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“O GATO PRETO”: A
MÁQUINA DO TERROR
REINALDO MARQUES
I
Na teoria poeana do conto, um princípio básico consiste na intenção
de dominar o leitor. A preocupação com o pólo receptor do texto ficcional
em Poe faz dos seus contos “uma verdadeira máquina literária de criar
interesse”, conforme frisou com propriedade Julio Cortázar4 . Para a captura
definitiva do leitor, o interesse criado costuma atingir alta voltagem. Toda a
articulação narrativa, da seleção do tema ao tratamento dos meios
expressivos, é feita em função do efeito único a ser obtido, da impressão a
ser provocada no leitor. Nesse sentido, o epílogo, ou desfecho, da narrativa
é um ponto fundamental. Para Poe, é o ponto de partida na elaboração da
intriga. A esse propósito, num de seus textos teóricos capitais — “A filosofia
da composição” —, ele próprio pondera:
Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas desse nome, ser
elaboradas em relação ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa com a
pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos dar a um
enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou causalidade, fazendo
com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o
desenvolvimento de sua intenção.5
Por aí já se vê a ênfase na dimensão racional, intelectual, da construção
da narrativa. Poe opera sua máquina textual com perfeito domínio do aspecto
técnico, pelo qual tudo é submetido a um cálculo preciso. Até mesmo o
horror. Rigor e precisão pontuam a sua escrita fantástica. Em sua “filosofia
da composição” o acaso é descartado:
É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se
refere ao acaso ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a passo, até
completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático.6
Feita a propósito de seu mais célebre poema, “O corvo”, com o qual
Poe exemplifica seu método de composição, a observação acima aplica-se
aos seus contos. E evidencia um paradoxo que permeia o fantástico em
Poe: de um lado, o tom racional e matemático da construção da narrativa;
II
Segundo a formulação de Jean Bellemin-Nöel, o fantasmagórico
designa um conjunto de procedimentos e de recursos narrativos
característicos das narrativas literárias próprias do gênero fantástico. Ou
seja, trata-se de uma técnica narrativa distinta tanto do romance em geral
quanto do conto maravilhoso ou do relato de ficção científica, pela forma
específica como trabalha elementos do real9 .
Atentando-se para o fantasmagórico em “O gato preto”, um de seus
aspectos mais salientes e significativos é o tratamento conferido à instância
de enunciação. No nível do enunciado, tem-se a história de uma personagem
que arranca os olhos ao seu animal de estimação, um gato preto, enforcando-
o depois; mais tarde, ela encontra um gato semelhante em tudo ao primeiro,
exceto numa mancha branca no pelo, que a leva a assassinar sua própria
mulher e a emparedá-la num porão juntamente com o animal, cujo grito
anormal e pavoroso denuncia o seu crime à polícia. Mas a quem cabe a
tarefa de enunciação dessa história? O relato dos acontecimentos é confiado
à própria personagem que os vive e dos quais participa; temos portanto o
herói-narrador. Todavia, há aqui um dos procedimentos típicos da narrativa
fantástica no que respeita à narração. Dado que seria impossível ao herói
relatar eventos insólitos e aterrorizantes no momento de sua ocorrência,
opera-se um distanciamento entre o ato de narração e o vivido. A personagem
desdobra-se em sujeito da enunciação, compondo o narrador situado à
distância, num outro momento — o da escrita —, e em sujeito do enunciado,
o herói que vive e presencia os acontecimentos. Em decorrência, o fantástico
é marcado pela tensão entre dois discursos divergentes. O discurso do herói,
de um lado, que experimenta o inexplicável, o fato fantástico e inominável;
trata-se de um discurso delirante, incoerente, próprio da percepção
alucinatória. De outro, o discurso do narrador, no caso o mesmo herói postado
noutro momento; aqui já é um discurso ponderado, da consciência lúcida,
que problematiza os eventos fantásticos, visto estar empenhado num esforço
de racionalização.
No conto de Poe, deparamos com um narrador que se erige em sujeito
através de seu discurso. Por meio deste é que ele se constrói e se desconstrói,
arruinando-se. Em seu relato, o gato e a mulher constituem construções
discursivas, não passando de projeções alucinatórias e fantasmáticas de si
mesmo, denunciando a emergência de conteúdos inconscientes recalcados.
III
O discurso narrativo em “O gato preto” organiza-se como espaço do
fantasmático. Ou seja, estrutura-se em torno dos fantasmas do narrador,
explicitando, através de sua voz narrativa, o percurso das pulsões até à cena
pública, configurando-se em desejo. O discurso fantástico é, pois, o território
das projeções alucinatórias dos desejos inconscientes do narrador-herói. É
o lugar da encenação. É bem esse, por sinal, o sentido do termo fantasma
segundo o aparelho conceitual da psicanálise:
Fantasia ou Fantasma: encenação imaginária em que o indivíduo está
presente e que figura, de modo mais ou menos deformado pelos processos
defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo
inconsciente.13
Fazendo-se uma aproximação à técnica cinematográfica, semelha-
se o fantasma ao roteiro, em que encontramos o texto das cenas, as
seqüências, os diálogos e indicações técnicas, baseado num argumento, que,
no caso, é um desejo inconsciente emergindo.
Desse modo, pode-se dizer, em consonância com Bellemin-Nöel, que
“o fantástico é estruturado como o fantasma: é uma forma que se procura,
não um conteúdo”14 . E, na medida em que a narrativa fantástica expõe o
funcionamento do inconsciente, entendido como uma estrutura falante, ela
se constitui no lugar onde as pulsões instituem seus representantes
simbólicos, podendo ou não serem reconhecidos pelo eu, posto que somente
atingem a consciência passando pelo trabalho de deformação.
Vítima de suas próprias obsessões, o narrador poeano apresenta um
relato contendo um fantasma semelhante ao que se encontra no texto do
sonho, na linguagem dos sintomas da neurose. O gato forma um conteúdo
fantasmal, responsável pelo caráter “estranho” e “singular” da narrativa. A
inquietante estranheza, de acordo com a explicação freudiana, funda-se no
fato de que no fantasma se verifica o retorno de um conteúdo familiar,
doméstico, que fora recalcado pelo eu e deixado ao inconsciente. Mas que,
ao retornar, assusta, amedronta, apavora. Como tal, o retorno do recalcado
implica tanto uma repetição quanto a nomeação de uma realidade
irrepresentável, inabordável, cuja visão aterroriza.
Em uma de suas teses sobre o conto, Ricardo Piglia postula que “um
conto sempre conta duas histórias”: uma em primeiro plano e outra, secreta,
em segundo. E a habilidade do contista está em cifrar a história secreta nos
interstícios da história visível15 . No conto de Poe, nota-se uma repetição
literal da narrativa. Esta como que se desdobra, se reduplica, intensificando-
se a atmosfera fantástica que a circunda. Pode-se afirmar que a narrativa
comporta duas histórias emparelhadas, feitas por um mesmo narrador-
personagem. Na primeira, que vai até o episódio do incêndio, o herói nos
relata como havia mutilado e enforcado o gato de estimação, experimentan-
IV
Como conclusão, gostaria de retomar a reflexão sobre o espaço de
enunciação do discurso narrativo em “O gato preto”. Vimos que é na cela
de uma prisão, instigado pelo fantasma da morte, que o narrador trama o
discurso. Ora, não seria impertinente tomar-se a imagem da cela como uma
expressiva metáfora da narrativa fantástica. Trata-se de uma escrita que, a
exemplo de uma cela carcerária, encena e projeta os fantasmas para melhor
capturá-los, capturando o leitor. Ao explicitar o trabalho de fantasmatização,
o discurso mobiliza o inconsciente e os mecanismos de defesas do sujeito.
Por um modo peculiar de agenciar os signos, produz um referente verbal,
NOTAS
1 POE, 1978. p.39-51. As citações do texto do conto serão extraídas dessa
edição. Procurei cotejar a tradução utilizada com o original inglês encontrado
em POE, Edgar Allan. The Colected Tales and Poems (New York: Modern
Library Edition, 1992).
2 Cf. FREUD, 1976. v. XVII, p.273-314.
3 A distinção entre fantasmagórico e fantasmático é encontrada em “Notes sur
le fantastique (textes de Théophile Gautier)”, um estudo de Jean Bellemin-
Nöel publicado em Littérature, n. 8, p.3-23, dez. 1972. Tentarei trabalhar com
esses conceitos, sem operar, no entanto, uma rígida distinção entre as
realidades semânticas que designam.
4 CORTÁZAR, 1974. p.122-123.
5 POE, 1985. p.101 (grifos do autor).
6 Idem. p.103.
7 POE, 1985. p.104.
8 CORTÁZAR, op. cit. p.122 (grifos do autor).
9 Cf. BELLEMIN-NÖEL, 1972. p.4-5.
10 Cf. BESSIÈRE, 1974. p.164-168.
11 Cf. BELLEMIN-NÖEL, 1971. p.112.
12 Cf. TODOROV, 1975.
13 LAPANCHE, PONTALIS, s. d. p.228.
14 BELLEMIN-NÖEL, 1972. p.4-5.
15 PIGLIA, 1994. p.37.
16 Cf. LACAN, 1977. p.19-28. Ver também, a propósito do estádio do espelho e
da metáfora paterna, DOR, 1989.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELLEMIN-NÖEL, Jean (dec. 1972) “Notes sur le fantastique (textes de Théophile
Gautier)”. In Littérature (8), p.3-23.
CIXOUS, Hélène (1974) “La fiction et ses fantômes”. In _____. Prènoms de personne.
Paris: Seuil, p.13-38.
_____ (1976) “Uma neurose demoníaca do século XVII”. In _____. O Ego e o Id,
uma neurose demoníaca do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro:
Imago. ESB da Obra Completa, v. XIX, p.85-133.
LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.-B (s. d.). Vocabulário da Psicanálise. 6. ed. São
Paulo: Martins.
POE, Edgar Allan (1978) “O gato preto”. In _____. Histórias extraordinárias. Trad.
Breno da Silveira e outros. São Paulo: Abril Cultural, p.39-51.
_____ (1992) The Colected Tales and Poems. New York: Modern Library Edition.