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Sokal Volta a Atacar o Obscurantismo

António Garcia

físico americano Alan Sokal aturada análise epistemológica que que cultivam as pseudo-ciências e

O (de parceria com o seu


colega belga Jean Bricmont)
publicou um novo livro com críticas
suscitou polémica a vários níveis,
tanto mais que incluía um autêntico
catálogo de anedotas envolvendo
que as tentam impor a vários níveis
da sociedade americana. Ta i s
práticas ditas “holísticas” (uma
severas às manifestações irraciona- nomes consagrados da cultura fran- corruptela de whole ou totalidade
listas que têm surgido ultimamente, cesa. Esses vultos tinham decidido em inglês; holos em grego clássico)
tais como as novas superstições e as utilizar referências à física e às passaram a ser frequentes, por
pseudo-ciências1. Os dois autore s matemáticas puras, ao exporem exemplo, no sector da pedagogia
que se situam à esquerda ou mesmo certos argumentos bem pouco da enfermagem, onde o rigor
nas imediações do anarq u i s m o , científicos: Baudrillard afirmando científico devia ser uma regra
tinham publicado, em 1997, as que “as guerras modernas acon- absoluta. Este sector tem sido
“Imposturas Intelectuais2”, um ensaio tecem num espaço não euclidiano”; invadido por retóricas obscuran-
que foi traduzido em várias línguas - Lacan a identificar o “órgão eréctil tistas delirantes, que poderão
e n t re as quais o português - e que com a raiz quadrada de -1 (número revelar-se mais perigosas (designa-
foi qualificado de “pedrada no imaginário) ”; e Júlia Kristeva a damente para a saúde humana) do
c h a rco”, por denunciar certas dissertar acerca da “linguagem que as mencionadas imposturas
práticas discutíveis que estavam em poética elevada à potência do intelectuais que se limitavam ao
voga em certos meios intelectuais contínuo”... No entender de Sokal, domínio das ideias. Sokal assinala
franceses, devido à utilização abusiva tais afirmações não são simples que as enfermeiras americanas têm
de conceitos das ciências puras, metáforas e os autores eram (e sido convidadas a praticar métodos
como justificação de argumentações continuam a ser) venerados em de “apalpação terapêutica com
em escritos sobre literatura, artes, vários círculos, habitualmente transferência de energia”, uma
fil o s o fia e psicanálise. designados de pós-modernistas. prática que se assemelha pura e
Assim acontece em Paris, como é simplesmente à magia e cujos
evidente, mas também nos E. cultores se dão ao luxo de contestar
Pedantismo intelectual Unidos - onde a chamada “French as exigências da chamada ciência
Theory” conquistou adeptos em tradicional-observação, hipótese e
Nesse livro, Sokal tinha-se dado várias universidades - e até mesmo experimentação - utilizando, para
ao trabalho de elaborar uma em Lisboa ou em Coimbra, onde isso, citações do budismo tibetano
haverá quem se sinta misturadas com princípios da física
obrigado a citar Lacan, quântica ou da relatividade,
Foucault ou Derrida, a naturalmente mal compreendidos.
torto e a direito, para se Tais argumentações, que parecem
sentir moderno. ser simples curiosidades “New-age”,
preocupam seriamente o autor que
se insurge contra os artigos teóricos
Pseudo-ciências e pós- incluídos em estudos no ramo da
modernismo enfermagem e que “tendem a
reciclar os mesmos argumentos e a
Sete anos depois de ter mesma retórica que podemos
denunciado essas encontrar nos escritos pós-modernos
“Imposturas Intelectuais” - nas ciências sociais e na teoria
que, segundo o autor, não literária, com uma quantidade
podem ser assimiladas a surpreendente de referências a
desculpáveis exercícios de Heidegger, Foucault, Derrida, Rotry
retórica - Sokal volta a e a outros filósofos considerados
atacar os pós-modernistas pós-modernos”.
e muito particularmente
aqueles que, ultimamente
nos E. Unidos, têm tentado Ciência Védica e Relativismo
abalar as bases funda-
mentais da metodologia Sokal não limita o seu domínio
c i e n t í fica. O autor denuncia de análise aos Estados Unidos e
com particular veemência aproveita a ocasião para denunciar
os homens (e as mulheres) certas práticas actualmente em voga

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na Índia, onde os meios fundamen- vacilante”. O livro também
talistas hindus tentam reinventar o inclui um apêndice intitulado
conhecimento científico, afirmando “Religião como Pseudociência”
que as grandes descobertas da e um texto de conclusão que
ciência dita ocidental já tinham sido advoga um “Realismo Científico
incluídas nos textos sagrados, Modesto”. Pensamos que teria
designadamente nos Veda, que se sido útil que o autor também
diz terem sido redigidos há cerca de nos tivesse fornecido algumas
três mil anos. Trata-se de uma pistas acerca das causas que
manifestação ultranacionalista com estão na origem desta ex-
aspectos epistemológicos pre o c u- pansão das ideias anti-
pantes. A ciência que se tem científicas, nos E. Unidos e na
evidenciado desde o iluminismo Europa, onde a astro l o g i a
deixaria de ser um valor universal, passou a ter direito de cidade,
passando a sofrer desvios dos mesmo em sociedades ditas
interesses de certas castas. O autor cartesianas. O autor qualifica o
lamenta que jovens trabalhistas papa de “chefe de um culto
indianos tenham sido contagiados pseudocientífico maior” e
por estas formas de fundamen- considera que os meios
talismo anti-científico, tanto mais fundamentalistas afectos a G.
que os extremistas hindus afirmam W. Bush têm apoiado os
que a ciência “ocidental” não passa adeptos do criacionismo que
de uma versão inferior da “velha combatem os evolucionistas.
ciência védica”. Curiosamente, estas
afirmações são toleradas por alguns
escribas pós-modernistas relativistas Ciências Humanas e
indianos e americanos, para os Ciências Puras
quais o conhecimento científico é seriedade às questões literárias e
uma forma de narrativa que Julgamos que teria sido prefe- artísticas e que, naturalmente, lhe
depende, entre outras coisas, da rível que houvesse uma menor merecem todo o respeito. O autor
cultura do observador. Entramos, dispersão de temas e que o autor lembra que os cientistas criticam
assim, no relativismo cognitivo e no evitasse o excesso de citações e sistematicamente os trabalhos que
pós-estruturalismo, uma corrente notas, que não serão de grande efectuam e muito particularmente
que tentaria reduzir a realidade ajuda para o leitor, porventura aos resultados das experiências. Em
física a uma simples construção pouco versado nas questões contrapartida, os pós-modernos
social e subjectiva... O autor lembra epistemológicas. Também valeria a raramente se põem em causa e,
que, no tempo de Hitler nos anos pena lembrar que a vulgarização quanto a nós, parecem dispostos a
30, havia um especialista de científica desapareceu praticamente continuar a combater as ciências de
epistemologia, Ernst Krieck, reitor dos grandes media europeus. uma maneira absolutamente
da Universidade de Heidelberg, que Como se sabe, é o grande irracional, por simples ignorância
contestava a objectividade da público que financia, pelo menos ou por vontade de poder e de
ciência, alegando que o sistema de deste lado do Atlântico, a pesquisa publicidade, como se fossem, efec-
Newton era o efeito secundário da científica e até mesmo os trabalhos tivamente, companheiros dos pro p a-
hegemonia política dos britânicos... dos filósofos, sejam ou não pós-mo- gandistas das pseudociências l
d e rnistas. Pensamos que, além dos
problemas que atingem o ambiente, o
Ecologismo Radical e contribuinte precisa que o informem 1 Alan Sokal, Pseudosciences &
Criacionismo convenientemente acerca dos Postmodernisme/ Adversaires ou
problemas concretos que a ciência é compagnons de route ?, prefáce de
Não se pode afirmar - antes pelo obrigada a enfrentar. Parecem ridículas Jean Bricmont, Paris, Odile Jacob,
contrário - que este livro seja de as elucubrações de ideólogos, 2005, 224 p.
2 A. Sokal et J. Bricmont, Impostures
leitura fácil, atendendo à complexi- cultores da magia e certos Intellectuelles, Paris, Odile Jacob,
dade da epistemologia e das profissionais das chamadas ciências 1997; edição portuguesa : Imposturas
metodologias científicas. E Alan humanas, perante a mobilização dos Intelectuais, Lisboa, Gradiva, 1999.
Sokal insurge-se, também, contra os cientistas que, por exemplo, tentam
ecologistas radicais que se agarram acabar com as ameaças da Sida e da
aos escritos pós-modernistas “para gripe das aves. Alan Sokal teve a
salvarem algumas das suas teorias preocupação de não atacar, antes
preferidas cujos fundamentos pelo contrário, os homens e as
empíricos ficaram numa posição mulheres que se dedicam com

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