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March 6, 2015
Em 1934, após uma longa viagem de trem, o médico João Guimarães Rosa chegou ao Rio de Janeiro. Sentiu-se “estonteado com o
ambiente barulhento” e, depois, “com o luxo magnificente do [Palácio] Itamaraty.” Ele estava no grande salão da biblioteca para prestar
um concurso para o cargo de cônsul com outros 58 candidatos. Na prova de francês, a primeira etapa, pediu-se para traduzir trecho do
livro Nouvelle Anthropologie, de Henri de Lanteuil, e fazer uma versão do livro de João Ribeiro, História do Brasil. Um candidato
levantou e abandonou a prova. Parecia impossível. Guimarães Rosa conseguiu chegar ao final, mas tinha certeza que não passara.
Saiu da prova e pegou uma barca no cais Pharoux. Ficou indo e vindo de Niterói ao Rio de Janeiro, imerso em um profundo
sentimento de insegurança. O resultado saiu e 30 foram reprovados — mas não ele. O mineiro passou nas sucessivas etapas, até as
provas orais. Presenciada por numerosa plateia, o médico demonstrou uma segurança e um porte incomuns para evento de tal
natureza. A reação de todos era de pasmo. Era um desconhecido. Não frequentara os saraus literários do Rio de Janeiro ou de São
Paulo; tampouco, as redações de jornal ou as rodas intelectuais da capital. Era, talvez, o único dos dez concorrentes habilitados sem
ter colocado os pés na Europa. Um amigo da família, que esteve na plateia, relatou a reação dos examinadores: estavam comovidos,
atônitos e surpresos [1]. De onde saíra aquele talento?
O espanto com o fato de um médico que vivia no interior de Minas Gerais ter desempenho tão expressivo no concurso fazia sentido. A
diplomacia era uma profissão predominantemente de cariocas e de uma minoria das elites das capitais regionais. Essa característica
não foi monopólio brasileiro. A concentração social e regional foi algo que afetou todos os serviços exteriores até pelo menos o final da
primeira metade do século XX. Nos Estados Unidos, entre 1898 e 1914, dois terços provinha da Costa Leste, tendo estudado em
escolas particulares, como Groton, ou/e em Harvard, Yale e Princeton. Em Portugal, no serviço exterior salazarista (1926-1974), a
maioria provinha de Lisboa, com formação em direito em Coimbra; na Alemanha, após a unificação, os diplomatas, em sua maioria,
provinham de três das 211 fraternidades estudantis; na França, predominava a elite parisiense, particularmente os mais ricos ou com
parentes na cúpula do aparelho de Estado. No Império austro-húngaro, havia um pouco mais de dispersão geográfica, mas somente
6% não era aristocrata em 1914[2].
A maioria dos serviços exteriores mudou substantivamente o padrão de seu recrutamento no século XX. O Brasil não foi diferente.
Dando continuidade à série “Filhos da Democracia”, examinaremos o grupo de diplomatas que acedeu ao IRBr de 1985 a 2010 no
aspecto específico do local de nascimento. Antes de iniciar, no entanto, deve-se levar em conta que, no período examinado, o país
passou por várias mudanças do ponto de vista federativo. Optou-se por utilizar a distribuição existente em 2010, data final do marco
temporal do estudo.
A primeira informação relevante é que o serviço exterior brasileiro foi caracterizado por uma elevada proporção de cariocas em suas
fileiras no início do período republicano. No período Vargas (1930-1945), eles eram mais de 40%. Do governo Sarney para o Governo
Lula, contudo, a participação de diplomatas nascidos no Rio de Janeiro passou por uma radical diminuição — caindo de 51% para
22%. Outra queda importante foi o número de servidores que nasceram no exterior. Se utilizarmos tal categoria como uma proxy,
ainda que imperfeita, de filhos de diplomatas, pode-se dizer que o período posterior ao quadriênio Collor/Itamar levou a uma carreira
menos endógena. As unidades da federação que mais avançaram, no mesmo período, foram Minas Gerais e São Paulo, sendo a
segunda um caso especialmente relevante (ver tabela abaixo).
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Essa mudança no status relativo do serviço exterior brasileiro, no entanto, não pode ser celebrada como uma nova era de abertura do
método de recrutamento. Uma forma de analisar os dados é pelo filtro da distribuição regional. A desagregação dos dados por esse
critério (Tabela 3) demonstra que a participação da região sudeste permaneceu praticamente a mesma. Há, certamente, uma
tendência de queda se compararmos com o período Sarney (de 62,96% para 59,85%), mas ainda está acima do período 1930-1945
(58,68%). Essa situação vai de encontro com a demografia do país (Tabela 4). Enquanto as regiões norte e nordeste representam mais
de 35% da população, há menos de 15% de diplomatas oriundos dessas áreas.
9.revisada
Tabela 5: proporção de diplomatas que não nasceram e não cursaram o ensino superior em Minas Gerais,
Distrito Federal, Rio de janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e exterior.
Isso é um problema. Enquanto, demograficamente, ocupam 52% do contingente populacional brasileiro, os oriundos desses estados
enfrentam sérias dificuldades quando não se dirigem para os centros de ensino nas grandes metrópoles do país. Pode-se dizer, dessa
maneira, que hoje a diplomacia brasileira representa melhor a composição regional do país se comparado com aquele momento em
que Guimarães Rosa entrara no Itamaraty. Mas a concentração ainda permanece em pessoas que nasceram ou estudaram em Minas
Gerais, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e/ou no exterior. Transpor essa barreira é um grande desafio
porque está associada à própria desigualdade da infraestrutura educacional do país. Não há dados padronizados do ensino superior,
mas utilizando os da área de humanas do Exame Nacional de Ensino Médio de 2013, nas variáveis média por escola e percentual de
alunos que tiraram notas mais altas, percebemos que, das mais de 14.700 escolas de ensino médio do país, poucas de fora do grupo
selecionado (DF, MG, RJ, SP e RS) tem alto padrão de desempenho.
Gráfico 1: médias das notas em humanas e percentual de todos os alunos no Nível 5 do ENEM. Dados do sítio
eletrônico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. O tamanho de cada
referência refere-se ao número de alunos participantes por instituição de ensino médio.
No ensino superior, a situação é quase a mesma. Utilizando os 192 primeiros colocados do Ranking Universitário da Folha de São
Paulo de 2014, observamos que 51% das instituições de ensino superior estão concentradas no grupo de cinco estados selecionados
acima. Se utilizarmos o critério das vinte primeiras colocadas, no entanto, a proporção chega a 75% [5]. O recrutamento do Itamaraty,
dessa forma, só reflete (e reforça) um problema mais amplo da sociedade.
Mas o que fazer para dirimir esse problema? Pensou-se, no final da década de 1950, que a realização das provas para o Instituto Rio
Branco em outros estados fosse ser um passo importante na melhor distribuição regional dos diplomatas brasileiros. Isso começou em
1961, com a realização da prova em sete cidades. Em 1995 foram dez, e em 2011, pela primeira vez, todas as fases do concurso
foram aplicadas em todas as capitais da federação. Infelizmente, a realização das provas em um estado só teve impacto no
recrutamento quando a infraestrutura educacional dessa localidade permitiu a apresentação de candidatos competitivos. Quando esse
elemento não estava disponível, não há evolução significativa – como a introdução das provas em Cuiabá, Campo Grande e Manaus
em 2005.
No final do governo Lula e no primeiro mandato do governo Dilma Rousseff, há relatos sobre viagens de alguns alunos do Instituto Rio
Branco para acompanhar a execução das provas e realizar palestras em instituições de ensino em capitais mais afastadas. Não se tem
notícia, contudo, se essa atividade continua sendo executada e se teve algum impacto sobre o interesse de estudantes dessas
localidades pela carreira. Ademais, a iniciativa trabalha um aspecto meritório, a divulgação, a qual infelizmente tem impactos limitados
sobre o tipo de problema apresentado acima – a carência de infraestrutura educacional.
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Nessa dimensão, cabe apresentar o papel positivo que a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) desempenhou, no período
examinado, na tarefa de vulgarizar o conhecimento de matérias cruciais para o bom desempenho no concurso. Essa pode ser uma via
a ser explorada no futuro. Pode-se cogitar, por exemplo, o uso de aulas virtuais sobre aspectos relacionados ao concurso promovidas
pela Fundação, usando o canal já existente no Youtube. Pode-se questionar tal iniciativa indicando que tal tarefa caberia ao setor
privado. Infelizmente, nas franjas dos grandes centros urbanos do país, há escassa capacidade de o setor privado fazer oferta
equivalente de material de estudo. A inação, aqui, serviria somente para reforçar a desigualdade. Mas isso não significa que o sistema
atual seja ideal. Há a necessidade de maior diálogo entre a diretoria do IRBr e a FUNAG, além de estudos quantitativos mais
adequados para identificar, com base nos candidatos ao concurso, qual material pode ser melhorado e quais foram julgados mais
importantes.
Utilizar o modelo do atual Programa de Ação Afirmativa de Bolsa-Prêmio de Vocação para as áreas geográficas assinaladas acima
seria uma proposta mais efetiva. Assim, a concessão de bolsas para alunos promissores de regiões sem a capacidade institucional de
formar bons candidatos poderia dirimir o problema. Ainda que os desafios analisados acima sejam consequência de uma desigualdade
geral da sociedade brasileira em termos regionais, uma política de bolsas seria um mecanismo para o Itamaraty ser novamente
surpreendido pelos Guimarães Rosas de todos os rincões do país.
Referências
Bruley, Yves e Soutou, Georges-Henri. Le Quai d’Orsay impérial: histoire du Ministère des Affaires étrangères sous Napoléon III.
Paris: Editions A. Pedone, 2012.
Cecil, Lamar. The German diplomatic service, 1871-1914. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1976.
Godsey Jr., William D. The culture of diplomacy and reform in the Austro-Hungarian foreign office, 1867-1914. In: Mosslang,
Markus e Riotte, Torsten. The diplomat’s world: a cultural history of diplomacy, 1815-1914. Oxford: Oxford University Press, 2008.
p. 59-81.
Heinrichs, Waldo H. American ambassador: Joseph C. Grew and the development of the United States diplomatic tradition. New
York: Oxford University Press, 1986.
Moskin, J. Robert. American statecraft: the story of the U.S. foreign service. New York: St. Martin’s Press, 2013.
Oliveira, Pedro Aires. O corpo diplomático e o regime autoritário (1926-1974). Análise social, n. 178, p. 145-66. 2006.
Rosa, Vilma Guimarães. João Guimarães Rosa, meu pai. 2ª edição: Nova Fronteira, 1999.
Notas
[1] Rosa: 1999, 311; Atas do concurso para terceiro oficial (1934). Concursos, relatórios, resultados finais. Lata 580. Maço 1. AHI-RJ.
Maço 13.120. AHI-RJ.
[2] Moskin: 2013, 342; Heinrichs: 1986, 97; Oliveira: 2006; Bruley e Soutou: 2012, 338-48; Godsey Jr.: 2008, 17; Cecil: 1976, 64 e 79
[3] No período 1930-1945, estão na categoria diplomatas os servidores das carreiras consular e de Secretaria de Estado e não se
diferenciou o Rio de Janeiro do Distrito Federal.
[4] Na Tabela 2 foram selecionadas as cidades que em qualquer dos cinco casos tivesse pelo menos 1,5% dos diplomatas no
respectivo período.
Todos os dados quantitativos foram retirados da base de dados referida no primeiro artigo da série “Filhos da Democracia”.
Sobre os autores
Rogério de Souza Farias é visiting scholar do Lemann Institute for Brazilian Studies e associate do Center for Latin American Studies
da Universidade de Chicago, Estados Unidos (rofarias@gmail.com)
Géssica Carmo é Bacharelanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU
(gessicafdcarmo@gmail.com)
Mundorama. "Filhos da democracia: a descarioquização da diplomacia brasileira, por Rogério Farias e Géssica Carmo". Mundorama -
Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 07/05/2018]. Disponível em:
<https://www.mundorama.net/?p=16759>.
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