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O FANTASMA PÓS-UTÓPICO NA POESIA CONTEMPORÂNEA

BRASILEIRA
Thiago de Melo Barbosa (UNICAMP)1

Resumo: Centrado na questão da pós-utopia desenvolvida por Haroldo de Campos em “Poesia


e Modernidade...”, o artigo empreende uma releitura crítica do ensaio haroldiano procurando
compreender as possibilidades de desdobramentos do paradigma pós-utópico não só na obra do
próprio autor, mas também como forte chave de leitura da poesia contemporânea nacional. Em
seguida, faz-se uma análise de como tal questão aparece no discurso crítico-organizacional de
duas diferentes antologias da recente poesia brasileira: Esses Poetas, de Heloísa Buarque de
Hollanda, e Na Virada do Século, de Claudio Daniel e Frederico Barbosa. Por fim, reflete-se
acerca de certa “fantasmagoria” latente nos modos como o pós-utópico surge no discurso
crítico.

Palavras-chave: Poesia contemporânea; Haroldo de Campos; Pós-utópico.

O pós-utópico em Haroldo de Campos


Publicado em 1984, o ensaio “Poesia e modernidade: Da morte da arte à
constelação. O poema pós-utópico” ocupa lugar de relevo dentro da obra crítica de
Haroldo de Campos. Tal destaque deve-se especialmente à grande ressonância que o
termo “pós-utópico”, cunhado no texto, teve, e ainda tem, dentro do cenário poético
brasileiro. Sem dúvida, é possível afirmar que com esse ensaio Haroldo instaura forte
categoria de leitura da poesia produzida pós década de 1980 no Brasil, categoria esta
que, retomando o título do trabalho, surge e resurge como fantasma hamletiano em
vários discursos críticos que abordam a produção poética desse recorte temporal.
O texto em si possui vários tópicos, porém, pensando em temas gerais, podemos
dividi-lo em dois grandes momentos. No primeiro, que vai do início até o tópico “A
linhagem Mallarmaica no Brasil”, o autor ocupa-se em traçar uma espécie de trajetória
das construções e desconstruções das utopias de modernidade ao longo da história da
literatura. No segundo, que inicia-se com o tópico “O Pós-moderno e o Pós-utópico” e
vai até o fim do texto, Haroldo de Campos, analisando a situação da poesia após o
esgotamento das vanguardas no final do anos de 1960, defende a ideia de que a nova
poesia produzida naquele momento estaria livre das utopias inerentes às vanguardas,
logo, seria uma poesia pós-utópica.
Como de certo modo já foi mencionado, esse segundo momento do ensaio é o
mais discutido e, indubitavelmente, foi o que o tornou um texto fundamental para os
1
Graduado em Letras (UEPA), Mestre em Estudos Literários (UFPA), Doutorando em Teoria e História
Literária (UNICAMP). Contato: thiagomelob@hotmail.com.
estudos de poesia contemporânea no Brasil. Diante disso, é nele que de agora em diante
nos deteremos um pouco mais, a fim de detalhar as várias nuances do termo “pós-
utópico” dentro de “Poesia e Modernidade...”.
Andes de mais nada, para compreender a ideia de pós-utópico em Haroldo de
Campos, é preciso ter a noção clara de que o poeta pensou este momento da poesia
como um resultado — quase que inevitável — do esgotamento das vanguardas, como
atesta o trecho: “Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde seu sentido.
Nessa acepção, a poesia viável do presente é a poesia pós-vanguarda, não porque pós-
moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica” (CAMPOS, 1997, p. 268). Note-se
que, no ensaio, para chegar a tal conclusão, Haroldo primeiro destaca dois aspectos,
intimamente relacionados, indispensáveis para a existência do movimento de
vanguarda, que são o “princípio-esperança” e a rasura da individualidade em prol da
utopia coletiva e, posteriormente, discorre sobre dois fatores que seriam determinantes
para o esgotamento da perspectiva utópica vanguardista: o regime militar (no plano
nacional) e as crises ideológicas (no plano internacional). Em suma, o percurso
argumentativo haroldiano para se chegar à poesia pós-utópica pode ser esquematizado
da seguinte forma:
1. Ênfase na questão do “princípio-esperança”, expressão que Haroldo toma
emprestada do filósofo Ernst Bloch e usa para definir a busca utópica de todo
projeto de vanguarda que, ao fim, só seria possível pela crença numa
antecipação da comuna ideal na qual a alta elaboração experimentalista da
poesia seria necessária e dialogaria diretamente com as massas.
2. Argumento da impossibilidade de, sem um “princípio-esperança”, manter o
trabalho em equipe essencial ao movimento de vanguarda, uma vez que “em
seu ensaio de totalização, a vanguarda rasura provisoriamente a diferença, à
busca da identidade utópica” (CAMPOS, 1997, p. 266).
3. Visão das crises ideológicas no plano geopolítico em diálogo direto com o
esvaziamento da “função utópica” da poesia.
Após esse percurso mais ou menos (auto)descritivo — uma vez que o poeta baseia
seus argumentos na sua própria experiência com a poesia concreta — da derrocada das
vanguardas, Haroldo de Campos, no último tópico do texto em questão, lança seu
diagnóstico acerca da poesia contemporânea. Nesse diagnóstico, o crítico faz paralelos
entre os dois momentos poéticos indicando constantemente as características
vanguardistas que foram substituídas pela poesia pós-utópica: “Ao projeto totalizador
da vanguarda [...] sucede a pluralização das poéticas possíveis. Ao princípio-esperança,
voltado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundamentado e ancorado no
presente” (CAMPOS, 1997, p. 268). Com isso, Haroldo define um ethos para a poesia
contemporânea que, como veremos mais adiante, terá papel fundamental no modo como
a pensamos e, até mesmo, como ela se pensa.
Este gesto crítico que encerra “Poesia e Modernidade...” é dos mais interessantes
de ser analisado, pois com ele o autor não se limita a descrever uma leitura particular
que faz da poesia contemporânea, mas antes, e um tanto contraditoriamente, acaba por
lançar também certas diretrizes para o contemporâneo e, assim, como defende Marcos
Siscar: “a propósito de constatar o encerramento das vanguardas e da época dos
manifestos — Haroldo não deixa de escrever uma espécie de manifesto” (2015, p. 12).
Seguindo tal raciocínio, são sintomáticas dessa tendência ao manifesto as observações
finais de Haroldo de Campos, quando este alerta para a necessidade da poesia
contemporânea manter um “resíduo utópico” que carregue a “dimensão crítica e
dialógica que inere à utopia” (1997, p. 269), bem como quando salienta que se deve
tomar cuidado para que a pluralidade da poesia pós-utópica não sirva de álibi “ao
ecletismo regressivo ou à facilidade” (1997, p. 269).
Saindo de “Poesia e Modernidade...”, é possível sondar outros desdobramentos
desse “manifesto pós-utópico”, ou melhor, da poesia pós-utópica como manifesto, no
próprio percurso crítico e poético de Haroldo de Campos após a publicação do texto.
Como primeiro movimento nesse sentido, vale destacar a leitura feita por Marcos Siscar
da contracapa de A Educação dos Cinco Sentidos, livro de poemas de Haroldo de
Campos que foi publicado logo no ano seguinte, 1985, ao ensaio aqui discutido. Segue o
exceto analisado por Siscar:

Neste seu livro, Haroldo de Campos nos apresenta o momento pós-


utópico de seu trabalho poético, que veio tomando corpo ao longo
destes últimos anos, mas que já se insinuava, aqui e ali, em alguns
poemas esparsos dos anos 60 e 70. Poesia da agoridade, da
construção do presente através da expropriação (e da reapropriação)
crítica da tradição (1985, p. s/n, grifo do autor).
Como é possível notar, o texto citado traz pontos cruciais para a ideia haroldiana
de pós-utopia, tornando patente a materialização — em sua própria obra — do que seria
mera descrição de um momento da poesia brasileira, em suma: “o poeta constata o pós-
utópico na produção crítica e, praticamente ao mesmo tempo, apresenta seu livro de
poemas como pós-utópico” (SISCAR, 2015, p, 14). É seguindo esse movimento crítico-
poético de Haroldo, que Marcos Siscar irá interpretar a contracapa de A Educação dos
Cinco Sentidos como parte de uma “estratégia mais ampla que declara a época de pós-
vanguarda para poder mais efetivamente assumi-la como projeto” (2015, p. 14).
Leitura análoga a de Siscar poderia ser feita tomando por base comentários de
Haroldo de Campos, em Depoimentos de Oficina, a dois de seus poemas, Ode
(Explícita) em Defesa da Poesia no Dia de São Lukács (1980):

recomposição, em pauta irônica e tom coloquial, do momento


concreto-participante representado pelo poema “Servidão de
Passagem” (1961), agora no clima de desencanto que o
‘patrulhamento ideológico’ jdanovista acabou suscitando na cena
cultural do país, ao lado dos rescaldos autoritários dos vinte anos de
amarga e esterilizadora ditadura militar que sofremos (CAMPOS,
2002, p. 55, grifo nosso)

e “Finismundo: a última viagem” (1990):

Sátira do mundo onde as ideologias entraram em crise e, ao mesmo


tempo, celebração da aventura incessante, sempre renovada, do
conhecimento e da criação, imaginei Finismundo como um poema
“pós-utópico”, expressão que prefiro ao conceito já gasto de “pós-
moderno”. Nele, a operação criadora é também uma operação
tradutora. Contudo, ao contrário do ecletismo e da aceitação
conformista do passado, como ornamento nostalgicamente inócuo, é o
espírito crítico (resíduo inalienável da utopia em crise) o fator que
preside à escolha dos topoi e dos estilenamas da tradição (CAMPOS,
2002, p. 57, grifo nosso)

Ambas as passagens citadas acima se encontram no texto intitulado “Da poesia


concreta a Galáxias e Finismundo”2, mais precisamente no tópico “De Signantia a
finismundo: o momento pós-utópico”. Nelas, como é fácil perceber pelos termos

2
Apesar de publicado no Brasil apenas em 2002, o texto provém de uma conferência dada por Haroldo de
Campos na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) em 1991, e foi originalmente
publicado em espanhol com o título De la poesía concreta a Galaxias y Finismundo: cuarenta años de
actividad poética en Brasil no livro Estudios Brasileños, de 1994, organizado por Horácio Costa.
grifados, ressoam os pressupostos chaves de “Poesia e Modernidade...”, ou seja, assim
como no caso da contracapa de A Educação dos Cinco Sentidos, Haroldo novamente lê
sua produção como exemplar daquilo que defendeu no ensaio de 1985. Deste modo, tal
qual concluiu Siscar sobre a contracapa, também podemos concluir que as leituras
haroldianas dos referidos poemas funcionam como indícios de um projeto em torno do
pós-utópico.
Encerrando essa ideia de projeto (coletivo ou não?), e mesmo a título de
curiosidade, é interessante notar como o poema “Pós-tudo”3 (1984), de Augusto de
Campos, cujos versos, se lidos de modo tradicional, são “Quis/ Mudar Tudo/ Mudei
Tudo/ Agorapóstudo/ Extudo/ Mudo”, parece também ecoar os sentidos gerais da pós-
utopia haroldiana. Ante tal convergência de ideias, é possível especular que o poema de
Augusto não só revela um sentido de um “trabalho em grupo”, levando-se em conta a
relação dos irmãos Campos, como, com a sua recepção polêmica (vide o embate com o
crítico Roberto Schwarz), (re)encena os embates ideológicos típicos dos movimentos de
vanguarda.
Ecos pós-utópicos em duas antologias de poesia contemporânea
Não só na obra do próprio Haroldo podemos encontrar ecos de sua tese acerca do
ethos da poesia contemporânea brasileira. No parágrafo anterior já foi apontada a ideia
de pós-utopia reverberando no “Pós-tudo” de Augusto de Campos, porém, mais que
isso, as ressonâncias que de fato revelam toda expansão da leitura haroldiana
encontram-se, logicamente, em textos mais desligados da atuação do autor. Partindo
deste princípio é que o presente trabalho irá verificar de que modo o “pós-utópico”
aparece no discurso crítico dos organizadores de duas antologias de poesia
contemporânea: Esses Poetas: uma antologia dos anos 90 e Na Virada do Século:
poesia de invenção no Brasil.
Comentando rapidamente os aspectos gerais das obras: Esses Poetas, publicada
pela editora Aeroplano, em 1998, foi organizada por Heloísa Buarque de Hollanda,
possui 22 poetas selecionados e 318 páginas. Na Virada do Século, publicada em 2002
pela editora Landy, foi organizada por Frederico Barbosa e Claudio Daniel, possui 46
poetas selecionas e 348 páginas. Ambos os livros contam com estudos introdutórios nos

3
O poema carrega aspectos visuais que podem ser observados pela sua versão digital publicada no site do
autor no seguinte endereço: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/07_03.htm
quais seus organizadores expõem não só os critérios utilizados para a construção das
antologias, como também buscam delinear os traços gerais do momento poético
antologiado.
Tomando por base os estudos introdutórios, é possível afirmar que os antologistas
estão imbuídos do afã de responder a questão: “que geração é essa?”. Para Heloísa
Buarque de Hollanda, a resposta passa por critérios sócio-culturais, dos quais ela irá
destacar as crises no mercado financeiro, a queda do Muro de Berlim, a questão da
AIDs, da globalização, o boom de novas (e pequenas) editoras etc., tudo isso sem deixar
de traçar um perfil muito preciso daquele que ela acredita ser o poeta contemporâneo,
isto é, “um profissional culto, que preza a crítica, tem formação superior e que atua,
com desenvoltura, no jornalismo e no ensaio acadêmico” (HOLLANDA, 2001, p. 10-
11). Em viés de certo modo oposto, Claudio Daniel4, que assina o texto “Uma escritura
na zona de sombra” que serve como prefácio à Na Virada do Século, pouco se ocupa em
dar um panorama sócio-cultural à geração que antologia, e logo investe em lhe traçar
um perfil estritamente literário, afirmando tratar-se de uma geração leitora de poetas
herméticos (Lezama Lima, Paul Celan, Francis Ponge, Robert Creeley) que parte da
crise do verso de Mallarmé, dialoga com o modernismo (especialmente o de João
Cabral e Murilo Mendes), mas não recusa a herança concreta, marginal e tropicalista.
Além das expostas acima, muitas outras são as diferenças entre as antologias,
porém analisá-las detalhadamente exigiria não só um trabalho de maior fôlego como,
também, fugiria ao que aqui propomos. Diante disso, a opção pelo didatismo
esquemático do quadro abaixo pode ser útil, pelo menos, para apontar as diferenças
mais evidentes entre as obras:

Principais Diferenças
Esses Poetas Na Virada do Século
1. Antologista: crítica universitária 1. Antologistas: poetas da geração
2. Afirma afinidades eletivas 2. Nega afinidades eletivas
3. Vertente sócio-antropológica 3. Vertente exclusivamente literária

4
Além do prefácio de Caludio Daniel, a antologia também conta com uma introdução de Frederico
Barbosa, porém como esta se resume a um pequeno texto de apresentação de aspectos gerais do livro, não
há necessidade de ser abordada no presente trabalho.
4. Visão mais contextual 4. Visão mais intrínseca
5. Poesia marginal como paralelo 5. Poesia concreta como paralelo

Mesmo com posicionamentos e modos tão distintos de ver a produção poética


contemporânea — outra prova disso seria o baixo número de poetas que se repetem nas
antologias, apenas seis, ainda que tenham sido publicadas em datas próximas e abordem
basicamente o mesmo recorte temporal —, as duas acabam convergindo para a ideia de
poesia pós-utópica. Nenhum dos autores cita explicitamente o ensaio de Haroldo,
contudo é fácil perceber as ligações — citação recalcada? — entre os pressupostos de
“Poesia e Modernidade...” e alguns dos argumentos usados pelos antologistas para
explicar o fenômeno poético com o qual estão lidando.
Em Esses Poetas, pensando nas várias vozes emergentes no cenário cultural
(maior presença feminina, poesia negra, periférica, gay...) e nas possibilidades múltiplas
de circulação da produção, seja via obras de baixa tiragem publicadas por pequenas
editoras ou pelo avanço da internet, Heloísa Buarque de Hollanda faz uma leitura dos
anos noventa como um momento propício à “formação de uma textura híbrida de
fundo” (HOLLANDA, 2001, p. 14). Evidentemente, seguindo a linha de pensamento da
autora, tendo um pano de fundo híbrido, a poesia dessa época deverá ter também uma
“natureza híbrida” (HOLLANDA, 2001, p. 15). Apesar de não permutáveis, tal
“hibridismo” levantado por Heloísa Buarque aproxima-se bastante da ideia de
“pluralização” defendida por Haroldo de Campos. Menos forçada ainda se torna essa
aproximação, uma vez recordando que, antes das passagens citadas, Heloísa chega
mesmo a se valer do termo “pluralidade de vozes” para designar o que seria o “primeiro
diferencial” da poesia contemporânea:

À distância, a produção poética contemporânea se mostra como uma


confluência de linguagens, um emaranhado de formas e temáticas sem
estilos ou referências definidas. Nesse conjunto, salta aos olhos uma
surpreendente pluralidade de vozes, o primeiro diferencial
significativo dessa poesia. Uma observação mais curiosa vai mostrar
outras novidades nesse sentido (HOLLANDA, 2001, p. 11).

Diante do exposto, é lógico pensar no “hibridismo” como uma espécie de


complemento ao “à distância” que inicia a citação, ou seja, Heloísa não necessariamente
exclui a ideia de “pluralista” da poesia contemporânea, mas julga apresentá-la com mais
detalhes (“vista de perto”). Contudo, é curioso observar que mesmo apontando a
“pluralidade de vozes” pelo que seria seu viés mais positivo, a autora não se furta de
questionar os resultados (em certo sentido, até mesmo a qualidade) dessa nova poesia
sem norte, que, em suas próprias palavras, é marcada por um “neoconformismo
político-literário” (HOLLANDA, 2001, p. 16). Difícil ler tais preocupações de Heloísa
sem relembrar os alertas haroldianos para a necessidade de se manter, na pós-utopia, um
“resíduo utópico” que defenda a poesia de cair num acrítico “ecletismo regressivo”.
Talvez não à toa, é justo esse o único momento do texto no qual Heloísa vale-se
explicitamente do termo “pós-utópico”:

A causa aparente dessa possível apatia literária poderia ser o ethos de


um momento pós-utópico, no qual o poema não parece ter nenhum
projeto estético ou político que lhe seja exterior [...] O que se vê,
entretanto, é uma nova produção que procura escapar do atrito,
circular em oposições, liberar canais institucionais e da mídia,
neutralizar as possíveis resistências da crítica (HOLLANDA, 2001, p.
16, grifo nosso)

É evidente que a autora, ainda que atenuando ou procurando apontar novas


nuances, bebeu na fonte de “Poesia e Modernidade...” para produzir seu texto. O mesmo
vale para Claudio Daniel e o seu ensaio introdutório de Na Virada do Século, porém
com a diferença de que o poeta preocupa-se muito menos em atenuar as semelhanças
argumentativas com o texto haroldiano. A bem da verdade, em praticamente todas as
páginas do prefácio de Claudio Daniel é possível encontrar algum diálogo com as ideias
de Haroldo de Campos. Não vem ao caso citar todas as passagens onde essa
intertextualidade ocorre, até para não cairmos no exagero do “citacionismo”, entretanto
é importante destacar os momentos em que as “diretrizes do pós-utópico” se revelam de
modo mais enfático, como procuraremos fazer nos próximos parágrafos.
O texto de Claudio Daniel inicia-se tentando traçar um perfil — já mencionando
anteriormente — dos poetas que compõe sua antologia, concorda que há vários pontos
em comum na formação literária da maioria, mas recusa veementemente a ideia de que
exista algum tipo de “movimento” aglutinador congregando os autores. Com isso, bem
ao modo do que aparece em “Poesia e Modernidade...”, Daniel salienta: “não podemos
falar de um movimento, já que inexistem manifestos, ensaios teóricos ou defesa, em
bloco, das mesmas teses normativas” (BARBOSA; DANIEL, 2002, p. 24). Dito isto,
um pouco mais adiante, o autor justifica as semelhanças que ele mesmo apontou entre
os poetas, falando que esta se deve a certo “espírito de época” que rege suas leituras e
pesquisas formais.
Um ponto curioso a se observar na crítica de Claudio Daniel é a dubiedade que
acompanha seus comentários quando está em jogo a definição do ethos da poesia
contemporânea. No caso do parágrafo acima, por exemplo, ele se esforça para defender
uma unidade para a nova poesia, porém não consegue superar a ideia de que essa já foi
vaticinada como plural, amorfa, sem norte ou projeto comum. Ao que parece, há sempre
uma voz de fundo, uma voz pesada que conduz a própria fala do crítico à hesitação.
Seria essa voz a da pós-utopia haroldiana? Ao que tudo indica, sim; e para atestar esse
argumento, vale a leitura de mais uma passagem na qual o prefácio de Na Virada do
Século se aproxima bastante de “Poesia e Modernidade...”:

O império do pós-moderno, que vaticinou o fim da história e o eclipse


das utopias, sob a hegemonia do capitalismo predatório neoliberal, só
poderia mesmo conduzir a dois caminhos opostos: o da negação da
ideia de vanguarda e o da (re)afirmação dos conceitos de invenção e
pesquisa estética [...] Temos aqui uma pluralidade de linhas
experimentais, firmadas no solo da agoridade, sem proclamar dogmas
e heresias, sem convocar inquisições e cruzadas para a reconquista do
Santo Sepulcro. Os poetas atuais não comungam de um mesmo credo,
mas têm como princípio básico a noção do poema como elaborado
processo de linguagem (BARBOSA; DANIEL, 2002, p. 26-27)

São inegáveis as semelhanças do trecho com o que defende Haroldo de Campos


no seu ensaio. O movimento argumentativo é praticamente o mesmo: o pós-moderno,
visto como o momento de esgotamento das utopias, leva ao fim das possibilidades de
existência das vanguardas, logo, dá lugar a uma produção poética fincada na agoridade
e marcada pela pluralidade. A parte isto, a argumentação de Claudio Daniel se
diferencia da de Haroldo por abrir espaço para duas nuances — que são, na verdade,
faces da mesma moeda — quando aponta que um dos caminhos para superar a crise
pós-utópica é a “(re)afirmação dos conceitos de invenção e pesquisa estética”, e também
quando defende que os poetas da nova geração (ainda que sem manifestos norteadores)
comungam da mesma preocupação com “a noção do poema como elaborado processo
de linguagem”.
Apesar de coerente, a leitura desses pontos de afastamento é passível de
problematização, pelo menos, em dois sentidos. Por um lado, permanece o paradigma
da dubiedade mencionado anteriormente: o crítico, mesmo querendo apontar noutra
direção, não consegue se desvencilhar da voz legitimadora que, por vezes, resulta num
quase apagamento de sua própria voz. Por outro, é legítimo pensar nas diferenciações
propostas como reelaborações do “resíduo utópico” haroldiano, uma vez que este
resíduo tem por função o combate às facilidades poéticas ou, em outras palavras,
manutenção do compromisso crítico com a “invenção e pesquisa estética”.
Comentários finais
Tendo em vista todo o exposto, é notório que tanto em Esses Poetas quanto em
Na Virada do Século ecoa de forma bastante audível as ideias de “Poesia e
Modernidade...”. Frente a essa constatação, é interessante pensar os motivos pelos quais
a referência a Haroldo de Campos é suprimida: a presença do poeta nos dois textos
estudados é sempre pressentida, nunca explicitada. No caso de Heloísa Buarque de
Hollanda, é fácil especular — mas impossível afirmar — que os motivos para a
supressão passem por antigas rivalidades intelectuais (que não vêm ao caso serem
repisadas aqui). Com relação a Frederico Barbosa e Claudio Daniel, os motivos são um
pouco mais obscuros, uma vez que aqui não há as “antigas rivalidades intelectuais”.
Com isso, resta pensar que os poetas receiam a menção direta a Haroldo por medo da
filiação.
Outro modo de ver essa “presença ausente” de Haroldo de Campos, consiste em
tomar a questão do pós-utópico como um conceito que caiu em certo “domínio público
crítico” quando se trata de pensar a poesia contemporânea e, assim, desobriga a menção
ao autor. Apesar de parecer uma ideia exagera, não é difícil comprovar a penetração das
noções de pós-utopia em vários escritos da crítica nacional, vide, por exemplo, como se
inicia o texto de Manuel Costa Pinto, publicado em 2003, sobre os prosadores da
“Geração de 90”: “Não existem mais movimentos estéticos, grupos de vanguarda com
manifestos e propostas utópicas” (PINTO, 2004, p. 398), ou como no polêmico ensaio
de Iumna Simon, “A Retradicionalização frívola. O caso da poesia”, as ideias
haroldianas ocupam lugar de certo relevo para abalizar seus pressupostos sobre a poesia
contemporânea. Além desses, certamente muitos outros casos poderiam ser citados, mas
isso extrapolaria os limites do artigo.
Sendo legítima essa hipótese do “domínio público crítico”, melhor justificado
estaria o título do trabalho, que metonimicamente toma o “fantasma pós-utópico” como
algo concernente à poesia contemporânea, e não apenas a dois textos que tratam do
assunto. De qualquer forma, como não há mais espaço para confirmação de hipóteses, o
fato é que nas “amostragens críticas” aqui estudadas o pós-utópico funciona como
categoria de leitura do contemporâneo. Diante disso, sobra espaço para questionamentos
que ficam em aberto, tais como: a insistência no pós-utópico é um dado encontrado a
partir produção poética levantada pelos antologistas ou é uma obediência a voz que vem
de um manifesto silencioso? O diagnóstico da época parte das próprias antologias ou ele
já estava feito desde 1984? Ao que tudo indica, a poesia pode sobreviver sem as balizes
dos manifestos dizendo o que a produção poética é, mas e a crítica, pode? Estariam os
críticos, mesmo os críticos-poetas, assombrados por um fantasma hamletiano
sussurrando da coxia os rumos da cena?
As perguntas permanecem abertas não apenas pelas dificuldades de resolução,
mas também porque funcionam como símbolo de nossa hesitação ante o fenômeno
poético contemporâneo. Pelo que foi exposto aqui, a voz de Haroldo de Campos, sem
dúvida, tem forte peso para a construção de tais problemáticas. Entretanto, não por isso
ela é uma voz a ser evitada, não vem ao caso o exorcismo, afinal, cabe a todos aqueles
que queiram pensar a poesia contemporânea determinar se esse fantasma pós-utópico,
tal como o de Shakespeare, nos conduz ao trágico paralisante ou ao trágico que é
(auto)conhecimento.

Referências

BARBOSA, Frederico; DANIEL, Claudio (Org.). Na Virada do Século: poesia de


invenção no Brasil. São Paulo: Landy, 2002.

CAMPOS, Augusto. Pós-tudo (1984). Disponível em:


<http://www2.uol.com.br/augustodecampos/07_03.htm>. Acesso em 20 de jun. 2017.

CAMPOS, Haroldo. Depoimentos de Oficina. São Paulo: Unimarco Editora, 2002.


______. “Poesia e Modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”.
In: ______. O Arco-Íris Brando: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago,
1997.

_____. A Educação dos Cinco Sentidos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Esses Poetas: uma antologia dos anos 90.
Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

PINTO, Manuel da Costa. O Postscriptum da “Geração de 90”. In: NESTROVSKI,


Arthur (Org.). Em Preto e Branco: artes brasileiras na Folha (1990-2003). São Paulo:
Publifolha, 2004.

SIMON, Iumna. A Retradicionalização Frívola. O Caso da Poesia. Cerrados, Brasília,


v. 24, n. 39, p. 212-224, 2015.

SISCAR, Marcos. Haroldo de Campos por Marcos Siscar (Ciranda de Poesia). Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2015.

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