Você está na página 1de 15

1

Notas do componente curricular HAC-A46 - TÓPICOS ESPECIAIS EM CIÊNCIAS I: ‘Realidade e Conhecimento’ do


INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR MILTON SANTOS (IHAC-UFBA). Prof. Helio Silva Campos –
hscampos@ufba.br - Sem. 2016.1
........................................................................................................................................................................
............................................
Sic itur ad astra (“Assim se vai no rumo das estrelas”) – Publius Vergilius Maro1
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
-----------

I. NOÇÃO DA REALIDADE EM ANTIGAS COSMOVISÕES

I.1 – Sobre a Noção de Realidade Una

Desde os tempos imemoriais o ser humano procura desvendar mistérios que envolvem
a sua existência e, claro, a do mundo que o cerca. Sem dúvida são mistérios ‘irreveláveis’ que
desafiam uma compreensão mais profunda da nossa realidade.
Esta perspectiva fomentou inúmeros questionamentos estimuladores da curiosidade
humana, as denominadas ‘grandes questões’, tais como: ‘o que a vida?’, ‘o que nos faz
pensar?’, ‘o que é real?’ projetando um cenário que transcende o cotidiano. Independente de
encontrar ou não respostas aceitáveis, o âmago dessas inquietações preconiza uma
interrelação entre os mundos interior (psíquico) e o exterior (físico), o que demanda por
inferências de natureza cognitiva e mesmo emocional.
O propósito de formalizar explicações para ‘grandes questões’ gerou uma miríade de
narrativas frutos das experiências vivenciadas por diferentes povos tradicionais. Assim
‘surgiram’ lendas e mitos, frutos de imaginações que aparentemente atendem indagações
existenciais, pressupondo uma conexão da essência humana com a ordem cósmica. As lendas
caracterizam-se por conter um sentido didático para explicar e/ou historiar fatos ou vidas que
existiram ou não, ou seja, descrevem eventos reais de pessoas e povos, todavia contendo
elementos irreais normalmente associados a mitos. Estes, por sua vez, relacionam religião e
ritual denotando um caráter mais imaginativo e simbólico de ocorrências fabulosas associadas
as origens de seres e do mundo como um todo. Em geral, os mitos associam ocorrências de
fenômenos naturais, eventos históricos, da vida humana (exemplo: nascimento, casamento,
doença, morte) a histórias e feitos de deuses e seus conflitos, além de supostos intercâmbios
entre deuses e seres humanos. De todo o modo, ambas as descrições (lendas e mitos)
intermedeiam o profano e o sagrado objetivando conectar mundos diferentes.
As narrativas míticas concernentes a origem ou criação do mundo, as denominadas
cosmogonias2, geralmente expressam um politeismo, no qual imaginados seres divinos são
associados as formas e/ou manifestações do reino natural. Neste panorama são categorizadas
duas concepções principais: henoteista, a crença na existência de vários divindades, mas só
uma é venerada porquanto dotada de um poder maior do que as demais; e monoteísta, de
acordo a qual todas as ‘qualidades’ divinas estão concentradas em um ser. Uma característica
observada no legado de diferentes povos aborígenes (africano, borong, indígena, entre outros).

1 Publius Vergilius Maro, mais conhecido por Virgílio, foi um poeta romano (séc.I a.C.).
2 Cosmogonia deriva de cosmos quer dizer ‘mundo ordenado e organizado’. A palavra gonia origina-se do verbo grego gennao (‘engendrar, gerar,
fazer nascer e crescer’) e do substantivo genos ("nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie"). Logo, cosmogonia é definida como a narrativa
sobre o nascimento e a organização do mundo a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
2

A noção de realidade comungada em sociedades tradicionais invariavelmente associa o


mundo de nossa percepção a um reino superior, etéreo. Algumas culturas possuem concepções
mais argumentativas, expressando uma relação harmoniosa entre o cenário próximo e o
distante, como descrito no Taoismo chinês, no Budismo da Índia e até mesmo nas visões dos
filósofos da Grécia antiga, onde Pitágoras de Samos se referia a uma ‘harmonia celeste’
existente na configuração dos planetas atribuindo-a a uma ‘inteligência abstrata’. Essa visão
de transcendência que influenciou Platão, e tempos depois, na era moderna, o filósofo
holandês Baruch Spinoza, também foi assimilada por Albert Einstein na sua pretensa teoria
unificadora de fôrças ou ‘teoria do tudo’ imaginando associar a ‘inteligência da natureza’.
Em suma, neste texto reportamos a mitos cuja influência pode ser avaliada através das
soluções criativas para as ‘grandes questões’, as quais contemplam emoção e cognição
inerentes a existência da espécie humana e de toda a fenomenologia universal. Embora os
relatos míticos expressem imaginações e conjeturas várias de povos de regiões
geograficamente distantes, em sua maioria contém elementos comuns que denotam, com
linguagem própria, a interação de um povo com o ambiente próximo. A seguir, apresentamos,
suscitamente, alguns mitos cosmogônicos – aqueles sobre a origem do mundo e da
humanidade – dotados de um viés filosófico e até mesmo religioso, frutos da inacessibilidade a
uma plena compreensão da dimensão cósmica.

Fig.1 - D'où venons-nous? Que sommes-nous? Où allons-nous? De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? - Paul Gauguin, 1897
Fig. 2. – llustrando a elaboração de um mito.

I. 2 – Mesopotâmia

A Mesopotâmia3 - onde surgiu a primeira civilização, supostamente por volta do ano


10.000 a.C. – é uma região de interesse histórico, geográfico e político mundial, certamente
por representar o encontro entre duas partes distintas do hemisfério norte. Situada entre os
rios Tigre e Eufrates (parte da conhecida por ‘Crescente Fértil’) a mesma foi habitada ao sul
pelos sumérios (antigo povo oriundo do planalto persa), amorritas e vários outros povos que
fundaram cidade-estados importantes como Uruk, Ur, Quish, Nippur, Lagash, Eridu e Babilônia;
na parte central viveram os acádios (oriundos do deserto sírio); e, ao norte foi ocupado por
povos guerreiros como assírios, caldeus e medas edificadores das cidades de Assur e Nínive.
Deve-se aos sumérios a primeira escrita que se conhece – cuneiforme- gravada em
pequenas tábuas (plaquetas) de argila usadas para registrar os acontecimentos mais
importantes. Numa das plaquetas traz os poemas épicos, O Épico de Gilgamesh, onde consta:
“E depois veio o dilúvio e após o dilúvio a realeza tornou a descer mais uma vez do céu”,
descrevendo ainda que, no reino, todos os seres humanos deviam servir aos deuses. Aqui

3 - Nome grego que significa "entre rios" (meso - pótamos).


3

pode-se observar o propósito comum das pessoas visando dominar a natureza para se
protejerem ou até aumentar o seu poder.
Uma outra plaqueta traz o poema Enuma Elis, escrito em língua acádia por volta de
2.000 a.C., descrevendo a criação do mundo por obra de dois deuses primordiais: um
masculino e outro feminino:
“Não havia céu nem terra, nem sequer um pântano lamacento. Somente Apsu, as águas
doces, e Ti’amat, as águas salgadas. Com o tempo, formou-se uma onda de lodo que,
após gerar os seres Lahmu e Lahamu, se estendeu como um anel gigante traçando o
horizonte. A metade superior deste anel era o deus Anshar, e a metade inferior, Kishar.
De Anshar nasceu Anu, o Céu e Ea, deus da sabedoria. De Kishar nasceu Nudimmut, a
Terra.”

Uma outra versão, conta:


"Quando, no Alto, o Céu – Anshar - ainda não Tinha Sido Nomeado,
e Embaixo a Terra – Kishar - ainda não Tinha Nome,
Nada Existia Senão uma Mistura
das Águas Doces Subterrâneas - Apsu -,
com o Oceano Primordial – Mummu –Ti’amat.”

I. 3 – Egito

O Egito4 antigo legou um expressivo legado histórico-filosófico-científico sobre a


trajetória do ser humano. De acordo com os registros conhecidos, há mais de 4.000 anos os
egípcios viviam numa sociedade organizada em dois reinos: um ao norte e outro ao sul. Por
volta do século IV a.C. foram unificados por Horus Narmer (Mernar), considerado o fundador do
Egito faraônico que deu início a esta dinastia.
Um mito cultuado em Heliópolis, a principal cidade do reino sul, consta que o universo
surgiu pelo ato de vontade divina a partir do nada, da escuridão, do caos original e da água5.
Uma das versões relata:
“No início, não havia Céu nem Terra. Somente um líquido cósmico infinito ou água
primeva: um caos de bolhas e espuma de água contendo os germes de todas as coisas
numa densa escuridão. Isto era Nun (Nu ou Ny), o espírito primogênito criador,
indefindo. Foi em Nun que tudo começou ao emergir da escuridão numa flor de lótus.
Esta flor, ao abrir-se, libertou duas manifestações da sua divindade: Rá, o nome do deus
sol do meio dia, iluminando tudo o que existe e Atum, considerado o Sol espiritual do
mundo, cheio de mistérios e senhor do universo. Também conhecido por Atum-Rá que
‘produziu-se’ a si mesmo sendo, deste modo, ‘incriado’, esse deus criou o mundo e o
mantém vivo com a chama ardente do seu calor solar. Rá teve dois filhos: SHU, o deus
da atmosfera (das estrelas, calor, luz e perfeição) e TEFNUT ou TEFNET, o deus que
pesonifica a umidade, as nuvens, e ainda simboliza generosidade e dádiva. Ele geraram
GHEB, a Terra e NUT, o Céu”.

4 Os próprios egípcios chamavam seu país de km.t (pronuncia-se khemi), ‘terra negra’, por causa da cor do solo. O nome Egito é a forma em grego
para Aigyptos, que deriva do egípcio het-ka-ptah, ‘casa de Ptah’, um dos nomes que denominam a cidade de Mênfis.
5 Existem ainda referências ao deus Amon cultuado pelo povo de Karnak (ou Ipet-sut). O nome Amon foi registrado no idioma egípcio como Imn,
que significa ‘oculto’.
4

Fig. 3 – O Deus Primeiro, Atum, criou a si mesmo das aguas de Nun. Depois é foi associado aos deuses
Amon e Rá
Fig. 4 - Na imagem SHU eleva a sua filha NUT, a deusa do Céu, acima do corpo deitado de seu filho GHEB,
a Terra. Toda noite NUT angloba o Sol e na manhã seguinte devolve à luz. .

I. 4 – Grécia

Os primórdios da civilização grega são objetos dos poemas épicos Ilíada e Odisséia,
escritos em hexametria por Homero, além do poema Teogonia (‘o nascimento dos deuses’) do
seu contemporâneo Hesíodo. Tais descrições, provavelmente datados do século VIII a.C.,
contemplam desde a origem do mundo até feitos heroicos, invocando um panorama cósmico
para os processos e as transformações vivenciadas pelo ser humano.
Em Odisséia, Homero relata a aventura do herói Ulisses em seu retorno a ilha de Ítaca,
após combater na Guerra de Tróia, e a vingança sobre os pretendentes de sua mulher.
Enquanto vagava, por mais de 20 anos no mares da Grécia, Ulisses se deparou com monstros,
sereias, feiticeiros e até deuses que assumiam a forma humana.
Teogonia é um poema fundacional que explica a origem do mundo pela narrativa da
genealogia dos deuses. Nele, Hesíodo discorre sobre os deuses mitológicos e apresenta
simbolicamente a criação do mundo intermediando mitos e concepções filosóficas, onde o
mundo surgiu do Kaos, o vazio primordial, a Noite (Nyx) que precedeu tudo.
“Antes de tudo existiu Khaos [Caos],
depois Gaia [Terra] de amplo seio, sede sempre firme de todas as coisas,
e o Tártaro enevoado nas profundezas da Terra espaçosa,
e depois Eros (Desejo), o mais belo dos deuses imortais,
que rompe todas as forças e que doma a inteligência
e a sabedoria no peito de todos os deuses e de todos os homens.”
O mito continua:
“Deuses desconhecidos criaram os rios os mares e as baias, montanhas e vales,
distribuíram arvores e fonte. Pássaros e peixes tomaram conta dos mares, ar e terra.
Mas um animal de honra maior teria de ser criado para alojar a alma, e assim surgiu o
homem”.
5

I. 5 - Bíblico

Gênesis, o primeiro livro do Antigo Testamento, relata a origem do mundo e da


humanidade em termos semelhantes àqueles dos mesopotâmios:
"No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra sem forma estava vazia e haviam
trevas sobre a face do abismo; o espírito de Deus pairava por sobre as águas. Deus disse:
'Haja luz' e houve luz. E Deus viu que a luz era boa; e fez a separação entre a luz e as
trevas. Deus chamou à luz 'dia' e às trevas 'noite'. Houve uma tarde e uma manhã:
primeiro dia. (...)

Deus disse:

'Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da Terra,
diante do firmamento do Céu' e assim se fez. (...) Deus criou o homem à sua imagem, à
imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou."

De acordo com esta projeção cósmica, Deus criou o espaço ao separar as águas e então
dividiu o mundo em três partes: o firmamento, a terra plana e o subterrâneo: o firmamento
ficou sobre as águas, deixando espaço para a terra seca onde animais, plantas e as pessoas
encontrariam morada. Entretanto, o firmamento podia ‘rachar’ (como no dilúvio na história de
Noé, em que os portais do firmamento abriram-se inundando a terra), o que seria uma
catástrofe cósmica, uma ameaça para recriar o caos primordial.

I. 6 – Índia
A tradição indiana, cuja base cultural advém da teo-filosofia Hindu, possui uma rica
cosmogonia reunida numa coletânea de mitos relacionados a um majestoso panteão de
deuses. Nos textos sagrados conhecidos como Vedas (em sânscrito, língua originária do
Oriente Médio) encontra-se uma coletânea de hinos, Rig Veda, com relatos cosmogônicos6. Um
deles, o hino ‘Nasadasiyasukta’, refere-se ao ciclo temporal, sugerindo a ideia de expansão e
contração do universo.
“Não havia nem deuses nem homens. Não existia mais nada, mas Brahman que
derivou do calor.
Do potencial gérmen desenvolveu-se o desejo. Este mesmo desejo era a primeira
semente do conhecimento.”
O mito ainda descreve,
“Brahman, o grande espírito, o princípio supremo e onipresente da realidade 24, precedeu
o universo: derivando do próprio ser, ele criou o universo como Brahma ao sonhá-lo
para depois destruí-lo e recriá-lo, estabelecendo um processo infindável conhecido
como ‘o dia e a noite de Brahma’.

O Imanifestado Brahman, o grande espírito, o Absoluto, criou o mundo em que vivemos


na sua manifestação Brahma, a partir de um ovo dourado que se dividiu em dois: no da casca
superior surgiu o céu (ar) e no da casca inferior apareceram os mares (água) e as montanhas
(terra). No ovo estão as sementes de todas as formas de vida, antes da inundação.

6 O Rig Veda consiste de 1028 hinos abordando vários aspectos da expressão humana: música, oração, encantos, formulas mágicas, etc. O termo Rig
tem sua origem em Rik, que significa ‘ordenar’, ‘organizar’.
6

Diferente da maioria deles, o mito hindu da criação é sempre uma recriação, i.e., o
cosmos, cíclico. Esse processo é regido pela trimurti (em sânscrito, ‘três formas’)
simbolizando as manifestações de Brahman, a divindade suprema :Brahma, Vishnu e Shiva:
Brahma é o criador, aquele que nunca se vê e está dentro do seio de Vishnu, que é o deus da
coesão, o que faz durar o mundo, e Shiva com sua dança cósmica prepara e acelera o fim
inevitável do mundo. Portanto, a criação é representada pelo deus Brahma, a manutenção pelo
deus Vishnu e a destruição por Shiva, ocorrendo uma nova criação e assim sucessivamente.
Trata-se de uma concepção interessante por considerar a criação do mundo intermitente:
quando Shiva destrói o mundo com o fogo, uma imensa chuva (água) cobre o cosmos depois,
inundando-o num oceano silencioso. Tem-se assim dois momentos cruciais: o Dia e a Noite de
Brahma. No Dia de Brahma era criado o universo e depois, num determinado instante, o
universo era destruído por Shiva e, então, começa a Noite de Brahma.

Fig 5 – Representação da Trimurti: a divindade suprema Brahman é cultuada como Brahma, Vishnu e
Shiva
Fig. 6 – SHIVA , (como RAJANATA , ‘Rei dos dançarinos’,) dança dentro de um Círculo de Fogo, Símbolo da
Renovação Eterno Movimento do Universo que foi Impulsionado pelo Ritmo do Tambor e da Dança.

I.7 – China

A cosmogonia chinesa também guarda uma relação mais próxima entre o ser humano e
o universo. A mesma é baseada em uma das mais importantes escolas de pensamento chinês,
o Taoísmo, uma filosofia que ensina a comungar a dualidade e o equilíbrio entre dois princípios
(ou forças) universais opostas e complementares: yin e yang. Yin compreende tudo o que é
escuro, úmido, mole, frio e feminino; enquanto yang consiste em tudo o que é luminoso, sêco,
quente e masculino. Eles governam o universo inferindo uma flutuação cíclica entre essas
qualidades em todas as expressões cósmicas. Tudo o que existe é feito de yin e yang de modo
que a harmonia é alcançada quando os dois princípios são mantidos em equilíbrio.

Um dos mitos cosmogônicos mais conhecidos desta tradição atribui a origem de tudo a
P’an-Ku, o primeiro ser consciente e criador, que gerou a si próprio a partir do yin e do yang:
“No início do tempo havia o caos escuro no universo. Nessa escuridão, que tomou a
forma de um ovo, surgiu P’an Ku, a primeira criatura viva. P’an Ku dormiu em segurança
no ovo. Depois de muitos anos, quando ele cresceu até tornar-se um gigante, P’an Ku
acordou e, espreguiçando-se, partiu a casca do ovo. As partes mais leves (puras) do ovo
elevaram-se para formar os Céus e as partes mais pesadas (impuras) afundaram
tornando-se a terra. Esse foi o início das forças Yin e Yang. O elemento feminino Yin é
associado ao frio e a escuridão, a Lua, a terra e o elemento masculino Yang é associado
ao calor, a Luz”.

I.8 – Tradição Yorubá


7

Os mitos de criação dos povos africanos são mais do que tentativas ingênuas para
explicar a fenomenologia natural. No Brasil, a presença desta cultura abrange uma variedade
de características próprias das etnias, preservadas por aqueles que foram escravizados e
trazidos para cá. Desses, dois grupos são majoritários: o nominado bantu (oriundo dos atuais
Angola, Congo, Gabão, Zaire e Moçambique) e o grupo sudanês (no qual pertence os sub-
grupos yorubá e o ewê-fon/jeje7) originários do Golfo de Guiné e dos atuais territórios da
Nigéria, Gana, Togo e Benin.
A rica mitologia destes grupos compreende uma teo-filosofia praticada nos rituais do
candomblé e da umbanda, entre outras vertentes oriundas desta tradição. Aqui apresentamos
uma versão cosmogônica yorubá evidenciando uma relação fluída entre espiritualidade e o
mundo natural.
“No início, quando nada existia, reinava Olorum (Olodumare)8, o senhor do universo, em
torno da qual viviam as divindades (os orixás ). O mundo, representado por uma cabaça,
foi dividido em duas metades: a de cima, sendo o céu (Orum) o reino sagrado dos
orixás9 governado por Orisa’nla (Orixanilá, Obatalá ou Oxalá), a de baixo, a Terra (Aiyê),
a morada de Odwdwa (também o espaço dos seres vivos). Da união dessas divindades
foram gerados os dois filhos: Aganju, a terra firme e Iemanjá, as águas dos oceanos.
Então, Orisa’nla fez surgir um grande dendezeiro e, assim, todos os outros orixás
desceram à terra firme, onde cada um escolheu uma parte do mundo que lhe agradava,
passando a governá-la.”

Antes de tudo, só existiam as divindades. Orisa’nla é o concessor da vida, aquele que


dispõe por ter criado os seres humanos. Odwdwa é o criador da Ilê Ifé, a primeira cidade para
os yorubás. De acordo com o mito, Orisa’nla foi a divindade escolhida por Olorum para criar
terra firme das águas primordiais e povoar a terra com seres humanos. O mundo físico que
vivemos surgiu de uma cabaça que continha tudo: terra, água, atmosfera,....

Fig. 7 - Figuração mostrando deuses da natureza (Orixás na tradição yorubá, Inquices na tradição Angola e Voduns na
linha Jêje) formando um dos panteões da Africa subssariana o qual, para muitos estudiosos, influenciaram a mitologia
de culturas mediterrâneas.

I. 9 – Tradição Guarani

Semelhante aos povos africanos, o nativo do continente americano preserva uma


sabedoria e um conhecimento singular advindos da sua íntima relação com o reino natural.
Para os indígenas brasileiros o universo foi criado e é dirigido por divindades anciãs
(‘Nanderus’ para o povo Guarani), ancestrais do ser humano. Em cada nação/clã essas

7 O termo jeje ou dje dje deriva do yorubá ajeji que significa ‘estrangeiro’, ‘estranho’, como este povo denominavam os vizinhos.
8 Olorum ou Olorun significa ‘O Primeiro Som ou o Grande Som’, pois Run quer dizer ‘som’. Olorum equila ao deus supremo de outras culturas.
9 Como são denominados as entidades do panteão iorubá/keto, ligadas as espressões da natureza física. No panteão banto são chamados de inquices e
no jeje (Ewe Fon) de voduns.
8

divindades têm um nome que expressa suas características nas formas que o nativo se
relaciona com o reino natural.
Para exemplificar a cosmogonia nativa, apresentamos uma descrição do povo Guarani
segundo a qual o mundo que percebemos (o mundo das aparências), está associado a uma
‘realidade’ subjacente:
Nhande Ru Pa-Pa Tenondé / guete rã ombo-jera / pytu yma gui
“Nosso Pai Primeiro / criou-se por si mesmo / na Vazia Noite Iniciada”.

“Nosso Pai, o Grande Mistério, o primeiro, / antes de haver-se criado, /no curso de
sua evolução, / sua futura morada,/ sustenta-se no Vazio/ Antes que existisse
Sol /ele existia pelo reflexo de seu próprio coração/ e fazia-se servir de Sol dentro
de sua própria divindade”.

Neste mito, o mundo surgiu do vazio, da escuridão pela auto-geração do ser supremo,
que criou o mundo e tudo mais que existe nele.
Como se nota em todas as cosmogonias tradicionais, a referência ao sagrado é parte da
estrutura da mitologia e da consciência humana, o que para esses povos evidencia a expressão
mais evidente da nossa relação com o sagrado. De fato, vivemos a perspectiva de encontrar
um caminho/conexão com o sagrado em busca de padrões e semelhanças que revelem um
pouco mais sobre os mistérios da ‘criação’, formação humana e da natureza, entre outros.
Neste contexto, o mito de criação dos indígenas Dessana do Alto Xingu seria exemplo:
“A princípio não havia nada e as trevas cobriam tudo. Uma mulher, Yebá bëló
se fez a si mesma a partir de seis coisas invisíveis: bancos, suportes de
panela, cuias, cuias de ipadu (coca), pés de maniva (muda de mandioca) e
cigarros. Na sua morada de quartzo, enquanto mascava ipadu e fumava
cigarro, começou a pensar em como deveria ser feito o mundo. Seu
pensamento começou a tomar forma de uma esfera, culminando com uma
torre. A esfera incorporou a escuridão. Ainda não havia luz, a não ser no
compartimento onde estava a mulher, que era todo branco, de quartzo.
Depois criou cinco trovões imortais, e deu a cada um deles um
compartimento da esfera. Na extremidade da torre ficava um morcego de
asas enormes. Esses compartimentos tornaram-se casas, e só neles havia luz,
como no compartimento de Yebá bëló. Esta encarregou os trovões de fazerem
o mundo, criarem a luz, os rios e a futura humanidade.

DE COSMOVISÕES A COSMOLOGIAS: A Astronomia Antiga

Em todas as sociedades tradicionais era natural que o indivíduo almejasse ‘situar-se’


perante a misteriosa imensidão universal, e assim o céu tornou-se referência para a sua
orientação e conscientização que a formular a Astrologia 10. Era uma prática comum entre esses
povos associar corpos celestes a imaginados deuses acreditando serem esses, os seus
controladores. Com o tempo, pode-se realizar medições do movimento de alguns corpos
celestes dando origem a uma Astronomia primária. Tratada como uma proto-ciência, esta
vertente baseava-se em conjecturas sobre a natureza do universo contemplando ainda práticas
da Astrologia que designam padrões regulares dos movimentos de objetos celestiais visíveis,

10 Etimologicamente significa "lei das estrelas" com origem grego: (άστρο + νόμος) povos que acreditavam existir um ensinamento vindo das
estrelas.
9

especialmente o Sol, a Lua, estrelas, e os planetas vistos à olho nu. Esta ciência é a
denominada Arqueoastronomia.
Os registros astronômicos mais antigos são de aproximadamente 3.000 a.C. e se devem
a povos como chineses, mesopotâmios, egípcios os quais estudaram os movimentos dos astros
com objetivos práticos, e.g., medir a passagem do tempo (calendário), prever o melhor período
para o plantio e colheita, além de fazer previsões (Astrologia). Em 2005, um membro da
Academia Chinesa de Ciências Sociais anunciou que foi descoberto, na província de Shanxi, um
observatório astronômico supostamente construído há 4.100 anos, no qual foram marcados
diferentes lugares sinalizando onde o Sol nascia e se punha ao longo do ano.
Uma das cosmogonias chinesas menciona a existência de um vento ou ‘vapor celestial’
responsável pela disposição e sustentação das estrelas fixas no céu. Esse vento ainda
provocaria um arrastamento viscoso da Terra determinado pelo movimento para trás do Sol, da
Lua, dos cinco planetas (então) visíveis e das estrelas.
Na Mesopotâmia antiga, os sacerdotes-astrônomos acreditavam que os corpos celestes
tinham um significado religioso e por isso os representavam como divindades vivas
movimentando no céu estático. Como já referimos, as tentativas para estabelecer uma relação
com esse mundo superior (que resultou na Astrologia) envolveram observações e algumas
inferências empíricas, tornando-se as bases da Astronomia. Este feito é mostrado nas dezenas
de milhares de plaquetas (tábuas de argila) com escritas cuneiformes onde foram registradas o
vasto conhecimento sobre posições e movimentos de objetos celestiais, incluindo informações
preciosas sobre o Sistema Solar. Isso foi obtido após a construção de observatórios que
possibilitaram calcular o ciclo lunar com uma diferença somente 0,4 segundos dos cálculos
atuais (!).

Os sacerdotes egípcios, por sua vez, acalentavam uma referência especial a estrela
Sirius (chamavam de Sóthis) atribuindo-lhe possuir o destino de nosso planeta. Eles
acreditavam que Sirius era o destino das almas dos faraós e dos sacerdotes (após a morte)
para ‘receberem instruções’ e ganhar conhecimento. (Não por acaso, os Templos da Deusa
Hathor, ou Isis Hator foram erguidos com orientação para a estrela Sirius). Talvez por isso seja
a primeira estrela registrada (às vezes é representada por um cão) com absoluta certeza nos
hieróglifos encontrados nos monumentos e nos templos situados ao longo do Rio Nilo.
Vale destacar ainda os conteudos orais dos Dogons (Duguns), um povo misterioso que
saiu do Egito e hoje vive em Mali, África Ocidental, que alegam possuirem um inusitado
conhecimento que remonta séculos. Eles relatam conhecerem há séculos a existência do
planeta Saturno e um de seus anéis, Júpiter com quatro satélites, entre outros eventos.
Todavia, o mais intrigante era a menção de que a estrela Sirius tinha uma companheira, Sirius
B, que só foi prevista pelo astrônomo e matemático alemão F. W. Bessel em 1844 e observada
por A. G. Clark em 1862.
10

Fig.8 - A divindade NUT personificada como a Via Lactea;


Fig. 9 – Alinhamento do Cinturão de Órion: Mintaka, Alnilam, Alnitak ( as Três Marias) com as pirâmides de Giza:
ocorre uma vez a cada 2.737 anos

Figs. 10 e 11 - Sacerdote Dogon conta a história da visita de seres habitantes de um planeta orbitando a estrela Sirius
C (ainda não detectada).
Fig. 12 – Exemplar das tabuletas de argila criadas pelos sumérios para registrar o conhecimento dos astros em escrita
cuneiforme.

A Grécia antiga experienciou um período marcante na história do conhecimento (entre


600 e 400 a.C.) com os esforços dos pensadores para compreender a natureza do cosmos. Os
gregos, a exemplo dos egípcios e dos chineses, ‘dividiam’ as estrelas em grupos aparentes
(‘constelações’). Deve-se a Thales de Mileto (séc. V a.C.) a introdução dos fundamentos da
Geometria e da Astronomia na cultura grega, levados para o Egito, onde estudou. Este
pensador é conhecido, entre outros feitos, por prever a ocorrência do eclipse solar do dia 28 de
maio de 585 a.C., (quando “o dia se tornou noite”) a partir de registros compilados durante 150
anos por sacerdotes astrônomos da Mesopotâmia e do Egito.
Uma das questões inquietantes naquela época era saber qual a forma da Terra.
Enquanto Thales defendia que a Terra era como um disco plano em uma vasta extensão de
águas, seu contemporâneo, Pitágoras de Samos, partidário da ideia da esfericidade da Terra 11,
da Lua e de outros corpos celestes, achava que todos esses corpos eram transportados por
esferas separadas daquelas que carregavam as estrelas. Com o legado de povos mais antigos
foi possível elaborar o conceito de ‘Esfera Celeste’, uma imaginada esfera de material cristalino
incrustada de estrelas, estando a Terra posicionada no centro. (Acredita-se que tal esfera
girava em torno de um eixo passando pela Terra).
Seguidor das ideias pitagóricas, Filolau de Crotona foi o primeiro pensador a atribuir
movimento à Terra. Para ele, no centro do universo havia um fogo central (para os pitagóricos o
fogo era o elemento mais puro) e que a Terra era apenas um de seus astros. Entre o fogo
central e a Terra existia um outro planeta, invisível, que Filolau chamou de ‘contraterra’ ou
‘antiterra’. Quer dizer, além dos nove corpos celestes então conhecidos (Sol, Mercúrio, Vênus,
Terra, Lua, Marte, Júpiter, Saturno e Urano) havia a ‘antiterra’ como décimo corpo e todos se
moviam em órbitas circulares em torno do fogo central. Neste cenário a Terra, ao fazer um
movimento circular em volta do fogo central, dava origem ao dia e à noite.

11 A ideia da esfericidade foi depois resgatada por Aristóteles de Estagira, segundo o qual a Terra era a mesma forma do universo, finito.
11

No século II a.C., Hiparco de Nicéia construiu um observatório na ilha de Rhodes, onde


compilou um catálogo com as posições e as magnitudes (específica o brilho) de 850 estrelas,
descobriu a precessão dos equinócios - o movimento cíclico ao longo da direção oeste causado
pela ação do Sol e da Lua sobre a dilatação equatorial da Terra tendo um período de cerca de
26 000 anos.
Tempo depois, precisamente no século XIII, Afonso X, rei de Castela e Leão, ficou
conhecido como ‘Sábio’ porque apoiou o estudo de Astronomia na Escola de Tradutores de
Toledo (Scriptorium), onde peritos traduziram para latim e castelhano obras clássicas da
Grécia, a Bíblia, o Alcorão, o Talmude, textos da Cabala, entre outros documentos árabes e
hebreus. Uma das obras mais conhecidas daquela época, as ‘Tábuas Afonsinas,’ contêm
tabelas astronômicas com as posições exatas e os movimentos dos corpos celestes então
conhecidos (elas foram utilizadas em toda a Europa até ao Renascimento).
Na Itália do século XV, o aventureiro veneziano Niccolà Da Conti obteve um mapa junto
dos chineses e o presenteou ao monge e cartógrafo veneziano Fra Mauro, a partir do qual,
junto com o navegador Andrea Bianco, elaborou um mapa-mundi com grande precisão,
incluindo comentários que refletiam o conhecimento geográfico da época. [Como ele trabalhou
para o rei de Portugal, acredita-se que tal mapa tenha sido usado por Pedro Álvares Cabral].
Na Europa, as evidências físicas mais conhecidas no campo da Astronomia são os
megalitos de Stonehenge, localizado em Amesbury, sul da Inglaterra, provavelmente
construídos entre 1900 e 1400 a.C.. Alguns historiadores defendem que esse local tinha sido
usado para realizar práticas religiosas, além de servir para previsões de eclipses e cálculos
solares. Isto porque a disposição estrutural de algumas pedras (cada tem 26 toneladas)
revelam um alinhamento com o nascer do Sol no início do verão e do inverno, além do que a
avenida principal, que parte do centro do monumento, aponta para o local no horizonte em que
o Sol nasce no dia mais longo do verão (solstício).

Fig. 13 – Stonehenge: (a) sítio arqueológico pré-histórico; (b) o que era (presumido)

No Novo Mundo, os Maia2, um povo milenar que vivia na península de Yucatán e


arredores12 (região hoje correspondente a Guatemala, El Salvador, Belize e Honduras e parte do
México) eram dedicados observadores dos movimentos do Sol, da Lua e das estrelas por
acreditarem que estavam conectados ao cosmos. Na visão deste povo, os planetas eram
regidos pelos deuses (como observados em outras tradições) e tudo em seu mundo se moviam

12 Acredita-se que a primeira grande civilização americana tenha sido os Olmeca (ao sul da hoje cidade de Vera Cruz) e Tabasco, entre 1500 a.C. a
300 d.C. Após esse período o povo Maia dominou até 900 d.C. e então o povo Toltec vingou na região central do atual México até a invasão dos
espanhois.
12

em ciclos que dependiam do Sol, da Lua e dos planetas, especialmente de Vênus, a ‘estrela da
manhã’. Entre os resultados desta dedicação, os registros dos trânsitos de Vênus possibilitaram
elaborar seus calendários. Aqui vale observar a veneração dos maia para com a Via Láctea
(para eles, Wakah Chan, que significa a ‘Serpente Erecta’ ou a ‘Serpente Branca sinuosa’
indicando o caminho no céu para o centro do mundo) como a ‘Árvore do Mundo’ representada
por uma majestosa árvore florida, chamada de ceiba, tão alta que se eleva até o lugar ‘de onde
a vida veio’.
Na região andina, os Inca9 desenvolveram uma concepção celeste similar a dos Maia.
Senhores de uma civilização tão avançada que surpreendeu os invasores espanhóis quando lá
chegaram no século XVI, os Inca desfrutavam de uma organização social e política permeada
por um espírito comunitário. Eram adoradores do Sol, a ponto de considerarem o seu
imperador com o ‘filho do Sol’, tratando-o como um semideus. Habitantes de uma região
propícia a observação dos corpos celestes, este povo tinha um notável conhecimento do céu,
descreviam a Via Lactea (chamam de Mayu, que significa ‘o rio celestial’) fluindo no céu até
encontrar no extremo do universo rio Urubamba (o rio que atravessa as terras incas) nas águas
do grande mar cósmico que circunda o nosso planeta. Para eles, a Via Lactea tem como fonte
esse mar cósmico, do qual retira água levando para o céu e, depois cai sobre a Terra na forma
de chuva, repondo assim as águas do rio Urubamba. Os registros mais antigos desta civilização
(até agora encontrado) mencionam ainda o observatório de Chankillo, no Peru, construido
entre 200 e 300 a.C. Vale acrescentar que os incas eram exímios construtores (de estradas e
edificações) e conheciam a metalurgia (fundiam peças de cobre, bronze, prata e ouro).

Fig. 14 - Observatório Caracol no qual o Maias calcularam com notável precisão os ciclos das estações e do Sol.
Fig. 15 - O alinhamento galáctico de 21.12.2012, segundo a previsão Maia: O Alinhamento do SOL no Solstício de
Inverno com o Centro da Via Láctea, no Equador galáctico (Linha Análoga ao Equador Terrestre, que Divide a nossa
Galáxia em duas partes). Acontece uma vez a cada 26 000 anos e Coincide com o Fim do Calendário de Conta Longa
dos MAIAS.

Fig. 15 - O mundo imaginado pelos Inca: HANAN PACHA – Mundo Superior, o Céu- Viviam os Deuses: SOL,
LUA, Estrelas, Arco-Iris, Raios; KAY PACHA – Mundo Médio, a Superfície Terrestre - Morada dos Seres
13

Humanos, Animais, Plantas, Objetos; UKHU PACHA – Mundo Inferior, o Subterrâneo, dos Desencarnados. -
Cenário Original dos Primeiros Humanos e de alguns Animais e Sementes.

Uma Visão do Conhecer/Saber da Astronomia Indígena Brasileira

O censo do IBGE de 2010 registrou 305 etnias indígenas 13 no Brasil preservando seus
costumes e suas 274 linguas, oriundas de quatro troncos básicos: Tupy, Karib, Jê e Aruak. De
um total (presumido) de 3.000.000 de indivíduos em 1500, foram contados 817.963 indígenas,
sendo 502.783 em matas e/ou florestas e 315.180 na zona urbana. Felizmente, aos poucos, o
expressivo legado de povos indígenas desperta a atenção de acadêmicos reconhecendo o
mérito do conhecimento nativo para lidar com a educação ambiental, saúde, arte.
Senhores de uma das mais ricas tradições, os indígenas mantêm uma relação de
respeito e observação das variadas formas e expressões da natureza. Graças a essa
‘aproximação’ estes nativos detêm um conhecimento singular sobre o comportamento e a
preservação das florestas, o que os tornam genuinos especialistas ambientais. Podemos até
dizer que essa singularidade é respaldada pela miríade de entidades imaginadas (‘divindades’),
frutos de projeções intuitivas, que sendo criações do reino psíquico em um mundo sutil,
irracional, foram geradas num processo de doutrinação externa.
O mundo indígena contempla tanto o racional quanto o afetivo. Não visa o elemento
fundamental do qual imagina-se tudo veio a ser feito, como na ciência ocidental, e sim trata
conjuntamente dos aspectos pessoal e coletivo, do realizar e do cuidar, da tecnologia e do
espírito, do sonho e da visão, da Terra e do cosmos, sempre direcionada para a condição do
equilíbrio. Um dos exemplos significativos deste modo de pensar (como uma filosofia) é a
herança do Guarani (principal elemento étnico do povo paraguaio e atualmente distribuídos
pelo norte da Argentina, Paraguai e sudoeste do Brasil), uma das mais ricas sabedorias
tradicionais do planeta até a invasão dos europeus Para este povo, o céu representa o mundo
espiritual, a raiz de todos nós, sendo a terra a contrapartida material do espírito, que é
chamado de Arandu Arakuaa, -‘a sabedoria do movimento do céu’. De acordo com essa
‘ciência sagrada’, o céu (ou o cosmos) é referido como a fonte primordial do universo enquanto
a terra é a própria materialização da expressão de todos os espíritos.
Existem muitos relatos associados a cosmogonia indígena. Um deles se refer que, no
início, todos os seres humanos conversavam e viam seres-espiritos da natureza, e os espíritos
de seus antepassados. O indígena-escritor Kaka Wera Jecupé oferece um exemplo desta
capacidade transcendental: “um pajé yanomami, da Amazônia, sonhou que a Terra tinha
buracos no céu, produzidos pela fumaça da civilização, e que devido a esses buracos o céu
poderia desabar. A civilização não quis ouvir o pajé, mas tempos depois a própria ciência
civilizada chamou esses buracos de ‘rompimento da camada de ozônio da Terra’, e se preocupa
até hoje em adquirir meios de recompor a tal camada, que provoca desarmonia e caos no
mundo.”[JECUPÉ, 1998]. Com o passar do tempo, esses mundos se distanciaram tal que a
relação com os seres da natureza e o espírito somente puderam continuar pelo caminho do

13 O termo ‘indígena’ identifica genuinamente este povo nativo brasileiro. A popular designação ‘índio’ era usado pelos indianos para ‘seres animais
semelhantes a gente’, ou seja, um termo pejorativo.
14

sonho. Todavia, somente algumas pessoas - xamãs e pajés - possuem a sensibilidade


necessária para atuar como uma ponte entre esses mundos.
No Brasil, o físico e astrônomo Germano Bruno Affonso é um dos poucos cientistas que
valoriza o conhecimento indígena a partir de fundamentos da ciência. Dedicado estudioso do
‘saber indígena’, ele menciona um relato dos Tupinambá: “a Terra nada mais é do que um
reflexo do céu. Tudo que há aqui, tem de ter estado lá. No céu há necessariamente mais coisas
que na Terra”. É possível considerar o alcance desta afirmação, que se assemelha a algumas
encontradas nos enigmáticos textos alquímicos, o propósito de idealizar a origem de nosso
planeta pressupondo uma misteriosa fonte transcendente.
Os estudos e os registros coletados por Affonso indicam que estes povos identificaram
mais de 100 ‘constelações indígenas’ (‘espirituais’), com as quais eles marcam a passagem do
tempo, as estações do ano, além de serem pontos de orientação. De fato, os indígenas não
enxergam nas estrelas as formas vistas por outros povos (ocidentais). Alguns preferem ligar
estrelas menores ou mesmos os pontos escuros no céu e associam as imagens os fatos do seu
calendário (exemplo, as cheias, a época em que surgem mais predadores ou a fase do plantio).

Fig. 16 – O homem antigo projetava imagens do seu habitat no céu. Assim ‘formava’ suas constelações.
Fog. 17 – ‘O Caminho da Anta’.

Fig. 18 - A Constelação da Ema. Para o Guarani: Guyra Ñadu, e para o Tupinambá: Iandutim
Fig. 19 – A constelação indigena do Homem Velho

As constelações ‘espirituais’ podem representar uma entidade benéfica ou maléfica,


influenciando a vida dos povos indígenas, a depender da sua aparição no céu. Elas são
formadas com as estrelas mais brilhantes do céu. A constelação da Ema, por exemplo,
comumente observada por várias etnias indígenas do Brasil, e que aparece por inteira no céu
ao anoitecer, sinaliza a chegada do inverno (chuvas) para os indígenas do Sul do país, ou da
seca para os habitantes próximos do equador. Na ‘cabeça’ da Ema está o Cruzeiro do Sul, no
‘pescoço’ estão as estrela Alfa e Beta Centauro e no ‘ânus’, a estrela Antares. Também é muito
15

conhecida a constelação do Homem Velho (que os Guarani chamam de Tuya, projeta a figura
humana com pena na cabeça e uma perna cortada) marca a chegada do verão no Sul e das
chuvas no Norte do Brasil, é formada pelas constelações ocidentais Taurus e Orion e ainda
outras três outras constelações indígenas, cujos nomes em Guarani são: Eixu (as Pleiades),
Tapi’i rainhykã14 (as Hyades, incluindo Aldebaran) e Joykexo (O Cinturão de Orion), indica a
chegada do verão, enquanto a constelação do Veado marca o outono e a da Anta, a primavera.
A Via Lactea exerce uma influência considerável para os indígenas brasileiros. Os
Guarani a chamavam de Tapi’i Rapé, (‘o caminho da anta’ ou ‘a morada dos deuses’) e para os
Tupinambá simboliza o ‘caminho da anta’ ou o ‘caminho dos espíritos’.
Ambos povos observaram que a Via Lactea ‘se movimenta durante a noite’, por conta
da rotação da Terra e do seu movimento translacional em torno do Sol, e assim reconheceram
posições regulares de algumas constelações e estrelas, nomenado-as com imagens de figuras
comuns ao seu cotidiano. Os Guarani também perceberam a dinâmica do Sol, da Lua, rios,
vento, fogo, e dos animais, etc., o que os levou a descrição da realidade projetando formas ou
padrões conhecidos sob a ideia de uma relação entre os dois mundos. Entretanto, uma
reverência maior é prestada ao Sol, uma atitude bastante comum em outras culturas antigas.
Enquanto eles louvam o Sol como a fonte de nossa existência, um pai e protetor que deve ser
lembrado em danças, cânticos e mitos, na cosmogonia moderna, o Sol é a origem dos planetas
e o gerador dos processos que determinaram o surgimento da vida na Terra.

BIBLIOGRAFIA:
1. AFONSO, G.B., Mitos e Estações no Céu Tupi-Guarani. Scientific American Brasil (Edição Especial:
Etnoastronomia), v. 14, p. 46-55, 2006.
2. BOTAS, Paulo Cezar Loureiro CARNE DO SAGRADO - EDUN ARA, Rio de Janeiro: Koinonia/ Petrópolis:
Vozes. 1996.
3. CAMPOS, Helio Silva – COSMOVISÕES: Antigas e Contemporâneas – Salvador: EDUFBA, 2015.
4. JECUPÉ, Kaka Werá – TUPÃ TENONDE, A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição
oral Guarani, São Paulo: Editora Fundação Peirópolis, 2001.
5. JECUPÉ, Kaká Werá – A TERRA DOS MIL POVOS, a Histótia indígena do Brasil contada por um índio , São
Paulo: Editora Fundação Peirópolis, 1998.
6. PRANDI, Reginaldo – Herdeiras do Axé, São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 1-50 (Cap I - Deuses Africanos no
Brasil).

14 Significa ‘queixada da anta’.

Você também pode gostar