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‘Tendéncias da pesquisa em educacio: : um enfoque epistemoldgico Desde a década de 1980, a literatura especializada em pes- icativa vern denunciando a redugio tecnicista que inva- Atica da pesquisa educativa em educagao. A partir dessa 1 perguntamo-nos: quais sao as condigdes que facilita invasio? Quais sio as razdes pelas quais se identifica co- Jonismo técnico esse tipo de pritica? Quais os resultados sao ¢ tal reducionismo? Existe possibilidade de superar Hniesmo tempo que se denunciava o reducionismo técnico E08 estudos epistemoldgicas sobre a investigagao educati- #€-consistem esses estudos, quais so suas caracteristicas ibuicdes? Que relagdes tém com a dentincia anterior € discussio da seguinte forma: na primeira parte, apresentamos algumas condigdes que justificaram a génesis do enfogue episte- molégico ¢ descrevemos seus principais riscos; em seguida, apre- sentamos suas estratégias de aplicagio; e, finalmente, sugerimos algumas situagdes préticas em que a abordagem epistemolégica poderd ser itil, Por que as abordagens epistemolégicas Segundo Bachelard (1989), quando o cientista realiza suas investigagées, além de claborar conhecimentos e produzir resul- tados, clabora também uma filosofia. Em toda pratica explicita dos cientistas existe uma filosofia implicita, Quando investiga- mos, ndo somente produzimos um diagnéstico sobre um campo problematico, ou elaboramos respostas organizadas e pertinentes para questées cientificas, mas construimos uma maneira de fazer ciéncia ¢ explicitamos uma teoria do conhecimento ¢ uma filo- sofia. Utilizamos uma forma de relacionar 0 sujeito e 0 objeto do conhecimento ¢ anunciamos uma visto de mundo, isto é, elabo- ramos, de maneira implicita ou oculta, uma epistemologia, uma ‘gnosiologia e expressamos uma ontologia. © estuido que analisa essas articulagdes entre o proceso de investigagao cientifica ¢ os pressupostos filoséficos, nos quais tal proceso se embasa, podemos denominar “epistemologia da pes- quisa” ou, simplesmente, “abordagem epistemoldgica da pesquisa’, como anunciamos no titulo deste capitulo. Como este tipo de ané- lise 6 complexa, pela quantidade de elementos a considerar e pelas 50 diversas formas de organizé-los, vemo-nos obrigados a apresentar, em poucas paginas, algumas das caracteristicas das referidas and- Jises, ndo sem antes indicar as razGes que justificam este tipo de es- tudo e as possiveis contribuigdes para a formagao do investigador. Com a expansio da pesquisa educativa na América Latina - particularmente com a implantagéo dos cursos de pés-graduagio na regido, que incluem como requisitos para o titulo a elabora- co de um trabalho de pesquisa -, produz-se um aumento quan- titativo de pesquisa, e com ele aparece a necessidade urgente de yerificar os elementos qualitativos dessa produgio em expansio quantitativa, Perguntamos, entdo, sobre seus riscos, suas tendén- cias, a validez cientifica de seus resultados, a aplicabilidade de suas conclusées, seus critérios de cientificidade, seus fundamentos etc” Guiados por essa preocupacio, a partir da década de 1980, alguns estudos tém identificado problemas, tais como o “formalis- mo académico”, que alterou as motivagses dos pesquisadores, pois, seu interesse maior néo € produzir novos conhecimentos ¢ sim cumprir os requisitos para a oblengio de titulo e de progressoes, nas carreiras profissionais; de igual maneira surgem 0 “ritualismo ‘metodolégico’, os “modismos tebricos’, o “reducionismo tecnicis- ta e 0 “ecletismo pragmatico”. Todos estes “ismos” sao, possivel- ‘mente, resultantes da pratica superficial de uma pretendida pro- ducao cientifica e/ou da falta da compreensao dos fundamentos epistemolégicos e das implicagSes filoséficas das diversas formas de elaboracao dos conhecimentos e dos diversos paradigmas cien- 7. Vejamm-se estuos de Vielle (1981), Lapati (1981, 1994), Tedesco (1986) e Sinche2. Gamboa (1896). 51 tificos. A forte influéncia dos manuais de pesquisa que “ensinam? técnicas faz aparecer a pesquisa cientifica como o dominio de re- ceitas para a coleta, organizagao, tratamento e apresentagio dos dados, sem informar sobre as especificidades do trabalho cientifi- co quanto as diversas tendéncias da pesquisa, nem sobre os funda mentos epistemoldgicos ¢ filosdficos da pritica cientifica. Por outro lado, a partir da década de 1990, intensifica-se a discusséo sobre os modelos de pesquisa e sobre 0 conflito entre os paradigmas cientificos.* Essa discussio tem se centralizado so- bre os métodos de pesquisa num intento de superar a concepcio técnico-instrumental predominante nos referidos manuais de in- vestigacdo. Novas disciplinas que privilegiam a discussio sobre os fundamentos epistemol6gicos ¢ filoséficos da pesquisa vém subs- tituindo os conteddos sobre “técnicas estatisticas” e de “metodo- logia e de técnicas da investigagao”, Essas novas disciplinas, a jul- gar por seus titulos, j4 indicam outros contetidos, vejamos alguns: “fundamentos tedricos da pesquisa’, “epistemologia da pesquisa educativa’, “teoria do conhecimento’, “légica da ciéncia’, “episte- mologias modernas na pesquisa educativa” etc. ‘A preocupacao com as questdes metodolégicas, teéricas e epistemolégicas tem como objetivo melhorar a formagio do pes- guisador, pois {A formacéo do pesquisador nao pode restringir-se 20 dominio de algumas técnicas de coleta, registro e tratamento dos dados. As técnicas nao sao suficientes, nem constituem em si mesmas- {8 Vejam-se as trabalhos de Morin (1990, 1996), Lapati (1994) e Sanchez. Gamboa (1996), uma insténcia auténoma do conhecimento cientifico. Estas tém valor como parte dos métodos. O método, ou o caminho do conhecimento é mais amplo e complexo. Por sua vez, um método é uma teoria de ciéncia em agio que implica critérios de cientificidade, concepgdes de objeto e de sujeito, maneiras de estabelecer essa relago cognitiva e que necessariamente re- metema teorias de conhecimento e a concepgdes filoséficas do real. Essas diversas concepgdes dao suporte as diversas abor- dagens utilizadas nas construc6es cientificas e na produgio de conhecimentos. (Sanchez Gamboa, 1996, p. 7). Para conseguir um dominio confidvel das técnicas, os in- vestigadores necessitam entender suas relagdes com os métodos ¢ 108 procedimentos, e destes com os corréspondentes pressupostos tedricos e epistemologicos, assim como perceber com clareza as, implicagées filosdficas das diversas op¢des cientificas. O éxito de uma pesquisa de qualidade pode estar na articulagio légica desses elementos ¢ no conhecimento dos pressupostos e das implicagdes da abordagem epistemolgica que o pesquisador utiliza. Sobre as abordagens epistemolégicas, existem variadas refe- réncias, Destacamos algumas delas: 0 conceito de abordagem epis- temoldgica deriva do termo epistemologia, que significa literal- Mente teoria da ciéncia. A teoria da ciéncia, reconhecida também como metaciéncia, surge depois de que foram criadas, para os ca~ 80s mais especificos, as palavras “metamatemitica” e “metalégica’: A metaciéncia ¢ um estudo que vem a posteriori da pratica cienti- fica e que tem esta por objeto, interrogando-a a partir de um nivel Superior sobre seus principios, seus fundamentos, seus métodos, Seus resultados e seus critérios de validade. Para superar essa visio Testringida sobre a propria ciéncia, o termo epistemologia registra _ Uma ampliagio de sentido & medida que, apesar de referir-se a0 53 conhecimento cientifico, sua andlise se localiza num campo co- mum entre a filosofia e a ciéncia; isso significa que a anélise da ciéncia se faz nao a partir dos limites da propria ciéncia ou de seus critérios de validade, mas considerando outro nivel de conheci- mento mais amplo, como a teoria do conhecimento e a filosofia.’ Neste sentido, Os estudos epistemoldgicos buscam na filosofia seus princi- pios ena ciéncia seu objeto ¢ tém como fungio nao s6 abordar os problemas gerais das relagOes entre a filosofia ea ciéncia, se- indo que também servem como ponto de encontro entre estas. (Sénchez Gamboa, 1987, p. 65}. No caso concreto da aplicacao da anilise epistemoldgica as tendéncias da producio cientifica de uma determinada area do conhecimento, assim se caracteri A anilise epistemologica situa-se como andlise conceitual de segunda ordem que questiona 0s fundamentos das ciencias, 08 processos de produgao do conhecimento e os parametros de confiabilidade e veracidade (contexto da justificativa) da pesquisa cientifica (as questdes de primeira ordem ou factuais so proprias de cada ciéncia especifica). A tarefa de segunda ordem procura revisar ou reintegrar nossa compreensio do gue esté em volta da pesquisa factual ou de primeira ordem. (Sanchez Gamboa, 1987, p. 65). 9. Veja-se 0 estudo de Blanché (1975) sobre as diferentes vias de construgio da epistemologia, Quando nos referimos ao termo epistemologia da pesquisa educacional, significa que tomamos como objeto a produgio do conhecimento gerado como pesquisa cientifica na area de educa- gio ea analisamos A luz das categorias filoséficas, utilizando para isso esquemas conceituais que propiciam o estudo das articula- ges entre os elementos constitutivos da investigacio (técnicas, métodos, teorias, modelos de ciéncia e pressupostos filoséficos) Neste caso, a abordagem epistemolégica se caracteriza por anali- sar, de forma articulada, os aspectos técnico-instrumentais para relaciond-los com os niveis metodolégicos, teéricos e epistemo- légicos, e estes, por sua vez, com os pressupostos gnosiolégicos € ontolégicos relativos & visio de realidade implicita na pesquisa. ‘Além de permitir essa anélise, a abordagem epistemoldgica ajuda a recuperar, a partir dos pressupostos ontol6gicos, as implicagbes ideol6gicas presentes nos diversos paradigmas cientificos que, se- gundo Habermas (1983), constituem 0 campo complexo dos inte- resses humanos que comandam os virios tipos de conhecimento. A relago entre “conhecimento e interesse” poder ser revelada medida que analisamos as articulagdes entre a prética cientifica € Seus pressupostos filos6ficos. Segundo essa perspectiva, Bachelard (1968) propde que, em Yee de separar a filosofia da ciéncia, como querem os positivis- tas, faca-se o caminho da reflexdo sobre as filosofias implicitas nas Préticas explicitas dos cientificos, com a finalidade de recuperar, Para cada uma das ciéncias, a filosofia que elas merecem. O ca- minho da reflexéo exige que a filosofia desempenhe sua fungo titica com relagéo aos conhecimentos cientificos, os quais devem 5s ser compreendidos sob todos os seus aspectos: légico, ideolégico, histérico, social etc. Nessa linha de pensamento, Piaget (apud Japiassu, 1979) cri- tica igualmente 0 positivismo por limitar 0 termo epistemologia ao conhecimento cientifico; ele define epistemologia como sindni- mo de teoria do conhecimento por consideré-la um dominio mais amplo, que abarca o conhecimento em geral desde seus primeiros niveis, ndo apenas quando chega ao nivel cientifico. Piaget considera a epistemologia como 0 estudo dos passos entre os estados menos desenvolvidos de um conhecimento € 0s estados mais desenvolvidos dele, quer sejam estes estudos refe- ridos ao desenvolvimento do conhecimento cientifico ou ao de- senvolvimento do conhecimento nas criangas, quer se relacionem com a psicologia genética ou a histéria das cigncias. Essa concep- ‘40 supe que toda ciéncia est4 em desenvolvimento progressivo e indefinido e passa por estados sucessivos. Habermas (1982) analisa a génese da separagao entre a filo- sofia ea ciéncia e propée uma reflexao que recupere as relagies da cigncia com o processo histérico da sociedade e com a filosofia. Essa reflexio permitira reconquistar o papel critico da teoria do conhecimento e devolver is ciéncias a capacidade de autorreflexio ede insergao na totalidade social. A partir das propostas anteriores, e considerando a articula- do entre a filosofia e a ciéncia ea recuperagao da producao cienti- fica incluida nos processos sociais ¢ historicos que a determinam, podemos descrever melhor algumas das estratégias dos estudos epistemolégicos. A andlise epistemolégica supe a compreensio da obra cien- tifica como um todo légico que articula diversos fatores, os quais 56 Ine dio unidade de sentido. Essa unidade de sentido se produz ‘em condig6es histérico-sociais que a determinam e a caracteri- yam como tnica e como parte do processo maior da producdo do conhecimento humano, Assim, as categorias centrais da ani- lise referem-se a relago entre o ldgico e 0 histérico. Em outras palavras, 0 trabalho cientifico (neste caso, a pesquisa em educa- cio) abrange contetidos légicos € histéricos. O contetido légico se refere a articulacdo de nogdes e categorias que formam uma unidade de pensamento ou uma estrutura interna mais ou menos formalizada, Tal unidade nao se apresenta fixa ou terminada, pois ‘obedece a um processo de producao e de genese, raztio pela qual 0 I6gico nao pode estar separado do histérico. A unidade entre o logico ¢ o histérico é um importante prin- cipio metodolégico da construcio do sistema de categorias, as quais devem refletir de forma especifica toda a histéria de sua formagdo e evolucao. (Sanchez. Gamboa, 1996, p. 35). No caso concreto da anélise epistemolégica da producao Cientifica em educagao, a inter-relagao entre o lagico ¢ 0 histérico se refere a dois momentos especificos. No primeiro, procura-se a estrutura interna implicita em toda pesquisa, a forma como define € articula seus elementos constitutivos; no segundo, recuperam-se a8 condigdes histéricas que determinam essa produgio. A inte- Braco desses dois momentos que se explicitam mutuamente nos oferece um conhecimento sobre as caracteristicas ndo apenas de cada pesquisa em particular, mas do movimento do pensamento ue a sustenta e da tendéncia cientifica na qual se situa. Por sua Vex, o estudo das tendéncias da pesquisa ou das correntes de ideias ue Ihe dio suporte se faz possivel & medida que identificamos 37 as caracteristicas especificas que as estruturam e que organizam as categorias especificamente. Para uma melhor compreensio da relagdo entre os dois momentos descritos, vejamos em seguida as caracteristicas de cada um deles. A logica da pesquisa em educagao A recuperagao da ldgica interna da pesquisa supde a recons- tituigao das articulagdes entre os diversos fatores que integram os processos da produgio do conhecimento. Suponhamos que todo processo de produgao do conhecimento se manifesta numa estru- tura de pensamento que inclui contetidos filoséficos, logicos, epis- lemolégicos, teéricos, metodolégicos ¢ técnicos. Entendemos que estes contetidos podem ser organizados por niveis de amplitude e por grau de explicitagio, comegando pelos fatores que se apresentam de forma explicita até recuperar aqueles que se encontram em forma de pressupostos (ou que esto implicitos). Nesse sentido, a abordagem epistemolégica podera esclarecer as relagées entre técnicas, métodos, paradigmas cien- tificos, pressupostos gnosiolgicos e ontolégicos, todos eles pre- sentes, mais ou menos explicitos, em qualquer pesquisa cientifica. ‘Vejamos em detathes esses niveis de amplituc a) técnico-instrumental: refere-se aos processos de coleta, re- gistro, organizacio, sistematizagao e tratamento dos dados € informagoess b) metodolégico: faz alusio aos passos, procedimentos ¢ ma- neiras de abordar ¢ tratar 0 objeto investigad. jaa «) tedricos: entre eles, citamos os fendmenos educativos ¢ so- ciais privilegiados, nucleos conceituais basicos, pretensdes criticas a outras teorias, tipo de mudanga proposta, autores citados etc. 4) epistemoldgicos: referem-se aos critérios de “cientificidade’, como concepgao de ciéncia, concepgio dos requisitos da prova ou validez, concepgao de causalidade ete. e) gnosiolégicos: correspondem ao entendimento que o pes- ‘quisador tem do real, do abstrato e do concreto no proceso da pesquisa cientifica; 0 que implica diversas maneiras de abstrair, conceituar, classificar e formalizar, ou seja, diversas formas de relacionar 0 sujeito e o objeto da pesquisa e que se refere aos critérios sobre a “construcio do objeto” no proces- so de conhecimentos f) ontoldgicos: referem-se a concepgdes de homem, da socieda- de, da histéria, da educagao e da realidade, que se articulam 10 de mundo implicita em toda produgao cientificas esta vistio de mundo (cosmovisio) tem uma fungdo meto- dolégica integradora e totalizadora que ajuda a elucidar os outros elementos de cada modelo ou paradigma (Sanchez Gamboa, 1987, p. 66). na vis Se tomarmos esses niveis de abrangéncia e os aplicarmos & analise de uma tese, & produgao de uma instituigéo ou um centro de pesquisa ou aos resultados cientificos sobre uma problemati- €a em um determinado periodo de tempo, podemos identificar a construgao de uma légica propria, que articula diversos elementos ‘que aparentemente se apresentam desconexos uns dos outros. Por 59 exemplo, podemos identificar diversas técnicas ou instrumentos de coleta de dados e supor que esses tém validade propria, pois siio titeis para essa fungao. A medida que os articulamos com as abordagens tedrico-metodoldgicas, constatamos que devemos dat maior importancia as informagGes recolhidas com critérios quan- titativos ou qualitativos, dependendo dos objetivos da pesquisa e dos interesses que orientam a elaboragao do conhecimento, Se quisermos conhecer, por exemplo, os perfis dos alunos ¢ 05 professores de uma escola ou se quisermos saber o que eles pen- sam, representam e verbalizam sobre as relacées entre eles, damos maior énfase a uma ou a outra estratégia de pesquisa. Para primeiro caso, parece suficiente a aplicagio de um questiondrio com perguntas de miiltipla escolha e um quadro de respostas previamente definidas. No segundo caso, um questio- nario aberto nao estruturado, uma entrevista, um seminario, um grupo focal, uma pesquisa participante, sem categorias prévias de anilise, certamente poderao oferecer melhores informacées. Para © primeiro caso, pode-se utilizar um tratamento estatisticos para o segundo, uma andlise de contetido. No primeiro caso, nao so ne- cessdrias informagées sobre os contextos sociais e culturais, apenas um questionério bem-elaborado ¢ um bom tratamento estatistico para cruzar informagées. No segundo caso, ¢ importante conhecer © quadro social e cultural de referéncia para interpretar as verba- lizagdes e os contetidos dos relatos, dos gestos e dos simbolos uti- lizados. No primeiro, so conhecidas as caracteristicas dos alunos ¢ dos professores, tendo como interesse predominante 0 conheci- mento para um melhor controle técnico deles. No segundo, predo- mina o interesse pela comunicagao e pela interagao. Assim, a primeira pesquisa revela uma visio de mundo que se reflete nos dados empiricos e pretensamente objetivos, na des- crigao, no perfil grafico ou na “fotografia” dos sujeitos investiga- dos. A segunda pesquisa manifesta uma visio fenomenolégica de mundo, um mundo que se esconde atrés das palavras, das ma- nifestagGes verbais, dos significados, dos gestos, das maneiras de atuar etc., um mundo em que os elementos subjetivos ¢ intersub- jetivos constituem a esséncia dos fenémenos investigados. Como ‘yemos nesses dois exemplos, para a elaborago de uma pesquisa, no & suficiente a selegdo de uma técnica ou a utilizagio de um instrumento se estes no se articulam de maneira légica com os outros fatores que compdem a pesquisa, Podemos utilizar todas as técnicas possiveis, mas os resultados obtidos com cada uma dessas pesqui em Giltima instancia, da vis s ter’o maior importancia ou significado dependendo, 10 de mundo e do interesse que motiva 0 conhecimento, Para podermos articular esses dois niveis (0 téc- nico ¢ 0 ontologico), necessitamos recuperar 0s niveis intermedi- frios (metodolégico, teérico, epistemologico e gnosiolégico). O histérico na pesquisa A preocupagio dos pesquisadores por estas articulagées légicas tem gerado um grande nimero de tipos, como ja vimos no capitulo anterior, que identificam esses modos de articulagio ha forma de modelos ou paradigmas. Vejamos alguns exemplos: Torres (1979) constata quatro paradigmas ou légicas do saber: empi smo, formalismo, voluntarismo e dialética objetiva. Burns 61 (1981) distingue trés modos de abordar o conhecimento: 0 légico- -positivista, o hermenéutico eo critico. Goergen (1981) menciona trés tipos de métodos na pesquisa educativa: 0 fenomenolégico- -hermenéutico, 0 empirico eo critico, Demo (1981) distingue seis tipos especificos de abordagens metodolégicas: empirismo, positi- vismo, funcionalismo, sistemismo, estruturalismo e dialética. Nos estudos que realizamos sobre a produgio dos cursos de pés-gra- duagdo em educagio nas universidades brasileiras (Sanchez Gam- boa, 1996), classificamos as abordagens em empirico-analiticas, fenomenoldgico-hermenéuticas ¢ critico-dialéticas. Lapati (1994) assim descreve os paradigmas tedricos vigentes na América Latina nas tiltimas décadas: Até fins dos anos sessenta, 0s paradigmas dominantes eram os ‘que hoje podemos classificar de convencionais: o funcion: ‘mo (ao que se poderia atribuir o enfoque de ‘sistemas’ por seus pressupostos sociolégicos), a teoria do capital humano eo em- pirismo metodolégico. Ao final dos anos sessenta, entram na pesquisa sécio-educativa latino-americana novas correntes: as teorias reprodutivistas francesas (Bourdieu/Passeron e Baude- lot/Establet), as teorias do conflito de cunho marxista expos tas pela escola de Frankfurt ou por autores estadunidenses e = em menor grau ~ a nova sociologia da educacio de Bernstein, (Lapati, 1994, p. 47). Pelos exemplos anteriores, podemos ver que os modelos ov paradigmas da investigacao nao permanecem como estruturas fi- xas ou. como quadro de categorias em que podemos alocar as dife- rentes pesquisas, Esses modelos se transformam com a pritica da pesqutisa e evoluem ao longo de um mesmo periodo. A pesquisa epistemoldgica, uma ver. que identifica esses modelos ou paradig- mas (método légico), busca compreender suas transformagées, recuperando informagdes sobre sua evolugao, sua decadéncia, sua crise, suas limitagdes, suas formas de divulgacdo, sua aceitagao pe- Ja comunidade cientifica ete, (método histérico).. Este tipo de analise histrica utiliza informages sobre as, condigdes da produgao do conhecimento. Essas informagoes se referem as politicas de ciéncia e tecnologia, as correntes de pensa- mento, & interferéncia dos orientadores € tutores, aos projetos po- litico-pedagdgicos dos centros de pesquisa, aos recursos financei- 108 utilizados, a dedicagao exclusiva a investigagao, ao predominio de modelos ou paradigmas, aos modismos teéricos ou metodo- logicos, ao acesso a fontes, a novas bibliografias, & integragao do projeto a grupos de pesquisa ete. Todos esses fatores influenciam na construgao do conhecimento, Portanto, uma andlise histérica ajudara a revelar as articulagdes logicas que foram construtdas € resultaram em uma determinada forma de fazer ciéncia, tragando suas caracteristicas proprias, Se essas caracteristicas formam um perfil comum com outras pesquisas produzidas no mesmo centro ou programa ¢ utilizam procedimentos semelhantes ¢ referencias te6ricas préximas, podemos localizar esas pesquisas dentro de uum mesmo modelo ou paradigma epistemolégico. Podemos também afirmar que num periodo de dez anos, Por exemplo, predominou o paradigma funcionalista nas pes- uisas realizadas nos programas de pés-graduagéo em educacio de um determinado pais. Igualmente, podemos verificar que tal ‘Modelo deixou de ser predominante e, por diversas raz6es ou ‘“ifcunstancias, as quais a andlise historica tratard de revelar, foi Substituido por outros paradigmas com maior capacidade de de- _ Senvolvimento, Temos, assim, na recuperacao do histérico, novos 63 elementos para constatar um movimento de transformagio da producao cientifica e das tendéncias dessa transformagio. Algumas recomendagées Uma vez apontadas algumas das caracteristicas da aborda- gem epistemoldgica e indicadas algumas das suas contribuicies no estudo das tendéncias da producio do conhecimento, pode- ‘mos destacar algumas recomendacées. Em primeiro lugar, alertamos sobre as limitagoes da aborda- gem epistemoldgica. Uma dessas se refere a sua utilizagao. Quan- do discutimos sobre as articulagdes légicas dos fatores que inte- gram uma “boa investigacao” e sobre os niveis de extenséo de cada uum deles, parece que temos diante de nés uma camisa de forga que deve servir de parimetro e de guia para a claboragao dos novos projetos. Parece, igualmente, que teremos de definir, em primeiro lugar, as técnicas, por elas serem mais explicitas e de menor ex- tensdo. Finalmente, que devemos pensar na visio de mundo or- denadora de nossa pratica cientifica, por ela ser mais ampla e me- nos explicita; ¢ assim sucessivamente escolher cada fator e depois articulé-lo coerentemente para obter uma pesquisa com a légica interna bem-fundamentada. Total engano. A légica A qual nos re~ ferimos & uma légica reconstituida a posteriori. 0 resultado da anilise realizada sobre as pesquisas ja claboradas e que, devido a determinadas condigées, conseguiram construir tal articulagéo. A partir desta articulagao, podemos tipificar a pesquisa dentro de um determinado modelo ou paradigma. Este mesmo proceso nao pode servir para orientar os projetos. Nao é con- 64 vyeniente fixar @ priori um modelo de projeto de pesquisa. Dizer, por exemplo, num projeto que 0 método que seré utilizado seré 0 fenomenologico ou o dialético, ou que o paradigma epistemoldgico 0 funcionalista ou o reprodutivista, é intencio antecipada e re- presenta um erro grave, Tais definigées prévias, aém de criarfalsas expectativas sobre as quais um jurado ou uma banca examinadora deveré cobrar a devida coeréncia com os modelos classicos ou os autores mais conhecidos, inibem a criatividade ea liberdade do pes- quisador, Por outro lado, querer tragar 0 caminho, antes de definir 108 pontos de partida e de chegada, de conhecer as condigées do trajeto, os recursos e os meios, é, como diz a expressio popular, “colocar a carrosa na frente dos bois” Um projeto de pesquisa, como veremos no quarto capitulo, deve considera, fundamentalmente, a problematica que se pre- tende pesquisar. Deve elaborar questoes pertinentes e traduzi-las a uma pergunta-sintese. E, num segundo momento, deve indicar as formas de obter respostas para essa pergunta (fontes de infor- magGes, formas de coletar dados, e maneira de sistematiza-los) e indicar um horizonte interpretativo dos resultados dessa busca. Nesse sentido, o investigador nao necessita enunciar, nos projetos, 08 paradigmas epistemoldgicos ou as abordagens tedrico-meto- dolégicas que ira utilizar. Entretanto, no negamos que o conheci- mento das caracteristicas das diferentes abordagens, reveladas nos. €studos epistemolégicos sobre pesquisas jé elaboradas, certamen- 10, A cxpresioespanhol “ensilarantes de rer ls bests” também expresa essa Fevers do proceso 65 te ajudard na selecdo de estratégias para compreender melhor 0 problema que se investiga. Um bom escritor antes de elaborar suas novelas 1é muitas outras, encanta-se, deleita-se ¢ as aprecia com cuidado. De igual maneira, um pesquisador, antes de elaborar seu projeto, deve ler outras pesquisas, para identificar seus principais elementos, re- cuperar seus métodos,¢ estratégias, descobrir suas rotas ocultas, revelar seus pressupostos e estruturas bésicas. Lé e relé outras pes- quisas para compreender os resultados e avaliar suas limitagdes implicagGes. A abordagem epistemolégica oferece um instrumen- tal para realizar essa leitura cuidadosa da pesquisa. ‘Todo pesquisador, por mais original e precoce que seja, pre- isa realizar uma leitura diferenciada (leitura epistemolégica) de outras pesquisas. Sem diivida, trata-se de uma maneira de se fa- miliarizar com a producao cientifica, 0 que consegue coma leitura critica de outras pesquisas, relat6rios de investigago ou teses. E conveniente que os centros e grupos de pesquisa realizem periodicamente balangos de sua produgio. Além de outras for- mas de avaliagdo, as andlises epistemolégicas permitem identifi- car as tendéncias dessa producao, revelar seus métodos, teorias € paradigmas cientificos predominantes, assim como sua evolugao ao longo de um perfodo. Essas anélises contribuem, também, na claboracio de estudos comparados entre periodos e entre centros ou grupos de estudo, A abordagem epistemolégica pode ser importante na orga- nizagio de um universo de pesquisas que produzem resultados sobre uma mesma problemética. Nesse sentido, as andlises episte- ‘mologicas buscam superar os “estados da arte” tradicionais. Os ba- lancos conseguidos por meio de uma andlise epistemolégica nio ‘66 _ 46 permnitem identificar os temas estudados, as bibliografias ou os " gutores consultados, também levam a aprofundar os problemas e iquestbes que geraram o conhecimento, a elucidar os métodos, as estratégias, 08 conflitos tedricos e paradigmticos ¢ 0 confronto © dos resultados; ainda, permitem revelar os vazios conceituais, a | imitacio ou extensio das categorias e as perspectivas histéricas | de uma ciéncia em particular. heuristica das teorias e dos métodos. Por fim, a abordagem epistemolégica funciona como um “exercicio de vigilincia permanente. Vigilancia “para perceber 0 -_ inesperado, para aperfeicoar 0 método e para vigiar a propria vigi- 67

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