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2015
A expressão da experiência do homem moderno, vivendo em meio à corrente
de sensações, luzes e fumaça no cenário das grandes cidades da Europa em meados do
século XIX, é a grande marca que perpassa, às vezes como uma sombra silenciosa e
etérea, às vezes como um grande veículo desgovernado, por toda a obra de Charles
Baudelaire. Seus poemas e textos em prosa buscaram sempre um sentido, ou vários,
para a difusa condição do homem de seu tempo. Tendo presenciado um momento de
intensas agitações na vida ocidental, onde os ideais revolucionários da burguesia eram
desmascarados e a expressão apaixonada dos românticos vivenciava a decadência dos
conceitos do sublime absoluto, ao mesmo tempo em que o capitalismo em sua face
mais feroz se agigantava engolindo homens e nações, como o horrendo tigre de Blake,
Baudelaire pôde compor a obra que, no século XX, receberia a precisa decifração de
Benjamin cunhada no epíteto de “um lírico no auge do capitalismo”.
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representava como um problema capaz de lhe trazer mais angústias e dúvidas do que
louros e certezas.
Ambos são artistas que não produzem nada de exterior e durável com seus
gênios: eles não têm outro objeto de expressão de sua arte a não ser os seus próprios
corpos, o que confere a esses personagens uma experiência que os coloca no limite
entre o que são e o que representam – sem duplos sentidos. Como agravante,
Baudelaire não buscou a figura do ator nos grandes teatros, não pintou o retrato de
uma estrela da Comédie Française, mas buscou a expressão brusca dos atores do
teatro físico, dos cômicos, onde o gesto aparentemente sobrehumano, o improviso e a
familiaridade com o ridículo e o grotesco são as marcas mais próprias de sua arte.
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A configuração que Baudelaire fez desses artistas será aqui analisada em
comparação com a obra daquele que foi talvez um de seus maiores mestres, e, para o
poeta francês, uma possível imagem acabada da tragédia pessoal do artista de seu
tempo: Edgar Allan Poe. No conto Hop Frog Poe relata a história do personagem
homônimo, um bufão da corte de um rei cruel e sádico, que executa sobre o rei e seus
ministros uma vingança atroz, caracterizada como sua última bufonaria. Como marca
evidente nos textos dos dois autores, encontramos a proposição de uma arte que não
reconhece limites e separações entre os aspectos grotescos e sublimes da experiência
humana, ecoando as ideias defendias por Victor Hugo no famoso prefácio à sua peça
Cromwell. Dessa maneira, esses cômicos, cuja arte brilha nos olhos da plateia, a quem
seus destinos pessoais não oferecem nenhum interesse exato, por mais que tenham
trajetórias distintas, são alçados por seus autores à condição de heróis cuja tragédia
em nada os minimiza em comparação aos príncipes e reis da grande arte. Pelo
contrário, vivem seus dramas em uma convivência direta e privilegiada com os
principais participantes do jogo do poder, traçando assim uma reflexão sobre a relação
entre a arte e a política. A errância, a indefinição e a experiência do limite e da
melancolia são as marcas que caracterizam sua condição na sociedade em que vivem,
ecoando a vivência de seus criadores, poetas admirados por sua arte, mas rejeitados
pelo seu tempo.
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Sob o título de O Príncipe Cansado, a leitura de Auerbach pinça exemplos de
vários textos de Shakespeare, de Macbeth à Tempestade, porém centrando suas
atenções em Hamlet. O autor nos mostra a presença da figura do bobo da corte como
contraponto ao destino trágico dos heróis retratados, o que vemos, por exemplo, no
bufão que acompanha Rei Lear em suas perambulações. A esse personagem cabem
comentários às situações vivenciadas e reflexões proferidas pelo velho rei, trazendo
um ponto de vista de baixo, distanciado da nobreza do personagem principal e,
justamente por conta desta divergência de origem, dotado de um humor agudo e sem
cerimônias que se mesclam à solenidade de Lear. Em Hamlet, na famosa cena dos
coveiros – ato V, cena I – encontramos a figura de Yorick, porém só em corpo
presente.
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caminhada histórica onde todos os destinos são atingidos de uma forma ou de outra
pelo andar dos acontecimentos. Nobres e populares são igualmente afetados. Isso é
facilmente compreensível se lembrarmos da última de cena de Hamlet. À derrocada
definitiva da família real, o banho de sangue que quase não deixa um personagem vivo
além de Horácio, se segue a invasão do reino da Dinamarca por Fortimbrás. Não só um
novo rei assumirá a coroa, mas uma nova ordem será estabelecida para o Estado.
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Essa leitura do autor é apresentada no seu livro Shakespeare Nosso Contemporâneo, cujo capítulo “Os
Reis” é dedicado a uma análise dos dramas históricos do dramaturgo inglês. Jan Kott cria essa imagem
do “Grande Mecanismo” da história para ilustrar a rápida constante sucessão de monarcas narrada no
ciclo dos dramas históricos de Shakespeare.
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manifesto de expressão romântica, Hugo, prefaciando um drama onde também se
ocupa de uma visão sobre o destino histórico das sociedades – Cromwell trata da vida
de um antigo estadista inglês – defende com veemência:
É Hugo quem vai nos mostrar uma outra imagem de um bufão em seu teatro,
porém alçado da categoria de mera sombra para a diversão do rei, à herói de sua
própria tragédia. Em Le Roi s’amuse, de 1832, Triboulet é o bobo de companhia do rei
François I. Triboulet é um personagem que congrega em si o choque entre a
convivência com os aspectos baixos da vida social e a busca pelo sublime. Bufão
deformado, ele possui um caráter dúbio e não se intimida com a sua função de sempre
envolver os nobres em situações moralmente complicadas. Triboulet poderia ser
somente uma figura sem preocupação moral, sem qualquer tipo de ética, porém ele
vivencia em sua vida o confronto entra as duas ordens. Vive no limite entre o vício, a
deformidade – em sua relação com o rei, e no mal que causa a todos – e a virtude – o
modo como cuida de sua filha, mantendo-a reclusa, fora do contágio da maldade que
anda solta entre os homens. Ao fim, as duas pontas morais se tocam, e sua filha está
apaixonada pelo rei. Triboulet, então, dirige sua vingança a este, querendo proteger a
honra de sua filha, depositária de uma pureza possível no mundo, mas não acessível a
ele próprio. No desenlace da história, em que sua filha se deixa ser assassinada no
lugar do rei, a virtude aceita dar-se em sacrifício por amor ao vício, e Triboulet se vê
vítima da tragédia que ele próprio armou, e que se volta contra ele.
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Do Grotesco e Do Sublime (tradução do “Prefácio à Cromwell”), Pág. 27, na tradução de Celia Berrettini
para a Editora Perspectiva.
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No prefácio à publicação da obra3, Hugo defende seu herói como vítima, e diz
que a vingança não recaiu em Triboulet como bobo do rei, mas como um homem, um
bobo comum. E que este odiava ao rei e a todos unicamente pelo fato de serem
nobres e não carregarem uma corcunda nas costas. O grotesco, aqui, tenta se alçar a
uma outra condição por conta do destino que lhe cabe no mundo injusto e depravado
em que ele veio à luz. Triboulet continua a ser herói, mesmo sendo perverso, porque a
perversidade, ao mesmo tempo em que é sua arma de ação, é também a parte que lhe
cabe, a sua condição. Afinal de contas, ele não passa de um bobo da corte, e como
todo bufão, a mestria em seu ofício está na exploração do humor que não conhece
limites morais, e que expõe a um mundo depravado a sua própria face disforme.
Essa visão da figura grotesca, e não por acaso um artista – não somente o
corcunda deformado que vive nos submundos de Paris, mas uma figura que atrai sobre
si as atenções, que vive, aliás, do olhar da sociedade como espectadora de seus atos –
na função de protagonista, herói de sua trajetória, é o que vamos encontrar em forma
mais condensada, e talvez por isso mesmo sob efeito mais vertiginoso, no conto de
Poe e no poema em prosa de Baudelaire. Neste último, aliás, a consideração da
experiência moderna, que expõe a sensação humana a estímulos e vivências das mais
radicais e fugazes, vai encontrar o auge da mistura de tons na radicalização do
exercício dos poemas em prosa, onde a própria forma poética se expande a ponto de
abraçar a prosa, e vice e versa. A expressão de gênero, assim, é tensionada pela
modernidade em seus limites, e a expressividade do sujeito lírico, vai buscar expressão
no caráter mais coloquial e livre da escrita prosaica.
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Consultei, para este trabalho, a edição traduzida para o inglês sob o título The King´s Diversion. (Ver
bibliografia)
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voo sendo exposta ao ridículo, exilada nos confins limitadores do espaço terreno. É o
que se vê, também, no poema Benção. Logo após o seu nascimento, o poeta, ao invés
de ser comemorado por ter vindo à terra agraciado com o dom das musas, é marcado
pela maldição materna que renega o dom de seu filho, o que o leva a elevar os olhos
aos céus e clamar a Deus por justiça para seu talento, aceitando com orgulho a sua
condição de sublime criatura renegada pelos seus em terra.
4
Em Filosofia da Composição, pág. 108.
5
O Princípio Poético.
6
Do Grotesco e Do Sublime, pág. 31.
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Hop Frog é a típica figura do bufão: disforme, com estatura mínima, sua
constituição física justifica o seu apelido, pois, tendo uma perna menor que a outra,
salta com muita facilidade, como um sapo. Assim como Triboulet, carrega em sua
imagem a predestinação para a condição de bobo da corte, papel que executa com
maestria, e que lhe confere uma convivência constante com o rei, amante das piadas.
Hop Frog é a representação do exercício de arte defendido por Poe. Ele é calculista,
planeja a execução de seu número com minúcia e cuidado. Sabendo o fim que quer
atingir - a execução do rei - prepara em todos os detalhes o seu número sem hesitar,
um minuto sequer, na hediondez de seu ato. O narrador do conto de Poe não nos
deixa dúvidas em relação à vilania do monarca, julgando-o em seus comentários.
Dessa maneira, Hop Frog e Tripetta surgem para nós como criaturas humilhadas
perante a corte, mas cuja função na corte se define por esta humilhação – por mais
que Tripetta seja dotada de uma beleza singular.
O ato de Hop Frog, assim, é caracterizado como uma vingança pessoal. Ele
executa ao rei e aos seus ministros para vingar-se da situação vivenciada por Tripetta,
que tentou defendê-lo. Por mais abominável que seja o castigo que ele trama, seus
motivos foram nobres. O regicídio ainda ecoa em nós, leitores, a válvula de escape de
todas as situações possivelmente sofridas pelo bufão, na corte daquele rei. Hop Frog
escapa com Tripetta, e seu destino não nos é revelado, o conto se encerra. O que
vemos, assim, é uma bem sucedida desforra do bufão sobre a corte que tanto o
ridiculariza. Para atingir esse fim, Hop Frog não se rebela, não assume nenhuma ação
de revolta em relação ao monarca. Calculadamente, ele veste ao extremo a máscara
de sua função e enreda os nobres no horror de seu número, enquanto estes acreditam
estar encenando uma grande piada. Ao contrário de Triboulet, o bobo ri por último.
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causas próprias, agem no sentido de se voltarem contra aqueles aos quais servem. E o
tema da conspiração é justamente o início da história de Fancioulle.
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Grifo meu.
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O ponto de vista do narrador em relação ao bufão vai se alterando enquanto
ele descreve os talentos de Fancioulle. Este é reconhecido como um artista genial em
suas representações, capaz de provocar a ilusão da existência real de seus
personagens, como um escultor que pudesse conferir vida às suas estátuas – um outro
Pigmalião. O narrador declara-se, enfim, não como mais um espectador passivo de
Fancioulle, mas como alguém também dotado de sensibilidade artística. Ele declara
possuir um “olhar clarividente”, ser o único capaz de enxergar uma “indestrutível
auréola” sobre a cabeça do cômico. Fancioulle, então, transforma-se em gênio, um
herói enquanto artista dotado da vocação e do talento que o colocam entre a Arte e o
Martírio. É sob essa noção que ele executa seu grande número.
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Fancioulle, mas também o narrador, com o calculismo de seu ato – a mesma marca da
realização de Hop Frog. Ao supor as motivações do Príncipe por sabotar Fancioulle, o
narrador tece uma pergunta que, no embate visto acima entre a grandeza dos nobres
e o prosaísmo da vida cotidiana, traduz uma vingança: estaria o Príncipe “humilhado
na sua arte de aterrorizar os corações”, e “entorpecer os espíritos”? As noções de
“terror” e “compaixão” é o que Aristóteles define como grande característica e
objetivo do trágico clássico. O Príncipe, assumindo sua condição de figura nobre,
desafiado publicamente pelo bufão que lhe serve em seu palácio, executa uma
vingança histórica na relação entre os gêneros poéticos, contra os abusos cometidos
pela expressão que Fancioulle representa. Dentre os conspiradores, afinal, o bufão é a
grande estrela do espetáculo da execução disfarçada de perdão real. A nobreza da
condição do príncipe é incapaz de dissimular a sordidez de sua função e o desprezo
que pode ter em relação aos grandes artistas, ainda que este desprezo tenha que
conviver com o deslumbre pela expressão sublime que estes artistas são capazes de
realizar.
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O Cômico À Margem De Suas Próprias Piadas
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Percebemos então que de maneira perversa o artista é marginalizado pela
sociedade em que vive e da qual se nutre para compor sua arte: nas esferas do espaço,
a configuração social e política, e do tempo, o gosto popular que se extasia no
consumo daquilo que é fácil, belo e inofensivo. Retomando a presença de Poe na obra
de Baudelaire, podemos ir além da mera influência artística e perceber de que maneira
o poeta francês se horrorizou com o destino do escritor estadunidense. No ensaio
Edgar Allan Poe, sua vida e suas obras, o comentário apaixonado que Baudelaire faz de
Poe é a composição do retrato de um gênio incompreendido pelos homens frívolos e
práticos de seu país, recebendo pouco por seus escritos pelo fato de sua obra estar
acima do gosto comum de seu tempo. Baudelaire encontra na figura de Poe um artista
de carne e osso, escritor como ele, cuja história é capaz de evidenciar a relação
perversa que a sociedade moderna tem com os gênios da época. A arte relegada às
condições espúrias e nada sublimes que regem as relações sociais sob as regras do
mercado, do interesse e da mediocridade do bom gosto mediano. Quando Baudelaire
descreve os poucos momentos de sucesso de Poe, eles acontecem na mesma
sequência de glória e decadência do grande número de Fancioulle. É assim que, na
mesma manhã que O Corvo é publicado e o nome de Poe corre de boca em boca, esse
cambaleia embriagado pela Broadway de bar em bar. Da mesma maneira, depois da
consagração extrema de sua palestra em Richmond, o autor volta a Nova York por
compromissos profissionais e morre de maneira deplorável.
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Bibliografia:
_________________, “Edgar Allan Poe, Sua Vida e Suas Obras”, in Poesia e Prosa,
organização de Ivo Barroso e tradução de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, 1995,
Editora Nova Aguillar, Rio de Janeiro, págs. 627-656
___________, “The King´s Diversion” (Le Roi s´amuse), in Dramatics Works Of Victor
Hugo, traduzido para o inglês por Frederick L. Slous e Newton Crosland, Editora P. F.
Collier, Nova York - digitalizado por internetarchive.org, com patrocínio da Brigham
Young University, Idaho
POE, Edgard Allan, Hop Frog, in Ficção Completa e Ensaios, organização e tradução de
Oscar Mendes, 2001, 4ª reimpressão, Editora Nova Aguillar, Rio de Janeiro, págs. 371-
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