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CADERNO N.

1/2008 APCAB
* Fevereiro 2008

Quem roubou Yemonjá?

Culto de Yemonjá no limiar da globalização:


desenraizado, sincrético e exportado.

[APCAB] cadernos informativos.


João Ferreira Dias
Vice-Presidente APCAB
apcab.cultura@gmail.com

PROPÓSITO. O presente artigo visa descodificar as metamorfoses sofridas, ao longo


da história e em especial durante o século XX, por parte do culto ao Orixá Yemonjá
(Iemanjá), Orixá mais popular do panteão africano. Uma viagem que vai da Bahia até
Lisboa, passando pelo Rio de Janeiro.

Palavras – Chave : Yemonjá, Iemanjá, Candomblé, Orixás, culto, desenraizamento,


desestruturação, sincretismo, festa de Iemanjá, globalização, exportação, identidade.

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Y emonjá ou Iemanjá, como a evolução ortográfica ditou, é um Orixá de origem
Egbá, província africana no reino Yorubá, situada entre Ifé e Ibadan, onde
ainda existe o rio Yemonjá. As guerras yorubá-daomeanas, no início do século XIX,
obrigaram o povo de Egbá a migrar para Abeokutá, e reorganizaram o culto junto do
rio Ogun que atravessava a região. O bairro de Ibará em Abeokutá, alberga o principal
templo dedicado ao culto a Iemanjá. A festa de Iemanjá em Ibará, constitui-se por uma
procissão que passa por Lakaxa, onde é colhida água para os axés, e termina com a
saudação em Ibará a Olubará, rei de Ibará.

Mitologicamente Iemanjá é filha de Olokun, divindade dos mares, que no Benin (ex-
Dahomé) assume a feição masculina, ao passo que em Ifé assume uma feição feminina.
O seu nome deriva de Yeye Omon Ejá, que significa “mãe cujos filhos são peixes”. No
entanto, no Novo Mundo recebeu diversas designações Yemaya em Cuba, Yemoja e
Janaina. Esta última designação tem claras influências tupi, designando a deusa dos
mares e protectora das mães.

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O tráfico negreiro originou adulterações, algumas delas profundas, no culto aos Orixás.
Primeiro que tudo tornou-o colectivo; onde antes havia um culto individualizado
passou a existir um Xirê, um louvor a uma multiplicidade de deuses, fruto dos
contactos entre povos africanos no território brasileiro, nas senzalas e nos quilombos.
Essa nova forma de culto, partilhado, mesclado e reformulado, recebeu a designação de
«candomblé», palavra de origem angolano-congolesa designando “o costume do povo
negro”. Embora o termo seja de origem bantu, uma vez que foram estes os primeiros
negros escravizados no Brasil, designa todas as manifestações religiosas quer dos
bantu, quer dos daomeanos, quer dos yorubás.

Na necessidade de esconder o culto aos Orixás os negros introduziram um processo


engenhoso: o sincretismo. A associação incorrecta entre divindades africanas e santos
católicos possibilitou a sobrevivência do culto aos deuses negros. No entanto, o efeito a
longo prazo foi preverso. Com o tempo os crentes afro-descendentes assimiliaram o
sincretismo como real. Neste processo, a religião surgida no Rio de Janeiro no início do
século XX (1908), Umbanda, teve um papel crucial. Ao sintetizar numa só dimensão

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religiosa as heranças africana, cristã, ameríndia e espírita-europeia, a Umbanda
emiscuiu-se nas áreas de tradição candomblecista, adulterando-o, enfraquecendo as
suas tradição e património oral, firmando uma maior presença cristã na religião afro-
descendente.

Esta presença cristã que minou a tradição africana gerou no seio da religião do
Candomblé uma desestruturação conceptual, criando lacunas na mentalidade colectiva
dos seus membros. O sincretismo deixou de ser um instrumento ao serviço de uma
preservação religiosa e tornou-se uma realidade constante, um signo de pertença que
minou a identidade africana.

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A popularidade crescente do culto de Iemanjá, motivada pela fervorosa devoção dos


pescadores da Bahia que pediam à deusa dos mares boa pesca e o regresso a casa, levou
a uma adulteração da apresentação física da divindade, ao mesmo tempo que era
desenraizada do Candomblé e se alastrava ao domínio público, tornando-se uma
divindade popular.

Ao deixar de se afirmar como divindade exclusiva do Candomblé e se tornar como


divindade de culto popular, Iemanjá perdeu grande parte da sua identidade. A sua
imagem deixou de ser representada como uma deusa negra-africana e passou a ser
difundida como uma santa branca fruto da religiosidade cristã-brasileira. Obviamente
que os segredos de culto da divindade não se tornaram domínio público, a essência do
axé da divindade permanece nos terreiros tradicionais do Candomblé. O que se passou
foi que ao cair no domínio público, o culto de Iemanjá se tornou rito popular, composto
de vontades individuais, de pequenos ritos independentes, longe da tradição do
Candomblé e do culto africano original. O culto a Iemanjá foi então desestruturado.

Portanto, Iemanjá passou a figurar no imaginário colectivo e público. Ao tornar-se


pública a divindade tornou-se quase-laica, uma representação de uma experiência
religiosa outrora fechada e que se popularizou.

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A popularidade de Iemanjá justo das populações pescatórias levou-a a ser sincretizada
com Nossa Senhora dos Navegantes, divindade que dá nome a uma confraria religiosa
bahiana e a um festejo local, festejo esse que ocorre no dia 2 de Fevereiro, precisamente
a mesma data da festa de Iemanjá em Salvador.

Portanto, o culto de Iemanjá foi-se, progressivamente, globalizando e exportando. Das


casas de Candomblé chegou a toda a população. Bastou um pequeno passo para que se
torna-se numa imagem concorrida também pela Igreja Católica, ansiosa por incorporar
no seu calendário litúrgico a festividade e o louvor em honra da deusa dos mares.
Aproveitando o mecanismo sincrético de Nossa Senhora dos Navegantes.

Nesse sentido, essa Iemanjá agora branca e padroeira de pescadores e bahianos, chegou
também ao Rio de Janeiro, palco da vida cultural moderna brasileira. O seu culto ao ser
difundido pela Umbanda, grande propulsora de uma Iemanjá branca e de representação
à maneira cristã, colocou-a no contexto das novelas brasileiras, grande meio de difusão
de modos de estar no Brasil.

Assim, a globalização enquanto difusão de imagens e conteúdos desborucratizados, foi


o terreno ideal para a difusão da imagem de Iemanjá, sincretizada, desenraizada e neo-
contextualizada.

IEMANJÁ NAS ÁGUAS DO TEJO. Esta exportação do culto popular e amplamente


acessível de Iemanjá trouxe-a até Lisboa, juntamente com a crescente presença de
imigrantes brasileiros. Iemanjá passou a figurar no imaginário português como uma
santa brasileira, ao mesmo tempo que a sua imagem foi massivamente usada em novos
contextos como do tarô, dos cristais e todas as manifestações espirituais, onde antes
nem era falada. Iemanjá entrou em circuitos que a desestruturaram e desmitificaram,
urbanizaram-na e enbranqueceram-na.

É extremamente comum encontrar imagens de Iemanjá em agências funerárias, em


casas de incensos e velas, em lojas de tarô e cristais, e na cidade do Porto Iemanjá dá
nome a uma enorme superfície comercial.

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Portugal conhece o nome Iemanjá mas também conhece-o em circuitos onde não
deveria estar.

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O culto de Iemanjá foi vítima de uma exportação permanente ao qual não há volta a
dar. Iemanjá está no quotidiano bahiano e carioca mas já não é a mesma Iemanjá que
figura nas casas tradicionais de candomblé bahiano. A globalização do culto a Iemanjá
é fruto de uma popularidade originada pela humilde mas fervorosa devoção dos
pescadores da Bahia. A migração dos negros bahianos para o Rio de Janeiro durante o
final do século XIX e meados do XX transferiu identidades culturais que fizeram
nascer novas manifestações do cultural de base, como foram os casos da Umbanda e do
Samba Carioca. O culto ao migrar modificou-se, ganhando uma dimensão nacional mas
próximo do culto popular, onde profano e sagrado se misturaram. Neste sentido
Iemanjá foi roubada às casas de candomblé pela corrente natural dos acontecimentos
urbanos, colectivos e miscigenados, tornando-se símbolo da religiosidade brasileira
(mescla entre heranças culturais) e, em novos ambientes culturais, como é o caso
português, tornou-se signo de práticas ocultistas e espirituais.

A prática de celebração de Iemanjá na noite na passagem do ano, chegou do Rio de


Janeiro através das novelas e dos imigrantes brasileiros, escapando na maioria dos
casos à prática do candomblé, de onde foi desenraizada.

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