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Nº 521 | Ano XVIII | 7/5/2018

1968 – um ano múltiplo


Meio século de um tempo que desafiou diversas formas de poder

Patrick Viveret Glaudionor Barbosa


Enéas de Souza Larissa Jacheta Riberti
Erick Corrêa Joana Vasconcelos
Maria Paula Araújo Olgária Matos
Alana Moraes de Souza

Leia também
■ Róber Iturriet Ávila
■ Castor Bartolomé Ruiz
■ Bruno Lima Rocha
EDITORIAL

1968 – um ano múltiplo


Meio século de um tempo que desafiou
diversas formas de poder

Q uando se fala em 1968, parece que se


trata de algo uno, um acontecimento
coeso. No entanto, o mais correto seria
aludir aos vários 1968, ocorridos em geografias
porque explodiram revoltas de jovens, de artis-
tas e do operariado em vários lugares do mundo.
Para a antropóloga Alana Moraes de Sou-
za, Maio de 68 – marcante para a história das
e contextos tão distintos como a França, a Tche- contestações ao capitalismo e às estruturas au-
coslováquia, os Estados Unidos, o México, o toritárias – não foi superado, nem derrotado.
Brasil e outros países latino-americanos. Ela diz que as lutas vão sedimentando substra-
O ano de 1968 é múltiplo de sentidos, signi- tos, e toda vez que a sociedade se movimenta, de
ficados e alcances. Na base da efervescência, algum modo os substratos emergem.
estão as rebeliões estudantis e de trabalhadores
O cientista político Glaudionor Barbosa
que inflamaram ruas e desafiaram diversas for-
vislumbra que é preciso consolidar uma narra-
mas de poder. Chefes de Estado, ditadores, em-
tiva de 1968 que aponte para um futuro melhor
presários, reitores, professores e as tradicionais
do que o presente.
estruturas familiares, sindicais e partidárias –
todos foram questionados e tensionados. A historiadora Larissa Jacheta Riberti, ao dis-
cutir a realidade mexicana, projeta que a próxima
Meio século depois, com a força que as efemé-
eleição presidencial vai coincidir com os 50 anos do
rides transferem para a memória, é importante
Massacre de Tlatelolco, considerado “a expressão
ampliar o entendimento que se faz de um ano tão
máxima de um Estado autoritário, da prática re-
mítico e incensado, a ponto de se cogitar que, para
pressiva”. Ao tratar do Chile, a historiadora Joana
2 alguns, ele não terminou – ou, pelo menos, segue
Salém Vasconcelos lembra que Salvador Allen-
ecoando. Havia ideias revolucionárias que impac-
de foi eleito em 1970 no rastro de 1968.
taram os anos 1970, principalmente no campo
cultural. No entanto, existem outras que mobiliza- A filósofa Olgária Matos, instigada a refletir
ram fortemente na época e não surtiram os efeitos sobre Maio de 68, escreveu que uma revolução
pretendidos, como o questionamento acerca das não se reconhece pela tomada do poder, mas
expressões de poder, das hierarquias e das insti- por sua potência de sonho.
tuições. Na França, cuja capital é associada instan- Nesta edição, há ainda entrevistas com o eco-
taneamente aos acontecimentos de 1968, a pulsão nomista Róber Iturriet Avila; com o professor
libertária estimulava os jovens, que estampavam de Filosofia Castor Bartolomé Ruiz; e com o
seus desejos e anseios em cartazes e muros. professor de Direito Guilherme de Azevedo.
Para discutir algumas perspectivas dos vários Leia também o artigo do professor Bruno Lima
1968, a revista IHU On-Line desta semana re- Rocha sobre a Guatemala, que, para os Estados
úne uma série de pesquisadores e pesquisadoras. Unidos, é o “escoadouro das deportações de imi-
Patrick Viveret, filósofo e escritor francês, fala grantes ilegais centro-americanos”.
da ebulição dos meses, desde 1967, que antecede- A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
ram a tomadas das ruas, universidades e fábricas lente semana!
por estudantes e trabalhadores franceses.
Para o economista, psicanalista e crítico de cine-
ma Enéas de Souza, é indispensável recuperar
o sentido dos gestos de renovação da década de
1960, pois a grande herança daqueles anos vem
da ideia lacaniana de não ceder do seu desejo, e
isso atravessa a subjetividade e as ações sociais.
O cientista social Erick Corrêa afirma que 68
foi a maior greve geral selvagem da história da
França, mas saiu vencida.
A historiadora Maria Paula Araújo destaca
que o legado mais evidente de 68 no Brasil foi Divulgação exposição
No coração de maio
o deslocamento da liderança estudantil para a de 1968
luta armada. Para ela, trata-se de um ano mítico

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Róber Iturriet Avila: Austeridade: a máquina estatal de produzir desigualdades
13 ■ Guilherme de Azevedo: Quando a comunicação é negada, o outro é reduzido e a violência eclode
20 ■ Tema de capa | Patrick Viveret: O interminável Maio de 1968
24 ■ Tema de capa | Enéas de Souza: É indispensável recuperar o sentido dos gestos de renovação
dos anos 60
30 ■ Tema de capa | Erick Corrêa: 68 foi a maior greve geral selvagem da história da França, mas
saiu vencida
39 ■ Tema de capa | Maria Paula Araújo: Legado mais evidente de 68 foi o deslocamento da
liderança estudantil para a luta armada no Brasil
43 ■ Tema de capa | Alana Moraes de Souza: Maio de 68 não foi superado, nem derrotado
47 ■ Tema de capa | Glaudionor Barbosa: É preciso consolidar uma narrativa de 1968 que aponte
para um futuro melhor do que o presente

52 Tema de capa | Larissa Jacheta Riberti: A tarefa de não esquecer os herdeiros perpetradores
da repressão no México

58 Tema de capa | Joana Vasconcelos: Allende é eleito em 70 no rastro de 68
66 ■ Tema de capa | Olgária Matos: Uma revolução não se reconhece pela tomada do poder, mas
por sua potência de sonho 3
68 ■ Castor Bartolomé Ruiz: A produção de violência e morte em larga escala: da biopolítica à
tanatopolítica
75 ■ Publicações | Joel Decothé Junior: Deslocamentos genealógicos da economia teológica
segundo Agamben
76 ■ Publicações | Viviane Zarembski Braga: O campo de concentração: um marco para a (bio)
política moderna
77 ■ Crítica internacional | Bruno Lima Rocha: Guatemala: incerteza no coração maia
79 ■ Outras edições

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TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

Fim do acesso à gratuidade judiciária e a


perversidade da reforma trabalhista
“A gratuidade da justiça constitui elemento de cidadania, que inclusive
justifica a existência da Justiça do Trabalho. Trata-se de permitir acesso à
justiça a quem não tem condições financeiras para isso.”
Valdete Souto Severo, doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo - USP, juíza
do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

Reforma trabalhista: Menor autonomia do


trabalhador sobre o tempo social
“A liberdade do contratante de demitir e recontratar imediatamente, por meio
de terceirização ou do trabalho intermitente, é devastador para a classe traba-
lhadora brasileira, quer seja do ponto de vista da garantia da massa salarial da
renda, quer seja do ponto de vista das jornadas e condições de trabalho.”
Ruy Gomes Braga Neto, especialista em Sociologia do Trabalho e professor no Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP.

4 A democracia brasileira está ‘balançando’. O


crime organizado é uma das principais ameaças
“O caos urbano e a violência indiscriminada são incompatíveis com um
regime de liberdades democráticas. O assassinato de Marielle Franco é
uma trágica evidência neste sentido, suscitando a convicção de que o crime
organizado faz o que quer, quando, como e onde quer.”
Daniel Aarão Reis, graduado e mestre em História pela Université de Paris VII e doutor em História
Social pela USP, professor da UFF.

A regulação de dados pessoais e a perda de


controle sobre alguns aspectos da vida
“A legislação serve para criar instrumentos para que o cidadão possa
saber o que acontece com seus dados e para que ele possa negar o forneci-
mento de dados quando eles forem injustificados. De uma forma geral, o
regulamento faz com que o processo seja mais transparente.”
Danilo Doneda, advogado, mestre e doutor em Direito Civil pela UERJ especialista em temas de
proteção de dados e privacidade.

Retirada do símbolo de transgênico é afronta


aos direitos constitucionais
“[a retirada] facilitará alocação de recursos públicos para as lavouras
transgênicas, bem como a rolagem e o perdão de dívidas do agronegócio
a elas associado. Beneficiará o mercado de agrotóxicos, especialmente de
herbicidas, com as implicações conhecidas.”
Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo e doutor em Engenharia de Produção. É vice-presi-
dente regional Sul da Associação Brasileira de Agroecologia.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Kroton Educacional: Papa Francisco às ONU: ‘Quando governos


‘nunca experimentamos vítimas de Karadima: ‘’Eu fracassam no direito
um inimigo como esse’ fui parte do problema, eu à moradia, grandes
causei isso e peço perdão’’ tragédias acontecem’

A Kroton Educacional, maior “Eu fui parte do problema, A mais alta autoridade das
empresa de educação do mun- eu causei isso e peço perdão” Nações Unidas para assun-
do, vai se tornar ainda maior. (“Yo fui parte del problema, tos de moradia e populações
Na última terça-feira (24) saiu yo causé esto y pido per- sem-teto, a advogada cana-
o anúncio de que a companhia dón”). Essa frase, de signi- dense Leilane Farha diz que
assumiu o controle da Somos ficado inequívoco, teria sido o incêndio que derrubou o
Educação – dona do sistema repetida por Francisco aos edifício Wilton Paes de Al-
de ensino Anglo e de editoras três chilenos – Andrés Mu- meida no centro de São Pau-
como a Ática e Scipione, gran- rillo, James Hamilton e Juan lo no último dia 1º de maio
des produtoras de material Carlos Cruz – recebidos por causa tristeza, mas não sur-
didático. mais de duas horas, respec- presa.
A entrevista completa com Allan tivamente, nos dias 27, 28 A entrevista completa com Leilane
Kenji está disponível em http://bit. e 29 de abril, em encontros Farha está disponível em http://bit.
ly/2weMuBW. muito privados, mas não se- ly/2wboBLI.
cretos.
A reportagem completa está disponí-
vel em http://bit.ly/2K29iXV 5

A detenção de Teresa Lucro recorde do Um novo progressismo


Gimenes Guarani Mbya Itaú durante a crise é latino-americano
pela Guarda Municipal de anomalia do
POA e o direito à diferença capitalismo brasileiro

A indígena foi detida no Apesar da profunda crise “Independentemente de se


domingo, 29-4-2018, na econômica que o Brasil atra- vão ganhar ou perder nas
frente dos dois filhos, por vessa, o Itaú anunciou esta próximas eleições, já pode-
estar com o macaquinho de semana um lucro líquido mos afirmar que surgiu ou-
estimação da família en- de R$ 6,419 bilhões apenas tra onda progressista na re-
quanto vendia artesanatos no primeiro trimestre deste gião”. A reflexão é de Alfredo
no Parque Farroupilha, em ano, uma alta de 3,9% na Serrano Mancilla, econo-
Porto Alegre. Uma mulher, comparação com o mesmo mista, atual diretor executi-
que segurava uma coleira período de 2017. vo do Celag (Centro Estra-
com seu cachorro de estima- A reportagem completa está disponí- tégico Latino-Americano de
ção, a denunciou. vel em http://bit.ly/2HPQ5YI. Geopolítica).
A nota completa do CIMI está disponí- O artigo completo está disponível em
vel em http://bit.ly/2HOMDlb. http://bit.ly/2rgppJs.

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AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Estratégias para a O combate às Roda de conversa


economia brasileira desigualdades e a O Movimento
e a sua trajetória necessidade de uma Feminista, hoje
macroeconômica de reforma tributária
2003-2017 no Brasil

8/mai 9/mai 10/mai


Horário Horário Horário
19h30min 19h30min 17h30min
Conferencista Conferencista Participação
Profa. Dra. Laura Carvalho Prof. Dr. Róber Iturriet Avila Profa. Dra. Paula Sandrine
– USP – UFRGS Machado – UFRGS
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

6
Problemas de Gênero. A biopolitização A inclusão como
Feminismo e subversão das plataformas: possibilidade de
da identidade capitalismo enfrentamento às
Apresentação e debate de vigilância e violências
da obra de Judith Butler resistências

10/mai 14/mai 17/mai


Horário Horário Horário
19h30min 19h30min 17h30min
Conferencista Conferencista Conferencista
Profa. Dra. Paula Sandrine MS Rafael Augusto Ferreira Prof. Dr. Guilherme de
Machado – UFRGS Zanatta – Idec – SP Azevedo – Unisinos
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

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ENTREVISTA

Austeridade: a máquina estatal


de produzir desigualdades
Róber Iturriet Avila analisa a maneira pela qual o Brasil intensifica
as desigualdades ao aplicar uma política tributária que
privilegia a taxação ao consumo e não à renda
Ricardo Machado

C
ompreender as múltiplas di- pontua. Nesse cenário, uma confusão
mensões da desigualdade no muito comum que ocorre é comparar o
Brasil requer levar em conta os Brasil e a Suíça, que possuem percen-
profundos desajustes nas cargas tribu- tuais de arrecadação semelhantes, mas
tárias, isso porque a política tributária rendas per capita absolutamente distin-
se caracteriza por ser intensamente tas. “Não faz sentido comparar a carga
regressiva. O que isso significa? Que tributária do Brasil, que é de 32,98%,
os mais pobres pagam mais impostos, com outro país que possua a mesma
à medida que a taxação nos produtos carga tributária e um nível de renda per
compromete mais a renda que das po- capita cinco vezes maior. O segundo
pulações mais abastadas, cujo rendi- obterá uma arrecadação per capita cin-
mento financeiro é, proporcionalmen- co vezes maior, o que fará com que os
te, menos taxado. “O Brasil já teve uma serviços públicos sejam sensivelmente
8 tributação mais progressiva, entretan- melhores, ainda que a carga fiscal seja a
to, desde os governos militares as alí- mesma. É preciso ter ciência que nosso
quotas máximas de imposto de renda, país não é rico e somos muito desiguais,
que já atingiram 65%, foram reduzidas não somos a Suíça, e comparar nossos
até o patamar atual de 27,5%. Na Ale- serviços com os suíços é comparar coi-
manha a alíquota chega a 45%, na Sué-
sas incomparáveis com argumentos fa-
cia 56,7%, na Turquia 35% e no México
laciosos”, problematiza.
30%”, descreve Róber Iturriet Avila, em
entrevista por e-mail à IHU On-Line. Róber Iturriet Avila é doutor em
Tal perfil tributário reflete uma das Economia pela Universidade Federal
razões pelas quais o Brasil ocupa uma do Rio Grande do Sul - UFRGS e pro-
posição destacada em nível de desigual- fessor do Departamento de Economia e
dade no contexto mundial, trazendo-o Relações Internacionais da UFRGS. Foi
para as primeiras posições deste ver- professor da Universidade do Vale do
gonhoso ranking. “O resultado é que o Rio dos Sinos - Unisinos, pesquisador
Brasil está entre os países com maiores da Fundação de Economia e Estatísti-
desigualdades do mundo, que tributa ca - FEE e diretor sindical do Sindicato
proporcionalmente mais os mais po- dos Empregados em Empresas de As-
bres e menos os mais ricos, encontran- sessoramento, Perícias, Informações e
do poucos paralelos no mundo, como Pesquisas e de Fundações Estaduais do
o caso da Arábia Saudita, país rico em Rio Grande do Sul - Semapi.
petróleo e extremamente desigual”, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a política Róber Iturriet Avila – A cobran- riqueza nas sociedades capitalistas.
tributária brasileira ajuda a ex- ça de tributos é uma das maneiras Uma tributação progressiva é aque-
plicar nossos níveis de concen- constituídas para reduzir a tendên- la em que os impostos sobre renda
tração de renda e desigualdade? cia de concentração de renda e de e patrimônio são mais elevados, ou

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“Os mais pobres consomem


uma parcela maior de sua
renda, dessa maneira acabam
contribuindo relativamente mais”

seja, os indivíduos mais ricos con- pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais há vasto espaço para reduzir as de-
tribuem mais para financiar os ser- ricas do Brasil (0,01%), que possuem sigualdades crônicas do país através
viços públicos. Uma tributação mais patrimônio médio de R$ 40 milhões de uma reforma tributária, que sem-
regressiva tem participação maior (declarados) e que pagaram de im- pre encontrou muita resistência de
dos tributos sobre consumo de bens posto 1,56% de sua renda total, uma forças conservadoras, na grande im-
e serviços, os quais incidem sobre vez que boa parcela de sua renda vem prensa, nas federações empresariais
todos indivíduos sem distinguir seu de dividendos e é isenta de imposto. e no Congresso Nacional.
poder aquisitivo. Entretanto, os
Atualmente, 51,3% dos impostos
mais pobres consomem uma parcela
recolhidos nas três esferas de gover- IHU On-Line – Por que a alter-
maior de sua renda, dessa maneira
acabam contribuindo relativamente no têm origem no consumo de bens nativa de congelar gastos públi-
mais. O Brasil já teve uma tributação e serviços, 25% na folha de salário, cos é um tiro no pé do ponto de
mais progressiva, entretanto, desde 18,1% na renda, 3,9% na proprieda- vista das políticas públicas?
os governos militares as alíquotas de e 1,7% em demais impostos. Na 9
Róber Iturriet Avila – A Emen-
máximas de imposto de renda, que Dinamarca e nos Estados Unidos,
da Constitucional 95 é uma profun-
já atingiram 65%, foram reduzidas por exemplo, metade da arrecadação
da alteração do Estado, que se dará
até o patamar atual de 27,5%. Na está centrada em impostos sobre a
paulatinamente nos próximos 20
Alemanha a alíquota chega a 45%, renda e lucros. No Peru, Chile e Co-
anos. Como a despesa está congela-
na Suécia 56,7%, na Turquia 35% e lômbia tais tributos representam,
da em termos reais, à medida que
no México 30%. respectivamente, 39,9%, 35,8% e
o PIB aumentar, a relação despesa
33,5% da arrecadação. pública/PIB irá cair. Atualmente, a
Em 1995, instituiu-se os “juros so-
bre o capital próprio” (JSCP). Trata- Os impostos sobre patrimônio União arrecada 19,8% das receitas
se de uma dedução que as empresas compõem 3,9% da carga tributária. tributárias em relação ao Produ-
podem efetuar, contabilizando como No Reino Unido, na Colômbia e na to Interno Bruto. As despesas com
“custo”, que seria a remuneração do Argentina os impostos sobre patri- INSS e com inativos da União re-
capital inicial, através de juros. En- mônio representaram, respectiva- presentam 7,93% do PIB. Quando se
mente, 12,3%, 10,6% e 9,2% da carga consideram os gastos dos estados e
quanto custo, portanto, é isento de
total. O quinto maior país do mundo municípios, as despesas com inati-
imposto para as empresas. A partir
em extensão recolhe tributos sobre vos chegam a 13,15% do PIB.
de 1996, não ficariam mais sujeitos
ao imposto de renda os lucros ou di- áreas rurais que compõem 0,04% da Nos próximos 20 anos este valor vai
videndos. Antes dessa isenção, os di- arrecadação. aumentar, mesmo que haja mais de
videndos eram tributados de forma A tributação sobre heranças é uma reforma da Previdência, uma vez
linear e exclusiva na fonte, com uma também muito baixa em termos que estamos em um processo de enve-
alíquota de 15%. internacionais. O Imposto sobre lhecimento populacional. Além disso,
Transmissão Causa Mortis e Doação até 2030 estima-se que a população
Averiguando-se as alíquotas máxi-
representa 0,2% da arrecadação bra- brasileira será 20,8 milhões maior
mas de dividendos de alguns países,
sileira e a alíquota varia por estado, do que é hoje, 10% maior, e os gastos
é verificado que na Dinamarca é de
públicos estarão congelados e com
42%, na França de 38,5%, no Canadá mas a média é de 4%. No Reino Uni-
tendência crescente nos gastos previ-
de 31,7%, na Alemanha é de 26,4%, do é de 40%. Em outros países, ela é
denciários. Ou seja, os demais serviços
na Bélgica é de 25%, nos Estados variável: nos Estados Unidos, a mé-
públicos terão que ser reduzidos em
Unidos de 21,2% e na Turquia 17,5%. dia é de 29%; no Chile, 13%.
termos absolutos e a despesa pública
Cabe destacar que as isenções de di- Em suma, a tributação no Brasil é per capita irá se reduzir de maneira
videndos beneficiaram 2,1 milhões de uma das mais injustas do mundo e acentuada, necessariamente.

EDIÇÃO 521
ENTREVISTA

As maiores despesas públicas são, empresas impacta na desigual- crescimento econômico através do
nesta ordem: previdência, juros, edu- dade? Medidas como essa ilus- apoio estatal a grandes empresas
cação e saúde, mas os juros não são tram despreparo estratégico e a eficácia é questionável. As de-
despesas primárias, portanto, não ou, ao contrário, uma política sonerações fizeram falta no orça-
fazem parte da conta. As despesas que privilegia a concentração mento e a taxa de investimento não
com educação e saúde devem ser as de renda? cresceu tanto.
mais afetadas. Se o Brasil crescer em
Róber Iturriet Avila – Este pon-
média 2,5% ao ano nos próximos 20
to é também bastante controverso. IHU On-Line – O que há de
anos, as despesas da União serão de
Até aqui tratamos da tributação so- verdade e de mentira sobre o
12% do PIB em 2036, ao passo que
bre a pessoa física. As empresas no gasto público? Como se divide
hoje são de 19,8%. A Emenda Consti-
Brasil têm uma carga fiscal relati- o orçamento da União e quais
tucional 95 é uma redução do Estado
vamente mais elevada. Entretanto, são nossos principais gargalos?
imposta constitucionalmente.
o investimento delas é indispensá- Afinal gastamos muito ou gas-
vel para o crescimento econômico. tamos mal nossos recursos?
IHU On-Line – O que a opção Nessa medida, poderia haver uma
ampliação da tributação sobre as Róber Iturriet Avila – Há mui-
do Brasil, em taxar mais o con-
pessoas físicas e uma redução dos tos mitos repetidos de modo reitera-
sumo que a renda, revela em
impostos sobre as pessoas jurídicas, do e que se tornam falsas noções dis-
termos de política econômica?
de forma a estimular o reinvesti- seminadas generalizadamente. Há
Quais são os impactos disso na
mento dos lucros. Na mesma linha, um mito de que o Brasil tem uma das
economia nacional?
o Brasil precisa ter grandes players maiores cargas tributárias do mun-
Róber Iturriet Avila – A confi- capazes de inserir o país nas cadeias do. Não é das mais baixas, mas exis-
guração dos tributos é estabelecida globais de valor; precisamos de tem países com carga fiscal muito
pelas forças políticas dominantes que grandes multinacionais. maior. Há outro mito de que ela vem
disputam as funções do Estado e seu crescendo de forma persistente, mas
financiamento. Os diferentes estratos Historicamente, o Brasil se desen- na verdade ela está relativamente es-
da sociedade estão organizados poli- volveu com o apoio do Estado, atra- tável desde 2002 e com uma ligeira
10 vés de políticas industriais, crédito
ticamente e possuem seus respectivos queda desde 2005.
interesses, valores, ideias, narrativas, subsidiado etc. Tais políticas estão
em crescente questionamento e é Há um mito de que houve uma
corpos teóricos e representantes. “gastança” nos governos petistas.
preciso estudar esses temas com
O Imposto de Renda de Pessoa responsabilidade. De outro lado, Quando se observam os dados, é
Física representa 2,7% do produto estudos recentes de Rodrigo Orair, possível perceber que houve uma
brasileiro. Nos países que integram Fernando Siqueira e Sérgio Gobet- elevação de 3 pontos percentuais do
a Organização para a Cooperação e ti apontam que o multiplicador do gasto da União neste período. A des-
Desenvolvimento Econômico, esse gasto público nos subsídios e nas pesa com pessoal é estável em parti-
valor corresponde a 8,5%, em média. desonerações é virtualmente zero, cipação do Produto. Houve aumento
Na Turquia, por exemplo, é 13,5% e seja nos momentos de recessão, seja em gastos de assistência social, polí-
no México 13,6%. ticas de transferência de renda, por
nos momentos de expansão econô-
exemplo, de 1 ponto percentual do
Isso quer dizer que as camadas de mica; ao contrário do que ocorre
PIB e há uma tendência, desde 1997,
renda mais elevadas, os grandes pro- com o investimento público, que
de ampliação dos gastos previden-
prietários de áreas rurais, acumulado- possui uma resposta muito eleva-
ciários, em decorrência da Consti-
res de ativos financeiros, os grandes da em momentos recessivos. Não é
tuição de 1988 e do envelhecimento
empresários e a alta burocracia obtive- possível também deixar de apontar
populacional, independentemente
ram maior sucesso em fazer valer seus que o governo de Dilma Rousseff1
dos governos de plantão.
interesses, ideias, valores e narrativas. apostou muito nas desonerações
e no crédito subsidiado para gerar Desde 2009, houve uma amplia-
O resultado é que o Brasil está en- ção das desonerações e subsídios,
tre os países com maiores desigual- 1 Dilma Rousseff (1947): economista e política bra- incluindo créditos, os quais apre-
dades do mundo, que tributa pro- sileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita
duas vezes presidente do Brasil. Seu primeiro mandato sentaram resultados duvidosos. Nos
porcionalmente mais os mais pobres iniciou-se em 2011 e o segundo foi interrompido em 31
governos Lula, houve ampliação do
de agosto de 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afasta-
e menos os mais ricos, encontrando da de seu cargo durante o processo de impeachment investimento público, que contri-
poucos paralelos no mundo, como o movido contra ela. No dia 31 de agosto, o Senado Fe-
deral, por 61 votos favoráveis ao impeachment contra buiu para o crescimento econômico
caso da Arábia Saudita, país rico em 20, afastou Dilma definitivamente do cargo. O episódio
consistente daquele período.
foi amplamente debatido nas Notícias do Dia no sítio
petróleo e extremamente desigual. do IHU, como, por exemplo, a Entrevista do Dia com
Rudá Rici intitulada Os pacotes do Temer alimentarão Nos estados, o gasto com pessoal
a esquerda brasileira e ela voltará ao poder, disponível
em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o governo do ex-pre- ativo é também estável em participa-
IHU On-Line – Como a políti- sidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do
Ministério de Minas e Energia e posteriormente da Casa
ção do PIB. Já nos municípios, houve
ca de desonerações às grandes Civil. (Nota da IHU On-Line) uma ampliação dos gastos com pes-

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REVISTA IHU ON-LINE

soal, em parte porque alguns servi- IHU On-Line – Como as po- nômica estava em desaceleração em
ços públicos foram municipalizados, líticas de ajuste econômico 2014. Havia uma pressão do merca-
como é o caso da saúde pública. Em baseadas na chamada “auste- do financeiro e de atores políticos
síntese, a despesa que tem crescido ridade” impactam os níveis de para que o governo efetuasse um
sistematicamente é mesmo oriunda desigualdade? ajuste fiscal. Isso foi implementado
de benefícios sociais, com destaque por Joaquim Levy em 2015, houve
Róber Iturriet Avila – A aus-
para a previdência. o maior corte de gastos desde que
teridade fiscal é também um tema
existe a Lei de Responsabilidade
Entretanto, temos problemas, é controverso e os economistas são
Fiscal. Seus defensores diziam que a
claro. A agenda de eficiência no divididos nesta questão. Entretanto,
redução do gasto melhoraria as con-
gasto público deve ser permanen- muitos dos economistas que com-
tas públicas, por reduzir o déficit e
te. Ao contrário do que se imagina, põem o mainstream estão revendo traria crescimento econômico, pela
o governo Dilma Rousseff arroxou suas posições. Uma redução do gasto melhoria das expectativas dos agen-
parte do funcionalismo público, so- público tem efeitos recessivos. O Es- tes e pela redução das taxas de juros.
bretudo do judiciário. Já o governo tado é o maior agente da economia. Concretamente, a austeridade fiscal
Michel Temer preferiu impor um Suas despesas fazem parte do PIB, contribuiu para o PIB se contrair
ajuste de longo prazo, através da uma redução do gasto impacta na 6,9% em dois anos (o que é espera-
Emenda 95, e no curto prazo au- demanda, na produção, na renda, no do, os economistas sabem que corte
mentou os gastos, como a reposição investimento, no nível de emprego. de gastos desacelera a economia).
salarial para o judiciário (41,4%) e Alguns autores da corrente mains-
ministério público (12%). Entre- tream defendem que uma contração A austeridade foi implementada
tanto, ao se observar as despesas fiscal possui efeitos expansionistas em um momento que a economia
com servidores, chama atenção que por melhorar as expectativas dos já estava em desaceleração, o resul-
justamente estes setores possuem agentes e reduzir as taxas de juros, tado foi a explosão das taxas de de-
rendimentos muito superiores à estimulando o investimento pri- semprego e a consequente redução
média dos demais. Nosso judiciário vado e o crescimento econômico. expressiva do salário real. Houve au-
é caríssimo, quando comparado a Entretanto, autores como Olivier mento de 11% nas taxas de extrema
outros países. Os rendimentos são Blanchard, em artigo publicado pelo pobreza, retrocedendo aos índices 11
22,3 vezes superiores à renda mé- FMI, chamam atenção de que a po- de dez anos atrás. A relação Dívida/
dia do brasileiro. Ao mesmo tempo, lítica fiscal é, sim, um instrumento PIB saiu de um patamar de 56,7%
do ponto de vista previdenciário, as importante de política anticíclica, do PIB para 74,5% em pouco tempo,
reformas de 2003 e de 2012 corrigi- ou seja, para reverter recessões, por isso ocorreu a despeito da redução
ram distorções, de modo que os no- exemplo. Já a política monetária do gasto público, já que se trata de
(como redução de juros) tem um es- uma relação. O PIB caiu e a rela-
vos servidores públicos têm direitos
paço escasso na conjuntura atual. ção aumentou. As expectativas dos
previdenciários semelhantes aos do
agentes melhoraram e as taxas de
setor privado.
Citei autores dentre aqueles que juros caíram, mas a economia não se
De todo modo, quando se efetuam defendem a austeridade. Entretanto, recuperou, não houve crescimento
comparações internacionais sobre há uma longa tradição que sempre econômico, o salário caiu, a deman-
os serviços públicos, geralmente defendeu que a austeridade fiscal da caiu, a dívida pública aumentou,
não há ponderação acerca do nível traz efeitos importantes na atividade a desigualdade cresceu e o impacto
de renda per capita no Brasil, que econômica, no nível de emprego, no social foi muito intenso. Apenas a
é relativamente baixo. Assim, não valor dos salários, são os autores de inflação obteve resultado positivo.
faz sentido comparar a carga tri- tradição keynesiana2 ou pós-keyne- O resultado foi desastroso. Não deu
butária do Brasil, que é de 32,98%, siana. Eles não recomendam auste- certo, definitivamente. Muitos eco-
com outro país que possua a mes- ridade fiscal em momentos em que a nomistas já apontavam, desde 2014,
ma carga tributária e um nível de economia está desacelerando. que esse não era o caminho, dentre
renda per capita cinco vezes maior. os quais me incluo.
Os fatos recentes no Brasil são
O segundo obterá uma arrecadação
bastante didáticos. A atividade eco-
per capita cinco vezes maior, o que
fará com que os serviços públicos IHU On-Line – Deseja acres-
2 John Maynard Keynes (1883-1946): economista e
sejam sensivelmente melhores, financista britânico. Sua Teoria geral do emprego, do centar algo?
juro e do dinheiro (1936) é uma das obras mais impor-
ainda que a carga fiscal seja a mes- tantes da economia. Esse livro transformou a teoria e a Róber Iturriet Avila – Quando
política econômicas, e ainda hoje serve de base à polí-
ma. É preciso ter ciência que nosso tica econômica da maioria dos países não-comunistas. se trata de Estado o debate públi-
país não é rico e somos muito desi- Confira o Cadernos IHU Ideias n. 37, As concepções co é muito poluído e pouco infor-
teórico-analíticas e as proposições de política econô-
guais, não somos a Suíça, e compa- mica de Keynes, de Fernando Ferrari Filho, disponível mado. Não raro há a veiculação da
em http://bit.ly/ihuid37. Leia, também, a edição 276 da
rar nossos serviços com os suíços Revista IHU On-Line, de 06-10-2008, intitulada A crise dissociação entre a arrecadação dos
é comparar coisas incomparáveis financeira internacional. O retorno de Keynes, dispo- governos e o retorno de bens e ser-
nível para download em http://bit.ly/ihuon276. (Nota
com argumentos falaciosos. da IHU On-Line) viços estatais. O intento, sistemati-

EDIÇÃO 521
ENTREVISTA

camente alardeado, é bem-sucedido Estado na forma de subsídios que que permitem ao cidadão viver de
em formar a opinião pública. Há um garantem a energia elétrica, a pro- forma civilizada e não no caos e na
proposital obscurecimento e uma dução de alimentos, a erradicação da guerra, como foi marcada a história
naturalização das ações estatais, os pobreza, a promoção da cidadania, o humana.
quais, claramente, atendem a inte- zelo e a proteção de crianças e ado-
resses específicos. Em síntese, não há um dia sequer
lescentes vulneráveis, o cuidado de
pessoas insanas, o investimento em que o Estado não beneficie inúmeras
É preciso ter em mente que a vezes a qualquer cidadão. Ele tem
abrupta redução da mortalidade in- conhecimento, a aquisição de imó-
veis e o avanço técnico. Há Estado muitos problemas de eficiência, de
fantil no Brasil não ocorreu por aca-
nas políticas de geração de emprego desperdício, de corrupção, de dis-
so. Para além das manchetes sensa-
e de desenvolvimento econômico. torções salariais, que precisam cons-
cionalistas, o Estado está na luz dos
Ele está também na seguridade so- tantemente de correções legais e ad-
postes, nas estradas, nos calçamen-
tos, no transporte urbano, no trans- cial, ou seja, nas aposentadorias, nas ministrativas. Entretanto, não tenho
porte aéreo, no recolhimento do lixo, pensões por morte, nos auxílios-ma- dúvidas de que sua redução, como
na destinação do esgoto, na escola ternidade e nas aposentadorias por está projetado para os próximos 20
pública, no policiamento, na defesa invalidez. O Estado permite a me- anos, deixará boa parte da população
territorial, na vigilância sanitária, na diação e o julgamento dos conflitos, mais pobre, enquanto que os mais ri-
prevenção e na reconstrução diante a reclusão de malfeitores, a orienta- cos se beneficiarão. Este cenário é de
de desastres naturais, na assistên- ção jurídica aos necessitados, além uma profunda ampliação de nossas
cia aos desabrigados. Há também da própria organização das regras elevadas desigualdades sociais. ■

Leia mais
12
- Reforma tributária seria mais eficiente que a PEC 241. Entrevista especial com Róber
Iturriet Avila, publicada nas Notícias do Dia de 12-10-2016, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rpVFKW.
- Taxação sobre patrimônio e renda. Alternativas ao ajuste fiscal. Entrevista especial
com Róber Iturriet Avila, publicada nas Notícias do Dia de 12-6-2015, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2jAVrfR.
- Isenções tributárias e rendimentos declarados dos excelentíssimos magistrados. Ar-
tigo de Róber Iturriet Avila e João Santos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de 27-
2-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rpTJSX.
- O mito do inchaço da máquina pública no RS. Artigo de Róber Iturriet Avila e João San-
tos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de 15-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2jCQIKL.
- Justiça Tributária: como o Brasil recuou. Artigo de Róber Iturriet Avila e João Santos Con-
ceição, publicado nas Notícias do Dia de 15-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2FQyvSC.
- Não se administra um Estado como uma padaria. Artigo de Róber Iturriet Avila, publica-
do nas Notícias do Dia de 5-9-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
vel em http://bit.ly/2wk8VWr.
- A crise fiscal e dos serviços públicos do Rio Grande do Sul: elementos para o debate.
Artigo de Róber Iturriet Avila e João Santos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de
1-11-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2HV3z9I.
- Estratificação de dados do IR revela desigualdade ainda maior no país. Artigo de Róber
Iturriet Avila e João Santos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de 26-8-2016, no sítio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2K0m5tO.
- O capital no século XXI e sua aplicabilidade à realidade brasileira. Artigo de Róber Itur-
riet Avila e João Santos Conceição, publicado no Cadernos IHU Ideias número 234, dispo-
nível em http://bit.ly/1OtCTUE.

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Quando a comunicação é
negada, o outro é reduzido
e a violência eclode
Guilherme de Azevedo analisa um sistema em que a violência se perfaz
a partir da redução do ser a um corpo, em que é retirada a “condição
de pessoa”, tornando-o descartável
João Vitor Santos

O
que é a violência de nosso tem- sultado já é presumível. “Somos o país
po e como compreendê-la? Para de mais de 50 mil homicídios por ano,
o professor do Curso de Direito mas esses homicídios não são aleató-
da Unisinos Guilherme de Azevedo, a rios, contingenciais ou difusos. As ví-
violência pode ter origem na negação de timas são na maioria homens, jovens,
um ato comunicacional. Seguindo uma pobres e negros”, aponta.
lógica de Niklas Luhmann, o professor Guilherme de Azevedo é professor e
compreende que, como num sistema, coordenador do curso de Direito da Uni-
uma vez negada a comunicação, a con- sinos. Doutor e mestre em Direito pelo
sequência será uma redução do ser. “O Programa de Pós-Graduação em Direi-
conceito da violência surge como uma 13
to da Unisinos, desenvolve pesquisa na
‘não-comunicação’, como um fenômeno
área da Sociologia do Direito. Entre suas
de negação da comunicação, uma não
publicações, destacamos De onde obser-
produção de sentido, isto é, uma redução
va Niklas Luhmann? Diferenciações de
do outro à condição de corpo”, detalha.
uma Teoria da Sociedade. In: Vicente
Assim, quando se retira a “condição de
de Paulo Barretto; Francisco Carlos Du-
pessoa”, se tira desse ser a possibilidade
arte; Germano Schwartz. (Org.). Direito
comunicacional, numa sociedade que se
da Sociedade Policontextural (Curitiba:
baseia na própria comunicação. Este ser
Appris, 2013) e Proibição, descriminali-
passa a não ter reconhecimento nos sis-
zação e legalização: alternativas de en-
temas sociais. “Restando apenas o corpo
frentamento à crise do proibicionismo
como categoria sem sentido, disponível,
(Revista Conhecimento Online, v. 1, p.
descartável, uma forma que, ao não se
104-118, 2015).
apresentar como dotada de sentido, per-
mite altos níveis de exclusão”, completa. O professor participa do evento Vio-
lências do mundo contemporâ-
Na entrevista a seguir, concedida por
neo – Interfaces, resistências e
e-mail à IHU On-Line, Azevedo apro-
enfrentamentos, promovido pelo
xima sua perspectiva teórica às lógicas
Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
do racismo. “O racismo talvez seja a
violência mais representativa do con- Azevedo proferirá a conferência A in-
texto brasileiro, uma dinâmica que po- clusão como possibilidade de enfren-
tencialmente impacta mais de 50% da tamento às violências, no dia 17/5, às
população brasileira”, aponta. Para ele, 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e
“negar o conceito de raça, para buscar Companheiros - IHU, Campus São Le-
desconstruir o racismo, será, justamen- opoldo da Unisinos. Saiba mais sobre a
te, a ação (comunicação) de reforço do programação do evento em http://bit.
racismo”, algo que vai invisibilizando ly/2EHI85v.
esses seres. Reduzidos só a corpo, o re- Confira a entrevista.

EDIÇÃO 521
ENTREVISTA

IHU On-Line – Qual é o con- sociedade de uma forma suficiente- Esse é um dos efeitos mais preocu-
ceito de violência para o se- mente complexa, com uma adequa- pantes da violência em uma socie-
nhor? E como essa violência se ção epistemológica correspondente dade funcionalmente diferenciada,
materializa em nosso tempo? ao atual momento do nosso tempo, que contrasta fortemente com as
um cenário de incremento da com- retóricas de inclusão plena, ao ex-
Guilherme de Azevedo – Tenho
plexidade que desafia abordagens por as flagrantes limitações dessas
procurado pensar a violência dentro
dirigistas formatadas em ontologias pretensões mais universalistas de
de uma proposta de recepção crítica
do social, ou em esquemas e narrati- inclusão/integração ainda presentes
da teoria dos sistemas sociais de Ni-
vas mais causalistas. atualmente. A retirada da condição
klas Luhmann1. Nessa linha, a cons-
de pessoa, isto é, da condição de en-
trução de um conceito para violência
Violência dereço comunicativo, numa socieda-
deve ser antecedida por uma especi-
de que se reproduz como comunica-
ficação de como observo conceitual- Partindo da ideia de sociedade ção, significa a retirada da condição
mente outras duas categorias desse como comunicação, dessa recons- elemento “reconhecível” pelos sis-
quadro teórico: sociedade e pessoa. trução da teoria da sociedade, a temas sociais, restando apenas o
A sociedade aqui é observada como compreensão dos termos homem, corpo como categoria sem sentido,
comunicação, como algo constituído indivíduo, pessoa não é naturaliza- disponível, descartável, uma forma
única e exclusivamente por comu- da, uma vez que são sempre traba- que ao não se apresentar como do-
nicação. Logo, o principal estranha- lhados como distinções, como dife- tada de sentido permite altos níveis
mento gerado por essa definição não renças, formas comunicacionais que de exclusão.
está propriamente no fato de consi- operaram como redutores de com-
Portanto, na sociedade atual, a vio-
derar a comunicação um elemento plexidades, ao facilitarem na comu-
lência passa a se materializar como
relevante na observação da socieda- nicação a indicação de endereços co-
um fenômeno de integração pela
de, mas, sim, em não inserir mais o municativos3. Contudo, a redução de exclusão, gerado pela não comu-
indivíduo como elemento constitu- complexidade aqui não é sinônimo nicação do outro, que é reduzido a
tivo da sociedade. Este era o pano de simplificação, ou de coisificação, corpo. Esse me parece o gatilho te-
de fundo epistemológico que, com antes o contrário, é uma redução de órico mais interessante para pensar
14 maior ou menor intensidade, domi- complexidade que permite a produ- a violência em termos mais amplos,
nou desde Aristóteles2 a compreen- ção de sentido, que permite, portan- dando conta de reconhecer as dinâ-
são do social, sempre se utilizando to, o reconhecimento do outro como micas da violência em uma socieda-
de referências ao indivíduo – das parte da sociedade, dada a sua cons- de policontextural, isto é, a violência
suas ações, do seu comportamento, trução como comunicação. como operação de exclusão e desin-
de suas interações, de sua suposta tegração no Direito, na Economia,
É a partir dessas duas premissas
racionalidade – como categoria ele- na Política e na Religião.
de corte luhmanniano, trabalhadas
mentar do social.
criticamente, que eu procuro pen-
Contudo, a virada que Luhmann sar a violência. Nessa forma de se
IHU On-Line – Em que medi-
opera na sua teoria da sociedade, ao construir os conceitos de sociedade
da o pensamento da Moderni-
distinguir o social no conceito de co- e pessoa, o conceito da violência sur-
dade e seu conceito de proprie-
municação, rompendo com qualquer ge como uma “não-comunicação”,
dade privada pode contribuir
nível de individualismo metodológi- como um fenômeno de negação da para a geração de violência?
co, permite construir o conceito de comunicação, uma não produção
de sentido, isto é, uma redução do Guilherme de Azevedo – O
1 Niklas Luhmann (1927-1998): estudou direito em Fri-
outro à condição de corpo. Sobre papel da Modernidade na com-
burgo, onde se doutorou em 1949. Em 1960, viajou aos
Estados Unidos e estudou sociologia na Universidade corpos não se formam expectativas preensão da violência vem sen-
de Harvard. Em 1964, publicou Funktionen und Folgen
formaler Organisation (Duncker & Humblot, Berlim) e sociais que possam ir além da lógica do retrabalhado pela teoria social
ingressou na Universidade de Münster, em Dortmund,
de satisfação violenta e elementar. A contemporânea. A narrativa da Mo-
onde doutorou-se em Sociologia Política. Em 1968, se
estabeleceu em Bielefeld, em cuja universidade perma- violência é, nesse sentido, uma ne- dernidade como uma série histórica
neceu o resto de sua carreira como catedrático. Rece-
beu o prêmio Hegel em 1988. Em língua portuguesa, gação do outro como comunicação, a de emancipação, inclusão, estimu-
foram publicadas obras como Legitimação pelo proce-
não formação deste como endereço lada por um certo “norte moral” do
dimento (Brasília: Ed. Univ. de Brasília, 1980), Sociologia
do Direito (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985), A comunicativo, ou seja, como pessoa. sujeito moderno europeu iluminis-
Improbabilidade da Comunicação (Lisboa: Vega, 1992).
(Nota da IHU On-Line) É justamente nestes termos que se ta já passa a ser questionada para,
2 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 a.C.): filósofo
conecta a violência, entendida como no lugar disso, identificarmos na
nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas
– por um lado, originais; por outro, reformuladoras da “não-comunicação”, com o proble- Modernidade uma certa ambiva-
tradição grega – acabaram por configurar um modo de
pensar que se estenderia por séculos. Prestou significa- ma da exclusão. lência violenta e excludente. Pre-
tivas contribuições para o pensamento humano, desta- firo pensar a Modernidade dentro
cando-se nos campos da ética, política, física, metafísi-
ca, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia 3 Para uma referência direta ao tema na obra de Luhmann, de um quadro sistêmico, como um
e história natural. É considerado, por muitos, o filósofo
que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da
ver: LUHMANN, Niklas. Die Form “Person”. Soziologische
Aufklärung. Bd. 6. Die Soziologie und der Mensch. Opla-
processo de acentuação das dinâmi-
IHU On-Line) den: Westdt., 1995. p. 142-154. (Nota do entrevistado) cas de diferenciação funcional, que

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dissolveu lógicas violentas de estra- resultado da mediação que a socie- toriografia inglesa, que ao ser des-
tificação social, mas, por outro lado, dade fez, faz, ou poderá fazer de um coberto e narrado este mesmo caso,
produziu novos mecanismos de evento. A obra “Navio Negreiro” de um trauma se constituiu. Tal evento
desintegração e exclusão, uma vez Turner é inspirada no relato sobre será ressignificado pela sociedade
que a inclusão passa a ser mediada o navio Zong, que poderia ter sido inglesa, passando de objeto de lucro,
por um controle dos sistemas fun- mais um entre os diversos barcos derivado de um contrato de seguro,
cionais (Direito, Política, Religião, que realizavam o trajeto da Áfri- para um trauma gerador da semân-
Economia, Ciência, Arte) que não ca para a Jamaica no século XVIII. tica abolicionista. De uma operação
respondem da mesma forma à pres- Nesta viagem ocorre uma diferença, econômica alcançou o sentido de
são do Estado por inclusão, enten- a descoberta de uma chaga que co- pauta das discussões sobre os direi-
dido este como organização sobre- meçava a tomar os porões do navio tos humanos, provocando no siste-
vivente da sociedade estratificada. e, com isso, os africanos ali escravi- ma do direito o reconhecimento da
Um bom exemplo disso é relação zados teriam destino certo de apenas abolição. É isso que Turner vai co-
da propriedade privada com ideia esperar a morte. Mas para o capitão municar no sistema da arte sessenta
de pessoa/corpo na Modernidade, desse navio, a questão de como essas anos depois do ocorrido. A abolição
ou seja, estamos falando especifica- mortes seriam comunicadas, como no direito já era fato, mas ainda as-
mente da elaboração das condições elas seriam observadas, fazia a di- sim, o trauma comunicava, agora, no
sistêmicas de formação da escravi- ferença da diferença que constitui a sistema da arte.
dão moderna. A maior expressão da inclusão ou exclusão de suas expec-
tativas em um sistema social. A violência da redução do outro a
violência na Modernidade é a cons-
corpo, desenvolvida na escravidão
trução da dinâmica da escravidão
Sentido econômico e discus- moderna, só foi possível com o de-
dentro de uma operacionalização
são sobre direitos humanos senvolvimento do direito de proprie-
orquestrada sistemicamente. A co-
dade. Tradicionalmente, o direito
municação da propriedade tem uma Em outras palavras, se observa- é entendido como um conjunto de
prestação importante nesse proces- do o evento a partir de um sentido normas que limita as possibilidades
so. É possível explicar essa dinâmica econômico, o contrato de seguro de comportamento. Mas, em termos
a partir de uma análise da história comunicava que só reconheceria as funcionais, o sistema do direito está, 15
por trás do quadro Slave ship4, de mortes que, no mar, ocorressem.
William Turner5, um dos principais na verdade, muito mais próximo de
Cada morte de escravizado no mar exercer o papel de habilitador de
artistas do Romantismo e, para mui-
representava um sentido específi- comportamentos, de ser a condição
tos, precursor do Impressionismo.
co no sistema econômico. Contudo, de possibilidade para certas condu-
Apenas pela imagem, sem saber- para cada morte no barco, o seguro tas, muito mais do que ter a função
mos o que esta conta como narrati- não deixaria mais que a indiferença de limitador destas. Basta pensar-
va histórica, o sentido desse quadro e o silêncio. Não havia o sentido de mos em figuras jurídicas como a
não alcança o seu desejo de comu- lucro no sistema econômico para propriedade, contratos, responsabi-
nicar um evento traumático. Como escravizados mortos por doenças e, lidade da pessoa jurídica, especial-
afirma Jeffrey Alexander6, nenhum portanto, decidir sobre como a mor- mente no campo do direito privado,
evento é em si traumático. O trau- te dos escravizados seria comuni- o direito age como um viabilizador
ma, como fenômeno sociológico, é cada passava a ser um problema de de expectativas7.
generalização congruente de expec-
4 Slave ship [O navio escravo, em tradução livre], tativas normativas (direito). Aquele Nesse sentido, a propriedade na
originalmente intitulado Slavers Throwing overboard
the Dead and Dying—Typhoon coming on [escravos que observava os corpos, vivos ou Modernidade pode ser descrita
jogando ao mar os mortos e morrendo - Tufão
mortos, tendo para si a expectativa como um acoplamento estrutu-
chegando, em tradução livre], é uma pintura do
artista britânico JMW Turner, exibido pela primeira de perder o seu dinheiro, de perder ral entre o sistema do direito e o
vez em 1840. Medindo 35 3/4 x 48 1/4 de polegada
em óleo na tela, está agora no Museu de Belas Artes o seu lucro, já decidia em ver o corpo sistema da economia. Dentro des-
de Boston. Neste exemplo clássico de uma pintura pela forma da propriedade. se processo, o sistema do direito
marítima romântica, Turner retrata um navio, visível ao
fundo, navegando através de um mar tumultuoso de certamente executou importante
água agitada e deixando formas humanas dispersas Assim, cento e trinta e dois (132)
flutuando em seu rastro. (Nota da IHU On-Line)
função, por meio da construção da
africanos, entre homens, mulheres
5 Joseph Mallord William Turner (1775-1851): pintor escravidão como direito de proprie-
romântico londrino, considerado por alguns como um dos e crianças, foram jogados ao mar
precursores do Impressionismo. (Nota da IHU On-Line) dade, o direito prestou as condições
6 Jeffrey C. Alexander: é um dos mais importantes Caribenho, tendo como destino um
sistêmicas de funcionamento da
sociólogos norte-americanos da atualidade, professor mar repleto de tubarões, onde mui-
de sociologia da Universidade de Yale, nos EUA e escravidão, promovendo a estabili-
codiretor do Centro de Sociologia Cultural deste mesmo tos destes acabaram dilacerados.
departamento de ensino e pesquisa. Para Alexander, zação social do maior processo de
cultura e sociedade formam um binômio indissolúvel e
Os que a sorte retirou dos tubarões,
exclusão do outro como pessoa da
por isso criou um novo modelo de análise sociológica: a entregou ao fundo do mar. Mas o
Sociologia Cultural. Na Sociologia Cultural, seu trabalho modernidade.
tem sido associado ao que ele chama de o “programa proprietário dos escravos comuni-
forte” em estudos da cultura, em comparação ao cou, pelo sistema do direito, a sua
“programa fraco” que é como nomeia a Sociologia da 7 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo:
Cultura. (Nota da IHU On-Line) indenização. Contudo, registra a his- Martins Fontes, 2016. p.181. (Nota do entrevistado)

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ENTREVISTA

O caso brasileiro frente ao governo. Logo, a real di- Pajens da Casa Imperial: juriscon-
nâmica comunicacional do negro na sultos e escravidão no século XIX12,
Procurando dialogar com a histo- escravidão é praticamente ignorada ao demonstrar de forma acurada que
riografia brasileira, é possível des- pelo texto constitucional, uma vez a propriedade não era facilmente
tacar a formalização jurídica do pro- que, caso o texto constitucional de afastada nos movimentos de tensão
cesso escravista, bem descrito por fato enfrentasse o tema da escravi- que marcaram as discussões entre os
Hebe Mattos8. A lei irá substituir o dão, acabaria por ter de comunicar membros do Instituto dos Advogados
costume como fonte da escravidão a a condição do negro dentro da lógica do Brasil - IAB, no que tocava ao mais
partir do momento que a Constitui- de funcionamento do direito de pro- consistente encaminhamento do sen-
ção de 1824 reconhece comunicações priedade, dada a função que este aco- tido jurídico da escravidão.
jurídicas acerca do direito de pro- plamento estrutural entre o sistema
priedade de escravos. Com o direito do direito, sistema da política e o sis-
de propriedade, o direito fornece se-
gurança para a operação econômica
tema econômico, executava à época.
Mas mais do que isso, o que também
“Na sociedade
da escravidão, e um empoderamento
político da elite brasileira, escamote-
fica (não) comunicado, ou latente,
pela “não-comunicação” do negro
atual, a
ando a suposta contradição entre a
formação de direitos civis liberais e a
-propriedade no texto constitucional,
é que o próprio direito de proprieda-
violência
validação do direito de propriedade
sobre o escravo, para estabilizar uma
de não dependida de uma postura de
reconhecimento ativa da programa-
passa a se
operação econômica9. ção constitucional. O negro escravi-
zado, como direito de propriedade,
materializar
A forma prioritária de comunica-
ção do negro não ocorria como pes- forma-se sem a ação direta do Gover-
no Imperial10. Diante deste quadro,
como um
soa, mas, sim, como propriedade. A
propriedade era a principal forma há que perceber que a programação fenômeno de
dos sistemas político, econômico e
de se comunicar sistemicamente a
condição de negro no império. Devi- jurídico, em desenvolvimento a esta integração
16
pela exclusão”
do ao fato de o seu tratamento como época, começam a elaborar comuni-
coisa se constituir como estrutura de cações sobre o negro internamente,
operacionalização, isto é, de seleção dentro de um jogo entre heterorrefe-
e redução da complexidade nos sis- rência e autorreferência, mas sempre
temas sociais. Diante da redução à a partir de um compartilhamento es- IHU On-Line – De que forma
condição de objeto, de bem sujeito trutural do reconhecimento da pro- a exclusão social se configura
à propriedade de alguém, sistemica- priedade, ou seja, de uma produção como elemento propulsor da
mente é compreensível o “silêncio” de sentido para o reconhecimento da violência? E como a inclusão
da Constituição de 1824 quanto à escravidão. pode ser empregada como uma
real condição dos escravizados. For- forma de enfrentamento da
malizar a observação do negro nos Propriedade e escravidão violência?
sistemas sociais no século XIX era seguem imbricadas
Guilherme de Azevedo – Essa
diferenciar e indicar, principalmen-
Mesmo quando o exame da proprie- questão exige um maior esclareci-
te, a categoria da propriedade de um
dade, como programa de tomada de mento sobre como se desenvolvem
corpo, o cerceamento da liberdade
decisão, começa a ser levado para o dinâmicas de inclusão/exclusão
de um corpo.
exame das organizações, como tribu- hoje. E para isso, penso que temos
Essa dinâmica, dentro do pensa- nais e corporações profissionais, a sua que trabalhar essa dinâmica reco-
mento liberal em desenvolvimento, manutenção servia como eixo central nhecendo que ela ocorre orientada
era escamoteada pela lógica da so- de argumentação. Como bem exami- por um processo de diferenciação
berania doméstica frente ao Estado, na Eduardo Spiller Pena11, em sua tese funcional da sociedade. Reconhe-
pela blindagem da relação privada cendo-se o alto índice de abstração
que alcança a teoria da sociedade
10 Mesmo quando o Império passa a indicar para uma
perspectiva de dissolução gradual da escravidão, esta era
luhmanniana, o que muitas vezes
8 Hebe Mattos: Doutora em História pela Universidade
Federal Fluminense, atualmente é livre-docente na
mediada pela ponderação a partir do direito de proprie- repele a sua leitura e desenvolvi-
dade. Ver: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). Brasil
mesma universidade. Mattos é ainda coordenadora Imperial, 1871-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, mento mais aprofundados, enten-
associada do Laboratório de História Oral e Imagem, da 2009. p. 62-64. (Nota do entrevistado)
UFF e trabalha especialmente com escravidão, memória 11 Eduardo Spiller Pena: graduado em História pela
do ser fundamental, antes de en-
e abolição. (Nota da IHU On-Line) Universidade Federal do Paraná (1985), mestrado em
9 Ver: MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos História pela Universidade Federal do Paraná (1990) e
quadros do Império português: o Antigo Regime em doutorado em História pela Universidade Estadual de
perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Campinas (1998). Tem experiência na área de História, 12 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial: ju-
Fernanda; GOUVÊA, Fátima Silva (Org.). O Antigo Regime com ênfase em História Social da Escravidão e História risconsultos e escravidão no Brasil do século XIX. 1998.
nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI da África e da Cultura Afro-Brasileira, atuando principal- Tese (Doutorado em História) -- Instituto de Filosofia e
-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. (Nota mente nos seguintes temas: escravidão, culturas, liber- Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas
do entrevistado) dade, história, justiça e direito. (Nota da IHU On-Line) (Unicamp), Campinas, 1998. (Nota do entrevistado)

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trarmos na formalização sistêmica Inclusão/exclusão Parsons18 irá produzir a partir de sua


da inclusão/exclusão, conectar a leitura de T.H. Marshall19, no proble-
proposta de Luhmann a um ponto A adoção de um referencial so- ma da evolução dos direitos civis.
de partida clássico, um teorema já ciológico sistêmico para o estudo
da inclusão/exclusão em sistemas Com isso, a observação socioló-
há muito sedimentado nas ciências
sociais coloca o tema em uma re- gica da inclusão/exclusão deve dar
sociais: a ideia de que as sociedades
lação diferente com o problema conta de expressar todo processo
são diferenciadas, ou seja, o fato de
da integração social. O ponto que de diferenciação da sociedade mo-
que há uma divisão do trabalho nes-
irá se destacar, com grande rele- derna. Para isso, Luhmann vai re-
sas sociedades.
vância para os estudos sobre a di- formular a definição de inclusão/
Tido como um dos pilares do pró- nâmica complexa de processos de exclusão de Parsons20. Para ele, a
prio surgimento da Sociologia, a inclusão/exclusão, é o fato de que exclusão deve ser entendida como
teoria da divisão do trabalho so- a inclusão/exclusão na sociedade é forma (distinção com dois lados)
cial é tão antiga quanto as ciências uma forma que se altera profunda- cujo lado interior é indicado como
sociais, surge na metade do século mente a partir do tipo de diferen- a oportunidade que as pessoas, aqui
XVIII, quando se passa a conceber ciação social vigente nesta socieda- entendida como endereços comuni-
as sociedades como conjuntos com- de. Não podemos perder de vista cacionais, têm para serem levadas
plexos que se mantêm por interde- que o tema da integração e da ex- em consideração socialmente (pelos
pendência. As “partes” da socie- clusão social sempre foi motivo de sistemas sociais, organizações, na
dade seriam mantidas em coesão confusões conceituais e ceticismo interação), e o lado exterior dessa
por forças de dependência mútua, teórico. forma se mantém sem sinalização21.
isto é, uma parte precisa da outra.
O trabalho de David Lockood16 che- Dentro dessa perspectiva, existe
É esta a base da divisão do traba-
gou a defender a completa distinção inclusão apenas quando, ao mes-
lho social, teorema fundamental
entre o conceito de integração, no mo tempo, a exclusão é possível. É
da Sociologia moderna e que pode
seu sentido sistêmico, e o de inte- a existência de pessoas, grupos, seg-
ser identificado, respeitadas as es-
gração no seu sentido social17. Essa mentos, fora de uma condição de in-
pecificidades, em diversos autores
distinção procurava não confundir tegração, que torna possível observar
da Sociologia, como Durkheim13, 17
a integração vista como a harmonia (diferenciar/indicar) a coesão social
Weber14 e Simmel15. Em cada um
interna dos sistemas funcionais, com e, com isso, possibilita o conhecimen-
desses autores, podemos reconhe-
a integração definida como relação to nos termos necessários para pro-
cer formas de se trabalhar uma di-
entre sistemas psíquicos, entendidos moção dessa coesão. Dessa definição
ferenciação da sociedade. Contudo,
aqui como indivíduos, e os sistemas da inclusão/exclusão como forma,
é Luhmann que irá, por sua vez, ra-
sociais. Em Luhmann, a abordagem decorre uma importante medida de
dicalizar a ideia de diferenciação,
é feita de outra forma. A integração (co)dependência, ou seja, o conheci-
passando a trabalhá-la como uma
dos sistemas é proposta como dis- mento e definição das condições de
diferenciação funcional.
tinção de formas de diferenciação inclusão geram, ao mesmo tempo,
A observação de Luhmann não se dos sistemas, dotadas essas formas a denominação das formas gerado-
restringe à ideia de uma divisão do da capacidade (função) de controle ras da exclusão. O que Luhmann vai
trabalho social, à própria ideia de que desses sistemas parciais em relação destacar, desde o primeiro momen-
a sociedade é um conjunto, um todo, ao seu ambiente. Já sobre o proble- to, é que quando os sistemas sociais
em que as partes precisam umas ma da integração social, esse é res- especificam os critérios de inclusão,
das outras. O sentido de função em significado como um problema de ao mesmo tempo, tornam possível o
Luhmann vai muito além desta ideia operação da distinção inclusão/ex- conhecimento da exclusão22 .
de interdependência. Para entender- clusão, seguindo-se aqui, fundamen-
mos melhor o papel que o conceito talmente, a construção que Talcott 18 PARSONS, Talcott. The structure of social action. New
York: Free Press, 1949; PARSONS, Talcott. Sociological
funcional desempenha, temos que theory and modern society. New York: Free Press, 1967.
acompanhar o marco evolutivo da (Nota do entrevistado)
16 David Lockwood (1929-2014): foi um sociólogo bri- 19 MARSHALL, Thomas H. Citizenship and social class.
complexidade social e, nessa evolu- tânico. Seu livro The Blackcoated Worker procura analisar Cambridge: Cambridge University Press, 1950. (Nota do
as mudanças na posição de estratificação do trabalhador entrevistado)
ção, localizar os processos de inclu- administrativo usando uma estrutura baseada na distin- 20 Talcott Edgar Frederick Parsons (1902-1979): foi um
são/exclusão contemporâneos. ção de Max Weber entre mercado e situações de trabalho. sociólogo norte-americano. Seu trabalho teve grande in-
Lockwood argumentou que a posição de classe de qual- fluência nas décadas de 1950 e 1960. A mais proeminente
quer ocupação pode ser mais bem localizada distinguindo tentativa de reviver o pensamento parsoniano, sob o títu-
entre as recompensas materiais obtidas do mercado e as lo de “Neofuncionalismo”, pertence ao sociólogo Jeffrey
situações de trabalho, e aquelas recompensas simbólicas Alexander, da Universidade Yale. Atuou à Universidade
derivadas de sua situação de status. Seu trabalho tornou- Harvard entre 1927 e 1973. Inicialmente, foi uma figura
13 DURKHEIM, Emile. Les règles de la méthode sociologique. 13 se uma contribuição muito importante para o debate da central no Departamento de Sociologia de Harvard, e pos-
éd. Paris: Presses Universitaires de France, 1956; DURKHEIM, “proletarização”, que argumentava que muitos trabalha- teriormente no Departamento de Relações Sociais (criado
Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Abril Cultural, dores de colarinho branco estavam começando a se iden- por Parsons para refletir sua visão de uma ciência social
1978. (Nota do entrevistado) tificar com os trabalhadores manuais, identificando sua integrada). Ele desenvolveu um sistema teorético geral
14 WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. São Paulo: situação de trabalho como tendo muito em comum com o para a análise da sociedade que veio a ser chamado de
Moraes, 1987; WEBER, Max. Economia e sociedade: fun- proletariado. (Nota da IHU On-Line) funcionalismo estrutural. (Nota da IHU On-Line)
damentos da sociologia compreensiva. 3. ed. Brasília, DF: 17 Ver: LOCKWOOD, David. Social integration and system 21 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Ciudad de
Universidade de Brasília, 1994. (Nota do entrevistado) integration. In: ZOLLSCHAN, Geroge K.; HIRSCH, Walter. México: Universidad Iberoamericana: Herder, 2007. p. 491-
15 SIMMEL, Georg. Cuestiones fundamentales de sociolo- Explorations in social change. London: Halsted Press Book, 492. (Nota do entrevistado)
gía. Barcelona: Gedisa, 2002. (Nota do entrevistado) 1964. p. 244-257. (Nota do entrevistado) 22 Ibid., p. 492. (Nota do entrevistado)

EDIÇÃO 521
ENTREVISTA

Violência como negação da acessar uma formação educacional zaram de maneira completa, ou da
inclusão elementar, ter benefícios sociais e mesma forma, sobre todos os luga-
direitos básicos que lhe possibilitem res do mundo.
Nesse sentido, passamos a co- gozo e fruição de saúde, ou mani-
nhecer a violência como fenômeno festar afeto e seu credo religioso de
de negação sistêmica da inclusão.
É quando indivíduos dos grupos
forma específica e livre, pelas formas
e rituais simbólicos postos pela sua
“O Direito só
apresentam alto índice de exclusão
nos sistemas sociais, eles não são
cultura e tradição23. resolve os
comunicados, ou seja, são apenas
corpos. Quando ocorre ainda algu-
O que Luhmann bem destacou
para os estudos da inclusão/exclu- problemas que
ma inclusão, no sentido de serem
reconhecidos comunicacionalmente,
são é que, no século XVIII, desenvol-
ve-se uma funcionalidade inclusiva a
ele mesmo cria”
normalmente isso se dá a partir de partir do postulado dos direitos hu-
simplificações, descaracterizações, manos que, procurando romper com IHU On-Line – Como a articu-
mediadas pelos sistemas sociais. formas de diferenciação legadas pela lação do trinômio “proibição”,
tradição, reconstrói as condições “descriminalização” e “legali-
A violência contemporânea é um
de inclusão dos sistemas funcionais zação” pode incidir sobre a vio-
processo sistêmico de invisibilidade
em favor de uma nova premissa: o lência? Quais as alternativas?
comunicacional de grupos e indiví-
ser humano pensado como sujeito
duos, que ocorre pela dificuldade de Guilherme de Azevedo – Se
universal24. Nesse processo, vão se
operacionalizarmos inclusão a partir pensamos de forma mais restrita,
fortalecer as diferenciações semân-
de eixo organizacional central único, isolando no tema da violência uma
ticas da “igualdade” e “liberdade”,
como o Estado, a Igreja ou as Uni- das suas principais frentes, como a
como princípios com pretensão de
versidades. Em outras palavras, deve questão do tráfico de drogas, não há
generalidade. Em termos sistêmicos,
se ter em mente que a inclusão dos uma articulação desse trinômio. Do
são autodescrições da sociedade que
indivíduos nos sistemas é afetada ponto de vista do Direito, a resposta
passa a se observar a partir da comu-
principalmente pelos acoplamentos
18 nicação dos direitos humanos. tem sido, majoritariamente, monis-
estruturais/operacionais realizados
ta, isto é, a proibição. Podemos ser
por esses sistemas, como a proprie- Contudo, este movimento se dá otimistas e olhar para iniciativas
dade, a constituição, os contratos, dentro de uma realidade de diferen- como a do Uruguai, Portugal, ou a
pensando especialmente na relação ciação funcional, posto que as res- de alguns estados estadunidenses,
entre direito, política e economia. trições à liberdade e à igualdade so- especificamente na questão da ma-
E com essa dinâmica funcionalista mente se dão por meio dos códigos conha, mas o fato é que o lado pes-
ampliada, passa-se a ter dificuldades e programas dos sistemas sociais simista ainda é maior, a tendência
de operar na sociedade sob a lógica parciais (direito, economia, políti- mundial ainda é usar o sistema do
de que um determinado status so- ca, religião etc.), sem contar, nesse direito para generalizar expectati-
cial, dado pelo simples nascimento sentido, com a possibilidade de atri-
ou pertencimento familiar, garanta vas normativas de criminalização da
buir a um sistema o papel diretivo venda e uso de certas substâncias.
por si só critérios ontológicos de in- da totalidade da sociedade. Com a
clusão sistêmica generalizada. formação da semântica dos direitos Já há um certo consenso científico
A inclusão, no âmbito comuni- humanos na sociedade, a análise que esse movimento é um fracasso ab-
cacional, portanto, na sociedade, luhmanniana auxilia na observação soluto em termos de prevenção e pres-
passa a depender de oportunidades do problema que será apontado na tação de saúde e, por outro lado, um
altamente especializadas, que apre- modernidade. Essa sociedade irá “sucesso” completo em fomentar a vio-
sentam muitas vezes um quadro ins- constituir, através desta lógica de lência. As dinâmicas de exclusão que a
tável na sua estabilidade temporal. inclusão/exclusão, a ideia de que criminalização do tráfico fomenta são
Assim, a generalização de expecta- o único problema da modernidade evidentes, especialmente em contextos
tivas de inclusão, pensando aqui na parece residir que esses direitos, sociais que apresentam altos níveis de
pressão da experiência de demo- os direitos humanos, não se reali- desigualdade de acesso aos sistemas
cracia de massas, que passam a se sociais. É senso comum identificar no
constituir, estrutura-se a pretensão 23 Neste quadro de pretensão de “cidadania plena”, ver o traficante os marcadores de uma desin-
debate em: SCIORTINO, Giuseppe. ‘A single societal com-
de que cada sujeito de direito repre- munity with full citizenship for all’: Talcott Parsons, citi- tegração sistêmica, como baixa escola-
zenship and modern society. Journal of Classical Sociology,
senta, ao mesmo tempo, um sujeito [S.l.], v. 10, n. 3, p. 239-258, 2010. (Nota do entrevistado) ridade, desemprego, pobreza, racismo,
ativo economicamente e, também, 24 A função dos Direitos humanos e sua relação com a “não-consumidor”, bandido etc. Esses
categoria sociológica do trauma será objeto de análise e
apto a expressar politicamente seus aprofundamento no último capítulo, quando o seu papel elementos todos são resultados de ex-
será trabalhado como comunicação de inclusão com pre-
interesses, com o exercício de re- tensões globais. Neste momento, apenas iremos indicar a clusão de sistemas sociais, permitindo
presentar e ser representado. Esse sua conexão com a evolução do conceito da diferenciação que esses indivíduos sejam reduzidos à
funcional e a complexidade da forma inclusão/exclusão.
mesmo sujeito tem a expectativa de (Nota do entrevistado) condição de corpos.

7 DE MAIO | 2018
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Basta observar o perfil que a cober- da raça negra como programação ralização, acaba gerando mais obstá-
tura jornalística apresenta quando explícita para a desigualdade, o pre- culos para a eficiência das políticas
trata das mortes na periferia. Não conceito à raça negra já funcionava, públicas de igualdade racial.
cita nomes, não apresenta histórias sistemicamente, como o outro lado
individualizadas, não investiga so- da forma, o lado não indicado na ob- Violências e violações
nhos, desejos, ou ambições que o servação de estruturas de restrição à
indivíduo vítima poderia ter, isto é, inclusão dos negros, que opera como As violências forjadas pelo racismo
ocorre uma simplificação que prati- “ponto cego”, como um “unmarked no Brasil ainda não foram plena-
camente retira a condição de ende- space”, da escravidão até o debate mente reconhecidas como violações.
reço comunicativo, naturalizando-o das ações afirmativas. Há uma naturalização que impacta a
como corpo, ou seja, não comuni- eficácia empírica (material) da fun-
Dessa característica, parece se for-
cando qualquer individualização. ção do Direito de, supostamente,
mar o sentido do racismo brasileiro
Essa prática é causa e consequência generalizar expectativas normativas
no período pós-abolição, como “si-
da violência. É produto e produtor, de combate ao racismo, isto é, afeta a
lêncio” normativo (não comunica-
é a própria violência e o seu resulta- capacidade do sistema do direito de
ção), como não-tematização da desi-
do. Antes de examinar alternativas, fomentar irritações nos demais sis-
gualdade racial que irá se constituir
o desafio é desconstruir esse mode- temas sociais (político, econômico,
durante boa parte do século XX. O
lo proibicionista, é reconhecer que educativo etc.), como forma de de-
fator sistêmico interessante desse
ele não funcionou. sencadear processos de coevolução
processo, que propomos como uma
leitura luhmanniana do surgimento nestes demais sistemas.
IHU On-Line – Que respostas da comunicação da democracia ra- Contudo, apontando para alguma
o Direito, na atualidade, é ca- cial, é que ela irá se constituir como mudança e, talvez, permitindo um
paz de dar à violência social? um paradoxo: negar o conceito de certo otimismo nesse tema, é signi-
raça, para buscar desconstruir o ficativo o fato de que o início do sé-
Guilherme de Azevedo – É racismo, será, justamente, a ação culo XXI marca uma importante fase
impossível sinalizar uma fórmula (comunicação) de reforço do racis- do desenvolvimento de políticas de
geral para enfrentamento da vio- mo. E é essa paradoxalidade que irá
lência pelo Direito. Contudo, em
combate ao racismo, especialmente 19
caracterizar o racismo na diferen- quando pensamos a partir da Con-
termos mais reflexivos, acredito ciação social brasileira, um racismo
que um ponto deve estar presente venção de Durban25, em 2001, que
que ocorre pela negação da ideia de
em qualquer pretensão mais nor- sinalizou a urgência de uma pauta
raça. Tanto, que isto é o que levará o
mativista de combate à violência. político-jurídica em escala mundial
movimento negro a pressionar pela
Esse ponto é atentarmos para o para o problema do racismo e de-
reconstrução política do conceito
fato de que o Direito só resolve os mais práticas discriminatórias. O Es-
de raça, como forma de reconstruir
problemas que ele mesmo cria, ou tado Brasileiro pareceu reagir a essa
a diferença que possibilita a obser-
seja, temos que projetar respostas provocação com uma potencialização
vação da desigualdade racial, uma
perguntando como os sistemas so- interna das discussões sobre as rela-
forma de combate ao racismo para
ciais constroem os seus processos reintrodução de ideia de raça. ções raciais no país, que acabaram
de inclusão/exclusão. por produzir arcabouços normativos
O que se coloca, então, como um relevantes como a Lei n° 10.639/03,
Racismo dos campos problemáticos para re- o Estatuto da Igualdade Racial, Lei
flexão, é o jogo antagônico entre de Cotas Raciais. Entretanto, esses
Para não soar tão abstrato, pode- o aumento na produção de dados dispositivos ainda estão longe de se
mos abrir para um certo nacionalis- empíricos sobre a desigualdade ra- apresentarem como resposta efetiva
mo metodológico, e tomar o Direito cial, sua exposição e publicização, e para o massacre que o Brasil realiza
para analisar a dinâmica do racis- a manutenção de uma interpretação com a juventude negra. Somos o país
mo no Brasil. O racismo talvez seja dogmática no Direito de que as difi- de mais de 50 mil homicídios por
a violência mais representativa do culdades e preconceitos experimen- ano, mas esses homicídios não são
contexto brasileiro, uma dinâmica tados pela população negra seriam aleatórios, contingenciais ou difusos.
que potencialmente impacta mais contingenciais, acidentais, ou, de
As vítimas são na maioria homens,
de 50% da população brasileira. É forma mais precisa, o racismo não
jovens, pobres e negros. E sobre essa
partir dessa premissa que a constru- teria um papel estrutural na socieda-
dinâmica da violência, pouca respos-
ção de uma resposta a esta questão de brasileira. Essa recusa interpre-
ta o Direito tem dado.■
deve elaborar as linhas iniciais de tativa, que nega a existência de um
uma observação do fenômeno do ra- “racismo sistêmico” no Brasil, que 25 Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação
cismo no Brasil. Embora a formação ignora a função que a comunicação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância. Dur-
ban, realizada em 2001. Integra a série de eventos interna-
dos processos de exclusão, dentro da raça negra desempenha na for- cionais organizados pela Unesco denominada Conferência
da lógica operativa dos sistemas so- mação de hierarquias na sociedade Mundial contra o Racismo (WCAR). Quatro conferências
foram realizadas: em 1978, 1983, 2001 e 2009. (Nota da
ciais, escondesse o reconhecimento brasileira, e sua consequente natu- IHU On-Line)

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

O interminável Maio de 1968


Patrick Viveret viveu a ebulição dos meses, desde 1967,
que antecederam a tomada das ruas, universidades e
fábricas por estudantes e trabalhadores franceses
Vitor Necchi | Tradução: Vanise Dresch | Edição: Ricardo Machado

L
onge de um certo pessimismo que impulsionam os desafios contem-
diante da memória de 1968 e mais porâneos. “Em suma, estas são as três
distante ainda do ufanismo ro- grandes questões sobre o futuro da
mântico em torno do maio francês, Pa- humanidade com as quais deparamos:
trick Viveret, em entrevista por e-mail à a questão ecológica relativa ao futuro
IHU On-Line, analisa um dos eventos do nosso planeta; aquela da transfor-
mais marcantes da segunda metade do mação do trabalho: o que vamos fazer
século 20. “Maio de 1968 foi, para mim, da nossa vida?; e a mais radical, com a
uma vitória inacabada, ainda sem pala- revolução biotecnológica: o que vamos
vras para defini-la, sem uma verdadeira fazer com a nossa espécie?”, provoca o
forma política”, pontua. “Nesse senti- entrevistado.
do, as questões levantadas em 68 estão Patrick Viveret é formado em Fi-
diante de nós, não foram deixadas para losofia e doutor pelo Instituto de Es-
20 trás”, complementa. tudos Políticos de Paris. Na década de
Olhando para o mundo atual e para as 1960, participou da Juventude Estu-
promessas da revolução 4.0, Viveret su- dantil Cristã - JEC (Jeunesse Étudian-
blinha a exaustão de um projeto global te Chrétienne, no original). É autor de
construído no pós-guerra, apresentado Reconsiderar a Riqueza (Brasília: Ed.
por ele em três eixos: “Um crescimen- Universidade de Brasília, 2006), De la
to essencialmente material, mas para convivialité. Dialogues sur la société
todos (sem questionamento sobre a conviviale à venir, ouvrage collectif
natureza); um modo de produção in- (Paris: Éditions La Découverte, 2011)
dustrial; e o Estado-Nação”. O interes- e La Cause Humaine, du bon usage de
sante, contudo, é que aquilo que pode la fin d’un monde (Paris: Èditions Les
ser considerado como o fim da linha Liens qui Libèrent, 2012).
é, ao mesmo tempo, as três perguntas Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor par- na Sorbonne, iniciou-se com uma ca do prédio delas, para lutar contra
ticipou dos acontecimentos de questão que não era diretamente po- essa discriminação. Foi também nes-
1968 na França. O que o mobi- lítica, mas altamente societal – foi se contexto de grande ebulição que
lizou naquele momento? a questão da discriminação entre o tomamos conhecimento da prisão
acesso ao prédio masculino e ao pré- de um militante do Comitê Vietnã
Patrick Viveret – Em 22 de mar- dio feminino. As mulheres podiam Nacional1, ocorrida durante uma ma-
ço de 1968, eu era estudante em entrar no prédio dos homens, mas nifestação contra, principalmente, a
Nanterre e morava na cidade uni- estes não podiam entrar no das mu- American Express. Por solidariedade,
versitária. Eu tinha 20 anos. O pri- lheres. Nossas “camarades femmes” decidiu-se lançar um movimento de
meiro fator, conhecido como “movi- [colegas ou camaradas mulheres],
mento de 22 de março”, que depois como dizíamos na época, queriam 1 O Comitê Vietnã Nacional foi um grupo francês formado
em 1966 para protestar contra a intervenção americana no
desencadeou o movimento de maio que fizéssemos uma invasão pacífi- Vietnã. (Nota da tradutora)

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“Maio de 1968 foi, para mim,


uma vitória inacabada”

ocupação do prédio administrativo citados levam a debates muito atuais, mulher muito mais velha que ele
da faculdade. Participei porque es- como o desafio indicado, no plano te- quando era aluno dela, ao passo
tava no segundo ano de Filosofia na órico, por Hannah Arendt2, em A con- que, na França dos anos 1970, em
faculdade de Nanterre. Aliás, parti- dição humana (São Paulo: Forense semelhantes circunstâncias, outra
cipei também de movimentos que já Universitária, 2016), sobre a necessi- mulher teria se suicidado.
vinham de bem antes, pois todo o ano dade de passar de uma civilização do
Mas a reação das forças conserva-
de 1967 foi marcado por movimentos trabalho, do labor, a uma “civilização
doras à emancipação das mulheres
muito importantes na universidade. da obra”. Não se trata mais, hoje, de
uma questão teórica, mas, sim, prá- ainda é muito forte, como vemos,
Maio de 1968 foi, para mim, uma tica: a possibilidade de uma nova di- por exemplo, nos Estados Unidos,
vitória inacabada, ainda sem pala- visão do trabalho entre os robôs e os com a força dos movimentos que
vras para defini-la, sem uma verda- humanos, reservando para estes, por tentam impedir o aborto. Trata-se,
deira forma política, embora, alguns exemplo, o que pertence à obra e ao portanto, de um combate que se
anos depois, o chamado Movimento ofício. Isso também traz a questão das mantém atual. 21
Autogestionário tenha tentado lhe novas formas de relação entre obras e
dar uma linguagem política. Mas, no renda, como a renda mínima.
ano de 1968, isso não existia. IHU On-Line – Que questões
são urgentes e fundamentais de
IHU On-Line – Um dos temas se discutir no mundo atual? Em
IHU On-Line – As efemérides em 1968 era a questão do pra- que se deve avançar?
são momentos de celebrar da- zer, a revolução sexual, a revo- Patrick Viveret – Não devemos
tas e de reinterpretá-las. Para lução dos costumes. Nesse sen- esquecer que 1968 vem num mo-
além disso, a evocação de 1968 tido, o que se avançou? mento em que se anuncia, no mundo
pode sugerir caminhos para se
Patrick Viveret – Sim, avança- inteiro, a exaustão do grande ciclo
compreender a atualidade?
mos, como mostra o fato de que, social-democrata do pós-guerra, que
Patrick Viveret – Os principais hoje, chefes de Estado podem se se caracteriza por três elementos:
slogans de 68 são em grande parte divorciar, viver com alguém sem um crescimento essencialmente
extraordinariamente antecipado- estarem casados ou, como o pre- material, mas para todos (sem ques-
res. Por exemplo, “Chega de perder sidente francês atual, ter começa- tionamento sobre a natureza); um
a vida para ganhá-la”. Este slogan, do um relacionamento com uma modo de produção industrial; e o
escrito pela primeira vez nos muros Estado-Nação. Assim, a questão eco-
da fábrica Sochaux (“Gilda, eu amo 2 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e sociólo- lógica não é pensada em relação ao
ga alemã, de origem judaica. Foi influenciada por
você. Chega de perder nossa vida Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em consequ- modelo de crescimento; outro aspec-
para ganhá-la”), vai circular e “vi- ência das perseguições nazistas, em 1941, partiu to que não é pensado, pode-se dizer,
para os Estados Unidos, onde escreveu grande
ralizar” (como diríamos hoje), abor- parte das suas obras. Lecionou nas principais é a questão espiritual no sentido am-
universidades deste país. Sua filosofia assenta em
dando o tema da transformação do uma crítica à sociedade de massas e à sua ten- plo; e, por último, a questão global,
trabalho e do emprego, e está rela- dência para atomizar os indivíduos. Preconiza um que começa a aparecer, mas que o
regresso a uma concepção política separada da
cionado com outro grande slogan: esfera econômica, tendo como modelo de inspi- Estado-Nação não assume.
ração a antiga cidade grega. A edição 438 da IHU
“Cansados de tomar o metrô, traba- On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014, dis-
ponível em https://goo.gl/QqtQjz, abordou o tra- O grande projeto de construção
lhar e dormir (“Ras-le-bol du métro, balho da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda as para o futuro, a meu ver, diz respeito
boulot, dodo”). edições 168 da IHU On-Line, de 12-12-2005, sob
o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. às respostas para esses três anseios
Três mulheres que marcaram o século XX, dispo-
Nesse sentido, as questões levanta- nível em http://bit.ly/ihuon168, e 206, de 27-11- fundamentais, que foram instru-
das em 68 estão diante de nós, não 2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem mentalizados de forma regressiva
política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em
foram deixadas para trás. Os slogans https://goo.gl/uNWy8u. (Nota da IHU On-Line) pela revolução neoconservadora,

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TEMA DE CAPA

que, por sua vez, leva a um im- Trump 6, ao esgotamento desse IHU On-Line – O fundamenta-
passe e a um fim de ciclo. Não é modelo. lismo, em suas diferentes ver-
à toa que os dois países mais en- sões, é uma ameaça crescente?
Diante dessa situação, devemos
gajados nesse processo – o Reino
considerar a questão global, mas ofe- Patrick Viveret – Sim. Porque é
Unido com Thatcher 3 e os Estados
recendo-lhe como resposta a cida- uma resposta regressiva, mas pode-
Unidos com Reagan 4 – chegam
dania planetária, no sentido do que rosa, a outra forma de fundamenta-
hoje, com o Brexit 5 e a eleição de
Edouard Glissant chama de “mundia- lismo que é o fundamentalismo de
lidade” [ou globalidade]; a mutação mercado, para empregar a expressão
3 Margaret Hilda Thatcher (1925-2013): políti-
ca britânica, primeira-ministra do Reino Unido de tecnológica, mas mostrando que ela de Joseph Stiglitz7. Este fundamen-
1979 a 1990. Ao liderar o governo do Reino Unido, pode desembocar na lógica, por na- talismo destrói as raízes culturais,
Thatcher estava determinada a reverter o que via
como o declínio nacional de seu país. Suas políticas tureza, cooperativa do conhecimento sociais, nacionais das coletividades
econômicas foram centradas na desregulamenta-
ção do setor financeiro, na flexibilização do mer- e da informação; e uma demanda es- humanas. A tentação, então, é de
cado de trabalho e na privatização das empresas piritual alternativa à regressão iden- isolamento identitário, seja este na-
estatais. Sua popularidade esteve baixa em meio à
recessão econômica iniciada com a Crise do petró- titária e dogmática. Em suma, estas cionalista ou religioso. Isso gera hoje,
leo de 1979. No entanto, uma rápida recuperação são as três grandes questões sobre o como sempre gerou, impasses trági-
econômica, além da vitória britânica na Guerra das
Malvinas, fizeram ressurgir o apoio necessário para futuro da humanidade com as quais cos. É com a criação de um verdadei-
sua reeleição em 1983. Devido ao fato de Thatcher
ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato em deparamos: a questão ecológica re- ro movimento inverso pela cidadania
1984, de sua dura oposição aos sindicatos e de sua lativa ao futuro do nosso planeta; planetária, que respeite as diferenças,
forte crítica à União Soviética, foi alcunhada de
“Dama de Ferro”. (Nota da IHU On-Line) aquela da transformação do trabalho: integrando-as ao mesmo tempo num
4 Ronald Reagan (1911-2004): ator norte-ameri-
cano formado em economia e sociologia. Foi eleito o que vamos fazer da nossa vida?; e marco comum de direitos e respon-
governador da Califórnia em 1966, e se reelegeu a mais radical, com a revolução bio- sabilidades, principalmente no plano
em 1970 com uma margem de um milhão de votos.
Conquistou a indicação à presidência pelo Partido tecnológica: o que vamos fazer com a ecológico, que conseguiremos avan-
Republicano em 1980, e os eleitores, incomodados
com a inflação e com os americanos mantidos há nossa espécie? çar. Como afirmamos na rede inter-
um ano como reféns no Irã, o conduziram à Casa nacional Diálogos em Humanidade:
Branca. Antes de ocupar a presidência, passou 28
anos atuando como ator em 55 filmes que não en- Nosso país é a Terra e nosso povo é a
traram para a história, mas que lhe deram fama e
popularidade. Sua carreira no cinema terminou em disponível em http://bit.ly/2gazMuF; e O Brexit e a globali-
humanidade!
1964, em “The Killers”, único filme em que atuou zação, artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo, publicado por Car-
22 como vilão. (Nota da IHU On-Line) taCapital e reproduzido nas Notícias do Dia de 12-7-2016, O ano de 1968 representou uma fra-
5 Brexit: a saída do Reino Unido da União Europeia é ape- disponível em http://bit.ly/2eY4F68. Confira mais textos em
lidada de Brexit, palavra-valise originada na língua inglesa ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) tura cultural e social mundial de leste
resultante da fusão das palavras Britain (Grã-Bretanha) e 6 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre- a oeste e de norte a sul. Este desafio
exit (saída). A saída do Reino Unido da União Europeia tem sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente
sido um objetivo político perseguido por vários indivídu- dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito permanece diante de nós... ■
os, grupos de interesse e partidos políticos, desde 1973, o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi-
quando o Reino Unido ingressou na Comunidade Econô- cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton
mica Europeia, a precursora da UE. A saída da União é um no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto,
direito dos estados-membros segundo o Tratado da União perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro-
Europeia. A saída foi aprovada por referendo realizado em tecionismo norte-americano, por onde passam questões 7 Joseph Stiglitz: ex-vice-presidente do Banco Mundial
junho de 2016, no qual 52% dos votos foram a favor de econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos – Bird, foi chefe dos economistas no governo Clinton, Es-
deixar a UE. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU, na seção Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The tados Unidos, e prêmio Nobel de Economia 2001. Ele é
Notícias do Dia de seu site, vem publicando uma série de Trump Organization e fundador da Trump Entertainment autor, entre outros, dos seguintes livros, traduzidos para
análises sobre o tema. Entre elas, A alma da Europa depois Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, o português: A globalização e seus malefícios (São Paulo:
do Brexit, artigo de Roberto Esposito, publicado no jornal La riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná Futura, 2003) e Os Exuberantes anos 90 (São Paulo: Com-
Repubblica e reproduzido nas Notícias do Dia de 1-7-2016, -lo famoso. (Nota da IHU On-Line) panhia das Letras, 2003). (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- A desertificação humana e ecológica. Entrevista especial com Patrick Viveret publicada
na revista IHU On-Line, nº 469, de 3-8-2015, disponível em http://bit.ly/2InVPwb;
- “Estamos indo em direção a uma qualidade superior de humanidade”. Entrevista com
Patrick Viveret publicada nas Notícias do Dia, de 07-02-2010, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/1DeLb3C.

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TEMA DE CAPA

É indispensável recuperar o sentido dos


gestos de renovação dos anos 60
Para Enéas de Souza, a grande herança daqueles anos vem
da ideia lacaniana de não ceder do seu desejo, e isso
atravessa a subjetividade e as ações sociais
Vitor Necchi

“ A
utopia de Maio de 68 foi uma Souza entende que “foi uma época ina-
ideia de transformação social, cabada e incompleta, porque não con-
econômica, política e cultural da seguiu unir a transformação econômica
sociedade contemporânea na direção e política da classe operária com uma
de uma sociedade socialista e libertá- transformação cultural profunda”.
ria”, entende o economista Enéas de O economista acredita que “pensar
Souza. A sua hipótese é que “ela se deu a grande fecundidade daquele tempo
num momento de crise de desenvolvi- histórico, os atos fundamentais da-
mento do capitalismo”. quela época, pode dar um sentido mais
Para Souza, “ficou a utopia como uma empolgante ao tempo presente”. Ele
energia revolucionária ampla”. Na vora- ressalva que “não se trata de copiar o
gem histórica daquele tempo, sobressa- que foi feito, mas é indispensável recu-
íram “os efeitos sobre a vida cotidiana, perar o sentido dos gestos de renova-
24 que se ampliou com o questionamen- ção dos anos 60. É preciso redescobrir
to de todos os seus aspectos, desde o o tesouro dos atos e dos pensamen-
sexo até o engajamento político”. Esse tos”. No seu entendimento, a grande
universo afrontou “a sociedade antiga, herança daqueles anos “vem da ideia
onde habitavam as práticas políticas lacaniana de não ceder do seu desejo”,
congeladas, as atividades burocráticas e “essa herança atravessa a subjetivi-
ferozes, os esquemas intelectuais con- dade e as ações sociais”.
servadores e as práticas cotidianas sem
Enéas de Souza é graduado em Fi-
exuberâncias vitais”. losofia e em Ciências Econômicas e es-
Em 1968, Souza era um jovem que es- pecialista em Didática Geral e Especial
teve em Paris pouco antes da eclosão do de Filosofia pela Universidade Federal
movimento. Em entrevista concedida por do Rio Grande do Sul – UFRGS, e mes-
e-mail à IHU On-Line, lembra que os tre em Economia pela Universidade
“jovens estavam loucos para mudarem”, Estadual de Campinas – Unicamp. É
e Maio de 68 terminou quando não hou- crítico de cinema e analista membro da
ve ‘liga’ entre a cultura e a política”. Associação Psicanalítica de Porto Ale-
Do ímpeto libertário, “emergiu um gre – APPOA Trabalhou na Fundação
processo capitalista de reafirmação da de Economia e Estatística – FEE. Autor
hegemonia americana-inglesa, através de Trajetórias do Cinema Moderno e
de uma ação de corte capitalista, de en- outros textos (Porto Alegre: Da Cidade)
trada em campo das finanças, do dólar e co-autor de Cinema. O Divã e a Tela
flexível, de destruição da força operária (Porto Alegre: Artes e ofícios, junto
dos sindicatos, ou seja, com a presença com Robson de Freitas).
do neoliberalismo”. Passados 50 anos, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual foi a uto- Enéas de Souza – A utopia de e cultural da sociedade contempo-
pia de Maio de 68? E quando Maio de 68 foi uma ideia de trans- rânea na direção de uma sociedade
ela terminou? formação social, econômica, política socialista e libertária. A minha hipó-

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“A utopia de Maio de 68 foi uma ideia


de transformação social, econômica,
política e cultural da sociedade
contemporânea na direção de uma
sociedade socialista e libertária”

tese é que ela se deu num momento bém temos outro processo comple- sexo até o engajamento político. E
de crise de desenvolvimento do ca- xo: a vasta crise no sistema soviético essas realidades se afrontaram com
pitalismo. De um lado, a entrada em causada pela incapacidade do seu a sociedade antiga, onde habitavam
cena – depois do desenvolvimento capitalismo de Estado, supostamen- as práticas políticas congeladas, as
produtivo multinacional do pós- te socialista, e pelo excesso de “cen- atividades burocráticas ferozes, os
guerra e do começo da expansão fi- tralismo democrático” no desen- esquemas intelectuais conservado-
nanceira do capital – de uma crise volvimento político do movimento res e as práticas cotidianas sem exu-
na base da produção industrial com do comunismo no mundo. Assim, berâncias vitais. Os jovens estavam
a nova expansão do petróleo, de um emergiram nesse tempo crises de to- loucos para mudarem. E Maio de 68
caminho de integração entre ciên- das as ordens: política, burocrática, terminou quando não houve “liga”
cia e indústria que vai germinar nos industrial e, sobretudo, ideológica. entre a cultura e a política.
próximos 30 anos uma revolução Toda essa combustão que balança
das chamadas novas tecnologias de o processo histórico aponta o seu 25
IHU On-Line – Das ruas de
comunicação e informação. De ou- momento crítico para a França e se Maio de 1968, emanava o grito
tro lado, o prenúncio de uma futura move numa tentativa de transforma- “é proibido proibir”. Criticava-
transformação da base monetária ção global da sociedade capitalista a se o sistema, a família, a tra-
da sociedade: a passagem do dólar partir da utopia de Maio. Num sen- dição, a moral, as proibições.
-ouro para o dólar flexível, garan- tido, a tentativa de superar a distân- Que mundo emergiu desse ím-
tido pelo Estado americano, que se cia entre a política, a economia e a peto libertário?
dará em 1971. cultura; ao mesmo tempo, algo dessa
Enéas de Souza – Emergiu um
Acompanha, é claro, uma enorme utopia se espalhou por todo o mun- processo capitalista de reafirmação
derrota geopolítica americana, oriunda do. O epicentro dessa crise é Paris, da hegemonia americana-ingle-
do fracasso da guerra no Vietnã1. Na onde há uma busca de unir certa sa, através de uma ação de corte
época, se pensava inclusive na queda transformação cultural com a meta- capitalista, de entrada em campo
de seu poder hegemônico. Maio de 68 morfose do econômico e da política. das finanças, do dólar flexível, de
foi um fenômeno resultante desse en- E a fratura da utopia se dá na insu- destruição da força operária dos
voltório econômico e político dos Esta- ficiência do PCF [Partido Comunista sindicatos, ou seja, com a presen-
dos Unidos no quadro da Guerra Fria2. Francês] em compreender o movi- ça do neoliberalismo. E também
mento estudantil e intelectual e do certa incompetência soviética para
Nesse movimento histórico, tam- movimento estudantil e intelectual enfrentar os desafios geopolíticos
de pensar que o movimento cultural americanos.
1 Guerra do Vietnã: conflito armado entre 1964 e 1975
no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e desse a partida para algo maior.
do Laos, com bombardeios sobre o Vietnã do Norte. Ins- Pode-se constatar um enrijeci-
creve-se no contexto da Guerra Fria, conflito entre as po- Ficou a utopia como uma energia mento das análises econômicas,
tências capitalistas e o bloco comunista. De um lado, com-
batiam a coalização de forças incluindo Estados Unidos, revolucionária ampla. O acento se fez políticas e culturais do movimento
República do Vietnã (Vietnã do Sul), Austrália e Coreia do
Sul. Do outro, estavam República Democrática do Vietnã,
numa mudança estrutural da cultura socialista, e a quebra das reações
Frente de Liberação Nacional (FLN) e a guerrilha comunis- desde a renovação da psicanálise, da operárias, sobretudo nos sindica-
ta sul-vietnamita. A ex-URSS e a China forneceram ajuda
material ao Vietnã do Norte e ao FLN, mas não tiveram explosão das artes – principalmente tos. Apesar de tudo, encontramos a
participação militar ativa no conflito. A Guerra do Vietnã
era uma parte do conflito regional envolvendo os países do cinema – e a profunda reformu- emergência cultural como o estru-
vizinhos do Camboja e do Laos, conhecido como Segunda lação da filosofia. Nessa voragem turalismo, o movimento lacaniano,
Guerra da Indochina. (Nota da IHU On-Line)
2 Guerra Fria: nome dado a um período histórico de histórica, sobressaíram também os a expansão do cinema desdramá-
disputas estratégicas e conflitos entre Estados Unidos e
União Soviética, que gerou um clima de tensão que en- efeitos sobre a vida cotidiana, que tico e de grande espontaneidade
volveu países de todo o mundo. Estendeu-se entre o final se ampliou com o questionamento com origem da Nouvelle Vague,
da Segunda Guerra Mundial (1945) e a queda da União
Soviética (1991). (Nota da IHU On-Line) de todos os seus aspectos, desde o uma certa transformação do cine-

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TEMA DE CAPA

ma americano comercial, mutações senhor viveu em Paris. Como do espetáculo crítico. E começavam
artísticas importantes. foi esta experiência? Havia algo a emergir a psicanálise lacaniana8,
que prenunciasse os aconteci- o marxismo estruturalista com Al-
De qualquer forma, o que se viu foi
a capacidade do capitalismo de re- mentos de Maio? thusser9, as mutações filosóficas de
cuperar todas as práticas antissistê- Enéas de Souza – Foi uma expe- Foucault10, Deleuze11, o ressurgimen-
micas para o fortalecimento do sis- riência muito marcante, porque os
8 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. Re-
tema, como, por exemplo, o mundo acontecimentos foram vividos como alizou uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou
hippie. E no desenvolvimento do a necessidade de uma transforma- por eliminar vários elementos deste autor. Para Lacan,
o inconsciente determina a consciência, mas ainda as-
neoliberalismo houve um deslanche ção social profunda no nível de uma sim constitui apenas uma estrutura vazia e sem conte-
údo. Confira a edição 267 da revista IHU On-Line, de
do capitalismo financeiro e indus- totalidade dinâmica. A ebulição cul- 4-8-2008, intitulada A função do pai, hoje. Uma leitura
trial para capitalizar toda a socieda- tural era perturbadoramente fan- de Lacan, disponível em http://bit.ly/ihuon267. Sobre
Lacan, confira as seguintes edições da revista IHU On
de, sobretudo de elementos do Es- tástica. Vínhamos de uma cultura -Line, produzidas tendo em vista o Colóquio Interna-
cional A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado
tado: educação, saúde, transportes, dominada por Heidegger3, Sartre4, em dizer “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur
energia. E ultimamente, sobretudo, Merleau-Ponty5, Simone de Beau-
ton désir]?, realizado em 14 e 15 de agosto de 2009:
edição 298, de 22-6-2009, intitulada Desejo e violência,
a cultura. Com isso, o sistema ab- disponível em https://bit.ly/2HMLQAW, e edição 303,
voir6, o marxismo luckasiano7, o ci- de 10-8-2009, intitulada A ética da psicanálise. Lacan
sorveu a postura crítica.
nema neorrealista italiano, o cinema estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”?,
disponível em https://bit.ly/2KApKzk. (Nota da IHU
O neoliberalismo abafou até a ideia soviético, o cinema hollywoodiano On-Line)
9 Louis Althusser (1918-1990): filósofo marxista fran-
de passado cultural, de patrimônio cês nascido na Argélia. Aluno brilhante, foi aceito na
cultural. Um dos exemplos é a posi- 3 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua prestigiada École Normale Supérieure (ENS) em Paris,
obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática mas não pôde frequentar a escola, pois estava convo-
ção favorável de alguns grupos à des- heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), cado para a Segunda Guerra Mundial. Acabou aprisio-
Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à meta- nado na Alemanha. Permaneceu no campo até o final
truição de parcelas da cidade, uma física (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, da guerra, ao contrário dos demais soldados, que fu-
luta contra a memória da civilização. de 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, dis- giram para lutar – motivo pelo qual Althusser se puniu
ponível em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, mais tarde. Após a guerra, Althusser pôde frequentar
Hoje, existem até arquitetos que pro- intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, a ENS. Entretanto, sua saúde mental e psicológica es-
disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, tava severamente abalada, tendo, inclusive, recebido
pugnam a construção de um edifício Cadernos IHU em formação nº 12, Martin Heidegger. terapia de eletrochoques em 1947. A partir de então,
que, depois de usado, seja posto abai- A desconstrução da metafísica, que pode ser acessado Althusser sofreu de enfermidades periódicas duran-
em http://bit.ly/ihuem12, e a entrevista concedida por te o resto de sua vida. A ENS foi compreensiva à sua
xo para que aquele espaço seja ocu- Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de condição, permitindo que ele residisse em seu próprio
26 pado por outra obra. Ou seja, nada 10-5-2010, disponível em https://goo.gl/dn3AX1, inti- quarto na enfermaria, onde viveu por décadas, a não
tulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser ser em períodos de internação hospitalar. Marxista,
de memória de civilização. O mun- minimizado, na qual discute ideias de sua conferência filiou-se ao Partido Comunista Francês em 1948. No
A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e mesmo ano, tornou-se professor da ENS. Em 1946, Al-
do se usa, não se questiona, não se a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de thusser conheceu Hélène Rytmann, uma revolucionária
estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI Sim- de origem judaico-lituana oito anos mais velha. Ela foi
aprimora, joga-se no lixo como uma pósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da sua companheira até 16 de novembro de 1980, quan-
civilização do descarte, do efêmero, vida humana. (Nota da IHU On-Line) do morreu estrangulada pelo próprio Althusser, num
4 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencia- surto psicótico. As exatas circunstâncias do ocorrido
a civilização e a selvageria do digital. lista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças não são conhecidas – uns afirmam ter se tratado de
teatrais e contos. Seu primeiro romance foi A náusea um acidente; outros dizem que foi um ato deliberado.
Registra-se e apaga-se. E se vai em (1938), e seu principal trabalho filosófico é O ser e o Althusser afirmou não se lembrar claramente do fato,
frente. Do mundo libertário surgiu o nada (1943). Sartre define o existencialismo em seu en- alegando que, enquanto massageava o pescoço da
saio O existencialismo é um humanismo como a dou- mulher, descobriu que a tinha matado. A justiça con-
mundo do apagamento. trina na qual, para o homem, “a existência precede a siderou-o inimputável no momento dos acontecimen-
essência”. Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre tos e, em conformidade com a legislação francesa, foi
apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou declarado incapaz e inocentado em 1981. Cinco anos
suas teorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire mais tarde, em seu livro L’avenir dure longtemps [O fu-

“Os jovens (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a pri-


meira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi esco-
lhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou.
turo dura muito tempo], Althusser refletiu sobre o fato,
pretendendo reivindicar uma espécie de responsabili-
dade por seus atos quando do assassinato, o que ge-

estavam loucos
(Nota da IHU On-Line). rou uma polêmica entre seus correligionários e detra-
5 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): escritor e filó- tores, sobre tal responsabilidade ser filosófica ou real.
sofo líder do pensamento fenomenológico na França. Althusser não foi preso, mas foi internado no Hospital

para mudarem.
Professor da Universidade de Lyon e na Sorbone, em Psiquiátrico Sainte-Anne, onde permaneceu até 1983.
Paris. De 1945 a 1952 foi coeditor (com Jean-Paul Sar- Após esta data, ele se mudou para o norte de Paris,
tre) do jornal Les Temps Modernes. Voltando sua aten- onde viveu de forma reclusa, vendo poucas pessoas e

E Maio de
ção para as questões sociais, publicou um conjunto não mais trabalhando, a não ser em sua autobiografia.
de ensaios marxistas, em 1947, Humanisme et terreur Louis Althusser morreu de ataque cardíaco em 22 de
(Humanismo e Terror), a mais elaborada do comunis- outubro de 1990, aos 72 anos. (Nota da IHU On-Line)

68 terminou
mo soviético no final dos anos 1940. Confira a edição 10 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas
378 da revista IHU On-Line, de 31-10-2011, intitulada obras, desde a História da Loucura até a História da sexu-
Merleau-Ponty. Um pensamento emaranhado no corpo, alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte),
disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/edi- situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou-

quando não cao/378. (Nota da IHU On-Line)


6 Simone de Beauvoir (1908-1986): escritora, filósofa
existencialista e feminista francesa. Ligou-se pessoal e
cault trata principalmente do tema do poder, rompendo
com as concepções clássicas do termo. Em várias edições,
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição

houve “liga” intelectualmente ao filósofo francês Jean-Paul Sartre.


Entre seus ensaios críticos, destaca-se O segundo sexo
(1949), uma profunda análise sobre o papel das mu-
119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119;
edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/
C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da

entre a cultura lheres na sociedade; A velhice (1970), sobre o processo


de envelhecimento, no qual teceu críticas apaixonadas
sobre a atitude da sociedade para com os anciãos; e
loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em
https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí-
tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https://

e a política.”
A cerimônia do adeus (1981), uma evocação da figura goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce-
de seu companheiro de tantos anos, Sartre. (Nota da ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/
IHU On-Line) RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU
7 Georg Lukács (György Lukács, 1885-1971): filósofo em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel
húngaro, de grande importância no cenário intelectual Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a
do século 20. Em sua trajetória procurou refazer o per- Ética. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line – Entre o final curso da filosofia clássica alemã, inicialmente como crí- 11 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim
tico influenciado por Kant, depois Hegel e, finalmente, como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem
de 1967 e fevereiro de 1968, o aderindo ao marxismo. (Nota da IHU On-Line) em Bergson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções.

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

to nietzschiano12, a passagem das La Chinoise, saído em fevereiro, tinha um jornal chamado Versus,
artes plásticas da Europa para os Es- previa a irrupção de algo revolucio- publicou uma crônica de Sartre so-
tados Unidos, o teatro de Beckett13, o nário. Mas o clima parisiense era de bre a ocupação, quando a mínima
cinema novo, a bossa nova. E assim que Godard estava louco. Sim, o am- resistência de uma palavra criativa
o novo mundo eram as aulas mag- biente estava quieto e parecia um cli- nos cafés de Paris era um ato polí-
níficas de Lacan, a força sombria de ma de marasmo. Nada parecia que o tico. A resistência à ditadura era
Althusser e o término emocionante mundo ia vir abaixo. E vimos, então: muito forte, inclusive por ocasião do
de Sartre. E que profundas modifi- Godard estava certo. Por um instan- chamado “Milagre econômico”, que
cações nas relações homem-mulher, te, o raio da tempestade da renova- começou em 68-69. A resistência de-
que cheques da visão eurocêntrica ção se fez presente. Uma imagem sembocou no campo político do coti-
até as novas perspectivas chinesas. para nunca se esquecer. diano, inclusive eleitoral, e no espa-
Isto tudo estava no dia a dia, tumul- ço da guerrilha. Um pouco daquela
tuando os pensamentos, as ideias, os energia que existia no mundo a favor
corpos, as relações. Surgiram novas IHU On-Line – No final dos da liberdade e contra o mundo capi-
dimensões no cinema, na filosofia, anos 1960, vigia a ditadura mi- talista desarvorado pousou no Brasil
na psicanálise, no teatro. Mas, ape- litar no Brasil. Como se cons- e culminou no movimento das Dire-
sar dessa ebulição vasta e enorme, o tituía a vida em um país sem tas Já. O retorno da democracia foi
mundo político parecia estagnado e democracia, enquanto o mun- renovador, mas deu origem, no mé-
nada prenunciava o surgimento de do estava em ebulição, em um dio prazo, a outros graves problemas
Maio. Apenas o filme de 14Godard, tempo de questionamento e que estamos vivendo hoje.
ruptura?
Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleu-
ze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e Enéas de Souza – Aqui no Brasil,
IHU On-Line – Para a geração
singularidades. (Nota da IHU On-Line) havia uma resistência progressiva,
12 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, que viveu o Maio de 68, pas-
conhecido por seus conceitos além-do-homem, transva- popular e intelectual, contra o movi-
loração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno sados 50 anos, qual o entendi-
mento de 64. Esse nunca triunfou ide-
retorno. Entre suas obras, figuram como as mais impor- mento sobre aquele tempo?
tantes Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização ologicamente. Culturalmente era um
Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A
genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu movimento reacionário, conservador Enéas de Souza – Foi uma épo-
até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso
politicamente. E contra os avanços so- ca inacabada e incompleta, porque
27
que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzs-
che, foi dedicado o tema de capa da edição número 127 ciais. E contra a civilização. Começava não conseguiu unir a transformação
da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filó-
sofo do martelo e do crepúsculo, disponível para download também uma revolução sexual inten- econômica e política da classe operá-
em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos IHU em sa, um movimento cultural e artístico ria com uma transformação cultural
formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzs-
che, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, de grande modernização. E mesmo profunda, sobretudo na tentativa de
também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição
328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em depois, de forte repressão, o movi- desvincular a transformação socia-
http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo radical de
Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias
mento libertador continuou resistindo lista geralmente pensada de modo
de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de nas “catacumbas”. Havia mesmo uma economicista, para uma transfor-
Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do
Ciclo de Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do XI ideia de que o país estava militarmen- mação de uma sociedade econômi-
Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da te ocupado, e a semelhança da França ca, política e cultural marcada pela
vida humana. Na edição 330 da revista IHU On-Line, de
24-5-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trá- ocupada na Segunda Guerra Mundial ideia de liberdade e não submetida
gico e a afirmação da totalidade da existência, concedida
pelo professor Oswaldo Giacoia e disponível em https://
era muito falada.
goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a entre- portante referência na história da imprensa brasileira por
vista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com O jornalista Marcos Faerman15, que conta de seu trabalho como criador e editor de publica-
Danilo Bilate, disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da ções alternativas que resistiram à ditadura militar e de suas
IHU On-Line) reportagens, situadas na fronteira entre a literatura e o
13 Samuel Beckett (1906-1989): escritor e dramaturgo jornalismo. Escreveu mais de 800 reportagens para o Jor-
irlandês. Autor de uma obra bilíngue (francês e inglês), seguintes confirmaram Godard como um dos mais inven- nal da Tarde, durante 24 anos. Tornou-se conhecido pela
por vezes designada como “literatura da angústia”. Con- tivos diretores da Nouvelle Vague: Vivre sa vie (1962; Viver prática do jornalismo literário. Começou a carreira aos 17
siderado um dos escritores mais influentes do século 20. a vida), O Desprezo (1963), Bande à part (1964), Alphaville anos, quando foi contratado para trabalhar como jorna-
Fortemente influenciado por James Joyce, é considerado (1965), Pierrot le fou (1965; O demônio das 11 horas), Deux lista profissional na Última Hora, de Porto Alegre, após
um dos últimos modernistas. Como inspiração para mui- ou trois choses que je sais d’elle (1966; Duas ou três coisas levar para o jornal um manifesto estudantil. Integrou-se
tos escritores posteriores, também é considerado um dos que eu sei dela), La Chinoise (1967; A chinesa) e Week-end ao Partido Comunista Brasileiro em 1964 e, em 1967, fez
primeiros pós-modernistas. Ele é um dos escritores fun- (1968; Week-end à francesa). O cinema de Godard nes- parte da direção da Dissidência Leninista do Partido Co-
damentais no que Martin Esslin chamou de Teatro do ab- sa fase caracteriza-se pela mobilidade da câmera, pelos munista Brasileiro no Rio Grande do Sul. Em 1968, parti-
surdo. Recebeu o Nobel de Literatura de 1969. Utiliza nas demorados planos-sequências, pela montagem descontí- cipou da fundação do Partido Operário Comunista (POC)
suas obras, traduzidas em mais de 30 línguas, uma riqueza nua, pela improvisação e pela tentativa de carregar cada e, eleito para a sua direção nacional, foi destacado para
metafórica imensa, privilegiando uma visão pessimista imagem com valores e informações contraditórios. Após militar em São Paulo. No mesmo ano, ingressou no Jornal
acerca do fenômeno humano. Sua obra mais famosa é a o movimento de Maio de 1968, Godard criou o grupo de da Tarde, em São Paulo, como redator de internacional.
peça Esperando Godot. (Nota da IHU On-Line) cinema Dziga Vertov – assim chamado em homenagem Permaneceu no veículo ao longo de 24 anos, trabalhando
14 Jean-Luc Godard (1930): cineasta franco-suíço, nasci- a um cineasta russo de vanguarda – e voltou-se para o como redator, editor de Esportes, subeditor de Internacio-
do em Paris. Reconhecido por um cinema vanguardista e cinema político. Pravda (1969) trata da invasão soviética nal, coeditor do Caderno de Sábado e repórter especial.
polêmico, que tomou como temas e assumiu como forma, da Tchecoslováquia; Le vent d’Est (1969; Vento do Oriente), Durante o governo Médici (1969-1974), foi detido várias
de maneira ágil, original e quase sempre provocadora, os com roteiro do líder estudantil Daniel Cohn-Bendit, des- vezes para prestar depoimentos no Departamento de
dilemas e perplexidades do século 20. Um dos principais mistifica o western, e Jusqu’à la victoire (1970; Até a vitó- Ordem Política e Social (Dops). Acabou se afastando do
nomes da Nouvelle Vague, assim como Truffaut. A partir ria) enfatiza a guerrilha palestina. Mais uma vez, Godard POC. A partir de 1970, atuou na imprensa alternativa, que
de 1952, colaborou na revista Cahiers du Cinéma e, de- procurou inovar a estética cinematográfica com Passion fez oposição ao regime militar e discutiu temas ignorados
pois de vários curta-metragens, fez em 1959 seu primeiro (1982), reflexão sobre a pintura. Os filmes seguintes, como pela grande imprensa ou proibidos pela censura, como a
filme longo, À bout de souffle (Acossado), em que ado- Prénom: Carmen (1983) e Je vous salue Marie (1984), pro- tortura praticada contra os presos políticos, os sucessivos
tou inovações narrativas e filmou com a câmera na mão, vocaram polêmica e o último deles, irreverente em relação cortes às liberdades individuais e os debates das correntes
rompendo uma regra até então inviolável. Esse filme foi aos valores cristãos, esteve proibido no Brasil e em outros de esquerda. Foi, nesse ano, correspondente em São Paulo
um dos primeiros da Nouvelle Vague, movimento que se países. (Nota da IHU On-Line) do semanário alternativo carioca O Pasquim. Lecionou na
propunha renovar a cinematografia francesa e revaloriza- 15 Marcos Faerman (1943-1999): jornalista, administra- Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, em São Paulo, de
va a direção, reabilitando o filme dito de autor. Os filmes dor cultural e professor nascido em Rio Pardo (RS), im- 1996 até 1999. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

ao centralismo democrático de um mostra que a Arte é antecipadora da


partido único. “Foi uma época sociedade. La Chinoise, que saiu em
fevereiro de 68 na França, marcava
A doença do burocratismo da po-
lítica continuou em vários parti-
inacabada e com precisão todo um processo que

incompleta,
se encaminharia para algo revolucio-
dos de esquerda. Pensar a grande
nário. E os outros dois filmes porque
fecundidade daquele tempo his-
tórico, os atos fundamentais da-
quela época, pode dar um sentido
porque não marcam eventuais erros estratégicos
da esquerda, como em Os sonhado-
mais empolgante ao tempo pre- conseguiu res, enquanto que o filme de Phili-
ppe Garrel ressalta a presença de um
sente. Ouvir o passado, ouvir os
gestos decisivos, criativos, inven- unir a personagem que ficou marcado por
Maio, sem renovar a sua vida e sem
transformação
tivos, engenhosos daquela época
sair para outros acontecimentos.
pode ressoar nas necessidades do
presente histórico. Não se trata de
copiar o que foi feito, mas é indis- econômica IHU On-Line – Deseja acres-
pensável recuperar o sentido dos
gestos de renovação dos anos 60. e política da centar algo?

É preciso redescobrir o tesouro


dos atos e dos pensamentos.
classe operária Enéas de Souza – O importante
foram os atos fundadores de Maio:

com uma o ensaio de renovação de uma so-


ciedade marcada pelo imobilismo
IHU On-Line – A revolução se-
xual e a ideia de desinterdição
transformação político, econômico, e que não es-
cutava a volúpia de uma ambição
dos corpos e do prazer inflavam
as mentes da juventude ao final
cultural de renovação cultural de algumas
frações do social. Havia a ideia
dos anos 1960. Hoje, quando profunda” generosa de que essas transforma-
ções seriam para toda a sociedade.
28 aqueles jovens são os velhos do
presente, que balanço pode ser E, por outro lado, há que ter uma
feito desse tema? IHU On-Line – Quais filmes atitude crítica para não exaltar a
inspirados pelo Maio de 68 são revolta fácil. Há que perceber que
Enéas de Souza – A grande he- a sociedade é sempre combate.
importantes e por quê?
rança daqueles anos, a meu ver, vem Para mim, há sempre uma tensão
da ideia lacaniana de não ceder do Enéas de Souza – Três filmes me entre a civilização e selvageria.
seu desejo. Essa herança atravessa a parecem importantes sobre Maio. Benjamim18 falava de que há bar-
subjetividade e as ações sociais. Um que o antecipou fortemente: o fil- bárie em toda civilização e civili-
me de Godard, La Chinoise. E os ou- zação em toda barbárie. Há que
tros dois Os sonhadores, de Bernardo criar os instantes e o caminho de
IHU On-Line – Maio de 68 foi Bertolucci16, e Amores Constantes, de
superestimado? Philippe Garrel17. O primeiro porque em 1964. Em 1982, recebeu o Prix Jean Vigo pelo filme
L’enfant secret. Em 1994, ganhou o Perspectives du Cinéma
Enéas de Souza – Ele só é supe- Award no Festival de Cannes pelo seu film Liberté, la nuit
16 Bernardo Bertolucci (1941): cineasta e roteirista ita- (1983). Durante 10 anos, obteve grande reconhecimento
restimado quando se pensa como liano. Em 1961, trabalhou como assistente de direção no no Festival de Veneza. Em 1991, recebeu o Leão de Prata
saudade. E saudade que se ambi- filme Accattone, de Pier Paolo Pasolini. Em 1962, dirigiu por J’entends Plus la Guitare, que havia sido indicado para
La commare secca. Obteve reconhecimento com seu se- o Leão de Ouro. La Vent de la Nuit foi indicado para o Leão
cionaria fazer igual, e dessa vez, gundo filme, Antes da revolução, em que já demonstrava de Ouro em 1999. Dois anos mais tarde, Sauvage Innocen-
seu estilo político e comprometido com seu tempo. Em ce foi indicado para o Leão de Ouro e ganhou o prêmio FI-
certo. A história é sempre nova, é 1967, escreveu o roteiro de Era uma vez no oeste, um dos PRESCI. Seu filme de 2005, Amantes Constantes, recebeu o
sempre outra, embora mantenha melhores filmes de Sérgio Leone. Nos Estados Unidos, di- Leão de Prata para Melhor Diretor. (Nota da IHU On-Line)
rigiu O conformista (1970). Em 1972, lançou O último tan- 18 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. Foi
sempre a ideia de que ela é um go em Paris, considerado sua primeira obra-prima. Depois refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser captura-
de fazer 1900, um filme monumental e muito ambicioso, do pelos nazistas, preferiu o suicídio. Associado à Escola
confronto eternamente vivo. Tal- Bertolucci partiu para o drama intimista em La Luna. Em de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado
vez, se pensando bem, o ensino 1987, consagrou-se com O Último Imperador, que recebeu tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como
nove Oscars, incluindo os de melhor filme e melhor dire- pelo místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor
de Maio de 68 foi que a política, a tor. Em O céu que nos protege (1990), rodado no deserto profundo da língua e cultura francesas, traduziu para o
do Sahara, Bertolucci extraiu interpretações fantásticas de alemão importantes obras como Quadros parisienses, de
sociedade é sempre um conflito de Debra Winger e John Malkovich. Seguiram-se O Pequeno Charles Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, de Mar-
forças, em que essas estão sempre Buda e Beleza Roubada. Seus últimos filmes falam de rela- cel Proust. O seu trabalho, combinando ideias aparente-
cionamentos e sentimentos, são profundamente intimistas mente antagônicas do idealismo alemão, do materialismo
dinamicamente se transforman- como Beleza roubada e Assédio. (Nota da IHU On-Line) dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo
17 Philippe Garrel (1948): cineasta, fotógrafo, roteirista, original para a teoria estética. Entre as suas obras mais
do e continuamente em oposição. editor e produtor francês. Seus filmes já ganharam prê- conhecidas, estão A obra de arte na era da sua reprodu-
Maio é uma lição que se deve pro- mios em eventos prestigiados como o Festival de Cinema tibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de história
de Cannes e o Festival de Veneza. Teve um relacionamento (1940) e a monumental e inacabada Paris, capital do século
curar nem superestimar, nem su- de 10 anos com a cantora e atriz alemã Nico entre 1969 e XIX, enquanto A tarefa do tradutor constitui referência in-
1979, com a atriz participando em sete de seus filmes en- contornável dos estudos literários. Sobre Benjamin, con-
bestimar. A lição está na criação, tre 1972 e 1979. Pai do ator e diretor Louis Garrel e da atriz fira a entrevista Walter Benjamin e o império do instante,
não ceder quanto à ousadia da in- Esther Garrel, fruto de seu relacionamento com Brigitte concedida pelo filósofo espanhol José Antonio Zamora
Sy. Inciou sua carreira cinematográfica cedo, escrevendo à IHU On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/zamo-
venção. e dirigindo o seu primeiro filme, Lés enfants désaccordés, ra313. (Nota da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

uma civilização que se jogam pe- cidadãos, inclusive se apropriando Deus é dinheiro. Prefiro dizer, no
las coisas importantes da vida: a dos seus dados, dos seus textos, entanto, que Deus é capital e que
cultura material e espiritual, sem das suas imagens. É a era do olho suas outras duas figuras são o di-
pensar que a selvageria seja ex- absoluto. Tudo vê e, se quisermos, nheiro e a mercadoria. É a divina
purgada do mundo dos homens. A de tudo se apropria. trindade dessa sociedade de mate-
selvageria é estrutural. rialismo vulgar. Ou seja, Maio de
E na esfera cultural, o que temos
68 agora, para ser um novo maio –
Há, contudo, algo a acrescentar: é uma desvinculação do cidadão
e exitoso – terá que ser outro, um
hoje, as bases de qualquer movi- da cultura com a consequente de-
cadência da filosofia, das ciências maio do século 21, num longo en-
mento de ambição, de transforma- frentamento com a tal divina trin-
ção global, devem levar em consi- humanas, da assunção de uma re-
ligiosidade frágil, de uma medica- dade, sem perder a democracia e a
deração que, primeiro, o combate liberdade. ■
político é entre os Estados Unidos lização das questões psicanalíticas,
e a Rússia e a China, com trans- de um campo artístico em retração,
formações geopolíticas novas, por com o Estado cedendo sua política
cultural para uma política autolau- bit.ly/jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-
exemplo, como a subordinação 9-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o
datória do capital privado. E com âmbito originário de uma nova experiência, ética, política
completa do Brasil, do governo Te-
o triunfo das finanças, temos uma e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível
mer e da época da Lava Jato, ao go- em https://goo.gl/zZRChp. A edição 81 da publicação, de
nova religião, como diz Agamben19: 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exce-
verno americano. ção e a vida nua: a lei política moderna, disponível para
acesso em http://bit.ly/ihuon81. Em 30-6-16, o professor
Além disso, temos, em segun- 19 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor
da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensi-
Castor Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Foucault e
Agamben. Implicações Ético Políticas do Cristianismo, que
do lugar, uma época totalmente na Estética, e do College International de Philosophie de pode ser assistida em http://bit.ly/29j12pl. De 16-3-2016 a
Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di 22-6-2016, Ruiz ministrou a disciplina de Pós-Graduação
diferente no campo tecnológico, Macerata, Universitá di Verona e da New York University, em Filosofia e também validada como curso de exten-
cargo ao qual renunciou em protesto à política do gover- são através do IHU intitulada Implicações ético-políticas
com o mundo digital se infiltran- no estadunidense. Sua produção centra-se nas relações do cristianismo na filosofia de M. Foucault e G. Agamben.
do em todas as dimensões da vida entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, Governamentalidade, economia política, messianismo
política. Entre suas principais obras estão Homo Sacer: o e democracia de massas, que resultou na publicação da
humana, seja eliminando a base poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, edição 241ª dos Cadernos IHU Ideias, intitulado O poder
2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, pastoral, as artes de governo e o estado moderno, que pode
operária e jogando os oprimi- 2005), Infância e história: destruição da experiência e ori- ser acessada em http://bit.ly/1Yy07S7. Em 23 e 24-5-2017,
dos no campo dos serviços, seja gem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado
de exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estân-
o IHU realizou o VI Colóquio Internacional IHU – Políti-
ca, Economia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio
29
construindo uma sociedade do cias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Agamben, com base sobretudo na obra O reino e a glória.
Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boi- Uma genealogia teológica da economia e do governo (São
controle, através das câmeras de tempo Editorial, 2007). Em 4-9-2007, o sítio do Instituto Paulo: Boitempo, 2011. Tradução de: Il regno e la gloria.
vigilância, através dos aplicativos Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado Per una genealogia teológica dell’ecconomia e del governo.
de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com Publicado originalmente por Neri Pozza, 2007). Saiba mais
que dominam a vida cotidiana dos o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível em http:// em http://bit.ly/2hCAore (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- A eficiência do Estado não começa com o corte, mas com a estratégia. Entrevista espe-
cial com Enéas de Souza, publicada nas Notícias do Dia de 5-12-2016, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Io1F0z.
- A insustentável leveza do capital financeiro. Entrevista especial com Enéas de Souza,
publicada nas Notícias do Dia de 10-4-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2KJC1BJ.

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

68 foi a maior greve geral selvagem da


história da França, mas saiu vencida
Para Erick Corrêa, o significado mais profundo da crise que
explodiu há 50 anos reside no rechaço ao capitalismo e
às principais formas partidárias e sindicais
Vitor Necchi

A
evocação dos 50 anos do movi- plode em Maio-Junho de 68: um du-
mento que inflamou a França plo rechaço, simultaneamente dirigido
permite que se estabeleça uma ao sistema capitalista e às principais
relação com a atualidade brasileira, formas partidárias e sindicais (social-
“após cinco anos de uma singular con- democrata ou bolchevique) de organi-
trarrevolução sem revolução, em res- zação e representação política e econô-
posta às jornadas de junho de 2013”. mica das classes trabalhadoras”.
Para Erick Corrêa, “assim como na O que ocorreu naquele ano transfor-
França em 68, o trabalho de desqualifi- mou a realidade: “A crise redefiniu a
cação e de deslegitimação das posições dinâmica da modernização capitalista
da esquerda revolucionária durante e o panorama social e político francês
e depois da crise, realizado tanto por
das décadas seguintes”. Para Corrêa,
gaullistas como por comunistas-stali-
30 “68 foi a maior greve geral selvagem
nistas, não se distancia muito do traba-
da história da França, mas saiu ven-
lho realizado no Brasil, sobretudo entre
cida”, e essa derrota “abre o caminho
2013 e as jornadas anticopa de 2014,
para as reestruturações produtivas
feito por petistas e antipetistas, contra
posteriores”.
os movimentos sociais de base autô-
noma, como o Movimento Passe Livre No Brasil, a resistência à ditadura ins-
ou as federações anarquistas e demais taurada em 1964 impactou o teor e o
frentes populares independentes de rumo da efervescência de 1968. O regi-
partidos e sindicatos”. me de exceção colocava os contestado-
res “diante de um horizonte de expecta-
Nas duas situações, “tais posições
tivas historicamente mais rebaixado do
de certa maneira prepararam o terre-
que aquele aspirado pelos contestado-
no para uma contraofensiva da direita
res de um país como a França, que go-
que, em simbiose com os aparatos es-
zava de liberdades democráticas míni-
tatais de controle e repressão, depois
mas (todavia ausentes no Brasil), além
atingiria frontalmente todo o campo da
de um vigoroso Estado de Bem-Estar
esquerda”, avalia Corrêa, que identifi-
Social, após cerca de 20 anos de glórias
ca um risco: “No plano histórico, qua-
econômicas e expansão capitalista na
se sempre que as posições da direita e
da esquerda reformista se uniram no Europa ocidental”.
ataque às correntes minoritárias e re- Erick Corrêa é graduado, mes-
volucionárias do movimento operário, tre e doutorando em Ciências Sociais
o fascismo avançou e o autoritarismo pela Universidade Estadual Paulista
estatal instaurou-se”. - Unesp. Sua dissertação é intitulada
Ao refletir sobre os episódios trans- Guy Debord: crítica e crise da socieda-
corridos há meio século, Corrêa, em de do espetáculo. Organizou, com Ma-
entrevista concedida por e-mail à IHU ria Teresa Mhereb, o livro 68 – como
On-Line, avalia que “na radicalização incendiar um país (São Paulo: Ed.
de setores minoritários do meio estu- Veneta, 2018). Atualmente desenvolve
dantil, principalmente em Strasbourg, sua tese sobre a revolução portuguesa
Nantes e Nanterre, que reside o signi- de 1974-75.
ficado mais profundo da crise que ex- Confira a entrevista.

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“A crise redefiniu a dinâmica


da modernização capitalista e
o panorama social e político
francês das décadas seguintes”

IHU On-Line – Que forças e co, o PCF havia apoiado a repressão estudantes e trabalhadores).
pensamentos políticos compu- dos stalinistas na revolução húngara
As organizações mais originais des-
nham o cenário que antecedeu de 1956 e se recusado a aprofundar
te campo à esquerda do PCF eram
o Maio de 68 na França? a desestalinização da organização,
minúsculas, como Informação Cor-
mesmo após a morte de Stalin5 e do
Erick Corrêa – No campo in- respondência Operária (ICO, 1958-
Relatório Khrushchov6 sobre os cri-
telectual de esquerda, o marxismo 73) e a Internacional Situacionista
mes do stalinismo, além de pros-
francês da época era marcado por (IS, 1957-72), organização que rea-
seguir com o expurgo de suas cor-
uma vitalidade conferida pelo ques- lizou com êxito um esforço de con-
rentes radicais, o que explica em
tionamento, portado por correntes ciliação entre a crítica da cultura e a
parte a sensibilidade anticomunista
heterodoxas, ao conformismo e à crítica da economia política. Havia
de grande parte dos protagonistas de
ortodoxia teórica patrocinada pelo também diversos grupos da extrema
68, sobretudo dos mais jovens (entre
Partido Comunista Francês - PCF, -esquerda, de orientação pró-chine-
bem como por uma redescoberta principal trabalho filosófico é O ser e o nada (1943). Sartre
sa (maoísta) ou trotskista. 31
criativa dos textos de Marx1 que su- define o existencialismo em seu ensaio O existencialismo é
um humanismo como a doutrina na qual, para o homem, Algumas revistas, como Argu-
blinham a alienação e a subjetivida- “a existência precede a essência”. Na Crítica da razão ments e Socialisme ou Barbarie,
de revolucionária, como era o caso dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e
sociológicas. Aplicou suas teorias psicanalíticas nas bio- conduziam um trabalho de “revisão”
de Henri Lefebvre2, André Gorz3 e grafias Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). As palavras
(1963) é a primeira parte de sua autobiografia. Em 1964, do marxismo. As teses conselhistas
Jean-Paul Sartre4. No plano políti- foi escolhido para o prêmio Nobel de literatura, que recu-
sou. (Nota da IHU On-Line).
de Rosa Luxemburgo7 e de Anton
5 Josef Stalin (1878-1953): ditador soviético, líder máximo Pannekoek8 reencontravam um solo
1 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, eco- da URSS de 1924 a 1953 e responsável pela condução de
nomista, historiador e revolucionário alemão, um dos uma política nomeada como stalinismo. Chegou a estudar fértil para uma retomada dos prin-
pensadores que exerceram maior influência sobre o em um colégio religioso de Tbilisi, capital georgiana, para cípios de autonomia decisória e de
pensamento social e sobre os destinos da humanidade satisfazer os anseios de sua mãe, que queria vê-lo semi-
no século 20. A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de narista. Mas logo acabou enveredando pelas atividades controle da produção pelos próprios
autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)fi- revolucionárias contra o regime czarista. Passou anos na
losofia de Karl Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. prisão e, quando libertado, aliou-se a Vladimir Lenin e ou-
trabalhadores. Nas antípodas do
Também sobre o autor, a edição número 278 da revista tros camaradas, que planejavam a Revolução Russa. Stalin pensamento heterodoxo, Louis Al-
IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A financeiriza- ocupou o posto de secretário-geral do Partido Comunista
ção do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, da União Soviética entre 1922 e 1953 e, por conseguinte, thusser9 conduzia uma equipe de jo-
disponível em https://goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: o de chefe de Estado da URSS durante cerca de um quarto
os homens não são o que pensam e desejam, mas o que de século. Sobre Stalin, confira a entrevista concedida pelo
fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira, foi historiador brasileiro Ângelo Segrillo à edição 265 da IHU 7 Rosa Luxemburgo (1870-1919): filósofa marxista e re-
publicada na edição 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010, On-Line, Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da volucionária polonesa. Participou na fundação do grupo
disponível em http://bit.ly/2p4vpGS. A IHU On-Line pre- barbárie, analisando a obra Prezado Sr. Stalin (Rio de Ja- de tendência marxista que viria a tornar-se, mais tarde, o
parou uma edição especial sobre desigualdade inspira- neiro: Zahar, 2008), de autoria de Susan Butler, disponível Partido Comunista Alemão. (Nota da IHU On-Line)
da no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, em http://bit.ly/1j3t54H. (Nota da IHU On-Line) 8 Antonie Pannekoek (1873-1960): astrônomo e teórico
que retoma o argumento central de O Capital, obra de 6 Nikita Khrushchov (1894-1971): secretário-geral do marxista holandês. (Nota da IHU On-Line)
Marx, disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/ Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964 9 Louis Althusser (1918-1990): filósofo marxista francês
edicao/449. (Nota da IHU On-Line) e líder político do mundo comunista até ser afastado do nascido na Argélia. Aluno brilhante, foi aceito na presti-
2 Henri Lefebvre (1901-1991): filósofo marxista e soció- poder por sua perspectiva reformista e substituído na co- giada École Normale Supérieure (ENS) em Paris, mas não
logo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, nudação da URSS pelo político conservador Leonid Bre- pôde frequentar a escola, pois estava convocado para a
onde se graduou em 1920. (Nota da IHU On-Line) jnev. O chamado Discurso Secreto ou Relatório Khrushchov, Segunda Guerra Mundial. Acabou aprisionado na Ale-
3 André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco. Escreveu vá- cujo nome oficial é Sobre o culto à personalidade e suas manha. Permaneceu no campo até o final da guerra, ao
rios livros, entre eles Adeus ao proletariado (Rio de Janeiro: consequências, é uma famosa intervenção de Khrushchov contrário dos demais soldados, que fugiram para lutar
Forense Universitária, 1982), Metamorfoses do trabalho. durante o 20° Congresso do Partido Comunista da União – motivo pelo qual Althusser se puniu mais tarde. Após
Crítica da razão econômica (São Paulo: Annablume, 2003) Soviética, em 25 de fevereiro de 1956. No discurso, reafir- a guerra, Althusser pôde frequentar a ENS. Entretanto,
e Misérias do Presente, Riqueza do Possível (São Paulo: ma sua crença nos ideais comunistas, invocando as ideias sua saúde mental e psicológica estava severamente
Annablume, 2004). Realizamos uma entrevista com André de Lenin, ao mesmo tempo que critica o regime de Stalin, abalada, tendo, inclusive, recebido terapia de eletro-
Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição da revista particularmente pelos brutais expurgos de militares de choques em 1947. A partir de então, Althusser sofreu
IHU On-Line, de 2-1-2005, e na íntegra no número 31 dos alto escalão e de quadros superiores do partido e pelo cul- de enfermidades periódicas durante o resto de sua vida.
Cadernos IHU Ideias, com o título A crise e o êxodo da so- to à personalidade de Stalin. O discurso foi um marco na A ENS foi compreensiva à sua condição, permitindo que
ciedade salarial, disponível em https://bit.ly/2joRAT7. So- Era Khrushchov e um sinal da intensa disputa pela lideran- ele residisse em seu próprio quarto na enfermaria, onde
bre André Gorz também pode ser lido o texto Pelo êxodo ça soviética, na qual Khrushchov procurava desacreditar viveu por décadas, a não ser em períodos de interna-
da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho os stalinistas. Significou, também, uma mudança da linha ção hospitalar. Marxista, filiou-se ao Partido Comunista
em André Gorz, de autoria de André Langer, pesquisador oficial do Partido Comunista da União Soviética e dos seus Francês em 1948. No mesmo ano, tornou-se professor
do Cepat, publicado nos Cadernos IHU nº 5, de 2004, dis- postulados baseados no chamado stalinismo. O texto ori- da ENS. Em 1946, Althusser conheceu Hélène Rytmann,
ponível em https://bit.ly/2I54YJR. (Nota da IHU On-Line) ginal só foi publicado em sua totalidade no dia 3 de março uma revolucionária de origem judaico-lituana oito anos
4 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencialista de 1989, pela gazeta oficial do Comitê Central do Partido, mais velha. Ela foi sua companheira até 16 de novem-
francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças teatrais já no período da glasnost – abertura do regime promovida bro de 1980, quando morreu estrangulada pelo próprio
e contos. Seu primeiro romance foi A náusea (1938), e seu por Mikhail Gorbatchov. (Nota da IHU On-Line) Althusser, num surto psicótico. As exatas circunstâncias

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

vens pesquisadores encarregados de Archives européennes de sociolo- À direita e à extrema-direita do es-


esterilizar o marxismo de qualquer gie, dirigida por Raymond Aron16 pectro sociopolítico, entre gaullistas
traço de “ideologia”. e de cujo comitê de redação se des- moderados e monarquistas radicais,
tacariam Croizier (França), Ralf havia organizações, como o grupo
No campo da sociologia, especifi-
Dahrendorf17 (Alemanha) e Thomas Occident, além de revistas como Ri-
camente nos anos que antecedem
Bottomore18 (Grã-Bretanha); além varol ou Restauration Nacionale.
a explosão revolucionária de 1968,
da Communications, na qual parti-
Paris contava com pelo menos qua-
cipariam nomes como Roland Bar-
tro importantes revistas científicas:
thes19 e Morin.
a Sociologie du travail, animada
por Georges Friedmann10 e de cujo No decurso de 1968, G. Friedmann, “Os slogans
comitê de redação participariam,
entre outros, os sociólogos Michel
Morin e Touraine se destacariam nas
páginas do Le monde como os prin-
e palavras
Crozier11, Jean-Daniel Reynaud12,
Alain Touraine13 e Jean-René
cipais articulistas franceses da cri-
se sociopolítica deflagrada naquele
de ordem
Tréanton14; a Revue française de
sociologie, cuja chefia de redação
ano. Dentre as editoras que acolhe-
ram em seus catálogos e coleções
pichados
era assinada por Edgar Morin15; a as principais obras do pensamento
sociológico francês daquele período,
pelos muros
do ocorrido não são conhecidas – uns afirmam ter se
tratado de um acidente; outros dizem que foi um ato destacam-se a Plon, a Éditions du e paredes de
Seuil e a Minuit. Elas publicariam
Paris exprimiam
deliberado. Althusser afirmou não se lembrar clara-
mente do fato, alegando que, enquanto massageava
o pescoço da mulher, descobriu que a tinha matado. O Fenômeno burocrático (1963), de
A justiça considerou-o inimputável no momento dos
acontecimentos e, em conformidade com a legilação
francesa, foi declarado incapaz e inocentado em 1981.
Cinco anos mais tarde, em seu livro L’avenir dure long-
Croizier, e Os herdeiros, os estudan-
tes e a cultura (1964), de Bourdieu e uma variedade
temps [O futuro dura muito tempo], Althusser refletiu
sobre o fato, pretendendo reivindicar uma espécie de
responsabilidade por seus atos quando do assassinato,
Passeron.
incrível de
32
o que gerou uma polêmica entre seus correligionários
e detratores, sobre tal responsabilidade ser filosófica ou
real. Althusser não foi preso, mas foi internado no Hos-
br/edicao/402. (Nota da IHU On-Line)
16 Raymond Aron (1905-1983): sociólogo, filósofo e jor-
nalista francês. Doutor em Filosofia da História. Como pro-
orientações
ideológicas,
pital Psiquiátrico Sainte-Anne, onde permaneceu até fessor na Universidade de Colônia, na Alemanha, assistiu
1983. Após esta data, ele se mudou para o norte de Pa- à ascensão do nazismo. Quando a Segunda Guerra Mun-
ris, onde viveu de forma reclusa, vendo poucas pessoas dial começou, em 1939, era professor de filosofia social

em sua maioria
e não mais trabalhando, a não ser em sua autobiografia. na Universidade de Toulouse e alistou-se na Força Aérea
Louis Althusser morreu de ataque cardíaco em 22 de Francesa. Quando a França foi ocupada, Aron foi para Lon-
outubro de 1990, aos 72 anos. (Nota do IHU On-Line) dres, na Inglaterra, onde se juntou às forças do General de

de inspiração
10 Georg Friedmann (1912-2008): historiador cultural Gaulle e editou, de 1940 a 1944, o jornal do movimento de
alemão e um grande representante do diálogo entre ju- resistência, “France Libre”. No fim da guerra, em 1945, ele
deus e cristãos na Alemanha. (Nota da IHU On-Line) voltou para Paris, trabalhando como professor de socio-

socialista e
11 Michel Crozier (1922-2013): sociólogo francês. For- logia. Lecionava essa disciplina na Universidade Sorbon-
mulou as bases da análise estratégica em sociologia das ne quando aconteceram os protestos dos estudantes de
organizações. Era membro da Academia de Ciências Mo- Maio de 1968. O humanismo e liberalismo de Aron faziam
rais e Políticas da França e Diretor de Pesquisa emérito do contraponto ao existencialismo marxista de outro intelec-
CNRS. Estudou o fenômeno burocrático nas organizações
a partir do exemplo francês. Sua análise pôs a descober-
to as forças que bloqueiam a adaptação das estruturas
tual francês de sua época, Jean-Paul Sartre. Em O ópio dos
intelectuais, de 1955, criticou o conformismo de esquerda
e as tendências totalitárias dos regimes marxistas. A partir
libertária”
econômicas, políticas e sociais capazes de promoveram a da observação da realidade de sua época, o filósofo ten-
modernização das organizações. (Nota da IHU On-Line) tou explicar a atração exercida pelo marxismo sobre mui-
12 Jean-Daniel Reynaud (1926): professor de sociologia tos intelectuais europeus, com quem entrou em conflito.
francês, nascido em Lausanne. Diretor da Revista Francesa
de Sociologia (1985-1993) e cofundador da revista Socio-
Para Aron, a doutrina de Marx para a sociedade, a econo-
mia e a política parecia divorciada da evolução econômica
 
logia do Trabalho. (Nota da IHU On-Line) e social do mundo ocidental. Foi um colunista influente do IHU On-Line – Antes de o mo-
13 Alain Touraine (1925): sociólogo francês conhecido jornal Le Figaro e do semanário L’Express, onde escreveu
por sua obra dedicada à sociologia do trabalho e dos até sua morte. (Nota da IHU On-Line) vimento eclodir, havia prenún-
movimentos sociais. Tornou-se conhecido por ter sido
o pai da expressão “sociedade pós-industrial”. Seu tra-
17 Ralf Dahrendorf (1929-2009): sociólogo, filósofo e
político alemão radicado no Reino Unido. Estudou filoso-
cios dele?
balho é baseado na “sociologia de ação”, e seu principal fia, filologia clássica e sociologia em Hamburgo e Londres
ponto de interesse tem sido o estudo dos movimentos entre 1947 e 1952. Doutorou-se em Filosofia. Também fez Erick Corrêa – Sim, certamente
sociais. Touraine acredita que a sociedade molda o seu um doutorado na London School of Economics. (Nota da
futuro através de mecanismos estruturais e das suas IHU On-Line)
a agitação no meio estudantil fran-
próprias lutas sociais. (Nota da IHU On-Line) 18 Thomas Bottomore (1920-1992): importante profes- cês já apresentava sinais de radi-
14 Jean-René Tréanton (1925-2015): sociólogo francês, sor e sociólogo marxista inglês, membro do British Labour
teórico da sociologia do trabalho. Lecionou na Université Party (Partido Trabalhista Inglês). Ficou conhecido interna- calização pelo menos desde 1966.
de Lillee na École des Hautes Études Commerciales. (Nota cionalmente pela sua visão aberta, humana e antidogmá-
da IHU On-Line) tica do marxismo, que o levou a ser admirado pelo mun-
Naquele ano, um grupo de estu-
15 Edgar Morin (1921): sociólogo francês, autor da cé- do acadêmico não marxista. Foi professor de sociologia dantes da Universidade de Estras-
lebre obra O Método. Os seis livros da série foram tema da London School of Economics (1952-64), professor e
do Ciclo de Estudos sobre “O Método”, promovido pelo diretor do departamento de Sociologia na Simon Fraser burgo, por exemplo, associou-se à
IHU em parceria com a Livraria Cultura de Porto Ale- University, Vancouver (1965-67) e professor da Sussex Uni- Internacional Situacionista para
gre em 2004. Embora seja estudioso da complexidade versity até sua aposentadoria (1968-1985). Sua principal
crescente do conhecimento científico e suas interações publicação em português é o Dicionário do Pensamento denunciar uma crise geral do meio
com as questões humanas, sociais e políticas, se recusa Marxista (Rio de Janeiro, Zahar, 1988). Foi secretário da
a ser enquadrado na sociologia e prefere abarcar um Associação Internacional de Sociologia (International So- estudantil francês, em todos os
campo de conhecimentos mais vasto: filosofia, econo-
mia, política, ecologia e até biologia, pois, para ele, não
ciological Association) de 1953 a 1959. Ele foi um editor
prolífico e tradutor dos escritos de Karl Marx. Bottomore
seus aspectos (econômico, políti-
há pensamento que corresponda à nova era planetária. editou e contribuiu com várias revistas de sociologia e ci- co, psicológico, sexual e intelectu-
Além de O Método, é autor de, entre outros, A religação ências políticas. (Nota da IHU On-Line)
dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand do Brasil, 19 Roland Barthes (1915-1980): crítico literário, sociólogo al), propondo, por sua vez, alguns
2001). Confira a edição especial sobre esse pensador,
intitulada Edgar Morin e o pensamento complexo, de 10-
e filósofo francês. Entre suas obras se destacam Elementos
de semiologia (1965), Sistema da moda (1967), O Império
meios revolucionários de resolvê
9-2012, disponível em http://www.ihuonline.unisinos. dos signos (1970). (Nota da IHU On-Line) -la. Voltada contra o reformismo

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

da principal entidade representan- Posição contra os tecnocratas, um


te do sindicalismo estudantil fran- livro de crítica sociológica ao campo “A agitação no
cês, a Unef (União Nacional dos tecnocrático, mas no qual, a certa al-
Estudantes da França, equivalente tura, o então professor de sociologia meio estudantil
francês já
à UNE brasileira), tal crítica se fa- de Nanterre debocha dos situacio-
zia desde uma perspectiva revolu- nistas justamente por acreditarem e
cionária, de inspiração conselhista
e situacionista. A Associação de
difundirem a ideia de que uma con-
juntura insurrecional como aquela apresentava
Estrasburgo chegou a apresentar
uma moção de dissolução da Unef,
ocorrida em Paris, em 1871, estava
prestes a retornar à França...
sinais de
aprovada pela Associação de Nan-
tes, na assembleia geral da entida- Entre os “teóricos críticos” (ou radicalização
de, em janeiro de 1967. “marxistas ocidentais”), os filó-
sofos alemães Herbert Marcuse20 pelo menos
Em março daquele ano, estudantes
do sexo masculino, da faculdade de
e Theodor Adorno21 também não
apostavam, em suas principais desde 1966”
Nanterre, ocuparam os prédios de obras do período imediatamente
moradia destinados exclusivamente anterior a 1968 (respectivamen-
às estudantes (homens eram até en- te, O Homem Unidimensional e IHU On-Line – E os partidos e
tão proibidos de visitar os pavilhões Dialética Negativa, ambos publi- políticos, como reagiram?
femininos, sendo permitido apenas cados em 1966), em nenhuma for-
o contrário). O diretor da faculda- Erick Corrêa – Em favor da res-
ma de irrupção revolucionária das
de convocou rapidamente as forças tauração do Estado, do início ao fim
contradições sociopolíticas engen-
policiais para realizarem a desocu- da crise. Desde o período da Re-
dradas pelo capitalismo do segun-
pação dos pavilhões femininos. A sistência ao regime de colaboração
do pós-guerra, dado que as classes
polícia estava proibida de intervir no de Vichy (1940-44), o PCF detinha
que encarnavam a sua negação ha-
perímetro universitário desde a Ida- uma influência muito grande sobre
viam sido, de acordo com eles, to-
de Média. A partir de 1968, essa prá- a vida cultural e política da Fran- 33
talmente integradas ao sistema.
tica passa a acontecer normalmente ça, que até a fundação do Partido
na França. Já o situacionista Guy Debord22, em Socialista - PS, em 1971, contava
seu livro A sociedade do espetáculo, com uma esquerda não comunista
Houve ainda uma série de greves publicado em novembro de 1967, via pequena e dividida. Grosso modo,
parciais de trabalhadores ao longo na “recusa da antiga política especia- as posições do PCF se resumiram,
dos anos 1960, de diferentes seto- lizada, da arte e da vida cotidiana”, no início da crise, a apoiar vaga-
res da economia, como a greve de mente a solidariedade entre pro-
presente em movimentos de contes-
fevereiro e março de 1966, na fá- fessores, estudantes e operários,
tação radicais espalhados pelo mun-
brica da Rhodiacéta, em Besançon. mas condenando sempre a ação
do àquela altura, “o prenúncio do
Mas é na radicalização de setores dos grupos esquerdistas, como o
segundo assalto proletário contra a
minoritários do meio estudantil, 22 de Março, a IS, dentre outros
sociedade de classes” (§ 115).
principalmente em Strasbourg, grupos de orientação anarquista ou
Nantes e Nanterre, que reside o   conselhista, além daqueles comitês
significado mais profundo da cri-
de trabalhadores formados espon-
se que explode em maio-junho de 20 Herbert Marcuse (1898-1979): sociólogo alemão na-
turalizado estadunidense, membro da Escola de Frankfurt. taneamente, em bases autônomas a
68: um duplo rechaço, simultane- Estudou Filosofia em Berlim e Freiburg, onde conheceu os partidos e sindicatos que, segundo
amente dirigido ao sistema capita- filósofos e professores Husserl e Heidegger e se doutorou
com a tese Romance de artista. Algumas de suas obras: os comunistas, estavam jogando o
lista e às principais formas partidá- Razão e Revolução, Eros e Civilização, O Homem Unidi-
mensional. (Nota da IHU On-Line) jogo do governo, tomando-as como
rias e sindicais (social-democrata 21 Theodor Adorno (1903-1969): sociólogo, filósofo, elementos provocadores a serviço
ou bolchevique) de organização e musicólogo e compositor, definiu o perfil do pensamento
alemão das últimas décadas. Adorno ficou conhecido no da burguesia.
representação política e econômica mundo intelectual, em todos os países, em especial pelo
seu clássico Dialética do Iluminismo, escrito junto com
das classes trabalhadoras. Max Horkheimer, primeiro diretor do Instituto de Pesquisa
Ao final da crise, em junho, os co-
Social, que deu origem ao movimento de ideias em filo- munistas do PCF pactuariam os
sofia e sociologia conhecido como Escola de Frankfurt.
Sobre Adorno, confira a entrevista concedida pelo filósofo chamados Acordos de Grenelle que,
IHU On-Line – A intelectuali- Bruno Pucci à edição 386 da Revista IHU On-Line, intitu-
costurados pelo primeiro-ministro
lada Ser autônomo não é apenas saber dominar bem as
dade francesa foi pega de sur- tecnologias, disponível em https://bit.ly/2I5xMSv. A con- Georges Pompidou23, a burguesia, o
versa foi motivada pela palestra Theodor Adorno e a frieza
presa pela explosão das ruas? burguesa em tempos de tecnologias digitais, proferida por Ministério do Trabalho e a Confede-
Pucci dentro da programação do Ciclo Filosofias da Inter-
Erick Corrêa – Sim, com exce- subjetividade. (Nota da IHU On-Line)
22 Guy Debord (1931-1994): filósofo e sociólogo francês, 23 Georges Pompidou (1911-1974): político francês.
ção dos situacionistas. Um episódio autor de A sociedade do espetáculo – Comentários sobre a Ocupou o cargo de primeiro-ministro da França de 14 de
é exemplar nesse sentido. Em 1967, sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto) e abril de 1962 a 10 de julho de 1968 e de presidente da
fundador da Internacional Situacionista (IS). (Nota da IHU República a partir de 20 de julho de 1969 até à sua morte,
Henri Lefebvre publicou na França On-Line) em 2 de abril de 1974. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

ração Geral do Trabalho - CGT sob conflitos sociais (1991), como tam- de repressão política. A repercussão
seu controle, impôs ao movimento bém pelos franceses Luc Boltanski25 de sua morte rapidamente se espalha
grevista um duro golpe em suas as- e Ève Chiapello26 em O novo espírito por todo o país. Em março, ocorrem
pirações iniciais, canalizando seu do capitalismo (1999). as primeiras greves operárias desde
potencial revolucionário para vias 1964, em Contagem (MG) e Osasco
reformistas. Essa situação vai favo- (SP); em junho, no Rio de Janeiro,
recer um novo equilíbrio de forças IHU On-Line – No Brasil, em ocorrem os episódios da “Sexta-feira
na esquerda francesa, que a partir que as pautas da mobilização Sangrenta” e a subsequente “Passea-
de 1970 passa progressivamente a se se aproximavam e se afastavam ta dos Cem Mil”.
deslocar em favor dos socialistas. do movimento francês?
No segundo semestre, os mili-
Erick Corrêa – A resistência à tares iniciam uma contraofensiva
ditadura civil-militar instaurada em inicialmente dirigida a operários,
IHU On-Line – Jovens e ope-
1964 colocava a geração de contesta- professores, estudantes, parlamen-
rários franceses tentavam com-
dores brasileiros de 68 diante de um tares, jornalistas e artistas que se
bater o autoritarismo do Esta-
horizonte de expectativas historica- opunham ao regime. Em julho, sob
do, dos partidos políticos e dos
mente mais rebaixado do que aquele a capa paramilitar do Comando de
sindicatos. Houve transforma-
aspirado pelos contestadores de um Caça aos Comunistas - CCC, inva-
ção nessas três formas de po-
país como a França, que gozava de dem e espancam atores da peça tea-
der e de representação?
liberdades democráticas mínimas tral Roda viva, de Chico Buarque28
Erick Corrêa – Sem dúvida, a (todavia ausentes no Brasil), além (montada por Zé Celso Martinez
crise redefiniu a dinâmica da mo- de um vigoroso Estado de Bem-Es- Corrêa29), e destroem a ocupação
dernização capitalista e o panorama tar Social, após cerca de 20 anos de estudantil do prédio da Filosofia da
social e político francês das décadas glórias econômicas e expansão capi- Universidade de São Paulo - USP,
seguintes. O sucessor imediato de talista na Europa ocidental. na Rua Maria Antônia (com sal-
De Gaulle, Georges Pompidou, pro- do de mais uma vítima fatal). Em
Aqui, 68 tem início em fevereiro,
curou atenuar o dirigismo do gene- agosto, invadem o campus da Uni-
com a agitação dos secundaristas ca-
ral e moderar o estatismo vigente versidade de Brasília - UnB para
34 na chamada modernização gaullista
riocas da Frente Unida dos Estudan-
tes do Calabouço - Fuec. A luta con- aterrorizar professores e estudan-
(1945-68), dando ao empresariado tes, numa operação conjunta das
tra o aumento do preço da refeição
mais liberdade de manobra nos mer- forças de repressão (Polícia Militar,
culminaria na morte do estudante
cados domésticos e externos. Dops, Polícia Federal, SNI e Polícia
Edson Luís27, após uma ação policial
As demandas gestadas na dinâmica do Exército). Em outubro, invadem
do processo revolucionário, como das o 30° Congresso da União Nacional
como capitalismo de estado. Uma de suas teses é a teoria
mulheres e dos novos setores do tra- da classe dos gestores, que seria, no campo da teoria so- dos Estudantes - UNE e prendem
balho qualificado por maior autono-
cial marxista, uma outra classe social além da burguesia e
do proletariado. (Nota da IHU On-Line)
todos os seus dirigentes, em Ibiúna,
mia e liberdade, ignoradas pelas rígi- 25 Luc Boltanski (1940): sociólogo francês, professor na interior de São Paulo. Em dezem-
École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de
das instituições partidárias e sindicais Paris, onde foi um dos fundadores do Groupe de sociolo-
gie politique et morale. Conhecido como a figura principal
da esquerda comunista e socialista, da escola “pragmática” da sociologia francesa, corrente por invadir o restaurante. O comandante da tropa da PM,
acabaram sendo incorporadas e neu- que iniciou com Laurent Thévenot e que também é cha-
mada de teoria das “economias da grandeza” ou “sociolo-
aspirante Aloísio Raposo, atirou e matou o secundarista
Edson Luís com um tiro a queima roupa no peito. Outro
tralizadas pelo próprio capitalismo gia dos regimes de ação”. O trabalho de Boltanski influen- estudante, Benedito Frazão Dutra, chegou a ser levado ao
ciou significativamente a sociologia, a economia política hospital, mas também morreu. Temendo que a PM sumis-
vitorioso, na forma de uma inserção e a história social e econômica. (Nota da IHU On-Line) se com o corpo, os estudantes não permitiram que ele
subordinada da mulher no mercado 26 Ève Chiapello (1965): socióloga francesa. Leciona na fosse levado para o Instituto Médico Legal (IML), mas o
École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS. carregaram em passeata diretamente para a Assembleia
de trabalho e de uma desregulamen- Autora de Novo espírito do capitalismo (Martins Fontes), Legislativa do Rio de Janeiro, onde foi velado. A necropsia
escrito com Luc Boltanski. (Nota da IHU On-Line) foi feita no próprio local. (Nota da IHU On-Line)
tação predatória das legislações tra- 27 Edson Luís de Lima Souto (1950-1968): estudan- 28 Chico Buarque [Francisco Buarque de Hollanda]
balhistas. Uma tese desenvolvida de te secundarista nascido em Belém (PA), assassinado por (1944): músico, compositor, teatrólogo e escritor carioca.
policiais militares durante um confronto no restaurante Um dos mais famosos nomes da música popular brasileira
certa maneira tanto pelo português Calabouço, centro do Rio de Janeiro, no dia 28 de março (MPB), cuja discografia tem aproximadamente 80 títulos.
de 1968. Seu assassinato marcou o início de um ano tur- Ganhou fama por sua música, que comenta o estado so-
João Bernardo24 em Economia dos bulento de intensas mobilizações contra o regime militar, cial, econômico e cultural do Brasil. Começa a ter desta-
que endureceu até a decretação do AI-5. Nascido em uma que a partir de 1966, quando lançou seu primeiro álbum,
família pobre, iniciou os estudos na Escola Estadual Au- Chico Buarque de Hollanda, e venceu o Festival de Música
24 João Bernardo Maia Viegas Soares (1946): militante gusto Meira, em Belém. Mudou-se para o Rio de Janeiro Popular Brasileira com a música A banda. Autoexilou-se
político português, escritor e ensaísta autodidata. Tem se para fazer o Segundo Grau no Instituto Cooperativo de na Itália em 1969, devido ao aumento da repressão da di-
dedicado à pesquisa em torno da crítica ao capitalismo, Ensino, que funcionava no restaurante Calabouço. Em 28 tadura instalada em 1964. Venceu três Prêmios Jabuti de
tais como o fascismo e seus desenvolvimentos contem- de março de 1968, os estudantes do Rio de Janeiro esta- literatura: o de melhor romance em 1992, com Estorvo, e o
porâneos; da formação do capitalismo a partir do desen- vam organizando uma passeata-relâmpago para protestar de Livro do Ano com Budapeste, lançado em 2004, e Leite
volvimento do regime senhorial da Idade Média; do sindi- contra a alta do preço da comida no restaurante Calabou- Derramado, em 2010. (Nota da IHU On-Line)
calismo; da teoria e da prática da administração; da teoria ço, que deveria acontecer no final da tarde do mesmo dia. 29 José Celso Martinez Corrêa (1937): conhecido como
do Estado; da exploração do trabalho e dos métodos de Por volta das 18h, a Polícia Militar chegou ao local e dis- Zé Celso, é um dos nomes mais importantes do teatro
organização do trabalho; e da história do movimento persou os estudantes, que se abrigaram dentro do restau- brasileiro. Destacou-se como um dos principais diretores,
operário. Ele se filia, desde que se afastou do estalinis- rante e responderam à violência policial utilizando paus atores, dramaturgos e encenadores do Brasil. Seu traba-
mo maoísta, por volta de 1973, a uma tradição do pen- e pedras. Isso fez com que os policiais recuassem e a rua lho, encarado às vezes como orgiástico e antropofágico,
samento marxista que tem suas origens no comunismo ficasse deserta. Quando os policiais voltaram, tiros come- iniciou-se no fim da década de 1950, e se definiu na dé-
de conselhos representado por Karl Korsch, Anton Pan- çaram a ser disparados do edifício da Legião Brasileira de cada de 1960, quando Zé Celso liderou a importante Tea-
nekoek, Herman Gorter, entre outros, no início do século Assistência, o que provocou pânico entre os estudantes, tro Oficina − grupo amador formado quando integrava a
20. Apresenta uma visão crítica do capitalismo em várias que fugiram. Os policiais acreditavam que os estudantes Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. (Nota
obras, bem como do sistema soviético, qualificado por ele iriam atacar a Embaixada dos Estados Unidos e acabaram da IHU On-Line)

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bro, desferem o golpe final, com a zida em gráficas ocupadas por traba- da faculdade de Nanterre, eleito pela
decretação do Ato Institucional N° lhadores em greve, que desviavam o mídia europeia como a principal li-
5 - AI-530, que daria início aos cha- uso de seu maquinário para fins re- derança do movimento, reconhece a
mados “anos de chumbo”. volucionários. Os situacionistas ino- influência dos textos situacionistas
varam neste aspecto da propaganda na formação do movimento 22 de
Há, portanto, uma dinâmica de
política, ao desviarem os textos dos Março que, surgido em Nanterre,
aproximação e afastamento entre as
balões de histórias em quadrinhos seria um dos principais pivôs da cri-
demandas brasileiras e francesas de
de super-heróis, dando a elas uma se que em Maio de 1968 incendiaria
68. As formas de governo mais ou
nova significação (revolucionária). a Sorbonne e, na sequência, o país
menos democráticas, mais ou me-
Os slogans e palavras de ordem pi- inteiro.
nos autoritárias, vigentes na França
e no Brasil em 1968, representavam, chados pelos muros e paredes de Grosso modo, a crítica dos situa-
grosso modo, forças complementa- Paris exprimiam uma variedade in- cionistas levou a contestação social
res de um mesmo sistema complexo, crível de orientações ideológicas, em e política moderna a terrenos até
o capitalismo (ou espetáculo, nos sua maioria de inspiração socialista então protegidos da luta de classes
termos situacionistas). Tal dinâmica e libertária: anarquistas, maoístas, histórica, como a educação, a lite-
resultava, portanto, das contradi- guevaristas, situacionistas e até sur- ratura e a arte moderna, a arquite-
ções sociais, políticas e econômicas realistas. tura, o urbanismo, a publicidade e a
estruturais do sistema, globalmente comunicação. Na concepção original
 
agudizadas em 68. Nessa perspecti- de Debord, o espetáculo representa
IHU On-Line – Que crítica o
va sistêmica, as revoluções de 1968 o estágio mais avançado já atingi-
movimento fazia à sociedade
portavam um mesmo sentido antis- do pelo sistema capitalista, no qual
do espetáculo?
sistêmico, o que fazia delas partes ocorre uma colonização total da vida
constituintes de um mesmo “acon- Erick Corrêa – A crítica da so- cotidiana. A tomada de consciência
tecimento histórico-mundial” (Cf. ciedade do espetáculo foi particu- teórica dessa crise da vida cotidiana,
Immanuel Wallerstein. Os limites larmente desenvolvida pelos situ- na forma de uma crítica situacionis-
dos paradigmas do século XIX), acionistas e difundidas na Europa ta do espetáculo, era um dos princí-
como 1848. ocidental, mas também no leste pios de base da IS. Seu programa ob- 35
europeu, no norte africano, no Ja- jetivava a uma descolonização total
  pão e nos Estados Unidos, desde o da vida cotidiana.
IHU On-Line – Os estudantes final da década de 1950. Tal crítica
franceses criaram slogans mar- Em termos materialistas, Debord
se encontra sintetizada em dois li-
cantes e tingiam muros com e os situacionistas sabiam que o
vros de teoria, publicados na França desenvolvimento das forças produ-
suas frases de efeito. A disputa poucos meses antes do incêndio de
narrativa e as estratégias dis- tivas de então possibilitava a reali-
Maio-Junho de 68: A sociedade do zação de novas formas de vida que,
cursivas adotadas tiveram que espetáculo, do francês Guy Debord,
importância para a expansão contudo, permaneciam impedidas
e A arte de viver para as novas ge- pelas relações de produção capita-
do movimento e para a memó- rações, do belga Raoul Vaneigem31.
ria que se fez dele? listas. A IS defendia também uma
Esses livros exerceram influência concepção de proletariado mais
Erick Corrêa – A produção de decisiva na radicalização do meio ampliada, pluriclassista, do que
grafites, cartazes e panfletos, de in- estudantil francês no período que aquela, em vigor no século 19, que o
formação ou propaganda política, antecede a explosão de Maio, como circunscrevia aos trabalhadores das
floresce especialmente em momen- vimos. O próprio Daniel Cohn-Ben- fábricas, aos operários. Na perspec-
tos de levantes revolucionários. Em dit32, então estudante de sociologia tiva bastante heterodoxa dos situa-
68, mais especificamente no 68 fran- cionistas e de Debord em particular,
cês, tal produção gráfica tornou-se 31 Raoul Vaneigem (1934): escritor e filósofo belga, um
dos principais articuladores do movimento político e artís- a classe proletária constitui, na so-
mesmo indissociável do imaginário tico conhecido com Internacional Situacionista, durante a ciedade espetacular-mercantil, “a
década de 1960. Autor do livro A Arte de Viver Para as No-
sobre aquelas lutas. Grande parte vas Gerações (1967), que trata de forma voraz a existência imensa maioria de trabalhadores
dessa intensa literatura/iconografia no capitalismo moderno, abordando a função dos papéis
que perderam todo poder sobre o
relacionados às profissões e da inversão dos valores, fa-
revolucionária foi, inclusive, produ- zendo um apanhado geral sobre os males e as representa- uso de sua própria vida” (A socieda-
ções a que as pessoas são expostas diariamente. Ele e Guy
Debord foram cabeças do movimento situacionista. (Nota de do espetáculo, § 114).
30 AI-5 (Ato Institucional Número Cinco): decretado pelo da IHU On-Line)
general Arthur da Costa e Silva, que ocupava a cadeira de 32 Daniel Cohn-Bendit (1945): político franco-alemão.
presidente, em 13 de dezembro de 1968, foi um instru- Nasceu na França, filho de judeus alemães refugiados no
mento de poder que deu ao regime militar poderes po- país em 1933, fugidos do Nazismo. Foi líder estudantil no
líticos absolutos. A primeira consequência do AI-5 foi o movimento ocorrido em Maio de 1968, na França. Aos 14
fechamento por quase um ano do Congresso Nacional. anos, optou pela nacionalidade alemã porque não queria entre os estudantes que ocuparam a Sorbonne em 3 de
O ato representou o ápice da radicalização do regime se sujeitar ao serviço militar francês. Membro da Federa- maio. Foi, junto com Alan Geismar e Jacques Sauvageot,
de exceção e inaugurou o período em que as liberda- ção Anarquista e depois do movimento Negro e Verme- uma das principais figuras de Maio de 68. Em 21 de maio,
des individuais foram mais restringidas e desrespeitadas, lho, se definiu mais tarde como liberal-libertário. Em 1967, enquanto estava em Berlim, foi proibido de retornar à
constituindo-se em movimento final de “legalização” da enquanto era estudante de Sociologia da Universidade de França. Em 28 de maio, com o cabelo tingido e óculos es-
arbitrariedade que pavimentou uma escalada de torturas Nanterre, começa o movimento de contestação que levou curos, voltou para Sorbonne, sendo aclamado. Em maio de
e assassinatos contra opositores reais e imaginários ao re- ao Movimento de 22 de Março em 1968. Na sequência 2015, Cohn-Bendit obteve a nacionalidade francesa. (Nota
gime. (Nota da IHU On-Line) da evacuação das salas pela polícia em 2 de maio, esteve da IHU On-Line)

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Caracterizaste dois polos sucessivos, o arqueológi- da cultura e dos costumes, ocasiona-
a crise revolucionária de 1968, co e o genealógico. Trata-se de uma da pelo levante de maio-junho de 68.
na França, como renovação das conhecida divisão metodológica (ou É o caso do Movimento de Liberta-
tentativas derrotadas de re- “ruptura epistemológica”, nos ter- ção das Mulheres - MLM, formali-
volução proletária de 1917-21, mos foucaultianos), a qual corres- zado em 1970, como da Frente Ho-
ocorridas em diversos países ponde uma transição temática, das mossexual de Ação Revolucionária
europeus. Comente esta afir- reflexões sobre o saber para aque- - FHAR, fundada em 1971.
mação, por favor. las sobre o poder. O que procurei
demonstrar neste artigo é precisa-   IHU On-Line – É correto
Erick Corrêa – Sim, como tam-
mente como esse ponto de inflexão afirmar que Maio de 68
bém a revolução portuguesa de
na produção intelectual de Foucault também abriu caminho para
1974-75 e a italiana de 1968-78. Em
tem origem no processo de “politiza- ideias neoliberais, ao se
todas essas situações, as correntes
ção” deflagrado pela explosão de 68. pensar na liberdade não como
minoritárias e revolucionárias do
Argumento, porém, que para além construção humanista? Como
proletariado saíram da crise derro-
do fato de ter exercido uma influên- isso ocorreu?
tadas por suas próprias represen-
cia decisiva sobre o pensamento de Erick Corrêa – Essa leitura faz
tações sindicais e partidárias. Isso
Foucault, o movimento revolucioná- parte de uma espécie de contrar-
ocorre pela primeira vez na vitória
rio refutou o método arqueológico revolução cultural preventiva que,
do partido social-democrata alemão
empregado em seu livro de 1966, As ao falsificar a memória histórica
contra o poder dos conselhos (raete)
palavras e as coisas. Afinal, como de 68 (ocultando seus aspectos
de trabalhadores em 1918-20, num
um acontecimento histórico ligado à mais selvagens e destacando suas
processo concomitante à centraliza-
luta de classes e à práxis revolucioná- supostas características liberal-
ção do poder operada pelo partido
ria podia ser acolhido teoricamente modernizantes), pretende afas-
bolchevique russo, durante o proces-
pelo mesmo autor que, antes de 68, e tá-la do presente e confiná-la ao
so revolucionário de 1917-21, contra
de acordo com as suas exposições te- seu acabamento conclusivo no
o poder autônomo dos soviets.
óricas da década de 1960, teria con- passado, apenas como objeto de
A polêmica original entre social- siderado uma irrupção de natureza interesse de alguns especialistas,
36 democratas, bolcheviques e esquer- histórica e social como aquela um fe- entre historiadores, jornalistas e
distas (concentrada em torno de nômeno exterior e independente do cientistas sociais.
questões de princípio e táticas, como campo científico, assim como, igual-
entre massas ou chefes, conselhos ou mente, teria considerado uma teoria 68 foi a maior greve geral selva-
partidos, revolução ou reforma, em que o acolhesse como “doxológica” – gem da história da França, mas
suma, entre os paradigmas confli- isto é, “não científica” –, situando-a saiu vencida. É a derrota da revo-
tantes da autonomia proletária e da no campo da ideologia? lução de 68 que abre o caminho
representação proletária), transcor- para as reestruturações produtivas
rida no primeiro quarto do século 20, posteriores. A crítica radicalmente
será reposta em jogo e atualizada sob IHU On-Line – Os movimentos centrada na questão do Estado par-
as novas condições do capitalismo do sociais foram influenciados pela tia antes de um ponto de vista pro-
segundo pós-guerra, pelas tendên- efervescência de Maio de 68? letário (e de inspiração anarquista,
cias conselhistas que retornam com Erick Corrêa – Certamente. conselhista ou situacionista), mas
muita força a partir da crise do mo- Ocorre que tais tendências, como jamais de um ponto de vista liberal
vimento comunista internacional (de o movimento feminista, LGBT ou ou neoliberal. Essa elaboração en-
1956-57), tanto em países do leste eu- ecologista, apesar de já atuarem na viesada parece ter sido introduzida
ropeu como Hungria, Polônia, China França de modo embrionário no pe- na França nos anos 1980, por inte-
ou Alemanha oriental, como também ríodo pré-68, só passam a formalizar lectuais conservadores como Luc
nos países ocidentais, como França, suas organizações no pós-68, depois Ferry34 e Alain Renaut35, responsá-
Itália, Espanha e Portugal. que ocorre uma abertura, nos planos veis pela popularização da engano-
sa expressão pensamento 68 que,
alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), segundo eles, estaria presente nas
IHU On-Line – Em um arti- situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou-
cault trata principalmente do tema do poder, rompendo
go, trataste da repercussão de com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, 34 Luc Ferry (1951): filósofo francês, foi ministro da Edu-
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição cação na França, autor de O que é uma vida bem-sucedida
Maio de 68 no pensamento de 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; (São Paulo: Difel, 2004). Com Marcel Gauchet escreveu Le
Michel Foucault. Que impacto edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ religieux après la religion (O religioso após a religião. Paris:
C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da Grasset. 2004). Com André Comte-Sponville, escreveu A
foi esse? loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em sabedoria dos modernos (São Paulo: Martins Fontes, 1999).
https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí- (Nota da IHU On-Line)
Erick Corrêa – A produção teóri- tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https://
goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce-
35 Alain Renaut (1948): professor emérito de Filoso-
fia Política na Universidade de Paris IV – Sorbonne. Au-
ca de Michel Foucault33 se divide em ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/ tor de vários ensaios que renovaram a compreensão da
RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU modernidade, entre eles A Era do Indivíduo; Alter ego: os
em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Paradoxos da Identidade; A Libertação das Crianças e os
33 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a cinco volumes da História da Filosofia Política. (Nota da
obras, desde a História da Loucura até a História da sexu- Ética. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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teorias de autores historicamen- IHU On-Line – E a direita, se al conjectura do Brasil e do


te ignorados pelos contestatários apropriou das perspectivas de mundo?
de 68, como Foucault e Bourdieu. Maio de 68?
Erick Corrêa – Sem dúvida.
Sabe-se, entretanto, que a ação
Erick Corrêa – Historicamente, Mais do que cíclica, a história é in-
dos contestatários de 68 era mui-
a direita se apropria das novas for- finita, o que quer dizer que ela não
to inspirada pela literatura de es-
mas e métodos de luta e organização se repete, simplesmente, mas conti-
querda, dos clássicos, como Marx e
construídos pela esquerda, mais do nua. O que nos liga ao 68 francês é
Engels36, Lenin37, Rosa, Trotsky38,
que de suas perspectivas, aspirações precisamente o fato de que, a partir
Pannekoek, Korsch39, aos contem-
e expectativas. Foi assim que o fas- daquelas jornadas, isto é, na reação
porâneos, como Sartre, Mao40,
cismo italiano se apropriou da forma a elas, a distinção clássica entre Es-
Marcuse, Lefebvre, Debord, Rei-
de organização do partido bolchevi- tado de Direito e Estado de Exceção
ch41, Vaneigem, Débray42, Negri43.
que russo, que a extrema-direita es- como antíteses inconciliáveis passa
tadunidense se inspirou nas formas a perder seu sentido histórico. As
de luta do seu principal oponente, o soluções encontradas pela Quinta
36 Friedrich Engels (1820-1895): filósofo alemão que,
junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo cientí-
Black Lives Matter, nas manifesta- República francesa para um desfe-
fico ou comunismo. Ele foi co-autor de diversas obras com ções racistas de Charlottesville, em cho que lhe fosse favorável no com-
Marx, entre elas Manifesto Comunista. Grande companhei-
ro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda 2017, e que o Movimento Brasil Livre bate à radicalização proletária que
análise social. (Nota da IHU On-Line) - MBL incorporou, a partir de 2016, se anuncia na crise de maio-junho
37 Lenin [Vladimir Ilyich Ulyanov] (1870-1924): revolu-
cionário russo, responsável em grande parte pela execu- não somente parte da nomenclatura de 68 combinou elementos coerciti-
ção da Revolução Russa de 1917, líder do Partido Comu-
nista e primeiro presidente do Conselho dos Comissários da sua organização, como também vos e coesitivos que dariam origem
do Povo da União Soviética. Influenciou teoricamente os
partidos comunistas de todo o mundo. Suas contribuições
alguns métodos de luta usados pelo a um novo ciclo histórico, marcado
resultaram na criação de uma corrente teórica denomina- Movimento Passe Livre - MPL du- pela fusão entre as máfias, os Esta-
da leninismo. (Nota da IHU On-Line)
38 Leon Davidovich Trotsky (1870-1940): revolucionário rante as jornadas de junho de 2013. dos e mercados, pela mentira como
bolchevista e intelectual marxista, político influente na técnica de governo normal das de-
União Soviética. Com Joseph Stalin, na União Soviética dos Na França pós-68, será apenas
anos 1920, foi expulso do Partido Comunista e deporta- mocracias contemporâneas, pela
do da União Soviética. Foi assassinado no México por um nas eleições de 1986 que a direita
imposição de um estado de violên-
agente soviético a mando de Stalin. Frida Kahlo e Diego conquista uma maioria parlamen-
Rivera hospedaram Trotsky em sua estadia no México. As cia permanente, além do crescente 37
ideias de Trotsky constituem a base da teoria comunista tar, liderada pela Frente Nacional
do trotskysmo. (Nota da IHU On-Line) poder de influência do segredo e
39 Karl Korsch (1886-1961): filósofo alemão, professor de Jean-Marie Le Pen44, após duas
dos serviços secretos nos arranjos
universitário, representante do chamado “marxismo oci- décadas de contrarrevolução, num
dental” e do “comunismo de conselhos”. (Nota da IHU estatais (esse é o diagnóstico feito
On-Line) contexto, portanto, de baixíssima
40 Mao Tsé-Tung: (1893-1976): ditador, político, teórico, pelo situacionista Guy Debord em
líder comunista e revolucionário chinês. Liderou a Revo-
sindicalização, de desarticulação e
1988, em seus importantes, porém
lução Chinesa e foi o arquiteto e fundador da República desmobilização das classes traba-
Popular da China, governando o país desde a sua criação pouco lidos Comentários sobre a
em 1949 até sua morte em 1976. Sua contribuição teórica lhadoras (com o refluxo dos movi-
para o marxismo-leninismo, suas estratégias militares e sociedade do espetáculo).
políticas comunistas são conhecidas coletivamente como
mentos grevistas e a desativação da
maoísmo. Chegou ao poder comandando a Longa Mar- luta de classes revolucionária), como Eis o fio que nos conduz da Fran-
cha, formando uma frente unida com Kuomintang (KMT)
durante a Guerra Sino-Japonesa para repelir uma invasão também de um eclipse intelectual da ça de 1968 ao Brasil de 2018, após
japonesa e, posteriormente, conduzindo o Partido Comu-
nista Chinês até a vitória contra o generalíssimo Chiang
esquerda, marcado pelo abandono cinco anos de uma singular con-
Kai-shek do KMT na Guerra Civil Chinesa. (Nota da IHU do marxismo e pela vigência de um trarrevolução sem revolução, de-
On-Line)
41 Wilhelm Reich (1897-1957): psiquiatra e psicanalista vácuo ideológico em que predomina- sencadeada em resposta às jorna-
austríaco, discípulo de Freud. (Nota da IHU On-Line)
42 Régis Debray (1940): filósofo, jornalista, escritor e pro-
vam as vozes conservadoras do neo- das de junho de 2013. Assim como
fessor francês. Doutorou-se na Escola Normal Superior liberalismo ortodoxo, do racismo, do na França em 68, o trabalho de
de Paris. Foi seguidor do marxista Louis Althusser. Amigo
de Fidel Castro e de Ernesto Che Guevara, nos anos 1960 nacionalismo e do paternalismo. desqualificação e de deslegitimação
acompanhou Che na guerrilha, especialmente na Bolívia, das posições da esquerda revolu-
onde foi preso em 1967 junto com Irineu Guimarães. Nes-
se mesmo ano, escreveu sua primeira obra, A revolução cionária durante e depois da crise,
na revolução. Em 1968, a repercussão desse livro na ju- IHU On-Line – As efemérides realizado tanto por gaullistas como
ventude brasileira acabou resultando no engajamento na
luta armada contra a ditadura militar por parte de muitos são momentos de celebrar da- por comunistas-stalinistas, não se
jovens. Pertenceu ao Partido Socialista Francês, do qual
se distanciou por diferenças ideológicas com o ex-presi-
tas e de reinterpretá-las. Para distancia muito do trabalho realiza-
dente François Mitterrand. Debray é criador da midiologia além disso, a evocação de 1968 do no Brasil, sobretudo entre 2013 e
– estudo crítico dos signos e de sua difusão na sociedade.
Leciona no departamento de Filosofia da Universidade de pode sugerir algumas chaves as jornadas anticopa de 2014, feito
Lyon. Foi o primeiro presidente do Instituto Europeu de Ci-
ências das Religiões e membro da Comissão Stasi, que deu
para compreensão da atu- por petistas e antipetistas, contra os
origem às leis francesas sobre secularização e ostentação movimentos sociais de base autôno-
de símbolos religiosos nas escolas em 2003. (Nota da IHU
On-Line) ma, como o Movimento Passe Livre
43 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. 44 Jean-Marie Le Pen (1928): é um político francês. Pre-
Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana sidiu, até janeiro de 2011, a Frente Nacional, partido na- ou as federações anarquistas e de-
de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectu-
ais italianos. Em 2000, publicou o livro-manifesto Império
cionalista francês mais à direita no espectro político do
país. Foi substituído na liderança do partido por sua filha,
mais frentes populares independen-
(Rio de Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, Marine Le Pen. É conhecido por defender políticas radicais tes de partidos e sindicatos.
publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império visando a diminuir a violência e o desemprego na Fran-
(Rio de Janeiro/São Paulo: Record), também com Michael ça, entre elas a volta da pena de morte, maior restrição
Hardt – sobre esta obra, a edição 125 da IHU On-Line, de à entrada de imigrantes na França e uma maior autono-
Aqui como lá, tais posições de certa
29-11-2004, publicou um artigo de Marco Bascetta, dis- mia política e legislativa da França em relação às decisões maneira prepararam o terreno para
ponível em https://goo.gl/9rjlQw. (Nota da IHU On-Line) emanadas da União Europeia. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

uma contraofensiva da direita que, movimento estudantil na faculdade de Nanterre e fundado no dia 22 de
em simbiose com os aparatos esta- de Nanterre foi um dos elementos março de 1968: “Nesta quinta-feira
tais de controle e repressão, depois detonadores da crise revolucionária ocorrerá a comemoração do Maio de
atingiria frontalmente todo o cam- de maio-junho de 1968 na França. 68, uma ocasião para a universidade
po da esquerda, até mesmo as suas Desde 1978, a cada decênio, repõe- de Nanterre se reapropriar da me-
variantes mais reformistas e conci- se uma situação de disputa pela me- mória de um movimento cujos prin-
liadoras (como o Partido Comunista mória daquele episódio. Contudo, cípios, no entanto, ela rejeita pela
lá e o Partido dos Trabalhadores cá). entre as dezenas de interpretações aplicação de uma política neoliberal.
Uma contraofensiva que prefigura acadêmicas, jornalísticas, político Essa comemoração é uma afronta,
uma situação de desconstrução da -partidárias, produzidas há 50 anos não somente à memória das lutas que
seguridade social e de retração das sobre aquele evento extraordinário, se comemoram, como se elas per-
liberdades democráticas básicas. No não há nenhuma mais apta a reco- tencessem apenas ao passado, mas
plano histórico, quase sempre que nhecer a natureza histórica real da igualmente porque se trata de uma
as posições da direita e da esquer- revolução de 68 do que aquela que recuperação hipócrita quando nosso
da reformista se uniram no ataque se coloca desde o ponto de vista dos direito aos estudos não para de recu-
às correntes minoritárias e revolu- protagonistas da luta que se desen- ar. Enquanto participam ativamente
cionárias do movimento operário, o rola sob os nossos olhos em 2018. da privatização da universidade pela
fascismo avançou e o autoritarismo Eis um trecho que selecionei de um Lei Vidal, eles comemoram um mo-
estatal instaurou-se. panfleto produzido por estudantes vimento que aspirava a uma universi-
de Nanterre contrários à realização dade popular, crítica, aberta a todas e
 
de um evento ocorrido na faculdade todos. Na verdade, não é Maio de 68
IHU On-Line – Deseja acres-
local, no dia 22 de março de 2018, que eles comemoram, mas a sua vi-
centar algo?
em “comemoração” ao primeiro cin- tória sobre Maio de 68” (Estudantes
Erick Corrêa – Comentei, no iní- quentenário de 68 e, especialmente, reunidos em comitê de mobilização
cio da entrevista, o fato de que a agi- ao movimento construído por jovens na Universidade Paris-Nanterre em
tação das alas mais radicalizadas do marxistas e libertários no campus 20 de março de 2018). ■
38

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Legado mais evidente de 68 foi o


deslocamento da liderança estudantil
para a luta armada no Brasil
Para Maria Paula Araújo, trata-se de um ano mítico porque
explodiram revoltas de jovens, de artistas e do
operariado em vários lugares do mundo
Vitor Necchi

A
lém da evidência decorrente se associou às lutas dos negros por di-
da efeméride, os 50 anos dos reitos civis”, como os Panteras Negras e
acontecimentos relativos a 1968 a juventude universitária se recusando
ganham mais relevância por conta do a ir para a Guerra do Vietnã.
atual momento “tão ruim de avanço
No Brasil, por conta da ditadura mili-
das forças conservadoras”, com a extre-
tar, novas pautas demoraram a chegar.
ma-direita ganhando espaço, observa a
O AI-5, em 1968, proibiu manifestações
historiadora Maria Paula Nascimento
e tolheu a ação política. “O que fazer
Araújo. “O mundo passa por uma expe-
com aquela energia toda?”, questiona, 39
riência tão conservadora que me parece
em referência aos estudantes que to-
muito natural que 68 galvanize, mais
maram as ruas. “Essa energia gigantes-
do que nunca, essa metáfora da revolu-
ca foi sufocada. Não é à toa que a mi-
ção, da utopia.”
litância de luta armada se formou com
Araújo, em entrevista concedida por jovens universitários e secundaristas.”
telefone à IHU On-Line, afirma que Araújo destaca que “o legado mais evi-
1968 é um ano mítico e simbólico por-
dente na época, no final de 68 e início
que explodiram revoltas de jovens, de
de 69, foi o deslocamento da liderança
artistas e do operariado em vários luga-
estudantil das ruas para a luta armada”.
res do mundo e porque se tornou uma
referência para muita gente que teve a Maria Paula Nascimento Araújo
juventude marcada por esse movimen- é doutora em Ciência Política pelo Ins-
to. No entanto, a professora entende tituto Universitário de Pesquisas do Rio
que não houve um 1968, mas vários, de Janeiro - IUPERJ, mestra em His-
com conteúdos diferentes. tória pela Universidade Federal Flumi-
nense - UFF e graduada em História
Na França, havia abundância e se de-
pela Pontifícia Universidade Católica
mandava “o impossível, a imaginação
no poder”. Nos Estados Unidos, “ape- do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É profes-
sar de ser um país de abundância, o sora da Universidade Federal do Rio de
movimento de 68 tem uma radicalida- Janeiro - UFRJ.
de muito grande porque uma parte dele Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que 1968 é Maria Paula Nascimento de, com muita força do movimen-
um ano mítico e simbólico? Por Araújo – Porque foi um ano em to estudantil, de jovens artistas e
que se tornou sinônimo de ju- que, em vários lugares do mundo, também do operariado. 1968 não
ventude e rebeldia? explodiram revoltas de juventu- foi apenas um movimento de estu-

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

dantes, mas teve muita força dos mento teve outra conotação. Não diferente. Num certo sentido, Oc-
jovens, então acabou ficando míti- era uma ditadura, mas o país vivia tavio Paz coloca esses movimentos
co. Também porque é uma referên- um regime mais autoritário, então que surgiram no mundo socialista
cia para muita gente que teve a sua reivindicavam as liberdades que, ao também como de rebelião em con-
juventude marcada por esse mo- longo dos anos, o México tinha es- juntura de escassez. Eram países
vimento. Foi um mito construído vaziado. Lá 68 ficou muito marcado dominados pelo stalinismo que
porque permitia essa articulação por um episódio de muita violência, não primavam por liberdades de-
no mundo. conhecido por Massacre de Tlatelol- mocráticas. A Primavera de Praga
co2. O exército e atiradores estavam teve uma simbologia enorme. As
IHU On-Line – Fala-se em
em locais estratégicos e acabaram pessoas acharam na época que de
1968 como se fosse apenas um,
com uma manifestação estudantil dentro do mundo socialista surgi-
no entanto, não seria mais cor-
com muita violência. ria uma nova revolução demandan-
reto pensar na ocorrência de
do liberdade, valorização dos seres
vários 1968? 68 tem grandes símbolos. Maio,
humanos e suas subjetividades. A
na França, é um deles, mas a Prima-
Maria Paula Nascimento Primavera de Praga foi um símbolo
vera de Praga3 é outro, totalmente
Araújo – Este é um ponto que eu muito grande, mas reprimido pelos
defendo, sem dúvida. Até porque tanques soviéticos.
2 Massacre de Tlatelolco: ocorrido durante a tarde e a
os movimentos que aconteceram noite de 2 de outubro de 1968 na Plaza de las Tres Cultu- Diferentemente da França – onde,
foram diferentes. Há inclusive al- ras, no bairro Tlatelolco, Cidade do México, dez dias antes
do início dos Jogos Olímpicos disputados na cidade. Até no quadro da abundância, deman-
guns autores que ressaltam essa hoje, o verdadeiro número de mortos permanece incerto:
algumas fontes apontam para mais de mil, mas a maioria davam o impossível, a imaginação
diferença, assim como outros res- oscila entre 200 e 300, enquanto fontes governamentais no poder –, nos Estados Unidos,
saltam as semelhanças. Podemos se referem a 40 mortos e 20 feridos. Ocorreram milhares
de detenções. O massacre foi precedido por vários meses apesar de ser um país de abundân-
analisar tanto pelas diferenças de instabilidade política na capital, eco das manifestações
e revoltas estudantis ocorridas em outros países. Os estu- cia, o movimento de 68 tem uma
quanto pelas semelhanças, e ambas dantes mexicanos pretendiam explorar a atenção do mun- radicalidade muito grande porque
as situações são interessantes para do, focada na Cidade do México por ocasião dos Jogos
Olímpicos de 1968. No entanto, o presidente Gustavo Díaz uma parte dele se associou às lutas
um historiador. Octavio Paz1 faz Ordaz Bolaños estava determinado a pôr fim aos protestos
dos negros por direitos civis, como
uma distinção dos movimentos de estudantis, e em setembro ordenou ao exército que ocu-

40 passe o campus da Universidade Nacional Autónoma do os Panteras Negras4, que têm uma
68 que apareceram em países mais México - Unam. Os estudantes foram espancados e deti-
dos de forma indiscriminada. Em forma de protesto contra força grande nisso. E tinha um mo-
desenvolvidos, como na Europa, esta situação, o reitor da Unam, Javier Barros Sierra, demi-
vimento radical da juventude uni-
que ele chama de movimentos da tiu-se em 23 de setembro. Os protestos estudantis não es-
moreceram. As manifestações aumentaram de proporção versitária se recusando a ir para a
abundância, e outros, como no Mé- até que, no dia 2 de outubro, e após greves estudantis que
se prolongaram por nove semanas, 15 mil estudantes de Guerra do Vietnã5, rasgando as car-
xico e no Brasil, que são movimen- várias universidades ocuparam as ruas da Cidade do Mé-
tos surgidos em países ditatoriais, xico, ostentando cravos vermelhos como sinal de protesto
contra a ocupação militar da Unam. Quando anoiteceu, normalização. Os líderes seguintes tentaram restaurar os
marcados pela escassez de liber- cerca de 5 mil estudantes e trabalhadores, muitos deles valores políticos e econômicos que prevaleciam antes de
acompanhados das mulheres e filhos, haviam-se congre- Dubček ganhar poder no Partido Comunista da Tchecos-
dades. Há tipologias, como essa, e gado no exterior de um bloco de apartamentos situado lováquia. Gustáv Husák, que substituiu Dubček e também
há outras coisas que podemos ob- na Plaza de las Tres Culturas, em Tlatelolco, para o que se tornou presidente, retirou quase todas as reformas. A
deveria ser uma manifestação pacífica. O massacre teve Primavera de Praga imortalizou-se na música e na litera-
servar a partir dos próprios movi- início ao pôr-do-sol, quando forças do exército e da polí- tura pelas obras de Karel Kryl e de Milan Kundera, como
mentos. Por exemplo: 68 em Paris cia, equipadas com carros blindados e tanques, cercaram o romance A insustentável leveza do ser. (Nota da IHU
a praça e começaram a abrir fogo contra a multidão. Em On-Line)
foi um movimento muito forte de pouco tempo, os corpos amontoavam-se na praça. A ma- 4 Panteras Negras (em inglês, Black Panther Party ou
tança continuou pela noite adentro, quando os militares BPP): originalmente denominado Partido Pantera Negra
estudantes que se aproximaram de efetuaram operações de busca nos apartamentos junto à para Autodefesa (em inglês, Black Panther Party for Sel-
operários de algumas fábricas, mas praça. Em outubro de 1997, o Congresso mexicano criou
uma comissão para investigar o massacre. O ex-presidente
f-Defense), foi uma organização política extraparlamentar
socialista revolucionária norte-americana ligada ao nacio-
eles reivindicavam coisas como a da república Luis Echeverría Álvarez, ministro do interior nalismo negro. Fundada em 1966, na cidade de Oakland,
em 1968, admitiu que os estudantes estavam desarmados Califórnia, por Huey Newton e Bobby Seale, a organização
imaginação no poder, diziam “você e sugeriu que a ação militar fora planejada com o obje- permaneceu ativa até 1982. A finalidade original da orga-
pode desejar o impossível” – e por tivo de destruir o movimento estudantil. (Nota da IHU nização era patrulhar guetos negros para proteger os resi-
On-Line) dentes dos atos de brutalidade da polícia. Posteriormente,
isso Octavio Paz falava em movi- 3 Primavera de Praga: movimento ocorrido na Tchecos- os Panteras Negras tornaram-se um grupo revolucionário
lováquia, durante a época de sua dominação pela União marxista que defendia o armamento de todos os negros, a
mentos da abundância. Podiam Soviética após a Segunda Guerra Mundial, que buscou isenção dos negros de pagamento de impostos e de todas
reivindicar isso porque já tinham implantar reformas liberalizantes, em contrariedade ao as sanções da chamada “América Branca”, a libertação de
socialismo centralizador e conservador soviético. Come- todos os negros da cadeia e o pagamento de indeniza-
coisas básicas, como uma demo- çou em 5 de janeiro de 1968, quando o reformista eslo- ções aos negros por “séculos de exploração branca”. A ala
vaco Alexander Dubček chegou ao poder, e durou até 21 mais radical do movimento defendia a luta armada. Em
cracia mais consolidada. Por ter de agosto, quando a União Soviética e os membros do seu pico, nos anos de 1960, o número de membros dos
abundância, podiam reivindicar o Pacto de Varsóvia (bloco militar dos países socialistas do Panteras Negras excedeu 2 mil, e a organização coorde-
leste europeu) invadiram o país para interromper as refor- nou sedes nas principais cidades. (Nota da IHU On-Line)
impossível. mas. O movimento foi uma tentativa de Dubček, aliado a 5 Guerra do Vietnã: conflito armado entre 1964 e 1975
intelectuais tchecoslovacos, de conceder direitos adicio- no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e
No México, por exemplo, o movi- nais aos cidadãos num ato de descentralização parcial da do Laos, com bombardeios sobre o Vietnã do Norte. Ins-
economia e de democratização. As reformas concediam creve-se no contexto da Guerra Fria, conflito entre as po-
também um relaxamento das restrições às liberdades de tências capitalistas e o bloco comunista. De um lado, com-
imprensa, de expressão e de movimento. Dubček dividiu batiam a coalização de forças incluindo Estados Unidos,
1 Octavio Paz (1914-1998): poeta, ensaísta, tradutor e di- o país em duas repúblicas separadas – essa foi a única República do Vietnã (Vietnã do Sul), Austrália e Coreia do
plomata mexicano, notabilizado, principalmente, por seu reforma que sobreviveu ao fim da Primavera de Praga. As Sul. Do outro, estavam República Democrática do Vietnã,
trabalho prático e teórico no campo da poesia moderna reformas não foram bem recebidas pelos soviéticos, que Frente de Liberação Nacional (FLN) e a guerrilha comunis-
ou de vanguarda. Recebeu o Nobel de Literatura de 1990. enviaram tropas e tanques do Pacto de Varsóvia para ocu- ta sul-vietnamita. A ex-URSS e a China forneceram ajuda
Escritor prolífico cuja obra abarcou vários gêneros, é con- par o país. Aconteceram inúmeros protestos pacíficos no material ao Vietnã do Norte e ao FLN, mas não tiveram
siderado um dos maiores escritores do século 20 e um país, inclusive o suicídio de um estudante, mas não houve participação militar ativa no conflito. A Guerra do Vietnã
dos grandes poetas hispânicos de todos os tempos. (Nota resistência militar. A Tchecoslováquia continuou ocupada era uma parte do conflito regional envolvendo os países
da IHU On-Line) até 1990. Após a invasão, o país entrou em um período de vizinhos do Camboja e do Laos, conhecido como Segunda

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REVISTA IHU ON-LINE

tas de convocação. Era uma radi- Vamos ao Brasil, com 68 marcada- as manifestações têm um tom mais
calidade grande, mas diferente da mente estudantil, mas não apenas. anárquico, libertário. Os militantes
que houve no México e no Brasil. Houve as greves operárias de Osas- do Partido Comunista Francês criti-
Uma radicalidade, eu diria, dentro co, São Paulo, e de Contagem, em caram muito 68, viam como se fosse
da conjuntura de um país abun- Minas Gerais. Temos que lembrar uma revolta juvenil, inconsequente,
dante, mas que quer consolidar sua que no Brasil, em 68, havia uma face não comunista.
dimensão imperialista – foi exata- estudantil e outra operária. Os agen-
tes políticos se contrapunham à dita- São vários tipos de movimento,
mente isso que caracterizou o mo-
dura militar. com conteúdos diferentes. Por isso
vimento de 68 nos Estados Unidos.
concordo com você: o mais correto
Não foi em todo o país, concen- Esses exemplos demonstram a é chamar de as manifestações de
trou-se principalmente em Nova diversidade de 68. E tem outra 68. Depende muito da abordagem
York, Columbus, São Francisco e questão: não aconteceu tudo em que o pesquisador, o historiador, o
Washington. 68. As coisas foram acontecendo jornalista queira dar. Se for discutir
A ebulição que houve nesse pe- em 66, 67, 68 e 69. Na Argenti- os conteúdos políticos, é obrigató-
ríodo foi muito grande, por parte na, o 68 aconteceu em 69, que foi rio destacar as diferenças. Em certo
dos movimentos de contestação à o levante estudantil e operário – sentido, essas diferenças talvez se-
Guerra do Vietnã, dos movimen- assim como na França – na cida- jam o mais interessante, pois mos-
tos que incitavam a desobediên- de de Córdoba, e ficou conhecido tram a pluralidade.
cia civil para não ir à guerra, dos como El Cordobazo 8. Houve ocu-
movimentos negros nas universi- pações de fábricas e de universi-
dades. Só que em 68, nos Estados dades, greves estudantis. IHU On-Line – Nos Estados
Unidos, ainda tem outra vertente 1968 é um ano chave, mítico e metá- Unidos, em 1968 se observou a
que é o movimento hippie. O jor- fora. E é um ano síntese, porque nem mobilização de negros, mulhe-
nalista Paul Berman6, no livro A tudo aconteceu em 68. Começou um res e gays. Não é curioso que na
tale of two utopias [Encontro de pouco antes e depois segue para a França mulheres e negros ti-
duas utopias], diz que nos Estados frente. Um historiador da Unicamp, veram papel secundário, como
Unidos, na década de 60 – que cul- o Marcelo Ridenti9, comenta que o bem mostra João Moreira Sal- 41
mina, mas não se restringe a 68 –, mais correto, historiograficamente, les em seu documentário No in-
esse movimento teve, de um lado, seria falarmos na época de 68. tenso agora?
a radicalidade da contestação da
Todos esses exemplos – México, Maria Paula Nascimento
Guerra do Vietnã e do movimento
Brasil, Praga, Paris, algumas cida- Araújo – Sim. Na França, inclusi-
negro, e do outro, o movimento hi-
des dos Estados Unidos – mostram ve, as mulheres falam muito nisso,
ppie, paz e amor, espiritualidade,
uma diversidade muito grande. Em que o movimento feminista, como
a vida em comunidade, os festivais
Praga, tem uma contestação ao regi- tal, irrompe depois de 68, inclu-
de rock.
me soviético. Na França, em Paris, sive com essa constatação: onde
Algumas vezes, nos próprios festi- estavam as mulheres, por que não
vais de rock, havia pontes entre es- 8 El Cordobazo: insurreição popular ocorrida na cidade de estavam na linha de frente? Por
Córdoba, capital da província argentina de mesmo nome,
ses dois movimentos, quando, por em 29 e 30 de maio de 1969. Foi liderada por Elpidio Tor- que, apesar de toda a radicalidade
exemplo, Jimi Hendrix7 fez o solo de res e Atilio López, secretários-gerais, respectivamente, dos
sindicatos SMATA (mecânicos) e Unión Tranviarios Auto-
cultural e ideológica proposta, era
guitarra tocando o Hino dos Estados motor, e Agustín Tosco, do sindicato Luz e Força. Os tra- proposta por rapazes bem vestidos,
balhadores foram reprimidos pelas forças policiais, e um
Unidos e termina imitando o som de manifestante morreu, fato que acabou mobilizando toda de terno? Depois disso, começa a
bombardeios. Ele conjugava tudo: a cidade em busca de justiça, incluindo estudantes univer-
sitários e secundaristas. A polícia não conseguiu conter o
surgir na França um movimento de
um festival de rock, as pessoas esta- movimento, então o Exército entrou em ação, provocando mulheres.
dezenas de mortes. Parte da população, que ainda guar-
vam acampadas, dormindo juntas, dava armas usadas para derrubar Juan Domingo Perón em
era uma manifestação de amor livre. 1955, atirou contra os militares. A greve nacional iniciada
em Córdoba espalhou-se pelo país, surgindo outros mo-
Essa música é um ato político. Um vimentos como o Rosariazo e o Tucumanazo – todas ma- IHU On-Line – A efervescên-
nifestações eram identificadas com palavras terminadas
jovem músico do rock, negro, que com o sufixo “azo” e combatiam o governo ditatorial de
cia e a intensidade dos aconteci-
faz uma teatralização da contestação Juan Carlos Onganía, que realizou uma política de conge- mentos de 1968 tiveram que efei-
lamentos salariais, proibiu greves e perseguiu dirigentes
à Guerra do Vietnã. sindicais. As manifestações de 1969 e começo de 1970 to no Brasil? A ditadura tolheu o
atingiram o governo militar e foram um dos fatores que
levaram à deposição de Onganía em junho de 1970, abrin-
alcance das pautas, já que havia
Guerra da Indochina. (Nota da IHU On-Line) do espaço para uma saída eleitoral, concretizada com o necessidade de combatê-la?
6 Paul Berman (1949): jornalista e escritor norte-america- pleito de 1973. (Nota da IHU On-Line)
no especializado em política e literatura. Autor, entre ou- 9 Marcelo Siqueira Ridenti: professor de Sociologia
tros, de Terror and Liberalism, The Flight of the Intellectuals, desde 2005 na Universidade Estadual de Campinas - Uni- Maria Paula Nascimento
A Tale of Two Utopias e Power and the Idealists. (Nota da camp, onde defendeu tese de livre-docência. Graduado Araújo – As novas pautas demora-
IHU On-Line) em Ciências Sociais e em Direito e doutor em Sociologia
7 Jimi Hendrix (1942-1970): guitarrista, cantor e compo- pela Universidade de São Paulo - USP. Realizou estágio ram a chegar ao Brasil. Em 66, 67 e
sitor norte-americano. Frequentemente é citado por críti- pós-doutoral na EHESS, Paris. Autor de Brasilidade revolu-
cos e outros músicos como o maior guitarrista da história cionária – um século de cultura e política (Ed. Unesp, 2010), 68, houve um movimento fortíssimo
do rock e um dos mais importantes e influentes músicos Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC de estudantes nas ruas. Esses anos
de sua era, em diferentes gêneros musicais. (Nota da IHU à era da tv (Ed. UNESP, 2014) e O fantasma da revolução
On-Line) brasileira (Ed. UNESP, 2010). (Nota da IHU On-Line) despertaram uma grande energia

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

nas pessoas, grande vontade de par- e publicações relativos aos 40 de avanço das forças conservadoras
ticipar, de lutar, de enfrentar a dita- anos de Maio de 68? de direita. Não é apenas no Brasil, é
dura, reivindicar liberdade, mas tudo também na América Latina e na Eu-
Maria Paula Nascimento Araú-
foi absolutamente ligado às questões ropa, com a extrema-direita ganhan-
jo – Em 2008, os principais livros es-
das liberdades democráticas. As novas do espaço. Há uma violência enorme
critos por militantes ou jornalistas que
pautas só vão surgir depois. O ano de contra os refugiados, e a Europa não
viveram o 68 tiveram um cunho muito
68 termina com o AI-510, que proíbe está conseguindo responder. O mun-
mistificador, laudatório. Este foi o tom
manifestações, liberdade de expres- do passa por uma experiência tão
que prevaleceu. Os atores e as experi-
são, proíbe tudo. Tolhe a ação política. conservadora que me parece muito
ências foram vistos de maneira muito
natural que 68 galvanize, mais do
O que fazer com aquela energia romantizada, fazendo um amálgama
que nunca, essa metáfora da revolu-
toda? Lideranças, jovens, estudantes de coisas que eram diferentes. Mas
ção, da utopia.
universitários e secundaristas foram entendo isso. Para a geração que viveu
para as ruas reivindicar liberdade. 68, no mundo todo, aqueles aconteci-
Essa energia gigantesca foi sufocada. mentos são centrais em sua vida. En- IHU On-Line – O que a senho-
Não é à toa que a militância de luta tendo que as pessoas romantizem. ra propunha ao afirmar que,
armada se formou com jovens uni- Nos seminários e nas publicações em vez de celebrar ou come-
versitários e secundaristas. A lideran- universitárias de pesquisa, feitas por morar, talvez fosse importante
ça estudantil universitária – e não a historiadores e cientistas sociais, o desconstruir 68?
massa, o Daniel Aarão Reis11 insiste tom foi diferente. Eles têm uma pos- Maria Paula Nascimento
muito, a massa simplesmente viveu o tura crítica em relação à memória, à Araújo – Ao desconstruir, podemos
recuo – foi constituir a luta armada. glorificação e à romantização. dar destaque às diferenças, para en-
No Brasil, um dos legados de 68 foi tender e pensar em um 68 global, da
a radicalização por meio da luta ar- Quem trabalha com a história do
tempo presente sabe que ela lida o transformação total da utopia. Em
mada. O outro legado, que apareceu cada país foi de um jeito, porque
com mais força, foram as novas pau- tempo todo com a memória que ro-
mantiza, ou vitimiza, ou glorifica, mas outras pessoas pensaram diferente
tas. Movimentos de mulheres, negro de Paris. É importante desconstruir
42 – embora tenha demorado mais –, muitas vezes parte de uma lembran-
ça que, para o bem ou para o mal, é para entender as duas utopias que
comportamental. Mas o legado mais o Berman fala. Quando se insiste
evidente na época, no final de 68 e afetiva. Nos seminários e publicações
que fazemos sobre história do tempo muito nessa ideia global, que é cele-
início de 69, foi o deslocamento da brada, perdemos justamente as dife-
presente, sempre tem um pouco des-
liderança estudantil das ruas para a renças. E são sempre as diferenças
se choque, desse confronto. Há quem
luta armada. e especificidades que nos permitem
diga “vocês não estiveram lá, não po-
IHU On-Line – Que perspec- dem saber o que é”, então responde- entender mais a história.
tiva preponderou nos eventos mos “estamos analisando do ponto de
vista do historiador”. É comum um IHU On-Line – As revoltas es-
10 AI-5 (Ato Institucional Número Cinco): decretado pelo confronto em relação às formas de ver.
general Arthur da Costa e Silva, que ocupava a cadeira de tudantis foram uma das marcas
presidente, em 13 de dezembro de 1968, foi um instru-
mento de poder que deu ao regime militar poderes po- de 1968. A recente ocupação de
líticos absolutos. A primeira consequência do AI-5 foi o
fechamento por quase um ano do Congresso Nacional. IHU On-Line – E agora, nos 50 escolas no Brasil pelos próprios
O ato representou o ápice da radicalização do regime
anos, o que se percebe? estudantes animou pessoas de
de exceção e inaugurou o período em que as liberda-
des individuais foram mais restringidas e desrespeitadas, idade mais avançada. Foi uma
constituindo-se em movimento final de “legalização” da Maria Paula Nascimento Araú- espécie de nostalgia de 68?
arbitrariedade que pavimentou uma escalada de torturas
e assassinatos contra opositores reais e imaginários ao re- jo – Ainda não sei. Ainda não está de-
gime. (Nota da IHU On-Line) Maria Paula Nascimento
11 Daniel Aarão Reis Filho (1946): historiador brasileiro e
finido. Vamos fazer um seminário na
Araújo – As experiências das ocu-
professor de História Contemporânea na Universidade Fe- UFRJ [Universidade Federal do Rio de
deral Fluminense - UFF. Publicou diversos livros e artigos pações foram maravilhosas. Anima-
sobre a história da esquerda no Brasil e sobre a história da Janeiro]. Acho inevitável haver as duas
experiência socialista no século 20. No final da década de ram as pessoas talvez por nostalgia,
1960, participou da luta armada contra a ditadura militar,
vertentes, tanto a pessoal, da glorifica-
mas principalmente por reconhecer
tendo integrado a direção do grupo que decidiu o seques- ção, quanto a mais crítica e questiona-
tro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles a novidade que isso significou para
Burke Elbrick, em troca da libertação de 15 presos políticos. dora. Queremos dar uma ótica a partir
Alguns de seus livros: A revolução faltou ao encontro – Os o Brasil. No Rio de Janeiro, não tí-
comunistas no Brasil (CNPq/Editora Brasiliense, 1990), De
do mundo, tanto que estará vindo gente
nhamos isso. Não foi tão marcado
Volta À Estação Finlândia – crônica de uma viagem ao socia- de países que usualmente não vêm, por
lismo perdido (Relume-Dumará, 1993), Aventura Socialista como na França, mas é diferente.
no Século XX (Editora Atual, 1999), História do século XX (Ci- exemplo, o 68 na China, no Japão, na
vilização Brasileira, 2000), Ditadura Militar, Esquerdas e So- As ocupações no Brasil tinham a
ciedade (Jorge Zahar Editor, 2000), As revoluções russas e o
África. Até para discutir se foi mesmo
ver com o fato de o aluno ser pobre,
socialismo soviético (Edunesp, 2003), Imagens da Revolução: um movimento internacional, quais as
documentos políticos das organizações clandestinas de es- carente, sem condições de estudos.
querda dos anos 1961 a 1971 (com Jair Ferreira de Sá, Marco diferenças e semelhanças.
Zero, 1985), Uma revolução perdida: a história do socialismo Foi uma novidade espetacular, fan-
soviético (Fundação Perseu Abramo, 2007), Modernidades
Alternativas (com Denis Rolland, FGV, 2008) e Ditadura e
De qualquer forma, estamos viven- tástica, e as pessoas puderam fazer
democracia no Brasil (Zahar, 2014). (Nota da IHU On-Line) do no mundo um momento tão ruim a comparação. ■

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Maio de 68 não foi superado,


nem derrotado
Para Alana Moraes de Souza, as lutas vão sedimentando
substratos, e toda vez que a sociedade se movimenta,
de algum modo os substratos emergem
Vitor Necchi

A
antropóloga Alana Moraes de negros, terroristas, militantes, indíge-
Souza considera que 1968 foi nas etc.” E a esquerda progressista, de
marcante para a história das outro lado, “parece não ter entendido
contestações ao capitalismo. “De ma- bem que o neoliberalismo formata todo
neira bem simplificada, naquele mo- o aparato institucional do que costumá-
mento houve uma rebelião global con- vamos chamar de estado de direito e in-
tra o modo de vida capitalista e suas siste nas mesmas estratégias de disputa
estruturas autoritárias”, avalia, em de poder”.
entrevista concedida por e-mail à IHU
On-Line. Souza considera arriscado aproximar
Eram tempos da Guerra Fria, e ha- o 1968 francês e o junho de 2013 bra-
via uma divisão segundo a qual “a li- sileiro, mas acredita que existam ele-
berdade estava do lado do capitalismo mentos de contato. “Tanto Maio como
enquanto a ausência dela entrava na Junho expressaram uma insatisfação 43
conta das experiências comunistas”. No latente que existia na sociedade, uma
entendimento de Souza, 1968 “rompeu insatisfação que, de algum modo, esta-
com a ficção dessa divisão e apontou a va contida. [...] Outro ponto de contato
estrutura autoritária e violenta que sus- importante é a expressão de um cansa-
tentava o capitalismo”. Por outro lado, ço generalizado com os instrumentos
“também revelou as estruturas auto- tradicionais de representação”. Além
ritárias que sustentavam os partidos disso, reconhece uma aproximação trá-
comunistas, a herança do stalinismo, gica, que é “onda conservadora que se
a burocratização e a formação de elites alimentou dessa energia”.
dirigentes na própria esquerda”.
Alana Moraes de Souza é graduada
Ao pensar sobre a atualidade em re- em Antropologia, mestra em Sociologia
trospecto a 1968, Souza identifica uma e Antropologia pela Universidade Fe-
conjuntura parecida: “De um lado, o deral do Rio de Janeiro - UFRJ. Atual-
triunfo absoluto do neoliberalismo, mente cursa doutorado em Antropolo-
em parte, sustentado pela promessa gia Social no Museu Nacional da UFRJ.
de mais liberdade, flexibilidade, des- É coorganizadora dos livros Junho: po-
regulação. Mas sabemos hoje, mais do tência das ruas e das redes (Fundação
que nunca, que o neoliberalismo é fei- Friedrich Ebert, 2014) e Cartografias
to de um grande aparato repressivo de da emergência: novas lutas no Brasil
pacificação das revoltas, de ocupações (Fundação Friedrich Ebert, 2015).
militares, de um racismo institucional
que elege os corpos matáveis: jovens Confira a entrevista.

IHU On-Line – Se, confor- política é interpelada por um Alana Moraes de Souza – 68
me escreveste1, “cada geração conjunto de urgências, de pro- foi um momento muito importan-
blemas incontornáveis”, quais te na história das contestações ao
1 Em artigo publicado no Cadernos IHU Ideias número foram as urgências de 1968 e capitalismo. De maneira bem sim-
268, disponível em http://bit.ly/2K0QN66. (Nota da IHU
On-Line) quais as atuais? plificada, naquele momento houve

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

uma rebelião global contra o modo De outro lado, a esquerda progres- ca daquele período da história?
de vida capitalista e suas estruturas sista parece não ter entendido bem
Alana Moraes de Souza – O
autoritárias. Era ainda um período que o neoliberalismo formata todo o
filme de João Moreira Salles4 é pri-
dividido pela oposição ocidental da aparato institucional do que costu-
moroso. Um trabalho minucioso de
Guerra Fria2 na qual a liberdade es- mávamos chamar de estado de direi-
arquivo. Eu gosto de como ele re-
tava do lado do capitalismo enquan- to e insiste nas mesmas estratégias
constrói os eventos de 68 a partir da
to a ausência dela entrava na conta de disputa de poder. As urgências
memória pessoal, da relação com a
das experiências comunistas. 68, de dos nossos tempos têm a ver com a
sua mãe, uma história incorporada.
algum modo, rompeu com a ficção reelaboração de um novo campo de
Esse é um bom projeto para todos
dessa divisão e apontou a estrutura radicalidade que, por um lado, fuja
nós: como contar a história de gran-
autoritária e violenta que sustentava do vanguardismo e da incapacidade
des eventos a partir das nossas his-
o capitalismo: a guerra no Vietnã3, de conexão com os problemas reais
tórias pessoais, a partir dos afetos
o racismo, a exploração nas fábri- das pessoas e, por outro, assuma a
íntimos. Como a história atravessa
cas, o patriarcado. Mas 68 também tarefa de reconstruir um processo de
nosso cotidiano e nossas relações,
revelou as estruturas autoritárias lutas que desemboque em novos ar-
experiências? É um modo possível
que sustentavam os partidos comu- ranjos da vida coletiva, novas formas
de fugir da história com “h” maiús-
nistas, a herança do stalinismo, a de vida, possibilidades concretas de
culo e masculino: contá-la a partir
burocratização e a formação de eli- cooperação e de decisão das pessoas
tes dirigentes na própria esquerda. sobre seus cotidianos. É também ar- 4 João Moreira Salles (1962): documentarista, roteirista e
1968 ousou abrir uma fenda nessa riscar novas institucionalidades que produtor do cinema brasileiro. João nasceu numa família
tradicional – seu pai, Walther Moreira Salles, foi ministro
oposição e produziu um campo mais possam ser experimentadas para de Estado, embaixador e, como banqueiro, foi o maior
radical de contestação, afirmando a além do Estado neoliberal e seus en- acionista da União de Bancos Brasileiros (Unibanco), hoje
incorporado ao Banco Itaú. A exemplo do irmão Walter
possibilidade de um projeto de igual- quadramentos. Salles e incentivado por este, dedicou-se ao cinema. Seu
primeiro trabalho, em 1985, foi o roteiro para a série Ja-
dade com diferença e liberdade. Foi pão, uma Viagem no Tempo, exibida na extinta TV Man-
chete. Em 1987, os dois irmãos fundaram a produtora
uma geração dissidente que não teve Videofilmes, com o propósito inicial de realizar documen-
medo de romper com as ortodoxias.  tários para a televisão, mas que acabou sendo a produtora

44 Hoje temos uma conjuntura pare-


“68 operou de importantes filmes da chamada retomada do cinema
brasileiro. Ainda em 1987, João dirigiu China, o Império
do Centro, e fez o roteiro do documentário Krajcberg, o
cida em diversos aspectos. De um
lado, o triunfo absoluto do neolibe-
mudanças Poeta dos Vestígios, pelo qual recebeu prêmios na Itália,
em Cuba e no Brasil. Também recebeu um prêmio em
Paris por um especial coproduzido e veiculado pela rede
ralismo, em parte, sustentado pela
promessa de mais liberdade, flexi-
profundas e Manchete, Blues (1990). Entre 1991 e 1996, trabalhou em
publicidade. Em 1998, lançou a série de programas Fute-
bol, codirigida por Arthur Fontes. No ano seguinte, com

bilidade, desregulação. Mas sabe-


mos hoje, mais do que nunca, que o
subjetivas, Kátia Lund, dirigiu Notícias de uma Guerra Particular, um
documentário sobre a população, a polícia e o tráfico de
drogas no Rio de Janeiro. Entre maio de 1999 e maio de

modos
2000, João coordenou um grupo formado pelos jornalistas
neoliberalismo é feito de um grande Dorrit Harazim, Flávio Pinheiro, Marcos Sá Corrêa e Zuenir
Ventura e os documentaristas Arthur Fontes e Izabel Ja-
aparato repressivo de pacificação
possíveis de
guaribe e trabalharam numa série de documentários mes-
clando a experimentação artística do cinema ao trabalho
das revoltas, de ocupações milita- jornalístico de investigação. Com o propósito de exibir um

se viver, uma
res, de um racismo institucional ponto de vista que aparece pouco sobre o país, estreou
em agosto de 2000, no canal de TV por assinatura GNT,
que elege os corpos matáveis: jo- da rede Globosat, a série de documentários intitulada 6
Histórias Brasileiras. Dois episódios da série foram dirigi-
vens negros, terroristas, militantes,
indígenas etc. Explode o encarcera- rebelião contra dos por João. Na Videofilmes produziu Lavoura Arcaica, de
Luiz Fernando Carvalho, Madame Satã, de Karim Ainouz,
Babilônia e Edifício Máster, de Eduardo Coutinho, entre
mento, o feminicídio como prática
cotidiana de regulação dos corpos o estado outros filmes. Em 2002, João lançou o documentário Nel-
son Freire, sobre a carreira do pianista brasileiro. Durante
a campanha presidencial, em 2002, filmou os bastidores
femininos, ou seja, é uma política
de morte.
natural das da campanha política do então candidato Luiz Inácio Lula
da Silva, criando o documentário Entreatos, lançado em
2004. Em 2007 lançou Santiago, documentário sobre um

2 Guerra Fria: nome dado a um período histórico de


coisas e suas antigo mordomo de sua própria família, mas que vai além
disso ao tratar de temas como memória e a própria natu-
reza do cinema documental. Produzido por João, Eduardo

hierarquias”
disputas estratégicas e conflitos entre Estados Unidos e Coutinho rodou no final de 2013 um novo documentário,
União Soviética, que gerou um clima de tensão que en- Palavra, sobre adolescentes de escolas públicas cariocas.
volveu países de todo o mundo. Estendeu-se entre o final Com a morte de Coutinho, João assumiu os trabalhos de
da Segunda Guerra Mundial (1945) e a queda da União pós-produção do filme. Além de cineasta, João Moreira
Soviética (1991). (Nota da IHU On-Line) Salles também atua no jornalismo. Em 2006 criou a re-
3 Guerra do Vietnã: conflito armado entre 1964 e 1975 vista Piauí, segundo ele, “para contar boas histórias com
no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e IHU On-Line – O documen- humor”. Em 2017, lançou No Intenso Agora, que surge
do Laos, com bombardeios sobre o Vietnã do Norte. Ins- tário No intenso agora (2017), quando o diretor descobriu filmes que sua mãe fez de
creve-se no contexto da Guerra Fria, conflito entre as po- uma viagem de turismo à China, em 1966. A obra tem um
tências capitalistas e o bloco comunista. De um lado, com- de João Moreira Salles, evoca elaborado trabalho de edição a partir de trechos de do-
batiam a coalização de forças incluindo Estados Unidos, cumentários e arquivos sobre fatos ocorridos em 1968 na
República do Vietnã (Vietnã do Sul), Austrália e Coreia do
a mãe do diretor e uma viagem França, na Tchecoslováquia e no Brasil. O IHU, na seção
Sul. Do outro, estavam República Democrática do Vietnã, que ela fez à China, mas tam- Notícias do Dia, em seu sítio, publicou uma série de textos
Frente de Liberação Nacional (FLN) e a guerrilha comunis- sobre o filme. Entre eles Melancolia e furor em João Mo-
ta sul-vietnamita. A ex-URSS e a China forneceram ajuda bém tratou sobre o que persiste reira Salles, disponível em http://bit.ly/2ImUq9g; Olhando
material ao Vietnã do Norte e ao FLN, mas não tiveram para trás, documentário joga luz sobre desilusão pós-junho
participação militar ativa no conflito. A Guerra do Vietnã
de Maio de 68. Que análise fa- de 2013, disponível em http://bit.ly/2rr323Z; e Como viver
era uma parte do conflito regional envolvendo os países zes do filme e sobre sua capaci- depois da intensidade, disponível em http://bit.ly/2FSFGcL.
vizinhos do Camboja e do Laos, conhecido como Segunda Saiba mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota
Guerra da Indochina. (Nota da IHU On-Line) dade de suscitar reflexões acer- da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

do relato, da vida, dos eventos co- estética: a forma é tudo, é o que nos vejo a história das lutas como a res-
tidianos que não podem parar de permite produzir uma existência in- surgência, um resultado de vetores
acontecer.  suportável para o poder. mais quentes dos acontecimentos
que se mesclam a experiências pas-
sadas e seus aprendizados.
IHU On-Line – João Moreira IHU On-Line – Para o docu-
Salles, por meio de uma acu- mentarista, o apego a Maio de
rada seleção e edição de ima- 1968 é desmesurado e conser-
gens, reconstitui algumas das
principais movimentações de
vador. Concordas com ele? Por
quê? “Nós
1968, como a francesa, desde
os primórdios do movimento
Alana Moraes de Souza – Eu
discordo. Não precisamos olhar para
precisamos
até o esvaziamento das ruas.
O diretor sugere que Maio de
o passado com lentes melancólicas levar mais a
que nos fazem lamentar algo per-
68 trata-se de um sopro de re-
beldia fugaz derrotado por De
dido. O passado está sendo conti- sério a ideia
de que o
nuamente traduzido, acionado de
Gaulle. No seu entendimento,
diversas formas, incorporado. Maio
foi apenas isso?
Alana Moraes de Souza – Essa
de 68 pode ter sido muita coisa, mas
não havia nenhum desejo de con- capitalismo é
é uma leitura bem comum do Maio
de 68. Mas se fosse apenas um sopro
servar, ao contrário. Óbvio que toda
movimentação radical gera também uma máquina
de rebeldia fugaz não estaríamos fa-
lando desse acontecimento com tanta
uma reação conservadora, mas são
as lutas geracionais de cada tempo de produzir
paixão até hoje. Há algo em 68 que
ainda nos perturba. O acontecimento
histórico que nos oferecem pistas
sobre as transformações. E entendo
infelicidade”
de 68 nos conduz a um outro tipo de geração como um sentido de perten-
imaginação revolucionária que não cimento coletivo a uma urgência, um
45
tem a ver com a tomada do poder ne- gesto, um desconforto insuportável,
IHU On-Line – Havia latente
cessariamente, com um programa de não tem a ver só com uma identida-
nos ideais de 1968 uma pre-
governo, com um partido revolucio- de etária.
tensão de mudar o mundo, de
nário assaltando a institucionalida-
A nostalgia pode ser uma forma transformar o futuro. Esses
de. 68 operou mudanças profundas e
de recusar os abismos do presente, desejos perderam fôlego? Por
subjetivas, modos possíveis de se vi-
e o filme aponta para isso. Mas, ao que, na atualidade, prevalece
ver, uma rebelião contra o estado na-
mesmo tempo, trabalha com uma um desânimo?
tural das coisas e suas hierarquias. Se
concepção de história muito line-
pensamos no feminismo, por exem- Alana Moraes de Souza – Nós
ar, como se a história fosse feita de
plo, que não nasceu em 68, mas que, precisamos levar mais a sério a ideia
superações. Eu penso, ao contrário,
sem dúvida, teve um papel importan- de que o capitalismo é uma máqui-
que Maio de 68 não foi superado,
te nos acontecimentos ou no movi- na de produzir infelicidade. A in-
não foi derrotado. As questões que
mento negro que, especialmente nos felicidade não é apenas um estado
ele levanta ainda nos atravessam:
Estados Unidos, produziu um discur- subjetivo, mas ela produz também
organização, partido, liberdade, di-
so e uma postura muito radicalizada um corpo, uma certa disposição cor-
ferença, uma vida possível para além
contra o racismo normalizado... são pórea. Para Deleuze5, a tristeza está
do trabalho e da condição de explo-
movimentos que nunca cessaram de sempre ligada ao poder: o poder age
ração. As lutas vão sedimentando
produzir transformações no cotidia- impedindo que realizemos, ele obs-
substratos, e toda vez que a socieda-
no e fizeram isso sem precisar tomar
de se movimenta, de algum modo os trui potências. Toda tristeza é decor-
o poder institucional.
substratos emergem, se misturan- rente dessa sensação de não conse-
A defesa das liberdades em 68 esta- do com os elementos da superfície. guir, de estar bloqueado. Isso nos
va conectada com uma radicalidade É como o fenômeno oceanográfico empurra para uma constatação difí-
sistêmica, era preciso afirmar uma chamado de ressurgência. Esse fenô- cil para os marxistas mais ortodoxos:
vida, uma explosão de felicidade, de meno acontece quando as águas pro- o neoliberalismo não atua apenas
prazer, que fosse capaz de existir em fundas emergem à superfície levan- sob as vidas, orientando políticas e
oposição à vida burguesa ou à obedi- do muitos nutrientes para as regiões macroeconomia. Ele atua também
ência que exigia o partido comunis- menos profundas. O resultado é um
ta. Havia uma preocupação estética ambiente extremamente nutritivo. 5 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim
como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem
também. A afirmação do movimen- Isso só acontece porque as águas da em Bergson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções.
to black power, depois dos panteras superfície são mais quentes, mas as Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleu-
ze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e
negras, era uma afirmação também mais profundas, mais nutritivas. Eu singularidades. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

na vida, no corpo. Não há nada mais IHU On-Line – Faz sentido desconsiderando a outra classe que
materialista do que pensar o corpo, aproximar o 1968 francês e o também luta para conservar sua
não? Como podemos falar sobre brasileiro do junho de 2013 posição. Por isso acho arriscadas
“resistência” ou nos perguntar por brasileiro? e tristes essas análises que lamen-
que as pessoas não resistem, se não tam a existência de Junho como se
Alana Moraes de Souza – É
entendemos que resistir é produzir a mobilização gerada naquele mo-
sempre arriscado fazer essas compa-
uma vida corpórea capaz de deslo- mento só servisse à direita. Esse é
rações, mas acredito que existam ele-
camentos, de movimento, de inten- um jeito de olhar a história. Outro
mentos de contato. Tanto Maio como
ções? O mercado financeiro usa a é pensar na própria incapacidade
Junho expressaram uma insatisfação
cocaína, por exemplo, para produzir da esquerda de se conectar com a
latente que existia na sociedade, uma
essa potência do corpo, mas seu efei-
insatisfação que, de algum modo, es- indignação – se não é isso que de-
to é uma intensificação do indivíduo,
tava contida. Maio e Junho destrava- fine a esquerda, não sei mais o que
do sujeito atomizado, autorreferen-
ram essas contenções. Outro ponto de é. Precisamos resolver se queremos
ciado, masculino. Por outro lado,
contato importante é a expressão de salvar o capitalismo e seu sistema
existe uma explosão no uso de an-
um cansaço generalizado com os ins- político ou se queremos construir
tidepressivos entre os mais pobres,
trumentos tradicionais de represen- outras possibilidades. Em Junho,
uma administração permanente da
tação: novas formas de luta sindicais grande parte da esquerda decidiu
paralisia, um corpo anestesiado. Um
emergiam pela base, questionamento que precisava defender o sistema,
modo de lutar contra isso é buscar
das estruturas partidárias, uma explo- mas logo depois o sistema engoliu
por uma corporeidade multitudiná-
são de criatividade que se expressava a esquerda. Como sempre faz, ali-
ria, cooperada. É o que acontece nas
em muros, cartazes, proposições. ás. Mas tanto Junho como Maio
cozinhas coletivas de ocupações, por
exemplo. Cozinhar juntos, nos cui- O ponto de contato trágico está ainda estão em movimento nos
dar. Investigar substâncias que nos na onda conservadora que se ali- trazendo mensagens, indicando
ajudem nesses deslocamentos, na mentou dessa energia, mas não dá caminhos, oferecendo matéria com
produção de alegrias. para acreditar em luta de classes nutrientes. ■
46

Leia mais
- Contato e improvisação: o que pode querer dizer autonomia? Artigo de Alana Moraes de
Souza, publicado no Cadernos IHU Ideias número 268, disponível em http://bit.ly/2K0QN66.

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

É preciso consolidar uma narrativa


de 1968 que aponte para um futuro
melhor do que o presente
Para Glaudionor Barbosa, as maiores mudanças decorrentes
do movimento ficaram restritas às mentalidades, e,
no seu entendimento, isso não é pouco


Vitor Necchi

N
os momentos de ascensão de ao conseguir o controle político, a vitó-
uma utopia, acredita-se, sem- ria nas eleições que convocou e o apoio
pre, em um novo tempo”, afir- dos trabalhadores. “As centrais sindi-
ma o professor Glaudionor Barbosa. cais cederam. Sem direção revolucio-
E qual o problema, no que se refere a nária, elas sempre cedem aos apelos
1968? “Uma aliança estudantil-operá- patrióticos ou vantagens pecuniárias.”
ria não resolve o problema. O capita-
Conforme Barbosa, “parte da esquer-
lismo mudou a pele incorporando um
da defende a herança de 1968 como um
discurso de aceitação de mudanças
divisor de águas”, mas o professor acre-
pontuais, mas, na essência, terminadas
dita que “as maiores mudanças ficaram
as jornadas do ‘ano que nunca termina-
restritas às mentalidades, e não é pou-
rá’, inicia-se a preparação estratégica 47
co”. No seu entendimento, é fundamen-
para o neoliberalismo.”
tal a disputa das narrativas: “É preciso
Barbosa, em entrevista concedida por que os setores progressistas continuem
e-mail à IHU On-Line, afirma que falando e expressando seus pontos de
“1968 criou formas de guerrilhas urba-
vista. É preciso consolidar uma narra-
nas e rurais, reais e simbólicas, produziu
tiva de 1968 que aponte para um futuro
mudanças violentas no comportamento
melhor do que o presente”.
geral”. Também “trouxe à tona as con-
traculturas e as contra-contraculturas” e Glaudionor Barbosa é doutor em
“mostrou a força contínua e viva com a Ciência Política pela Universidade Fe-
explosão dos movimentos sociais: estu- deral de Pernambuco - UFPE, mestre
dantis, feministas, ambientais”. em Economia pela Universidade Fe-
deral da Paraíba - UFPB, graduado em
Entre os movimentos de 1968, o mais
Economia pela UFPE e em Engenharia
emblemático ocorreu na França, onde
“combinou-se repressão seletiva com Agronômica pela Universidade Federal
a liderança do velho dirigente burguês Rural de Pernambuco - UFRPE.
Charles de Gaulle, que levou a melhor”, Confira a entrevista.

IHU On-Line – No evento Cin- Glaudionor Barbosa – 1968 foi precisas, de melhor pontaria. Como
quenta Anos de 1968: a Era de “o ano que nunca terminará”, pois eu dizia, ao se olhar para aquele ano,
Todas as Viradas, promovido foi universal e disruptivo. Quando se tem a certeza de que as tarefas
pela Universidade de São Paulo observamos 68, cada vez isso é dife- históricas dos oprimidos continuam
- USP, sua fala está prevista no rente, pois tudo continua mudando na ordem do dia, e aquele ensaio foi
tópico intitulado  Crises econô- em relação ao referencial. O olhar é primoroso.
micas: 1968 e 2018. Do que se diferente pois mudamos e não con-
trata? Do ponto de vista econô- seguimos mudar muito. Nós somos 1968 não foi francês, foi mundial.
mico, que aproximações podem diferentes, mas somos iguais. Con- Tivemos choques com a polícia que
ser feitas entre esses dois mo- tudo, é inegável que o tempo forne- continua matando e prendendo tra-
mentos no Brasil e no mundo? ce ao historiador ferramentas mais balhadores, jovens, mulheres e ne-

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

gros. No fundo é a mesma polícia nômico que deixaria sequelas perma- de 1968? Uma aliança estudantil
que matou Marielle1 e Anderson2. nentes, na forma de uma distribuição -operária não resolve o problema.
de renda monstruosamente concen- O capitalismo mudou a pele incor-
1968 criou formas de guerrilhas
trada, que não se desconcentra com porando um discurso de aceitação
urbanas e rurais, reais e simbólicas,
políticas públicas, apesar de 3Lula de mudanças pontuais, mas, na es-
produziu mudanças violentas no
estar numa solitária de Sérgio Moro4. sência, terminadas as jornadas do
comportamento geral. 1968 trouxe
A riqueza concentrou-se de forma oli- “ano que nunca terminará”, inicia-
à tona as contraculturas e as con-
gárquica e só será distribuída através se a preparação estratégica para o
tra-contraculturas. 1968 mostrou a
de uma revolução. Outro legado do neoliberalismo.
força contínua e viva com a explosão
Milagre foi a dívida externa.
dos movimentos sociais: estudantis, As dificuldades da União Soviéti-
feministas, ambientais. Liberou o   ca, reforçadas pela ação de fora para
corpo e a consciência, principalmen- IHU On-Line – Acreditava-se dentro, levou ao fracasso da experi-
te das mulheres com a psicanálise, que teria início um novo tem- ência antissistêmica. É a derrota da
os anticoncepcionais e a demolidora po, com novas perspectivas em URSS o maior dano que a humani-
revolução sexual. relação às mazelas do capitalis- dade poderia sofrer. A unipolaridade
mo e do socialismo soviético. na geopolítica mundial sustentou to-
Do ponto de vista econômico, o das as experiências contra os fracos.

“Nos momentos que sustentava as elaborações Só agora, com a influência do binô-


do movimento? Que pensamen- mio Rússia-China, ocorre um come-

de ascensão tos e autores eram evocados? ço de reequilíbrio.


Bem, havia muitas vozes, algumas
Glaudionor Barbosa – Nos
de uma utopia, momentos de ascensão de uma dissonantes. A voz principal era do
anarquista Daniel Cohn-Bendit5.
acredita-se,
utopia, acredita-se, sempre, em
um novo tempo. Qual o problema No caso da França, o mais emble-
mático, combinou-se repressão

48
sempre, em um 3 Luiz Inácio Lula da Silva (1945): Trigésimo quinto presi-
seletiva com a liderança do velho
dirigente burguês Charles de Gaul-
novo tempo”
dente do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro
de 2011. É cofundador e presidente de honra do Partido
dos Trabalhadores - PT. Em 1990, foi um dos fundadores e le6, que levou a melhor. De Gaulle
organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte conseguiu o controle político. Usou
dos movimentos políticos de esquerda da América Latina
e do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em a imprensa, principalmente a fala-
1989 (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994
(perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998
da, para jogar água na fervura. Mo-
IHU On-Line – Que temas eco- (novamente perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e bilizou forças diversas em seu fa-
nômicos ficam mais evidentes ganhou as eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de
vor. Saiu-se vitorioso nas eleições
2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recor-
acerca das pautas de Maio de de histórico de popularidade durante seu mandato, con-
que havia convocado. Conseguiu o
forme medido pelo Datafolha. Programas sociais como o
68? Bolsa Família e Fome Zero são marcas de seu governo, apoio dos trabalhadores com pro-
programa este que teve seu reconhecimento por parte
Glaudionor Barbosa – Não da Organização das Nações Unidas como um país que messas de aumentos salariais e
saiu do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque melhorias nas condições gerais. As
acredito que ocorra uma coincidên- na evolução recente das relações internacionais, incluin-
cia conjuntural 1968-2018. Os 50 do o programa nuclear do Irã e do aquecimento global. centrais sindicais cederam. Sem di-
É investigado na operação Lava-Jato e foi denunciado em
anos é que devem servir de mote. setembro de 2016 pelo Ministério Público Federal (MPF), reção revolucionária, elas sempre
1968 prenuncia a grande crise de apontado como recebedor de vantagens pagas pela em-
preiteira OAS em um triplex do Guarujá. No dia 12 de julho
cedem aos apelos patrióticos ou
1973-1975, que enterra os 30 anos de 2017, Lula foi condenado pelo juiz federal Sérgio Moro, vantagens pecuniárias.
em primeira instância, a nove anos e seis meses de prisão
dourados do “capitalismo sem cri- em regime fechado por crimes de corrupção passiva e la-
se”, com uma crise estupenda, mos- vagem de dinheiro. No dia 24 de janeiro de 2018, por una-  
midade, os três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal
trando que capitalismo e crise são a Regional Federal da 4ª Região confirmaram a condenação
de Lula, elevando a pena para 12 anos e um mês de prisão.
mesma coisa. No dia 7 de abril de 2018 Lula, após mandado de prisão 5 Daniel Cohn-Bendit (1945): político franco-alemão.
expedido pelo judiciário, entregou-se à Polícia Federal Nasceu na França, filho de judeus alemães refugiados no
No Brasil, inicia-se o Milagre Eco- onde se mantém sob custódia na Superintendência do país em 1933, fugidos do Nazismo. Foi líder estudantil no
órgão em Curitiba. (Nota da IHU On-Line) movimento ocorrido em maio de 1968, na França. Aos 14
4 Sérgio Fernando Moro [Sérgio Moro] (1972): juiz fe- anos, optou pela nacionalidade alemã porque não queria
deral brasileiro que ganhou notoriedade por comandar se sujeitar ao serviço militar francês. Membro da Federa-
1 Marielle Francisco da Silva ou Marielle Franco (1979- o julgamento dos crimes identificados na Operação Lava ção Anarquista e depois do movimento Negro e Verme-
2018): socióloga, feminista, militante dos direitos huma- Jato. Formou-se em direito pela Universidade Estadual de lho, se definiu mais tarde como liberal-libertário. Em 1967,
nos e política nascida no Rio de Janeiro. Filiada ao Partido Maringá em 1995, tornando-se juiz federal em 1996. Tam- enquanto era estudante de Sociologia da Universidade de
Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do bém cursou o programa para instrução de advogados da Nanterre, começa o movimento de contestação que levou
Rio de Janeiro na eleição municipal de 2016, com a quinta Harvard Law School em 1998 e participou de programas ao Movimento de 22 de Março em 1968. Na sequência
maior votação. Crítica da intervenção federal no Rio de de estudos sobre lavagem de dinheiro promovidos pelo da evacuação das salas pela polícia em 2 de maio, esteve
Janeiro e da Polícia Militar, denunciava constantemente Departamento de Estado dos Estados Unidos. É mestre e entre os estudantes que ocuparam a Sorbonne em 3 de
abusos de autoridade por parte de policiais contra mora- doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. maio. Foi, junto com Alan Geismar e Jacques Sauvageot,
dores de comunidades carentes. Em 14 de março de 2018, Além da Operação Lava Jato, também conduziu o caso uma das principais figuras de Maio de 68. Em 21 de maio,
foi assassinada a tiros. (Nota da IHU On-Line) Banestado. No caso do Escândalo do Mensalão, a ministra enquanto estava em Berlim, foi proibido de retornar à
2 Anderson Pedro Gomes: motorista que conduzia o do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber convocou o juiz França. Em 28 de maio, com o cabelo tingido e óculos es-
carro da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, Sergio Moro para auxiliá-la. Em 2014, Moro foi indicado curos, voltou para Sorbonne, sendo aclamado. Em maio de
quando o veículo foi alvejado por vários disparos em 14 pela Associação dos Juízes Federais do Brasil para concor- 2015, Cohn-Bendit obteve a nacionalidade francesa. (Nota
de março de 2018. Ambos morreram em decorrência do rer a vaga deixada por Joaquim Barbosa no STF, porém, da IHU On-Line)
atentado. Ele tinha 39 anos, era casado e deixou um filho em 2015, a vaga foi preenchida por Luiz Fachin. (Nota da 6 Charles de Gaulle (1890-1970): general e presidente da
pequeno. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) França de 1958 a 1969. (Nota da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

tentou destalinizar seu país, tentou burguesia. Uma ação concertada


“Qual o um sistema de freios mais democrá- a nível mundial poderia ter tido
tico, ampliou as liberdades indivi- resultados mais favoráveis. Vale
problema duais. O Ocidente começou a falar e lembrar a situação da periferia do

de 1968?
fala até hoje do “socialismo de rosto sistema, quase toda submetida a
humano”. Dubček era um pragmá- regimes de exceção.

Uma aliança tico, apenas. A questão é que para


jovens e pessoas de meia idade que
IHU On-Line – Que mundo
estudantil- não viveram no capitalismo, “O So-
cialismo Real” sempre aparentava surgiu em consequência de

operária não ser opressivo. Era, porém parecia Maio de 68?


ser mais. Por sua vez, a resposta da Glaudionor Barbosa – Existem
resolve o URSS e do Pacto de Varsóvia8 foi ul-
trapragmática, exagerada, brutal e
personalidades que gostariam de ver
1968 riscado no mapa da História.
problema.” ineficiente. Houve violência contra
a população desarmada e a implan-
A maioria dos personagens de di-
reita pensa assim. Jair Bolsonaro9,
tação de um regime de desesperança Malafaia10 e outros pensam assim.
entre socialistas do mundo todo. O político francês de direita, apa-
IHU On-Line – Embora o ide-
Em resumo, pode-se dizer que o rentemente reformado, Nicolas Paul
ário de esquerda pautasse as
ideário de 1968 era mais libertário Stéphane Sarkozy11 afirmou que era
manifestações de Maio de 68,
pode-se afirmar que o movi- do que socialista-revolucionário,
mento abriu caminho para enquanto opção de poder contra a 9 Jair Bolsonaro (1955): militar da reserva e deputado
federal nascido em Campinas (SP). De orientação política
ideias neoliberais? Por quê? de extrema direita, conservadora e nacionalista, cumpre
do voltou a Praga, foi vítima de ostracismo, considerado sua sétima legislatura na Câmara Federal. Em janeiro de
como um cadáver político. Até 1969, presidiu a Assem- 2018, anunciou sua filiação ao Partido Social Liberal (PSL),
Glaudionor Barbosa – As duas bléia Federal checoslovaca. Nesse mesmo ano, foi expulso o nono partido político de sua carreira. Foi o deputado
perguntas não levam a respostas do Partido. Nomeado embaixador na Turquia, não tardou mais votado do estado do Rio de Janeiro nas eleições ge-
em ser destituído: de novo em Praga, trabalhou como bu- rais de 2014. Ficou conhecido pela luta contra os direitos
simples. O que é um ideário de es- rocrata de uma exploração forestal. Não houve notícias LGBT, pela defesa da ditadura e da tortura. Seus embates
querda? Desenvolvimentismo e dis- suas até 1974, quando saiu uma carta aberta, assinada por contra os direitos humanos são constantes. Suas declara- 49
ele e dirigida à Assembléia Federal, na qual ratificava os ções controversas já lhe renderam cerca de 30 pedidos de
tribuição de renda são ideias de es- postulados democráticos de 1968, criticava as posições cassação e três condenações judiciais, desde que foi eleito
do Partido e denunciava os abusos de poder do primeiro deputado em 1989. Documentos produzidos pelo Exército
querda que a direita aceita, quando secretário Husak. Era considado um “tchecoslovaquista”, Brasileiro na década de 1980 mostram que os superiores
contrário à divisão da Tchecoslováquia em República Tche- de Bolsonaro o avaliaram como dono de uma “excessiva
necessário. Havia muitas ideias de ca e Eslováquia, e defensor da opção federativa. Em 26 ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Se-
esquerda e pouca unidade, e é por de novembro de 1989, Dubček foi aclamado na Praça de gundo o superior de Bolsonaro na época, o coronel Carlos
Letna de Praga por milhares de compatriotas. Inspirador Alfredo Pellegrino, “[Bolsonaro] tinha permanentemente
esse motivo que se fala em “tomar os das mudanças democráticas, foi feito presidente do Par- a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi
lamento checo. Faleceu em consequência dos ferimentos sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo
céus de assalto”. sofridos em acidente de automóvel ocorrido no dia 1º de dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica,
setembro de 1992, perto de Humpolec. Foi sepultado em racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argu-
Algumas mudanças, principal- Bratislava, na Eslováquia. (Nota da IHU On-Line) mentos”. É notório o seu machismo, como evidenciam as
8 Pacto de Varsóvia: aliança militar formada em 14 de agressões e ofensas direcionadas a suas colegas parla-
mente no campo do comportamen- maio de 1955 pelos países socialistas do Leste Europeu e mentares. Seu desrespeito à condição feminina não pou-
to e das mentalidades, ficaram. pela União Soviética, países estes que também ficaram co- pou nem a filha. Em abril de 2017, em um discurso no Clu-
nhecidos como bloco do leste. O tratado correspondente be Hebraica, no Rio de Janeiro, Bolsonaro fez uma menção
Quando as mulheres dizem hoje foi firmado na capital da Polônia, Varsóvia, e estabeleceu à caçula, então com seis 6 anos: “Eu tenho cinco filhos.
o alinhamento dos países membros com Moscou, esta- Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraqueja-
“meu corpo, minhas regras”, temos belecendo um compromisso de ajuda mútua em caso de da e veio uma mulher”. Em uma entrevista para a revista
um legado de 1968. agressões militares e legalizando na prática a presença de Playboy, em junho de 2011, sua agressividade dirigiu-se
milhões de militares soviéticos nos países do leste euro- aos gays: “Seria incapaz de amar um filho homossexual”.
peu desde 1945. O organismo militar foi alegadamente Ainda disse preferir que um filho “morra num acidente
Não vamos esquecer que 1968 instituído em contraponto à OTAN (Organização do Tra- do que apareça com um bigodudo por aí”. Em abril de
atingiu o elo mais fraco do mundo tado do Atlântico Norte), organização internacional que 2017, durante um discurso no Clube Hebraica, no Rio de
uniu as democracias da Europa Ocidental e os Estados Janeiro, afirmou que acabará com todas as terras indíge-
soviético. Desse modo, na Tchecos- Unidos para a prevenção e defesa dos países membros nas e comunidades quilombolas do Brasil caso seja eleito
contra eventuais ataques vindos do Leste Europeu. Os presidente em 2018. Também disse que terminará com o
lováquia inicia-se um processo re- países que fizeram parte do Pacto de Varsóvia eram al- financiamento público para ONGs: “Pode ter certeza que
formista liberado por um comunista guns nos quais foram instituídos governos socialistas pela se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender
União Soviética, após a Segunda Guerra Mundial: Polónia, de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de
chamado Alexander Dubček7. Ele República Democrática Alemã, Checoslováquia, Hungria, casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva
Romênia, Bulgária, Albânia (esta última retirou-se em indígena ou pra quilombola”. (Nota da IHU On-Line)
1968), sendo que a estrutura militar seguia as diretrizes 10 Silas Malafaia (1958): pastor pentecostal líder do mi-
7 Alexander Dubček (1921-1992): nascido na Checoslo- soviéticas. A Iugoslávia, por oposição do Marechal Tito, se nistério Vitória em Cristo, ligado à Assembleia de Deus.
váquia, atualmente Eslováquia. Foi chefe de estado da an- recusou a ingressar no bloco. Porém, as principais ações Televangelista, graduado em psicologia, presidente da
tiga Tchecoslováquia, país onde se tornou-se líder do Par- do Pacto foram dentro dos países-membros para a re- editora Central Gospel, vice-presidente do Conselho In-
tido Comunista em 1968 e iniciou as reformas da chamada pressão de revoltas internas. Em 1956, tropas reprimiram terdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil
Primavera de Praga. Durante a Segunda Guerra Mundial, manifestações populares na Hungria e Polônia, e em 1968, (CIMEB), entidade que agrega cerca de 8 mil pastores
tomou parte na resistência contra a ocupação nazista, na Tchecoslováquia, na chamada Primavera de Praga que de quase todas as denominações evangélicas brasileiras.
demonstrando sua capacidade de organização ao prota- pediam a descentralização parcial da economia e a demo- Malafaia se tornou muito conhecido por sua crítica a te-
gonizar o levantamento nacionalista eslovaco contra as cratização. As mudanças no cenário geopolítico da Europa mas como direitos dos homossexuais e ao aborto, bem
tropas alemãs no inverno de 1944 a 1945. Ficou ferido em Oriental no final da década de 1980, com a queda dos como por defender a chamada teologia da prosperidade.
repetidas ocasiões. Dirigiu a tentativa de democratização governos socialistas, o fim do Muro de Berlim, o fim da Em janeiro de 2013, uma reportagem da revista Forbes,
socialista em seu país. Seu propósito, destinado a demo- Guerra Fria e a crise na União Soviética, levaram à extinção dos Estados Unidos, o classificou como o terceiro pastor
cratizar o Estado e as estruturas internas do Partido, e abrir do Pacto em 31 de março de 1991. O fim do Pacto de mais rico do Brasil, com um patrimônio estimado em 150
a nação às potencias ocidentais, foi referendado por gran- Varsóvia representou, também, o fim da Guerra Fria. Seis milhões de dólares. Malafaia negou a informação no pro-
de parte da população checoslovaca. A tentativa foi abor- anos depois, a OTAN convida República Tcheca, Hungria grama De Frente com Gabi, quando afirmou que seu pa-
tada sangrentamente pelas tropas soviéticas do Pacto de e Polônia a ingressarem na organização, demonstrando trimônio girava em torno de R$ 6 milhões. (Nota da IHU
Varsóvia em agosto de 1968. Dubček foi sequestrado pela uma nova configuração das forças militares na Europa On-Line)
policía soviética de ocupação e levado a Moscou. Quan- pós-Guerra Fria. (Nota da IHU On-Line) 11 Nicolas Sarkozy (1955): advogado e político francês,

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

necessário “liquidar” a herança do lando e expressando seus pontos de continuadores, e mesmo os governos
Maio de 68. vista. É preciso consolidar uma narra- do PT não foram exemplares neste
tiva de 1968 que aponte para um futu- quesito. A questão que se coloca é
Muita gente enaltece 1968 por ter
ro melhor do que o presente. qual a qualidade do crescimento e
aberto uma brecha que ajudou na
quais os meios?
queda do muro de Berlim12, eufe-
mismo para o fim da União Sovi- Os argumentos mais esgrimados
ética. Na verdade, o fim da URSS são do crescimento ou do Milagre
tem raízes mais profundas. Aliás,
se o clima de 1968 fosse inebriante
“1968 criou Econômico. Assim, alega-se que
de 1968 a 1973 o Brasil entrou em
a este ponto, as ditaduras latino-a-
mericanas teriam caído. Claro que o
formas de uma espiral de crescimento na mé-
dia de 10% ao ano, e chegou ao pico
sentido libertário influenciou todos
os espaços.
guerrilhas em 1973, a um crescimento de 14%
do Produto Interno Bruto - PIB. O
Parte da esquerda defende a he-
urbanas e aumento do produto, logo, da ren-

rurais, reais e
da e do emprego, foi acompanha-
rança de 1968 como um divisor de
do pela queda da inflação. A taxa
águas. Reafirmo que as maiores
mudanças ficaram restritas às men-
talidades, e não é pouco. A ideia da
simbólicas, (IGP) caiu de 25,5% para 15,6% no
período. O que não fica evidente,
“imaginação no poder” pode pare-
cer coisa de alienado, contudo, não
produziu apenas com os números, é que o
crescimento teve duas fontes prin-
é, pois antes da chegada objetiva ao mudanças cipais: endividamento externo e
arrocho salarial.
poder, é preciso que a imaginação
chegue. Talvez se a juventude come- violentas no Para manter a economia cres-
çasse a se despir no meio das aulas,
parte do ranço fascista, presente no comporta- cendo, os salários eram reajusta-
dos, na média, abaixo da inflação.
50 Brasil de hoje, se esfumaçasse ou se
materializasse logo. mento geral” Os trabalhadores perdiam renda
e ficavam calados? Ficavam, pois
a primeira coisa que os militares
Uma parte importante dos estu-
fizeram, depois de destruir fisi-
dantes estava convencida do seu pa-
camente as oposições, foi intervir
pel social quando gritava pelas ruas
nos sindicatos e colocar pelegos na
e universidades de Paris, não apenas IHU On-Line – No campo polí-
direções. Ou seja, o crescimento só
na capital francesa: todo poder aos tico brasileiro, a partir de 1968
foi possível com o aniquilamento
operários! Não seremos capatazes houve um aprofundamento da
ditadura. E na economia, que da resistência dos trabalhadores.
das fábricas dos burgueses.
análise se pode fazer de ques- Esclarecendo: se Y = αw + βl, sen-
Uma questão fundamental é a dispu- do Y = Renda Nacional; w = salá-
tões como política salarial e
ta das narrativas, a saber, é preciso que rios; l = lucros; α é o coeficiente de
distribuição de renda, entre
os setores progressistas continuem fa- absorção dos salários e β é o coe-
outras?
ficiente de aborção dos lucros, im-
foi o 23º presidente da França entre 2007 e 2012. Foi tam- Glaudionor Barbosa – Em plica que com os sindicatos amor-
bém, juntamente com o bispo de Urgel, o co-príncipe de
Andorra. Antes de se tornar presidente, lideorou a União tempos sombrios, como agora, es- daçados α tende para zero.
por um Movimento Popular (UMP). Durante a presidência
de Jacques Chirac, foi ministro do Interior nos primeiros
cuta-se muitos afirmarem que na
dois governos de Jean-Pierre Raffarin (de maio de 2002 época dos militares era muito me-
a março de 2004), e depois foi nomeado ministro das Fi-
nanças no último governo de Raffarin (março de 2004 a lhor. Melhor para quem, cara-páli- IHU On-Line – Que papel
maio de 2005), e novamente ministro do Interior no go-
verno de Dominique de Villepin (2005-2007). Sarkozy foi
da? A resposta é dupla: havia mais Maio de 68 teve para o pensa-
também presidente do Conselho Geral do departamento segurança e a economia ia muito mento da esquerda?
francês de Hauts-de-Seine de 2004 a 2007 e prefeito de
Neuilly-sur-Seine, uma das comunas mais ricas da França, bem! Será? Não é díficil para um Es-
de 1983 a 2002. Foi ministro do Orçamento no governo de Glaudionor Barbosa – 1968 di-
tado policial prover segurança. Até
Édouard Balladur durante o último mandato de François versifica a pauta da esquerda. Como
Mitterrand. Sarkozy é conhecido por querer revitalizar a as rodas de amigos eram vigiadas,
economia francesa. Prometeu reavivar a ética trabalhis- já visto acima, as mudanças princi-
ta, promover novas iniciativas e combater a intolerância. quando não proibidas.
(Nota da IHU On-Line) pais são de mentalidades, de cultu-
12 Muro de Berlim: começou a ser derrubado em 9 de Quanto à economia? Os militares ra, de comportamento. As questões
novembro de 1989, num ato inicial de reunificação entre
as duas Alemanhas. Além disso, a queda do muro significa, mostraram que uma economia ca- específicas passaram a ter um lugar
para muitos historiadores, o fim da Guerra Fria. A constru-
ção do Muro aconteceu em 1961, dividindo a Alemanha pitalista pode crescer, fizeram me-
entre República Federal Alemã (coordenada pelos países lhor do que os neoliberais, Fernan- tista político, professor universitário e político brasileiro.
Foi o 34º Presidente do Brasil, por dois mandatos conse-
democráticos, liderados pelos EUA) e República Demo-
crática Alemã (sob jurisdição dos países comunistas, lide- do Henrique Cardoso13 e seus atuais cutivos, entre 1995 e 2003. Conhecido como FHC, ganhou
rados pela URSS). Centenas de pessoas foram mortas ou notoriedade como ministo da Fazenda (1993-1994) com a
feridas tentando fugir do lado oriental para o ocidental da instauração do Plano Real para combate à inflação. (Nota
construção. (Nota da IHU On-Line) 13 Fernando Henrique Cardoso (1931): Sociólogo, cien- da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018
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importante. as estantes/as estátuas/as vidraças, cal e o maior homem do século 20


louças, livros, sim...”. É preciso sair (Sartre17), virou fetiche e é vendido
Por outro lado, a influência prin-
de dentro do Facebook, pois é den- nas lojas e ruas do mundo todo, in-
cipal é da Escola de Frankfurt 14.
tro dele que eles querem confinar a clusive na Argentina.
Parte importante da juventude
juventude.
estudantil começa a perceber que O avanço tecnológico, se trouxe
o debate é inadiável. A vida “nor- muitas vantagens, como fornecer
mal” do capitalismo sem crise co- essa entrevista por e-mail ou equi-
meça a se mostrar sem motivação.
A primeira questão colocada era
“O ideário de pamentos médicos sofisticados que
detectam doenças que antes só se-
de sentido, a segunda era da per-
sistência de exploração e opres-
1968 era mais riam descobertas quando não havia
mais opção de cura, isolou e alienou
são nas periferias do capitalismo
“normal”. A juventude começou a
libertário do as pessoas. Para que ir ao cinema se
temos o Netflix?
entender que poderia ter um papel que socialista-  
transformador.
Alguns pensadores como Herbert
revolucionário, IHU On-Line – Deseja acres-
centar algo?
Marcuse15 começam a assumir um
triplo papel de intelectual, professor
enquanto Glaudionor Barbosa – Desejo
e militante. Essa questão foi essen-
cial e continua sendo. Um professor
opção de agradecer a oportunidade que me
foi dada e dizer que as primaveras
não tem o direito de se acovardar e
desligar sua função de mestre com a
poder contra sempre voltam. Vamos invadir nova-
mente a USP [Universidade de São
de intelectual e militante. a burguesia” Paulo] e o faremos sempre que ne-
cessário e oportuno. Pacificamente,
O mal-estar da civilização bur- como agora, ou com vontade revolu-
guesa era resultante da opressão cionária, como em 1968. ■
ideológica e da exploração econô- 51
mica, porém era, tambem, aliena- IHU On-Line – Os sentidos
ção de si mesmo, trabalho repeti- de Maio de 1968 foram esva- maneira clandestina e sumária pelo exército boliviano,
tivo e ausência de prazer. Tanatos ziados? em colaboração com a CIA, em 9 de outubro de 1967.
Foi considerado pela revista norte-americana Time uma
vencia Eros. das cem personalidades mais importantes do século 20.
Glaudionor Barbosa – Não Para muitos dos seus partidários, representa a rebeldia,
O conceito mais forte de 1968 é sei se houve esvaziamento de fato, a luta contra a injustiça social e o espírito incorruptível.
Em contrapartida, muitos dos seus opositores o consi-
de que “o poder está nas ruas”, e é acontece que o metabolismo do ca- deram um criminoso, responsável por assassinatos em
preciso resgatar esta ideia. É preciso pital é violento, tudo que cai no seu massa, e acusam-no de má gestão como ministro da
Indústria. Sua fotografia feita por Alberto Korda é uma
novamente “derrubar as prateleiras/ estômago é triturado. Ernesto Che das imagens mais reproduzidas do mundo e um dos
ícones do movimento contracultural. Tanto a fotogra-
Guevara16, o militante mais radi- fia original como suas variantes, algumas apenas com
o contorno do seu rosto, têm sido intensamente repro-
14 Escola de Frankfurt: escola de pensamento for- duzidas, para uso simbólico, artístico ou publicitário.
mada por professores, em grande parte sociólogos 16 Che Guevara (Ernesto Guevara de la Serna, 1928-1967): Che Guevara foi tema da edição 239 da IHU On-Line,
marxistas alemães. Abordou criticamente aspectos um dos mais famosos revolucionários comunistas da his- de 8-10-2007, disponível em http://migre.me/2pebG.
contemporâneos das formas de comunicação e cultura tória. Nasceu em Rosário, na Argentina, e morreu em La (Nota da IHU On-Line)
humanas. Deve-se à Escola de Frankfurt a criação de Higuera, Bolívia. Foi guerrilheiro, político, jornalista, escri- 17 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencia-
conceitos como indústria cultural e cultura de massa. tor e médico. Guevara foi um dos ideólogos e comandan- lista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças
Entre os principais professores e acadêmicos da Escola tes da Revolução Cubana (1953-1959). Ele participou des- teatrais e contos. Seu primeiro romance foi A náusea
podemos destacar: Theodor Adorno (1903-1969), Max de então, até 1965, da reorganização do Estado cubano, (1938), e seu principal trabalho filosófico é O ser e o
Horkmeimer (1885-1973), Walter Benjamin, Herbert desempenhando vários altos cargos da sua administração nada (1943). Sartre define o existencialismo em seu en-
Marcuse (1917-1979), Franz Neumann, entre outros. e de seu governo, principalmente na área econômica, saio O existencialismo é um humanismo como a dou-
(Nota da IHU On-Line) como presidente do Banco Nacional e como ministro trina na qual, para o homem, “a existência precede a
15 Herbert Marcuse (1898-1979): sociólogo alemão da Indústria, e também na área diplomática, encarre- essência”. Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre
naturalizado estadunidense, membro da Escola de gado de várias missões internacionais.onvencido da apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou
Frankfurt. Estudou Filosofia em Berlim e Freiburg, onde necessidade de estender a luta armada revolucionária suas teorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire
conheceu os filósofos e professores Husserl e Heideg- a todo o Terceiro Mundo, Che Guevara impulsionou (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a pri-
ger e se doutorou com a tese Romance de artista. Algu- a instalação de grupos guerrilheiros em vários países meira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi esco-
mas de suas obras: Razão e Revolução, Eros e Civiliza- da América Latina. Entre 1965 e 1967, lutou no Con- lhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou.
ção, O Homem Unidimensional. (Nota da IHU On-Line) go e na Bolívia, onde foi capturado e assassinado de (Nota da IHU On-Line).

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

A tarefa de não esquecer os herdeiros


perpetradores da repressão no México
Para Larissa Jacheta Riberti, evocar os 50 anos do Massacre de Tlatelolco
é importante para debater um modelo político e partidário esgotado
Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: Patricia Fachin

A
próxima eleição presidencial blica e apoiam candidatos que possam
mexicana, marcada para 3 de representar seus interesses”.
junho deste ano, coincide com Larissa Riberti também relembra as
os 50 anos do Massacre de Tlatelolco, manifestações sociais de Maio de 68, que
que ocorreu em 2 de outubro de 1968, uniram estudantes secundaristas e uni-
considerado “a expressão máxima de
versitários, classe trabalhadora, políticos
um Estado autoritário, da prática re-
e intelectuais, e adverte: “Nesse contexto
pressiva em nome da hegemonia priis-
de 50 anos de 1968, uma das tarefas é
ta” e “um dos episódios mais tristes da
a de não se esquecer de quem foram os
história mexicana”, diz a historiadora
perpetradores da repressão, quem são os
Larissa Jacheta Riberti em entrevista
herdeiros dessa classe política hegemô-
concedida por e-mail à IHU On-Line.
nica e como eles ainda atuam dentro do
Para Riberti, no atual contexto elei- ordenamento institucional”.
toral, em que o Partido Revolucionário
52 Larissa Jacheta Riberti é graduada
Institucional – PRI, do atual presiden-
em História pela Universidade Estadual
te, Enrique Peña Nieto, voltou ao poder
de Campinas - Unicamp, mestra e dou-
em 2012, depois de ter governado o
tora em História Social pela Universi-
país entre 1929 e os anos 2000, “ativar
a memória sobre o Movimento Estu- dade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
dantil de 1968 é uma ação importante e pós-doutoranda em História na Uni-
para que possamos promover debates versidade Federal de Santa Catarina -
sobre o que representou a mobilização UFSC. Sua dissertação trata da história
daquele momento e suas críticas a um e da memória do movimento estudantil
modelo político e partidário que, já na- de 1968 no México e sua tese analisa o
quela época, encontrava-se esgotado”. processo de transição à democracia e a
implantação de mecanismos de justiça
A historiadora frisa que “há uma transicional no país. Atualmente, de-
oposição social muito grande ao velho senvolve pesquisa sobre os movimentos
partido, mas até hoje não se conseguiu armados rurais e urbanos atuantes no
aprovar nas urnas um projeto de Es- México entre as décadas de 1960 e 1980.
tado mais progressista ou à esquerda.
Dentre as causas estão as fraudes elei- A entrevista foi originalmente publi-
torais, o grande número de abstenções cada nas Notícias do Dia de 2-5-2018,
(reflexo também da descrença do mexi- no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
cano em relação ao sistema político) e nos – IHU, disponível em http://bit.
a atuação de classes empresariais hege- ly/2rpuxf3.
mônicas que manipulam a opinião pú- Confira a entrevista.

IHU On-line — De que forma Larissa Jacheta Riberti — Exis- sobre aquele momento. Isso não sig-
as versões da História, a histo- te uma necessidade de deslocar o nifica ignorar ou desqualificar a pro-
riografia, sobre o Massacre de eixo de entendimento sobre o ano dução Europeia, sobretudo francesa,
Tlatelolco são relevantes para a de 1968 da Europa para o resto do do ano de 1968 e das manifestações
compreensão das mobilizações mundo. Ou seja, uma necessidade que ocorreram naquela época, e sim
mundiais em 1968? de “deseuropeizar” a compreensão atentar para a produção bibliográfica

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“Existe uma necessidade de


deslocar o eixo de entendimento
sobre o ano de 1968 da Europa
para o resto do mundo”

em geral. Em outras palavras, consi- um modelo de governo, de um projeto gestão econômica e social colocados
derar textos acadêmicos, a expressão de Estado, levado a cabo pelo Partido em prática pelos presidentes do PRI
das memórias, a produção cultural Revolucionário Institucional - PRI. que priorizaram uma política econô-
sobre o ano de 1968 em outras par- mica voltada para a ampliação das in-
O movimento estudantil de 1968, en-
tes do mundo, como América Latina, dústrias e o desenvolvimento urbano,
quanto momento histórico e objeto da
leste europeu, China e África. própria análise histórica, era o reflexo sobretudo a partir da década de 1940.
Com relação à historiografia sobre de uma América que dialogava com Nas zonas rurais, por outro lado, as
o 68 mexicano, é preciso conside- o mundo, mas que ao mesmo tempo populações camponesas e indígenas
rar que ela é integrada por distintos tinha demandas sociais internas que sofriam constantemente com a mar-
gêneros. Ou seja, é uma bibliografia precisavam ser atendidas de maneira ginalização e a exclusão de suas de-
composta de estudos acadêmicos urgente. Por isso, de maneira geral, mandas das decisões políticas. Esses
(teses, dissertações, monografias), há um esforço muito grande dos pes- grupos careciam de políticas públicas,
relatos pessoais, escritos biográficos quisadores para incluir o tema do 68 de uma reforma agrária plena que
e obras que mesclam trajetórias de mexicano nos debates mais tradicio- lhes conferisse não apenas o direito a 53
ex-líderes do movimento estudan- nais sobre o momento. Nesse sentido, ocupar produtivamente as terras, mas
til com a reconstrução histórica dos a experiência mexicana é muito im- que garantisse sua participação no
acontecimentos daquele momento. portante para ampliarmos nossa com- mercado e que impedisse o controle
Nesse sentido, a produção histo- preensão sobre o ano de 1968 e sobre da produção agrícola e da distribuição
riográfica sobre o 68 mexicano está as características desse momento his- de recursos naturais e econômicos por
muito imersa na subjetividade das tórico, deslocando nosso olhar para parte dos latifundiários. Essas eram,
experiências vivenciadas pelos pró- produções advindas de espaços não portanto, populações excluídas e que
prios estudantes daquele momento. hegemônicos e que também foram viviam à margem daquele desenvol-
Experiências essas que têm ligação considerados “periféricos”. vimento econômico e social verifica-
com o contexto internacional daque- do nos grandes centros urbanos. Tal
le momento, mas que nos falam mui- IHU On-line — Como se carac- realidade causaria uma migração em
to sobre as condições políticas, eco- terizava a sociedade mexicana massa de camponeses e indígenas
nômicas e socioculturais do México da década de 1960? para algumas capitais, sobretudo para
de então. Ao mesmo tempo, o gran- a Cidade do México. Além do desem-
de número de trabalhos acadêmicos Larissa Jacheta Riberti — O prego, tais populações foram acometi-
sobre o tema nos dá um panorama México do ano de 1968 era uma so- das pela pobreza, pela falta de estrutu-
mais amplo de objetos como as ide- ciedade que apresentava muitas ra em termos de moradia, saneamento
ologias, as estratégias e os objetivos desigualdades. Ao passo que os es- básico, acesso à saúde e à educação, e
da mobilização estudantil mexicana. tudantes de universidades como a ficaram ainda suscetíveis ao precon-
Universidade Nacional Autônoma do ceito e ao racismo.
Considerando tudo isso, na minha México - Unam advinham de uma
opinião, a grande contribuição des- classe média cuja ascensão social ha- A década de 1960 também foi um
sa historiografia, que é muito diversa via sido possibilitada por mudanças momento de grande mobilização das
em suas características, é apresentar econômicas suscitadas no período do classes trabalhadoras. Desde o fim
e discutir uma mobilização estudantil chamado “milagre econômico” – que do movimento ferroviário, uma das
que, apesar de inserida num contex- abriu a economia mexicana para os maiores mobilizações de trabalhado-
to muito amplo de movimentos de investimentos e a entrada de capital res já registradas no país e que aca-
contestações numa escala mundial, estrangeiro –, o país convivia com um bou sendo duramente reprimida em
possuía especificidades importantes intenso êxodo rural e aumento da de- 1958, sindicatos, grêmios e associa-
e que refletiam a própria construção sigualdade social. Essa realidade ha- ções de categorias profissionais mo-
política mexicana e o esgotamento de via sido consequência dos modelos de bilizaram-se para reivindicar maior

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TEMA DE CAPA

participação política, melhorias nas mente, em seus ambientes urbanos e Executivo, por exemplo, que permi-
condições de trabalho e fim da re- inseridos na lógica do “milagre econô- tiram aos presidentes mexicanos do
pressão aos seus movimentos. Den- mico” – não estiveram isentos dessas século XX controlarem boa parte do
tre eles se destacam, por exemplo, o influências. Além das notícias sobre Legislativo e do Judiciário nacional.
movimento médico e o movimento as mobilizações em todo o mundo, a Além disso, o próprio Código Penal
de professores, este que, no início eclosão das rebeldias, os sonhos e uto- deu o alvará jurídico e legal para a
de 1960 já discutia questões como pias compartilhados pela juventude, prática de medidas repressivas contra
a falta de autonomia universitária e os estudantes mexicanos dividiam as grupos e movimentos enquadrados no
problemas na legislação trabalhista. referências teóricas e históricas que chamado “delito de disolución nacio-
circulavam nos ambientes acadêmicos nal”. O fim desse mecanismo de atu-
No campo, as mobilizações também
de outros lugares, como Paris, Estados ação repressiva da polícia e do corpo
se faziam presentes, como o caso da
Unidos, América Latina. de “granaderos” (a polícia antimotins
Asociación Cívica Guerrerense, uma
que atuou contra vários movimentos
organização sindical criada em 1959 Entre os estudantes mexicanos, é
sociais) foram, vale destacar, duas das
que reuniu líderes e trabalhadores in- necessário destacar que não eram um
principais demandas do movimento
dígenas camponeses para reivindicar grupo hegemônico, circulavam ideias
estudantil de 1968.
as questões de terra e autonomia pro- e referenciais que diziam respeito à
dutiva, além de denunciar e combater Revolução Bolchevique, à Revolução O PRI também conseguiu cooptar
as repressões e crimes cometidos pe- Cubana, à Revolução Cultural chinesa, boa parte das lideranças sindicais na
los latifundiários do estado de Guer- sobre as críticas à Guerra do Vietnã, o época de Lázaro Cárdenas e com a
rero e as arbitrariedades do então go- apoio aos processos de descolonização. criação da Central de Trabalhadores
vernador Raúl Arturo Caballero. Esses estudantes liam Lenin, Marx, Mexicanos - CTM, que congregou as
Rosa Luxemburgo, Trotsky, Mao Tsé- antigas estruturas de mobilização
O México da década de 1960 con-
Tung, Fidel Castro, Che Guevara. Por profissional e as manteve sob a vi-
vivia, portanto, com essas desigual-
causa dessas referências, o movimento gilância do Estado. Somam-se a isso
dades extremas. Ao mesmo tempo, mecanismos de fraudes eleitorais,
estudantil de 1968 no México conta-
faziam-se presentes inúmeros movi- ameaças a candidatos de oposição e
va com grupos maoístas, trotskistas,
mentos e organizações de contestação
54 e resistência. A explosão demográfica
marxistas ortodoxos, guevaristas, dis- uma constante perseguição ao PCM,
sidentes e ainda partidários do Partido principal opositor do PRI.
das cidades naquele momento era a
Comunista Mexicano - PCM e de suas Todas essas estratégias foram colo-
consequência imediata de um “mila-
diretrizes político-programáticas, além cadas em prática a partir de mano-
gre econômico” relativo e excludente
de setores, podemos dizer, mais conci- bras para ocultar o caráter repressivo
que, por outro lado, tinha impactos
liadores e centristas. e controlador da política priista. Por
nada favoráveis às populações cam-
ponesas e indígenas. Obviamente, os Vale destacar que o movimento es- outro lado, nos discursos de seus
centros de educação superior não se tudantil mexicano também disputava presidentes se reivindicava o nacio-
isentariam de discutir tais problemas símbolos nacionais como a figura dos nalismo, as heranças da Revolução
e as questões sociais mais urgentes. líderes camponeses Emiliano Zapata, Mexicana e se exaltavam símbolos
Pancho Villa e do antigo presidente nacionais e populares.
indígena Benito Juárez, apropriados Por isso, o que se atesta é que, para
IHU On-line — Quais influên- pelo discurso supostamente naciona- além do movimento estudantil de
cias externas incidiram no mo- lista e revolucionário do PRI. 1968, as mobilizações sociais, de
vimento estudantil mexicano
caráter pacífico ou não, foram du-
em 1968?
ramente afetadas por essa estrutura
IHU On-line — Que relação o
Larissa Jacheta Riberti — É priista que controlou o poder por
PRI exerceu no México no sé-
inegável que a mobilização estudantil quase todo século XX. Os já citados
culo XX e com os movimentos
de 1968 no México é também parte movimentos ferroviário, de profes-
sociais? Quais foram as conse-
de um grande mosaico de manifes- sores e médico também sofreram
quências de 70 anos de priismo
tações que aconteceram no mundo com as estratégias repressivas. Os
para esses movimentos?
todo. O maio parisiense, a primavera movimentos estudantis de 1968 e
de Praga, as lutas guerrilheiras por Larissa Jacheta Riberti — O 1971 também não ficaram isentos
toda América Latina, as mobilizações impacto do PRI nos movimentos so- da maneira violenta e violadora que
nos Estados Unidos, a contracultura ciais ainda pode ser sentido. Desde o Estado historicamente havia lida-
e as manifestações por liberdade de sua criação, em 1929, o partido criou do com a oposição. Posteriormente,
expressão e liberdade sexual foram mecanismos para o controle e a coop- essas práticas foram sistematizadas
fatores que impactaram a vida dos es- tação da dissidência, buscando, assim, e aperfeiçoadas para a perseguição e
tudantes mexicanos daquele momen- garantir a sua permanência no poder. combate às guerrilhas rurais e urba-
to. Nem eles, nem a própria sociedade Dentre essas estratégias estavam di- nas que surgiram no país principal-
mexicana, que – como dito anterior- reitos “extraconstitucionais” ao Poder mente na década de 1970.

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IHU On-line — Como se desen- do país naquela época. O movimento no final dos anos 1990, os primeiros
cadeou o Massacre de Tlatelolco? também contou com o decisivo apoio estudos acadêmicos sobre a Opera-
da classe intelectual, do professorado, ção Galeana – como foi chamado o
Larissa Jacheta Riberti — O
dentre eles o próprio reitor da Unam, operativo de 2 de outubro de 1968
Massacre de Tlatelolco de 2 de outu-
Javier Barros Sierra, e de outras cate- –, e com base nesses arquivos, foram
bro de 1968 foi justamente a expressão
gorias profissionais como a operária publicados. Ainda hoje, há controvér-
máxima de um Estado autoritário, da
e a camponesa. Assim, tanto o caráter sias sobre o episódio, o que dificulta a
prática repressiva em nome da hege-
criminoso e violador do massacre de atribuição de responsabilidades.
monia priista. É considerado um dos
Tlatelolco, quanto a legitimidade da
episódios mais tristes da história me- Para além do próprio movimento
atuação dos estudantes entre a opi-
xicana. E isso se dá, na minha opinião, estudantil, que não conseguiu se re-
nião pública, foram fundamentais
por dois fatores principais. Um deles articular após o massacre de Tlate-
para que o episódio fosse considera-
foi a maneira como se orquestrou a lolco, podemos dizer que houve uma
do um dos mais trágicos da história
estratégia repressiva: um plano de cisão entre as lideranças estudantis
mexicana, bem como um momento
ataque ao movimento estudantil para naquele momento. Em cidades como
de ruptura, divisor de águas, na polí-
ser executado exatamente dez dias an- Guadalajara, Cidade do México e
tica e na sociedade mexicana.
tes do início das Olimpíadas, o grande Nuevo León, começaram a surgir nos
evento internacional e através do qual anos 70 grupos radicais conformados
o PRI defendia o caráter democrático IHU On-line — Quais impactos por estudantes e que reivindicavam
do seu governo e do Estado mexica- o Massacre de Tlatelolco gerou a luta armada e a clandestinidade,
no. O acordo foi feito entre o Estado no movimento estudantil mexi- numa declarada oposição às estraté-
Maior da Presidência com a partici- cano? gias pacíficas da “geração” de 1968.
pação de generais do exército e do O desenvolvimento desses grupos
Batalhão Olímpia, esquadrão especial Larissa Jacheta Riberti — O conformaria guerrilhas urbanas que
que, naquela época, deveria garantir a massacre foi um duro golpe contra o foram duramente perseguidas e re-
segurança durante os jogos. O plano movimento. Como já dito, todos os lí- primidas pelos governos priistas até
contou com a anuência do Estado, en- deres do Conselho Nacional de Greve o final da década de 1980.
foram presos na operação de 2 de ou-
tão presidido por Gustavo Díaz Ordaz 55
e com a participação do Secretário de tubro. Estiveram na prisão de Lecum-
Governo, Luis Echeverría. A estratégia berri e no Campo Militar n. 1 até 1971, IHU On-line — Como se traba-
era acabar com o movimento, prender quando foram anistiados por Eche- lha a memória do Massacre de
as lideranças, liquidar qualquer tenta- verría, sucessor de Díaz Ordaz, numa Tlatelolco na política mexica-
tiva de reorganização. estratégia política de “abertura de- na? Que sujeitos a sustentam?
mocrática”. Outros estudantes foram
A ação foi iniciada quando luzes Larissa Jacheta Riberti — A
exilados e, assim, impossibilitados
verdes sinalizadoras provenientes memória do movimento estudantil
de continuar atuando. Alguns setores
de helicópteros deram a autorização e do massacre de Tlatelolco tem sido
ainda tentaram alguma mobilização,
para que os franco-atiradores posi- sustentada sobretudo pelos ex-líderes
mas o movimento ficou enfraqueci-
cionados nos edifícios que rodeavam do Conselho Nacional de Greve e par-
do. Isso se deu também porque no dia
a praça iniciassem os disparos. Logo ticipantes das mobilizações. São eles
seguinte ao massacre, os veículos de
as vozes mais privilegiadas no espaço
após, vieram as balas das armas dos comunicação de grande circulação no
público. Eles detêm de uma legitimi-
efetivos do exército que bloqueavam México deram início a uma campanha
dade na opinião pública que é possí-
as avenidas de saída do local. Ao de difamação dos estudantes. Divul-
vel identificar até os dias atuais. Um
mesmo tempo, membros do Bata- garam amplamente a “versão oficial”
deles, Raúl Álvarez Garín, faleceu re-
lhão Olímpia executaram a prisão de dos acontecimentos, destacando que
centemente e encampou uma série de
todos os líderes do Conselho Nacio- os estudantes haviam sido responsá-
iniciativas para se rememorar aquele
nal de Greve – órgão central do mo- veis pelo tiroteio ocorrido na Praça
momento. Esteve à frente do Comitê
vimento – que discursavam no ter- das Três Culturas, já que os primeiros
68, órgão que, até hoje, lidera as mar-
ceiro andar do Edifício Chihuahua. tiros teriam, segundo essa versão, sido
chas de 2 de outubro e é um dos prin-
disparados por “franco-atiradores” li-
O segundo fator é o fato de que o cipais organismos civis em nome da
gados ao movimento e que se encon-
movimento estudantil de 1968 con- memória e da justiça. Para além des-
travam nos telhados dos edifícios que
tava com ampla aceitação social. O se caso em específico, temos também
rodeavam a praça.
caráter pacífico de sua luta – apesar a produção de uma série de obras de
das barricadas, incêndios de ônibus e A falsa versão só seria de fato dis- antigos membros do movimento que
estratégias combativas de luta – era putada e contestada após a saída dos fazem parte da historiografia sobre
bem-vindo entre a sociedade, sobre- ex-membros do movimento estudan- o tema e que falam sobre a memória
tudo entre as classes médias que, til da prisão e o retorno dos exilados. construída por esses agentes sobre
como já destacado, haviam ascen- Os arquivos sobre esse tema só se- suas próprias experiências. No âmbito
dido socialmente nas áreas urbanas riam abertos décadas mais tarde e, só civil e público, não foram poucas as

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TEMA DE CAPA

manifestações, debates e iniciativas processo. No entanto, é preciso tam- var outras reformas empreendidas por
para se rememorar o ano de 1968. bém considerar que as guerrilhas rurais seu governo. O novo presidente optou
Existe um monumento na Praça das e urbanas que começaram a aparecer por criar a Fiscalía Especial para Mo-
Três Culturas, inaugurado em 1993, na sociedade mexicana desde meados vimientos Sociales y Políticos del Pa-
que homenageia algumas das pessoas da década de 1960 também exerceram sado - Femospp. Foi uma espécie de
que morreram durante o massacre. um papel fundamental de opositores corregedoria, sob responsabilidade da
ao governo. Ao contrário da luta estu- Procuradoria Geral da República, na
Em 2008, a Unam inaugurou o
dantil de 1968, que pregava reformas época chefiada pelo militar Rafael Ma-
Memorial de 1968, uma exposição
no sistema político, participação efeti- cedo de la Concha. O modelo de Fis-
permanente no Centro Cultural Uni-
va e fortalecimento da democracia, as calía Especial é conhecido no México
versitário Tlatelolco, num espaço e pouco acreditado pela população, já
guerrilhas propunham a derrubada do
junto ao prédio do Ministério das que experiências anteriores com esse
sistema e sua substituição por um novo
Relações Exteriores, na Praça das tipo de órgão investigativo não tive-
modelo. Eram um perigo ao establish-
Três Culturas. A exposição exibe car- ram resultados satisfatórios.
ment mexicano, aos grupos empresa-
tazes, livros, imagens, documentos e
riais, e à elite política priista. Na minha A Femospp foi, então, o instrumen-
disponibiliza uma série de entrevis-
percepção, portanto, é preciso inserir to de justiça de transição do Estado
tas com ex-membros do movimento
também os movimentos guerrilheiros mexicano que pretendeu investigar os
estudantil e intelectuais mexicanos
– em geral bastante obscurecidos pelo crimes contra os movimentos de 1968
que buscam promover a memória
protagonismo exercido pelo movimen- e 1971, bem como contra as guerrilhas
sobre esse passado.
to estudantil de 1968 – nesse debate que atuaram entre as décadas de 1960
Oficialmente, o 2 de outubro é con- sobre a transição mexicana e reconhe- e 1980. Teve um caráter sobretudo ju-
siderado luto nacional desde 2008. cer seu protagonismo nesse processo. rídico, mas esbarrou em muitos obstá-
Existe também uma classe política, culos como a falta de vontade política
De fato, a transição só alcançaria
sobretudo de partidos mais de esquer- em levar adiante as investigações, um
seu “ápice” com a eleição de Vicente
da e de centro, que se considera “her- ordenamento jurídico ainda muito
Fox, do Partido da Ação Nacional -
deira” das reivindicações dos estu- conservador quanto à agenda de pro-
PAN, em 2000. Ela foi o resultado
dantes de 1968, da democratização do teção e promoção dos direitos huma-
56 Estado. Por isso, não é raro ouvir em
de uma forte aliança entre setores de
centro-direita e da esquerda mexica- nos, a falta de confiança de setores da
discursos e em sessões do Congresso sociedade civil, como as organizações
na. O voto útil, foi assim a estratégia
Nacional referências a esses estudan- de familiares de vítimas e as contra-
que reuniu as lideranças políticas em
tes e sua luta. No entanto, é verdade dições da gestão foxista em nome da
nome da transição. A transição à de-
também que oficialmente, com exce- governabilidade. O organismo iniciou
mocracia no México foi um processo
ção da Fiscalía Especial, criada por votado, endógeno, mas que não re- processos investigativos, mas não re-
Vicente Fox em 2001, e dos trabalhos presentou a substituição de boa par- sultou na condenação dos perpetrado-
realizados pela Comissão Nacional de te da classe política nacional que, em res de violações aos direitos humanos.
Direitos Humanos, muito pouco foi espaços como Câmaras Municipais No entanto, o grupo de investigação
feito em nome da responsabilização e Congresso Nacional, ainda estava histórica da Femospp conseguiu pro-
pela matança de 2 de outubro. No ge- fortemente atrelada ao PRI. duzir um informe bastante importe,
ral, portanto, a promoção da memória
Em suas campanhas, Vicente Fox cuja narrativa dá conta de explicitar os
e a luta pela justiça tem ficado a cargo
prometeu criar uma comissão da mecanismos repressivos e agentes re-
de organismos civis de direitos hu-
verdade para atender aos anseios de pressores do Estado que atuaram nes-
manos, de familiares de vítimas e de
organismos civis de direitos huma- ses diferentes episódios. Para alguns,
ex-líderes e membros do movimento
nos e familiares de vítimas que de- o Informe carece de validade. Desde a
estudantil de 68.
mandavam a investigação dos casos minha perspectiva, porém, que analisei
de assassinato, perseguição, tortura seu conteúdo pensando-o enquanto
IHU On-line — Como acon- e desaparecimento de guerrilheiros objeto da história, ele é um importan-
teceu a justiça de transição no nas décadas passadas. Era urgente, te instrumento para se verificar como
México? portanto, iniciar processos de investi- o Estado mexicano construiu sua pró-
pria história, marcada por violências,
gação desses casos e atribuir respon-
Larissa Jacheta Riberti — O de- massacres e violações aos direitos hu-
sabilidades aos perpetradores, muitos
bate sobre o processo de transição me- manos. É inegável que há um reconhe-
deles vinculados ao Estado, ao exérci-
xicana é extenso e não há um consenso cimento muito claro dessas práticas
to e às corporações policiais.
sobre quando ele foi iniciado e se ele re- repressivas, de sua sistematização e do
almente terminou. Eu acredito que as Já no poder Vicente Fox não criou impacto social das mesmas. Essa é uma
lutas sociais da década de 1960, e nesse uma comissão da verdade, pois tal das contribuições mais importantes do
contexto inserida a dos estudantes em proposta desagradou à grande maio- Informe produzido pela Fiscalía. Esse
68, foram um conjunto de aconteci- ria do corpo legislativo ligado ao PRI e é um dos motivos, por exemplo, de tal
mentos que determinou o início desse cujo apoio Fox necessitava para apro- Informe ter sido ocultado pelo próprio

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governo do PAN, que não promoveu professor normalista que se tornaria o xo também da descrença do mexica-
sua difusão de maneira ampla. Hoje, líder guerrilheiro do Partido de los Po- no em relação ao sistema político) e a
não é possível encontrar uma cópia ofi- bres, cujos membros atuaram clandes- atuação de classes empresariais hege-
cial do Informe, não existe um site que tinamente na região da Serra de Atoyac mônicas que manipulam a opinião pú-
reúna os documentos produzidos pela na década de 1970. blica e apoiam candidatos que possam
Femospp e esse fundo documental está representar seus interesses.
O que eu quero dizer é que esses es-
“perdido”. O debate sobre o assunto é
tudantes de Ayotzinapa cumpriam um Nesse sentido, ativar a memória so-
muito mais amplo e existem muitos de-
papel político e reivindicavam suas an- bre o Movimento Estudantil de 1968
talhes e discussões sobre a atuação da
tigas lideranças. Eram herdeiros de Ca- é uma ação importante para que pos-
Fiscalía e o papel do Informe Histórico.
bañas e Zapata na luta pela terra e inco- samos promover debates sobre o que
Ele ainda carece de atenção por parte
modavam as estruturas hegemônicas representou a mobilização daquele
da academia e da sociedade.
de poder. Foram reprimidos quando se momento e suas críticas a um modelo
dirigiam justamente à marcha de 2 de político e partidário que, já naquela
IHU On-line — A história me- outubro que aconteceria na Cidade do época, encontrava-se esgotado. É im-
xicana é marcada por assassi- México. Seu desaparecimento deriva portante para que sejam retomadas
natos e golpes políticos. Porém, do fato de que esses estudantes passa- as discussões sobre as utopias, os so-
a violência contra o movimento ram pela cidade de Iguala e pretendiam nhos e as estratégias de luta daqueles
estudantil, como a repressão fazer uma intervenção à cerimônia de estudantes. Esse é um exercício im-
na Plaza de Tlatelolco, El Hal- apresentação do Informe de Governo portante de conhecer o passado para
conazo, em 1971, e o desapare- do então prefeito da cidade, ocasião mudar o presente.
cimento dos 43 estudantes de que também serviria para lançar a can- Nesse sentido, devemos entender
Ayotzinapa, em 2014, pode ser didatura de sua esposa à prefeitura. que o movimento de 68 não se resu-
considerada característica da Ambos eram acusados de ligação com me a tragédia do Massacre de Tla-
política mexicana? o narcotráfico. telolco. Ele foi amplo e representou
Larissa Jacheta Riberti — Exis- O desaparecimento dos 43 estudan- uma mobilização que se fazia presente
te uma continuidade muito clara das tes foi fruto de uma manobra estatal desde julho de 1968. Uniu estudantes
e dentre os responsáveis figuram não secundaristas e universitários, classe 57
práticas repressivas no México, o que
não significa que o México seja uma apenas o prefeito da cidade de Iguala e trabalhadora, política e intelectuais.
sua esposa, mas também o secretário O movimento continha uma série de
sociedade cuja característica principal
local de segurança, policiais e narco- demandas, seus membros atuavam
é “uma cultura da violência” partilhada
traficantes. O caso revela a triste con- politicamente e disputavam os espa-
por todos. O que se verifica no país é
tinuidade das práticas repressivas por ços públicos. Ou seja, entender o 68
uma estrutura política baseada na ma-
parte do Estado, que resultam em per- mexicano não se resume a debater a
nutenção do poder a qualquer custo.
violência do massacre de Tlatelolco.
A hegemonia priista foi mantida com seguições, assassinatos, desapareci-
base em uma série de mecanismos, le- mentos, ou seja, violações permitidas Não podemos cair no erro de sa-
gais e ilegais, que facilitaram sua per- por uma impunidade que se perpetua. cralizar a luta ou vitimizar os prota-
manência no poder por décadas. gonistas daquela época de maneira a
marginalizar o caráter político de suas
O caso do desaparecimento dos es- IHU On-line — As eleições reivindicações, ainda que seja preciso
tudantes de Ayotzinapa é uma prova deste ano coincidem com os 50 denunciar a violência e as violações
da continuidade dessas práticas. Vale anos do Massacre de Tlatelolco. cometidas naquele momento. Nesse
lembrar que esses estudantes perten- Em que medida o evento é rele- contexto de 50 anos de 1968, então,
ciam à Escola Normal Rural Raúl Isi- vante para a oposição ao PRI? uma das tarefas é a de não se esquecer
dro Burgos, situada numa região de
Larissa Jacheta Riberti — O de quem foram os perpetradores da
antigos conflitos rurais entre latifun-
PRI voltou ao poder em 2012, com a repressão, quem são os herdeiros des-
diários e poder local contra populações
eleição de Enrique Peña Nieto numa sa classe política hegemônica e como
indígenas camponesas. Atualmente, a
disputa contra Andrés Manuel López eles ainda atuam dentro do ordena-
região de Ayotzinapa, assim como todo
Obrador. Na época, houve uma série mento institucional.
o estado de Guerrero, ainda sofre com
a expansão dos cartéis narcotraficantes de denúncias de compra de votos que Fazer um debate sobre o 68 mexi-
e suas relações com o poder institucio- havia sido executada dias antes das cano é imprescindível para que, 50
nal. Esta Escola Normal, assim como eleições pelo PRI. Há uma oposição anos depois, possamos conhecer de
várias outras com esse mesmo caráter, social muito grande ao velho partido, fato quem são os representantes po-
tem como projeto educacional a luta mas até hoje não se conseguiu aprovar líticos interessados em atender as
pela terra e pela autonomia produtiva, nas urnas um projeto de Estado mais demandas pendentes sobre aquele
a promoção das tradições indígenas e progressista ou à esquerda. Dentre as momento, como a justiça, a promo-
camponesas. Pela escola de Ayotzinapa causas estão as fraudes eleitorais, o ção da memória e da verdade e a não
passaram nomes como Lucio Cabañas, grande número de abstenções (refle- repetição das violações. ■

EDIÇÃO 521
TEMA DE CAPA

Allende é eleito em 70 no rastro de 68


Joana Vasconcelos analisa o impacto dos movimentos
globais na década de 1960 no Chile
Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: João Vitor Santos

M
aio de 1968 foi intenso, mas práticas diferentes. A cultura política das
vivido de forma diferente em esquerdas latino-americanas é extrema-
distintos lugares do globo. Na mente complexa e diversificada”. É o caso
América Latina, a profusão ocorrida nes- da relação que tem, por exemplo, com
se ano leva à eleição, dois anos depois, Cuba, onde não há uma adesão completa.
de Salvador Allende, no Chile. Hoje, dis- “A relação das esquerdas chilenas com a
cute-se a necessidade de reinvenção de revolução cubana era bastante complexa.
uma esquerda latino-americana, porque Por um lado, a revolução cubana era a
se vive uma espécie de ressaca depois de grande fonte de inspiração para todas as
muitos governos progressistas no conti- esquerdas do continente. Por outro lado,
nente. Não seria sentimento similar ao a mesma revolução cubana desarmava a
que se tem no Chile pós-Allende, numa tese do ‘feudalismo’ e da necessidade da
espécie de certa decepção pelo que se ‘etapa burguesa’”, avalia.
esperava que viria depois de tamanha Joana Salém Vasconcelos é gra-
58 profusão? Embora tido como ápice de duada em História pela Universidade
um processo deflagrado em 68, a profes- de São Paulo - USP, mestra em Desen-
sora Joana Salém Vasconcelos alerta que volvimento Econômico pela Universi-
a eleição não pode ser tomada só como dade Estadual de Campinas - Unicamp
coroamento das reinvindicações. O país e doutoranda em História Econômica
estava dividido, sem uma grande base de na USP. Atualmente, é professora visi-
esquerda. “Uma primeira lembrança so- tante na University of California - UCI,
bre as eleições chilenas de 1970 é que Sal- Irvine. Especialista em América Latina,
vador Allende ganhou com apenas 36,6% investiga a história das reformas agrá-
do eleitorado e menos de 40 mil votos de rias, das esquerdas e das revoluções so-
distância do segundo colocado, o conser- cialistas latino-americanas, articuladas
vador Jorge Alessandri”, recorda. à história do pensamento marxista, da
Na entrevista a seguir, concedida por teoria da dependência e da teoria do de-
e-mail à IHU On-Line, Joana repassa senvolvimento. Entre suas publicações,
pontos da história chilena para tentar destacamos História agrária da revolu-
compreender a esquerda latino-america- ção cubana: dilemas do socialismo na
na desde esse país e a partir de 1968. Mas periferia (São Paulo: Alameda, 2016) e
ela ressalva: “‘a esquerda’ é uma ficção. Cuba no século XXI: dilemas da revolu-
Existem muitas esquerdas, com prio- ção (São Paulo: Elefante, 2017).
ridades, programas, teorias, métodos e Confira a entrevista.

IHU On-line — Como a Unidad dor Allende2 em 1970? Joana Salém Vasconcellos —
Popular1 construiu sua base de Uma primeira lembrança sobre as
apoio para a eleição de Salva- 2 Salvador Allende (1908-1973): médico e político mar- eleições chilenas de 1970 é que Sal-
xista chileno. Em 1970, foi eleito presidente do Chile pela vador Allende ganhou com apenas
Unidade Popular, um agrupamento político formado por
socialistas, comunistas e por setores católicos e liberais do 36,6% do eleitorado e menos de 40
1 Unidad Popular: também conhecida pela sigla UP, foi Partido Radical e do Partido Social Democrata que contava
uma coalizão eleitoral de partidos políticos de esquerda no com grande apoio dos trabalhadores urbanos e campone-
Chile que levou Salvador Allende à Presidência da Repúbli- ses. Governou o país até 11 de setembro de 1973, quando fe das Forças Armadas, Augusto Pinochet. (Nota da IHU
ca. (Nota da IHU On-Line) foi deposto por um golpe de estado liderado pelo che- On-Line)

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“A esquerda é uma ficção.


Existem muitas esquerdas, com
prioridades, programas, teorias,
métodos e práticas diferentes”

mil votos de distância do segun- de 1974, ambos líderes do consti- absorção técnico-institucional das
do colocado, o conservador Jorge tucionalismo dentro das Forças Ar- demandas “debaixo” pelo governo.
Alessandri3. Ou seja, essa “base de madas. Allende afinal tomou posse Essa tensão talvez seja um dos pro-
apoio” do Allende não era maioria devido a um acordo com o terceiro cessos históricos mais estudados da
absoluta. Não havia 2º turno e o candidato, Radomiro Tomic7, que América Latina, porque o drama da
Congresso precisava confirmar o representava a ala esquerda da De- “via chilena ao socialismo” conden-
candidato vitorioso. Joan Garcés4, mocracia Cristã - DC. Essa aliança sa problemas até hoje vividos pelas
assessor de Allende na época, narra com a DC tornou-se uma espécie de esquerdas.
que entre outubro e novembro de fantasma da Unidade Popular, ob-
Por último, naquela conjuntura,
1970 algumas articulações foram jeto das maiores polêmicas da “via
a base de apoio de Allende cresceu
feitas para impedir que o socialis- chilena ao socialismo”.
expressivamente devido à decep-
ta se tornasse presidente, entre a
Um segundo ponto é que a base ção com o governo de Eduardo Frei
direita chilena, setores militares,
eleitoral de Allende era muito diver- Montalva8. A DC havia prometido
a empresa estadunidense Interna-
sa e com trajetórias heterogêneas de uma “revolução em liberdade”, mas
tional Telephone and Telegraph e
a CIA. Mas, naquele momento, o
luta popular: trabalhadores indus- não foi capaz de executá-la na velo- 59
triais, estudantes, mineiros, intelec- cidade e sentido que seus apoiado-
bloco da direita ainda estava mui-
tuais, pobladores e camponeses de res exigiam. Então uma parte des-
to fragmentado: alguns defendiam
diferentes partes do país. Cada um sa insatisfação com o reformismo
um golpe militar, outros uma obs-
desses setores carregava consigo de Frei se deslocou e se identificou
trução pelo Congresso, e enfim o
memórias coletivas e experiências com a retórica revolucionária da
plano fracassou.
próprias, crenças e aspirações espe- Unidade Popular.
Joan Garcés também lembra que cíficas, correspondentes a um acú-
o governo da Unidade Popular - UP mulo histórico de lutas, resistências
foi “emoldurado” por dois assas- e conquistas. Isso é importante para IHU On-line — Como a es-
sinatos emblemáticos: do general entender que uma multiplicidade querda chilena estava organi-
Schneider5, em outubro de 1970, de expectativas sociais foi deposi- zada em relação aos movimen-
e do general Pratts6, em setembro tada no governo da Unidade Popu- tos sociais latino-americanos?
lar, gerando uma tensão crescente Houve aproximação ou distan-
3 Jorge Alessandri Rodríguez (1896-1986): engenheiro, entre a criação do poder popular, a ciamento com a Organização
político e empresário chileno, filho de Arturo Alessandri ação direta das bases de apoio e a Latino-americana de Solidarie-
Palma. Foi ministro da fazenda entre 1947 e 1950 e presi-
dente da república entre 1958 e 1964. Disputou a eleição dade - OLAS9?
presidencial de 1970, mas perdeu para Salvador Allende,
que se tornou o primeiro chefe de estado marxista de- Joana Salém Vasconcellos —
mocraticamente eleito do mundo. (Nota da IHU On-Line) to Pinochet nesse cargo. Foi nomeado Comandante em
4 Joan Garcés, Allende e as armas da política. São Paulo: Chefe das Forças Armadas pelo Presidente Eduardo Frei “A esquerda” é uma ficção. Existem
Scritta, 1993. (Nota da entrevistada) Montalva, logo após o assassinato de seu antecessor e
5 General René Schneider Chereau (1913-1970): foi o Co- amigo General René Schneider, tendo sido ratificado no
mandante-em Chefe das Forças Armadas chilenas no perí- cargo por Salvador Allende, de quem foi também Minis-
odo da eleição de Salvador Allende à presidência do Chile, tro do Interior, Ministro da Defesa e Vice-presidente da 8 Eduardo Nicanor Frei Montalva (1911-1982): filho de
durante o qual foi assassinado numa tentativa desastrada República. Constitucionalista e legalista, recusou-se a par- um imigrante suíço de classe média, foi político do parti-
de sequestro, atribuída ao Projeto Fubelt. O escândalo e a ticipar de qualquer golpe de estado, razão pela qual se do centrista chileno democrata cristão e foi presidente do
revolta provocada por seu assassinato ajudaram Salvador viu obrigado a renunciar, abrindo assim o caminho para o Chile de 1964 até 1970, sendo o primeiro democrata cris-
Allende a ser confirmado pelo Congresso Nacional dois sangrento golpe militar de Augusto Pinochet. Morreu no tão chefe de Estado das Américas. (Nota da IHU On-Line)
dias depois. Scheinder criou a doutrina de mútua exclusão exílio em Buenos Aires. Foi uma das vítimas do regime di- 9 Organização Latino-Americana de Solidariedade -
político-militar, que se tornou conhecida como a “Doutri- tatorial de Pinochet sendo alvo de um atentado a bomba OLAS: foi uma organização criada em agosto de 1967 em
na Schneider”. Considerado um militar constitucionalista, cometido em 1974 pela Dirección de Inteligencia Nacional Cuba, composta por diversos movimentos revolucionários
seu assassinato gerou um repúdio generalizado na nação DINA, a polícia secreta pinochetista, em Buenos Aires, no e anti-imperialistas da América Latina que, em maior ou
chilena. Antes do golpe em 1973, o General Pinochet faria qual morreu, juntamente com a esposa, Sofía Cuthbert. menor medida, compartilhavam as propostas estratégicas
um tributo ao General Schneider que havia sido morto, (Nota da IHU On-Line) da Revolução Cubana. A proposta de criação da OLAS se
disse: “[morreu] porque defendeu nossas instituições de- 7 Radomiro Tomic Romero (1914-1992): foi um político realizou depois do sucesso da Primera Conferencia Tricon-
mocráticas... e os princípios constitucionais e legais que chileno, candidato à presidência da República na eleição tinental de Solidaridad Revolucionaria, na qual se reuni-
todo militar jura respeitar e obedecer”. Durante os anos de 1970. Advogado da Pontifícia Universidade Católica ram mais de quinhentos delegados de organizações revo-
iniciais de sua ditadura, Pinochet perdoou os assassinos do Chile. Ele começou sua atividade política nos círculos lucionárias da Ásia, África e América Latina. A conferência
de Schneider. (Nota da IHU On-Line) sociais cristãos da UC. Foi um dos cofundadores da Na- ocorria em meio à crise dos mísseis cubana, e o objetivo
6 General Carlos Prats González (1915-1974:) foi Co- tional Falange (futura Democracia Cristã). (Nota da IHU era ampliar a luta contra o imperialismo norte-americano
mandante-chefe do Exército chileno, antecedendo Augus- On-Line) e expandir a revolução. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

muitas esquerdas, com prioridades, meu bom amigo Salvador Allende, uruguaios, argentinos, paraguaios,
programas, teorias, métodos e prá- de Fidel, que por meios diferentes bolivianos etc.
ticas diferentes. A cultura política tenta atingir os mesmos objeti-
Uma segunda forma de solida-
das esquerdas latino-americanas é vos”12. O partido mais guevarista
riedade aconteceu depois do golpe
extremamente complexa e diversifi- da revolução chilena, o MIR, era
de 1973, quando parte da esquerda
cada. Por isso, as esquerdas chilenas uma pedra no sapato dos comu-
chilena articulou as redes interna-
se relacionavam com os movimentos nistas. A relação entre comunistas
cionais contra a tortura, contra as
sociais latino-americanos e com a chilenos e o miristas chegou a ul-
ditaduras, contra a violação dos di-
OLAS de maneiras variadas. trapassar a mera rivalidade para
reitos humanos. E outra parte, ainda
tornar-se confronto direto.
O território político propulsor da esperançosa na revolução, optou por
OLAS e da OSPAAAL era Havana. Nesse sentido, a solidariedade um ativismo de “ofensiva”, enviando
Em 1967, quando surgiram, Cuba internacional era ambivalente. militantes para atuarem diretamen-
iniciou o movimento de “ofensiva Por exemplo, os miristas envia- te em guerrilhas na Nicarágua, no
revolucionária”, um dos mais ra- vam seus quadros para treinamen- Peru, na Argentina e outras partes
dicalizados esforços coletivos de to guerrilheiro em Cuba e quando do continente.
construção do socialismo até então voltavam não havia no Chile cená-
– ou do que se imaginava que deve- rio social compatível com a guerri-
ria ser o socialismo. A relação das lha. Os comunistas adotavam uma
esquerdas chilenas com a revolu- retórica entusiasta da revolução “A cultura
ção cubana era bastante complexa. cubana, mas sem nunca compac-
Por um lado, a revolução cubana tuar com sua tática e insistindo na política das
esquerdas
era a grande fonte de inspiração necessidade vital da aliança com a
para todas as esquerdas do con- pequena burguesia. Todos queriam
tinente, um exemplo que exercia
atração implacável sobre o ima-
propagar a revolução na América
Latina, mas cada um da sua manei- latino-
60
ginário popular. Por outro lado, a
mesma revolução cubana desar-
ra, então as expressões da solida-
riedade eram marcadas pela pre- americanas é
mava a tese do “feudalismo” e da
necessidade da “etapa burguesa”,
sença dessas divisões.
extremamente
adotada pela oficialidade dos Par-
tidos Comunistas. O debate da via
Solidariedades de esquerdas
complexa e
chilena entrava nessa frequência:
era possível construir o socialismo
Por último, diria que as esquerdas
chilenas demonstraram sua solida- diversificada”
com recursos institucionais capita- riedade internacional de duas for-
listas? Era desejável? mas, igualmente importantes. Pri-
meiro, no período dos governos da IHU On-line — Qual a impor-
Distinções entre Chile e DC e da UP (1964-1973), o Chile tor- tância do Movimiento de los
Cuba nou-se um território de acolhimen- Pobladores13 na história do so-
to de exilados, um verdadeiro “re- cialismo chileno? Como o mo-
O historiador Peter Winn10 conta ceptor de perseguidos” no contexto vimento se construiu?
que durante o bombardeio ao Palá- da Guerra Fria. Quando Allende foi
cio de La Moneda em 11 de setem- eleito, o Brasil e o Paraguai já esta- Joana Salém Vasconcellos —
bro, Allende carregava a arma que vam em ditadura militar e a Argenti- Sobre os movimentos de poblado-
tinha ganhado de presente de Fidel na vivia uma sucessão de golpes. Não res, recomendo a leitura do novo
Castro11, na qual estaria inscrito: “A por acaso, entre os perseguidos pelas livro da historiadora brasileira
ditaduras estavam quadros de alto Marcia Cury 14. A autora dedicou
escalão, parte da intelligentsia das um capítulo à história dos pobla-
10 Peter Winn: é professor de história na Tufts University,
especializado em América Latina. Lecionou na Universida- esquerdas de vários países. Santia- dores e sua relação com os par-
de de Princeton durante a década de 1970, onde lecionou
Sonia Sotomayor, membro da Suprema Corte dos Estados go do Chile tornou-se um dos prin- tidos da esquerda chilena. A tese
Unidos, em quatro turmas e onde foi seu orientador de
cipais destinos de exilados políticos de Cury é que as experiências da
tese. Veja Antonia Felix, Sonia Sotomayor. O verdadeiro so-
nho americano (Berkeley Books, Nova York 2010) em 1944. do Cone Sul, uma verdadeira capital luta por moradia nas periferias
(Nota da IHU On-Line)
11 Fidel Alejandro Castro Ruz (1926-2016): foi um po- das esquerdas sul-americanas. Nes- de Santiago, intensificadas desde
lítico e revolucionário cubano que governou a República
se sentido, a experiência de poder a década de 1950 e culminando
de Cuba como primeiro-ministro de 1959 a 1976 e de-
pois como presidente de 1976 a 2008. Politicamente, era da Unidade Popular foi absoluta-
nacionalista e marxista-leninista. Ele também serviu como
primeiro-secretário do Partido Comunista de Cuba de mente transnacional, contando com 13 Movimento dos colonos, em tradução livre. É um mo-
1961 até 2011. Sob sua administração, Cuba tornou-se um
Estado socialista autoritário unipartidário, a indústria e os
a participação direta de brasileiros, vimento de agricultores que se articula no Chile. (Nota da
IHU On-Line)
negócios foram nacionalizados, e reformas socialistas fo- 14 Ver Marcia Cury, O protagonismo popular: experiências
ram implementadas em toda a sociedade. Castro morreu de classe e movimentos sociais na construção do socialis-
em Havana na noite de 25 de novembro de 2016, aos 90 12 Peter Winn, A revolução chilena. São Paulo: Ed. Unesp, mo chileno (1964-1973). Campinas: Editoria da Unicamp,
anos. (Nota da IHU On-Line) 2010. (Nota da entrevistada) 2017. (Nota da entrevistada)

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em 1970, criaram laços práticos dos Estados Unidos para América


de solidariedade popular entre os “A relação das Latina, propondo uma agenda de
“subalternos” que foram pouco a reformas estruturais de tipo Cepali-
pouco transformando a visão dos esquerdas no, através da plataforma da Alian-

chilenas com
partidos de esquerda sobre a luta ça para o Progresso. O objetivo era
de classes. Cury mostra que, tra- evitar a revolução. Mas o reformis-
dicionalmente, comunistas e so-
cialistas adotavam um esquema a revolução mo de Frei, financiado pelos Estados
Unidos, se mostrou uma fórmula
político mais rígido, atribuindo à
classe operária o papel de “sujeito cubana era radical e arriscada demais, acabou
gerando o efeito oposto do desejado.
revolucionário” por definição e se-
cundarizando as lutas sociais que bastante A sociedade chilena possuía uma
classe trabalhadora cada vez mais
ocorressem fora da esfera produti-
va, nos bairros.
complexa” organizada. O próprio governo Frei
foi um forte propulsor da organi-
Porém, a crescente auto-orga- zação popular, por exemplo, com a
nização dos sem-casa e a ampla lei de sindicalização camponesa de
adesão às tomas por moradia nas IHU On-line — Qual a impor- abril de 1967, que enfim permitiu
periferias da capital acabaram por tância do Massacre de Puerto que os trabalhadores rurais se as-
deslocar a atenção dos partidos da Mont para a história chilena? sociassem legalmente. O governo
Unidade Popular para esse lugar Joana Salém Vasconcellos democrata cristão pretendia criar
“secundário”. Assim, os partidos — O massacre de Puerto Montt instrumentos tutelares e canalizar
de esquerda se incorporam, parti- foi uma repressão realizada pelo as energias de revolta popular para
cipam e aprendem com a luta dos governo Eduardo Frei Montalva configurações aceitáveis ao capita-
pobladores – cada um com seu contra pobladores em 1969. Em- lismo chileno. Mas a DC perdeu o
repertório e programa. Segundo bora não fosse um ato de repres- controle. A sociedade atravessava
a historiadora, as bases sociais são isolado, gerou grande impacto um processo de empoderamento
“transformaram” os partidos, da porque 10 pessoas foram mortas, popular e auto-organização sem 61
mesma maneira que os partidos incluindo um bebê. Esse massacre precedentes e os mecanismos de
influenciaram o processo de po- foi um dos símbolos de desgaste tutela não resistiram. Assim, o go-
litização popular, ou seja, existiu sofrido pela retórica da “revolu- verno reformista tutelador vestiu
um aprendizado mútuo, cheio de ção em liberdade” proposta pela sua armadura de governo repres-
conflitos e contradições. A princi- Democracia Cristã, que ia encon- sor, para tentar recuperar o contro-
pal marca desse aprendizado era trando limites cada vez mais evi- le. O ônus dessa repressão, como
a possibilidade de uma luta social dentes. O reformismo de Eduardo comentei, foi pago nas eleições
que inaugurava em si mesma um Frei Montalva, aliás, é um outro seguintes, quando o projeto mais
novo modo de vida e uma nova re- tema interessante para reflexão radical da UP se sintonizou com os
lação entre território, sociabilidade sobre os limites do reformismo na anseios populares.
e poder popular. América Latina contemporânea.
Acho que com esse estudo Márcia Eduardo Frei Montalva foi certa- IHU On-line — Qual foi a im-
Cury15 sugere um debate fundamen- mente muito mais transformador portância da Reforma Agrária
tal para as esquerdas contemporâne- do que a maioria dos governos cha- na disputa política chilena?
as, sobre a importância do cotidiano mados “bolivarianos” ou “progres-
e dos espaços de reprodução da vida sistas” recentes. Ao mesmo tempo Joana Salém Vasconcellos —
para a razão de ser da esquerda; sobre foi um dos políticos mais sistema- Esse é o tema da minha tese de dou-
a militância comunitária, o aprendi- ticamente financiados pela CIA até torado que estou desenvolvendo na
zado dos partidos com a luta popular aquele período, como está registrado USP. A reforma agrária teve uma
auto-organizada e os vínculos de soli- nos documentos desclassificados da importância transcendental para a
dariedade tecidos dessa troca. própria agência. Naquele contexto, história chilena nesse período. Até
Kennedy16 tinha alterado a política 1958, os camponeses eram reféns de
um sistema eleitoral que favorecia o
cohecho: os patrões e seus partidos
15 Márcia Carolina de Oliveira Cury: historiadora, Dou- 16 John Kennedy [John Fitzgerald Kennedy ] (1917-1963):
tora em Ciência Política (2013) pela Universidade Estadual foi um político estadunidense que serviu como 35° presi- imprimiam as cédulas de votação e
de Campinas, com graduação (2004) e mestrado (2007) dente dos Estados Unidos (1961–1963) e é considerado assim podiam controlar os votos e
em História pela Universidade Estadual Paulista - Fran- uma das grandes personalidades do século XX. Ele era
ca. Foi membro do corpo de editores da Revista História conhecido como John F. Kennedy ou Jack Kennedy por
Social. Atua na área de História, com ênfase em História seus amigos e popularmente como JFK. Eleito em 1960,
da América, nos seguintes temas: história social, história Kennedy tornou-se o segundo mais jovem presidente do Direitos Civis nos Estados Unidos e os primeiros eventos
política, movimentos sociais, classe trabalhadora, partidos seu país, depois de Theodore Roosevelt. Ele foi presidente da Guerra do Vietnã. O presidente Kennedy morreu assas-
políticos, pensamento político, Chile. Dedica-se também de 1961 até o seu assassinato em 1963. Durante o seu sinado em 22 de novembro de 1963 em Dallas, Texas. O
à área de Metodologia de Pesquisa, Iniciação científica, governo houve a Invasão da Baía dos Porcos, a Crise dos ex-fuzileiro naval Lee Harvey Oswald foi preso e acusado
Historiografia e História Contemporânea. (Nota da IHU mísseis de Cuba, a construção do Muro de Berlim, o início do assassinato, mas foi morto dois dias depois, por Jack
On-Line) da Corrida espacial, a consolidação do Movimento dos Ruby e por isso não foi julgado. (Nota da IHU On-Line)

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arrebanhar seus inquilinos e empre- nessas circunstâncias. Os técnicos à história cultural no contexto da
gados. Desde 1958, a cédula passou a mostravam as tabelas de conver- transição socialista. Estou investi-
ser impressa pelo Estado e os parti- são de hectares físicos em HRB e gando a participação de Paulo Frei-
dos Conservador e Liberal perderam muitos camponeses se recusavam re19 na coordenação dos programas
o controle do voto camponês. Por a aceitar, era uma linguagem técni-
de alfabetização do governo Frei, as
isso, em 1964, a Democracia Cris- ca alienígena, que nada tinha a ver
aplicações do seu método no campo,
tã foi eleita expressivamente pelo com o universo cultural deles.
voto camponês, com a promessa da as divergências com os métodos de
O governo Allende, quando elei- assistência técnica e extensão rural
reforma agrária. Só que a promessa
to, não mexeu na lei, mas foi apli- e, em suma, como as contradições
da reforma agrária da DC tinha dois
cá-la até suas últimas consequên-
destinatários: os Estados Unidos e políticas e sociais da “via chilena ao
cias, inclusive expropriando sem
os camponeses. Como conciliar es- socialismo” se expressaram em ter-
direito à reserva patronal às pro-
sas expectativas? Impossível. Os di- mos de batalhas pedagógicas e epis-
priedades “mal exploradas”. Outro
ferentes modelos de reforma agrária temológicas no campo.
problema é que a lei não dizia com
produzidos na América Latina nesse
exatidão o que era uma proprieda-
“Santiago do
período foram se mostrando cada
de “mal explorada” e esse conceito
vez mais opostos e inconciliáveis.
dependia de técnicos do Estado lo-
Com a lei de reforma agrária de
1967, o governo Frei tentou agra-
cais, que eram filiados a partidos
políticos. Mais um flanco de con-
Chile tornou-
dar a todos, gerando uma amplitu-
de legal enorme para a aplicação de
flitos sem fim. No fim das contas,
a DC expropriou 3,5 milhões de
se um dos
uma reforma agrária bastante pro- hectares em cinco anos e a UP ex-
propriou 5,3 milhões em três anos.
principais
funda. Um dos autores da lei, Jac-
ques Chonchol17, rompeu com a DC Somadas, 43% das terras agrícolas destinos
chilenas foram expropriadas em
de exilados
em 1969 e fundou o Movimiento de
Acción Popular Unitário - Mapu, um processo revolucionário pa-

políticos do
62 que integrou a UP com alto poder cífico e sem paralelo na história
de direção. Depois, Chonchol foi mundial.
Ministro da Agricultura de Salva-
dor Allende e passou a ser o execu-
Como novidade, a UP introduziu
dois decretos: um que criava uma
Cone Sul, uma
tor, num governo socialista, da lei
que havia ajudado a formular du-
nova forma de propriedade (os
Centros de Reforma Agrária) para
verdadeira
rante sua atuação em um governo
capitalista18.
substituir os assentamentos. E ou- capital das
tro que criava os Conselhos Cam-
A reforma agrária de Edu-
poneses, para integrar territorial- esquerdas sul-
americanas”
mente diferentes organizações de
ardo Frei trabalhadores rurais e representá
O principal motor da lei de refor- -las perante o governo. Os dilemas
ma agrária de Eduardo Frei era a da “via chilena ao socialismo” se
expropriação de todas as proprie- expressaram de maneira aguda no
campo: a pequena burguesia agrá- IHU On-line — As mobiliza-
dades maiores que 80 hectares de
riego básico - HRB, uma unidade ria era uma aliada ou uma inimiga? ções sociais de 1968 ao redor
que media fertilidade da terra e não As tomas ilegais de terras, orga- do mundo influenciaram posi-
correspondia à superfície física. Co- nizadas pelos camponeses com a tivamente ou negativamente a
meça aí a confusão, porque quem esquerda revolucionária, eram ascensão do governo Allende?
construtivas ou destrutivas para a
conseguia convencer os campone- Como?
estratégia socialista?
ses que uma propriedade com 300
hectares físicos não era expropriá- Joana Salém Vasconcellos —
vel pela lei, porque tinha 70 HRB?
Foco de estudos No fim dos anos 1980, o historiador
Centenas de tomas ocorreram Minha pesquisa de doutorado tem 19 Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro. Como
como foco os programas educacio- diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universidade
17 Jacques Chonchol Chait: agrônomo e político chile- de Recife, obteve sucesso em programas de alfabetiza-
no que desempenhou um papel importante na reforma nais de capacitação técnica, forma- ção, depois adotados pelo governo federal (1963). Esteve
agrária realizada sob o governo de Eduardo Frei Montalva ção política e alfabetização campo- exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação
e que mais tarde se tornou ministro da Agricultura de Sal- Cultural em Genebra, Suíça. Foi também professor da Uni-
vador Allende. (Nota da IHU On-Line) nesa no contexto da reforma agrária camp (1979) e secretário de Educação da prefeitura de São
18 Em 2011, fiz uma entrevista com Jacques Chonchol Paulo (1989-1993). É autor de A Pedagogia do Oprimido,
sobre a revolução agrária cubana, que foi publicada com e as decisões sobre as formas de pro- entre outras obras. A edição 223 da revista IHU On-Li-
título “Jacques Chonchol em Cuba: reforma agrária e revo-
lução em 1961”. Ver Revista Mouro nº 7, São Paulo, 2012.
priedade individuais ou coletivas. ne, de 11-6-2007, teve como título Paulo Freire: pedagogo
da esperança e está disponível em http://bit.ly/ihuon223.
Disponível em: http://bit.ly/2jsb09L. (Nota da entrevistada) Quero associar a história econômica (Nota da IHU On-Line)

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Gabriel Salazar20 escreveu um traba- componentes paradoxais dessa in- de um povo sem armas, são mos-
lho chamado De la generación chi- fluência tenha sido a intensificação tradas algumas cenas de militares
lena de ’68: omnipotencia, anomia, do entusiasmo urbano e intelec- entrando em casas de bairros po-
movimento social?. Nesse artigo, ele tual consigo mesmo. A ampliação bres, em sindicatos e fábricas para
queria desvendar qual seria o pa- de uma “autoimagem pesada” das recolher supostas armas armaze-
pel da geração de 1968 no processo vanguardas, a expansão de um sen- nadas pela população em 1973. Era
de democratização que se abria nos timento paradoxal de responsabi- a aplicação da Lei de Controle de
anos 1990, a partir de uma análise lidade, que misturava no mesmo Armas, aprovada pelo próprio go-
das memórias e da autopercepção projeto uma solidariedade pro- verno Allende, depois da incorpo-
daquela geração sobre si mesma. funda com os destinos do “povo” e ração de militares no gabinete, em
Salazar estava participando de um uma espécie de “narcisismo gera- outubro de 1972. A verdade é que
debate entre seus pares, já que ele cional”. Seria um tema interessan- nem o MIR nem os setores radicais
mesmo é praticamente da mesma te de pesquisa investigar como as do Partido Socialista, que defen-
geração e se propôs a criticar alguns vanguardas partidárias tratavam diam resistência armada, estavam
colegas e defender abertamente uma os acontecimentos de 1968 nas preparados.
posição política radical sobre os ru- suas liturgias e formações para as
Existiam alguns armamentos es-
mos do país. “bases”. Não saberia responder. O
condidos de agrupamentos peque-
que não podemos perder de vista é
Nesse texto, o historiador critica o nos, mas eram basicamente para
que o impacto de 1968 para os es-
que ele chamou de uma “pesada au- autodefesa local, uso pessoal, nada
tudantes da Universidade do Chile
toimagem” da geração de 1968, isto compatível com a artilharia pesada
é completamente diferente do im-
é, uma espécie de enamoramento de um exército. Por um lado, a ideia
pacto dos mesmos acontecimentos
narcísico que explicaria a intensida- de uma “etapa armada” era retórica
para os camponeses de Ñuble, para
de do “voluntarismo histórico” com e pouco efetiva. Ou seja, se os se-
os mapuches da Araucania ou para
que a juventude de esquerda se lan- tores revolucionários tinham razão
mineiros de Antofagasta.
çou a uma tarefa autoatribuída: ser em termos discursivos, porque foi
vanguarda revolucionária e “lutar impossível conciliar a transição
até as últimas consequências”. Sala- socialista com a institucionalidade 63
zar enfatizou que a ideia da “infalibi-
lidade dos líderes”, o sentimento de “O governo burguesa, eles não desenvolveram
a capacidade político-técnica de
onipotência e a sobrevalorização das
próprias capacidades foram compo-
reformista fazer valer suas próprias proposi-
ções. O que restava era a confiança
nentes tóxicos dessa cultura política
geracional. Sua crítica ao vanguar-
tutelador vestiu na indisciplina dos soldados, que
poderiam criar um motim contra a
dismo em termos políticos tinha a
mesma embocadura da sua crítica
sua armadura ordem golpista.

às metanarrativas estruturalistas
em termos historiográficos. Ele pro-
de governo Mas no fim, o respeito às hie-
rarquias militares, que era um ar-
pôs a recuperação do que chama de
“historicidade popular”, pois “a van-
repressor, para gumento de Salvador Allende em
defesa da capacidade institucio-
guarda marcava ritmos que, por sua
velocidade, só podiam ser seguidos
tentar recuperar nal do Estado de contornar a crise
dentro da Constituição, serviu exa-
cegamente pelas bases, submetendo o controle” tamente para consolidar o golpe.
Os soldados indisciplinados foram
o povo a solavancos” (p. 100).
rapidamente executados, não hou-
Claro que as mobilizações de 1968 ve resistência armada significativa
insuflaram as esquerdas no Chile. IHU On-line — Como estavam da população. Salazar, dentro de
Mas quais camadas e quais clas- organizados esses movimentos sua posição crítica ao vanguardis-
ses sociais das esquerdas? O pro- sociais no golpe militar de 1973? mo, escreve que o golpe gerou um
jeto socialista era internacional, a Como se deu a resistência? “caos disciplinar” nas esquerdas,
militância marxista formava uma pois as bases dos partidos espera-
Joana Salém Vasconcellos —
grande rede de rivalidades intelec- vam receber ordens que chegaram
No famoso filme de Patrício Guz-
tuais e alianças políticas pelo mun- defasadas e uma cultura partidária
mán21, A Batalha do Chile: a luta
do. Mas pensando no argumento legalista colapsou diante da ausên-
do Salazar, no Chile talvez um dos cia da lei. Os movimentos popu-
21 Patricio Guzmán Lozanes (1941): diretor de cinema
chileno, especializado em documentários. Dirigiu o filme
lares, na sua dimensão de disputa
Salvador Allende, sobre o ex-presidente chileno Salvador aberta e sindical, foram solapados,
20 Gabriel Salazar Vergara (1936): historiador chileno. Allende, e Nostalgia da Luz, uma de suas obras mais pre-
Ele é conhecido no Chile por seu estudo da história so- miadas, em que mostra o deserto do Atacama como o
cial e interpretações de movimentos sociais, particular- centro de dois tipos de pesquisa bem distintos: por um
mente os recentes protestos estudantis de 2006 e 2011- lado, é a sede de importantes estudos astronômicos, e por do regime militar do Chile realizam buscas por restos mor-
12. (Nota da IHU On-Line) outro é local em que parentes de desaparecidos políticos tais de seus familiares. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

mas na sua dimensão de resistên- das pelo próprio regime Pinochet24. rio, a responsabilidade de educar
cia silenciosa, cotidiana e constante, Essas regras favorecem a criação é constitucionalmente entregue
estiveram ativos ao longo de toda a de dois blocos moderados, que têm à iniciativa privada e os setores
ditadura. tonalidades de esquerda ou direita, empresariais e públicos de ensino
mas efetivamente não pretendem têm fronteiras pouco definidas.
mudar muito as regras do jogo que Recentemente chamou a atenção

“A reforma os estabiliza no poder.


Durante o primeiro governo de
a notícia sobre a gratuidade das
universidades públicas, aprova-

agrária Bachelet, a Concertación alcançou a


maioria necessária para mudar algu-
da nos últimos dias do governo
Bachelet. Mas pouco se falou que
teve uma mas regras da Constituição e optou
essa gratuidade não é universal e
está condicionada ao crescimento
por não fazê-lo. Enfim, são as duas
importância faces do mesmo sistema. Embora
do Produto Interno Bruto - PIB,
além de não romper com a lógica
transcendental tenham diferenças, nenhum deles
se propõe a alterar a Constituição
do Estado subsidiário. Claro que
pode ser considerado um “avanço”
para a história de 1980 de maneira profunda, como
indica o aparente abandono da ini-
no direito de estudar dos mais po-
bres, mas dentro da mesma ordem
chilena” ciativa de reforma constitucional do
governo Bachelet em 2016-2017.
constitucional da ditadura e com
limites evidentes.
O problema educacional chileno é
IHU On-line — Como compre- IHU On-line — É reconhecida tão importante no conjunto de dis-
ender a alternância de poder a força do movimento estudan- putas sociais que os estudantes da
nas últimas quatro eleições en- til chileno, a ponto de inspirar geração de 2011 têm sido protago-
tre Michelle Bachelet22 e Sebas- os movimentos de ocupação de nistas da ruptura das novas esquer-
escolas e universidades no Bra- das com a Concertación, através des-
tian Piñera23 na presidência do
64 sil. Apesar desse contexto, você sa ferramenta heterogênea chamada
Chile?
afirma que a democracia chile- Frente Ampla, que conquistou 20
Joana Salém Vasconcellos — A na vive sob o espectro de Pino- deputados nas últimas eleições. As
alternância entre Bachelet e Piñera chet. Como essas contradições tensões de classe dentro da nova es-
pode ser entendida a partir do sis- se formaram? Qual a possibili- querda continuam e é preciso refletir
tema que os chilenos chamam de dade de síntese desse conflito? sobre elas.
duopólio, resultado da Constituição Joana Salém Vasconcellos Como romper com a ordem pi-
de 1980 e das regras eleitorais cria- — As contradições na educação nochetista? Com quais estratégias
chilena são fruto de uma política e movimentos? Alguns setores da
22 Michelle Bachelet [Verónica Michelle Bachelet Jeria]
(1951): médica e política chilena. É a atual presidente da educacional de Pinochet, aperfei- Frente Ampla consideram proble-
República do Chile, eleita em 2006. Desde 2008, é também çoada pelos governos democráti- mático que a articulação de um dis-
presidente da União de Nações Sul-Americanas. Membro
do Partido Socialista do Chile, ela ocupou o lugar de mi- cos, em que o Estado é subsidiá- curso estudantil mais elitista ganhe
nistra da Saúde no governo de Ricardo Lagos, entre 2000
e 2002, e mais tarde, o de ministra da Defesa, sendo a projeção sobre as lutas dos sem-te-
primeira mulher a exercer este cargo na América Latina. 24 Augusto Pinochet (1915-2006): general do exército
(Nota da IHU On-Line) chileno, governante do Chile após chegar ao poder em to, dos mapuches, dos trabalhado-
23 Miguel Juan Sebastián Piñera Echenique (1949): é
um economista, empresário e político chileno. Foi mem-
11 de setembro de 1973, pelo Decreto Lei Nº 806 editado
pela junta militar (Conselho do Chile), que foi estabelecida
res e camponeses. O debate sobre
bro do partido de centro-direita Renovación Nacional pelo para governar o Chile após a deposição e suicídio de Sal- as tensões das classes sociais den-
qual foi eleito presidente do Chile. Assumiu o cargo em 11 vador Allende, e posteriormente tornado senador vitalício
de março de 2010, sucedendo Michelle Bachelet, ao qual de seu país, cargo que foi criado exclusivamente para ele, tro das esquerdas não pode ser ig-
abandonou em 11 de março de 2014. É novamente o atual por ter sido um ex-governante. Governou o Chile entre norado e tem desdobramentos po-
presidente do Chile, desde 11 de março de 2018. (Nota 1973 e 1990, depois de liderar a junta militar que derrubou
da IHU On-Line) o governo de Salvador Allende. (Nota da IHU On-Line) líticos decisivos. ■

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TEMA DE CAPA

Uma revolução não se reconhece


pela tomada do poder, mas por
sua potência de sonho

C
onvidada a discutir os 50 anos de Maio de 68, a pro-
fessora Olgária Matos desenvolveu três pontos para
abordar o tema. Para ela, o movimento se conden-
sou na palavra de ordem “é proibido proibir”. No início, era
uma crítica às regras e convenções rígidas, como a separa-
ção entre rapazes e moças nas residências estudantis. Logo
“tomou a conotação de luta antiautoritária”. No entendi-
mento da professora, “a palavra de ordem pôde se univer-
salizar porque, em 1968, havia muitas ditaduras”. Por fim,
ela afirma que “Maio de 68 foi uma esplendorosa liberação
da palavra poética e criadora”, mostrando que “uma revo-
lução não se reconhece pela tomada do poder, mas por sua
potência de sonho”.
Olgária Matos é livre-docente e doutora e graduada em
Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP e mestre em
Filosofia pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Re-
66 alizou estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, na França. É professora aposentada do
Departamento de Filosofia da USP. Autora do livro Paris,
1968: As barricadas do desejo (São Paulo: Editora Brasi-
liense, 1981).
Confira o texto.

1.Comemorar uma data não significa apenas rememorar um acontecimento, mas fazê-lo re-
nascer em cada aniversário. O maio francês se condensou na palavra de ordem “é proibido proi-
bir”, palavra de ordem de crítica ao mundo de regras e convenções rígidas que, no início do
movimento, se referia à separação entre rapazes e moças nas residências estudantis, e foi então
uma maneira de conquistar o “direito de visita”! Em seguida, tomou a conotação de luta an-
tiautoritária, exprimindo o desejo de pensar por si mesmo, à distância dos conformismos dos
partidos organizados e sua lógica de tomada do poder. “É proibido proibir” se coloca libertário
e emancipatório com respeito a tudo que cerceia o pensamento autônomo, o livre-pensar. Diz
respeito à liberação da palavra, ao “franco dizer” que conquistou as paredes da cidade, com suas
inscrições eróticas e inteligentes em seus détournements. A máxima evangélica do “amai-vos
uns aos outros” passou a ser “amai-vos uns sobre os outros”, ou então “não tome o poder, tome
a palavra”. Assim, não se tratou de ocupar os lugares de poder instituídos, como a Assembleia
Nacional, mas de ocupar o teatro do Odéon:  “Quando a Assembleia Nacional se torna um teatro
burguês, todos os teatros burgueses tornam-se Assembleias Nacionais”, ou “As Mil e uma Noites
estão nas ruas da cidade”. Ou “libertar os livros das bibliotecas”, e ainda “não mude de emprego,
mude o emprego de sua vida”.
2. A palavra de ordem pôde se universalizar porque, em 1968, havia muitas ditaduras, como as
da América Latina e da Europa, como na Grécia, em Portugal e na Espanha, e também as dos pa-
íses do Leste europeu, sob o domínio da ditadura da então URSS.  Ano por excelência antiautori-
tário, universalizou a crítica aos valores impostos do consumo, da técnica, dos lazeres alienados,

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da indústria cultural, da civilização do automóvel, da vida burocratizada e administrada. Essa


palavra de ordem mantém-se viva em todos aqueles que têm desejo de liberdade, de autarquia e
de autodeterminação de pensamentos e investigação estética, moral, política e existencial. Mas
dificilmente se poderia dizer que ela se encontra de alguma forma na “liberação da palavra” tal
como se reconhece nas mídias sociais, pois se trata agora de uma espécie de “tirania da visibili-
dade” em que tudo deve ser falado, mostrado, exibido, como o desaparecimento do pudor e da
timidez. Além disso, o Eros político das palavras de ordem e dos comportamentos expressava
uma phylia social, o dar as mãos, o correr juntos, a troca de olhares, uma felicidade coletiva de
indivíduos reunidos com valores e desejos comuns compartilhados como princípio de vida e
de prazer, que encontravam novas razões para estar juntos. Contra as mídias, o maio francês
inscreveu nos muros da cidade “desintoxicai-vos: não liguem mais a televisão”, “não leiam mais
os jornais” etc. As redes sociais, ao contrário, propiciam uma “comunicação” instantânea que
estreita o espaço e o tempo, com uma comunicação a distância, mas incapaz de criar laços da
confiança, da amizade, da lealdade. Nelas não há diálogo e comunicação, mas, na maioria das ve-
zes, fortalecimento de preconceitos e tomada de partido, tudo contra o que o maio lutou, contra
os dogmatismos e contra o empobrecimento da linguagem e do mundo.
3. Maio de 68 foi uma esplendorosa liberação da palavra poética e criadora, o momento la
boetiano da política francesa, em que não se tratava de tomar o poder, pois as lutas pela vitória
histórica apenas repetem o passado e permanecem no plano do vencedor e do vencido. Mostrou
que uma revolução não se reconhece pela tomada do poder, mas por sua potência de sonho.
Invertendo a proposição dos surrealistas, dos quais de alguma forma foram herdeiros, não se
tratava de colocar a poesia a serviço da revolução, mas a revolução a serviço da poesia. Em 68, a
poesia foi irmã do sonho. No cotidiano, se reuniram poesia e revolução nas ruas da cidade, em
seus cartazes, palavras de ordem e no mês em que 10 milhões de operários estavam em greve
com a palavra de ordem “não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”. ■

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ENTREVISTA

A produção de violência e morte


em larga escala: da biopolítica
à tanatopolítica
Castor Bartolomé Ruiz analisa o fenômeno da construção social
do medo e da violência como formas de governo da vida
Ricardo Machado

A
impressão de que a violência é mente nos bombardeiam para justificar
inerente à condição humana é determinadas políticas de ajustes fiscais
comum, apesar de rasa, para ou de recortes de direitos fundamen-
descrever barbáries de toda a sorte. tais”, destaca. “Uma sociedade assus-
Contudo, para além dos tensionamen- tada sempre é partidária do uso de um
tos que essa noção exige, o professor poder forte, inclusive autoritário. Veja-
e pesquisador Castor Bartolomé Ruiz mos como isso se comprova no caso da
traça uma distinção importante entre grande aprovação popular da interven-
a violência e a agressividade, atribuin- ção militar no Rio de Janeiro, sem con-
do a esta última sua permeabilidade tar os constantes cantos de sereia para a
intrínseca aos humanos. “No caso do volta dos militares ao governo a fim de
ser humano, existe o instinto da agres- resolver tanta violência, corrupção, des-
sividade, assim como outros instintos mandos, como se eles não fossem parte
68
biológicos, porém o ser humano é o desse mesmo processo”, analisa.
único ser vivo que não está determina-
Castor Bartolomé Ruiz é professor
do a agir pela mera pulsão biológica do
nos cursos de graduação e pós-gradua-
instinto”, pondera Castor, em entrevis-
ta por e-mail à IHU On-Line. “O que ção em Filosofia da Unisinos. É gradu-
define a violência é a decisão tomada ado em Filosofia pela Universidade de
pelo sujeito de direcionar a agressivi- Comillas, na Espanha, mestre em His-
dade num sentido específico, negar ou tória pela Universidade Federal do Rio
violentar o Outro. A violência, diferente Grande do Sul - UFRGS e doutor em
da agressividade, está vinculada a dois Filosofia pela Universidade de Deusto,
aspectos: a capacidade de decidir o sen- Espanha. É pós-doutor pelo Conselho
tido da ação e a negação ou violação do Superior de Investigações Científicas.
Outro ser humano”, complementa. Escreveu inúmeras obras, das quais des-
tacamos: La mímesis humana. La con-
Fora a banalização da violência, que
dición paradójica de la acción imitativa
reconhece o fenômeno inclusive quando
(Frankkfurt: OmniScriptum Manage-
os objetos da agressividade são objetos
ment, 2016); Os paradoxos do imaginá-
e não pessoa, há todo um aparato eco-
rio (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os
nômico, financeiro e político da violên-
labirintos do poder. O poder (do) sim-
cia, que passa a ser percebida como algo
bólico e os modos de subjetivação (Por-
possível de rendimentos e lucros. “Toda
to Alegre: Escritos, 2004); e As encruzi-
violência gera medo. Uma sociedade
lhadas do humanismo. A subjetividade
amedrontada é mais dócil às políticas de
exceção; a docilidade política do medo e alteridade ante os dilemas do poder
ocorre em todos os sentidos, pensemos ético (Petrópolis: Vozes, 2006).
nos medos econômicos que constante- Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que ordem Castor Bartolomé Ruiz – A vio- As faces e formas da violência mul-
é o fenômeno humano da vio- lência é um fenômeno humano de tiplicam-se ao longo dos tempos e
lência? múltiplas faces e também polimorfo. também se diversificam em cada so-

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“No caso do ser humano, existe o


instinto da agressividade, porém o
ser humano é o único ser vivo que
não está determinado a agir pela
mera pulsão biológica do instinto”

ciedade. É muito difícil delimitar a A minha posição é diferente. Inicial- Por exemplo, alguém pode sentir
violência a uma definição ou modelo mente proponho fazer uma distin- raiva por um motivo justo, essa raiva
preestabelecido, que nos permitiria ção conceitual, que considero muito desencadeia nele uma agressividade
estudá-la qual fosse uma espécie de importante, entre agressividade e impulsiva – esta é natural –, porém
fenomenologia naturalista. violência. A agressividade, sim, é um o que ele vai fazer com essa raiva, de
instinto natural inerente a todas as que modo ele vai dirigir a raiva, qual
A violência, assim como a bonda-
espécies vivas e que contém funções o sentido da ação que ele vai execu-
de, pertence aos arcanos da alma
importantes, inclusive, para a sobre- tar com a raiva, é um momento pos-
humana. Digo isso não como uma
vivência dos indivíduos e da espécie. terior ao instinto. Então, ele tem a
afirmação retórica, mas como tese
possibilidade de executar uma ação
filosófica. Um dos primeiros debates Mas qual seria, então, a diferença
diferenciada a partir dos instintos
a serem feitos sobre a violência diz entre agressividade e violência? A
próprios de nossa espécie.
respeito a sua pretensa naturalida- agressividade é dirigida pelos ins-
de. Eu diria que faz parte do senso tintos genéticos da espécie. Por isso, No contexto desta perspectiva fi- 69
comum afirmar que a violência é as agressividades naturais são pro- losófica, temos que denominar de
algo natural, intrínseco ao ser huma- gramadas dentro de cada espécie e, violência a decisão, mais ou menos
no. Se isso não bastasse, há também por isso mesmo, são até previsíveis. deliberada, de negar o Outro através
diversos estudiosos, de matriz natu- A agressividade é um instinto com- de um ato violento, que não é mais
ralista, que corroboram esta pers- portamental bem delimitado dentro mera agressividade animal. O que
pectiva afirmando que a violência é de cada espécie animal. Um animal define a violência é a decisão tomada
um fenômeno natural porque todos é agressivo em função daqueles ins- pelo sujeito de direcionar a agressi-
os animais são violentos e ainda tintos que seu código genético tem vidade num sentido específico, negar
mostram que a violência é um recur- programados e não é agressivo em ou violentar o Outro. A violência, di-
so essencial para a sobrevivência de outras formas. No caso do ser hu- ferente da agressividade, está vincu-
todos os seres vivos. As visões natu- mano, existe o instinto da agressi- la a dois aspectos: a capacidade de
ralistas identificam a violência em vidade, assim como outros instintos decidir o sentido da ação e a negação
todas as formas de vida, especial- biológicos, porém o ser humano é o ou violação do Outro ser humano.
mente nos animais superiores. único ser vivo que não está determi-
nado a agir pela mera pulsão bio- A partir desta compreensão, enten-
A consequência moral e até política lógica do instinto. No ser humano deremos que a violência é um fenôme-
que se extrai da naturalização da vio- ocorre algo singular, há uma certa no estritamente humano, pois só o ser
lência é que o ser humano está inevi- separação entre a pulsão do instinto humano tem o poder de direcionar sua
tavelmente acorrentado, qual mito de e o comportamento. A ação huma- ação em um ou em outro sentido. Os
Sísifo, à violência. O único que ele po- na é o resultado da capacidade de animais são agressivos por natureza, o
deria fazer é estabelecer paliativos ou dobra do sujeito sobre seu próprio ser humano é violento por opção1.
inibidores culturais desse, assim cha- instinto a fim de poder definir qual IHU On-Line – É possível, en-
mado, instinto natural. A cultura, nesta é o sentido que ele quer dar a esse tão, pensar de forma diferente
visão, seria uma espécie de luta per- instinto. Ou seja, o instinto, neste a violência?
manente, e infrutuosa, por estabelecer caso o da agressividade, passa no
limites legais ou culturais aos instintos ser humano pela sua capacidade Castor Bartolomé Ruiz – Se
naturais da violência. Inclusive, politi- hermenêutica do sentido. Por isso, compreendermos que a violência
camente apela-se, recorrentemente, ao o ser humano é o único ser vivo que
1 Para quem estiver interessado em aprofundar este
poder forte dos novos Leviatãs como pode direcionar seus instintos, no tema, remetemos a um artigo de nossa autoria, publicado
único meio de colocar freio a este ins- caso a agressividade, para vários na Revista Kriterion: “A potência da ação: uma crítica ao
naturalismo da violência”. http://bit.ly/2jEGqJL. (Nota do
tinto natural que tanto nos apavora. sentidos diferentes. entrevistado)

EDIÇÃO 521
ENTREVISTA

é um fenômeno stricto sensu hu- Uma outra conclusão, acho que se- A gestão biopolítica da violência
mano, há que pensar algumas das cundária, desta visão hermenêutica normaliza a violência, socialmente,
consequências desta visão. Uma pri- da violência é que só poderíamos a partir das estatísticas. O parado-
meira matização importante é que chamar de violência stricto sensu xo desta gestão é que passam a ser
a responsabilidade do sujeito pelo a negação ou violação de um outro considerados normais, para uma
ato violento é proporcional a sua ca- ser humano. Quando se destroem determinada sociedade, os padrões
pacidade de decisão em relação aos coisas, por exemplo, estaríamos em de violência que se repetem numa
impulsos naturais ou até as influên- uma outra qualificação da agressivi- sequência média ou longa de tem-
cias sociais. Este é um princípio que dade, mas não estritamente na vio- po. No caso do Brasil, por exemplo,
o direito já aceitou há muito tempo, lência, se quisermos preservar esta temos uma sequência, na última dé-
mas que socialmente deve ser cons- denominação como ato singular de cada, de mais de 50 mil assassina-
tantemente ressignificado. violentar o outro. Caso contrário, tos. Nesta lógica, enquanto o Brasil
podemos cair numa espécie de bana- se mantiver nessa margem, pode-se
Uma outra consequência, que eu lização conceitual do que entende- considerar que a violência social está
considero muito importante, é que mos por violência. no padrão de normalidade. Vejamos
ao compreender que a violência que estes números são até superio-
não é um fenômeno meramente res às mortes das últimas guerras,
natural, mas um sentido (cultural) IHU On-Line – Qual a relação como a de Síria, Iraque, Kuwait, e
dado para os instintos agressivos, que existe entre biopolítica e similares às estatísticas das mortes
o ser humano consegue romper violência? do Vietnã.
as correntes inexoráveis que nos
Castor Bartolomé Ruiz – A O trágico desta racionalidade bio-
condenavam a ser violentos. A vio-
biopolítica pode ser compreendida política da violência é que os ges-
lência passa a ser um fenômeno
como o conjunto de estratégias, po- tores políticos se propõem que não
correlativo às formas culturais que
líticas, para governar a conduta dos aumente a taxa normal da violência.
incentivam ou não determinados
outros, que em filosofia denomina- É considerada uma boa gestão con-
atos como naturais ou normais.
mos com o neologismo de governa- seguir manter a violência dentro dos
Nesta perspectiva, a responsabi-
mentalização. As estratégias biopolí- padrões normais e considera-se um
70 lidade principal, ainda que não
ticas, quase sempre, estão pautadas lucro de resultados se conseguir se
única, da violência é dos sujeitos e pelo sentido da utilidade, eficiência
das culturas. Nesta visão, a violên- diminuir minimamente as estatísti-
ou produtividade. A biopolítica re- cas violentas.
cia tem um importante influxo dos duz a política à gestão da vida huma-
instintos biológicos, mas estes não na. O sentido etimológico do termo Ainda existe um outro viés na ges-
se impõem aos sujeitos de forma biopolítica, política da vida, se tra- tão biopolítica da violência, que diz
absoluta, sendo os valores cultu- duz numa política sobre a vida. Esta respeito aos possíveis lucros políti-
rais e a responsabilidade subjetiva mudança proposicional contém uma cos da violência. Toda violência gera
os principais fatores que delimitam inversão estratégica com um sentido medo. Uma sociedade amedrontada
as facetas da violência. paradoxal, pois nas estratégias bio- é mais dócil às políticas de exceção;
políticas governa-se, geralmente, a a docilidade política do medo ocorre
Olhando nesta perspectiva, po-
vida humana desde a perspectiva da em todos os sentidos, pensemos nos
deremos desmanchar alguns mitos
utilidade. Por isso a vida que é útil medos econômicos que constante-
como aquele que diz que a pobre-
será governada para que produza mente nos bombardeiam para justi-
za gera violência. Se olharmos o
mais, enquanto as vidas considera- ficar determinadas políticas de ajus-
exemplo da Índia encontraremos
das não produtivas, inúteis, serão tes fiscais ou de recortes de direitos
altíssimos índices de pobreza e de- fundamentais. Ainda, uma socieda-
sigualdade, inclusive superiores aos condenadas ao abandono.
de assustada sempre é partidária do
do Brasil, porém os indicadores de Na perspectiva biopolítica coloca- uso de um poder forte, inclusive au-
violência são muito inferiores. Por se a questão de como governar a vio- toritário. Vejamos como isso se com-
que ocorre isso? Talvez tenhamos lência como fenômeno social. A go- prova no caso da grande aprovação
que olhar para o marco cultural dos vernamentalização biopolítica reduz popular da intervenção militar no
valores vividos na cotidianidade os fenômenos, neste caso a violência, Rio de Janeiro, sem contar os cons-
hindu – como todos sabem na Ín- a estatística. A partir das estatísticas tantes cantos de sereia para a volta
dia predomina uma cultura budista, se estabelecem, por exemplo, linhas dos militares ao governo a fim de
que é extremamente pacifista. Isso e curvas dos fenômenos, sendo pos- resolver tanta violência, corrupção,
não quer dizer que ali não tenha sível concluir com padrões denomi- desmandos, como se eles não fossem
violência, inclusive terríveis surtos nados de normalidade. No caso da parte desse mesmo processo.
de violência religiosa entre hinduís- violência, o objetivo das estratégias
tas e muçulmanos. Mas, no contex- biopolíticas é gerenciar o fenômeno
to geral, há muito menos violência, dentro dos padrões de normalidade IHU On-Line – O que significa
por exemplo, que no Brasil. de cada país. a ideia de “tanatopolítica”? O

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que isso quer dizer? “ordem mundial”. Nessa nova geo- um vazio e ausência de direito da
estratégia da preservação da ordem vida que propiciou que a maioria das
Castor Bartolomé Ruiz – Por
mundial – que sempre representa o prisões sejam uma nova espécie de
definição, tanatopolítica significa
benefício de alguns em detrimento campos nos quais a linha entre a vida
“política da morte”. À diferença da
de muitos – a morte de milhares de e a morte é, a cada dia, mais tênue e
biopolítica, a tanatopolítica gerencia
pessoas, até inocentes, é classificada depende do arbítrio de uma vontade
de forma instrumental (e útil) a mor-
como efeito colateral inevitável. Os soberana que governa lá dentro.
te de pessoas e até grupos sociais
milhares de mortes são programa-
considerados indesejáveis ou preju- dos como efeitos colaterais de uma
diciais para uma sociedade ou grupo estratégia de governo mundial em IHU On-Line – Como as no-
social. A tanatopolítica mostrou sua que a segurança, a prosperidade e o ções de violência e de alterida-
face mais perversa nos regimes tota- progresso dos países ocidentais exi- de estão intrinsecamente coim-
litários como o nazismo, o fascismo ge o preço, necessário, da morte de plicadas?
ou stalinismo, assim como em regi- outros considerados descartáveis ou
mes ditatoriais e autoritários como Castor Bartolomé Ruiz – Se
perigosos. Nesta nova racionalidade,
as ditaduras militares da América entendermos por alteridade o reco-
a guerra opera como uma tecnologia
Latina. Nestes regimes, a tanatopo- nhecimento do Outro como um ser
de segurança da ordem social mun-
lítica era uma política de Estado cujo humano cuja dignidade apresenta-
dial. O inimigo já não é um outro
objetivo era eliminar fisicamente os se a mim como rosto de sua condição
Estado, mas alguém interno à ordem
opositores, pelos meios mais cruéis humana, a alteridade é o anverso da
social mundial.
e diversos. violência. A violência, como comen-
Esta guerra contemporânea é uma tei no início, é a negação ou violação
Porém, e infelizmente, a tanatopo- versão da tanatopolítica em que a do outro. A alteridade é o correlato
lítica não se restringe a este tipo de vida de uns, descartáveis ou peri- que desmascara toda violência. A
regimes, pois a política de definir a gosos, é sacrificada para que outros violência é concomitante à destrui-
morte de alguns, considerados pe- vivam em segurança. Mutatis mu- ção do outro. Por isso, a gravidade
rigosos ou ameaçadores, para que a tandis, a condição da violência no de uma violência é sempre propor-
vida de outros tenha tranquilidade Brasil passa, em muitos casos, por cional ao mal causado ao Outro. 71
e seja bem-sucedida faz parte, por situações semelhantes. Na medida
exemplo, da nova política interna- em que a maioria dos mais de 50 mil A violência produz uma destruição
cional, e de muitas políticas de segu- assassinatos ocorridos no Brasil são da dignidade do outro, transforman-
rança pública. de jovens, negros, da periferia, essas do-o numa vítima. A violência des-
mortes são percebidas como uma figura o rosto do outro, na medida
Chamo atenção para o fato de que em que, ao violentá-lo, o reduz a um
espécie de malthussianismo natural
na nova política internacional, a objeto. Toda violência opera sobre o
da população perigosa. Ou seja, não
despeito de vivermos em constantes Outro como se fosse uma coisa ob-
poderemos dizer que as dezenas de
conflitos bélicos, não houve uma de- jetivada.
milhares de assassinatos no Brasil
claração formal de guerra de um país
sejam estrategicamente produzidos É importante sublinhar que os pro-
contra outro. Por exemplo, a guerra
por uma política de Estado, mas sim cessos de objetivação do outro são
contra a Líbia – regime de Gaddafi2
que podemos perceber que uma boa inerentes a toda forma de violência.
–, a invasão do Afeganistão pelos Es-
parte deles são simplesmente con- Até os vitimários mais violentos sen-
tados Unidos, a invasão do Kuwait e sentidos por uma política de ausên-
do Iraque por uma coalizão de países tem compaixão e até carinho quando
cia de proteção da vida. Desde esta se confrontam com pessoas, rostos,
ocidentais, e agora a guerra na Síria, racionalidade, a violência no Brasil
nenhuma dessas guerras teve uma que eles amam. Mas quando con-
opera como uma tanatopolítica de frontados com suas vítimas, estas
declaração formal de guerra entre milhares de vidas descartáveis, invi-
Estados. Isso porque as novas guer- perdem, para eles, as feições huma-
sibilizadas e perigosas. nas de um rosto e se tornam meros
ras obedecem a um outro padrão
do uso internacional da violência. A lógica tanatopolítica, no Brasil, objetos. Toda violência necessita
Estas guerras não são mais encara- não termina no ato da morte, ela reduzir o Outro a uma forma de ob-
das como guerras entre Estados que se prolonga, inclusive, nos siste- jetivação. Normalmente, para obje-
acabam com um tratado e um armis- mas prisionais. Enquanto os crimes tivar o Outro, se utilizam os clichês
tício, mas o uso da violência bélica de colarinho branco têm suas vidas de identidades socialmente despre-
é concebido como um instrumento asseguradas e protegidas em celas zadas ou odiadas. Assim o Outro é
de governamentalização necessá- e com regimes especiais, a chama- reduzido a identidades fixas como de
rio para manutenção da chamada da “massa de população carcerária” um negro, um marginal, um judeu,
(que supera os 700 mil presos) está um palestino, um estrangeiro, um
2 Muammar Abu Minyar al-Gaddafi: (no aportuguesa- abandonada à condição da morte. favelado, um terrorista, um muçul-
mento, Kadafi) foi um militar, político, ideólogo e ditador
líbio, sendo o de fato chefe de estado do seu país entre
Estas vidas vivem num estado de mano, um policial... Enfim, cada for-
1969 e 2011. (Nota da IHU On-Line) exceção permanente, provocado por ma de violência produz seus clichês

EDIÇÃO 521
ENTREVISTA

identitários para reduzir o outro a Castor Bartolomé Ruiz – Re- a todos os que entram em contato
uma categoria objetivada através da meto estas minhas considerações com ela. O efeito mimético torna os
qual o vitimário possa violentá-lo anteriores sobre a alteridade, en- vitimários insensíveis e faz da vio-
sem o menor remorso. Inclusive, tre outros, aos estudos do filósofo lência um ato de normalidade. Mas
dependendo do tipo de violência e Emmanuel Levinas3. Contudo, para a mimese também contamina o res-
identidade, o vitimário pensará que uma reflexão tão complexa como a to das pessoas e grupos sociais que
ao violentar o outro está cometendo da violência, não poderíamos ficar entram em contato com ela, de tal
uma espécie de favor para seu grupo circunscritos a um só pensador. O modo que um ato violento induz a
social ou até para a humanidade. pensamento de Levinas é extrema- produzir mais violência. Neste pon-
mente fecundo para compreender- to encontramos inclusive paradoxos
Um dos muitos exemplos desta re- muito terríveis como o de vitimários
mos que se o anverso da violência
flexão o encontramos no modo como que na sua infância foram vítimas
é a destruição do outro, é essencial
eram treinados, na Escola das Amé- de uma violência constante, cres-
que mostremos as consequências da
ricas - USA, os policiais brasileiros ceram numa cultura da violência e,
violência na condição sofrida das ví-
e latino-americanos nas técnicas de quando adultos, assumiram o com-
timas para que, desta forma, a vio-
tortura como forma de interrogató- portamento violento como um traço
lência seja exposta e desmascarada.
rio contra os subversivos. Se pensar- comum de sua personalidade social.
Mostrar o rosto do outro violentado
mos que muitos dos que depois se
é condição sine qua non para que Quando os efeitos miméticos da
tornaram conhecidos torturadores
consigamos ter uma percepção crí- violência não são neutralizados de
em muitos países de nossa América
tica da violência. Caso contrário, os alguma forma, há uma tendência a
Latina, eram pessoas relativamente
processos normalizadores da violên- que esta se naturalize socialmente
comuns, era necessário que para se
cia, impulsionados pelas dinâmicas chegando a construir o que denomi-
tornarem alunos e mestres exímios
biopolíticas, tendem a naturalizar a namos de uma cultura da violência.
da tortura passassem pela primeira
violência como uma espécie de fenô- Lembremos que a cultura guerreira
e principal prova, que era aprender
meno social natural com o qual tere- foi amplamente cantada em prosa e
a ver no outro simplesmente um ini-
mos que nos acostumar a conviver. verso em todas as grandes epopeias
migo, um objeto. Muitos não conse-
72 Quando se mostram de forma ex- dos primeiros escritos da humani-
guiam e tinham que renunciar.
plícita as consequências da violência dade. De igual modo, encontramos
A violência opera duplamente na resquícios importantes de uma cul-
à condição das vítimas, a violência se
negação da alteridade. Ao violentar tura da violência em nossa história
torna intolerável. O rosto desfigura-
a vítima provoca nela uma destrui- do Brasil, que iniciou com genocídio,
do das vítimas opera como uma es-
ção de sua própria condição huma- continuou com séculos de escravi-
pécie de antídoto crítico para que a
na, proporcional à violência sofrida. dão e as próprias elites republicanas
violência não se naturalize e nossas
Mas, do outro lado, a violência é nunca cessaram de apelar para o uso
consciências não sejam alienadas
possível porque ela provoca um apa- indiscriminado da violência política
pelos dispositivos de normalização.
gamento paulatino da sensibilidade como algo normal. Senão aí estão
humana do vitimário ou violador. os episódios de Canudos4, Contesta-
Na medida em que se cometem atos IHU On-Line – De que ordem
4 Guerra de Canudos ou Campanha de Canudos: con-
violentos, estes vão apagando no vi- são os desafios de neutralizar- fronto entre o Exército Brasileiro e os integrantes de um
timário sua capacidade de perceber mos a violência, sobretudo a movimento popular de fundo sócio-religioso liderado
por Antônio Conselheiro, que durou de 1896 a 1897,
a dor do outro, com isso a violência violência do Estado como ges- na então comunidade de Canudos, no interior do es-
tado da Bahia, no nordeste do Brasil. A região, histo-
torna-se um ato normalizado que tor da vida em sociedade? ricamente caracterizada por latifúndios improdutivos,
pode chegar a ser realizado sem a secas cíclicas e desemprego crônico, passava por uma

mínima reação ante o sofrimento Castor Bartolomé Ruiz – A vio- grave crise econômica e social. Milhares de sertanejos
e ex-escravos partiram para Canudos, cidadela liderada
do outro. Neste ponto, a violência lência contém um efeito mimético pelo peregrino Antônio Conselheiro, unidos na crença
numa salvação milagrosa que pouparia os humildes ha-
conseguiu um de seus priores resul- que não se dilui quando se termina bitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão

tados, apagar no vitimário a capaci- o ato violento. A violência produz econômica e social. Os grandes fazendeiros da região,
unindo-se à Igreja, iniciaram um forte grupo de pressão
dade de reconhecimento do Outro um efeito mimético que contamina junto à República recém-instaurada, pedindo que fos-
sem tomadas providências contra Antônio Conselheiro
como um ser humano. Quando uma e seus seguidores. Criaram-se rumores de que Canu-
3 Emmanuel Levinas (1906-1995): filósofo e comenta- dos se armava para atacar cidades vizinhas e partir em
pessoa ou até um grupo social inteiro dor talmúdico lituano, de ascendência judaica e natu- direção à capital para depor o governo republicano e
ralizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Hei- reinstalar a Monarquia. Apesar de não haver nenhuma
chega a esta situação, estão abertas degger, cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. “A prova para estes rumores, o Exército foi mandado para
as portas para a barbárie ilimitada. ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza Canudos. Três expedições militares contra Canudos saí-
seu pensamento. Escreveu, entre outros, Totalidade e ram derrotadas, o que apavorou a opinião pública, que
Infinito (Lisboa: Edições 70, 2000). Sobre o filósofo, acabou exigindo a destruição do arraial, dando legitimi-
confira a entrevista com Rafael Haddock-Lobo, publi- dade ao massacre de até 20 mil sertanejos. Além disso,
cada em 30-8-2007 no sítio do Instituto Humanitas estima-se que cinco mil militares tenham morrido. A
IHU On-Line – Como o concei- Unisinos - IHU, intitulada Lévinas: justiça à sua filoso- guerra terminou com a destruição total de Canudos, a
fia e a relação com Heidegger, Husserl e Derrida, dispo- degola de muitos prisioneiros de guerra, e o incêndio
to de filosofia da alteridade, de nível em http://bit.ly/1bZ77kk, e a edição número 277 de todas as casas do arraial. Antônio Vicente Mendes
Levinas, opõe-se ao conceito de da IHU On-Line, de 14-10-2008, intitulada Lévinas e Maciel, apelidado de “Antônio Conselheiro”, foi conside-
a majestade do Outro, disponível em http://bit.ly/1gs- rado o líder do movimento. Ele chegou a Canudos em
violência? nUOI. (Nota da IHU On-Line) 1893, tornando-se líder do arraial e atraindo milhares

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do5, Cabanagem6 etc., como indício Sempre resta a questão, o que um sentimento de vingança que só
deste traço de cultura violenta. Que podemos fazer? As soluções para retroalimenta a roda da violência.
no Brasil se cometam 50 mil assas- problemas complexos hão de ser, Nas antípodas deste modo de ba-
sinatos por ano como algo normal, necessariamente, complexas, caso nalização da violência, encontra-se
não é um acaso de nosso momento contrário cairemos na demagogia. o testemunho das vítimas, que deve
histórico, mas consequência de uma Desde a minha humilde e peque- ser acolhido como anverso crítico da
cultura que cultuou a violência como na contribuição, entendo que um violência.
traço social destacável7. primeiro elemento essencial é des-
Conexo com o testemunho das ví-
mascarar o pretenso naturalismo da
de pessoas. (Nota da IHU On-Line)
timas, entendo que as políticas de
violência. Se a violência não é algo
5 Guerra do Contestado: conflito armado entre a po- memória são uma metodologia efi-
pulação cabocla e os representantes do poder estadu- natural, mas um fenômeno social e
al e federal brasileiro travado entre outubro de 1912 caz para que a realidade da violên-
a agosto de 1916, numa região rica em erva-mate e historicamente construído, há pos-
madeira disputada pelos estados brasileiros do Paraná
cia não seja simplesmente esque-
sibilidade e esperança de iniciarmos
e de Santa Catarina. Originada nos problemas sociais, cida. A memória das vítimas opera
decorrentes principalmente da falta de regularização da um processo de neutralização da
posse de terras e da insatisfação da população hipos- como uma eficaz ferramenta polí-
suficiente, numa região em que a presença do poder cultura da violência imperante para
público era pífia, o embate foi agravado ainda pelo
tica para que a consciência crítica
uma cultura de paz.
fanatismo religioso, expresso pelo messianismo e pela se instale socialmente. Os vitimá-
crença, por parte dos caboclos revoltados, de que se
tratava de uma guerra santa. A região fronteiriça entre Um segundo movimento que en- rios e violadores sempre procuram
os estados do Paraná e Santa Catarina recebeu o nome
de Contestado devido ao fato de que os agricultores tendo ser importante diz respeito à ocultar e negar a violência. Toda
contestaram a doação que o governo brasileiro fez aos necessidade de dar vez e voz às di- negação da violência propicia uma
madeireiros e à Southern Brazil Lumber & Colonization
Company. Como foi uma região de muitos conflitos, fi- ferentes vítimas da violência a fim reduplicação do seu efeito miméti-
cou conhecida como Contestado, por ser uma região
de disputas de limites entre os dois estados brasileiros. de que possam expor à crítica social co, condenando as pessoas e socie-
(Nota da IHU On-Line) as nefastas consequências da violên- dades a repetirem como tragédia
6 Cabanada ou Guerra dos Cabanos: movimento de
origem restauradora, tinha como objetivo a volta de cia. Não se trata de espetacularizar as violências ocultadas. De modo
Dom Pedro I ao trono do Brasil. O movimento caba-
nagem teve atividade em Pernambuco, Alagoas e Pará, a violência, algo que a banaliza e in- diferente, a memória das vítimas
com características distintas (nacionalistas, antiescrava- duz à mera vingança, como ocorre traz à luz a violência sofrida e com
gistas), e feneceu com a morte do Imperador em Portu-
gal, em 1834. (Nota da IHU On-Line) com muitos programas de TV que ela a urgência de pensar políticas
7 Sobre a questão da mimeses humana, remeteria para
quem estiver interessado em aprofundar, à obra da mi- fazem da violência um espetáculo de reparação, assim como políticas 73
nha autoria: La mímesis humana.” La condición paradó- de massas. A banalização midiáti- de neutralização da repetição da
jica de la acción imitativa” (Frankkfurt: OmniScriptum
Management, 2016). (Nota do entrevistado) ca da violência apela, geralmente, a violência. ■

Leia mais
- A condição paradoxal do perdão e da misericórdia. Desdobramentos éticos e implicações
políticas. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado no Cadernos Teologia Pública número
115, disponível em http://bit.ly/2K2F1rB.
- O poder pastoral, as artes de governo e o estado moderno. Artigo de Castor Bartolomé
Ruiz, publicado no Cadernos IHU Ideias número 241, disponível em http://bit.ly/2HY5Uwp.
- A filosofia como forma de vida V - O Officium: o dever que separa a vida de sua forma.
Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 471, de 31-8-2015,
disponível em http://bit.ly/2rkYbT1;
- A filosofia como forma de vida (IV). A regra da vida (regula vitae), fuga e resistência ao
controle social. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 468,
de 29-6-2015, disponível em http://bit.ly/1Has1XK;
- A filosofia como forma de vida (III). Do cuidado de si ao deciframento de si. Artigo de Cas-
tor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 467, de 15-6-2015, disponível em
http://bit.ly/1GK0EcZ;
- A Filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si
(enkrateia). Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 471, de
1-6-2015, disponível em http://bit.ly/1IJRiym;
- A Filosofia como forma de vida (I). Pierre Hadot, a filosofia antiga e os exercícios (askesis)
do espírito. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 471, de
23-3-2015, disponível em http://bit.ly/1GbmYWA;

EDIÇÃO 521
ENTREVISTA

- A verdade, o poder e os modelos de subjetivação em Foucault. Artigo de Castor Bartolomé


Ruiz publicado nas Notícias do Dia, de 25-9-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos, dis-
ponível em http://bit.ly/GB38Nt;
- Giorgio Agamben, genealogia teológica da economia e do governo. Artigo de Castor Bar-
tolomé Ruiz na Revista IHU On-Line edição 413, de 1-4-2013, disponível em http://bit.ly/1aobf9t;
- O trabalho e a biopolítica na perspectiva de Hannah Arendt. Artigo de Castor Bartolomé
Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 393, de 21-5-2012, disponível em http://bit.ly/
KOOxuX;
- O advento do social: leituras biopolíticas em Hannah Arendt. Artigo de Castor Bartolomé
Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 392, de 14-5-2012, disponível em http://bit.ly/
J88crF;
- A economia e suas técnicas de governo biopolítico. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publi-
cado na Revista IHU On-Line, edição 390, de 30-4-2012, disponível em http://bit.ly/L2PyO1;
- Objetivação e governo da vida humana. Rupturas arqueo-genealógicas e filosofia crítica.
Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 389, de 23-4-2012,
disponível em http://bit.ly/JpA8G3;
- A bios humana: paradoxos éticos e políticos da biopolítica. Artigo de Castor Bartolomé
Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 388, de 9-4-2012, disponível em http://bit.
ly/Hsl5Yx;
- Genealogia da biopolítica. Legitimações naturalistas e filosofia crítica. Artigo de Castor
Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 386, de 19-3-2012, disponível em
http://bit.ly/GHWSMF;
- A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça. Artigo de
74 Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 380, de 14-11-2011, dispo-
nível em http://bit.ly/vQLFZE;
- A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Artigo de Cas-
tor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011, disponível
em http://migre.me/66N5R;
- A testemunha, um acontecimento. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista
IHU On-Line, edição 375, de 3-10-2011, disponível em http://bit.ly/q84Ecj;
- A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W.
Benjamin. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 374,
de 26-9-2011, disponível em http://bit.ly/pDpE2N;
- O estado de exceção como paradigma de governo. Artigo de Castor Bartolomé
Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-9-2011, disponível em http://
bit.ly/nsUUpX;
- O campo como paradigma biopolítico moderno. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz,
publicado na Revista IHU On-Line, edição 372, de 5-9-2011, disponível em http://bit.ly/
nPTZz3;
- Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado
na Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-8-2011, disponível em http://bit.ly/naBMm8.

7 DE MAIO | 2018
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Deslocamentos genealógicos da
economia teológica segundo Agamben

A
edição de número 130 dos Cadernos Teologia Pública traz o artigo
de Joel Francisco Decothé Junior, intitulado Deslocamentos genea-
lógicos da economia teológica segundo Agamben. No texto, o autor
apresenta uma espécie de exegese nas reflexões de Giorgio Agamben acerca
de seus fundamentos e deslocamentos genealógicos da economia teológica
no Ocidente. “Neste sentido, buscamos examinar as bases daquilo que seja
considerado como o modelo da economia teológica em termos de paradigma
governamental da noção de secularidade”, destaca Joel Francisco. E acres-
centa: “em seguida, fazemos uma leitura sobre
o sentido político desta genealogia teológica,
traçando um exame de alguns elementos que a
compõem. Por fim, empreendemos a abordagem
da noção de economia teológica em seu entre-
laçamento com a operatividade da máquina de
governo e providência na gestão da vida e das 75
coisas em sua função econômica”.
Joel Francisco Decothé Junior é doutorando
em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Unisinos. Possui graduação em Te-
ologia pela Faculdade EST, graduação em Filo-
sofia pela Unisinos e mestrado em Filosofia pela
mesma instituição.
A versão completa do texto em PDF está dispo-
nível em http://bit.ly/2rjlQlU
Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pú-
blica também podem ser obtidas diretamente no
Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus
São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou
solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.
br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

EDIÇÃO 521
PUBLICAÇÕES

O campo de concentração: um marco


para a (bio) política moderna

V
iviane Zarembski Braga é a autora do artigo O campo de concentra-
ção: um marco para a (bio) política moderna, publicado no Cader-
nos IHU Ideias número 270. No texto, analisa elementos da filosofia
de Giorgio Agamben. “Em especial, aqueles relacionados aos Lager nazistas,
compreendidos por ele como a culminância dos dispositivos biopolíticos de
governo, já que o autor considera o regime nazista como o primeiro regime
eminentemente biopolítico”, destaca
Viviane. Ela também se propõe a “com-
preender como se fez possível a criação
do campo de concentração no regime
nazista, bem como os mecanismos que
permitiram a sua manutenção, se faz
necessário compreender alguns pressu-
postos históricos para a realização dos
76 mesmos”. Para isso, “percorre a análise
arqueológica realizada por Agamben”.
Viviane Zarembski Braga é doutoran-
da em Filosofia pela Unisinos. Possui
graduação e mestrado em Filosofia, pela
mesma instituição. Atuou como pro-
fessora de Filosofia na rede pública de
ensino do Rio Grande do Sul, na cidade
de Novo Hamburgo, durante os anos de
2011 a 2016.
Esta e outras edições dos Cadernos
IHU Ideias também podem ser obtidas
diretamente no Instituto Humanitas
Unisinos - IHU, no campus São Leopol-
do da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou
solicitadas pelo endereço humanitas@
unisinos.br. Informações pelo telefone
(51) 3590-8213.

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REVISTA IHU ON-LINE

Guatemala: incerteza no coração maia

Bruno Lima Rocha

O
s Estados Unidos fazem da Guatemala o escoadou-
ro das deportações de imigrantes ilegais centro-a-
mericanos. Uma parcela importante destes depor-
tados permanece no país e fica à mercê das redes mafiosas.
O governo guatemalteco “aceita” esta humilhação também
por necessitar das remessas de dinheiro provenientes da
imigração recente.
Bruno Lima Rocha realiza estágio pós-doutoral em
economia, é doutor em ciência política e professor de rela-
ções internacionais e jornalismo na Unisinos.
Eis o artigo.

77
A Guatemala, o maior país do istmo da América Central, tem população de mais de 17 milhões
de habitantes e é considerada a centralidade do “mundo maia”. No texto que segue observamos,
de forma sintética, como a herança dos povos originários – atualmente organizados como tais no
país – implica uma esperança na forma de vida coletiva, distinta dos espaços geográficos onde as
máfias, “pandillas”, “maras” e cartéis operam.
O antigo Reino da Guatemala, equivocadamente visto apenas como república bananeira, foi
palco do ignóbil golpe e intervenção da externa de junho de 1954, contra o governo reformista do
general Jacobo Árbenz. Nesta ocasião, o então recém-formado médico argentino (especializado
em hanseníase), Ernesto Guevara de la Serna, servia ao governo Árbenz e veio a se radicalizar
no exílio mexicano. O golpe, financiado pela United Fruit Co. (empresa estadunidense maior
proprietária e arrendatária de terra no país), foi seguido de governos autocráticos até culmi-
nar no início da insurgência, em 1960. À época, os insurgentes eram do Exército Guerrilheiro
dos Pobres (EGP), Forças Armadas Rebeldes (FAR), Organização Revolucionária do Povo em
Armas (ORPA) e do Partido Guatemalteco do Trabalho. As quatro forças seguiram lutando em
separado até a unificação, em 1982, criando a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca
(URNG). Após mais de 35 anos de um conflito ininterrupto, pleno de violação aos direitos hu-
manos e interferência dos EUA, a pacificação do país se deu após o impasse militar. Pouco se
avançou institucionalmente depois desse momento.
Vale observar uma diferença fundamental entre os períodos de “pós-conflito” da Nicarágua e El
Salvador, se comparado com a Guatemala: nos dois primeiros países, a estrutura político-militar
que liderou a guerra civil venceu no primeiro caso e empatou no segundo. Ambas as estruturas
se tornaram partidos políticos e, mantendo-se razoavelmente coesas, tanto a Frente Sandinista
de Libertação Nacional (FSLN, sob a liderança bastante criticável de Daniel Ortega e sua esposa
Rosario Murillo) como a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) venceram na
urna da democracia indireta e, em 2018, são o partido de governo, ocupando o Poder Executivo.
Já a URNG não consta como partido eleitoral registrado como vigente no Tribunal Supremo
Eleitoral de Guatemala. Acompanhando as crises no sistema político do país, com sucessivos
escândalos e modelos de enriquecimento ilícito através da política profissional, a URNG se tor-
na um movimento de unidade da esquerda guatemalteca, com um programa mais radicalizado,

EDIÇÃO 521
CRÍTICA INTERNACIONAL

“Quatorze por cento do PIB da Guatemala


provém de recursos enviados por
emigrantes vivendo nos Estados Unidos”

mas sem o peso político dos partidos semelhantes no istmo.


As bandeiras dos povos originários e suas reivindicações mais fundamentais seriam as úni-
cas vitórias concretas advindas do processo de paz e da situação chamada de “pós-conflito”.
Os acordos de paz, assinados definitivamente em dezembro de 1996, reconheceram 23 idiomas
nacionais no país, onde o castelhano realmente opera como língua franca, mas tem nos demais
o reconhecimento oficial. No sistema educacional público do país, dividido entre os vinte e dois
departamentos, há ensino bilíngue regionalizado com os vinte e um idiomas de origem maia –
Quiché’, Queqchí, Kaqchikel, Mam, Poqomchi, Tzutujil, Achí, Q’anjob’al, Ixil, Acateco, Jakalte-
co, Chuj, Pocomam, Chortí, Aguateco, Sacapulteco, Sipacapense, Uspanteco, Tectiteco, Mopan,
Itzá; além das línguas garífona (do Atlântico caribenho) e xinka (nahuas centroamericanos, não
maias). Em tese, o idioma maia ou originário é ensinado nas escolas públicas conforme a densi-
dade populacional de cada origem.
Um importante acordo de pós-conflito e aparentemente cumprido pelo Estado é uma pensão
e garantia tanto de assentamento rural como de financiamento para a produção agrícola e áreas
correlatas. São vários os projetos de turismo rural em regiões de serra, onde o conflito interno,
78 as colunas guerrilheiras e as operações do Estado se desenvolveram de maneira terrível. Pas-
sados mais de 22 anos, os efeitos são impressionantes. Lugares, hoje turísticos, como a cidade
de Chichicastenango (no departamento de El Quiché, a apenas 140 quilômetros da capital) e os
municípios ao redor do Lago Atitlán (no departamento de Sololá) eram zonas tanto da resistên-
cia indígena e camponesa, como dos esquadrões da morte, especialmente através dos Comandos
Kaibiles, as forças especiais da guerra interna financiada pelos Estados Unidos.
É curioso observar estas variáveis, entre a presença de organização política e de políticas cul-
turais baseadas na luta indígena e camponesa e a melhoria nas condições concretas de vida,
(incluindo algum controle coletivo da terra). É como um padrão, tal como em Chiapas, no Méxi-
co. Quanto maior a organização social dos povos originários, menor a pobreza absoluta e a inci-
dência do crime, na forma contemporânea de “pandillas y maras”. É justamente nos territórios
onde houve maior concentração de crimes de guerra e resposta na autodefesa popular, onde se
vive melhor e com mais altivez. As Comissões de Conciliação e Paz, além dos subsídios e orga-
nização social cooperativa fazem a diferença. Para garantir a incidência, o Conselho de Anciãos
(indígena) e as organizações sociais vinculadas à Teologia da Libertação atuam.
Infelizmente, o mesmo não ocorre em todo o país, menos ainda na capital, Ciudad de Guatema-
la. A principal base aérea do país opera como uma zona de “despejo de indesejáveis” deportados
dos EUA, sendo esta política decorrente desde o governo Obama. Uma parcela da população
deportada termina sobrevivendo na região metropolitana, tornando o fenômeno da favelização
e os vínculos com as máfias uma constante. Além do crime em rede e um sistema prisional in-
controlado, o país está fragilizado pela presença de Estados Unidos, Israel e Taiwan; coalhado
de corrupção governamental e empresas “religiosas” neopentecostais, a Guatemala não indígena
vive um presente duvidoso e futuro incerto. ■

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

7 DE MAIO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Maio de 1968: 40 anos depois

Edição 250 – Ano VIII – 10-3-2008

1968 é um marco no século XX. Quarenta anos depois, a IHU On-Line bus-
ca discutir o seu impacto. Entre os entrevistados da edição estão o filósofo e
professor da Universidade de Brasília (UnB) Miroslav Milovic, o sociólogo
argentino Ernesto Laclau, o psicanalista e professor da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Benilton Bezerra Jr. e o sociólogo francês
Marcel Gauchet, entre outros.

Giorgio Agamben e a impossibilidade de


salvação da modernidade e da política moderna 79

Edição 505 – Ano XVII – 22-5-2017


A imagem que ilustra a capa dessa IHU On-Line, a pintura de Charles Le
Brum chamada A apoteose de Luís XIV (1677), sintetiza uma ideia central
na obra de Giorgio Agamben: a modernidade nunca foi secular, mas
profana. A paradoxal imagem que enaltece a força do Estado expresso
na figura messiânica do rei mostra também o lado obscuro do poder,
que pela força cria suas zonas de exclusão e exceção. Diante da falência
da promessa moderna de avanço civilizatório, o filósofo assenta seu
pensamento, que inspira o VI Colóquio Internacional IHU.

Cuidado de si e biopolítica

Edição 472 – Ano XV – 14-9-2015

Pensar os processos biopolíticos a partir de um paradigma contemporâ-


neo exige abordar a realidade em nível molecular. Quando os biopoderes
operam de forma fragmentária, particularizada, o cuidado de si, com to-
dos seus discursos, práticas e procedimentos tecnocráticos, torna-se um
tipo de governo descentralizado da vida humana, permeando todos os âm-
bitos de nossa experiência em sociedade. Esta revista IHU On-Line aborda
o tema central do XVII Simpósio Internacional IHU.

EDIÇÃO 521
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