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A INSTITUCIONALIZAÇÃO MERTONIANA DA CIÊNCIA

Resenha: MERTON, R. K. “El estímulo puritano a la ciência”. In: La


sociologia de la ciencia: investigaciones teóricas e empíricas. V. 2.
Madrid: Alianza Editorial, 1977, p. 309-338 e; “La estructura normativa
de la ciencia”. In: La sociologia de la ciencia: investigaciones teóricas e
empíricas. V. 2. Madrid: Alianza Editorial, 1977, p. 355-338.

Marcos Alberto Martinelli1


Sobre o autor

Robert King Merton era o nome adotado por Meyer R. Schkolnik (1910-2003), sociólogo
estadunidence e teórico da sociologia da ciência. Destacou-se nos estudos da ciência
desenvolvida na Inglaterra a partir do século XVII, ressaltando as influências da ética
protestante no avanço científico deste então. Merton desenvolveu os quatro pilares
fundamentais que, segundo o autor, deveriam orientar os objetivos e métodos da ciência
(Ethos): universalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo organizado.

Resenha

Em geral, pode-se afirmar que estímulo é aquilo que tem impacto sobre um
sistema. O primeiro artigo que compõe a presente resenha trata do estímulo que o
puritanismo weberiano2. O puritanismo em questão impunha harmonizar a vida cotidiana
com as convicções religiosas, orientada por uma rigorosa conduta moral – a ética
protestante – que influenciou a sociedade ocidental e produziu efeitos, por exemplo, na
economia e na prática científica. Sob os auspícios da ética protestante se desenvolveram
novas atividades, novas possibilidades de se investigar e empreender em áreas antes
vedadas aos cientistas. Ao mesmo tempo, se consagrava o homem dedicado e devotado a
ciência. A indagação científica encontrara no puritanismo outras motivações que não só
a busca pela “verdade”. As teorias que tratam certos fenômenos necessitam de ações que
justifiquem a seleção do problema de pesquisa. A seleção do problema de pesquisa, no
entanto, é delimitada pelo ambiente cultural que cerca o pesquisador e, entre as várias
culturas que influem no desenvolvimento da ciência, se encontram os valores e os
sentimentos dominantes a cada época analisada, segundo Merton. A partir da Reforma
Protestante (século XV e seguintes) se percebe uma ascendência de novas classes sociais

1
Doutorando no Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
2
Termo relativo a Max Weber 1864-1920, sociólogo alemão.
e iniciativas empreendedoras em novas áreas, dentre as quais a investigação científica. A
ética protestante, considerada mais progressista, estimulava não somente a curiosidade
mas, também, o empenho e dedicação neste e noutros trabalhos considerados dignos.
Assim, os sentimentos puritanos eram favoráveis ao desenvolvimento de novos
conhecimentos sobre o homem e a natureza “para glorificar o grande Autor da natureza”.
Uma Era de estímulo cultural e, em certa medida religioso, às ciências naturais.

Proliferando-se as atividades de cunho científico, por meio de novas


oportunidades, proliferaram-se também os interesses em organizar esses esforços. A
institucionalização da ciência na Inglaterra do século XVII, segundo Merton, sofre
influência do meio cultural estabelecido. Desta forma o autor percebe, em relação a
criação da Royal Society, a influência puritana entre seus pares, definindo preocupações
com a conduta e com as pautas aprovadas socialmente.

Segundo Merton, em tempos de profundas mudanças, se desconectadas das forças


sociais predominantes à sua época, a ciência despertaria escassa atenção e pouco se
justificariam seus investimentos. Por esta razão a associação com um poderoso
movimento social, tal qual o protestantismo, se demonstrava “natural” e favorável ao
desenvolvimento de carreiras. A sociedade recrutava a ciência para servir ao indivíduo, à
sociedade e a Deus. As palavras inspiradoras nos textos dos pensadores justificam-se em
razão do sentimento hegemônico daquelas gerações e do meio social em que estavam
inseridos. Naquele contexto da Inglaterra do século XVII se observa evidente que os
homens da ciência professavam também a fé religiosa, ou seja, esta crença de que seus
feitos glorificavam o Criador. A ética protestante fomentava as ciências e, frente ao
progresso técnico – por meio de constructos úteis – se obtém êxito na legitimação da
atividade científica, percebido através do crescente aumento do bem-estar social e que,
em certo sentido, conduz uma “melhor sorte do homem na terra”.

A reiterada demonstração da utilidade da ciência se alinha com os valores


puritanos tais como o utilitarismo e o empirismo. Não se tratava de uma coincidência
mas, sobretudo, de uma adaptação dos valores morais e sociais que prevaleciam naquela
época como apelo dos cientistas para se justificar junto à religião e a sociedade. As
atividades científicas eram pouco aceitas em relação as demais e, este “agudo desejo de
justificação” combinava uma vontade interior com a oportunidade estratégica de
fortalecimento da ciência.

Merton ressalta que uma das consequências positivas da crescente legitimação da


atividade científica foi a possibilidade de ter influenciado alguns talentos para que
optassem pela ciência. Em outros contextos sociais, estes teriam dirigido seus esforços
para outras atividades. Assim, nobres e plebeus abastados desprezavam as questões
financeiras e viram na ciência uma possibilidade de exercer um ócio criativo, mas,
religiosa e socialmente aceito.

Por muito tempo a ciência foi inatacável e neste período se percebeu imenso
progresso. A pesquisa e a difusão científica elevou a ciência ao alto de uma escala de
valores culturais. Entretanto, a fé na ciência – e suas instituições – com o passar do tempo,
seria abalada por questionamentos que, anteriormente, pareciam pouco prováveis. Tais
questionamentos ganharam, ainda segundo a ótica de Robert Merton, proporções
epidêmicas a ponto de serem considerado um “ataque” à ciência e os cientistas precisam
reiteradamente se justificar a maneira com que trabalham frente aos homens. Reavaliadas,
as instituições científicas perceberam a sua dependência de outras estruturas sociais. Os
cientistas, antes considerados autônomos e, em certa medida independentes, agora
articulam-se com a sociedade em razão da nova percepção de obrigações e interesses.

Desta forma o autor associa este novo período como uma volta ao passado, pois
há três séculos os filósofos da natureza tiveram que justificar-se, demonstrando a utilidade
da ciência e que ela deveria ser entendida como um modo válido de empreendimento
humano. Em momentos históricos de “sucesso” a ciência se percebe não mais como um
meio, mas como um fim em si mesmo. O homem da ciência não só se julgava
independente de outras validações sociais, mas, só se importava com a avaliação por seus
pares, ou seja, a avaliação da ciência pela própria ciência. Estavam na sociedade, mas não
lhe pertencia. Foi necessário um ataque frontal à autonomia da ciência para converter esta
alienação em participação real no conflito entre culturas.

A discussão teórica de Merton aponta que a história da ciência moderna se


construiu perante a sociedade com base na transmissão de normas por preceitos, exemplos
e sanções – na maior parte das vezes tácitas – que moldam à sua conduta e consciência
de quem atua na “comunidade científica”. Esta transmissão, segundo o autor, seria
orientada por uma ética que se apoia em quatro pilares fundamentais, também chamados
de imperativos, na tentativa de sintetizar um complexo conjunto de normas e valores
obrigatórios para os cientistas. A ética (Ethos) científica – com influência puritana – se
baseia em usos, costumes e textos sobre o espírito científico e indagações de caráter
morais voltadas aqueles que violam o Ethos.
Merton, ao examinar o Ethos se volta ao estudo comparativo das estruturas
científicas. Aponta o autor que este é um desafio, pois o material é escasso e disperso.
Ainda assim, estrutura o pressuposto que tal desafio “[…] se apresenta como uma
oportunidade de desenvolvimento da ciência em uma ordem social integrada com a ética
da ciência”. O autor evidencia que a ciência não pode se considerar menosprezada em
relação as outras estruturas sociais, nem se trata de afirmar que – obviamente – a ciência
se desenvolveu. Trata-se de verificar o quanto a ciência se desenvolveu em relação ao seu
potencial e, qual o ambiente mais apropriado para que a ciência desenvolva-se em sua
plenitude. A finalidade da organização da ciência se traduz em estender o conhecimento
à sociedade, porém, é considerada legítima se certificada pelos seus pares, ou seja, pela
comunidade científica que instituiu suas próprias regras. Para cumprir tal objetivo, lança
mão de enunciados de regularidade, empiricamente confirmados e logicamente coerentes.

Neste contexto – que outros autores pós-Mertonianos consideram idealizado –


entende-se que a normatização da ciência é considerada adequada, correta e boa. O que é
prescrito para a conduta do cientista é considerado tanto moral quanto tecnicamente
válidos. Tais imperativos são sintetizados nos componentes cunhados por Merton e que
caracterizam o Ethos científico: 1) o universalismo, 2) o comunismo, 3) o desinteresse e,
4) o ceticismo organizado.

O universalismo de Merton são as verdades universais, impessoais que são.


Entretanto, alerta-nos o autor que a organização científica está integrada em uma estrutura
social maior, e se esta se opõe ao universalismo preceituado para a ciência, se percebe
uma tensão entre o cientista e a sociedade em que ele está inserido. Cita-se, como
exemplo, que em tempos de conflitos internacionais os homens da ciência se veem entre
o princípio do universalismo e o particularismo etnocêntrico, como consequência, existe
a possibilidade do cientista se converter em “homem de guerra”.

O comunismo de Merton se traduz na propriedade comum de bens, tangíveis ou


não. Os avanços técnico e científico são entendidos como um produto da colaboração
social. Neste contexto, a ideia é limitar o direito a propriedade intelectual pois, o
descobridor não teria exclusividade sobre os usos e disposição das suas descobertas.
Assim, o reconhecimento pela comunidade científica é o que importa, na concepção
idealizada por Merton, dentro das instituições científicas. O mecanismo pelo qual se
transaciona este reconhecimento está centrado na comunicação dos avanços da ciência.
O comunismo – o bem comum – seria incompatível com a prática científica na qual o
conhecimento e a tecnologia poderiam “ser” de propriedade privada, contrapondo-se ao
pensamento econômico capitalista e hegemônico.

Uma ciência desinteressada, o terceiro pilar de Merton, se traduz em uma conduta


desinteressada, ao menos institucionalmente e dentro dos limites da comunidade
científica. A teoria Mertoniana não avança em questões de foro íntimo, tais quais as
motivações que movem o cientista nesta ou naquela direção. A ideia central de que o
recrutamento de cientistas leva em consideração uma elevada estatura moral não
encontra, senão na crença de que assim seja, consistência prática. O instrumento de
controle dos excessos, ou fraudes, parece consubstanciar-se na norma de submeter a
avaliação entre pares, prestando-lhes conta das atividades científicas que desenvolve,
outorga-lhe legitimidade e prestígio. Ainda assim, pode-se dizer que é elevado o grau de
policiamento entre colegas da comunidade. O cientista, ao contrário do médico e do
advogado, na visão de Merton, não se apresenta ao leigo, mas, aos especialistas – ou
iguais – em relação ao objeto de investigação.

Ceticismo organizado tem uma relação direta com os demais componentes da


Ethos (universalismo, comunismo e desinteresse). É a tradição da comunidade científica
de aplicar os rigores de análises metodológica e dos resultados antes de legitimar o avanço
técnico e científico alardeado pelos seus membros. Neste ritual se questiona a
comprovação fática das premissas e fundamentação teórica, por meio de exame dos
estudos, utilizando-se de critérios empíricos, racionalidade e lógica.

Em breve resumo, Robert Merton parece demonstrar em sua teoria, à época, o


“como deveria ser” a ciência, ainda que seus estudos indiquem muitas vezes “como é a
ciência”. A leitura dos textos resenhados demonstram, em certo sentido, o ideário que
visa orientar a comunidade científica, mesmo que a realidade demonstre a delebilidade
desta ideologia em razão de desconsiderar outras dimensões não contempladas na
estruturação do pensamento Mertoniano e que atentam, contra a existência de
“comunidade científica ética e puritana”.
REFERÊNCIAS

MERTON, R. K. El estímulo puritano a la ciência (1938). In: La sociologia de la ciencia:


investigaciones teóricas e empíricas. V. 2. Madrid: Alianza Editorial, 1977, p. 309-338
MERTON. R. K. La estructura normativa de la ciencia (1942). In: La sociologia de la
ciencia: investigaciones teóricas e empíricas. V. 2. Madrid: Alianza Editorial, 1977, p.
355-338.
KROPF, S. P.; LIMA, N. T. Os valores e a prática institucional da ciência: as concepções
de Robert Merton e Thomas Kuhn. História, Ciências e Saúde-Manguinhos, V (3): 565-
581, nov. 1998 – fev. 1999.
WIKIPEDIA. Robert Merton. 2015. Disponível em
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Merton>. Acesso em 3/4/2015

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