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Poder, Autoritarismo e Opressão

GERSON DE BRITO MELO BOSON


Professor Catedrático da Faculdade de Direito
da UFMG

0 Poder, o a u to rita ris m o e a opressão são coisas tã o antigas


q u a n to o p ró p rio hom em . S urgem com este e têm sid o uma
das suas e xis te n c ia is m ais cara c te rís tic a s . Daí o tem a pro p o sto
à nossa d issertaçã o im p o rta r em duas colocações prévias,
d is tin ta s m as conexas em v irtu d e da dependência em que se
põe a segunda em relação à p rim e ira .
R efiro-m e, de um lado, aos aspectos m etafísico s que
envolvem a teo rizaçã o do Poder, e de o u tro , aos aspectos fá tic o s
do a u to rita ris m o , g e rad or de m ú ltip la s fo rm a s de opressão no
plano das m anifestações h is tó ric a s dos povos, isto é, no seu
tiro c ín io p o lític o . É que o a u to rita ris m o e a opressão tê m suas
raízes no exercício do Poder, e n qu an to que o P oder as tem
nos d o m ín io s m etafísico s que o le g itim a m ou não. N o utras
palavras: as indagações acerca dos fu n d a m e n to s do Poder
pertencem ao m undo nomênico, e n qu an to que as indagações
acerca do a u to rita ris m o e das opressões de corre ntes pertencem
ao m undo fenomênico.
Por sua vez, estas colocações não podem ser exam inadas
sem associação a fig u ra çõ e s h u m an ística s, através das quais
se colocam não os fu n d a m e n to s do Poder, mas a sua dinâ m ica,
a p a rtir de suas origens e as fin a lid a d e s do seu exercício, neste
o curso fá tic o do a u to rita ris m o e das opressões.

2 — O m undo das civiliza çõe s «m a is an tiga s» não conheceu


nenhum a fo rm a ap reciável de hum anism o, fa to que levou KANT
a ob serva r que no período precedente aos H elenos som ente
uma era livre: o Faraó. Ali o a u to rita ris m o e as opressões eram
inerentes à essência do Poder, e este, um a trib u to pessoal do
Chefe, assim po r destinação divina. O Chefe era de ifica do e
tinh a m issão de fazer presente, atuante entre os hom ens, a
vontade dos seus deuses.
Naquela fase da H istória, as idéias sobre o Estado não
tinh am analogia com as nossas. Eram bem diversas. O Estado,
com fundam entos teo crá ticos rigorosos, os Povos se a trib u in d o
linhagem celeste, cada qual com um colegiado de deuses a se
proclam arem , pela boca dos hom ens, criadores e senhores do
Universo, — nessa m entalidade os valores religiosos os m ais
elevados, — tu d o concorria para a firm esa do ideal daquela
A ntiguidade: a monarquia universal, erigid a à base da escravi-
zação das «nações estrangeiras» e, internam ente, dos súditos
a seu Chefe.
Os Povos estavam sem pre em luta pela im posição das
verdades cósm icas de sua respectiva fé religiosa. Aos seus
deuses — exem plo para os hom ens — eram im putados os
sentim entos destes, numa confusão de planos, — o divino com
o hum ano, — que levava valores negativos como o ódio e a
vingança, à ó rb ita positiva dos grandes atrib u to s.
Naquela sedim entação c u ltu ra l, assim com o os Povos deve-
riam ser escravizados por q u alque r um dentre eles m esmos, —
questão fática de poder, — assim os hom ens deveriam ser
escravos do Chefe, encarnação do deus m áxim o, na unidade
to ta litá ria do m undo.
3 — Embora os Gregos não tenham conseguido libertar-se
de m uitas dessas concepções e praxis, na verdade uma visão
antropológica da C ultura nos apresenta no helenism o a prim eira
form a sistem atizada de hum anism o no M undo Antigo, expressan-
do-se, notavelm ente, no cosm ologism o da Filosofia grega.
ARISTÓTELES é o seu grande titu la r, já que o de stino lhe
reservara a tarefa de desfazer a rup tu ra eleática das idéias como
únicas realidades, em face da tra d içã o hilozoista da natureza
perm anentem ente m utável, tão bem representada no pensam ento
de HERÁCUTO — o Obscuro, de Éfeso. Na intuição de que o
«ser se diz de m uitas m aneiras» e nas parelhas conceituais
«fo rm a -m atéria» para a representação estática do m undo, «real-
possível» para a sua representação lógica e «ato-potência» para
a in te lig ib ilid a d e dinâm ica do Cosmos, ARISTÓTELES a trib u i ao
Homem um posto no Universo já m uito bem de finido. Só que
não a todos os homens, mas apenas ao homem grego, aos
gregos livres.
Deus é o pró prio Cosmos, Inteligência pura, pensam ento de
pensam ento, — noesis noeseus, — que pensando faz-se re a li-
dades, em genética interna de «atualização eterna. Assim , o
m undo é por si m esmo in teligível e com o ta l se reflete na m ente
humana, pois o Homem é, no Universo, o único ser que tem
o p riv ilé g io de p a rtic ip a r na inteligência divina. A sua fin a lid a d e
é, pois, clara: realizar a sua natureza, isto é, pensar e, pensando,
com preender a estrutu ra do Universo e, atuando na execução
do seu pensam ento, c ria r a C ultura, as civilizações, esp írito
objetivado por im agem cósmica, cuja expressão m áxim a se
encontra na Polis dos homens livres.
O Homem é visto como zoon politikon, não por in stin to ,
mas por fin a lid a d e . Esta se acha na im anência da razão: logos.
No seu exercício ético, o Homem encontra na Política o processus
m ais elevado e d ig n ifica n te de sua realização, de sorte que a
Polis é desta o resultado prim oroso, expressão da raça, cuja
aretê consagra, por meio dos homens livres, todo o esplendor
da inteléquia divina.
C ertam ente foi raciocínio desse tip o , acerca do Realism o
aristo té lico, que levou o S olitário de Koenigsberg a observar que
na C ultura helénica, — aqui com preendidos tam bém os Povos
esp iritu a lm e n te dela periféricos, dentre eles especialm ente o
Povo romano, — alguns homens eram livres, aqueles respon-
sáveis pela in stitu cio naliza ção e direção da Polis.
Na verdade, antecipando-se às veleidades hegelianas acerca
da sup eriorid ad e entre as raças, através das quais a Razão
Potência se fenom enaliza nas diversas épocas da H istó ria, e
para ta n to elege aquela raça que deve ser, com prim azia, o seu
m elhor in stru m e n to de m anifestação, a Filosofia grega, como
expressão to ta litá ria do espírito, assentou-se na Paidéia da
superioridade do Helenos, — bárbaros todos os outros povos.
Por isso os Gregos se fechavam aos contactos cu ltu ra is e con si-
deravam justa por natureza a guerra que faziam contra os
bárbaros, — os não gregos, — consequentem ente ju sta por
natureza a escravização destes. É de TITO LIVIO a célebre
observação: cum alienigenis, cum barbaris aeternum omnibus
Graecis bellum est. E dentro do p ró p rio Im pério rom ano era
plena de sentido a norm a das Leis das Doze Tábuas: adversus
hostem aeterna auctoritas esto.
O e q u ilíb rio da Polis à im agem da harm onia cósm ica, tão
bem representada na Politéia platônica, ju s tific a o Poder dos
homens livres na direção do Estado, sendo a escravidão, o au to -
ritarism o e as opressões, decorrência do exercício desse Poder,
praticados que são contra os bárbaros, ou em defesa desse
e q u ilíb rio contra aqueles que o perturbam , ou pretendem per-
turbá-lo, numa típ ica repressão aos crim es contra a segurança
do Estado. Themis é a ju stiça das estru tu ra s com u ta tiva e
d is trib u tiva da Polis, e Dikê, a representação da ju stiça geral,
das inform ações axiológicas da C ultura.
Embora o Poder po lítico con tinu e a ser considerado como
orig in á rio dos Páramos, — do Topus Uranos — verifica-se,
porém, em term os de um hum anism o cara cte ristica m ente cosmo-
cêntrico, uma notável evolução. Uma verdadeira ascensão. V e rifi-
ca-se a existência de hom ens livres. Há cidadania. Há cidadãos
que discutem , que dispu ta m postos na vida pública, e escolhem
aqueles que devem d irig ir a Polis, para os ajustam entos às
fina lid ad es da Razão: Logos.
4 — A mente humana traba lh ou séculos para superar esse
tip o de hum anism o. A nova C ultura surgente, a que SPENGLER,
no seu fam oso estudo sobre uma m orfologia da H istó ria Universal
— A DECADÊNCIA DO OCIDENTE — iria denom inar de C ultura
Fáustica, pela riqueza e esplendor das suas expansões, o rig in a -
riam ente sobrepondo-se aos escom bros do Mundo Greco-romano,
tra ria potencialidades de valores que a plasm ariam com novos
sentidos. Seus fundam entos m etafísicos últim o s seriam diferentes.
Deus não se confunde com o Cosmos, não é apenas um Logos
im arcessível, in dife rente aos desígnios antropológicos. Deus é pai,
é criador. Deus é providência, é Persona.
Coube a SANTO TOMÁS, servindo-se do Realism o aristo té lico,
que cristia niza com extrem a sabedoria, d a r unidade sistem atizada
à essa nova visão cósmica, e em conseqüência à uma nova
colocação do Homem no Universo. Passa então a d o m in ar um
tip o especial de hum anism o teocêntrico, — o hum anism o cristão,
— em que as prom essas de CRISTO, entregues às transposições
da Igreja, servem de diretiva s ao exercício do Poder, agora entre
diversos Povos no continente europeu, em transfo rm a ção de
unidades estatais soberanas. Omnis potestas a Deo, — é a invo-
cação de uma grund Norm, que serviria de base para colocações
de variadas ideologias do utrin ária s, dentre elas a «Teoria do
D ireito D ivino» dos Reis, roupagem nova de uma revivescência
da m entalidade antiga.
Nesta etapa, o a u to rita ris m o e as opressões passam a ser
com etidos, c o n tra dito riam e nte, sob h ip ó crita s ju s tific a tiv a s de se
incluírem , por decorrência, nos ensinam entos daquele que viera
ao m undo para re d im ir, para pregar a igualdade, o am or, a
fratern ida de , e tra z e r a paz.
Seus verdadeiros ensinam entos, porém , não seriam vãos.
A prédica da igualdade dos homens, independentem ente de
raça, cor, riqueza ou pobreza, serviria de assento sólido à
C ultura ocidental em surgim ento. Pacificados os céus pelo m ono-
teísm o e universalidade de um só Deus, — Pai e Persona,
surg iria m os Estados cristãos na sua m u ltip lic id a d e , agora sem
o rancor m útuo dos tem pos antigos, inaugurando-se um novo
sistem a de vida internacional, em cujo topo evolutivo nos encon-
tram os hoje.
5 — Todavia, fatos notáveis dessa C ultura ocidental nascente,
ta is com o a destruição da unidade religiosa levada a efeito pela
Reforma luterana, a descoberta do céu como in fin itu d e em que
as estrelas se movem, o novo sistem a planetário desenvolvido
por KEPLER e COPERNICO, no qual a Terra é com o um pequeno
grão a mover-se em to rn o de si mesmo e ao redor do sol, e
tod o o vasto sistem a a mover-se na im ensidão dos espaços
in fin ito s , tu d o isso comoveu profundam ente a Filosofia realista
tra d ic io n a l, que na versão tom ista continuava a se rv ir de susten-
tácu lo ao hum anism o teocêntrico dom inante.
Tais fatos levaram o e sp írito hum ano a m erg ulh ar em grave
crise e com ele toda a H istó ria do Pensamento, que passou a
e x ig ir novas bases m etafísicas, pois é sabido que sem essas
bases nenhuma C ultura encontra meios de subsistência. C o nstitui
equívoco tra d icio n a l a suposição de que as invasões bárbaras
destruíram o Im pério romano, ou que isso te ria acontecido em
v irtu d e de im plicações dem ográficas, como defende CHAUNU.
Esse Im pério já se achava destruído — como observa TOYNBEE
— a p a rtir dos im pactos do C ristianism o, pelas razões que
acrescentam os, uma vez que o C ristianism o liquidava os assentos
m etafísicos ú ltim os da C ultura helénica, em que Roma ocupava
o mais im p ortan te lugar pe riférico .
É o que viria acontecer agora no fin a l do período medievo,
em virtu d e da destruição, operada pelos citados acontecim entos,
dos resíduos cie ntíficos da Filosofia a risto té lica , presentes ainda
no pensam ento ocidental, através da P atrística e da Ecolástica.
Tinha início novo ciclo h istó rico a que se denom inou «Novos
Tem pos», o qual trouxe características individu alizad oras d e fi-
nitivas ao p e rfil da C ultura ocidental.
6 — Destruídos esses resíduos a risto té licos, a profunda
crise advinda conduziu o Homem à necessidade de fo rm u la r
novam ente todos os problem as. À base do «cogito ergo sum»,
à base da in d u b ita lid a d e do pensam ento, RENÉ DESCARTES
estabelece a prim azia da Teoria do Conhecim ento em face dos
problem as ontológicos, característicos da Filosofia grega, e com
isso criou um novo sistem a filo só fico : o Racionalismo, que iria
te r profundas in fluê ncia s no desenvolvim ento de nossa C ultura,
em todos os seus aspectos, p rin cip a lm e n te nos dom ínios da
Política e do D ireito. Os esforços do Empirismo inglês não
pertu rba riam a desenvoltura. Ao c on trá rio , serviriam para o seu
aperfeiçoam ento, conduzindo o pensam ento m oderno às conclusões
do idealismo Crítico.
O p rin c íp io cristão da igualdade dos Homens, que antes
tinha os seus fundam entos no fa to o rig in á rio da paternidade
divina única, no cria cion ism o de que o M ito edêm ico é repre-
sentação expressiva, passou a te r fundam entos intrínsecos, no
Cogito, na razão, à luz da qual é inseguro e degradante o
«estado de natureza», ou seja, o «estado social» sim plesm ente
privado, com os homens a fazerem ju stiça pelas próprias mãos.
Estava assim explicada a sociedade política — o Estado —
como resultante de um «co ntrato social», em que o Poder tem
suas fontes no pró p rio «pactum unionis», e deve ser exercido
em nome da «vontade geral». A autoridade tem que ju s tific a r-s e
na lei. À fa lta dessa ju s tific a tiv a , aparece como arb itrarie da de ,
como opressão, condenável como atavism o do Poder pré-estatal.
Só o «pacto social» pode ju s tific a r o D ireito público, o fato,
por exemplo, de a to ta lid a d e dos indivíduos de uma com unidade
se subm eterem ao grupo que escolheu para governá-los. Estava
in s titu íd o o «Estado de D ireito», em que a legitimidade im porta
em problem ática inte ira m e nte nova. O Poder não vem dos Páramos
e já não é concebido como p rivilé g io de nenhum representante
de Deus, ou de um colegiado de deuses, na Terra, nem de
algum grupo de homens, ju stifican do-se pelas origens destes.
Pertence a todos. A fó rm u la é c on stitucio na l: tod o Poder emana
do povo e em seu nome é exercido.
O Homem é esp írito e natureza. São os elem entos desta, nele
presentes, que o levam à violação da lei, do «pacto social»,
m otivado por inveja, cobiça, emulação, ódio, m andonism o, valores
negativos. O a u to rita ris m o e as opressões constituem geração
de ta is valores e são apontados com o m anifestos desvios de
poder, sem po ssib ilidad e de ju stifica çã o racional, pois deitam
suas raízes som ente nos debruns in s tin tiv o s da consciência, ali
onde jaz a sedim entação da bestialidade.
O hum anism o se faz assim antropocêntrico. Toda a realidade
do m undo passa a g ira r em to rn o da razão, que se torna ins-
tru m e n to de fé, capaz de con du zir o Homem à p e rfe c tib ilid a d e
existencial. O o tim is m o racionalista de LEIBNITZ, ironizado por
VOLTAIRE em Candide, reflete a plenitude dessa fé e desses ideais.
Como Kant observou: pertencendo ao m undo sensível, o
Homem não age sem pre conform e a razão, pois está sujeito às
inclinações ou m otivações dos sentidos. Portador dessas in c li-
nações, enquanto fenôm eno o Homem está sujeito às in te rfe rên cias
da natureza, que o im pedem de a g ir livrem ente conform e a
razão. Daí a sua característica de ser tam bém p o rta do r de uma
«insociável sociabilidade», que o faz obedecer, enquanto indivíduo,
a uma ordem de com petição e de exclusão dos dem ais, e
enquanto ser racional ten der a uma inevitável associação no
sentido do desenvolvim ento cu ltu ra l, pois certo é que só consegue
desenvolver a sua vida e sp iritu a l na medida em que com pete.
Entretanto, nesse p ró prio antagonism o se encontra a consciência
de sua liberdade, pois agora a colocação o rig in á ria é a de que
todos somos livres. Não mais alguns apenas são livres, como
no ciclo a n te rio r greco-rom ano. Todos somos livres. E não há
«pacto social» de escravos, nem pode haver privilé gios entre
homens livres, pois todos são igualm ente livres, por im anência
espiritual da própria liberdade.
A Revolução francesa é o g rito h istó rico dessa ideologia
da liberdade. O republicanism o — o Estado de D ireito dem o-
crático — o seu resultado político. O verdadeiro sentido do
D ireito é o de ser in stru m en to de liberdade, — in stru m en to do
exercício social com p atib ilizado da liberdade.
O «pacto social» não é um dado em pírico, mas tam bém
não é uma mera hipótese, ou uma fantasia. É um a priori da
razão com induvidosa realidade prática. É a única ju stifica çã o
ló gico-filosófica possível da sociedade in stitu cio naliza da que, na
verdade, não pode ser pensada sem a idéia de natureza, mas
que sendo negação do pró p rio «estado de natureza», com a
natureza gera uma convivência existencial subordinada a um
regim e de tensão dialética perm anente. E, de outro lado, tam bém
o «estado de natureza» não é um m om ento histo rica m e nte
precedente à sociedade política, mas é como se fosse um
fantasm a a m anifestar-se nas violações das norm as ju ríd ica s
pactuadas, ou no despotism o dos governantes que desrespeitam
o «pacto social», descam bando para o a u to rita rism o , gerador
das opressões políticas.
O Homem pertence, pois, a um só tem po, a dois m undos
diversos: o sensível e o inteligível, tal como já fora previsto na
Teoria parm enídica sobre o ser. É pelo sensível que ele se
corp orifica , reproduz-se, faz parte da natureza como espécie
ou grupo. Todavia, não é natureza, de form a algum a, a in stitu içã o
do Estado. A natureza im pele os homens ao antagonism o, não
pode causar a sociedade política, a que som ente a liberdade
pode s e rvir de gênese e fundam ento. Só a liberdade é decisiva
para a sua form ação, cuja fin a lid a d e precípua é a de c ria r a
«ordem ju ríd ic a » , para garantia da pró pria liberdade, pois o
D ireito não existe por si mesmo, ou para si, mas para a liberdade,
presença im arcessível da dignidade humana.

As desigualdades, tão bem postuladas por ROUSSEAU no


seu fam oso «Discours sur 1’inégalité des conditions», em que
aponta a sociedade com o fo n te de todos esses te rrív e is males,
devem en con tra r no D ireito, e som ente no D ierito, o in stru m en to
de correção, prom ovendo-se, através dele, o ajustam ento dos
desequilíbrios sociais, o ajustam ento das desigualdades fáticas
aos m om entos da igualdade o rig in á ria , esta com o decorrência
da liberdade nom enal do Homem, pois na verdade pelas desi-
gualdades é responsável a natureza, e não a razão. A esse
ajustam ento é que se pode denom inar « ju stiça » , harm onia dos
valores tão expressivam ente representados na trilo g ia dos Revo-
lucionários de 1789: Liberté, Égalité, Fraternité. Certam ente, na
sociedade política em que a liberdade e a igualdade se m ostrem
dessa form a ajustadas, a fra te rn id a d e será apenas uma conse-
qüência gravitacional, pois sob con tro le estarão os im pulsos
sensíveis dos homens.

7 — Aqui é necessário, porém , fazer-se uma d istinçã o da


m aior im p ortân cia, de vez que a do utrin a do co n tra tu a lism o
ju ríd ico , em bora sem pre embasada no pressuposto da liberdade
orig in á ria , apresenta uma outra versão, satisfa tó ria às tradiçõe s
atávicas do Poder e de suas m anifestações a u to ritá ria s e
opressivas.

Refiro-m e às colocações de HOBBES, feita s em defesa do


«absolutism o» de Governo e que, postas com e xtrao rdinária
habilidade, servem até hoje para ju s tific a r os posicionam entos
ideológicos extrem ados, de esquerda e de d ire ita . Servem para
ju s tific a r o endeusam ento do Estado, subm eter o sentido do «bem
com um » e c o n fu n d ir a escala de valores da cidadania e da
dignidade da pessoa hum ana.
É sabido que a doutrina, em bora vários pontos comuns,
registra divergências entre as linhas ideológicas que passa por
LOCKE, ROUSSEAU e KANT, e a linha que procede de HOBBES,
esta com assento m aior na suposição de que os elem entos da
natureza são predom inantes no Homem, — o «sensível» os
governa bru ta lm e nte, de sorte que o «estado de natureza» fig u ra
como um precedente em pírico ao h istó rico da sociedade política.
Nele os hom ens viviam em guerra constante. Todos eram
inim igos de todos: bellum uniscujusque contra unumquemque,
ou seja: bellum omnium in omnes. Para sairem dessa degradante
situação, os homens concordaram na criação do Estado, a cuja
chefia alienaram todos os seus d ire ito s, isto é, a sua liberdade.

A fantasia do a rtifíc io ju ríd ic o é m anifesta, pois repugna à


racionalidade a opção espontânea do Homem livre pela sua
própria escravização. Além disso, neste aspecto a do u trin a entra
em contradição com os p rin cíp io s básicos inform adores da
C ultura O cidental, em que a liberdade de todos, e não de um
só ou de apenas alguns, c o n stitu i a característica m áxim a do
seu destino. A do u trin a serviria, no quadro do racionalism o em
que se coloca, para e xp lica r as origens do poder do Estado no
«m undo m ais an tigo », se esse a li não fosse m elhor explicado
pelos fun dam e ntos teocráticos, a que já nos referim os.

De q u alque r form a, a do u trin a de HOBBES se lançou no


curso da H istó ria do pensam ento político, e persevera ainda
hoje, com todas as dissim ulações possíveis, com o capaz de
explicar toda e q u alque r form a de a u to rita ris m o e de opressão,
inclusive o « te rro ris m o do Estado», sob as diferentes form as e
ocasiões em que tem surgido entre nós e alhures.

Destarte, o m undo contem porâneo, que ainda vive e se


desenvolve no ciclo aparentem ente inesgotável do Racionalismo,
— de que o idealism o c ritic is ta , o idealism o objetivo e m esm o o
existencialism o, são versões filo só fica s estruturadas, — nos
apresenta duas fig u ra s bem d is tin ta s de «Estado de D ireito»,
já que este, qu alque r que seja a sua figuração, tem sua e x p li-
cação o rigin ária no «pacto social» e seus fundam entos, no
exercício da liberdade nomenal do Homem.
A prim e ira delas é a do «Estado de D ireito» dem ocrático,
cuja cara cte rística de essência e de existência se acha no
p rin c íp io da identidade de Estado e Nação. Q ualquer fo rm a de
Estado em que não haja essa identidade pode, na sua in s tru -
mentação o fic ia l, denom inar-se m il vezes de «Estado dem ocrá-
tico » , e o será apenas nom inalm ente. O Estado dem ocrático é
som ente aquele em que a Nação se apresenta po litica m en te
organizada, m ediante ordem ju ríd ica postulada pelos seus
cidadãos, para garantia de sua liberdade e prom oção da ig u a l-
dade fática, perturbada pela presença do «sensível» no ser
humano. Nessa fig u ra de Estado, o único que legitim a m en te se
pode q u a lific a r de dem ocrático, não há lugar para o au to rita rism o ,
consequentem ente não haverá ocasião para as opressões deste
decorrentes. Há lugar para autoridades, no exercício de com pe-
tências legais, outorgadas pela cidadania nacional.

A segunda delas é a fig u ra do «Estado de D ireito» s im p le s-


mente legal, cuja característica de essência e existência se acha
no divórcio entre Estado e Nação. O Estado é uma ordem de
leis, inclusive a Lei M aior, outorgadas por um ou por alguns,
que esmagam o poder po lítico da Nação, desprezam a sua
cidadania, escarnecem a sua liberdade e, pela usurpação gene-
ralizada, im p lan tam o predom ínio do «sensível» como p rin c íp io
de vida política, a cujas aplicações de arb itrarie da de s recorrem
sem pre que se supõem ameaçados no exercício do seu a u to ri-
tarism o . Este se faz, por excelência, a m aneira o fic ia l de
m anifestação do Poder usurpado. Aqui as opressões assum em
as m ais variadas form as, desde as im posturas de pretenderem
passar com o salvadores da Pátria, os únicos capazes de a con du-
zirem ao bem do seu destino, até a h ipo crisia ou cin ism o de
representarem a vontade do Povo que esmagam e op rim em .

Essa fig u ra de «Estado de D ireito» sim plesm ente legal,


com o se vê claram ente, nada mais representa que a presença,
ainda nessa a ltu ra dos nossos tem pos c u ltu ra is, da m entalidade
antiga que, através das suas mais diversas form as de m anifes-
tação, — dentre elas os extrem ism os de esquerda e de d ire ita , —
ainda tra z o Homem ju ng ido aos liam es de sua natureza, aos
quais HOBBES recorreu para ju s tific a r o Poder absoluto dos reis.
Todavia, seja com o for, se o Homem não pode livrar-se da
parte sensível na sua atuação política, nem por isso poderá
abdicar da sua parte racional, de sorte que toda a sua m aior
grandeza, aquela que o leva a ocupar o seu verdadeiro posto
no Universo, transcendendo os anim ais, é o fato de ser um
«ente livre», o de «ser e s p iritu a l» , o de não tra n s ig ir nas
afirm ações da sua liberdade, nota dom inante da dign ida de
humana.

8 — As Nações latino-am ericanas espelham a vivência


dessa dialé tica política tão sofrid a. Pela pró pria índole de nossa
form ação, somos Povos que aspiram à vida dem ocrática. No
entanto, vivem os em constantes tu rb u lê n cia s que têm im pedido
o desenvolvim ento, entre nós, da experiência do «Estado de
D ireito» dem ocrático. Por essas tu rb u lê n cia s têm sido grande-
mente, ou quase sem pre, responsáveis os m ilita re s que, de
posse das arm as que a pró pria Nação lhes entrega para defesa
e garantia de sua liberdade, sob pretextos diversos traem os
ideais do Povo e se divorciam da nacionalidade, im pondo d ita du ras
sem pre m alogradas. À sem elhança da A ntiguidade, em que a
H istó ria de certos povos se restrin ge ao relato de episódios
guerreiros, há em nossa Am érica nações cuja H istória se pode
re s trin g ir ao relato de «golpes de Estado», resultantes de
disputa pelo Poder entre m ilita re s. O a u to rita rism o e a opressão,
de todos os m atizes, se torna m regra da vida pública latino-
am ericana. E as conseqüências têm sido as mais lam entáveis:
não conseguim os a estabilidade necessária ao desenvolvim ento,
que poderia levar-nos ao nível das Nações in te rna cion alm ente
responsáveis pela Paz, donos de um potencial de riquezas sem
par, não conseguim os te r uma econom ia que sequer m inore a
marcha do em pobrecim ento de nossas populações a se m u ltip li-
carem ao léo, não tem os uma a g ric u ltu ra sistem atizada, mas
sim de mera subsistência, nossa in d ú stria ainda é fu n d a m e n ta l-
mente supletiva e dom éstica, não tem os q u alque r política racio-
nalizada, não tem os P artidos e nem líderes nacionais, senão
eventuais, de vez que as tu rb u lê n c ia s não perm item a sua
form ação, não tem os convicções ideológicas que coloquem a
Pátria no centro da C ultura a que pertence, não tem os U n iver-
sidade, senão repetitiva, não conseguim os fazer nenhum a tra d içã o
histó rica . É com o se fossem os Povos e viverem ao deus-dará,
entregues a im provisações, à espera de um m ilagre ou sob a
espectativa de uma hecatombe. Temos sido sim plesm ente
fatídicos.

Vivendo no seio de uma civilização que dá passos decisivos,


num m undo que a cada dia se encolhe entre Povos que quanto
mais se aproxim am , im pulsionados por uma tecnologia b rilh a n te
e poderosa, m ais se pressionam em term os de sobrevivência, é
com o se fôssem os gente a cla m ar queixum es enquanto a
caravana passa.

Em ta is circu nstân cias deveríamos, pelo menos, te r Forças


A rm adas aguerridas. Na verdade, nem m esmo isso tem os, mas
sim agrupam entos de homens fardados, a d m in istra tivam e nte
organizados, s a tisfa tó rio s para a segurança interna, mas despre-
parados para as fina lid ad es internacionais da sua missão
c o n stitu cio n a l, — nos m om entos em que tem os C onstituição. O
exem plo é próxim o e recente: a chamada «Guerra das M alvinas».

Até quando, como Estados, poderem os levar esse tip o de


vida e g a ra n tir a independência de nosso C ontinente é fa to que
pertence aos desígnios do fu tu ro . No entanto, a perspicácia nos
indica a necessidade de transform ações urgentes se não quiserm os
co rre r o risco de uma dependência d e fin itiva .

O Brasil, pois, e infelizm ente, não foge a esses parâm etros.


E ntretanto, avultam as suas responsabilidades em face dos
dem ais Povos latino-am ericanos. A sua grandeza te rrito ria l e
dem ográfica, o seu posicionam ento con tine ntal estratégico, a
cord ia lid ade de sua gente e o fun do cristã o de sua form ação,
o seu potencial de riquezas m últipla s, tud o isso pede a nossa
conscientização e nos chama ao quadro de uma realidade que
tem os o dever de en fre ntar, e prom over a solução de sua
problem ática.
E é nesse quadro, que não co n s titu i melenas de pessim ism os,
mas canteiro de desafios e de estím ulos, que nós, advogados
do Brasil, devemos assum ir nossas responsabilidades e exercer
o nosso dever do bom com bate. Lutando pela im plantação de
uma ordem ju ríd ica que seja le gitim a da pelo pro nu ncia m en to do
Povo bra sile iro , lutando pela liquida ção desses resíduos de mais
uma ditadura m alograda, episódio de a u to rita ris m o e opressões
no relato da Pátria, lutando pelo prin cíp io da identidade de
Estado e Nação, que som ente o «Estado de D ireito» dem ocrático
pode consubstanciar, certam ente que as gerações fu tu ra s nos
agradecerão, por haverm os c u m p rid o o nosso destino de ju ris ta s ,
por lhes haverm os assegurado a liberdade.

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