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O laboratório e suas redes*


por John Law
(tradução de
Ana Lúcia do Amaral Villasboas,
revista por Ivan da Costa Marques)

Reprodução livre, em Português Brasileiro, do texto original de John Law para fins de
estudo, sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos os direitos preservados.
Free reproduction, in Brazilian Portuguese, of John Law’s original for study purposes.
No pecuniary advantages involved. Copyrights preserved.

O cientista como empresário

Rose é uma jovem e brilhante pesquisadora em bioquímica, autora


de numerosas publicações. Ela é convidada a participar de colóquios
internacionais, cortejada por companhias farmacêuticas e obtém
importantes créditos de organismos de financiamento. Em sete anos, de
jovem assistente de pesquisa pós-doutorada, tornou-se chefe de uma
importante equipe.

A maneira como Rose trabalha é rica em informações sobre a


prática dos laboratórios científicos. Ela mostra, por exemplo, que o
trabalho científico implica aspectos mesclados; que existe um trabalho
fisicamente desgastante exigindo longas horas na bancada; que há
dispositivos técnicos de tipos diversos, simples e complexos, a controlar;

* Traduzido do inglês por Bauouin Jurdant. O título original deste capítulo é “The
Networks of the Laboratory”. O termo “network”, traduzido aqui pela palavra rede
(“réseau” em francês), é utilizado muito freqüentemente por John Law para designar um
conjunto de elementos interligados, uma ordem, uma estrutura. Ao invés de escolher
termos diferentes segundo os contextos, conservamos, tanto quanto possível, o termo
rede (“réseau”) para “network”. Algumas frases tornam-se algumas vezes um tanto
estranhas em francês, mas o leitor se familiarizará logo com este conceito tal como ele é
utilizado pelo autor (NdT francês).
A ciência e suas redes

que há várias interações entre as pessoas: o fato de trabalhar com


estudantes, técnicos, colaboradores de pesquisa e de encorajá-los
implica um “trabalho social”; que é necessário ler e escrever muito; que é
necessário, igualmente, passar muito tempo no telefone para discutir
com os fornecedores ou representantes dos órgãos de financiamento;
que há seminários a dar, à noite, a grupos de voluntários engajados nas
campanhas de financiamento da pesquisa sobre o câncer; que há o
aborrecimento das esperas nos aeroportos e o esforço exigido pelas
diferenças de fuso horário, depois de viagens de avião; que há viagens
longas, não só a fim de apresentar comunicados em conferências
internacionais, como também para colher informações sobre novas
técnicas – pois muitas não podem ser descritas perfeitamente e é
necessário aprendê-las trabalhando junto a um técnico experiente; que
amizades calorosas e intensas desenvolvem-se ao longo de longas
batalhas intelectuais que fazem surgir as melhores colaborações; que há
frustração quando uma experiência vai mal, quando o equipamento
apresenta defeito ou um fornecedor ou um colaborador revela-se falho;
que há prazer quando uma experiência funciona bem e o resultado é
inesperado, abrindo, assim, novos horizontes científicos promissores.

A rotina cotidiana de Rose é típica do trabalho em um laboratório


científico em vários aspectos, ainda que em outros seja bem específica.
Ela faz, por exemplo, mais sucesso que muitos cientistas. Após tê-la
observado trabalhando durante alguns anos, estou convencido de que
este sucesso deve-se, em parte, a sua faculdade de descobrir
rapidamente os objetivos associados a diferentes orientações do
trabalho. Ela seria a primeira a admitir que tal vitória tem igualmente algo
a ver com a sorte. Aliás, esta sorte surge, penso eu, por ser ela metódica
e capaz de autocrítica: é muito organizada, encontra tempo para pensar

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O laboratório e suas redes

nas especificidades do trabalho científico e da gestão de uma empresa


científica.

Como vou demonstrar, a ciência de laboratório não é puramente,


nem mesmo principalmente, uma atividade cerebral. É antes uma
questão de organização, e sua prática exige um comportamento próximo
àqueles que se atribui aos empresários. Meu objetivo não é, ao dizer isto,
de atacar ou de criticar as ciências. Proponho a noção de empresário
como metáfora útil a fim de refletir sobre a natureza da atividade
científica. Todos os cientistas que obtém algum sucesso trabalham
criando e combinando uma série de recursos heterogêneos de tipo
conceitual, físico, econômico e humano: em uma palavra, agem como
todos os empresários. Tal realidade é igualmente verdadeira para alguns
poucos cientistas que trabalham solitários em meio a estruturas
industriais ou universitárias. Este capítulo tratará, pois, do trabalho dos
cientistas-empresários – o que quer dizer que tratará do trabalho de
todos os cientistas de laboratório – e deste universo, feito de elementos
heterogêneos encontrados nos laboratórios.

O laboratório e seu material

Para entrar no laboratório onde Rose trabalha, é preciso tocar a


campainha. Você é, então, examinado por alguém que, por acaso, esteja
mais próximo da porta de entrada. Uma vez que fique evidente que você
é inofensivo, e não um membro da Frente de Libertação dos Animais,
você pode entrar. O laboratório - como tantos que produziram resultados
científicos de qualidade - parece feito de qualquer maneira. Na verdade
ele foi acrescentado ao corpo principal da construção. É pois constituído

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A ciência e suas redes

de saletas, que se intercomunicam, cheias de bancadas, armários e todo


tipo de equipamento.

Aí estão disponíveis os serviços habituais. Tomadas elétricas e


saídas de gás estão dispostas ao redor das bancadas. Tudo isto, mais as
saídas de água e os carrinhos para botijões de gás, faz parte do cenário
do laboratório. Enquanto não há interrupção, Rose e seus colaboradores
os utilizam automaticamente. Mas basta que um dia o fornecimento de
botijões de gás seja suspenso, por causa de uma greve na Companhia
de Gás, para que todas as discussões do laboratório se voltem para a
provisão de gás.

Como se pode reorganizar as experiências para utilizar da melhor


maneira as reservas? Quais devem ser as experiências prioritárias?
Existem fontes alternativas a explorar? Um dia em que eu estava no
laboratório, a água foi repentinamente cortada; descobriu-se que um
técnico de serviço havia esquecido de abrir um registro para encher um
reservatório. O corte foi breve e, à hora do almoço, o problema estava
resolvido. No entanto, durante as horas de corte, os membros do
laboratório tomaram consciência, primeiramente, do fato de que suas
atividades necessitavam de grandes quantidades de água e, em seguida,
da dependência na qual se encontravam face à rede que lhes fornecia
água.

Rose está no momento começando uma experiência que implica no


sacrifício de um grande número de ratos. Os ratos estão em pequenas
gaiolas em uma outra sala, fungando e agitando-se nervosamente. Eles
foram trazidos do biotério - uma pequena construção situada a mais ou
menos cem metros do laboratório. As regras concernentes ao cuidado
com os animais e seu sacrifício são muito rigorosas. As condições no
biotério são cuidadosamente controladas e sua construção -

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O laboratório e suas redes

imprescindível para o trabalho experimental de um certo número de


equipes - custou bem caro. Além disso, Rose, assim como seus colegas
que realizam experiências com animais, é obrigada a ter uma permissão
especial expedida pelo Ministério do Interior 1 . Este órgão verifica a
competência do cientista e a obediência deste aos protocolos concebidos
para minimizar o sofrimento e a dor dos animais.

Os ratos são idênticos ao máximo: vêm de uma linhagem


geneticamente pura, criada há centenas de gerações. Ainda que possam
variar pouquíssimo em tamanho e, é claro, em outras características
experimentalmente pertinentes, é importante para a experiência que as
diferenças entre os animais sejam as menores possíveis. Os funcionários
do biotério são responsáveis pelos programas de criação. São eles que
registram todo os dados sobre a ascendência dos animais; são eles que
regulam a atividade sexual dos reprodutores.

Rose não trabalha no programa de criação. Não é responsável pela


alimentação, água ou limpeza dos animais, e nem pelos cuidados com a
saúde ou pelo respeito às regras editadas pelo Ministério do Interior,
concernentes às suas condições de vida. Basta um telefonema para o
biotério para que lhe sejam entregues os ratos adequados. Contudo, às
vezes, ela própria vai ao biotério para conversar com os técnicos sobre
suas exigências ou sobre problemas que possam surgir. Por isto, ao
menos de uma maneira geral, ela tem consciência da natureza do
trabalho que é feito no biotério e dos tipos de problemas que os técnicos
encarregados dos animais encontram. Por vezes tem que intervir e fazer
sugestões sobre o que lá acontece.

Por exemplo: para certas experiências, ela necessita de fêmeas de


rato que atingiram um estágio particular na sua prenhez. Porém, as ratas

1 NdT francês: Ministério da Justiça, na França.


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A ciência e suas redes

entregues podem não estar prenhes. Quando isto acontece, o programa


experimental é interrompido, recursos são desperdiçados, e Rose diz aos
técnicos quais medidas tomar para resolver o problema.

Primeiro comentário

O laboratório pode ser entendido como a reunião de elementos


diversos colhidos pelo cientista-empresário. Mas trata-se de um conjunto
que repousa, por sua vez, sobre outros conjuntos. Basta pensar nos
serviços e no processo implicados no fornecimento de eletricidade de
240 volts e 50 hertz durante 24 horas por dia, 365 dias por ano. Ou no
investimento, na habilidade e no espírito empreendedor que terão sido
necessários para fabricar uma rede de dutos que traz metano do Mar do
Norte até a bancada do laboratório. Beneficia-se pois desta rede, mas as
relações que mantém com ela não causam o menor problema. Recebe e
paga por este fornecimento. Do ponto de vista do laboratório, redes
inteiras são mobilizadas por uma simples transação. Fornecimento de
eletricidade ou de gás, da mesma forma que as paredes e as bancadas,
são considerados como elementos de base2 que não podem mais ser
objetos de atenção e que servem para construir sua própria rede.

Não há nada de necessário nesta simplicidade. Quando as coisas


vão mal, tal simplicidade é rapidamente perdida. A falta de gás
engarrafado produziu uma forte tomada de consciência da existência da
rede que terminou na produção de gás. O mesmo ficou patente quando a

2 Em inglês: “Building Blocks”. O termo parecerá um pouco estranho em certas frases


do texto. O autor quer passar a idéia de que determinados elementos, aparentemente
simples, da estrutura do laboratório podem resultar de processos bastante complicados.
A simplicidade destes elementos não é mais que aparente. São simples “tijolos” na
construção de uma “rede”. Para traduzir “building blocks”, utilizaremos
indiferentemente expressões como “Elementos Constitutivos” ou “Elementos de Base”.
(NdT francês)
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O laboratório e suas redes

água foi cortada. Aquilo que antes era somente elemento de base,
desdobra-se sob a forma de redes que se tornam visíveis para Rose e
seus colaboradores. No caso da falta dos botijões de gás, que durou
várias semanas, todos os pesquisadores se mobilizaram para minimizar
os efeitos desta penúria no trabalho do laboratório. Eles tentaram,
principalmente, encontrar fontes alternativas. Em suma, eles queriam
adaptar uma parte da rede de fornecimento do laboratório a fim de
controlar os efeitos da interrupção. Logo que o gás engarrafado voltou a
estar disponível, seus esforços de renovação não foram mais
necessários. A rede de fornecimento, complexa e difícil de gerir, voltava a
ser simples e facilmente manejável.3

Nós observamos a mesma oscilação entre simplicidade e


complexidade nas relações de Rose com o biotério. Freqüentemente, a
entrega dos ratos não apresenta problema algum. Rose e seus
colaboradores podem, sem preocupações, contar com a rede de
recursos materiais e técnicos que constituem o biotério. Eles têm
somente que encomendar um determinado número de ratos a serem
entregues em um determinado dia. Os ratos chegam sem problemas,
constituindo, então, um elemento de base no trabalho do laboratório.
Porém, às vezes, e mais freqüentemente do que se pensa - pois o
trabalho no biotério é cheio de armadilhas - as coisas não funcionam
mais por si só. Os animais não satisfazem por causa deste ou daquele
defeito particular, ou ainda não foram fornecidos em número suficiente.
As transações entre o biotério e o laboratório são mais complexas que as
existentes entre este e a companhia de Eletricidade. Mesmo que Rose
não se interesse, por exemplo, pelo modo necessário para manter a
temperatura correta no biotério, ela pode muito bem discutir com os

3No que diz respeito às relações entre os cientistas e suas redes de fornecimento, ver
Callon (1986).
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A ciência e suas redes

técnicos deste, os procedimentos a serem seguidos a fim de verificar se


as ratas entregues para certas experiências estão efetivamente prenhes.
A rede do laboratório mobiliza o biotério e isto sem entrar em
negociações constantes. Mas esta mobilização, por menos complexa que
seja, não se reduz a uma simples transação.

Fabricação dos materiais

A série atual das experiências de Rose implica a preparação de um


polímero marcado radioativamente. O polímero fornecido por um de seus
colaboradores dinamarquês, Anderson, é uma longa cadeia de
moléculas, e a marcação exige que uma cadeia lateral radioativa seja
ligada ao polímero. Trata-se de um procedimento delicado porque implica
a manipulação de uma fonte intensamente radioativa que contém iodo
125, o que requer muita precaução. As quantidades de radioatividade
envolvidas são, ao mesmo tempo, perigosas para a saúde e, se não
houver manipulação apropriada, elas podem tirar todo valor das
experiências por causa de contaminação.

Quando começa a marcação radioativa, Rose protege-se


primeiramente com um pesado avental de chumbo por baixo de seu
jaleco branco. Em seguida, ela pega o polímero - dissolvido em uma
solução alcalina - e vai para o prédio principal do laboratório, onde há
uma câmara especial isolada para os trabalhos que implicam a
manipulação de isótopos fortemente radioativos. Lá, ela trabalha em um
abrigo especial, reservado às atividades de risco. Graças a luvas de
látex, cujo grau de radioatividade é constantemente verificado por ela
através de um aparelho, ela faz uma pequena parede de tijolos de
chumbo, destinada a protegê-la das radiações.

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O laboratório e suas redes

Ela retira, então, o iodo, conservado em uma pesada caixa de


proteção, de um armário situado embaixo da bancada, e coloca o
polímero a seu lado. Inscreve a data, registra a amostra de iodo e a
quantidade que ela conta utilizar no seu caderno de laboratório. Depois,
com uma extrema precaução, retira vinte microlitros de solução de iodo
para uma seringa de Hamilton e injeta na solução do polímero. Em
seguida, ocupa-se da seringa extremamente radioativa - enxaguando-a
abundantemente e colocando-a sobre uma bandeja de dejetos perigosos
dentro do armário. Repõe cuidadosamente o iodo em seu contêiner de
proteção e guarda tudo no armário de segurança. Depois de um breve
momento de trégua - ela não está manipulando as fontes principais de
grande radioatividade - novamente controla suas mãos enluvadas com o
contador e lê, sem maior preocupação, a medida fornecida pelo
mostrador.

Ei-la agora adicionando 8 ml de cloramina T à mistura, o que


desencadeia a reação na qual uma parte do iodo estará ligada ao
polímero. Ela utiliza uma seringa de 4 ml e toma nota da hora, pois a
reação entre os dois compostos não deve durar mais de oito minutos.
Depois, livra-se das seringas utilizadas, jogando-as em uma cesta no
interior do armário. Uma vez mais, Rose controla suas mãos e troca
novamente de luvas. Enquanto a reação prossegue, ela prepara a diálise
da mistura. Seu objetivo é de separar o iodo fortemente radioativo, que
não se ligou ao polímero, deste último, bem menos radioativo, e que será
necessário às suas experiências. Para fazê-las, ela coloca a solução em
uma bolsa de diálise - um tubo longo e fino que parece ter sido fabricado
de polietileno - que, por sua vez, é posto em suspensão em uma solução
salina diluída contida em um grande frasco. Ela prepara a membrana e o
frasco e interrompe a reação adicionando bissulfito de sódio à mistura de
iodo com polímero. Depois, passa o contador na garganta - todo iodo
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A ciência e suas redes

radioativo tende a se fixar na glândula tiróide - e constata, com


satisfação, que o valor medido não ultrapassa os níveis normais de
radiação. Leva suas mãos enluvadas diante do contador que acusa um
nível elevado, fato que faz com que ela troque de luvas. Começa, então,
a parte mais delicada de toda a operação, aquela que Rose, muito
concentrada e praticamente muda, chama de “horrível momento”. Ela
deve usar uma seringa para transferir a solução de polímero e iodo de
seu contêiner para o tubo de diálise. O tubo é longo e muito estreito. Ele
se dobra, o que impede a solução de escoar até o fundo. A solução é
extremamente radioativa. Mesmo tomando as maiores precauções, há
sempre o risco de que esta escorra sobre os dedos durante a injeção no
tubo. Por isto, Rose é muito prudente. Ela efetua a operação em um
recipiente de vidro, de tal maneira que se tudo entornar, o armário não
será contaminado. Enquanto injeta a solução no tubo, ela o levanta até
enchê-lo. Desta vez, nada entornou. Ela faz uma ligadura no alto do tubo
e o coloca em segurança no interior do frasco que contém uma solução
salina: a diálise começou. Rose livra-se então da seringa e das luvas de
látex, verifica a radioatividade do local de trabalho e sai da câmara “de
risco”. A diálise continuará durante toda a noite e Rose voltará com certa
freqüência para trocar a solução salina e assim, manter o processo de
diálise.

Segundo comentário

Uma parte dos elementos heterogêneos mobilizados pelo


laboratório não ocasiona transações muito complicadas. Um simples
pagamento mensal à British Oxygen Company é suficiente, por exemplo,
para assegurar o fornecimento de botijões de gás. Por trás de tais
simplificações, esconde-se sempre uma grande complexidade que se

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O laboratório e suas redes

manifesta em algumas ocasiões extraordinárias. A partir do momento em


que as coisas vão mal, as interações entre redes diversificam-se e o que
era simples torna-se brutalmente complexo: o cientista-empresário
descobre, então, uma multidão de agentes que não conhecia e com os
quais deve negociar a regularidade de seu fornecimento.

Em contraposição, certos elementos indispensáveis à prática da


ciência não podem ser comprados prontos para uso. Eles devem, ao
contrário, ser elaborados e postos em condições de trabalho no
laboratório. Para Rose, os polímeros marcados situam-se nesta
categoria. O polímero no qual ela trabalha lhe é enviado pelo correio, ou
transportado em uma bagagem de mão por avião: é assim que ele é
encaminhado da Dinamarca até o laboratório de Rose. Mas os materiais
radioativos são muito mais difíceis de transportar. Na Inglaterra, por
exemplo, eles devem ser colocados em contêineres especiais situados
nas pontas das asas dos aviões e transportados em cofres altamente
protegidos. Além disso, como o marcador radioativo preferido o iodo 125
tem um período de vida muito curto, é melhor marcar os polímeros
momentos antes das experiências, ao invés de semanas antes, quando
de seu transporte.

Quando marca os polímeros, Rose combina uma série de elementos


de base a fim de criar um novo recurso, um novo elemento necessário à
continuação de seu trabalho. Não é nada fácil. Se ela não consegue
construir e estabilizar o conjunto, tudo pode acabar mal. Por exemplo, se
o iodo radioativo não for conservado em um contêiner de chumbo,
haverá contaminação da câmara de trabalho. Se a diálise não for
efetuada segundo as regras, as experiências não terão valor, pois o
detetor de radiações será incapaz de fazer a distinção entre o iodo e o
polímero. Se os cadernos não forem atualizados de maneira adequada, o

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A ciência e suas redes

controlador de radiação pedirá explicações, e se as respostas não forem


satisfatórias, a autorização para iniciar as experiências utilizando
isótopos radioativos, será cassada pelo Ministério do Interior. A lista de
erros, fracassos e catástrofes possíveis é imensurável. Não se trata, ao
dizer isto, de pôr em dúvida a competência de Rose (uma vez que ela é
altamente qualificada), mas de ressaltar a precariedade do processo de
construção de uma ordem, a partir de elementos heterogêneos -
compostos químicos, textos, aparelhos e técnicas. Os diferentes
elementos que se integram em uma tal rede estão sempre prontos a
retomar sua forma original - a menos que eles sejam mantidos em seus
lugares pelos elementos vizinhos. O cofre de chumbo retém a radiação
que escapa do iodo. A adição do bissulfito de sódio interrompe a reação
entre o polímero e o iodo. As anotações feitas por Rose sobre a
quantidade de iodo que ela utiliza contribuem para tranqüilizar o
Ministério do Interior e para evitar que o bom agenciamento das
experiências seja perturbado. O objetivo é de justapor toda uma série de
elementos heterogêneos a fim de engendrar uma rede que tornará
maleáveis seus componentes individuais e contribuirá para reforçar a
rede do laboratório enquanto organização. E é esta estrutura
entrelaçada, criada pelo espírito de empresa próprio ao laboratório, que
permite inserir em sua rede elementos que permanecem a base material
do trabalho de pesquisa.

Trabalhar os materiais

A experiência de Rose implica a injeção do polímero marcado,


preparado anteriormente por ela, nas veias femorais dos ratos que
acabam de chegar do biotério. Primeiro ela tira o rato da gaiola pela
cauda para anestesiá-lo. O rato debate-se e tenta mordê-la, o que não a

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O laboratório e suas redes

impede de colocá-lo em um recipiente contendo éter. Depois de alguns


minutos, quando o rato já está inconsciente, ela o pega pela cauda e o
coloca com o ventre para cima, na mesa de operações. Embebe de éter
um chumaço de algodão que coloca em volta do nariz do animal: é
importante - ao mesmo tempo para ela e para o rato! - que este não
acorde. Se deixar que inspire éter demais, ele morrerá, fazendo assim
falhar a experiência. Como o rato deve permanecer sob anestesia
durante toda a duração da experiência (uma hora), ela controla
constantemente seu tônus muscular e adiciona éter, se for preciso.

Ela busca, em seguida, a veia femoral no interior da coxa. Faz uma


incisão na pele, afasta a gordura que se encontra na superfície e a veia
está, então, livre. Mas o mais difícil ainda está por fazer. A veia femoral é
pequena e constituída de tecidos conjuntivos bastante duros, o que torna
a injeção problemática. Rose mune-se da seringa, introduz a agulha,
injeta o líquido e verifica se a injeção foi correta, utilizando um contador
Geiger. Se a injeção foi eficaz, então o polímero marcado pela
radioatividade vai circular através de todo o corpo do rato muito rápido.
Em caso contrário, toda a radiação estará localizada próxima ao local da
injeção. O aparelho de controle revela que a veia não foi atingida. Rose
prepara outra veia femoral e faz nova tentativa. Não há muito tempo que
ela começou a utilizar esta técnica e não se surpreende quando falha.
Estes fracassos não a deixam indiferente, pois por razões ao mesmo
tempo econômicas e morais, não gosta de “desperdiçar” os ratos.

Desta vez a injeção teve resultado e o polímero circula na rede


sangüínea do rato. Só então a experiência tem início. A razão que leva
Rose a realizar esta experiência (que ela reproduzirá numerosas vezes),
é que esta permite observar o que acontece ao polímero. Permanecerá
no fluxo sangüíneo durante um período de tempo relativamente, longo ou

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A ciência e suas redes

será eliminado rapidamente? E se ele é eliminado, para onde irá?


Passará, por exemplo, através dos rins, para a urina? Será absorvido por
todos os tecidos de modo indiferenciado ou, ainda, será integrado mais
rapidamente por certos tipos de tecidos do que por outros? Rose espera
que esta última hipótese seja a correta.

Para responder a estas perguntas, Rose previu a coleta de um certo


número de amostras de sangue de rato vivo e, em seguida, depois de tê-
lo sacrificado, amostras de vários órgãos. Assim, colherá uma primeira
amostra de sangue depois de dois minutos, quando (ao menos é o que
espera) o polímero terá sido completamente disperso em toda a rede
sangüínea. Isto lhe fornecerá uma medida base à qual ela poderá
comparar as medidas ulteriores que efetuará depois de cinco, dez, vinte,
trinta, quarenta, cinqüenta e sessenta minutos. Assim que a última
amostra for coletada, ela sacrificará o rato e extrairá o fígado, os
pulmões, o baço e os rins para análises aprofundadas. Dois minutos
após, Rose coleta a amostra fazendo uma pequena incisão em uma das
patas do rato, deixando, assim, fluir o sangue para o tubo heparinado.
Depois sentamo-nos e discutimos: enquanto o animal está sedado, não
há muito o que fazer, a não ser controlar a quantidade de éter no
chumaço de algodão e coletar sangue de quando em quando.

Por que o interesse de Rose na velocidade na qual o polímero


marcado desaparece do fluxo sangüíneo, e por que quer saber para
onde ele vai? Ela espera que certos polímeros - testa toda uma série
preparada por seu colaborador dinamarquês - serão diferencialmente
atraídos por tipos particulares de tecido. Ela pressente, na verdade, que
o polímero 32 - com o qual trabalha hoje - ou um outro semelhante -
poderia comportar-se exatamente desta maneira. Se for o caso, o fato
tem importância na medida em que isto pode desembocar em um

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O laboratório e suas redes

método eficaz de direcionar medicamentos para certos tipos de células: o


medicamento será ligado ao polímero fabricado sob medida que o
liberará quando na célula-alvo. Este trabalho, ainda que a longo prazo, é
importante, diz Rose, porque se houver sucesso, permitirá a fabricação
de medicamentos específicos. Por exemplo, se um polímero puder ser
concebido para ser atraído por certos tipos de células cancerosas, será
então possível liberar um produto citotóxico no lugar preciso onde este
será necessário. A eficácia do tratamento deveria pois ser melhorada, e
os efeitos secundários do medicamento minimizados na mesma
proporção. Eis, em princípio, o que é esperado - e a razão pela qual uma
organização importante que financia as pesquisas sobre o câncer decidiu
apoiar o trabalho de Rose e de sua equipe. A própria Rose, se bem que
otimista, mostra-se prudente. Ela ressalta que mesmo que a experiência
de hoje tenha êxito, haverá ainda muitos obstáculos a transpor: o
polímero deve, por exemplo, ser capaz de se desfazer do produto no
lugar apropriado e não deve, evidentemente, ser, ele mesmo, tóxico.

Ao fim da experiência, após ter coletado todas as amostras de


sangue, Rose mata o rato, abre o tórax e o abdômen e retira os órgãos
escolhidos que são lavados e guardados em pequenos frascos. Ela se
prepara para homogeneizá-los em água destilada e medir os seus níveis
de radioatividade, assim como os das amostras de sangue. Para efetuar
esta operação, utilizará um contador semi-automático e de grande
precisão - uma aparelhagem que leva várias horas para fazer uma série
de medições. Esta operação pode acontecer durante a noite e a máquina
tem a vantagem suplementar de dar seus resultados diretamente por
escrito. Atualizando seu caderno de laboratório - isto é, tomando nota
escrupulosamente dos números correspondentes aos diferentes órgãos
ou amostras de sangue - Rose constitui um conjunto de dados, os quais
ela poderá utilizar para calcular a taxa relativa de integração do polímero
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A ciência e suas redes

nos diferentes órgãos, durante esta experiência . É inútil precisar que


Rose toma notas meticulosamente sobre suas experiências e que
etiqueta cuidadosamente todas as amostras coletadas. Registrar as
amostras não é importante somente para ela. Como trabalha com
técnicos, é essencial que eles saibam claramente o que foi feito, o que
resta a fazer, e quais amostras foram coletadas a partir de qual
experiência. É por esta razão que ela e seu grupo desenvolveram
protocolos rigorosos sobre a maneira pela qual os produtos e os
documentos devem ser etiquetados.

Terceiro comentário

O cientista-empresário organiza e associa um conjunto heterogêneo


de elementos diversos em seu laboratório. Alguns destes elementos vêm
de outras redes - chegam sob a forma de produtos simples como a
resultante de transações simplificadas entre a rede de laboratório e a que
os produziu. Outros elementos são menos simples, também provenientes
de fora do laboratório, suas formas ou configurações sendo
particularmente determinadas por uma intervenção mais complexa do
cientista-empresário. Outras são criadas no laboratório graças a esta arte
de adaptar os elementos e os processos para dar forma a um espaço
ordenado apropriado. Atribuições, compostos químicos, aparelhos e
textos são, assim, combinados para engendrar novos elementos que se
podem integrar em outros setores na rede do laboratório.

É o que acontece com os polímeros marcados. Ao lado de ratos,


seringas, éter, cronômetros, contadores Geiger, tubos heparinados,
cadernos de laboratório, esferográficas e de um sem número de outros
objetos e ações, eles formam uma outra parte do laboratório - a “parte
experimental” - a parte da rede que, um dia - se tudo for bem e a
configuração for mantida - conduzirá a um conjunto de resultados. De

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O laboratório e suas redes

uma certa forma, esta arte de adaptar, própria ao cientista-empresário


quando realiza uma experiência, não difere muito da habilidade que ele
deve ter ao preparar os produtos. Nos dois casos, ele justapõe
elementos heterogêneos, atribuições e processos. Em ambos os casos,
o espaço ordenado construído é potencialmente precário. Ao menos em
princípio, as coisas podem acabar mal - o rato pode ter absorvido éter
demais - e a rede pode perder sua estabilidade. E nos dois casos, o
objetivo do exercício é engendrar um objeto ou um recurso destinado a
se integrar em outros setores da rede do laboratório.

Entretanto, a diferença decisiva entre a preparação dos materiais e


a experiência propriamente dita é que esta não produz um composto
químico. É antes um conjunto de números inscritos em uma folha de
papel. Trata-se de um gesto crucial, um gesto que simplifica a
complexidade, mas que a simplifica traduzindo-a sob a forma de um
registro. Compreender o papel dos “dispositivos de inscrição” – isto é,
das máquinas ou dos procedimentos experimentais que se acionam
graças a produtos e a práticas heterogêneas e que os convertem em
traços sobre uma folha de papel – é essencial se queremos compreender
a natureza da ciência do laboratório. Não há laboratório que não procure
fazer esta tradução (Latour e Woolgar, 1988).

Trabalhar os números

Rose, como já dissemos, é metódica. Seu escritório, para o qual nos


dirigimos agora, é cuidadosamente arrumado a despeito da grande
quantidade de papéis. Hoje ela se servirá de seu caderno de laboratório,
onde inscreve os dados do contador Geiger. Tais dados tomam a forma
de uma série de pequenas impressões de computador, ou também de
números, que traduzem a absorção relativa de uma série de polímeros
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A ciência e suas redes

pelos quatro órgãos escolhidos. O mesmo acontece com a quantidade de


material radioativo encontrado no sangue, urina e fezes do animal. Mas
há outros números, da mesma forma registrados, e que têm um papel de
mesma importância neste processo. São os que devem ser associados
às contas das radiações de base para corrigir os resultados. Assim, Rose
pesou tanto o rato como cada um dos órgãos escolhidos. Também mediu
e registrou uma série de volumes - fezes e urina, de um lado, e de outro
a suspensão engendrada pela operação de homogeneização dos órgãos
na água destilada.

Rose pega sua calculadora e começa, como diz, a “trabalhar seus


resultados”. A primeira etapa consiste em calcular o índice de
radioatividade no sangue do animal no momento em que diferentes
amostras foram coletadas. Ela efetua a operação avaliando
primeiramente a quantidade de sangue no animal em relação a seu peso
total, graças a aplicação de uma fórmula empírica: ela multiplica este
número pelo fornecido pelo contador, depois do que passa aos órgãos.
Começa, então, por multiplicar o número dado pelo computador à cada
órgão pelo volume total do órgão homogeneizado. Este número – ela
ressalta – representa a radioatividade armazenada pelo órgão todo.
Depois calcula a quantidade de radioatividade sanguínea, que se
encontra efetivamente contida no órgão. Ela procede a esta avaliação: a)
anotando o peso do órgão; b) baseando-se na relação existente entre o
peso do sangue e o órgão, tal qual foi determinado empiricamente; e c)
calculando um número que acusa a quantidade de radioatividade por
volume de sangue. Os cálculos, para cada órgão, são efetuados da
mesma maneira, e os referentes às fezes e urina são realizados segundo
um procedimento análogo.

18
O laboratório e suas redes

Como exprimir tais resultados? Rose ressalta que há duas


possibilidades. Uma consiste em expressá-los em termos absolutos, isto
é, como uma proporção da radioatividade total injetada no início da
experiência. Ela rejeita esta opção: explica que há demasiado número de
vias pelas quais o polímero radioativo pode perder-se, para que o
resultado possa ser considerado satisfatório. Ao invés, ela prefere
exprimir seus resultados em termos relativos e, mais precisamente, como
uma porcentagem da radioatividade encontrada no fim da experiência.

19
A ciência e suas redes

DISTRIBUIÇÃO RELATIVA NO CORPO DA

RADIOATIVIDADE DETECTADA APÓS 60 MINUTOS


Fígado Pulmõ Baço Rins Sangu % re-
es e encontrada
6,62 2,00 0,40 44,00 46,97 60,92

A partir desta apresentação, é que ela pode afirmar ter feito


descobertas sobre a afinidade de diferentes polímeros para diferentes
tipos de tecidos orgânicos. Ela produziu resultados partindo de seus
dados brutos.

Quarto comentário

Primeiramente, o cientista-empresário justapôs uma série de objetos


simplificados a fim de construir, a partir de sua associação, novos
objetos. Em seguida, com arte consumada, combina estes últimos em
toda a sua heterogeneidade, para produzir um conjunto de números, e
trabalha então com os números assim obtidos. Enquanto se dedica a
esta tarefa, continua a se comportar como um empresário. Sua
calculadora, seu caderno de laboratório, os números que inscreve no
caderno, suas próprias atribuições, todo este conjunto é organizado, no
espaço e no tempo, para formar uma rede complexa que, por sua vez,
vai gerar um novo tipo de elemento simplificado que nós chamamos
“resultados”.

Em numerosos aspectos, há continuidade em suas ações: o


processo de construção de uma rede, de justaposição e de simplificação
prossegue. Contudo, técnicas algo diferentes são agora possíveis.

20
O laboratório e suas redes

Quando Rose dirigir-se para sua mesa de trabalho, há uma tendência a


uma simplificação e uma homogeneização maciças. Ela não se encontra
mais envolvida com ratos, mais ou menos difíceis de controlar,
instrumentos cirúrgicos, garrafas de compostos químicos perigosos e um
sem número de frascos e tubos. Os ratos não estão mais presentes em
carne e osso, assim como seus órgãos. Em seu lugar, surgem os
dispositivos de inscrição, em traços bem ordenados em folhas de papel.
A justaposição e a construção de redes acontecem agora sobre
superfícies planas. A heterogeneidade relativas das coisas
tridimensionais foi reduzida ao bidimensional. Ela já pode utilizar novos e
potentes elementos para trabalhar, ordenar e simplificar ainda mais estes
números. Com estes meios e métodos aritméticos simples que Rose
aprendeu na escola ou processos estatísticos ligeiramente mais
complicados, aprendidos por ela na universidade - os números podem
ser amalgamados, separados, divididos e multiplicados. Nós nos
encontramos em um mundo livresco bidimensional. Ao invés de lidar com
ratos, lidamos com traços relativamente simples e homogêneos (Law,
1986a).

Obviamente, isto não quer dizer que seja fácil trabalhar com esses
traços. Como ratos, eles são perfeitamente capazes de resistir aos
esforços de Rose para lhes dar forma. Mesmo os recursos aritméticos
não tornam os números inteiramente maleáveis. Eles ainda podem, ao
final do processo de transformação ao qual são submetidos por Rose,
revelar-se como elementos relutantes que não se podem integrar de
modo satisfatório na etapa ulterior de seu trabalho, ou seja, a redação de
um artigo destinado à demonstração. Porém, neste caso, é mais fácil
lidar com eles do que com a heterogeneidade dos ratos e elementos
diversos que fazem parte da bancada. A luta foi simplificada porque o
suporte da relação destes elementos mudou. Ao mesmo tempo, muitas
21
A ciência e suas redes

coisas, evidentemente, foram perdidas. A especificidade das experiências


e dos ratos desapareceu. As construções simplificadas nas quais Rose
trabalha agora são somente um pálido reflexo dos dramas que
aconteceram no teatro de operações. Eis a razão maior de sua relativa
manipulabilidade: quase tudo foi abandonado no curso das experiências.

Se aceitamos reconhecer a natureza e a importância deste trabalho


exercido em números e, mais amplamente em traços escritos,
concluímos que o processo de abstração (pois trata-se disto) tem pouco
ou mesmo nada a ver com uma meditação desencarnada, ou um
pensamento que se situaria em um “nível superior”. É antes uma
atividade cujo componente “material” é muito importante. Sem dúvida,
isto implica a transferência de elementos que são extraídos de um
contexto para serem recolocados em um outro - isto requer uma
“abstração”. Porém o novo espaço nada tem de etéreo: como o Universo
das bancadas, ele é constituído de objetos que lhe são próprios, e de sua
justaposição. A única transformação realmente importante é a que
rebateu o espaço de três dimensões sobre um espaço de duas. Assim,
novas combinações serão possíveis.

Comparando os números

Vamos do escritório de Rose ao de Jack, que é professor do


departamento. Rose reuniu os resultados de uma série de experiências,
e a mesa de Jack está coberta de papéis que representam esses
resultados. Ela os está expondo à Jack e diz que eles consistem em dois
conjuntos de números que não são inteiramente comparáveis. O primeiro
trata da depuração do sangue - isto é das medidas concernentes à
velocidade com a qual o polímero marcado é expelido do fluxo sangüíneo
dos ratos. O outro conjunto de números concerne a distribuição no corpo
22
O laboratório e suas redes

- quer dizer, a repartição do polímero marcado nos órgãos e sangue ao


fim de cada experiência. O quadro que ela mostra sintetiza os resultados
obtidos para os quatro polímeros - designados por ela como 29, 30, 31 e
32, mas está particularmente interessada pelo 31, que é expelido do
fluxo sangüíneo bem mais rápido que os outros. Aonde vai ele? Ainda
que os dados sobre sua repartição no corpo não sejam diretamente
comparáveis aos números concernentes a sua evacuação progressiva do
sangue, eles sugerem, no entanto, de maneira muito clara, que este
polímero foi rapidamente absorvido pelo fígado. Rose e Jack discutem
diferentes problemas técnicos, principalmente a falta de comparabilidade
dos dados, mas a conclusão é inevitável. “Ele sai rapidamente do sangue
precipitando-se no fígado”, diz Rose. Ela e Jack estão excitados, pois a
velocidade de fixação no fígado do polímero 31 ultrapassa todos os
resultados comparáveis obtidos com outros sistemas de designação de
medicamentos que foram tentados. “Este resultado”, diz Jack, vai tornar-
se muito mais significativo que outros análogos”.

Nem todos os resultados são tão promissores. Os números


referentes a um outro polímero, o de número 29, são algo contraditórios.
Ele se comporta como se fosse expelido do fluxo sangüíneo bem rápido.
Por outro lado, não se sabe muito bem aonde ele vai - seguramente ele
não é fixado, como seria necessário, por nenhum dos órgãos de
amostragem. Será preciso efetuar outras experiências para descobrir o
que acontece com o polímero 29. Mais precisamente, haverá
necessidade de testar sua passagem através dos rins fazendo ligaduras
nestes a fim de ver o que acontece.

23
A ciência e suas redes

Quinto comentário

Quando Rose começa a calcular utilizando elementos situados em


um espaço bidimensional, nossa cientista pode criar combinações e
redes que teriam sido impossíveis de realizar completamente em três
dimensões. Os quadros e gráficos que ela inventa reúnem, sob uma
forma simplificada, aspectos de numerosas experiências, ratos e órgãos.
As comparações tornam-se possíveis - comparações que de outra
maneira não poderiam jamais ter sido feitas. Notemos que o caráter
especial do polímero 31 só pode ser evidenciado por contraste, com
outros polímeros mais comuns. O processo experimental de conversão
de ratos em números, números em resultados, e resultados em quadros
comparativos, permite colocar em evidência diferenças entre polímeros e
de lhes dar um valor relativo. Em suma, trata-se de uma maneira de
selecionar os resultados que poderão ser utilizados sem risco como
dados em um artigo, que permitirá aliarem-se a uma rede de revistas
científicas, a colaboradores, leitores e provedores de fundos.

Isto é feito seguindo duas vias interligadas. Primeiro, é necessário


distinguir os resultados que são passíveis a ceder diante de um exame
crítico - por exemplo, os resultados referentes ao polímero 29, tal como
eles estão - e os que podem ser considerados dinheiro em caixa. Em
outros termos, o processo de comparação permite estabelecer uma
verdadeira triangulação ou, antes, apreciar a solidez relativa dos
resultados das diferentes experiências: há aqueles cuja coerência acaba
por levar à convicção e os que permanecem disparatados e sem
significado. Além disso, com igual importância, todo o processo permite
ao cientista-empresário diferenciar os resultados passíveis de suscitar
interesse e consideração nos leitores e os que não atrairão a atenção de
ninguém. Assim, como sugere a conversação entre Rose e Jack, o

24
O laboratório e suas redes

polímero 31 não é somente um bom resultado que parece solidamente


estabelecido. É também, um resultado que pode ser significativo para
numerosas equipes. Todos os cientistas que trabalham em sistemas de
direcionamento de medicamentos acharão este resultado interessante,
mesmo se ficarem furiosos por não tê-lo obtido eles próprios. Os
diretores de revistas e os colaboradores estarão dispostos a publicar o
artigo, justamente porque sabem que o público científico estará
interessado. Aliás, os fabricantes de medicamentos e os patrocinadores
interessados na aplicação de descobertas científicas serão atraídos por
este resultado, porque ele abre novos horizontes no campo dos
medicamentos diretores.

O envio dos textos

O escritório de Rose está cheio de papéis diversos. Ela tem


cadernos de laboratório, quadros de resultados, rascunhos de relatórios
e de artigos, cópias datilografadas destes rascunhos - preparados por
sua secretária -, artigos cuidadosamente corrigidos, correspondência
postal com diretores de revistas concernente à aceitabilidade destes
artigos para publicação. Há também “papers” à parte (seus e de outros
cientistas), “preprints”, anúncios de colóquios, dossiês de
correspondência com os fabricantes de instrumentos científicos,
rascunhos de pedidos de subvenção, notas sobre conversas telefônicas
com organismos de financiamento e pedidos de ajuda de todo tipo,
provenientes de colegas do mesmo campo. E não é tudo: há ainda
observações vindas do chefe do departamento, dos técnicos do biotério
ou dos administradores da universidade e seu serviço de contabilidade,
formulários de pedido de fundos, de encomendas, de despesas e de
pedidos de patentes. Felizmente, Rose é muito organizada, pois se não o

25
A ciência e suas redes

fosse, desapareceria em um oceano de papéis. Dotou-se de um sistema


de arquivamento aperfeiçoado: ela sabe onde se encontra cada
documento. Rose está imersa em um universo onde o papel é, ao
mesmo tempo, matéria prima e produto final. Seu escritório é o lugar
onde ela reúne dados brutos, combina-os para obter resultados, dos
quais ela testa a força e o alcance. É em seu escritório que escreve a
maioria dos vários tipos de documentos que enviará a colegas que
trabalham em outras instituições, no mesmo campo, e aos organismos
diversos que patrocinam e financiam sua pesquisa. Quando observamos
a maneira como organiza seu tempo, percebemos que ela dedica grande
parte dele a escrever. Quando a visitamos, ela recém-terminava a
confecção de pôsteres para duas conferências. Está aprontando um
comunicado que fará em um encontro nos EUA. Trata-se de uma
conferência restrita mas importante, e ela quer que sua apresentação
seja impecável e bem recebida. Atualmente, pesquisa diapositivos -
preparados por um técnico - a fim de acertar sua inserção no texto.

Rose também está, como sempre, trabalhando em uma série de


artigos. Ela tem o hábito de inscrever a lista destes em seu quadro e de
anotar sua progressão. Alguns dos artigos estão ainda no estágio de
idéias, pois somente uma parte dos dados necessários foram reunidos.
Outros, entretanto, foram apresentados para publicação ou estão em
processo de revisão. Os mais avançados foram aceitos. O artigo que
relata o trabalho com o polímero 31 foi recentemente revisado e
finalmente aceito por uma das revistas mais importantes do campo.
Como se trata de uma revista especializada nos efeitos biológicos dos
polímeros, ela e seus colaboradores redigiram-no acentuando a extrema
importância do resultado para a difusão dirigida dos medicamentos.
Como o objeto de seu trabalho não é a difusão de produtos marcados em
direção a sítios celulares específicos, eles concluem seu artigo
26
O laboratório e suas redes

ressaltando que já começaram a ligar certos tipos de medicamentos aos


polímeros mais promissores.

Sexto comentário

O escritório de Rose parece-se com o de um Ministro de Relações


Exteriores. É aqui onde a estratégia face ao exterior é assumida com o
espírito de vê-la coroada de êxito. É aqui onde as negociações com
organismos exteriores acontecem. E é daqui que negociações a longa
distância são empreendidas e de onde partem “emissários” para exercer
uma influência sobre o mundo exterior.

Por vezes, os emissários tomam uma forma humana. Rose viaja


freqüentemente, e vai a colóquios para apresentar artigos e tomar parte
em discussões. Como já disse, ela também trabalha, de quando em
quando, em outros laboratórios para aprender novas técnicas. Vai a
Londres regularmente, para discutir com os organismos de financiamento
e escritórios de patentes. Estas expedições são importantes. Elas lhe
permitem fazer contatos que podem ser mantidos por correspondência;
de se informar rapidamente sobre o que há de novo no seu âmbito, e de
retificar os mal-entendidos ou as incompreensões que podem surgir de
parte da administração dos organismos de financiamento.

Contudo, a maioria dos contatos entre o laboratório e o mundo


exterior, toma uma forma textual. Tais contatos são feitos sob a forma de
relatórios, artigos ou pedidos diversos. Estes textos resultam de múltiplas
traduções e adaptações descritas anteriormente: exibem redes de
elementos heterogêneos justapostos e simplificados. Estaríamos
tentados a dizer que eles representam o produto final do trabalho
realizado pelo cientista-empresário. Tal formulação seria insuficiente.
Com efeito, o trabalho do cientista-empresário e as redes por ele
27
A ciência e suas redes

construídas ultrapassam em muito os limites do laboratório. Os textos


que saem do laboratório representam, é certo, uma parte importante do
trabalho dos pesquisadores, porém não constituem mais que uma fração
de sua atividade de construção de redes. Submetendo seus artigos,
relatórios ou pedidos de financiamento, o cientista-empresário não se
contenta em construir uma ordem textual capaz de resistir às críticas dos
cépticos e, de modo mais positivo, suscitar seu interesse. Ele age
também no campo social, constituído tanto por seus colegas de outras
instituições, como pelos diretores de revistas e provedores de fundos.
Assim como é importante para um cientista assegurar-se de uma
resposta, satisfatória e confiável, de parte da Companhia de Gás ou dos
administradores do biotério, é também vital obter um acordo e apoio de
todas estas entidades exteriores. O futuro do laboratório, enquanto lugar
de pesquisa, repousa sobre sua capacidade de engajar esse tipo de
personalidade exterior. Se isto não funcionar, não haverá mais
publicações, nem convites a colóquios, nem créditos. É, pois, realmente
indispensável que o cientista-empresário possa integrar, no interior da
rede de seu próprio laboratório, essas personalidades, que são, no
entanto, exteriores a ele. O limite do laboratório não é a porta de entrada.
Se inclui o biotério, estende também suas ramificações aos órgãos de
financiamento, às salas de redação das revistas e aos locais de
encontros internacionais, no mundo inteiro. Assim é que os cientistas,
construindo seus laboratórios, posicionam realidades que não são
somente científicas, mas também sociais: os dois processos são
absolutamente inseparáveis, é como um tecido sem costura (Latour ,
1984; Callon, Law e Rip, 1986).

O apoio ou aquiescência dos organismos exteriores são raramente


obtidos sem dificuldade. Para publicar um artigo em uma revista famosa,
enviar um cheque não serve para nada. Não se recebe crédito de
28
O laboratório e suas redes

organismos de financiamento contentando-se em responder a ofertas!


Para o laboratório, tais interlocutores são mais complexos e mais difíceis
de manipular que a Companhia de Gás. O cientista-empresário deve com
freqüência lançar-se em um processo de negociações complicadas, bem
mais delicadas que as que ele conduz, cotidianamente, com o biotério. A
corrida dos créditos ilustra bem esta situação. Propostas são
apresentadas, examinadas atentamente e revisadas para torná-las as
mais convincentes possíveis. Curriculum Vitae são enviados a fim de
persuadir os provedores de fundos que o laboratório dispõe da perícia
necessária. Cópias de relatórios anteriores são examinadas para ver até
que ponto as promessas feitas no passado foram cumpridas. Artigos que
relatam trabalhos coroados de êxito são enviados, a fim de demonstrar
que o trabalho em questão era suficientemente bom para ser publicado.
As negociações com tais organismos são de uma complexidade
característica. Mas se os argumentos forem bem construídos, então os
financiadores e as revistas acabam por se integrar à rede do laboratório.
Eles oferecem meios - crédito ou publicação - em troca de textos
transmitidos. A simplificação intervém, e o cientista-empresário tem a
possibilidade de tirar partido dela, sem ter que entrar na sua
complexidade.

A epistemologia e a rede do laboratório

Começamos por nos interessar pelos objetos materiais que povoam


o laboratório, e que constituem os elementos de base com os quais o
cientista-empresário pode construir sua própria rede. Vimos que um
grande número de elementos, necessários à atividade que se desenvolve
no laboratório, não pode ser comprado pronto para uso e devem ser

29
A ciência e suas redes

elaborados no próprio laboratório. Dispositivos físicos são construídos


em vista de criar estes novos elementos.

Contudo, a rede construída pelo laboratório, estende-se não só


através do espaço, mas igualmente através do tempo. O produto da
atividade de uma parte da rede torna-se um dos elementos utilizados
para construir a parte seguinte. O cientista-empresário bem sucedido é
alguém capaz de encadear as operações de modo adequado: as
atribuições de Rose, os objetos materiais que ela manipula e os textos
combinam-se para criar novos objetos que tomam a forma de compostos
químicos apropriados. Eles são, então, combinados com diferentes
atribuições: animais de laboratório, instrumentos cirúrgicos, máquinas
sofisticadas e um dispositivo de inscrição, extraordinariamente
complicado, destinado a gerar novos dados brutos. A estes reúnem-se
elaborações aritméticas, computadores de bolso e elementos outros, que
gerarão resultados comparáveis a outros resultados, eles próprios
apresentados em quadros retomados por mais um dispositivo ou rede: o
do artigo científico. O conjunto do processo é contínuo - um tecido sem
costura, formado de elementos heterogêneos e interconectados - indo do
fornecimento de água até a produção de artigos científicos destinados a
convencer leitores críticos, passando pelo sacrifício, recomeçado a cada
experiência, de ratos consangüíneos.

Desde que as práticas científicas de laboratório são descritas desta


maneira factual e independente de qualquer julgamento, numerosas
distinções da epistemologia clássica começam a perder seu vigor. Assim
é que a divisão entre teoria e método experimental torna-se menos
nítida. É verdade que Rose passa uma parte de seu tempo trabalhando
na bancada, enquanto que em outros momentos, calcula seus resultados
ou esboça artigos que contribuirão (ao menos é o que espera) para os

30
O laboratório e suas redes

debates em curso. Entretanto, a teoria e a experiência não constituem


mundos separados. Elas juntas fazem parte - e materialmente - da
mesma rede heterogênea. Se a dissecação de ratos for distinguida do
desenvolvimento de um argumento escrito, então esta distinção deve
estar ligada à natureza dos materiais mobilizados, ao invés de erigida em
oposição absoluta entre o domínio do cognitivo e o do físico.

Com a relativização da divisão entre trabalho teórico e trabalho


experimental, toda uma série de outras preocupações filosóficas perdem
algo de sua pertinência: é o que se dá com a célebre distinção entre
“contexto de descoberta” e “contexto de justificação” . Esta divisão
desaparece completamente se o cientista de laboratório for representado
como o construtor de uma rede heterogênea. Descobertas são feitas em
todos os estágios do processo de construção da rede, e o mesmo
acontece com as justificações. Os dois processos são misturados tão
intimamente, que a tentativa Popperiana de contrapor um “terceiro
mundo”, que seria o da lógica, ao universo da criação e da descoberta
tem por efeito distorcer o que é essencial na atividade científica.

Os argumentos da epistemologia clássica têm como objetivo, quase


todos, isolar regras de boa conduta, isto é, caracterizar procedimentos
racionais permitindo definir a originalidade do “método científico”. Na
descrição “materialista” da ciência aqui apresentada, o projeto é
completamente diferente. A ciência não é mais tratada como um conjunto
de regras abstratas e livre de todo o contexto, o qual a epistemologia
contribuiria a esclarecer, mas antes como um conjunto de adaptações
materiais práticas.

Em lugar de extrair hipotéticas regras universais que explicam o


sucesso de um argumento e sua validade, o analista deveria esforçar-se
para compreender como um fato é construído e como consegue

31
A ciência e suas redes

interessar leitores, colegas cientistas e organismos de financiamento. O


esforço de compreensão levará à dinâmica das redes heterogêneas que
o cientista-empresário constrói e mobiliza, e não somente ao mundo das
idéias e raciocínios. Os cientistas trabalham, e é a riqueza e
complexidade deste trabalho, que convém reconstituir com mais
fidelidade antes de se lançar em uma metafísica que obscurece mais do
que ilumina o papel da ciência em nossas sociedades. É uma das
virtudes da etnografia da construção destas redes sociotécnicas, abrir o
laboratório a pesquisas e devolver a ciência à observação agnóstica.

Referências bibliográficas

Callon Michel (1986), “Some Elements of a Sociology of Translation: the


Case of the Scallops and Fishermen of St. Brieuc Bay”, p.196-233,
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CALLON Michel, Law John e RIP Arie (eds.) (1986), Mapping the
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Real World, London, Macmillan.
LATOUR Bruno (1984), Les microbes: guerre et paix, suivi de
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LATOUR Bruno e WOOLGAR Steve (1988), La vie de laboratoire: la
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LAW John (1986a), “On Power and its Tactics: a View from the Sociology
of Science”, Sociological Review, no 34, I-37.
LAW John (ed) (1986b), “Power, Action and Belief: a New Sociology of
Knowledge?”, Sociological Review Monograph 32, London,
Routledge & Kegan Paul.

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