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A produgao de positividades. O avesso da face negativa dos processos de exclusdo, que tantas vezes e de tantas manei- ras cercam a sexualidade, em suas diversas manifestacdes. E disso que trata este livro, que se insere em um processo mais amplo de reconceituagao das questdes relacionadas a género, sexualidade poder neste final do século XX. Ao reunir trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras do Brasil e de outros paises, esta colet’inea busca contribuir para o crescente didlogo que vem ocorrendo ao Norte e ao Sul do Equador, sobre as dimensdes politicas e sociais da experién- cia sexual, da complexa construcao das miltiplas identidades sexuais e das lutas pelos direitos sexuais e reprodutivos que vem sendo travadas nas sociedades contemporaneas. IMS/UERJ ISBN 85-732b-131-5 ‘ Ny edtoralm 188! S75"261518) Regina Maria Barbosa Richard Parker Direitos, Identidades e Poder IMS/UERJ editoralill34 Rosalind Petchesky analisa o processo de introdugio do conceito de direitos sexuais nos debates internacionais e os conflitos e resis- ‘Gncias que essa proposta vem enfrentando, sobretudo no terreno dos movimentos de mu- Iheres e em defesa dos direitos humanos ‘Maria Betania Avila aborda os direitos seprodutivos enquanto construc de um no- vocampo de direitos, de lta ede resgate his- {rico para as mulheres. A Aids éenfocada no contexto das desigualdades nas relagdes de sénero, via a questao da transmisslo sexual. ‘José Ricardo Ayres, lvan Franca Jr., Ga bricla Calazans ¢ Haraldo Saleti Filho res- gatam o conceito de vulnerabilidade desde suas origens eo remetem a0 contexto de desa- fios que a epidemia de HIV/Aids nos cotoca, buscando uma proposigio positiva para utili- 24-10 como referencial na priticas de satide. ‘Regina Maria Barbosa discute a negocia- ‘edo sexual como estratégia de prevencao da Aids entre homens e mulheres, analisando co ‘mo a construgio dos significados sexuais re- lacionados aos géneros define as possibilida- dese 0s limites de sua utilizagao. ‘Rubens Adorno explora as mudangas de significados que os conceitos de identidade e exclusao vim sofrendo, gracas a uma série de forcas contempordneas, entre as quais a dos movimentos soci ‘Veriano Testo Je. analisa como a organi- zagSo das pessoas vivendo com HIV/Aids se relaciona com o processo de construgio da identidade homosexual masculina, desdo- brando-se em diferentes propostas politicas, de enfrentamento da epidetnia de HIV/Aids. Daniela Knauth enfoca asimplicagSes da infeccao pelo HIV/Aids para a subjetividade dde mulheres de baixa renda que adquitiram virus de seus parceiros, analisando a com- preensio que essas mulheres tém de sua con- digdo e as estratégias que acionam para tor- nar “legitima” a contaminagio. SEXUALIDADES PELO AVESSO Direitos, Identidades e Poder SEXUALIDADES PELO AVESSO Direitos, Identidades e Poder Regina Maria Barbosa editoralll34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592. Jardim Europa CEP 01455-000 ‘Sao Paulo - SP Beasil ‘Tel/Fax (011) 816-6777 Programa de Estudos e Pesquisa em Género, Sexualidade e Satie Instituto de Medicina Social (IMS) Centro de Estudos e Pesquisas em Saiide Coletiva (CEPESC) Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UER]) Rua Sio Francisco Xavier, 524- 7” andar Bloco D CEP 20550-013 Rio de Janeiro - RJ Brasil Tel. (021) 568-0599 Fax (021) 568-9526 Com o apoio da Fundacio John D. ¢ Catherine T. MacArthur Copyright © 1999 dos autores ‘A FOTOCOMIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E ILEGAL, F CONHIGURA UMA “APROPRIAGAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS F PATRIMONIAIS DO AUTOR. Coordenagio editorial e preparagio dos originais: Silvana Afram Capa, projeto grafico ¢ editoragao eletronica: Bracher & Malta Produgio Grafica 1° Edigio - 1999 Catalogasio na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundagio Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) sat Sexualidads pelo aves diets ideas «poder / Regina Maria Barbosa, Richard Parker. torgantzadores. — Rio de Janie: IMSIULRY; So Palo: Ea, 34, 1999 2p. ISN 85.7326-1315 1. Sexo (Psicologia), 2. Compoctamento sexu 5, Movimentos soci, I. Barbosa, Regina Maria. 1 Packer, Ricard, TL IMSIUERI. DD - 306.7 SEXUALIDADES PELO AVESSO. Direitos, Identidades e Poder Prefcio eens Introducio Regina Maria Barbosa e Richard Parker . Direitos sexuais: um novo conceito na pratica politica internacional Rosalind Pollack Petchesky .. Direitos reprodutivos, exclusao social e Aids Maria Betania Avila, Vulnerabilidade e prevengio em tempos de Aids José Ricardo Ayres, Ivan Franga Jr. Gabriela Calazans ¢ Haraldo Saletti Filho . |. Negociagao sexual ou sexo negociado? Poder, género e sexualidade em tempos de Aids Regina Maria Barbosa Identidade ¢ exclusio Rubens de Camargo Ferreira Adorno .. Soroponividade «politics de ienidade no Bra Veriano Terto Jr. : Subjetividade feminina ¢ soropositividade Daniela Riva Knastth ee negociadas: identidades ¢ espagos de ide sexual em um grupo de michés em Lima Carlos Caceres. Desejo, prazer e poder: questdes em torno da masculinidade heterossexual José Olavarria “Marido é tudo igual”: mulheres populares ¢ sexualidade no contexto da Aids Maria Luiza Heilborn e Patricia Fernanda Gouveia 1s 39) 49 73 89 99) 1 137 153 175 a 2. 13. 14 Prevengio do HIV/Aids, género e sexualidade: um desafio para os servigos de saiide Wilza Vieira Villela Género e poder: comunicagao, negociagio ¢ preservativo feminino Purnima Mane e Peter Aggleton.. Crencas leigas, esteredtipos de género ce prevengio de DSTs ‘Monica Gogna e Silvina Ramos Cenas sexuais, roteiros de género e sujeito sexual Vera Paiva nn Os/as autores/as 199 215 229 249 270 PREFACIO; Esta coletinea € 0 resultado de alguns anos de trabalho realizado pelo Programa de Estudos e Pesquisa em Género, Sexualidade e Satie no Ins- tiruto de Medicina Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Os textos aqui reunidos foram inicialmente apresentados em quatro semi- narios organizados pelo Programa: 1) Semindrio Internacional Reconcebendo a Sexualidade, realizado no Rio de Janeiro em abril de 1996 com o apoio da Fundacao Ford e da Fundagao John D. ¢ Catherine T. MacArthur. Contando com a participa- ‘gio de pesquisadores ¢ pesquisadoras provenientes de cinco continentes, foi possivel obter um panorama global do que vem se constituindo como objeto de investigagao nos mais diversos paises, no campo da sexualida- de, género e saide. 2) Satide Reprodutiva em Tempos de Aids, realizado no Rio de Ja- neiro em margo de 1997 com o apoio da Funda¢o MacArthur e organi- zado em parceria com a ABIA ~ Associagao Brasileira Interdisciplinar de Aids. Este seminario reuniu pesquisadores/as, ativistas e profissionais de satide, a fim de discutir os impasses e desdobramentos que a répida e pro- sgressiva disseminacio da infec¢ao pelo HIV/Aids vem produzindo para a satide reprodutiva e sexual 3) Direitos Reprodutivos, Exclusio Social e Aids, realizado em Sio Paulo em janeiro de 1998 com 0 apoio da Fundagao MacArthar e organi- zado em parceria com a Rede Nacional Feminista de Sade e Direitos Reprodutivos ¢ 6 Grupo de Incentivo a Vida (GIV). Este seminério reuniu ativistas, pesquisadores/as e profissionais de saiide oriundos de varias re- ides do pais ¢ com diferentes insergdes no trabalho académico, de pres- tagio de servigos de satide e de intervengao politica ¢ educativa, de modo que fossem cotejados o olhar de quem esta no feminismo com o olhar de quem trabalha diretamente com Aids, na expectativa de criar um didlogo produtivo e promover ages politicas mais eficazes nesse terreno. 4) Por iltimo, Homens: Sexualidade e Reproducao, realizado em Sa0 Paulo em abril de 1998 novamente com o apoio da Fundagao MacArthur e organizado em parceria com o Grupo de Estudos sobre Sexualidade Mas- culina e Paternidade (GESMAP), da ECOS - Estudos ¢ Comunicagao em Sexualidade e Reproducio Humana, Este evento contou com a participa cio de pesquisadores/as provenientes de diversas regides do pais e da Amé- rica Latina, que trabalham com questdes relativas aos homens ¢ as mas- 7 culinidades, no campo das discusses sobre género ¢ sexualidade, satide e reproducio. O livro guarda, portanto, a fungao de sintese, ao reunir trabalhos rea- lizados por pesquisadores/as ¢ ativistas no Brasil e em outros paises. AS- sim, a coletanea é um reflexo auténtico da meta principal do Programa de Estudos e Pesquisa em Genero, Sexualidade e Satide ao longo dos anos: a construgio de um dislogo produtivo entre a academia e os movimentos sociais, com o intuito de contribuir para um mundo mais igualitério e just. ‘Agradecemos, ao longo desse processo, o apoio da Fundacio Mac- Arthur e da Fundagio Ford, bem como os esforgos de todos os nossos colaboradores. Além dos diversos autores e autoras cujos textos est30 aqui reunidos, destacamos as contribuigdes de Anna Paula Uziel, Jane Galvao, Juan Carlos de la Concepcién Raxach, Vagner de Almeida, Veriano Terto Jr Margareth Aritha, Benedito Medrado, Nair Brito e Wilza Vieira Villela, ‘cuja parceria viabilizou a realizagao dos quatro semindtios. E ainda o apoio de secretaria de Rita Rizzo e Aparecida Moreira. Agradecimentos espe- ciais para Silvana Afram, pelo criterioso trabalho na coordenago da edi- io dos textos. 8 Preficio INTRODUGAO, Regina Maria Barbosa e Richard Parker Nas iltimas décadas, especialmente nos anos 80 ¢ 90, tem havido um importante crescimento da pesquisa e da reflexao voltadas a sexwalidade € 2 experiéncia sexual, em particular no campo das ciéncias sociais. As razdes desse crescimento sao certamente complexas ¢ esto associadas 20 amplo conjunto de mudangas que vém ocorrendo nas ciéncias sociais nes- te final de século, bem como a série ce movimentos que se desenvolveram no interior da propria sociedade. Isso poder ser entendido, ao menos em parte, como uma conseqiién- cia das relevantes mudangas sociais ocorridas desde os anos 60 —incluindo o crescimento dos movimentos feminista, gay e lésbico —e das maneiras com as quais tais movimentos impactaram as disciplinas académicas, as, préticas universitérias ¢ também, em alguns casos, as politicas governa- mentais (ver Lancaster & Di Leonardo, 1997; Parker & Aggleton, 1999; Parker & Barbosa, 1996; Parker & Gagnon, 1995). ‘Ao mesmo tempo que os movimentos sociais, como 0 feminista, 0 lésbico ¢ o gay, foram fundamentais no sentido de chamar a atengo para as questoes de género e sexualidade, o crescente interesse internacional em. torno de temas como populagio, satide reprodutiva de mulheres © homens ¢, talvez especialmente, a emergéncia da pandemia de HIV/Aids interagiv, em grande parte, com a construgdo de agendas em torno dos interesses, feministas, gays € lésbicos. Enquanto setores conservadores da sociedade preferiram menospre- zar as questées relacionadas a género, sexualidade e direitos humanos, bem como temas especificos de minorias, as implicagSes sociais mais amplas de questes como populacio, saiide reprodutiva e Aids garanti- ram, em grande parte, que o estudo da sexualidade e de suas dimensies sociais e politicas emergisse necessariamente como tema centeal de impor- tantes debates que vém ocorrendo na sociedade neste final do século XX (ver Corréa, 1994; Ginsberg & Rapp, 1995; Lancaster & Di Leonardo, 1997; Parker & Barbosa, 1996; Parker & Gagnon, 1995; Petchesky & Judd, 1998). ‘Como parte de um amplo processo de mudanca social global, essas questdes ¢ debates emergentes delinearam-se num momento em que po- deria parecer que muitas das fronteiras entre os chamados mundos desen- volvidos e em desenvolvimento haviam se desfeito, ou, no minimo, torna- ram-se mais nebulosas, colocando 0 que antes pareciam ser interesses € Introdusio ° ‘movimentos muito diferentes em contato ¢ didlogo cada vez maiores em torno de questdes relativas & sexualidade e & politica, numa escala verda- deiramente transnacional: as teorias feminista, gay ¢ lésbica tornaram-se fontes inspiradoras de pesquisas e de movimentos sociais em muitos pai- ses em desenvolvimento; o impacto da violéncia estrutural ¢ da exclusio social na definigio da vulnerabilidade ao HIV/Aids e um certo niimero de problemas da sade reprodutiva tornaram-se mais visiveis em cidades tanto do Primeiro quanto do Terceiro Mundos; o movimento pelos direitos r produtivos e sextais cresceu a dimens6es globais; ¢ a divisio ou distingao entre 08 pesquisadores académicos e os ativistas sociais e politicos comu- nitérios tornaram-se cada vez menos definidas. Esta coletinea de textos, assim como muitos dos autores ¢ autoras cujo trabalho esta aqui representado, situa-se nesses pontos de interse- ‘¢do como parte de um processo de reconceituagao mais amplo das ques- {es relacionadas a género, sexualidade e poder no final do século XX. Ela busca contribuir para um crescente didlogo que vem ocorrendo atual- ‘mente, tanto ao Norte quanto ao Sul do Equador {ver Parker, 1999), acerca das dimensées politicas e sociais da experiéncia sexual, da com- plexa construcdo das miltiplas identidades sexuais e das lutas em curso pelos direitos sexuais e reprodutivos que esto sendo travadas nas socie- dades ao redor do mundo. Os textos caracterizam-se pela pluralidade de abordagens e estilos e reiteram um objetivo bastante simples: a produgao de positividades, o avesso da face negativa dos processos de exclusio, que ‘antas veres e de tantas maneiras cercam a sexualidade em suas diversas, ‘manifestagdes. Tais caracteristicas evidenciam-se em cada um dos quatorze textos aqui reunidos. Em Direitos sexuais: unt novo conceito na prética politica internacional, por exemplo, Rosalind Petchesky analisa 0 processo de i trodugio do conceito de direitos sexuais nos debates internacionais, a partir das conferéncias do Cairo (1994) e de Beijing (1995), promovidas pelas ‘ages Unidas. Ao mesmo tempo em que salienta o significado historico dessa conquista para os movimentos de mulheres, gays € lésbicos,a auto- ra nos aponta os conflitos que tais debates enfrentam, sobretudo no pro- prio terreno dos movimentos de mulheres ¢ em defesa dos direitos huma- nos. Em sua proposta, Petchesky expe os prinefpios éticos que deveriam nortear os debates atuais, a fim de assegurar uma “visio alternativa positiva” dos direitos sexuais. ‘Maria Betania Avila, em Direitos reprodutivos, exclusao sociale Aids, aborda a questo dos direitos reprodutivos enquanto construcao de um ‘novo campo de direitos, como arena de saber, de luta e de resgate hist co para as mulheres. A autora utiliza o conceito de cidadania como fio condutor para pensar os direitos reprodutivos ¢ a exclusao social, refle- 10 Regina Maria Barbosa ¢ Richard Parker tindo sobre a reestruturacio por que passa esse conceito, dada a emergéncia de novos direitos. A Aids é enfocada no contexto das desigualdades nas relages de género, via a questio da transmissio sexual. Em Vulierabilidade e prevencao em tempos de Aids, José Ricardo ‘Ayres, Ivan Franga Jr., Gabriela Calazans e Haraldo Saletti Filho enfocam o conceito de vulnerabilidade em suas diferentes dimensdes: individual, social e programatica. Resgatando 0 conceito desde suas origens e reme- tendo-o ao contexto de desafios que a epidemia de HIV/Aids nos coloca, 0s autores aprofundam a nocao de vulnerabilidade enquanto quadro te6- rico, buscando uma proposigao positiva para utilizé-la como referencial ou instrumental de elaboragao de conhecimento e de intervengao nas pra- ticas de satide preventivas. Regina Maria Barbosa, em Negociacio sexual ow sexo negociado? Poder, género e sexualidade em tempos de Aids, discute, a partic de pes- uisa realizada em Recife ¢ no Rio de Janeiro, a idéia da negociagao se~ xual como estratégia dle prevengao da Aids entre homens e mulheres de comportamento predominantemente heterossexual. Por meio de um mi: mucioso processo de decodificaga0 dos termos envolvidos nas trocas sexuais, a autora analisa como ¢ através de que caminhos a construgao dos signi ficados sexuais relacionados aos géneros, feminino € masculino, ao mo- delar as praticas sexuais ¢ pautar os processos de negociagao sexual, defi- ne as possibilidades ¢ os limites de sua utiliza¢ao como forma de negociar ‘0 uso do condom ou qualquer outra forma de sexo mais seguro. Rubens Adorno, em Identidade e exclusdo, faz.uma relagao instigante entre esses dois conceitos, explorando as mudangas de significados que vem. sofrendo gragas a uma série de forgas contemporancas, entre as quais des- taca a dos movimentos sociais. Nesse processo de “desconstrugao” das nogies de identidade e de exclusio, ressalta também a importéncia que vem adquirindo o consumo cultural ¢ os bens simbdlicos, assim como 0 fator de “alta reflexividade”, que consiste na disponibilidade de conhecimen- tos, constantemente interpretados ¢ reinterpretados, tanto pela midia como por eirculos formais e informais. Veriano Terto Jr., em Soropositividade e politicas de identidade no Brasil, analisa como a organiza¢ao das pessoas vivendo com HIV/Aids se relaciona com o processo de organizacao e construcao da identidade ho- ‘mossexual masculina. Considerando a existéncia de duas concepgdes ma- joritarias de se tornar soropositivo — uma mais universalista, que enten- de que pessoas vivendo com Aids seriam toda a humanidade, ¢ outra, mais particular ou minoritéria e diferenciada, que conccitualiza pessoas viven- do com Aids como aquelas que foram infectadas pelo HIV —, 0 autor discute como a movimentagao das pessoas vivendo com Aids, a0 se orga- nizar em torno de politicas de identidade capazes de aglutinar sua diversi- Introdugio u dade ¢ definir interesses e objetivos comuns, se desdobra em diferentes propostas politicas de enfrentamento da epidemia de HIV/Aids. Em Subjetividade feminina e soropositividade, Daniela Knauth enfoca as implicagdes da infecgao pelo HIV/Aids para a subjetividade de mulhe- tes de baixa renda, moradoras da Grande Porto Alegre, que adquiriram 0 virus de seus parceiros. A pesquisadora analisa a compreensao que essas mulheres tém de sua condicao de soropositivas e as estratégias que acio- nam para tornar “legitima” a contamina¢ao, a fim de diferenciarem-se dos grupos de risco” (daqueles que “procuraram a doenga”). Em Masculinidades negociadas: identidades e espacos de possibili- dade sexual em um grupo de michés em Lima, Carlos Caceres nos apre- senta dados de uma pesquisa realizada entre jovens michés, a partir da qual caracteriza uma cultura sexual de intercmbio homossexual comercial. Com isso, demonstra de que maneira os desejos € prazeres homocréticos se constituem 4 margem do discurso hegemdnico sobre sexualidade e como essa cultura sexual comercial nao s6 € adaptada ou apaziguada por signi- ficados ambiguos referentes 3 identidade sexual e de género, mas também é impulsionada pelas forcas poderosas do mercado. José Olavarria, em Desejo, prazer e poder: questes em torno da masculinidade heterosexual, bascia-se em dados de uma pesquisa reali- zada entre homens heterossexuais de setores populares e médios de San- tiago do Chile para abordar a questio das identidades masculinas ¢ as re lagoes de poder entre os géneros, a partir de seus relatos sobre sexualidade e reprodusio. Em “Marido é tudo igual”: mulheres populares ¢ sexualidade no contexto da Aids, Maria Luiza Heilborn e Patricia Gouveia analisam, a partir de pesquisa realizada entre mulheres de setores populares, as repre- sentagdes sobre sexo, prazer e manifestagio de sentimentos. Discutindo os limites de determinadas praticas de intervengio na area da savide, que se baseiam numa visao essencialista da sexualidade, as autoras apontam que € no campo simbélico que se organizam as intengdes de mudanga com- portamental. £ para este campo, assim, que as ages progeamaticas deve- riam voltar suas reflexdes. ‘Wilza Vilella, em Prevencao do HIV/Aids, género e sexualidade: um desafio para os servicos de satide, parte das reflexdes sobre a importancia do discurso e das priticas médicas nos processos de produgao de identi- dades e subjetividades para analisar uma série de aspectos que dificultam ‘oentendimento eo ato de prevenir-se, por parte do sujcito demandante, ¢ suas conseqiiéncias para as praticas de saiide, por parte dos profissionais, que trabalham nesse servigo. Propde ainda uma visio afirmativa de deter- minadas “insfgnias de género”, de modo que possam ser utilizadas para 0 cerescimento mituo e como forma de prevengao a0 HIV. 2 Regina Maria Barbosa e Rickard Parker Em Género ¢ poder: comunicacao, negociagao e preservativo femi- ‘nino, Purnima Mane e Peter Aggleton abordam temas relacionados & vul- nerabilidade feminina epidemia de Aids, com destaque as questées de poder nas relagdes de género. Os autores analisam dados de estudos rea- Iizados no México, Costa Rica, Senegal e Indonésia, que buscaram inves- tigara aceitabilidade do preservativo feminino, quais as circunstancias mais propicias & sua utilizagdo e entre que grupos (profissionais do sexo ¢ as no-pertencentes a esse grupo}. Destacando os aspectos culturais e con- textuais para o entendimento da negociagio sexual, os autores sugerem temas relevantes para a reflexdo em torno da universalidade, ou nao, do conceito de empowerment. ‘MGnica Gogna ¢ Silvina Ramos, em Crencas leigas, esterectipos de -género e prevencao de DSTs, chamam a atengao para uma problemstica que tem sido escassamente estudada, ao analisar como os conhecimentos, ccrengas, opinides e preocupagdes de homens e mulheres, jovens e adultos, acerca das doengas sexualmente transmissiveis (DSTs) incidem na preven- io € tratamento dessas doencas. Evidenciam como as nogées leigas so- bre DSTs, que diferem substancialmente da perspectiva biomédica, estio ligadas ¢ so reforcadas por normas culturais e proscrigdes que envolvem a sexualidade e 0 género, e como tais nogdes, por sua vez, afetam o desejo ea habilidade de as pessoas conceberem, proporem e adotarem priticas cficientes para prevenir e tratar as DSTs Finalmente, em Genas sexuais, roteiros de género e sujito sexual, Vera Paiva esboga uma referéncia conceitual e um modelo para programas de prevencio 4 Aids, baseando-se em sua experiéneia com Oficinas de Sexo Seguro, Reproducio e Aids junto a estudantes universitarios e de escolas noturnas de 1° grau da cidade de So Paulo. Fazendo uma critica as pro- postas de intervencao baseadas na psicologia da satide ou no marketing, a autora descreve sua experiéncia — consubstanciada na tradigzo da edu- cagio popular (sobretudo na pedagogia de libertacao de Paulo Freire), em técnicas do teatro do oprimido e no construtivismo como corrente de pen- samento sobre sexualidade —, a partir da qual propie seu modelo para programas de prevencao. Estes textos reunidos nos oferecem uma clara visio dos tipos de ques- tes que vém erescentemente ocupando a linha de frente nas recentes pes- quisas sobre sexualidade. Acima de tudo, eles se caracterizam pelo pro- fando sentido de engajamento — engajamento nos problemas praticos levantados pelo HIV/Aids e a satide reprodutiva, engajamento nas lutas politicas pelos direitos das mulheres e das minorias sexuais, engajamento nos dilemas existenciais das identidades sexuais mutantes e nas priticas sexuais freqiientemente contraditérias... Em resumo, engajamento com o mundo no final do século XX —um mundo onde é impossivel confrontar Introdugéo B as nuances da experiéncia sexual sem confrontar, simultaneamente, as interseges e conexdes que relacionam sexualidade a questies como direi- 108, identidade e poder. Enquanto houver muito a ser feito no sentido de construir um mundo no qual nés possamos ser verdadeiramente cidadaos cidadas sexuais — sujeitos sexuais no sentido completo da expresso agentes dos nossos proprios descjos sexuais ¢ autores/as das nossas pr prias historias sexuais, os textos que nos esto sendo apresentados pelos! as colaboradores/as neste volume certamente oferecer’o uma nogio abran- gente das questdes em cena ¢ dos possfvcis caminhos adiante que poderio nos guiar neste € no préximo século. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS. CORREA, S. (1994) Population and reproductive rights: feminist perspectives from the south, Londres, Zed Books. GINSBERG, F. & RAPP, R. (eds) (1995) Conceiving the new world order: The global politics of reproduction. Berkeley ¢ Los Angeles, University of Caiforia Press. LANCASTER, R.N. & DILEONARDO, M, eds) (1997) The genderksexuality reader: ‘Culture, stor, political economy. Nova York ¢ Londres, Routledge. PARKER, R. G, (1999) Beneath the Equator: Cultures of desire, male homosexuality, and emerging gay communities in Brazil. Nova York e Londres, Routledge. PARKER, R. & AGGLETON, P. ds.) (1999) Culture, society and sexuality. Londres, UCL Press PARKER, R. & BARBOSA, R. M. (orgs. (1996) Sexualdades braileiras. Rio de Ja- ncito, Relame-Dumaré PARKER, R. G. & GAGNON, JH. leds, (1995) Conceiving sexuality: approaches to ‘sex research ina post-modern world. Nova York ¢ Londres, Routledge. PETCHESKY, R.P. & JUDD, K. (eds) (1998) Negotiating reproductive rights: women's erspectives across countries and cultures. Londres, Zel Books. 4 Regina Maria Barbosa e Richard Parker 1 DIREITOS SEXUAIS: UM NOVO CONCEITO NA PRATICA POLITICA INTERNACIONAL Rosalind Pollack Petchesky © conceito de direitos sexuais 6 a grande novidade nos debates in- temnacionais que discutem 0 significado e o exercicio dos direitos huma- nos, sobretudo no que diz respeito aos direitos da mulher. Que esse con- ceito e as animadas discussdes sobre o assunto tenham finalmente surgi- do nos grandes féruns internacionais — apesar ou devido ao penetrante clima fundamentalista ressurgente no globo — por si mesmo jé é uma ‘conquista historica que os movimentos feministas, gays e lésbicos deveriam, proclamar com orgulho. Porém, no presente estagio, o conceito esta lon- ge de ser claro, nao s6 entre seus firmes opositores, mas também entre seus muitos defensores. Talver os direitos sexuais tenham sido introduzidos progressivamente, acabando por se infiltrar no dicionario dos direitos humanos, tanto para ‘que fossem recomhecidas as diversas orientages sexuais e sua legitima necessidade de expresso, quanto para ser uma espécie de cédigo que, como ‘08 direitos reprodutivos, pode assumir significados diversos para diferen- tes pessoas, dependendo da posigdo de poder que ocupam, da orientagio sexual, do género, da nacionalidade, e assim por diante. Além disso, os riscos, as ambighidades e os potenciais mal-entendidos so inoportunos ‘quando se tenta negociar a sexualidade por meio dos misteriosos canais dos direitos humanos internacionais. Fm se tratando de sexo, ainda ha um abismo separando 0 local do global. Neste artigo buscarei expor algumas idéias gerais sobre a tenue re- gido onde atualmente se encontram 0 discurso sobre os direitos sexuais © a politica. Fm primeiro lugar, farei uma revisio do desenvolvimento das recentes reunides — principalmente a Conferéncia do Cairo sobre Po- pulacdo e a Conferéncia da Mulher em Beijing, realizadas respectivamen- te em 1994 © 1995 — que deram origem a recente linguagem sobre os direitos sexuais. Em segundo lugar, farei algumas consideragdes acerca das dificuldades de se promover um conceito positivo sobre 0s direitos sexuais: um conceito mais amplo que a também importante ¢ urgente luta para combater as discriminagdes, abusos e horrores cometidos con- tra as minorias sexuais (inclusive contra as mulheres que nao se enquua- dram nas normas dominantes de seu genero). Como sera demonstrado, © contexto mais amplo dessas dificuldades ¢ compartilhado por todas as propostas afirmativas relacionadas com os direitos enquanto bens, 16 Rosalind Pollack Petchesky entitlements! sistemas sociais transformados, no apenas como defesas contra as discriminagdes ou abusos fisicos. Em terceiro lugar, tentarei salientar alguns elementos bésicos que podem envolver esse enfoque afirmativo dos diceitos sexuais, assim como suas implicagbes gerais?. Finalmente, farei algumas considerages sobre as razBes pelas quais até mesmo grupos feministas, defensores dos direitos shumanos e outros grupos progressistas freqlientemente se tornam ciimplices da supressio de definigbes positivas dos direitos sexuais, seja agindo ati- ‘vamente, seja por omissdo, analisando os fatores do legado ideoldgico e politico que contribuem para esse silencio; 0 que temos a perder se conti- nuarmos agindo dessa maneira evasiva ou coniventes € 0 que temos a ga- nar se sairmos em defesa dos direitos sexuais em um sentido mais positi- vo ¢ liberador. Sem entrar em detathes, farei uma pequena revisio dos recentes de- bates realizados nas Nacées Unidas, onde teve inicio o incipiente conceito dos direitos sexuais. De modo bastante significativo, nenbum instrumen- 10 internacional relevante, anterior a 1993, faz qualquer referéncia ao ‘mundo proibido do “S” (akém do “sexo”, 0 sexo biolégico)s isto é, antes de 1993, a sexualidade de qualquer espécie e suas manifestagdes esto ausentes do discurso internacional sobre direitos humanos. Isso podera parecer pouco digno de nota, se considerarmos as rigidas divisées entre as esferas piiblicas € privadas que, como as feministas repetidamente fri- saram, prevalecem na implementagao dos direitos humanos e em seus me- canismos de reforgo (Bunch, 1990; Cook, 1994; Copelon, 1994; Freedman & Isaacs, 1993; Romany, 1994), ‘Ainda assim, mesmo que os direitos humanos sejam confinados a nas as responsabilidades dos Estados, sem considerar aqueles dos indi duos ou de outras instituigdes, deve ser dito que, de fato, jamais houve uma divisio nitida entre privado e priblico nos principios aceitos dos direitos humanos. Todos os principais documentos sobre direitos humanos, des- de a Declaragao Universal de 1948, tém muito a dizer sobre os direitos das ‘pessoas em suas vidas particulares e pessoais: casar e formar uma familia, ‘expressar suas crengas € religido, educar seus filhos, ser respeitado em sua propria privacidade e na de sua casa, etc., mas nada consta no sentido de ‘expressar ¢ ter seguranga em sua sexualidade. ‘Além disso, antes de 1992, nenhuma declarac3o elaborada nas con- feréncias sobre mulheres sc refere & sexualidade da mulher, muito menos + Para a definigao do conceito de entitlement, ver, neste mesmo livro, 0 artiga de José Ricardo Ayres ef al, nas paginas 49 a 72 (nota dos organizadores 2 Parte desta anilise deriva de um artigo que escrevi em colaboragdo com Sonia ‘Corréa; ver Corréa & Perchesky, 1994, Direitos sexuais 7 ‘0s seus direitos sexuais — nem a Convengao da Mulher (Convencao so- bre a Eliminagao de todas as Formas de Discriminagao contra as Mulhe- res, 1981), nem o Movimento para Futuras Estratégias de Nairdbi (1985), referente a igualdade sexual ¢ ao direito da mulher controlar sua propria fertilidadc, mencionam a liberdade sexual ow os direitos das lésbicas. Em utras palavras, até recentemente, na maior parte do discurso sobre direi- tos humanos, a vida sexual é aceita apenas de modo implicito e, mesmo assim, confinada as fronteiras da reprodugao e do casamento heterosse- xual (ver Cook, 1995; Copelon & Hernandez, 1994)*, ‘Um ponto decisivo teve lugar em 1993, na Conferéncia Mundial sobre Direitos Humanos, em Viena, onde, gracas ao esforgos de um bem-orga- nizado grupo de mulheres defensoras dos direitos humanos, a Declaracao 0 Programa de Acio recorreram ao Estado para eliminar “a violéncia baseada no género ¢ todas as formas de abuso e exploracao sexual”, in- clusive o tréfico de mulheres, “o estupro sistemstico, a escravido sexual a gravides forgada” (paragrafos 18 ¢ 38) ‘A Declaracao sobre a Fliminacao da Violéncia contra a Mulher, norada pela Assembléia Geral nesse mesmo ano, contém uma condenagio ainda mais explicita das varias formas de “violencia fisica, sexual e psico- logica contra a mulher” (paragrafo 2) ¢ deixa bem claro — mais uma vez, gracas ao trabalho de especialistas feministas em direito internacional — que essa proibigao nao é algo novo, mas se origina nos respeitados princi- pios embutidos nas leis internacionais sobre direitos humanos. Estes in- cluem, entre outros, os direitos & vida, 2 liberdade e A seguranca pessoal (Declaragao Universal, Artigo 3; Convengao Européia sobre Direitos Hu- ‘manos, Artigo 2); 4 inviolabilidade da pessoa ¢ sua integridade fisica € ‘mental (Carta Africana sobre os Direitos Humanos das Pessoas, Artigos 4¢6; Convengdo Americana sobre Direitos Humanos, Artigo 5); €a proi- bigdo de torturas e de punigdes cruéis e desumanas (Cook, 1995). De fato, especialistas feministas estabeleceram um claro elo entre a tortura € 0 €s- tupro ou outras formas de violéncia sexual, seja no contexto de guerta, seja nas relagbes domésticas (Copelon, 1994). ‘A Declaragio de Viena e a Declaragao sobre a Violéncia contra a ‘Mulher foram importantes, nao s6 pelo fato de reconhecerem a violencia 3 De cer forma, isso no deveria nos surpreender. Apesas da insiséncia de Fou- caule (eurocéntrica) na caracterizagéo da modernidade através de sua incessante preo- ‘eupaglo com as palestrs sobre sexo, de fato sabemos que sua consisténcia, até mesmo no Ocidente, tem sido velada, ambivalente, carregada de culpas ou dominada ‘ndalos. Apenas no final do século XX e no inicio de um novo milénio, gracas & pan sdemia global de HIV/Aids, as relagdesinternacionais se tornaram wm dominio onde @ sexualidade pode, de certa forma, ser discutida abertamente. Ver Parker & Gagnon (1995), sobretudo a introducio dos editores eo artigo de Altman, ¢ Foucault (1978) 18 Rosalind Pollack Peschesky ‘ i ; i i ‘ i i i i i i : i i j sexual como uma violagao dos direitos humanos, mas também porque fi- nalmente introduziram 0 “sexual” na linguagem dos direitos humanos. Mas foi apenas na Conferéncia Internacional sobre Populac3o e Desenvolvimen- to (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, que a sexualidade comegou a aparecer nos documentos internacionais como algo positivo, em lugar de algo sempre violento, insultante, ou santificado e escondido pelo casamento hheterossexual e pela gravidez. Como afirma Yasmin Tambiah: O Documento do Cairo, incontestavelmente, 6 uma das declaragies mais progressistas reconhecendo a atividade sexual como wm aspecto positivo da sociedade humana, que emergine recentemente através de um consenso global (1995). Na Conferéncia do Cairo, muitos delegados governamentais (sobre tudo os representantes de paises islamicos e cat6licos, onde os fundamen talistas possuem grande influéncia politica) nao esconderam sua total versio em permitir que 0 palavrao “S” aparecesse em qualquer parte do Programa de Ago; a palavra “sexo” permaneceu disfargada praticamen- te até a hora final. Mas, na versio final da documento, as referéncias 20 “sexo” ou A *sexualidade” aparecem intimeras vezes e, pela primeira vez em um documento legal internacional, 0 Programa do Cairo inclu, de modo explicito, a “satide sexual” (mas nao o prazer sexual) na lista dos direitos que devem ser protegidos pela populagao € pelos programas de desenvolvimento. © Capitulo 7 adota a definigao da Organizacao Mundial de Savide para a “satide sexual” como parte integrante da satide reprodutiva, afir- ‘mando que “as pessoas tém dircito a uma vida sexual satisfatéria e sogu- 12”, podendo decidir “se, quando e com que freqtiéncia” desejam se re- produzir. Esse capitulo define o propésito da vida sexual como “a intensi- ficacdo da vida e das relagdes pessoais, nao apenas o aconselhamento e os cuidados relacionados com a reprodugio e com as doengas sexualmente transmissiveis” (pardgrafo 7.1). No que concerne ais muitas delegacdes, sobretudo as provenientes das rregides proximas ao deserto do Saara, na Africa, ha poucas dividas sobre as devastadoras conseqiiéncias do HIV/Aids para a satide e a sociedade. Tais delegagdes desempenharam um papel crucial para que a sexualidade fosse abordada no Documento do Cairo — pelo menos tio importante «quanto 0 papel da coalizao das mulheres pelos direitos humanos, chamando 2 atencdo para as mulheres como vitimas de violencia sexual. No entan- to, € surpreendente a forma riterada com que a “vida sexual satisfatoria € segura” aparece no Programa, em um sentido afirmativo, nao s6 com 0 proposito de prevenir moléstias. Contudo, nao se deve enfatizar tanto esse fato, pois a liberdade de expressio sexual e a orientagio sexual jamais, Dieitos sexuais 1» receberam reconhecimento como um direito humano, nem na Conferén- cia do Cairo, nem em qualquer outra. Porém, se nao ha referéncias expli citas aos direitos sexuais de gays, Iésbicas e pessoas nao-casadas (ou mes- ‘mo qualquer outra pessoa), nem mesmo o Parsgrafo 7.2 limita expressa- ‘mente o direito a autodeterminagao, a seguranga e a satisfagao na vida sexual dos heterossexuais unidos pelo casamento ou adultos (Copeton & Peichesky, 1995). Na verdade, outras cléusulas do Capitulo 7 se referem ao “poder li- mitado que muitas mulheres e adolescentes possuem sobre suas vidas se- xuiais e reprodutivas” e insistem para que 0s governos oferegam uma vas ta gama de servigos de educacao voltados satide reprodutiva e sexual “para possibilitar a elas agir de modo positive e responsavel no que diz respeito a sua sexualidade”. Ao mesmo tempo que a “abstinéncia volun- tdria” foi oferecida como meio para que os homens participassem na “[di- visio} de responsabilidades com as mulheres, em assuntos ligados & se- xualidade ¢ & reprodueio”, também o foi 0 preservativo (essa palavra ne- fasta finalmente foi incorporada ao documento) {parégrafos 7.3, 7.41, 7.44, 7.45 ¢ 8.31). Finalmente e, como foi demonstrado, de modo muito con- troverso, os governos signatérios do Programa do Cairo recomendam, no Capitulo 5, que suas leis e programas de agao levem em conta a “phuralidade das formas [familiares]” que existem na maior parte das sociedades (pard- grafos 5.1 € 5.2), ‘A Plataforma de Agao claborada na IV Conferéncia Mundial da Mu- Iher, em Beijing, em 1995, avancou alguns passos no sentido de formular tum conceito relativo aos direitos sexuais como parte dos principios dos direitos humanos. Nela, um complicado processo de negociagées envol- vendo delegados, fandamentalistas orientados pelo Vaticano, a coalizao de mulheres a asticia de alguns participantes conseguiu que o seguinte ardgrafo historico fosse redigido: Os direitos humanos das mulheres incluem seu direito a ter controle e decidir livre e responsavelmente sobre questies relacionadas 4 sua sexualidade, incluindo a satide sexual e re- produtiva, livre de coagao, discriminagao e violéncia. Relacio- namentos igualitarios entre homens e mulheres nas questies referentes as relagies sexuais ed reproducao, inclusive o pleno respeito pela integridade da pessoa, requeremt respeito miituo, consentimento e divisao de responsabilidades sobre o compor- tamento sexual e suas consegiténcias (pardgrafo 96). Esse € um texto notivel, tanto pelo que enuncia quanto por seus si- [Rncios, pelo que torna explicito no repert6rio das declaragdes internacio- nas (que no compromete, mas obriga moralmente seus signatarios) ¢ pelo 20 Rosalind Pollack Petchesky i ue ainda esconde. E interessante notar que pela primeira vez as mulheres sdo consideradas seres sexuais além de seres reprodutivos, detentoras de direitos humanos para decidir livremente sobre sua sexualidade, sem ex- pressar qualquer qualificagao referente @ idade, estado civil ou orientagao sexual. Porém, a formula¢ao original do paragrafo, barrada no rascunho, no atestava “os direitos humanos das mulheres”, mas sim “os direitos sexuaais das mulheres”. Na versio final da Plataforma de Beijing, a ex- pressio “direitos sexuais” desapareceu; a expresso “orientagio sexual” jamais surgiu, nem mesmo no rascunho {muito menos as palavras “lésbi- ca” “gay”)- Quanto aos direitos reprodutivos — ‘a capacidade de se reproduzir a liberdade de decidir se, quando e com que freqiiéncia” —, agora se ‘encontram indelevelmente codificados na linguagem do tratado dos direi- tos humanos, por meio do documento do Cairo e de Beijing*, Além disso, a frase “respeito pela integridade da pessoa” foi introduzida para substi- tuir qualquer referéncia 4 “integridade fisica” ou do corpo, em qualquer forma (pois algumas feministas temiam que ela fosse aplicada ao feto). Em nenhum lugar da Plataforma de Beijing aparece menges aos corpos fe- rmininos sexualizados ou aos corpos nao-heterossexuais, reclamando 0 direito ao prazer em lugar de apenas rechagar os abusos. [Naturalmente, essa auséncia € resultado de um complexo drama que se desenrolow nos sales das Nagdes Unidas. Nesse drama, os refinamen- tos de linguagem se transformaram no terreno critico para a contestagio do poder — e dos significados da sexualidade — através de infinitas espi- rais de dominio, resistencia ¢ reconstituigao do discurso (ver Petchesky, 1993 ¢ 1997}. Uma excelente coalizao de organizagdes ndo-governamen- tais feministas, tanto do Sul como do Norte, trabalhando sem descanso nas conferéncias do Cairo ¢ de Beijing, conseguiu marcar um tento nesse terreno, diante das forgas muito mais poderosas dos fandamentalistas € dos grupos populacionais ¢ governamentais conservadores. Até mesmo no Cairo, a coalizao feminista conseguiu transformar o discurso dos direitos reprodutivos, de cédigo ocidental para o aborto, em uma linguagem in- ternacional das Nagdes Unidas, mostrando os direitos humanos das mu- Tanto o Programa do Cairo (parigrafo 7.2) como a Plataforma de Beijing (pa- rigrafo 95) definem "direitos reprodutivos” como “o reconhecimento do direito basi co de todos 05 casais ou individuos decidirem livre e responsavelmente © aimero, © espagamento e a freqiéncia com que terio filhos,o direito & informagio ¢ aos meios para isso € 0 direto de atingir © mais alto padrao de sade sexual ¢ reprodutiva. No ue diz espeito a reprodugio, essa definigio também incl o diito de tomar decisBes livres de discriminagio, coagao e vilEncia, como expresso nos daciamentos dos direi tos humanos”. Direitos sexuais a Iheres a autodeterminagio sobre sua fertlidade, maternidade e, em um grat limitado, sobre sua sexualidade. Era inevitavel que cssa vitOria desse origem a uma manobra, logo apés a Conferéncia do Cairo revelar onde as linhas dificeisseriam inscridas. Nao ha duivida de que, sob a aversio aos direitos sexuais, espreitava o tabu da homossexualidade, da bissexualidade e das formas alternativas de se for- mar uma familia. Basta notar as tipicas reservas do final do Programa de ‘Acio do Cairo, registradas pelas delegacdes dissidentes: Santa Sé — Com referéncia aos termos “casais e indivi- duos”, a Santa Sé mantém sua posicao, entendendo que esses termos significam casais unidos pelo matriménio e homens € ‘mulheres, enquanto individuos, que constituem casal. Egito — Nossa delegagao solicitou 0 cancelamento da palavra “individuos”, pois acreditamos que todas as questoes abordadas pelo Programa de Agéo (..) estao ligadas as relagbes harmoniosas entre casais unidos pelos lacos do matriménio no contexto de (...) familia como a principal célula da sociedade (Organizacao das Nagées Unidas, 1994: 144-146). Esse direcionamento continuou no prekidio de Beijing. Tendo per- dido 0 confronto verbal no Cairo, inclusive na questao das “diversas for- mas de familia”, a alianga fundamentalista orientada pelo Vaticano con- ‘duziu uma campanha, juntamente com os meios de comunicacio, para macular 0 conceito dos “direitos reprodutivos ¢ sexuais” da Conferéncia dda Mulher em Beijing com os rétulos do “individualismo”, do *femi ‘mo ocidental” e do lesbianismo. Essa campanha no apenas se opunha aos “direitos reprodutivos” e as “diversas formas de familia”, mas também, por algum tempo, conseguiu suprimir todas as referencias & palavra “i nero”! Essa intrigante manobra, como descobriram as feministas envolv das no I Encontro Preparatério, devia-se ao faro de os agentes do Vaticano terem se apossado do pacote de estudos que as mulheres haviam enviado dos Estados Unidos, contendo prelegées que no apenas explicavam 0 sgénero como um conceito social (no s6 como um dado bioldgico), mas também abordavam a possibilidade da mudanga de género, dos miltiplos sgéneros e outras chocantes heresias. Essa era a razio da insisténcia da delegagao do Vaticano para que a palavra “sexo”, e nao “género”, Fosse ‘empregada na terminologia oficial. ‘Na prépria Beijing, a campanha fundamentalista contra a palavra “gnero” e contra a expresso “direitos sexuais” se transformou em uma ceruzada em favor dos “direitos de paternidade”, mas seus alvos reais eram claramente a sexualidade de todos os adolescentes ndo-casados ea sexua- lidade lésbica. Um panfleto distribuido na conferéncia por um grupo de 2 Rosalind Pollack Petchesky nce eye eneN mulheres norte-americanas que aprovavam a orientago do Vaticano, de- nominado Coalizao para a Familia e as Mulheres, deixa perfeitamente claro {que a homofobia dos delegaclos da Santa Sé ¢ excessivamente politica para ser exposta nas sessdes oficiais das Nacdes Unidas. Intitulado Direitos Sexuais e Orientagdo Sexual: 0 que realmente significamn essas palavras, 0 ppanfleto associa “essas palavras” nao apenas com a homossexualidade, 0 lesbianismo, as relagdes sexuais fora do casamento e entre adolescentes, ‘mas também com “pedofilia”, “prostituigio”, “incesto” e “adultério”. ‘Alem disso, usa conceitos enganosos sobre os gays e boatos apavorantes, como, por exemplo, a afirmagao de que “os homossexuais exigem prote- «io para comportamentos que, como todos sabem, disseminam HIV/Aids”. ‘A posicao dos fundamentalistas é mais radical ainda, pois recusa a base epistemolégica da reivindicagio desses direitos. Em sua enciclica Evangelium Vitae, enviada aos meios de comunicacso para ser publicada exatamente em coincidéncia com o Encontro Preparatério a Conferéncia de Beijing, no més de marco, © papa condena as idéias e praticas que ga- rantem autonomia reprodutiva e sexual, associando-as com “uma menta- lidade hedonistica que se recusa a aceitar responsabilidades em assuntos ligados a sexualidade” c com um “conceito egocéntrico de liberdade” (Ca- tolicas pelo Direito de Decidir, 1995; Evangelium Vitae, 1995) ‘Contudo, nio podemos culpar apenas o Vaticano pela ambigiiidade da formula dos direitos sexuais na Plataforma de Beijing. Em um momen- to histérico de reavivamento patriarcal religioso, as acusagoes de “egois- mo” e as recomendagées de auto-sacrificio dirigidas as mulheres tém um apelo poderoso em todo o mundo. Nesse clima, os grupos liberais tam- ‘hem se tormaram susceriveis a essas manobras ¢ comegaram a retirar ou ‘moderar suas reivindicagdes. A delegacao norte-americana em Beijing, por exemplo — constituida sobretudo de mulheres democratas ligadas & ad- Iministracio Clinton, muito preocupadas com o poder dos conservadores de direita em seu pais —, moderou seu apoio costumeiro aos direitos re- produtivos ¢ aos direitos das mulheres, apresentando uma declaracao ex- plicativa durante as deliberagdes do pardgrafo 96 da Plataforma, ante- riormente citado. Fm sua declaragio, os Estados Unidos enfatizam trés vezes a frase “relacies entre homens ¢ mulheres”, assim como a “libertacao da coagio, discriminacao e violéncia”, evitando, dessa forma, qualquer inter- pretagio que pudesse realgar a identidade lésbiea ou o direito das mulhe- res ao prazer sexual’, 5 Meus agradecimentos a Rhonda Copelon por ter me enviado uma c6pia dessa declaragio, de 14 de setembro de 1995, submetida 20 Comité Organizador da FWWC, em Bejing. Direitos sexuais 23 Diante dessa atitude evasiva, antagonistica e “sexofdbica da ala di- reita que alimenta seu poder em uma base multirrcligiosa” (Tambiah, 1996}, 0s grupos de mulheres de todo 0 mundo, envolvidos na Conferén- cia oficial de Beijing, também consideraram necessario se comprometer ‘com uma formulagao afirmativa e mais controversa sobre os direitos se- ‘xuais. Em marco de 1995, uma petigao assinada por milhares de mulhe- res e grupos de sessenta paises de todas as regides do mundo foi apresen- tada pot Gertrude Mongella, secretaria-geral da conferéncia, apelando para os Estados-membros “reconhecerem 0 direito de determinar sua propria identidade sexual; o direito de controlar seu proprio corpo, so- bretudo no estabelecimento de relagdes intimas; e 0 direito de escolher quando, com quem e se quer ter ou educar seus filhos, como componen- tes fundamentais dos direitos humanos de todas as mulheres, indepen- dente de sua orientagao sexual”. Diante do clima de rancor nas delibe- rages que se estendiam até tarde da noite para decidir sobre a redacio final do Pardgrafo 96, os grupos de mulheres e seus aliados governa- mentais encontraram dificuldades, ou mesmo se viram na impossibilida- de de exigir que esses valores feministas afirmativos fossem redigidos cexplicitamente®, ‘Mas por qué? Por que é to mais facil declarar a liberdade sexual de forma negativa, ¢ nao em um sentido positivo e emancipatério? Por que é ‘ais facil chegar a um consenso sobre o dircito de nao ser objeto de abu- so, exploragio, estupro, trafico ou mutilagio, mas nao sobre o direito de usufruir plenamente de seu préprio corpo? Além dos posicionamentos titicos e das defesas contra a homofobia explicita, hd um contexto politico e econdmico mais amplo, assim como uma bagagem ideol6gica caracteristica que torna tal proposta particularmente enganosa nesse m0- mento histérico? Antes de tentar responder a essas questies, permitam- me enfatizar o quanto foi importante o campo aberto pelas organizagoes feministas, sobretudo as do Sul, para que os direitos reprodutivos ¢ sexuais fossem reconhecidos como direitos humanos. ‘Os movimentos de mulheres ¢ de gays em paises onde a Igreja Ca- télica é poderosa — Filipinas, Nigéria, Brasil, México, Peru c outros pai- sses da América Latina — tém lutado fem muitos casos, ainda sem su so) para legalizar 0 aborto, reduzir a mortalidade materna ¢ educar so- 5 Ver Rosenbloom 1995, Apéndice A, para o texto completo da petigio. Por es- tarasistndo a algunas sesses ca conferéncia oficial, realzadas maiscedo, eu nao estava presenteao encontro descrito. Meus sncerosagradecimentos a Roxanna Carll, Rhonda Copelon, Rachel Kyte e Hana Landsberg Lewis, por erem comparhado comigo suas impresses sobre esse momento histérico 24 Rosalind Pollack Petchesky be 0 sexo seguro ¢ 0 uso de preservativos. Segundo Sajeda Amin e Sara Hossain (1995), em Blangadesh, as organizacdes de mulheres se opuse- ram publicamente aos brutais ataques desferidos pelos tribunais religio- 50s iskimicos contra as mulheres acusadas de transgredir normas sexuais. No Egito, Sudio, Somalia, Quénia e Nigéria, as campanhas dos grupos de mulheres contra a mutilacdo dos genitais femininos focalizaram simul- tancamente os procedimentos que levam & corrosio do prazer sexual das mulheres, assim como seus terriveis riscos para a savide (Toubia, 1995; Tambiah, 1995). Todos esses esforcos alimentaram 0 vigor das coalizées de mulheres ‘em Viena, no Cairo e em Beijing, assim como sucesso em fundis a lin- ‘guage da saiide sexual e reprodutiva com a linguagem dos direitos hu- manos das mulheres. A sintese criada, por sua vez, redimensionou a ética feminista relativa a integridade fisica e pessoal que permeou os documen- tos do Cairo € de Beijing, desafiando diretamente 0 arsenal moral dos fandamentalistas cat6licos, judeus e islémicos. Essa ética no apenas pos- tula que as mulheres devem estar livres de abusos e violagdes de seus cor- ‘pos, inclusive no que diz. respeito & sua sexualidade e fertilidade, mas tam- ‘bem que elas devem ser tratadas como os atores principais, isto é, como individuos que tomam as decisoes, como um fim e nio um meio dos pro- sgramas de populagao, desenvolvimento ¢ satide. Além do mais, ese prin- cipio deve ser aplicado nao s6 aos Estados e a seus agentes, mas a todos (08 niveis onde opera o poder — em casa, na clinica, no local de trabalho, nna igreja, na sinagoga, na mesquita e na comunidade (Corréa & Petchesky, 1994; Corréa, 1994; Sen & Snow, 1994). Contudo, considero perturbador © modo como essa mudanga para uma ética feminista de autodeterminagio sobre nossos corpos, que indis- cutivelmente se tornou um discurso compartilhado pelo Sule pelo Norte, se infiltrou através de negacies, rejeigdes e litanias de violencia e de abu- 0, por detrds das quais as reivindicagGes ao prazer se mantiveram silencio- sas. E-claro que linguagem dos direitos humanos, sobretudo a segunda ¢ terceira geragbes desses direitos, em tese deveria englobar entitlements afirmativos, e no apenas mencionar protecdes contra abusos e discrimi- nagies; eles sG0 0s dois lados de uma moeda (no posso gozar de meu corpo sexual se estou sendo constantemente submetida ao temor de um espan- camento ou de uma gravidez indesejada) (Heise, 1995; Copelon, 19943, Copelon & Petchesky, 1995) ‘Ainda assim, as campanhas em favor dos direitos humanos das mu- theres receberam, em geral, maior atengo quando enfatizaram os piores horrores (mutilagao dos genitais, estupro em massa como arma de guer- ra, esteriliza¢ao ou aborto forgados, tréfico sexual, assassinato de mulhe- res devido a “desvios” sexuais ou de género). Essas campankas capital Diteitos sexuais 2s zaram a imagem das mulheres como vitimas”. Devido a essa tendéncia no discurso feminista dos direitos humanos, ndo é um mero acidente 0 fato de que, nas sess6es da Plataforma de Beijing, tanto as dedicadas a sadide como aquelas voltadas aos direitos humanos, o espectro dos corpos se~ xualizados reivindicando prazeres tenha permanecido escondide atras dos debates e estivesse presente apenas na auséncia dos “corpos” e dos “direi- tos sexuais”, no texto final. E essa tendéncia vitimizadora € preocupante nna medida em que burla, ou até espelha, a imagem fundamentalista pa- triarcal das mulheres como seres fracos e vulnerdveis. ‘Com certeza, o problema € que essa construgio negativa dos dire os sexuais permeia o discurso geral sobre os direitos humanos. Histor camente, a violagio dos direitos humanos sempre recebeu a maior aten- gio. A maior possibilidade desses direitos serem reforgados sempre esteve ligada a discriminagao escandalosa ou ao abuso fisico, sobretudo nos ca- sos de tortura de vitimas € maus-tratos de prisioneiros politicos, & muito mais dificil conseguir algo, alm de “falatérios” dos governos com rela- ‘slo a seus compromissos nos tratados apresentacos & Convengao Inter- nacional dos Direitos Econémicos, Sociais ¢ Culturais (CIDESC), que in- clue muitas cléusulas importantes, mais tarde incorporadas aos documen- tos do Cairo ¢ de Beijing, Por exemplo, o Artigo 12 da CIDESC reconhe- ce que “qualquer pessoa tem o direito de usufeair do mais alto padrio de satide mental ¢ fisica”, hoje em dia um dos mais importantes principios dos direitos reprodutivos e da satide sexual, Porém, modelar a satide em termos afirmativos no contexto dos direitos humanos significa “concei- tualizé-la como um bem social”, basico para a dignidade e 0 bem-estar dos seres humanos, ¢ “no apenas tratar do assunto como um problema mé- ico, téenico ¢ econémico” (Leary, 1994). Isso implica enormes obrigagbes e o redirecionamento de recursos por parte dos governos. Estes devem tomar atitudes positivas para que o aten- ddimento digno & satide se torne tanto um entitlement legitimo quanto uma realidade acessivel para todo o povo sob sua jurisdigao, isto é, eles devem ctiar as condigées sociais necessérias para que a satide se torne um direito social, Se pouquissimas sociedades, em um mundo agora dominado pelos ‘mercados capitalistas, abracam esse ponto de vista (oposto ao cuidado com 4 satide como algo reservado a iniciativa privada), deveriamos nos sur- preender pelo fato de apenas um tinico pais no mundo, a Africa do Sul, "7 Bsa Gnfase 6 bastante evidente em duas excelente publicases, que contém tes- ‘temunhos deprimentes de abuso sexual e violncia, brutalizando mulheres (e homens 478) no mundo inteico; Center for Women’s Global Leadership, 1996; e Rosenbloom, 1095, 26 Rosalind Pollack Perchesky possuir uma constituigio que reconhece o direito a liberdade de orienta- ‘do sexual? Eu nao gostaria de ser mal-interpretada nesse ponto. O estupro, o ccasamento forcado, a escravidao, a mutilagao e outras formas de violén- ‘da sexual impostas a milhares de mulheres que fizeram parte do genocidio ‘de Ruanda sio apenas alguns dos mais chocantes exemplos recentes de um padrao de “6dio” (para empregar a palavra usada por Zillah Eisenstein) ‘que petmeia quase todos os lugares com antagonismos raciais e nacionais (Eisenstein, 1996; Human Rights Watch, 1996; Center for Women’s Glo- bal Leadership, 1996; Rosenbloom, 1995). Menos dramatica, porém nao menos insidiosa, é a criminalizagao do lesbianismo em muitos paises ¢ a ‘erescente pressio, por parte dos conservadores, para que sejam sanciona- dos éditos eriminais em alguns desses paises*. Certamente, minha intengao nao € negar ou diminuir a magnitude dessas atrocidades contra as mulheres e contra as minorias sexuais, come- tidas e perdoadas por Estados e comunidades do mundo inteiro. Em vez disso, simplesmente estou demonstrando que a énfase dada a esses casos —apesar de horripilantes ¢ importantes para chamar a atencio dos meios de comunicacio para a legitimidade dos direitos sexnais como parte dos direitos humanos —, na melhor das hip6teses, nos leva a um nivel de tole- rancia liberal. A proposta negativa e exclusivista dos direitos — algumas vyezes expressa como 0 direito A “privacidade” ou a “ser deixado em paz”, no que concerne 4s suas escolhas e desejos — no pode, por si mesma, nos auxiliar a construir uma visio alternativa ou levar a transformagées fun- damentalmente estruturais, sociais ¢ culturais. Até mesmo a palavra de ‘ordem feminista “nosso corpo nos pertence”, apesar de retoricamente poderosa, também pode ser perfeitamente compativel com o mercado he- ‘geménico global atual, pois exige liberdade contra os abusos, mas nao contra as condigdes econémicas que me obrigam a vender meu corpo esua capacidade sexual ou reprodutiva (Pateman, 1988; Petchesky, 1995). ‘Como poderia ser apresentada uma visio alternativa e positiva dos direitos sexuais? Eu sugiro que ela contenha dois componentes integrais € interligados: um grupo de principios éticos (a substancia, ou a finalidade basica dos direitos sexuais) ¢ uma ampla gama de condicdes capacitantes, 5 No caso da recente legslagio antigay e antilsbica,e das campankes promo dss pelos fundamentalistas no Sri Lanka, ver Tambiah, 1996, Segundo a Comissio In- temacional pelos Dircitos Humanos de Gays e Lésbicas, 96 paises consideram ilegal 2 hhomossexualidade masculina, ao passo que 44 paises consideram crime olesbianismo. Claramente, 0 lesbianism ¢ visto como nma ameaga menor, porém isso se deve apenas {sua “invisibilidade social” e negagio, por parte dos legisladores, de que ela até mes- ‘mo exista! (Rosenbloom, 1995}. Dieitos sexuais 27 sem as quais esse resultado nao poderd ser obtido na pratica (Corréa & Petchesky, 1994). Os principios éticos que eu tenho em mente incluem a diversidade sexual, a diversidade habitacional (ou as “diversas formas de familia”), a saiide, a autonomia para tomar decisées (autonomia como pessoa) ¢ a eqiiidade de género. A diversidade sexual, ou pluralidade sexual, implica a aceitagao do principio de que os diferentes tipos de expresso sexual (no apenas hete- rossexual ou conjugal) sejam nao s6 tolerados, mas também encarados ‘como um aspecto positive em uma sociedade justa, humana e culruralmente pluralistica. Esse prinefpio privilegia valores éticos como carinho, afeicio, apoio e consentimento miituo no que diz respeito a estimulagio erotica, pressupondo que a forma particular, ou 0 relacionamento no qual essas atividades sio expressas — heterossexuais, homossexuais ou bissexuais 6 secundaria diante da importancia do clima cultural que encoraja sua ex- presso. (Aqui, estou admitindo uma defini¢ao mais ampla de “consenti- mento”, que exclui o incesto envolvendo um adulto e uma erianga e va~ rias outras relagdes sexuais entre pessoas em posi¢o de poder totalmente desiguais, como carcereiros e prisioneiros, ou médicos e seus pacientes.) ‘Uma grande riqueza de exemplos histéricos e etnograficos dessa diver dade, existente em numerosas sociedades eculturas, certamente esta & nossa disposicdo nos extensos trabalhos sobre gays ¢ lésbicas realizados na iil ma década®. Pode-se supor que, de uma ampla perspectiva cultural e hi t6rica, a heterossexualidade conjugal esta longe de ser uma pratica uni versal, bem como se pode argumentar que os direitos, nao sendo gover- rnados por praticas socioculturais, deveriam pelo menos levar em conside- ragdo sua diversidade. Um segundo principio —que eu denomino diversidade habitacional para separé-lo da procriagio que nele pode estar envolvida, porém nao necessariamente — esté relacionado de perto ao assunto. Esse principio i apresenta um precedente no reconhecimento, pelo Programa de Acéo da CIDESC, das “diversas formas de familia”, que criou tanta polémica ‘entre o Vaticano e seus aliados. Apesar de mencionar apenas lares geridos por mulheres, o Documento do Cairo reconhece que as pessoas coabitam, ‘educam criancas e mantém relagdes afetivas em varios tipos de combina- ‘0es nas sociedades e culturas de todo o mundo, deixando implicito que o tipo familiar patriarcal, conjugal ¢ heterossexual nao é exclusivo nem ine- rentemente superior; e sugere que todos os tipos de familias ou de grupos ‘que moram juntos, independentemente de sua estrutura, “merecem rece- ° Bara alguns exemplos, ver Parker & Gagnon, 1995, sobretudo 0s artigos de Lutsen, Herdt 8 Boxer; Tan, Lancaster, Zalduondo & Bernard © Weeks 28 Rosalind Pollack Petchesky ber prote¢ao, compreensio e apoio” por parte do Estado (CIDESC, pari- grafo 5.1). Provavelmente, o temor dos fundamentalistas de que essa lin- fquagem pudesse sancionar os easamentos e as familias de gays e lésbicas ddiz mais sobre sua histeria do que as intengbes dos Estados-membros. No tentanto, o reconhecimento das “diversas formas de familia”, pelo Programa dda CIDESC, realmente coloca o “direito de casar e fundar uma familia” ‘como tm instrumento importante dos direitos humanos, se considerado sob uma nova luz, © terceiro principio ético contido em minha visio afirmativa dos direitos sexuais é 0 da saiide, cele também ja foi codificado na linguagem dos direitos humanos internacionais. Quando combinamos 0 “direito que ‘todos possuem de usufruir do mais alto padrao de savide mental efisica” com o conceito de que a satide sexual é parte dos direitos reprodutivos e também envolve uma vida sexual “satisfat6ria” e “segura”, reconhecido ‘no Documento do Cairo, nos aproximamos de algo que comeca a apresen- tar o prazer como um bem positivo. Naturalmente, o elo com a reprodugao limita o objetivo desse principio, se ndo for visto em conjunto com a diver- sidade sexual e habitacional. O ponto é que jé ha alguma base, nos acordos internacionais existentes, para assegurar o direito ao prazer sexual como parte da satide basica e do bem-estar necessério a vida humana — um Conceito reconhecido por varias das principais religibes do mundo (inclusive oiislamismo ¢ 0 judaismo), assim como por muitas culturas tradicionais™. quarto principio € 0 da autonomia, ou personbood, que implica 0 direito de as pessoas, como individuos — criangas ¢ jovens, além de adul- tos —, tomarem suas proprias decisées em assuntos que afetam seus co pos e sua satide. Esse principio é expresso com elogiiéncia na peticio pr Beijing, ja citada anteriormente (“Colocar a Sexualidade na Agenda da ‘Conferéncia Mundial da Mulher”): “o direito de determinar sua prépria identidade sexual; 0 direito de ter controle sobre seu préptio corpo, so- bretudo ao estabelecer relacionamentos intimos”. Esse principio se encontra

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