Faculdade de Filosofia, cujo curso tinha grande parte da grade curricular voltada para o ensino das
Ciências Naturais e das Ciências Físico-Químicas. Consideravam-se os conteúdos lecionados nessas
disciplinas como pertencendo ao que então se designava por Filosofia Natural, ou seja, o conhecimento da
Natureza nos seus diversos aspectos. O curso de Filosofia tinha a duração de quatro anos e compunha-se
de quatro disciplinas, uma em cada ano: Filosofia Racional e Moral, História Natural, Física Experimental
e Química. CARVALHO, Rômulo de. A História Natural em Portugal no Século XVIII. Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa. Divisão de Publicações. Lisboa, 1987. pp. 40-41.
5
MUNTREAL FILHO, Oswaldo. O Liberalismo num outro Ocidente: política colonial, ideias fisiocratas
e reformismo mercantilista. In: PEIXOTO, Antônio Carlos et. al. O Liberalismo no Brasil Imperial:
origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Revan-UERJ, 2001. p. 38.
seja perscrutando o mundo colonial através das viagens filosóficas6, produzindo textos
sobre a constituição natural dos territórios ultramarinos, ou divulgando os
conhecimentos de história natural numa perspectiva utilitarista, visando contribuir para
o desenvolvimento científico e econômico do país.
A criação dessas três instituições representou a ampliação desse espaço de
criação cultural reflexiva e de ações práticas. Falamos aqui das apropriações da natureza
não apenas como o simples resultado do impacto de doutrinas ou escolas de pensamento
filosófico ou econômico que teriam chegado a Portugal naquele momento, mas sim
como alternativas e práticas discursivas elaboradas pelo próprio absolutismo ilustrado
luso, buscando equalizar as seguintes questões: a) como promover a prosperidade
comercial da metrópole dentro da perspectiva mercantilista? b) como romper com o
isolamento cultural de Portugal relativamente à Europa da alta cultura e da ciência
moderna? Nesse sentido, a história natural foi considerada o campo do conhecimento
científico por excelência na promoção do progresso material do reino e dos seus
domínios.
O plano de incursão portuguesa no campo das ciências, assim como a realização
de suas atividades práticas foram realizadas por um corpo de funcionários régios,
incluindo aí os cientistas propriamente ditos. Dessa forma, coube à Coroa delimitar o
que era e o que não era ciência e coube à elite burocrática luso-brasileira,
particularmente no que concerne à história natural, realizar as tarefas que lhes foram
designadas: a apropriação do mundo natural – particularmente das colônias –, e o ato de
escrever a sua história através da experimentação e da exploração dos usos e
propriedades da natureza.
Dentro da conjuntura política europeia de fins do século XVIII, Portugal
procurou se fazer representar diante dos demais países através de uma postura
ideologicamente definida, pautada nos princípios do absolutismo e da ilustração ao
mesmo tempo7. Dessa forma, buscar uma utilização apropriada e racional da natureza
poderia significar um diferencial importante na competição particular entre os países
absolutistas ilustrados ou despótico-esclarecidos como, Espanha, Itália, Grécia, Rússia,
bem como uma reação econômica em relação às potências dinásticas e militarmente
6
A designação “filosófica” utilizada para qualificar as referidas viagens tem a mesma razão de ser no
motivo que levou a denominar a Faculdade de Filosofia ao departamento universitário criado pela
reforma pombalina. Ou seja, a sua finalidade constituía uma atitude filosófica, a de observar, analisar e
interpretar a natureza nos seus diversos domínios. CARVALHO, Rômulo de. op. cit., p. 86.
7
MUNTREAL FILHO, Oswaldo. O Liberalismo num outro Ocidente: política colonial, ideias fisiocratas
e reformismo mercantilista. In: PEIXOTO, Antônio Carlos et. al. op. cit., p. 60.
hegemônicas como França, Inglaterra, Áustria-Hungria e Holanda8. Sendo o Estado o
grande promotor dessas iniciativas, esses caminhos foram convenientemente
perseguidos e trilhados pela elite letrada luso-brasileira, contribuindo para a ampliação
das atribuições do Estado e dos novos rumos para um novo modelo de atividade estatal
de cunho ilustrado, sem, contudo, alterar a natureza despótico-absolutista do poder real
português.
Interessa-nos analisar a cultura científica desenvolvida em Portugal no âmbito
do seu reformismo ilustrado na medida em que toda uma geração de luso-brasileiros foi
formada nos bancos da Universidade de Coimbra reformada, atuaram na Academia Real
das Ciências de Lisboa e/ou na Casa Literária do Arco do Cego. Alguns desses homens
voltaram para o Brasil e participaram ativamente da vida política e intelectual brasileira
nas primeiras décadas do século XIX. Segundo Maria Odila Leite Silva Dias, as
características principais do pensamento dessa geração de letrados perduraram ao longo
do século XIX no Brasil e tiveram reflexos nas suas manifestações progressistas e
modernizadoras durante o Império9. Podemos então deduzir que, a partir da análise e
compreensão acerca do desenvolvimento e do lugar que a história natural adquiriu nas
instituições científicas em foco e na política portuguesa de fins do século XVIII e início
do século XIX, estaremos contribuindo também para entendimento das formas de
apropriação desse pensamento ilustrado pelos luso-brasileiros que lá se formaram e que
se destacaram na política e na cultura brasileira do século XIX.
Sendo assim, a as linhas de investigação que orientam minhas pesquisas são:
analisar como a cultura científica ligada à área da história natural foi apropriada e
desenvolvida pelo Estado português no período em foco. Pretendo desenvolver
reflexões acerca do desenvolvimento desse ramo do conhecimento à luz do embate de
forças políticas, sociais e culturais que tiveram lugar nas instituições de ensino,
pesquisas e divulgações científicas portuguesas entre fins do século XVIII e início do
século XIX, buscando, dessa forma, ajudar a promover uma melhor compreensão dos
limites políticos e intelectuais do reformismo ilustrado português.

8
Ibidem, p. 62.
9
DIAS, Maria Odila Leite Silva. Aspectos da ilustração no Brasil. In: ______. A interiorização da
metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005. p. 39.

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