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LUA:

ELEMENTO TRANSTEXTUAL ENTRE A OBRA ISMÁLIA DE


ALPHONSUS DE GUIMARÃRES E A LENDA AMAZÔNICA
VITÓRIA RÉGIA1

Msc. Hélen Suzandrey Borges Maia2


Anilson Ferreira Barbosa3
Ariadna Ferreira Galvão4

Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo analisar os textos Ismália e Lenda
da Vitória Régia, dos autores Alphonsus de Guimarães (2001) e Maria Antonieta Pereira
(2007), fundamentado nos estudos de Literatura Comparada, elucidados no livro
Literatura Comparada da teórica Tânia Franco Carvalhal (2006), busca-se através de sua
pesquisa compreender o método de comparação entre obras, bem como situar, através de
seu percurso histórico, sua definição e termos utilizados para se chegar a compreensão do
que se tem atualmente. Também serão explorados os estudos de transtextualidade,
abordados na obra Palimpsesto: a literatura de segunda mão, de Gérard Genette (2006),
que trata das relações entre textos, evidenciados a partir da co-presença, caracterizado
pela intertextualidade, demonstrado com maior ênfase por Julia Kristeva (2012) em
Introdução à semanálise. Será salientada também a estética simbolista, seu percurso
histórico, definição, influência no Brasil, etc., buscando um melhor entendimento e
análise da obra Ismália, relacionando-a com a lenda de expressão Amazônica Lenda da
Vitória Régia, advinda da tradição oral, explicando também a riqueza da literatura popular
e de expressão amazônica, com elementos únicos que caracterizam o lugar e permeiam o
imaginário da população amazônida.
Palavras chave: Literatura Comparada; Transtextualidade; Intertextualidade;
Simbolismo; Literatura de Expressão Amazônica.

1. PARLA ENTRE TEXTOS: UM CAMINHO PARA A CONSTRUÇÃO DE


OBRAS LITERÁRIAS
A partir da concepção de Dialogismo, proposta por Mikhail Bakhtin (2003)
descrita em Estética da criação verbal, compreende-se um texto como construção de
outros textos, ou seja, sua produção vai ser influenciada pelo contato de outros discursos
e contextos, não havendo assim um texto adâmico, “original”, mas resultante de um
constante diálogo para sua elaboração. Com isso, as obras literárias também se constroem
através de um sistema de inter-relações com outros textos, de forma direta ou indireta,

1
Artigo de Conclusão de Curso de Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa, apresentado na
Universidade do Estado do Pará, Campus XVII.
2
Professora da Universidade do Estado do Pará, Mestre em Ciências da Religião, Graduada em
Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa e Orientadora do artigo. E-mail:
helensuzandrey@gmail.com
3
Graduando de Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa. E-mail: anilsonf31@gmail.com
4
Graduanda de Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa. E-mail: ariadna_hw@hotmail.com

1
obras, temáticas, autores, etc., a partir disso, serão abordados dois métodos para
compreender os textos literários. O primeiro é o de Tânia Franco Carvalhal (2006), em
Literatura Comparada, que estabelece, entre outras coisas, a análise de textos através da
comparação, o segundo de Gérard Genette (2006), tratado em Palimpsesto: a literatura
de segunda mão, que aborda a transtextualidade. Conceituando as formas que os textos
relacionam-se, procura-se assim, estabelecer as relações entre as obras brasileiras Ismália,
poema de Alphonsus de Guimarães, e Lenda da Vitória Régia, lenda de expressão
amazônica descrita por Maria Antonieta Pereira em Lendas e Mitos do Brasil.
O poeta Afonso Henrique da Costa Guimarães, mais conhecido por seu
pseudônimo Alphonsus de Guimarães, de acordo com Carlos Nejar (2011) em História
da Literatura Brasileira: da Carta de Caminha aos contemporâneos, nasceu em Ouro
Preto, cidade de Minas Gerais, em 1870 e exerceu a função de juiz municipal, formou-se
na faculdade de Direito, na cidade de São Paulo. Aos dezoito anos perdeu a prima
Constança, a qual amava, perda essa, responsável por seu estado melancólico e pela
motivação de suas poesias. Foi um dos representantes do simbolismo no país, escreveu
sua verdadeira obra prima, Ismália, do livro intitulado Pastoral aos crentes do amor e da
morte, publicado postumamente em 1923.
Será analisada a Lenda da Vitória Régia, que narra como uma índia chamada
Naiá querendo alcançar a lua no céu morre afogada ao ir a seu encontro refletida nas
águas de um igarapé e no lugar que morreu nasce a planta Vitória Régia. Examinar-se-ão
os elementos transtextuais, baseadas nas teorias sobre transtextualidade de Genette
(2006), entre a lenda e o poema simbolista Ismália, uma narrativa em que a personagem
Ismália sonha possuir a lua do céu e ao mesmo tempo seu reflexo nas águas do mar,
representando a dualidade entre o plano material e o espiritual, encontrando seu fim na
morte por afogamento.
Por sua vez, o livro Lendas e mitos do Brasil é resultado de um projeto de
ensino, pesquisa e extensão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que
promove a ampliação da leitura para a comunidade de baixa renda, levando literatura e a
cultura brasileira para este público. A obra foi organizada pela professora doutora em
Estudos Literários Maria Antonieta Pereira5, atuante na área de Letras com ênfase em
educação, TV e computação, cinema e Literatura Comparada.

Acessado em http://lattes.cnpq.br/3040941205886695, na data 28 de junho de 2017.


5

2
Primeiramente, far-se-á um percurso histórico sobre a literatura comparada,
sua instituição e empregabilidade, revendo suas várias conceituações até chegar à acepção
em que é utilizada atualmente. Os estudos comparados possuem um vasto campo de
atuação, com diversos métodos, objetos e objetivos de análises, dificultando um consenso
sobre seu desempenho, mas tais estudos, a princípio não podem ser conceituados como
simples comparações e nem tendo finalidade em si próprios, devendo ser compreendidos
como um mecanismo de análise para se chegar a um objetivo. Por conseguinte, será
tratado o conceito acerca da transtextualidade, que aborda como um texto se apresenta
em outro, implicitamente ou explicitamente, de acordo com a similaridade de elementos,
ideias, sentidos, etc., presente em obras literárias.
As obras que irão ser analisadas não vão ser confrontadas para que uma se
sobreponha à outra, nem serão contrastadas suas semelhanças e particularidades, diferente
dos estudos comparatistas tradicionalistas que comparam duas ou mais literaturas sem
nenhuma perspectiva crítica. A análise deste trabalho se baseia nas percepções de
Carvalhal (2006), em Literatura Comparada, segundo as quais os estudos comparados
apresentam um teor crítico, estudando a relação dos dois textos entre si e sua conjuntura
social, trabalhando a noção de intertextualidade definida por Julia Kristeva (2012) em
Introdução à semanálise.
Isto posto, serão trabalhadas as obras literárias em questão sobre as
perspectivas comparativa e transtextual, sendo perceptível como uma se projeta sobre a
outra, de forma inconsciente ou não, focando a categoria transtextual intertextualidade,
para uma maior compreensão dos textos, mostrando também que contribuições relevantes
elas podem trazer para os estudos da literatura e para se examinar o contexto social em
que estão inseridas, salientando ainda o contexto da estética Simbolista e o maravilhoso
na literatura de expressão amazônica, para assim compreender melhor as obras Ismália e
Lenda da Vitória Régia e o meio em que foram produzidas.

2. UMA VIAGEM AO PERCURSO HISTÓRICO E IDENTITÁRIO DA


LITERATURA COMPARADA
Conceituar a Literatura Comparada não é um trabalho fácil, várias foram as
definições e termos usados para se chegar ao entendimento atual desse estudo. No geral,
esta literatura é entendida como método (ou métodos) de investigação, o que caracteriza
sua complexidade, que confronta duas ou mais literaturas, sejam elas nacionais ou

3
internacionais, levando em consideração o objeto que vai ser analisado e suas
particularidades.

... a dificuldade de chegarmos a um consenso sobre a natureza da literatura


comparada, seus objetos e métodos, cresce com a leitura de manuais sobre o
assunto, pois neles encontramos grande divergência de noções e orientações
metodológicas. Muitos fogem a essas questões. [...] E há ainda os que preferem
restringir a denominados aspectos o alcance dos estudos literários comparados.
Como se vê, não é fácil caminhar nessa “babel”6.

Constata-se, portanto, a dificuldade de quem adentra no ramo dos estudos de


literatura comparada, com muitos trabalhos em torno da área, mas com diferentes
enfoques, conceitos, metodologias e objetos de análises. A expressão “Literatura
Comparada” não pode ser entendida simplesmente como um sinônimo de comparação,
ela vai além de uma análise da influência de um autor a uma obra ou vice-versa e, para
entender como a literatura comparada ganhou esse vasto campo de compreensão, é
preciso que se faça uma breve retomada de sua trajetória, desde o surgimento do termo
até como ela é conhecida na contemporaneidade. Assim, leva-se em consideração que a
comparação faz parte do processo racional do ser humano e de sua convivência em
sociedade, sendo comum sua utilização em outros campos do saber.

Comparar é um procedimento que faz parte da estrutura de pensamento do


homem e da organização da cultura. Por isso, valer-se da comparação é hábito
generalizado em diferentes áreas do saber humano e mesmo na linguagem
corrente, onde o exemplo dos provérbios ilustra a frequência de emprego do
recurso7.

Carvalhal deduz que ao usar a comparação como parâmetro para relacionar


dois elementos, leva-se em consideração vários fatores do conhecimento de um indivíduo,
do empírico ao sistematizado, o que leva-o a confrontar, julgar os objetos para a
certificação dos dados relacionados, pois ao fazer uma relação entre obras, precisa-se
comprovar a veracidade dos dados coletados, como acontece com a crítica literária, que
na maioria das vezes é levada a confrontar determinada obra com outra, como a de um
autor ainda desconhecido com uma de um autor renomado, estabelecendo comparações
para explicar e basear juízo de valor, evidenciando semelhanças e diferenças. Dessa
forma, a comparação (nos estudos comparados) é utilizada analiticamente e
interpretativamente, sendo esse método um meio de avaliar ou interpretar algo e não tendo
uma finalidade em si.

6
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006, p. 6.
7
Ibid, 6.

4
Com relação a sua trajetória, o século XIX foi palco de novas ideologias, em
que o pensamento cosmopolita8, (conhecimento difundido em vários lugares, que um
viajante adquire em suas jornadas transmitindo e aprendendo novos saberes), tomou uma
dimensão considerável e forte para a época, caracterizando este século, em que extrair
leis gerais estava em alta nas ciências naturais. Isto influenciou, assim como outras áreas
do saber, os estudos de Literatura Comparada, apesar do termo “comparado” já ser
conhecido desde a idade média (1598), século XVII e XVIII, com o aparecimento em
discursos de autores das épocas como Francis Meres, William Fulbecke e John Gregory,
como cita Carvalhal:

O surgimento da literatura comparada está vinculado à corrente de pensamento


cosmopolita que caracterizou o século XIX, época em que comparar estruturas
ou fenômenos análogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi dominante
nas ciências naturais. [...] Em 1598, Francis Meres utiliza-o no título de seu
Discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos
e italianos e vamos também encontrá-lo em designações de obras dos séculos
XVII e XVIII. Em 1602, William Fulbecke publica Um discurso comparado
das leis e, logo depois, surge Anatomia comparada dos animais selvagens, da
autoria de John Gregory9.

Com isso, observa-se que os estudos de literatura comparada não são recentes
e que estudiosos da idade média já se desdobravam no assunto, de acordo com suas
especificidades, porém, foi no século XIX que o termo foi mais difundido e frequente em
obras científicas, contagiando os estudos literários voltados para afirmações análogas
com obras de autores como Cuvier (1800), Degérand (1804) e Blainville (1833).
Observando essas mudanças, os estudos comparados ganham notoriedade e são utilizados
na Europa nas áreas de ciências e linguística, porém, é na França que a expressão
“Literatura” nasce e se institui, sendo empregada com o propósito de nomear um conjunto
específico de obras, como acorda o Dicionário Filosófico de Voltaire, encaixando-se
tardiamente conceito e termo em outros países, como na Alemanha e na Inglaterra.
Com isso, muitos autores publicam diversas obras com denominações
próximas das que se conhece hoje, algumas com expressões bem parecidas, porém,
mesmo trazendo em sua denominação “literaturas comparadas”, eles não tinham
nenhuma preocupação em confrontarem textos, como é o caso da acepção
contemporânea. Dessa forma, mesmo com sua imprecisão e ambiguidade, preservando a

8
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 190.
9
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006, p. 8.

5
denominação francesa, a literatura comparada é confundida com a expressão “literatura
geral”, também comumente usada no país, segundo Carvalhal:

Indiferente aos locais onde se expandiu, a literatura comparada preservou a


denominação com que os franceses a divulgaram, mesmo sendo imprecisa e
ambígua. Por isso, muitas vezes sofre a competição da expressão “literatura
geral” também de uso corrente em francês e em inglês, com a qual é
frequentemente associada10.
Sendo assim, uma discussão é travada entre a distinção precisa entre as duas
expressões, com pontos controversos entre ambas. Há autores que afirmam que a
literatura geral abarca um campo mais abrangente, o que compreenderia os estudos
comparados, porém, há outros que se quer estabelecem diferenças entre ambas. A
expressão “literatura geral” também é associada a “literatura mundial” (Weltliteratur),
termo cunhado por Goethe em 1827 para designar uma literatura de “fundo comum”,
junção das totalidades das grandes obras, toda via, seguindo o pensamento de Goethe, a
expressão possibilita a interação das literaturas entre si, com o desígnio de corrigirem-se.
Portanto, baseado nessa perspectiva, toda obra não é uma produção adâmica,
ou seja, toda obra é uma continuação de uma fonte inesgotável de obras anteriores, o que
sucumbi o ato de escrever num constante diálogo entre produções passadas e modernas,
o que leva a Literatura Comparada a alcançar nos últimos anos, o status de disciplina
reconhecida em várias instituições de ensino superior, garantindo-lhe uma bibliografia
exclusiva.

3. EM BUSCA DO PERGAMINHO E SUAS PISTAS PARA COMPREENSÃO DOS


ELEMENTOS TRANSTEXTUAIS
O termo palimpsesto é assim denominado aos pergaminhos que antigamente
eram raspados ou lavados para se reaproveitar o papiro, material muito caro na Idade
Média, quando as escrituras mais antigas eram apagadas para a inserção de outros textos,
todavia eram perceptíveis os traços das outras inscrições, não sendo deletadas
completamente. Os primeiros textos continuavam, então, presentes juntamente com um
novo11. Assim, os textos posteriores eram interferidos pelos antigos, trazendo marcas e
outras percepções, sendo possível lê-los de outras maneiras, não apenas individualmente,
mas como um processo derivativo de outros textos.

10
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006, p. 11.
11
ESCOBAR, Ángel. El palimpsesto grecolatino como fenómeno librario y textual. Ed: Presentación de
Dieter Harlfinger. — Zaragoza: Institución «Fernando el Católico», 2006.

6
Levando esse conceito para os estudos textuais e literários, tem-se uma
metáfora 12 , comparação implícita, para as relações que um texto faz com outro, pois
nenhum texto se constrói individualmente, entretanto, está em consonância com outros
enunciados, por exemplo, uma criança para aprender a falar precisa estar em contato com
outras pessoas que proferem palavras diante dela, um escritor, antes de terminar uma obra
escrita, já leu outras escrituras e escutou vários textos orais, e essas outras obras e textos
também foram influenciados por outras inúmeras enunciações. Tem-se assim, uma teia
infinita que forma novos textos e pretendendo estudar esse emaranhado de relações,
Gérard Genette conceitua a transtextualidade, descrevendo como os textos se relacionam
para compreendê-los em sua plenitude.
Segundo Genette, “a transtextualidade, ou transcendência textual do texto,
que definiria já, grosso modo, como “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta
com outros textos””13. Desse modo, toda associação que uma escritura faz com outra, seja
de forma mais implícita ou explícita, desde uma simples alusão a um plágio, tudo que se
compreende como relação entre um texto e outro configura a transtextualidade,
possibilitando uma análise mais aprofundada de uma obra, buscando não apenas suas
características, sentidos, estrutura, etc., em si, porém como ela se interliga com outras
obras, e como esse elo expande um grau de interpretação, como uma obra se influencia
através de outras e o que essas influências acarretam.
Para compreender e estudar melhor a transtextualidade, que acaba se tornando
um conceito muito abrangente, Genette a destrinchou em cinco partes, para melhor
compreender esse fenômeno que constrói um texto, restringindo um campo de pesquisa
para um aprofundamento maior e mais adequado de um estudo. Essas partes são definidas
como as cinco categorias transtextuais, que segundo Genette, abrangem todos os tipos de
relações que um texto poderia manter com outro. As categorias são classificadas como
intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade e
arquitextualidade.
A intertextualidade se caracteriza “como uma relação de co-presença entre
dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença
efetiva de um texto em um outro”14. Nota-se a intertextualidade pela percepção de uma

12
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
2009, p. 329.
13
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Luciene Guimarães e Maria
Antonieta Ramos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2006, p. 7.
14
Ibid, 8.

7
obra no corpo de outra, fazendo uma alusão a outro texto, sejam sentidos, significados,
conjunto parecidos de enunciados ou ações, podendo compreender uma obra unicamente
ou em conjunto com outras que se interrelacionam, promovendo novas interpretações.
A segunda categoria transtextual diz respeito ao que

No conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém
com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto: título, subtítulo,
intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais,
de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos
outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao
texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do
qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem
sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende 15.

Assim, a paratextualidade compreende um fator extratextual, no sentido de


que não está comportada no corpo do texto em si, mas em alguns de seus elementos que
fazem parte como auxiliar de sua estrutura, como na citação acima: títulos, notas de
rodapé, paginação, etc., podem ser considerados até mesmos os rascunhos de obras. Todos
esses elementos podem evocar outros textos, configurando-se em um fenômeno
paratextual.
Dando seguimento, a próxima categoria ou “terceiro tipo de transcendência
textual, que eu chamo de metatextualidade, é a relação, chamada mais corretamente de
“comentário”, que une um texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente citá-
lo”16. A alusão, dessa forma, dá-se de forma ainda mais implícita que na intertextualidade,
e não evoca outra escritura em um texto inteiro, ou grande parte dele, mas pode ser
realizado em um pequeno fragmento, aludindo com um pequeno comentário, sem
necessariamente indicar essa referência, passando muitas vezes de maneira despercebida
por um leitor que não seja ávido.
O quarto tipo de transtextualidade foi a mais discutida por Gérard, na qual
seus estudos foram mais aprofundados.

Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que chamarei
hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente chamarei hipotexto) do
qual ele brota de uma forma que não é a do comentário. Como se vê na
metáfora – brota – e no uso da negativa, esta definição é bastante provisória.
Dizendo de outra forma, consideremos então uma noção geral de texto de
segunda mão [...] ou texto derivado de outro texto preexistente 17.

15
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Luciene Guimarães e Maria
Antonieta Ramos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2006, p. 9 e 10.
16
Ibid, 11.
17
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Luciene Guimarães e Maria
Antonieta Ramos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2006, p. 12 e 13.

8
Conceitua-se hipertextualidade como a construção de um texto que é derivado
de um anterior, de maneira que se necessita do conhecimento do texto primeiro,
hipertexto, para compreender o texto derivado, hipotexto. Pode ser uma simples citação
até uma transformação, de uma paráfrase até uma paródia, entretanto é clara a
manifestação de uma obra anterior, a “imitada” e a “imitativa”, é possível ter um
entendimento completo de um hipertexto por si só, mas para a compreensão do hipotexto
é, obrigatoriamente, necessário ler o texto do qual ele se deriva.
Conceituada como a forma mais abstrata e dificultosa de ser identificada, a
arquitextualidade trata “de uma relação completamente silenciosa, que, no máximo,
articula apenas uma menção paratextual [...]. Em todos os casos, o texto não é obrigado
a conhecer e por consequência declara, sua qualidade genérica” 18 . Muitas vezes o
próprio autor, não tem conhecimento que está referenciando um texto, tipos de discursos
ou enunciações, fazendo-o de forma inconsciente, tornando essa percepção mais difícil,
vista apenas por um olhar de um crítico, ou um estudioso da área, fazendo com que essas
relações se deem de forma sutil, aludindo a paratextualidade.
Conceituadas as categorias transtextuais, é importante destacar que elas não
estão isoladas umas das outras ou tratadas com diferentes graus de importância para se
analisar um texto, elas podem se convergir, aumentando a riqueza de informações
destinadas em uma obra, ou várias obras. Cabe salientar que todos os textos dialogam e
se relacionam com outros, sendo a transtextualidade uma importante ferramenta para
análise de textos e marca da literariedade de obras.

4. INTERTEXTUALIDADE E RESIGNIFICAÇÃO TEXTUAL SOBRE A


PERSECTIVA DE JULIA KRISTEVA
Embasando-se nas teorias transtextuais estabelecidas por Gérard Genette,
será aprofundada neste trabalho a categoria intertextualidade, estudada de uma forma
mais aprofundada pela teórica búlgaro-francesa Julia Kristeva, volta-se então ao estudo
desses dois autores para uma análise mais significativa das obras literárias que serão
analisadas no decorrer deste artigo.
Kristeva trabalha uma perspectiva crítica de textos e sua relação com outros
enunciados, essa perspectiva é fortemente influenciada pelas pesquisas sobre dialogismo
de Michael Bakhtin, que trata a relação dialógica entre discursos, havendo uma interação,

18
Ibid, p. 11.
9
fazendo com que cada discurso seja constituído de outros. O ato de ler um texto significa
a leitura de outros textos, o ato da compreensão implica a leitura de vários outros textos,
um sujeito (que conhece vários discursos no decorrer de sua vida) entra em contato com
um discurso, que é formado por vários discursos, produz outra significação e, assim vai
constituindo uma cadeia infinita de enunciados, os que chegam até ele e os que ele
enuncia19.
Toda forma de interação verbal é dialógica por excelência, um texto ao ser
proferido é construído por elementos que chegam a ele até seu momento de produção,
modificando seu sentindo após a evocação e o contato com outros sujeitos e discursos,
sendo influenciado e modificado por outros textos, interagindo entre si, e no momento
que é criado chega a outros sujeitos, interagindo também20.
Partindo desse pressuposto, Kristeva desenvolve sua teoria sobre a
intertextualidade, que se prende aos limites do texto, de acordo com a autora, “todo texto
se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um
outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e
a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla”21. Volta-se um olhar específico para
essa relação que parece um pouco estrutural e mais passível de identificação, verifica-se
como é possível a relação de uma escritura com outra, como elas dialogam e se
relacionam, remontando-as, Kristeva trata então a relação mais estrita da presença de um
texto projetado em outro.
Nenhum texto nasce de forma isolada, sem negações ou afirmações de outros
textos, sendo visível certas influências, mais perceptíveis ainda na linguagem literária,
em que cada obra vai estabelecer uma relação com outra obra, outro autor, etc., onde cada
relação traz uma diferente percepção de determinado texto, agregando sentidos e
incorporando novas significações.

Funde-se, portanto, com aquele outro discurso (aquele outro livro), em relação
ao qual o escritor escreve seu próprio texto, de modo que o eixo horizontal
(sujeito-destinatário) e o eixo vertical (texto-contexto) coincidem para revelar
um fator maior: a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos)
onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto) 22.

19
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo. Martins Fontes, 2003, p. 338.
20
Ibid, 340 e 341.
21
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lucia Helena França Ferraz, 3ª ed. Perspectiva, São
Paulo, 2012, p. 142.
22
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lucia Helena França Ferraz, 3ª ed. Perspectiva, São
Paulo, 2012, p. 141.

10
Assim, todas essas relações estabelecem uma conversa entre uma obra com
outros elementos a nível textual, o leitor que soma seus conhecimentos (os textos que já
o perpassaram) para compreender o texto literário, o qual muda de sentido conforme o
leitor agrega informações, seja intratextuais ou extratextuais. A obra, por sua vez, traz
textos que circundaram o autor, o que ele insere de percepções próprias e as que chegaram
até ele através de outros textos, ressaltando que essas relações acontecem entre cada um
desses elementos e entre obras em si, a única demarcação estabelecida à intertextualidade
é o limite do texto, sendo possível perceber a presença de outro, lendo-os.
“A ‘literatura’ nos parece hoje ser ato mesmo que aprende como língua
funciona e indica o que ela amanhã tem o poder de transformar”23. A medida que vão se
estabelecendo relações entre as obras, de maneira que se possam enxergar a menção de
outros textos, notam-se que as obras literárias não se esgotam, elas estabelecem uma
infinidade de interrelações, percebendo-as minimamente como duplas, de obras
anteriores ou que ainda vão surgir, sejam de diferentes épocas, idiomas, espaços
geográficos, etc. Ao analisar essas relações, agregam-se novas significações,
ocasionando uma riqueza interminável de análises possíveis à literatura.

5. O SENTIMENTALISMO SUBJETIVO DO SIMBOLISMO FRANCÊS E SUA


INFLUÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA
O Simbolismo, assim como outras estéticas, surge na França, no final do
século XIX, século esse marcado por inovações em várias áreas do conhecimento
humano, pensamentos, ideologias etc., o que mobilizou uma grande parcela das pessoas
daquela época ao avanço que a sociedade vinha sofrendo com as revoluções. Destaca-se
a Revolução Industrial, estopim para a corrida de poder do mundo, disputada pelas duas
grandes potências mundiais (Estados Unidos e Rússia), o que gerou um verdadeiro caos
na sociedade com as duas grandes guerras mundiais somadas ao sentimento de
inquietação, gerado pelos movimentos realistas, o que desencadeou imprecisões nos
valores e convicções do “homem”, deixando a sociedade com certa incapacidade e
eremitério diante de tantas tensões e contrassensos24.
Tratando-se de literatura, muitas foram as contribuições (suas obras) que os
poetas e escritores dessa nova estética deixaram, em que norteados pelo contexto
histórico, evidenciado em suas poesias, retratam o espírito de descontentamento e

23
Ibid, p. 1.
24
MOISÉS, Massaud. A literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008, p 280 a 282.

11
decadência. Ganha o epíteto decadente, para sugerir o novo gênero de poesia que os
permeavam, mais tarde o termo Decadentismo dá lugar ao novo termo Simbolismo, o
qual conhecemos hoje, graças a Verlaine com sua obra e Jean Moréas, pois,

Entre 1871-1873, Verlaine concebera sua “Arte Poética”, poema que só veio a
publicar-se em 1884, constituindo grande passo no estabelecimento da
doutrina simbolista [...] A 18 de setembro de 1886, Jean Moréas publica, no
Figaro Littéraire, “Un Manifeste Littéraire”, no qual define pela primeira vez
o que chama de Simbolismo, termo que agora passa a substituir o anterior,
Decadentismo, uma vez que este se revelara insuficiente para englobar todas
as manifestações desconexas da poesia então dita decadente 25.

Como pode-se constatar, o Simbolismo instituiu-se ao longo do tempo aos


passos dos decadentes, como eram chamados os poetas da geração nova, que tinham como
preconização a anarquia, o pessimismo, o horror da realidade banal, etc., chegando no
que se conhece hoje como Simbolismo. Essa nova estética inova suas poesias em vários
aspectos, como o uso de palavras novas (neologismos), uso frequente de figuras de
linguagem, etc., porém, retoma alguns ideais do Romantismo, o qual pregava o
sentimentalismo subjetivo, mas, os simbolistas não buscavam um subjetivismo qualquer,
buscavam uma visão transcendental, o mais profundo do “eu”, segundo Moisés

O simbolismo é, antes de tudo, antipositivista, antinaturalista e


anticientificista. [...] a estética simbolista prega, e busca efetuar, o retorno à
atitude psicológica e intelectual assumida pelos românticos, e que se traduzia
no egocentrismo: opondo-se ao culto do “não eu”, apanágio das tendências
anteriores, volta o “eu” a ser objeto de cuidadosa atenção. [...] Os simbolistas
voltam-se, agora, para dentro de si, em busca de camadas submersas, iniciando
uma viagem interior de imprevisíveis resultados. Sucede, porém, que uma tão
intima sondagem ultrapassava o plano do razoável em que se moviam os
românticos, [...] E ultrapassando o consciente, tombavam no consciente 26.

Com isso, os simbolistas buscavam dentro de si respostas para todas as


inquietações, tentando solucionar o sentimento de angústia proporcionado pelas mazelas
da sociedade. Muitos poetas conseguiram, de uma forma marcante, exprimir todos esses
sentimentos, porém, um que transpareceu com bastante fidelidade todos esses anseios e
foi precursor do simbolismo, foi Charles Baudelaire com sua obra Flores do Mal e a teoria
das correspondências, o qual mostrou para que vinha o Simbolismo com suas
características, que respaldavam os poetas daquela época.
Os simbolistas produziam suas poesias apoiados no que regia a estética e suas
características, uma vez mergulhados na busca do “eu”, descreviam em suas obras

25
MOISÉS, Massaud. A literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008, p. 281.
26
Ibid, 282.

12
inúmeras imagens simbólicas (marca registrada da estética), em que manifestavam
através do subjetivismo, o conhecimento ilógico e intuitivo da realidade, emprego
acentuado da sinestesia, uso de palavras inusitadas, culto ao místico etc., características
simbolistas fortes que influenciaram, em outros países, esta nova estética.
No Brasil, o Simbolismo se deu de forma influenciada (pela vertente
francesa), porém, aqui foi mais tímido e voltado para as realidades do país. Por conta da
forte influência parnasiana, o simbolismo encontrou no poeta e precursor da estética Cruz
e Sousa (conhecido como o Rimbaud negro), juntamente com Alphonsus de Guimarães
(considerado o Baudelaire místico), seus representantes. Cruz e Souza publica a primeira
obra simbolista brasileira, Missal de Broquéis, em 1893, no Rio de Janeiro, dando início
ao movimento simbolista e, influencia vários autores dessa nova geração como Alphonsus
de Guimarães que escreve Ismália, uma obra de grande relevância, pois envolve
fortemente o misticismo, a antítese, o caráter fúnebre, a melancolia, etc. 27.
Portanto, ao se tratar de simbolismo no Brasil, falar-se-á principalmente dos
poetas brasileiros, como Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimarães, que deixaram uma
gama de obras ricas em detalhes e características do século XIX, em que se pode observar
o contexto histórico daquela época de um panorama simbolista, evidenciando o
inconformismo de uma sociedade que transitava de Colônia para República através de
suas poesias. Com isso, torna-se imprescindível o conhecimento de todas essas
características do movimento, assim como seu percurso histórico, para compreender de
que forma a obra Ismália foi escrita e ter uma melhor análise de sua estrutura enfatizada
nesse artigo.

6. A ORALIDADE COMO ELEMENTO IDENTITÁRIO DA LITERATURA DE


EXPRESSÃO AMAZÔNICA
A literatura popular é fortemente vinculada à tradição oral, pois inúmeras
pessoas, sobretudo as de menor poder econômico, não tinham conhecimento da escrita,
então cultivavam suas histórias, fatos e causos através da fala, propagando uma riqueza
em termos de cultura e identidade, mostrando a beleza de uma linguagem que não era
erudita, caracterizando também a identidade de um povo, transmitindo seus relatos para
um número maior de pessoas à medida que passavam “de boca em boca”.

27
NEJAR, Carlos. História da literatura brasileira: da Carta de Caminha aos contemporâneos. São Paulo:
Leya, 2011.

13
De acordo com Luyten, os primeiros relatos de uma literatura popular
surgiram no Ocidente, a partir do século XII

Como manifestação leiga independente do sistema de comunicação


eclesiástico. Ela se caracteriza sobretudo por ser uma linguagem regional e não
em latim, que naquela época era a língua oficial de toda a Europa cristã. Aos
poucos, porém, as pessoas do povo iam contando suas histórias e compondo
seus versos, de forma primitiva. Mas não havia outro jeito, pois toda a
comunicação anterior oficial era em latim e tratava de assuntos eruditos ou
religiosos28.

As histórias repassadas oralmente vêm como uma representação da classe


popular e por isso ganham grande repercussão, abordando temáticas que interessam ao
povo, a classe marginalizada, divergindo das histórias escritas repercutidas pela nobreza
e até mesmo ao idioma utilizado pela mesma. Os relatos orais vão se divulgando a medida
que viajantes iam a pontos de peregrinação, surgindo vários dialetos, onde sempre havia
poetas nômades declamando histórias sobre guerras, aventuras e outras inúmeras
temáticas, mostrando também a cultura de várias regiões29.

A cultura popular se dá em sociedade onde há elite e povo, participando de


manifestações comuns na língua, religião, composição étnica, e assim por
diante. As manifestações populares vão dar-se, em sua grande maioria, de
forma oral. É que a comunicação a nível popular, na realidade, significa a troca
de informações, experiências e fantasias de analfabetos ou semiletrados para
seus semelhantes30.

Ao decorrer da história, houve mudanças na organização da sociedade, como


na transformação do sistema feudal para o desenvolvimento do capitalismo regido pelos
burgueses, o fato é que sempre há uma classe privilegiada, considerada erudita, e uma
marginalizada, composta por uma população com menor poder aquisitivo. Essa camada
desprestigiada pela elite consiste na camada popular, que nem por isso é ignorante, pelo
contrário, apresentam riquíssimas manifestações culturais e literárias, dando um lugar de
destaque à oralidade, repassando a beleza de seu cotidiano em cantigas, lendas, mitos,
etc..
Como literatura de cunho popular, tem-se a literatura de expressão
amazônica, compreendida como uma produção cultural em que se notam em seus textos
orais e escritos o reflexo da sociedade em que está inserida, transmitindo os feitos e
cotidianos da população local que representam “uma Amazônia literária porque, quando

28
LUYTEN, Joseph M. O que é literatura popular. Editora Brasiliense. 1983, p. 16.
29
LUYTEN, Joseph M. O que é literatura popular. Editora Brasiliense. 1983, p. 16 e 17.
30
Ibid, 20.

14
se diz Amazônia, não se pode fugir às referências que conferem marcações de identidade
à região inteira”31 . Transmitindo os feitios da população amazônica, com um caráter
único da região, essa literatura tem uma forte ligação com a oralidade, dando-se um
grande espaço na Amazônia para a circulação de textos orais. Ressalta-se que os primeiros
relatos de uma literatura dessa região foram descritos pelos europeus durante a
colonização, os portugueses que primeiro chegaram ao lugar, descreveram a magnitude
da natureza e a selvageria dos índios em suas crônicas, transformando-os em escravos
para cultivarem e dominarem as riquezas do lugar32. Foram diversos povos e etnias que
povoaram a região amazônica, que contribuíram para uma rica diversidade literária que
existe atualmente, destacando-se a tradição oral, que perpassa por todos os lugares da
região, inclusive fora dela, e atinge todas as pessoas, desde o ribeirinho, o indígena, o
agricultor ao homem urbano, entretanto, esta tradição é mais fortemente desenvolvida
onde a tecnologia e a escrita não possuem tantos recursos, guardando na memória e
repassando através da fala suas tradições.
“No ambiente rural, especialmente ribeirinho, a cultura mantém sua
expressão mais tradicional, mais ligada à conservação dos valores decorrentes de sua
história. A cultura está mergulhada num ambiente onde predomina a transmissão
oralizada”33. Assim, de pai para filho, de geração em geração se vai transferindo saberes
e a cultura da região amazônica, onde homem e natureza se misturam e criam uma
originalidade típica do lugar, a natureza única e o ser humano convivem entre si e
transformam-se, porém é necessário ressaltar que nem só de florestas é formada a região,
que possui grandes centros urbanos nos quais dão uma inspiração diferente ao cidadão
amazônico.

Sob o olhar do natural a região se torna um espaço conceptual único, mítico,


vago, irrepetível, (posto que cada parte desse espaço não é igual a outro),
próximo e, ao mesmo tempo, distante. Seja para os que habitam as margens
desses rios, que parecem demarcar a mata e o sonho, seja para os que habitam
a floresta, seja ainda para os que habitam os povoados, vilas e as pequenas
cidades, que parecem estar muito mais num tempo congelado do que num
espaço dos nossos dias34.

De uma natureza única comparada ao resto do mundo, a Amazônia possui um

31
TUPIASSÚ, Amarílis. Amazônia, das travessias Lusitanas à literatura de até agora. Dossiê Amazônia
brasileira. Revista Estudos Avançados: São Paulo Jan/Apr. 2005, s.p.
32
SOUZA, Márcio. Breve História da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.
33
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995,
p. 55.
34
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995,
p. 60.

15
cenário repleto de rios e florestas, com uma grande biodiversidade da fauna e flora, com
espécies que só vivem nessa região. Dessa maneira, essa paisagem se torna cena para as
histórias contadas, na quais se misturam o cotidiano do indivíduo de quem mora no lugar
e a própria natureza, que se apresenta como deslumbrante, encantadora, e muitas vezes
mágica, tendo então a presença do fantástico como parte integrante do imaginário local,
sendo “a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais,
frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” 35, encarado como um vislumbre
da realidade, em que se há um questionamento de algo ser concebido como possível
dentro das leis naturais.
A partir da presença do fantástico dentro dos textos amazônicos, do
questionamento do real, há sua negação, nota-se a existência de elementos, seres e
acontecimentos místicos, adentrando outra classificação, em que ultrapassam as leis
físicas, químicas, biológicas, sendo “necessário admitir novas leis da natureza mediante
as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso” 36 .
Acontecimentos mágicos, irreais, permeiam a região amazônica, difundidos entre seus
contos e lendas, os quais os fenômenos naturais não conseguem abarcar, ultrapassando os
valores científicos, que não são suficientes para a compreensão dos eventos que
circundam rios e florestas contados e vividos pela população amazônida.
Existem, na região amazônica, inúmeros mitos e lendas maravilhosos,
advindos das culturas indígena, ribeirinha, agricultura, portuguesa, entre outras que
povoaram a região e miscigenaram não apenas uma etnia, mas o imaginário de todos que
lá habitam. “A Amazônia torna-se um fertilíssimo campo de germinação para as
produções do imaginário do homem, na fruição, no compartilhamento, na intervenção
ou na explicação simbólica de sua realidade”37. Assim, existe uma realidade imaginária
que admite novas leis físicas para os acontecimentos relatados, como elementos ou
acontecimentos sobrenaturais que permeiam a mente e a cultura da região.
Muitas são as lendas que circundam a região amazônica, transmitidas
oralmente, como a lenda do Boto cor de rosa, Mandioca, Vitória Régia 38, entre outras.
Tem-se o conceito de lenda como “fatos ocorridos ou não, geralmente com finalidades

35
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo, Editora Perspectiva: 1970, p. 16.
36
Ibid, 24.
37
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995,
p. 91.
38
Lendas encontradas em PEREIRA, Maria Antonieta. Lendas e Mitos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG
Biblioteca Universitária, 2007.

16
educativas e de exemplo, contadas de pai para filho ou, então, por pessoas idosas com
certas habilidades para pequenos grupos”.39 Mesmo não sendo algo comprovado, elas
habitam a consciência da população, talvez duvidosas para quem é de fora da região, mas
que é aceita como verdade na mente dos amazônidas, pertencentes a sua memória,
constituindo a sua realidade e identidade.
A população amazônica crê em suas lendas, que faz parte de sua tradição,
confeccionando beleza aos ensinamentos transmitidos, “são verdades de crença coletiva,
são objetos estéticos legitimados socialmente, cujos significados reforçam a poetização
da cultura da qual são originados. A própria cultura Amazônica os legitima e os institui
enquanto fantasias aceitas como verdades” 40 . As lendas objetivam compreender a
realidade por meio de elementos místicos e simbólicos, origem de elementos, fenômenos
da natureza, etc., utilizando beleza e poesia para entender imagens do cotidiano, como
são repassadas oralmente é comum que elas ganhem ou troquem algumas
particularidades, mas nunca perdem sua essência.
Várias lendas têm origem indígena e através dos relatos orais acabam
difundindo-se, repassando a riqueza da cultura da região amazônica, como é o caso da
Lenda da Vitória Régia, de origem tupi, que se propagou pela Amazônia e é reconhecida
nacionalmente. Esta lenda narra a história de uma índia chamada Naiá, que queria
pertencer ao mundo celeste e se juntar a divindade indígena Jaci, simbolizada pela Lua,
representando sua religiosidade. De tanto correr atrás de Jaci, a índia se cansou e
adormeceu na margem de um igarapé, quando acordou se deparou com a imagem da lua
refletida nas águas, jogou-se ao seu encontro e morreu afogada, Jaci, compadecendo-se
de Naiá, transformou-a em uma planta (Vitória Régia), no lugar em que ela morreu,
abrindo sua flor apenas no luar41.
Na narrativa descrita acima, percebem-se elementos característicos da região
amazônica, ambientando o espaço caracterizado pela natureza única do lugar, tendo como
protagonistas a figura do índio e uma de suas divindades, Jaci (Lua), aparece também um
igarapé, um berço de água comum na região, e a própria vitória régia, planta aquática
nativa. Todos esses elementos figuram a narrativa em que se constata a presença do
maravilhoso, admitindo acontecimentos mágicos, indescritíveis pelas leis naturais, para

39
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1995,
p. 22.
40
Ibid, 85.
41
PEREIRA, Maria Antonieta. Lendas e Mitos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG Biblioteca Universitária,
2007, p. 42 a 45.

17
explicar a criação de algo, no caso como um deus, da própria localidade e não advindo de
outras culturas, transformou o corpo de uma índia virgem, representando sua pureza, em
uma planta, que desabrocha uma flor branca nas águas de igarapés durante a noite com
um formato que lembra uma estrela, ou seja, a natureza desvendada pelo místico.

7. ISMÁLIA E VITÓRIA RÉGIA: UMA BUSCA INTRÍSECA DA LUA ATRAVÉS


DAS MARCAS TRANSTEXTUAIS
Usam-se as teorias discutidas neste trabalho para embasar esta análise das
obras literárias Ismália e Lenda da Vitória Régia, verificando-se nas duas obras uma
convergência entre os anseios das personagens e os desfechos das histórias, em que
Ismália e Naiá buscam incessantemente a Lua como forma de libertação do mundo
terreno, culminando em suas mortes por afogamento, sendo possível perceber um texto
em outro, dialogando entre si. Dentre as categorias da transtextualidade, pode-se
identificar a relação de intertextualidade presente nas tessituras, em que ficam evidentes
as analogias dos acontecimentos e personagens nas obras, que se caracterizam como
intertexto, efetivando a co-presença de ambos os textos.
O poema Ismália narra as incertezas da protagonista, que se vê dividida entre
dois planos, envolta por uma melancolia típica do Simbolismo, com uma forte
musicalidade para embalar esta história triste sendo presentes figuras de linguagem como
assonância e aliteração para dar ritmo ao poema. As dúvidas de Ismália são caracterizadas
pela figura de pensamento antítese42, com a utilização frequente de termos opostos para
confrontar seus anseios, em meio aos planos material e espiritual que a circundam,
promovem dúvidas em suas escolhas, pois ao escolher um plano para fazer parte terá que
se desfazer do outro. Por sua vez, Naiá também está em meio a planos opostos, material
e espiritual, mas não tem dúvidas sobre o que almeja, encontra-se a todo momento
buscando formas para pertencer a um mundo eclesial, sendo presente em ambas narrativas
a existência da religiosidade, do místico, sobrenatural e do maravilhoso.
Diante do exposto, pode-se visualizar a comparação e compreensão das obras,
a partir de seus elementos, na tabela abaixo:

Coluna A Coluna B

42
Figura de linguagem que aproxima duas palavras opostas, criando-se um contraste para
enfatizar seus sentidos. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 2009, p. 327.

18
Linha Ismália Lenda da Vitória Régia
1
Quando Ismália enlouqueceu, Conta a lenda que uma bela índia
Pôs-se na torre a sonhar... chamada Naiá apaixonou-se por Jaci (a
Viu uma lua no céu, Lua), que brilhava no céu a iluminar as
Viu outra lua no mar. noites. Nos contos dos pajés e caciques,
Jaci que de quando em quando descia à
No sonho em que se perdeu, Terra para buscar alguma virgem e
Banhou-se toda em luar... transformá-la em estrela do céu para lhe
Queria subir ao céu, fazer companhia. Naiá, ouvindo aquilo,
Queria descer ao mar...43 quis também virar estrela para brilhar ao
lado de Jaci44.

Na linha 1 das colunas A e B, percebe-se um desejo das personagens Ismália


e Naiá em alcançar a Lua, elemento que norteia as narrativas, sendo esta também uma
personagem. A Lua “evoca metaforicamente a beleza e também a luz na imensidade
tenebrosa. Mas, como essa luz não é mais que um reflexo da luz do Sol, A Lua é apenas
símbolo do conhecimento por reflexo” 45 , ou seja, ela se torna uma representação do
espiritual, e um meio para ascendê-lo, estando no céu e longe da terra, da materialidade,
com seu brilho cândido como fuga aos temores da noite, sendo também “símbolo do
sonho e do inconsciente”46.
Ismália, em um estado de loucura, não se importa mais com as necessidades
terrenas, ressaltando que o louco não representa o nada, “mas o vácuo [...] uma vez que
nenhum haver é mais necessário”47. Ela se encontra em uma torre, entre o céu e o mar,
entre os dois planos que almeja, observa-se que a desejada Lua está presente nos dois
lugares, remonta também à Torre de Babel, em que homens construíram uma torre para
chegar ao céu e encontrar Deus. “O céu é uma manifestação direta da transcendência, do
poder, da perenidade, da sacralidade” 48, uma forma de representar o desejo de ir ao

43
GUIMARAENS, A. Melhores poemas de Alphonsus de Guimaraens / seleção de Alphonsus de
Guimaraens Filho. 4 ed. São Paulo: Global, 2001.
44
PEREIRA, Maria Antonieta. Lendas e Mitos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG Biblioteca Universitária,
2007, p. 42 a 45.
45
CHEVALIER, JEAN; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p.
562.
46
Ibid, p. 565.
47
CHEVALIER, JEAN; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p.
560.
48
Ibid, 227.

19
divino e celestial, em contra partida “o mar simboliza um estado transitório entre as
possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de
ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão” 49, Ismália, ao se localizar
entre esses dois elementos fica dividida entre o mundo terreno e espiritual, refletidos pelas
águas do mar, em conformidade com o plano terreno, mas não pode possuir ambos ao
mesmo tempo.
Na narrativa da Vitória Régia, Naiá se apaixonou platonicamente, de forma
idealizada, pela Lua, que é um Deus indígena, representando a espiritualidade e a
religiosidade, como ser benevolente e protetor que livra os seres da obscuridade,
caracterizado pela sacralidade e pureza. A índia anseia estar junto com a divindade, mas
se reconhece em um grau inferior, não querendo se tornar uma Lua, mas se transformar
em uma estrela, pertencente ao plano celeste, começa a jornada da índia para concluir
seus objetivos. Naiá se mantém virgem, recusando casamento com todos os índios da
aldeia, não se entregando a relações carnais que a afastariam da pureza necessária para
estar com Jaci, alcançando, assim, o mundo espiritual. Nota-se como a Lua rege as duas
narrativas, Lenda da Vitória Régia e Ismália.

49
CHEVALIER, JEAN; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, p.
592.

20
Coluna A Coluna B

Linha 2 E, no desvario seu, [...] Corria e corria até cair de cansaço


Na torre pôs-se a cantar... no meio da mata. Noite após noite, a
Estava perto do céu, tentativa de Naiá se repetia. Até que ela
Estava longe do mar... adoeceu. De tanto ser ignorada por Jaci, a
moça começou a definhar. Mesmo doente,
E como um anjo pendeu não havia uma noite que não fugisse para ir
As asas para voar... em busca da Lua. Numa dessas vezes, a
Queria a lua do céu, índia caiu cansada à beira de um igarapé.
Queria a lua do mar... Quando acordou, teve um
susto e quase não acreditou: o
As asas que Deus lhe deu reflexo da Lua nas águas claras do
Ruflaram de par em par... igarapé a fizeram exultar de
Sua alma subiu ao céu, felicidade! Finalmente ela estava ali,
Seu corpo desceu ao mar...50 bem próxima de suas mãos. Naiá
não teve dúvidas: mergulhou nas
águas profundas e acabou se
afogando [...]51.

Verifica-se na linha 2, nas colunas A e B, antagônicas a Lua no céu, Ismália e


Naiá encontram o reflexo da Lua nas águas, como o céu se mostra inalcançável, as
personagens se deparam com um meio de transcender a matéria no plano tangível, por
meio das águas, caracterizando um estado transitório, e culminando em suas mortes, em
que suas almas, componente de um ser vivo material ou imaterial52, não estão mais presas
ao mundo terreno, mas se libertaram, não sendo um final trágico para as personagens,
mas afortunado, pois Ismália e Naiá tem a oportunidade de satisfazer seus objetivos.
Ismália, irradiada pela Lua, encontrava-se metaforicamente mais próxima ao
céu, ao proferir um canto, que “símbolo da palavra que une a potência criadora à sua
criação [...]. É o sopro da criatura a responder ao sopro criador”53. Observa-se que
quanto mais próxima Ismália se encontra de um plano, mais ela se distancia de outro, e,
em um devaneio, proveniente de seu estado de loucura, acredita que igualmente como

50
GUIMARAENS, A. Melhores poemas de Alphonsus de Guimaraens / seleção de Alphonsus de
Guimaraens Filho. 4 ed. São Paulo: Global, 2001.
51
PEREIRA, Maria Antonieta. Lendas e Mitos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG Biblioteca Universitária,
2007, p. 42 a 45.
52
CHEVALIER, JEAN; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993,
p. 31.
53
Ibid, 176.

21
anjos, “seres intermediários entre Deus e o mundo”54, possui asas e pode voar em direção
a Lua, como os homens no mito da Torre de Babel que pensavam que podiam ir em
direção ao celeste. A personagem se lança da torre e cai ao mar, morre afogada, sua morte
representa a libertação de seus anseios, que encontram o plano material, seu corpo no mar
em direção ao reflexo da Lua nas águas, e o plano espiritual, com a ascensão de sua alma,
em direção a Lua no céu.
Por sua vez, Naiá de tanto percorrer a floresta, não conseguindo sair do plano
terreno para ir a encontro de Jaci, fadiga-se, os esforços de sua vida não lhes são
suficientes, começa a definhar, porém não desiste de seus objetivos, mantendo sua
esperança. Em uma noite, a índia, muito cansada de sua rotina, adormece na beira de um
igarapé e quando acorda vê refletida nas águas a Lua, estando tão próxima a si e a seu
alcance, se joga no igarapé para ter seu encontro com Jaci, Naiá acaba morrendo afogada,
mais uma vez a morte por afogamento não é encarada como um fim trágico, mas de
liberdade e felicidade. A divindade Jaci, como ser misericordioso e benevolente,
compadece-se da índia e a transforma em uma estrela d’água, uma planta aquática, Vitória
Régia, em que sua flor desabrocha ao luar, assim o corpo da índia sofre uma metamorfose,
por um gesto maravilhoso, e mantém uma relação com o mundo espiritual, por sua ligação
com a Lua.
Apesar das obras serem escritas em contextos diferentes, elas abarcam um
teor simbólico semelhante, em ambas se tem um desejo de libertação das personagens
principais de tudo aquilo pertencente ao mundo material, para transcenderem a um mundo
espiritual, puro, virtuoso, de acordo com a religiosidade das protagonistas, permitindo-as
crerem no místico e sobrenatural como válvula de escape para as coisas mundanas e
carnais. O plano terreno é representado pelo mar/igarapé trazendo a imagem da Lua
refletida, Lua que representa a divindade e o espiritualismo. Mesmo ambientadas em
lugares diferentes, as obras conversam entre si, relacionam-se, fator explicado pela
transtextualidade e mais ainda a categoria intertextualidade, mostrando sua interface, em
constante diálogo de uma obra com a outra, projetando-as entre si. Ismália e Lenda da
Vitória Régia mantêm suas particularidades, bem como suas estruturas e características
próprias de seus lugares de produção e circulação, mas se convergem ao ponto de uma
narrativa remontar a outra, trazendo uma nova leitura para ambas.

54
CHEVALIER, JEAN; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993,
p. 60.

22
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar as obras Ismália e a lenda Vitória Régia, conclui-se o quão


imprescindível é o contato com os estudos e pesquisas dos autores mencionados, pois
todos os embasamentos e desfechos do presente artigo, deram-se pela compreensão de
seus estudos e teorias, uma vez que Carvalhal (2006) aborda os estudos da Literatura
Comparada, do surgimento do termo a sua definição, mostrando que o método
comparativo não é utilizado simplesmente para comparar, pelo contrário, é utilizado como
mecanismo de análise para se chegar num determinado objetivo.
Já Genette (2006), elucida o conhecimento acerca da transtextualidade e suas
estruturas, mostrando como produções podem ter semelhanças implícita e explicitamente
com outras, tanto na estrutura, quanto nas ideias, elementos, sentidos, etc., caracterizando
a intertextualidade, estudada mais minuciosamente por Kristeva (2012), em que se
evidencia a co-presença de um texto em outro através da influência de textos escritos em
contextos diferentes, confirmando que nenhum texto é adâmico.
Em contra-partida, foi feito o estudo do movimento simbolista francês,
definição, termo e suas características, bem como sua influência no Brasil, em que através
dos poetas da época, o movimento teve notoriedade enfatizada também pelo Baudelaire
místico brasileiro (Alphonsus de Guimarães) e suas obras com forte presença do
misticismo, ilógico, jogo com as figuras de linguagem. Em se tratando de influência, na
Literatura de Expressão Amazônica, em que Loureiro (1995), em seus estudos, colabora
com a compreensão da obra de Maria Antonieta, sobre a Lenda da Vitória Régia, pois
trata da influência da oralidade e como surge a forte ligação das lendas com o contexto
local dos povos ribeirinhos, indígenas, agricultores, etc..
Embasados em todas as teorias citadas acima, o resultado da pesquisa mostra
a comparação de ambas as narrativas, Ismália e Lenda da Vitória Régia, em que observa-
se uma grande simbologia em torno dos elementos das obras, verificando-se a dualidade
entre o mundo espiritual, representado pela Lua, personagem encontrada no cerne das
duas narrativas, e o mundo material, simbolizado pelo mar/igarapé. As duas histórias se
passam em contextos diferentes e possuem características próprias, mas apresentam
similaridades, como o desejo das protagonistas em quererem se libertar do plano terreno
e transcenderem ao plano espiritual, encontrando como solução para alcançarem seus
anseios a ida ao encontro da Lua refletida nas águas, culminando nas suas mortes por

23
afogamento, libertando-as do plano material.
Destarte, como já citado, todos as pesquisas e estudos dos autores, culminam
na análise transtextual das obras Ismália e a Lenda da Vitória Régia, em que concentra-
se uma busca das percepções comparativistas, dentro do bojo das características
simbolistas e da literatura de expressão amazônica, as quais norteiam as duas produções
no que diz respeito aos elementos (símbolos), personagens, anseios, etc., evidenciando a
co-presença em ambas. Contribuindo e compartilhando as teorias aqui abordadas em
torno dos estudos de Literatura Comparada, este trabalho se torna uma fonte de
conhecimento e informação para futuros acadêmicos e todos que se sintam interessados
aos conteúdos apresentados.

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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