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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Universidade de São Paulo

O Som e a Fúria Dos Idiotas


Um retrato do artista no palco da modernidade

Bruno Gavranic Zaniolo

Disciplina: Literatura Comparada II

Professora: Marta Kawano

2015
A expressão da experiência do homem moderno, vivendo em meio à corrente
de sensações, luzes e fumaça no cenário das grandes cidades da Europa em meados do
século XIX, é a grande marca que perpassa, às vezes como uma sombra silenciosa e
etérea, às vezes como um grande veículo desgovernado, por toda a obra de Charles
Baudelaire. Seus poemas e textos em prosa buscaram sempre um sentido, ou vários,
para a difusa condição do homem de seu tempo. Tendo presenciado um momento de
intensas agitações na vida ocidental, onde os ideais revolucionários da burguesia eram
desmascarados e a expressão apaixonada dos românticos vivenciava a decadência dos
conceitos do sublime absoluto, ao mesmo tempo em que o capitalismo em sua face
mais feroz se agigantava engolindo homens e nações, como o horrendo tigre de Blake,
Baudelaire pôde compor a obra que, no século XX, receberia a precisa decifração de
Benjamin cunhada no epíteto de “um lírico no auge do capitalismo”.

O que essa expressão carrega de contraditório e incongruente, em detrimento


à possibilidade da experiência lírica, é o que a poesia de Baudelaire testemunha e
reflete, através de composições onde os conceitos mais duradouros na compreensão
da história da arte ocidental sofrem um movimento de ambiguação e paradoxo: o
Belo, a Natureza, o Gênio e a própria Poesia perdem seu caráter de absoluto e eterno,
enquanto o movimento frenético das multidões arrasta o olhar do poeta pelos mais
diversos cantos da iluminada Paris – onde a própria cidade, em constante mutação,
não lhe oferece nada de fixo ou duradouro.

No contexto dessa poesia, que se faz da expressão de um Eu de sensibilidade


extremada, o olhar do poeta vagando pela cidade traça um círculo e se depara com a
própria imagem refletida nas vitrines dos bulevares tumultuados. Assim, Baudelaire
lança sua lírica no sentido de se perguntar sobre qual o papel destinado ao artista nas
condições em que a sociedade o permitia executar o seu ofício. A figura do artista
enquanto tema não era nenhuma novidade e foi aprendida por Baudelaire em seus
antecessores e mestres. Hoffman e Balzac, por exemplo, leituras do tempo de
Baudelaire, delinearam figuras de artistas onde a condição de sua arte já se

1
representava como um problema capaz de lhe trazer mais angústias e dúvidas do que
louros e certezas.

Textos como O Barão de B., do primeiro, ou a A Obra Prima Ignorada, do


segundo, ora de maneira patética ora densa, refletem a condição do artista como
eterno perseguidor da expressão mais definida e bem acabada no intuito de captar a
essência do Belo, na configuração de uma obra mais próxima o possível do ideal. O
tema dessas obras, a música ou as artes plásticas, se coloca no campo das expressões
duradouras, que podem permanecer como um legado de herança para as novas
gerações. Essa configuração do artista como o criador de coisas eternas ecoa traços
das histórias mais antigas. Na mitologia grega, por exemplo, encontramos a expressão
de artistas magníficos na música de Orfeu ou na divina reprodução das esculturas de
Pigmalião.

Porém, no próprio mito, Orfeu não resistiu à experiência no Hades e Pigmalião,


por mais que agraciado pelos deuses com o sopro de vida em uma de suas criações, viu
o modelo ideal em pedra ser transmutado em carne humana e, por assim dizer, ganhar
a inefável e transitória condição. Em Baudelaire, encontramos uma imagem para a
representação do artista que se coloca ainda além do limite do fugaz na condição
humana. Em Uma Morte Heróica, Fancioulle é um cômico, um palhaço no auge de seu
potencial artístico que vivencia simultaneamente ao seu grande número a queda
inevitável para a morte. É o mesmo tipo de artista que o poeta observa em O Velho
Saltimbanco, porém melancólico e esquecido junto às tralhas de uma feira na cidade,
como um cisne magnífico batendo as asas em meio ao pó.

Ambos são artistas que não produzem nada de exterior e durável com seus
gênios: eles não têm outro objeto de expressão de sua arte a não ser os seus próprios
corpos, o que confere a esses personagens uma experiência que os coloca no limite
entre o que são e o que representam – sem duplos sentidos. Como agravante,
Baudelaire não buscou a figura do ator nos grandes teatros, não pintou o retrato de
uma estrela da Comédie Française, mas buscou a expressão brusca dos atores do
teatro físico, dos cômicos, onde o gesto aparentemente sobrehumano, o improviso e a
familiaridade com o ridículo e o grotesco são as marcas mais próprias de sua arte.

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A configuração que Baudelaire fez desses artistas será aqui analisada em
comparação com a obra daquele que foi talvez um de seus maiores mestres, e, para o
poeta francês, uma possível imagem acabada da tragédia pessoal do artista de seu
tempo: Edgar Allan Poe. No conto Hop Frog Poe relata a história do personagem
homônimo, um bufão da corte de um rei cruel e sádico, que executa sobre o rei e seus
ministros uma vingança atroz, caracterizada como sua última bufonaria. Como marca
evidente nos textos dos dois autores, encontramos a proposição de uma arte que não
reconhece limites e separações entre os aspectos grotescos e sublimes da experiência
humana, ecoando as ideias defendias por Victor Hugo no famoso prefácio à sua peça
Cromwell. Dessa maneira, esses cômicos, cuja arte brilha nos olhos da plateia, a quem
seus destinos pessoais não oferecem nenhum interesse exato, por mais que tenham
trajetórias distintas, são alçados por seus autores à condição de heróis cuja tragédia
em nada os minimiza em comparação aos príncipes e reis da grande arte. Pelo
contrário, vivem seus dramas em uma convivência direta e privilegiada com os
principais participantes do jogo do poder, traçando assim uma reflexão sobre a relação
entre a arte e a política. A errância, a indefinição e a experiência do limite e da
melancolia são as marcas que caracterizam sua condição na sociedade em que vivem,
ecoando a vivência de seus criadores, poetas admirados por sua arte, mas rejeitados
pelo seu tempo.

Um Sorriso Disforme No Sublime Rosto do Herói

A proposição da mistura de tons e gêneros de expressão em um mesmo objeto


artístico, aquilo que Hugo defende quando postula sua ideia de uma arte que saiba
encontrar o sublime no grotesco – e vice e versa – começou a se delinear
historicamente junto com a ascensão do que conhecemos como modernidade.
Shakespeare se utilizou deste recurso em suas tragédias, retratando seus heróis
ladeados com personagens ou situações que se expressavam através do ridículo. É o
que Erich Auerbach nos mostra no capítulo dedicado à obra do dramaturgo inglês em
Mimesis – A representação da realidade na literatura ocidental.

3
Sob o título de O Príncipe Cansado, a leitura de Auerbach pinça exemplos de
vários textos de Shakespeare, de Macbeth à Tempestade, porém centrando suas
atenções em Hamlet. O autor nos mostra a presença da figura do bobo da corte como
contraponto ao destino trágico dos heróis retratados, o que vemos, por exemplo, no
bufão que acompanha Rei Lear em suas perambulações. A esse personagem cabem
comentários às situações vivenciadas e reflexões proferidas pelo velho rei, trazendo
um ponto de vista de baixo, distanciado da nobreza do personagem principal e,
justamente por conta desta divergência de origem, dotado de um humor agudo e sem
cerimônias que se mesclam à solenidade de Lear. Em Hamlet, na famosa cena dos
coveiros – ato V, cena I – encontramos a figura de Yorick, porém só em corpo
presente.

A reflexão melancólica que o jovem príncipe faz da irrefutabilidade da morte no


destino humano é intensificada pela visão do crânio descarnado de Yorick, que foi
bobo na corte de seu pai, o velho rei assassinado. Yorick é um bobo que mesmo na
morte ri dos desígnios do curso da vida humana. Aliás, morto é quando ele mais ri, pois
o que Hamlet tem diante de seus olhos é o sorriso escancarado de seu crânio. E a
partir dele, se misturam dois níveis de lembrança: uma, irritada, do humilde coveiro
que foi alvo das piadas de Yorick, objeto do ridículo que era a expressão do bobo; a
outra lembrança, uma afetuosa recordação do príncipe Hamlet dos carinhos a ele
devotados por Yorick.

À mistura de tons elevados e rebaixados na expressão – entre o trágico e o


cômico – se alia uma mistura de personagens das mais diversas estirpes. O coveiro
anônimo está lado a lado com o príncipe, a piada do bobo da corte marca a memória
da vida social de ambos. Auerbach define que essa mistura corresponde a uma visão
de mundo onde o conceito de destino da tragédia clássica, com o respectivo decoro de
separação entre os temas elevados, e os baixos – em outras palavras, entre
personagens nobres e tipos populares – não mais vigora com seus limites tão
definidos. Não assistimos somente a uma tragédia pessoal, vivenciada exclusivamente
por um herói, cujos acontecimentos apenas se refletem na polis, com efeitos
geralmente benéficos por conta da extirpação do desvio de alguma norma - desvio
esse encarnado pelas ações do protagonista. O que se vê em Shakespeare é uma

4
caminhada histórica onde todos os destinos são atingidos de uma forma ou de outra
pelo andar dos acontecimentos. Nobres e populares são igualmente afetados. Isso é
facilmente compreensível se lembrarmos da última de cena de Hamlet. À derrocada
definitiva da família real, o banho de sangue que quase não deixa um personagem vivo
além de Horácio, se segue a invasão do reino da Dinamarca por Fortimbrás. Não só um
novo rei assumirá a coroa, mas uma nova ordem será estabelecida para o Estado.

Essa noção Histórica, agindo sobre o drama, e mesmo o impulsionando é o que


o crítico polonês Jan Kott vai ressaltar como o motriz que movimenta todo o ciclo dos
dramas históricos de Shakespeare. Saímos do âmbito da tragédia e entramos em um
gênero onde a história pode ser representada, no movimento da roda que a impele
para o progresso. 1 A crônica da sucessão dos soberanos do estado inglês vem de
encontro com o que Auerbach nos lembra: ainda que operando a mistura de origens
sociais e tons de expressão em suas obras, Shakespeare não era um autor popular, no
sentido de privilegiar personagens populares, de flagrar os seus destinos. O que vemos
é ainda a tragédia do príncipe da Dinamarca, e a função de Yorick é disparar, sob seu
descarnado riso irônico, uma reflexão sobre o destino final que une todos os homens,
dos mendigos aos reis: a morte. Yorick preenche o príncipe de uma melancolia
dolorida, enquanto ri, em seu silêncio eterno, daquele que filosofa tendo seu crânio
nas mãos. O que os separa, afinal, não é nenhuma grandeza inata de seus espíritos,
mas um fator de origem. Mas Shakespeare escreveu suas tragédias encenando a crise
dos que governavam – ou dos que estavam próximos ao poder, em posição de
destaque, como é o caso de Otelo ou Macbeth.

Shakespeare foi uma das maiores influências dos movimentos românticos, um


ideal artístico tanto para alemães, ingleses ou franceses. Sua expressão mista, a
presença do cômico maculando a sublimidade do trágico, que foi condenada pelos
classicistas em seu resgate das noções da antiguidade clássica, foi recebida com
entusiasmo na passagem dos séculos XVIII para o XIX. E este ideal está por trás das
ideias que Victor Hugo expõe no já citado prefácio a Cromwell. Neste texto, verdadeiro

1
Essa leitura do autor é apresentada no seu livro Shakespeare Nosso Contemporâneo, cujo capítulo “Os
Reis” é dedicado a uma análise dos dramas históricos do dramaturgo inglês. Jan Kott cria essa imagem
do “Grande Mecanismo” da história para ilustrar a rápida constante sucessão de monarcas narrada no
ciclo dos dramas históricos de Shakespeare.

5
manifesto de expressão romântica, Hugo, prefaciando um drama onde também se
ocupa de uma visão sobre o destino histórico das sociedades – Cromwell trata da vida
de um antigo estadista inglês – defende com veemência:

“(...) tentemos fazer ver que é da fecunda união do tipo


grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno,
tão complexo, tão variado nas suas formas, tão
inesgotável nas suas criações, e nisto bem oposto à
uniforme simplicidade do gênio antigo; mostremos que é
daí que é preciso partir para estabelecer a radical e real
diferença entre as duas literaturas.” 2

É Hugo quem vai nos mostrar uma outra imagem de um bufão em seu teatro,
porém alçado da categoria de mera sombra para a diversão do rei, à herói de sua
própria tragédia. Em Le Roi s’amuse, de 1832, Triboulet é o bobo de companhia do rei
François I. Triboulet é um personagem que congrega em si o choque entre a
convivência com os aspectos baixos da vida social e a busca pelo sublime. Bufão
deformado, ele possui um caráter dúbio e não se intimida com a sua função de sempre
envolver os nobres em situações moralmente complicadas. Triboulet poderia ser
somente uma figura sem preocupação moral, sem qualquer tipo de ética, porém ele
vivencia em sua vida o confronto entra as duas ordens. Vive no limite entre o vício, a
deformidade – em sua relação com o rei, e no mal que causa a todos – e a virtude – o
modo como cuida de sua filha, mantendo-a reclusa, fora do contágio da maldade que
anda solta entre os homens. Ao fim, as duas pontas morais se tocam, e sua filha está
apaixonada pelo rei. Triboulet, então, dirige sua vingança a este, querendo proteger a
honra de sua filha, depositária de uma pureza possível no mundo, mas não acessível a
ele próprio. No desenlace da história, em que sua filha se deixa ser assassinada no
lugar do rei, a virtude aceita dar-se em sacrifício por amor ao vício, e Triboulet se vê
vítima da tragédia que ele próprio armou, e que se volta contra ele.

2
Do Grotesco e Do Sublime (tradução do “Prefácio à Cromwell”), Pág. 27, na tradução de Celia Berrettini
para a Editora Perspectiva.

6
No prefácio à publicação da obra3, Hugo defende seu herói como vítima, e diz
que a vingança não recaiu em Triboulet como bobo do rei, mas como um homem, um
bobo comum. E que este odiava ao rei e a todos unicamente pelo fato de serem
nobres e não carregarem uma corcunda nas costas. O grotesco, aqui, tenta se alçar a
uma outra condição por conta do destino que lhe cabe no mundo injusto e depravado
em que ele veio à luz. Triboulet continua a ser herói, mesmo sendo perverso, porque a
perversidade, ao mesmo tempo em que é sua arma de ação, é também a parte que lhe
cabe, a sua condição. Afinal de contas, ele não passa de um bobo da corte, e como
todo bufão, a mestria em seu ofício está na exploração do humor que não conhece
limites morais, e que expõe a um mundo depravado a sua própria face disforme.

Essa visão da figura grotesca, e não por acaso um artista – não somente o
corcunda deformado que vive nos submundos de Paris, mas uma figura que atrai sobre
si as atenções, que vive, aliás, do olhar da sociedade como espectadora de seus atos –
na função de protagonista, herói de sua trajetória, é o que vamos encontrar em forma
mais condensada, e talvez por isso mesmo sob efeito mais vertiginoso, no conto de
Poe e no poema em prosa de Baudelaire. Neste último, aliás, a consideração da
experiência moderna, que expõe a sensação humana a estímulos e vivências das mais
radicais e fugazes, vai encontrar o auge da mistura de tons na radicalização do
exercício dos poemas em prosa, onde a própria forma poética se expande a ponto de
abraçar a prosa, e vice e versa. A expressão de gênero, assim, é tensionada pela
modernidade em seus limites, e a expressividade do sujeito lírico, vai buscar expressão
no caráter mais coloquial e livre da escrita prosaica.

A Execução Pública Do Grande Número

Na obra de Baudelaire, essa visão de mundo que abarca em uma mesma


experiência a visão das alturas celestiais à profundidade dos abismos é assumida pelo
poeta como uma marca da experiência, que se faz sentir de maneira quase constante.
Podemos encontrá-la na famosa figura do albatroz, a ave que domina os céus com seu

3
Consultei, para este trabalho, a edição traduzida para o inglês sob o título The King´s Diversion. (Ver
bibliografia)

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voo sendo exposta ao ridículo, exilada nos confins limitadores do espaço terreno. É o
que se vê, também, no poema Benção. Logo após o seu nascimento, o poeta, ao invés
de ser comemorado por ter vindo à terra agraciado com o dom das musas, é marcado
pela maldição materna que renega o dom de seu filho, o que o leva a elevar os olhos
aos céus e clamar a Deus por justiça para seu talento, aceitando com orgulho a sua
condição de sublime criatura renegada pelos seus em terra.

A condição da poesia, a possibilidade da experiência lírica entra em choque


com o mundo em que Baudelaire vive e compõe, e esse choque se torna a marca de
ser poeta em seu tempo. É a partir daí, então, que ele receberá a influência do
pensamento daquele que certamente é seu grande mestre. De Poe, Baudelaire
adquiriu o conceito de experiência do Belo. Segundo expõe nos ensaios O Princípio
Poético e Filosofia da Composição, Poe acredita que o alcance do efeito da Beleza, fim
de toda poesia, não pode ser uma sensação de duração extensa. Ela atinge o leitor de
um poema como um raio, e com a mesma velocidade que este mostra a sua luz, se
esvai. Isto se dá pela concorrência da intensidade do efeito poético com a intromissão,
na experiência moderna, das “coisas do mundo”. Este é o motivo pelo qual Poe
defende o princípio de contenção na forma artística. O conto, ou o poema, deve ser
detalhadamente urdido para atingir um determinado fim, em uma determinada
duração. É dessa maneira que ele expõe seu processo de composição do poema O
Corvo, trabalhando para atingir “a máxima concentração possível de tristeza e
desespero”.4 Essa ideia de que a experiência da Beleza se encontra tiranizada pela
“fugacidade da emoção”, onde o efeito concorre com o tempo5, encontra lugar e
expressão na obra de Baudelaire.

Tendo dito isto, pode-se compreender a dimensão do ato de Hop Frog e de


Fancioulle, expressos na encenação do grande momento artístico que cada um
vivencia. Victor Hugo sentenciou: “Quando a arte é consequente com ela mesma, leva
de maneira bem mais segura cada coisa para seu fim” 6. O fim, no caso dos dois
cômicos aqui referidos, é a piada que encontra na morte o seu desfecho exato.

4
Em Filosofia da Composição, pág. 108.
5
O Princípio Poético.
6
Do Grotesco e Do Sublime, pág. 31.

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Hop Frog é a típica figura do bufão: disforme, com estatura mínima, sua
constituição física justifica o seu apelido, pois, tendo uma perna menor que a outra,
salta com muita facilidade, como um sapo. Assim como Triboulet, carrega em sua
imagem a predestinação para a condição de bobo da corte, papel que executa com
maestria, e que lhe confere uma convivência constante com o rei, amante das piadas.
Hop Frog é a representação do exercício de arte defendido por Poe. Ele é calculista,
planeja a execução de seu número com minúcia e cuidado. Sabendo o fim que quer
atingir - a execução do rei - prepara em todos os detalhes o seu número sem hesitar,
um minuto sequer, na hediondez de seu ato. O narrador do conto de Poe não nos
deixa dúvidas em relação à vilania do monarca, julgando-o em seus comentários.
Dessa maneira, Hop Frog e Tripetta surgem para nós como criaturas humilhadas
perante a corte, mas cuja função na corte se define por esta humilhação – por mais
que Tripetta seja dotada de uma beleza singular.

O ato de Hop Frog, assim, é caracterizado como uma vingança pessoal. Ele
executa ao rei e aos seus ministros para vingar-se da situação vivenciada por Tripetta,
que tentou defendê-lo. Por mais abominável que seja o castigo que ele trama, seus
motivos foram nobres. O regicídio ainda ecoa em nós, leitores, a válvula de escape de
todas as situações possivelmente sofridas pelo bufão, na corte daquele rei. Hop Frog
escapa com Tripetta, e seu destino não nos é revelado, o conto se encerra. O que
vemos, assim, é uma bem sucedida desforra do bufão sobre a corte que tanto o
ridiculariza. Para atingir esse fim, Hop Frog não se rebela, não assume nenhuma ação
de revolta em relação ao monarca. Calculadamente, ele veste ao extremo a máscara
de sua função e enreda os nobres no horror de seu número, enquanto estes acreditam
estar encenando uma grande piada. Ao contrário de Triboulet, o bobo ri por último.

Essas duas personagens trazem em questão um drama que é disparado


justamente por sua relação próxima e direta com os monarcas. O artista é mais uma
peça na engrenagem de funcionamento do poder. Ele está ao lado daqueles que estão
fazendo girar o mecanismo da História, seu papel é justamente servi-los. Tendo
seguido suas funções até a morte, eles seriam também sorrisos descarnados nas mãos
dos futuros príncipes, como Yorick. Triboulet e Hop Frog, no entanto, movidos por

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causas próprias, agem no sentido de se voltarem contra aqueles aos quais servem. E o
tema da conspiração é justamente o início da história de Fancioulle.

O bufão do poema em prosa de Baudelaire – cujo nome grafado em francês faz


lembrar o termo em italiano “fanciullo”, isto é, “criancinha” – já é assumido desde o
início pelo narrador como uma figura que se constitui de um complexo: destinado a ser
“cômico”, sofre a atração das “coisas sérias”. Em uma mesma sentença o narrador
envolve a conflito de tons e expressões na figuração de sua personagem, e conclui
dizendo ser “bizarro7 que as ideias de liberdade e de pátria tomem despoticamente o
cérebro de um histrião”. Esse é o motivo que faz Fancioulle se agregar ao coro dos
“cavalheiros descontentes”. Nessa definição, Baudelaire caracteriza e comenta algo de
curioso na configuração deste bufão descontente. Fancioulle não é só estranho por
seus números enquanto bufão, mas também “bizarro” por aquilo que faz fora de cena,
por querer participar seriamente da vida do Estado ao invés de só entreter quem se
ocupa dessas funções. Aqui já se estabelece um passo além na relação que vimos
acima, entre os cômicos e o poder. O artista, não obstante frequentar as camadas
privilegiadas da sociedade é movido pelo interesse de transformá-las, conspirando
contra o Príncipe.

O narrador inicia seu relato desobrigando-se de qualquer identificação com


Fancioulle. Os conspiradores são definidos como “indivíduos de humor melancólico”
que querem mudar a sociedade “sem consultá-la”. O sentido de conspiração é
assumido como um perigo à ordem social, e não um acontecimento positivo. Porém, à
melancolia de Fancioulle, se opõe uma sensação talvez mais perigosa, o tédio que
domina o caráter do Príncipe. É isso que o leva a valorizar as diversões e um gosto
especial pelas surpresas, sendo ao fim descrito como “um jovem Nero”. O narrador de
Baudelaire tenta encenar, como prólogo à grande representação de Fancioulle, um
cenário de agitação política, lamentando inclusive o fato da história deste rei não ter
sido escrita por um “historiador severo”. A noção do conceito de História, que confere
uma concretude à crônica de Fancioulle, ainda que omitindo o nome do reino onde se
deu o enredo, marca a narrativa de Baudelaire.

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Grifo meu.

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O ponto de vista do narrador em relação ao bufão vai se alterando enquanto
ele descreve os talentos de Fancioulle. Este é reconhecido como um artista genial em
suas representações, capaz de provocar a ilusão da existência real de seus
personagens, como um escultor que pudesse conferir vida às suas estátuas – um outro
Pigmalião. O narrador declara-se, enfim, não como mais um espectador passivo de
Fancioulle, mas como alguém também dotado de sensibilidade artística. Ele declara
possuir um “olhar clarividente”, ser o único capaz de enxergar uma “indestrutível
auréola” sobre a cabeça do cômico. Fancioulle, então, transforma-se em gênio, um
herói enquanto artista dotado da vocação e do talento que o colocam entre a Arte e o
Martírio. É sob essa noção que ele executa seu grande número.

O auge da bufonaria de Fancioulle, que embriaga toda a plateia, do narrador


comovido até o Príncipe que o aplaude enquanto, como Hop Frog, espera o momento
exato de executar sua vingança, é então interrompido e sabotado por seu próprio
feitiço: a graça. É como que executando uma piada de muito mau gosto que o pajem
do Príncipe toca o silvo que desconcentra o bufão, e sai dando risadas. A morte de
Fancioulle é descrita, então, como se de fato fosse o grande desfecho preparado por
este para sua representação. O narrador se atém aos detalhes gestuais desse, mais
precisamente aos movimentos de seu rosto, região do corpo do ator que concentra a
atenção do espectador teatral. É a expressão facial que dá o nome para o conceito de
personagem representado pelos membros desta tradição de teatro cômico popular,
que tem seu momento de formulação e auge no período da commedia dell´arte: a
máscara. Para essa tradição, os personagens não são indivíduos com trajetória de vida
e questões profundamente pessoais. Arlequim, Palhaço, Bufão, o Doutor, o Capitão, a
Donzela e o Enamorado, por exemplo, são tipos sociais que se definem sobre o termo
“máscara”, termo este que encerra todo um complexo código de movimentos
gestuais, ações e reações que, sempre repetidos, conferem-lhes identidade.

No momento de sua morte, Fancioulle atinge o sublime pois veste a máscara da


vítima inconsciente, da criança ingênua que bebe a glória de sua arte, sem perceber
que o desejo do Príncipe que lhe admira não se despe das ações perversas de um
monarca. Entre os grandes príncipes da poesia antiga e o Príncipe do reino em que
atua Fancioulle, existiu aquele de Machiavel. O Príncipe surpreende e aterroriza

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Fancioulle, mas também o narrador, com o calculismo de seu ato – a mesma marca da
realização de Hop Frog. Ao supor as motivações do Príncipe por sabotar Fancioulle, o
narrador tece uma pergunta que, no embate visto acima entre a grandeza dos nobres
e o prosaísmo da vida cotidiana, traduz uma vingança: estaria o Príncipe “humilhado
na sua arte de aterrorizar os corações”, e “entorpecer os espíritos”? As noções de
“terror” e “compaixão” é o que Aristóteles define como grande característica e
objetivo do trágico clássico. O Príncipe, assumindo sua condição de figura nobre,
desafiado publicamente pelo bufão que lhe serve em seu palácio, executa uma
vingança histórica na relação entre os gêneros poéticos, contra os abusos cometidos
pela expressão que Fancioulle representa. Dentre os conspiradores, afinal, o bufão é a
grande estrela do espetáculo da execução disfarçada de perdão real. A nobreza da
condição do príncipe é incapaz de dissimular a sordidez de sua função e o desprezo
que pode ter em relação aos grandes artistas, ainda que este desprezo tenha que
conviver com o deslumbre pela expressão sublime que estes artistas são capazes de
realizar.

É um testemunho de reversão de parâmetros. O conceito de “horror”, cunhado


na arte clássica como componente da expressão elevada do trágico, não
coincidentemente é um dos objetivos buscados pela prosa defendida por Poe. É o que
percebemos na definição da sensação imediata buscada por ele, como efeito a ser
provocado nos leitores de seus contos sombrios e incompreendidos pela sociedade de
seu tempo. É o que resta aos cortesãos convidados à mascarada do rei depois que o
bufão Hop Frog incendeia o monarca e seus ministros na frente de todos. Os
mecanismos formais da surpresa e do horror na construção poética haviam mudado
de aspecto, estando ao alcance de qualquer esfera temática ou social. Poe era um
poeta marginal, que retratava figuras baixas e doentias em sua obra, e Baudelaire
aprendeu com ele também esta lição, dobrando essa expressão sombria como
expressão da experiência social dos artistas de seu tempo. Porém, a sociedade do
século XIX ainda não havia esquecido a lição estabelecida por Platão na República: aos
atores, deve-se deixá-los executar sua arte livremente, para logo depois expulsá-los
das cidades, sob o risco de estes conspurcarem a ordem moral dos cidadãos.

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O Cômico À Margem De Suas Próprias Piadas

É esta a relação conturbada que os artistas vivenciam com as esferas da vida


social. Na França de Baudelaire – agitada pelos distúrbios do império de Napoleão III -
enquanto o Estado revelava ao mundo a magnificência do progresso e o poder da
economia Ocidental, o poeta se digladiava diariamente com a censura à sua obra e ao
estilo de vida que adotava. Era um gênio, na concepção de muitos leitores e de
colegas que exultavam com sua poesia – como o próprio Victor Hugo -, mas que
enfrentava também a perversidade da moral, dos bons costumes e de outros ideais,
aqueles forjados pela vida oficial das elites da nação.

A imagem de um destino diferente do de Fancioulle é o que Baudelaire


desenha em outro poema em prosa, O Velho Saltimbanco. O cômico em questão sofre
da sabotagem de uma outra instância tão cruel quanto o poder, e que opera disfarçada
na recepção pública e nos próprios meios artísticos: o tempo. O saltimbanco esgotado,
imagem de impotência e abandono, vive na miséria enquanto a feira popular explode
na exaltação de crianças e adultos com os feitos de artistas mais jovens, fortes e belos.
O olhar do narrador é compassivo e sofrido, talvez porque dotado da mesma
clarividência que o capacitou a ver a genialidade de Fancioulle materializada na
auréola sobre a cabeça do bufão. O que ele testemunha na imagem do velho
saltimbanco é um movimento que ainda se forjava à sua época, mas que no decorrer
da história cultural do ocidente se transformará em engrenagem que faz andar a
cultura no mesmo passo que a História se desenvolve. É o gosto e a aceitação das
“massas”, a recepção ditada pelas modas que se interessa por aquilo que é novo e
aliena do espaço de circulação o que já se tornou obsoleto. Quando o narrador decide
por dar uma moeda ao velho saltimbanco, consolando-o como uma esmola, é “um
grande afluxo de gente, causado não sei o por quê” que o impede e o arrasta. O
movimento da massa é imperioso e obriga a caminhar mesmo aquele que se ocupa
para observar o que não mais é visto. A sentença que fecha o poema é direta na
evidência da alegoria que Baudelaire constrói. O velho saltimbanco, afinal, representa
a imagem “do velho homem de letras”, destinado a apodrecer “na barraca do qual o
mundo sem memória não quer mais entrar!”

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Percebemos então que de maneira perversa o artista é marginalizado pela
sociedade em que vive e da qual se nutre para compor sua arte: nas esferas do espaço,
a configuração social e política, e do tempo, o gosto popular que se extasia no
consumo daquilo que é fácil, belo e inofensivo. Retomando a presença de Poe na obra
de Baudelaire, podemos ir além da mera influência artística e perceber de que maneira
o poeta francês se horrorizou com o destino do escritor estadunidense. No ensaio
Edgar Allan Poe, sua vida e suas obras, o comentário apaixonado que Baudelaire faz de
Poe é a composição do retrato de um gênio incompreendido pelos homens frívolos e
práticos de seu país, recebendo pouco por seus escritos pelo fato de sua obra estar
acima do gosto comum de seu tempo. Baudelaire encontra na figura de Poe um artista
de carne e osso, escritor como ele, cuja história é capaz de evidenciar a relação
perversa que a sociedade moderna tem com os gênios da época. A arte relegada às
condições espúrias e nada sublimes que regem as relações sociais sob as regras do
mercado, do interesse e da mediocridade do bom gosto mediano. Quando Baudelaire
descreve os poucos momentos de sucesso de Poe, eles acontecem na mesma
sequência de glória e decadência do grande número de Fancioulle. É assim que, na
mesma manhã que O Corvo é publicado e o nome de Poe corre de boca em boca, esse
cambaleia embriagado pela Broadway de bar em bar. Da mesma maneira, depois da
consagração extrema de sua palestra em Richmond, o autor volta a Nova York por
compromissos profissionais e morre de maneira deplorável.

A constante alternância entre a glória sublime da realização artística e a


perversidade do desprezo e da exclusão social, soa como o testemunho da experiência
de vida que cabe a quem ousa ser um lírico no auge das transformações do
capitalismo. As marcas do limite que se evidenciam na obra de Baudelaire configuram
uma experiência de ofício que, para se fazer plena, deve ser plenamente consciente e
consequente do lugar que ocupa em sua sociedade – como foi dito na sentença de
Victor Hugo citada acima. A expressão dessa experiência configura, na poesia de
Baudelaire, o artista como um bufão sublime à margem de suas próprias piadas, um
bobo que, por ser fatalmente atraído pelas coisas sérias demais, é levada a abandonar
o riso. Esse mergulho vertiginoso na consciência de sua condição é o retrato que
Baudelaire lega para a poesia na modernidade.

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Bibliografia:

BAUDELAIRE, Charles, Pequenos Poemas Em Prosa, Edição Bilíngue, tradução de Gilson


Maurity, 2006, Editora Record, Rio de Janeiro

_________________, As Flores do Mal, tradução de Ivan Junqueira, 2012, Editora Nova


Fronteira – Saraiva de Bolso, Rio de Janeiro

_________________, “Edgar Allan Poe, Sua Vida e Suas Obras”, in Poesia e Prosa,
organização de Ivo Barroso e tradução de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, 1995,
Editora Nova Aguillar, Rio de Janeiro, págs. 627-656

AUERBACH, Erich, “O Príncipe Cansado”, in Mimesis – A representação da realidade na


literatura ocidental, 2013, 6ª edição, Editora Perspectiva, São Paulo, págs. 277-297

HUGO, Victor, Do Grotesco e do Sublime, tradução de “Prefácio de Cromwell”, tradução


e notas de Celia Berretini, 1988, Editora Perspectiva – Coleção Elos, São Paulo

___________, “The King´s Diversion” (Le Roi s´amuse), in Dramatics Works Of Victor
Hugo, traduzido para o inglês por Frederick L. Slous e Newton Crosland, Editora P. F.
Collier, Nova York - digitalizado por internetarchive.org, com patrocínio da Brigham
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POE, Edgard Allan, Hop Frog, in Ficção Completa e Ensaios, organização e tradução de
Oscar Mendes, 2001, 4ª reimpressão, Editora Nova Aguillar, Rio de Janeiro, págs. 371-
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_______________, “O Princípio Poético” e “Filosofia da Composição”, in Poemas e


Ensaios, tradução de Oscar Mendes e Milton Amado, 1999, Editora globo, São Paulo,
págs. 75-99 e 101-114

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