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FILOSOFIA E
COMPORTAMENTO
Copyright © dos Autores
Capa:
Marcelo Pinto Pacheco

Revisão:
Bento Prado Júnior
Lúcia Prado
José W. S. Moraes

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editora brasiliense s.a.


01223 — r. general jardim, 160
são paulo — brasil
índice

A presentação............................................................................... 7

PARTE I
ARQUEOLOGIA DO BEHAVIORISMO

Movimento Muscular e Comportamento: Notas Históricas


— Isaías P essotti ........................................................ .......... 11
Empirismo e Psicologia — Péricles Trevisan ......................... 32

PARTE II
CONCEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISMO RADICAL

Consciência e Propósito no Behaviorismo Radical — Júlio


César C. de R o s e ..................................................................... 67
Skinner, Materialista Metafísico? “ Never mind, no m atter”
— José Antônio Damásio A b ib ............................................ 92
Breve N ota Sobre o Operante: Circularidade e Temporali­
dade — Bento Prado Júnior ................................................... 110
PARTE III
PREDETERMINAÇÃO E EXPERIÊNCIA

Etologia e Behaviorismo — Lúcia P ra d o ................................ 121


H erança Social e H erança Biológica: A Sociobiologia —
Lúcia Prado .............................................................................. 140

PARTE IV
PSICOLOGIA E METAFÍSICA

A Imaginação: Fenomenologia e Filosofia Analítica —


Bento Prado Júnior ................................................................. 151
Apresentação

Este livro é o primeiro fruto do Seminário de Epistemo-


logia da Psicologia que reúne, há dois anos, filósofos e psicólo­
gos da UFSCar, numa iniciativa do Laboratório de Psicologia da
Aprendizagem dessa Universidade. Centrado inicialmente num
estudo comparativo entre o behaviorismo radical e a filosofia da
mente de G. Ryle, o Seminário pretende ampliar, a seguir, seu
foco de atenção, num exame mais compreensivo da psicologia
contemporânea. Por enquanto, oferecemos apenas uma série de
ensaios que, partindo da pré-história e do horizonte epistemo-
lógico do behaviorismo, term ina no exame dos compromissos
metafísicos do “ behaviorismo analítico” de Ryle, depois de
passar por alguns conceitos básicos de Skinner e pela análise dos
limites incertos que separam o estudo experimental do com por­
tamento das empresas paralelas da Etologia e da Sociobiologia.

São Carlos, 30 de julho de 1982

Bento Prado Júnior


Movimento muscular e
comportamento: notas históricas
Isaías Pessoiti

Fica claro, mesmo à primeira vista, quanto a história da


explicação do movimento muscular deve à fisiologia de Gale­
no, que contribuiu imensamente para o desenvolvimento da
análise experimental das atividades reflexas, ao menos até o
aparecimento, nesse campo, de Willis, Borelli, Baglivi e Bellini.
Mais do que a outros fatores, deve-se à sua base experimental a
solidez das formulações de Galeno (131a 200 d .C.).
Em anatom ia e fisiologia a sua posição é contrária à de
Aristóteles. Galeno não se deixou guiar nas suas pesquisas por
necessidades lógicas de um sistema filosófico, mas sim pela
observação sistemática e controlada, o que foi possível graças à
introdução e utilização intensiva da técnica da vivissecção.
Sourry (1899) diz que Galeno sacrificou “ hecatombes de mamí­
feros” durante suas pesquisas.
É suficiente referir dois tipos de experiências de Galeno
para se perceber a sua genialidade e importância: o secciona­
mento sistemático da medula espinal em diversos níveis, como
técnica para identificar conexões entre o sistema nervoso central
e os movimentos musculares, e a ligadura do nervo como recurso
para bloquear a condução do “ fluxo nervoso” através das par­
tes nervosas distais. Como se sabe, a teoria dos espíritos ani­
12 A R Q U E O L O G IA DO BEHAVIORISM O

mais, como elemento de condução do impulso, baseia-se solida­


mente sobre análogas experiências e sobre as próprias observa­
ções de Galeno.
O registro de um amolecimento ou “ esvaziamento” do
músculo ligado à extremidade distai do nervo fortemente am ar­
rado por um cordel é o fundamento de toda uma anatom ia,
segundo a qual os nervos seriam tubos ou canais através dos
quais corre o “ fluxo nervoso” que, um a vez bloqueado, não
infla o músculo contíguo à extremidade distai. Segundo Galeno
este fluxo não é um líquido, mas uma substância menos tangí­
vel, o pneuma, ar, sopro.
Galeno afirm a que os músculos são, por definição, os
órgãos responsáveis pelos movimentos voluntários e involuntá­
rios: eles exercem um único tipo de movimento ativo, a contra­
ção (cujas peculiaridades serão estudadas a fundo na primeira
metade do séc. XVII). P ara Galeno os movimentos dividem-se
em dois grupos: “ naturais” , ou involuntários, como a pulsação
(que envolve veias e artérias, e que já não é, como pensava Aris­
tóteles, apenas um movimento do coração), e “ animais” ou
voluntários.
As divergências mais profundas entre Galeno e Aristóteles
sobre fisiologia do movimento muscular referem-se exatamente
à origem do movimento. Enquanto, para Aristóteles, tal origem
era transcendente em relação ao organismo, para Galeno, os
movimentos são imanentes ao corpo e o movimento muscular
resulta portanto de um impetus.
Esse impetus parte sempre da alma, mas esta não age
diretamente sobre os músculos: o agente intermediário entre
alma e corpo (como propõem numerosas teorias sobre o movi­
m ento, desenvolvidas na segunda metade do séc. XVII) é o
pneuma, um elemento ambíguo entre material e imaterial pro­
duzido por dois órgãos: o coração, que elabora o “ pneuma
vital” e o cérebro, produtor do “ pneuma psíquico” .
O mecanismo do movimento depende da passagem do
pneuma, do centro de origem aos músculos: esta passagem
se dá à maneira de um sistema hidráulico no qual os nervos fun­
cionam como condutores aptos a transportar aos músculos o
pneuma que o cérebro despeja neles. É o cérebro o verdadeiro
m otor do organismo animal, por meio dos seus dois movimen­
tos: a diástole, que se verifica na aspiração do ar (e do pneuma
“ vital” produzido pelo coração) e a sístole, por meio da qual o
M OVIM ENTO M l íCULAR E C O M PO R TA M EN TO . 13

coração introduz nos nervos o seu produto final: o “pneuma


psíquico” .
Nessa peculiar visão fisiológica, os nervos não funcionam
mais à maneira aristotélica como as cordas de uma catapulta
(Galeno, antes, faz uma clara distinção entre músculos, tendões
e ligamentos), mas sobretudo, como tubos que transportam um
fluxo, cuja natureza era necessariamente misteriosa naquela
época, antes de 200 d .C. Essa concepção dos nervos como canais
condutores será retom ada por Descartes (1596-1650), por Willis
(1621-1675) e, de um modo diverso, também por Borelli (1608-
1679).
Galeno conseguiu localizar com muita precisão os pontos
de origem desses canais: o cérebro e a medula espinal. Os ner­
vos são divididos conforme a sua função de condutores da sen­
sação ou do pneum a : assim, os nervos que unem os órgãos do
movimento ao cerebelo e à medula espinal são duros, enquan­
to os que unem o cérebro às partes sensíveis do organismo são
moles. Os nervos que desempenham indiferentemente funções
sensoriais e motrizes, são ligados aos órgãos que servem igual­
mente, à sensibilidade e ao movimento, e têm assim as duas
características, dureza e moleza.
A fisiologia galênica, m arcada por suas bases experimen­
tais, em oposição à de Hipócrates (460-370 a .C.), esta funda­
mentada principalmente na experiência clínica, balizará todo o
desenvolvimento da pesquisa neurofisiológica dos sécs. XVI e
XVII.
Não é de estranhar que Descartes não tomasse em consi­
deração grande parte das conclusões de Galeno. Instruído na
fisiologia de Fernel (1497-1558), de inspiração galênica, no colé­
gio de “ La Flèche” , embora tivesse lido algumas das obras do
grande discípulo de Galeno, Fabrizio d ’Acquapendente (1537-
1619), Descartes deixou-se guiar poderosamente na sua pesquisa
sobre o movimento muscular (tal como Aristóteles), pelas exi­
gências lógicas intrínsecas do seu sistema filosófico e não, por­
tanto, pelas exigências experimentais. Daí ser a teoria cartesiana
uma combinação artificiosa de proposições aristotélicas no que
diz respeito à origem do movimento; galênicas, para a anatomia
do movimento nas suas grandes linhas; fernelianas, a respeito
do movimento palpebral e da locomoção.
A respeito da circulação, Descartes se inspira em Harvey
(1578-1657) e particularmente no seu compêndio De motu cor-
14 A RQ U EO LO G IA DO BEHAV IORISM O

dis et sanguinis, de 1628 (calcado na doutrina galênica de seu


mestre Fabrizio). Somente quanto aos mecanismos e à estrutura
dos órgãos do movimento, Descartes adota as contribuições dos
médicos, na maior parte seguidores das teorias galênicas.
No que diz respeito, ao invés, à origem do movimento, a
teoria de Descartes desconsidera a contribuição de Fabrizio, de
Harvey e também de Gaíeno, para ater-se mais a Aristóteles.
Outra contribuição de Fabrizio, que Descartes transcurou,
refere-se às relações fisiológicas que se processam entre nervos e
músculos: a noção de que o fluxo nervoso não se distribui por
todo o músculo, mas é suficiente um único ponto de contato
para que se difunda no interior do músculo. Esta difusão, que é
a causa física da contração muscular, não se realiza, contudo,
segundo um paradigma hidráulico, como quererá em parte Des­
cartes; a difusão do fluxo se dá, para Fabrizio, como a da luz,
more luminis irradiatur.
Tais idéias, como ressalta Canguilhem (1955), não serão
aproveitadas por Descartes, enquanto serão desenvolvidas com
admirável intuição por Thomas Willis (1621-1675). Descartes
extrai da tradição galênica apenas os elementos que lhe permitem
dar uma base anátomo-fisiológica ao seu esquema mecanicista.
Tais elementos são: a definição de músculo considerado como
órgão do movimento, a distinção entre movimentos voluntários
e “ naturais” , as relações entre nervos e músculos, a distinção
entre vias da sensibilidade e vias motoras (sem, contudo, se preo­
cupar com as cuidadosas distinções anatômicas sustentadas
pelos galenistas) e, finalmente, a distinção entre “ espíritos ani­
mais” e “ espíritos vitais” .
Similarmente, Descartes adota da obra de Harvey a teoria
da circulação do sangue, mas rejeita a teoria do movimento do
coração, para Harvey apenas de sístole, mera contração mus­
cular.
Sobre as vias nervosas. Descartes revela uma notável carên­
cia dos conhecimentos anatômicos, que permitirão a Rorelli,
mais tarde, invalidar totalm ente a teoria cartesiana da sensibili­
dade produzida pela tração das fibras nervosas, entendidas como
“ conexões sólidas entre o órgão sensorial e o cérebro” (Cangui­
lhem, 1955).
Finalmente, a respeito dos músculos, a fisiologia do movi­
mento de Descartes conserva seu estilo mecanicista: o músculo
funciona como uma bexiga que, em repouso, se esvazia, de ma-
M OVIM ENTO MUSCULAR E CO M PO R TA M EN TO . 15

neira tal que as suas extremidades se afastem um a da outra; a


contração é produzida pelo enchimento dessa “ bexiga” por
obra dos espíritos animais, trazidos pelos nervos e impelidos
pelo coração. Esse enchimento provoca uma dilatação transver­
sal e, em última análise, uma aproximação entre as duas extre­
midades do músculo, a qual produz, por tração, os movimentos
dos órgãos executores aos quais os músculos estão solidamente
unidos, tais como as partes do braço.
Para Willis, os espíritos não podem ter um movimento uni-
direcional, do centro para a periferia, isto é, em direção aos
músculos dos órgãos efetores, pois, em tal caso, haveria explo­
sões em cadeia no interior dos músculos, e se teria uma série
ininterrupta de contrações musculares.
O movimento dos espíritos é muito variável: eles se deslo­
cam do centro à periferia e vice-versa. Os movimentos sofrem
uma inversão, seja por reflexão dos mesmos espíritos, seja por
ondulações nos seus movimentos. Os nervos não podem, pois,
ter nem a estrutura nem a função de meros condutores tubula­
res, mas, sempre segundo Willis, possuem características diver­
sas que permitem movimentos centrípetos-centrífugos ou ondu­
latórios dos espíritos.
O sistema nervoso de Willis não requer necessariamente
uma estrutura ramificada, pois as vias nervosas são percorridas
em qualquer direção; por isso a disposição anatômica que Willis
lhes atribui é muito diversa da anatomia cartesiana. O encéfalo é
um centro anatômico do qual se originam os nervos à maneira de
uma irradiação: a disposição dos nervos é com parada a um sol,
cujo centro é constituído pelo encéfalo e os raios, pelos nervos.
No texto da Opera Omnia (1681) lê-se que o encéfalo é
entendido não como tronco de uma árvore, mas pro luminaris
cujusdam tamquam solis aut astri corpore accipiatur (cap.
XIX), é concebido como o corpo de um astro ou como o sol, o
sistema dos nervos é como um a radiosa concretio que o cir­
cunda, portanto um sistema de elementos que se irradiam a par­
tir de um corpo central.
O que se nota imediatamente, é que Willis se refere sem­
pre à natureza inflamável dos espíritos, o que lhe impede imagi­
nar o mecanismo do movimento segundo um modelo pneum á­
tico ou hidráulico, como o proposto por Descartes. Este último
recorre, no Traité de 1'homme, às duas analogias, onde compa­
ra os nervos ora às flautas de um órgão, ora aos condutores de
16 A R Q U EO LO G IA D O BEHAV IORISM O

água das fontes mecanizadas. Estas fontes, formadas por con­


juntos de figuras mitológicas, de monstros marinhos e de outras
figuras que se moviam, constituíam verdadeiras obras de arte da
engenharia hidráulica e era muito provável que a circulação da
água servisse de modelo para uma inteira teoria do movimento
muscular, produzido pelo deslocamento dos espíritos no inte­
rior da rede dos tubos que, segundo Descartes, constituía o sis­
tema dos nervos.
Willis, ao contrário de Descartes, com para o nervo ao esto­
pim de uma bomba e a condução do impulso nervoso à propa­
gação rapidíssima do fogo ao longo dele, “ quase como se
alguém tivesse acendido, à distância, depósitos de pólvora para
disparar por meio de um estopim” (“per fum em ignarium”).
Os impulsos nervosos se propagam instantaneam ente como os
raios de luz “velut lucis radios” (“Cerebri A natom e”, in Opera
Omnia, 1681). É fácil lembrar, neste ponto, Fabrizio d ’Acqua-
pendente, por sua vez inspirado em Galeno, a afirm ar que a
força motriz se irradia como a luz, “ more luminis irradiatur” ,
(Opera Omnia, 1783).
O movimento reflexo não é para Willis, somente um tipo
de movimento involuntário (comandado pelo cerebelo): tam ­
bém os movimentos conscientes ou espontâneos podem ser
reflexos, ou seja, podem ser provocados por um impulso centrí­
peto proveniente de um receptor. Para que isto aconteça, basta
que ao menos uma parte dos espíritos portadores do impulso,
da impressão sensorial, atinja os corpos estriados. Em tal caso,
o processo de “ incêndio” se propaga “ more luminis” e se con­
clui com a explosão intramuscular.
Qualquer movimento voluntário ou involuntário é direto
(“uter que horum ve/ est directus...”) ou é reflexo (“ ...ve/
motus utriusque generis est reflexus...”). Willis define a este
ponto o movimento reflexo, isto é: “ aquele que sendo depen­
dente de uma sensação antecedente como de uma causa ou de
um a ocasião evidente é reenviado ao mesmo ponto (“ illico
retorquetur...”).
O reflexo, ou melhor, o movimento muscular reflexo, repre­
senta portanto um retorno do impulso aferente, com origem na
sensação e determinado por esta “ como por uma causa” .
Os espíritos existentes no órgão do sentido são impulsiona­
dos pelo objeto “ estimulante” . Como nota justam ente Cangui-
lhem (1955), não se trata aqui do efeito periférico de um impul-
M O VIM ENTO M USCULAR E C O M PO R TA M EN TO . 17

so proveniente de um m otor central, sob comando central ativa­


do a partir da periferia como, apenas forçadamente, se poderia
entrever na doutrina cartesiana do reflexo.
Com Willis se encerra uma época: a dos sistemas centrali­
zados de explicação do movimento muscular. Uma época que se
inaugura com o sistema especulativo cardiocêntrico de Aristóte­
les, passa pelo sistema encefalocêntrico de Hipócrates, igual­
mente especulativo, e tem seu momento máximo no sistema cefa-
locêntrico de Galeno, este sufragado pela observação empírica.
À série se junta o modelo eclético de Descartes e o sólido siste­
ma de Willis de 1670.
A partir de 1680, com os iatromecânicos italianos, geniais
criadores de uma anatomofisiologia fundada na matemática e
na mecânica de Galileu, a teoria do movimento muscular passa
por uma fase de impiedosa destruição dos sistemas e modelos
centralizados: o princípio do movimento passa a prescindir da
inervação central, atribuído a um a vis contractilis posta em
ação por qualquer estímulo (mecânico, por definição) e, grada-
tivamente, o encéfalo e a medula perdem sua hegemonia. O pro­
cesso de descentralização atinge seu extremo, como veremos, na
teoria da irritabilidade, que situará o princípio da conversão
da sensação em movimento não apenas no músculo mas na pró­
pria fibra muscular. Na área da iatromecânica a eminência dou­
trinária de Borelli (1608-1679) é suplantada pela agudeza e ope­
rosidade experimental de Lorenzo Bellini (1643-1704), o teórico
da vis contractilis (uma propriedade física de. contração de
toda a matéria, quando pressionada), que explica qualquer sen­
sação ou movimento como propagação mecânica da pressão
exercida sobre qualquer membrana de qualquer órgão sensorial.
A contribuição maior de Bellini para a Análise do C om porta­
mento reside na esplêndida análise da estimulação sensorial e da
propagação mecânica da sensação.
É dentro desse esquema que Bellini descreve o reflexo do
espirro de modo completo, ainda que sob uma concepção inevi­
tavelmente mecanicista mas mais sistemática e clara que a dos
predecessores que trataram do mesmo exemplo. Na página 108
da Opera Omnia, 1747, escrevendo sobre os diversos estímulos,
Bellini afirm a: “ Admitamos um estímulo qualquer sem fermen­
to ou uma coisa qualquer que, esfregada ao nariz, provoque
(moveat) o espirro ou o m uco... É evidente que aquele espirro
expele matéria através das vias de descarga (emissarium ) natu­
18 ARQ U EO LO G IA DO BEHAV IORISM O

rais, como são as n arin as...” . Bellini continua depois: “ Porque,


esta, como todas as coisas estimulantes, faz que um a membra­
na qualquer se contraia intensamente de modo que qualquer
coisa possa ser espremida, a qual, fluindo, se espalhará onde
puder... até aos vasos... às m em branas... às suas superfícies...
aos poros” .
A contribuição pessoal de Bellini à história do reflexo se
exalta na teoria da estimulação, na pesquisa, nem sempre estri­
tamente experimental, sobre um movimento do suco nervoso e
na exclusão da intervenção da alma no processo do movimento
muscular. Q uanto a este último ponto, Bellini se expressa com
uma clareza particular no seu De contractione naturali (1747):
“ A alma não tem função alguma no processo da contração”
(“et in contractionis negotio nullas habere posset anima
partes”)-, o texto prossegue afirm ando “ que a contração é algo
de imutável extrinsecamente e que não tem nenhuma relação
com a alma ou com qualquer outro princípio in terio r...” (p.
237). E na mesma obra, Bellini utiliza uma expressão que ante­
cipa de dez anos o famoso princípio halleriano da vis insita:
“Contractionis vis insitum quidam rebus...”, “ a força da con­
tração é algo intrínseco às coisas” .
Giorgio Baglivi (1668-1707), outro iatromecânico, aperfei­
çoou a teoria iatromecânica do movimento, dando-lhe uma
imponente base experimental, ausente no trabalho de Bellini.
Uma contribuição especial de Baglivi é a doutrina da dura-
máter entendida como centro de origem de todo movimento: se
Galeno tinha feito observações ocasionais sobre o efeito da
compressão da dura-m áter, Baglivi realizou experimentos siste­
máticos sobre animais, assim como sobre indivíduos humanos
feridos. No corolário VII do livro I de De fibra motrice Bagli­
vi afirma: “ a dura-m áter é o m otor supremo do corpo hu­
m ano” .
Quanto à explicação do movimento reflexo, a contribuição
de Baglivi se resume em ter dado uma base experimental à teoria
do movimento, entendido como efeito da contração das mem­
branas dos receptores, e que se propaga às outras partes do
organismo, entre as quais os órgãos internos e externos. Baglivi
formulou a teoria segundo a qual existe um órgão central do
movimento, representado pela dura-máter (e pela pia-máter),
mas a conversão de um impulso aferente em eferente não é,
todavia, necessariamente central, nessa teoria.
M OVIM ENTO M USCULAR E COM PO R TA M EN TO 19

O princípio da contractilidade da fibra implica elasticidade


dela e portanto movimentos “ retrógrados” em qualquer nível
do processo de condução do fluxo nervoso. Baglivi admite nume­
rosos centros periféricos de conversão de um impulso qualquer
em outro, contrário, embora reconheça a importância de pon­
tos de inversão centrais. Aliás, os dois movimentos do fluxo
nervoso, centrípeto e centrífugo, correspondem explicitamente
no De fibra motrice ao impulso produzido “ pelas impressões
causadas pelos objetos externos nos sentidos... que dos sentidos
chegam ao cérebro por meio do fluido nervoso e ao impulso efe-
rente, através do qual se assegura que as ordens da alma instan­
taneamente cheguem às partes” ... O motus reflexus de Baglivi
não inclui uma idade centrípeta e uma volta centrífuga” e por
conseguinte o termo reflexus não tem relação com “ a noção
moderna de reflexo” .
De todo modo, no De fibra motrice encontra-se a idéia
de uma propagação reflexa do impulso nervoso, a distinção
entre impulso aferente e eferente na base de uma explicação ma-
terialística e mecânica, a noção de objeto externo como ponto
de partida do processo centrípeto, e sobretudo, a expressão
motus reflexus como descrição de um tipo de propagação do
impulso nervoso.
Nos trabalhos de Baglivi encontramos também expressões
como vis pulsifica, vis intrínseca, e, vis contractilis, que se tor­
narão de domínio geral na fisiologia nervosa dos séculos XVIII
e XIX.
Da exposição precedente, infere-se que a pesquisa experi­
mental sobre o movimento muscular, reflexo ou não, não come­
ça com Astruc (1684-1766) nem em época subseqüente, pois que
ainda antes de Descartes, já com Galeno (131-200), Leonardo
da Vinci (1452-1519) e Fabrizio (1537-1619) as observações
sobre homens e animais submetidos a intervenções cirúrgicas
tinham fornecido material para várias teorias sobre o movimento
muscular. Os iatromecânicos italianos, como já dissemos, efe­
tuaram centenas de experiências neste campo.
O uso de animais descerebrados, com o fim de estudar os
movimentos segmentares, encontra a sua máxima afirmação
com Swammerdan (1637-1686), cujos trabalhos sobre os múscu­
los da rã retratam toda a genialidade do autor. Swammerdan,
independentemente de Glisson, demonstrou que os músculos se
contraíam sem aumento de volume, ao contrário de quanto
20 A RQ U EO LO G IA DO BEHAV IORISM O

adm itia Descartes, e que a contração podia ocorrer também


muito tempo depois que o músculo tinha sido isolado da medula
espinal.
Essas observações pressupõem, já no século XVII, todos
os elementos da análise experimental do reflexo em nível fisioló­
gico: o uso de estímulos, dotados de diversas propriedades, apli­
cados ao nervo, as diversas medidas de resposta muscular e das
relações entre estímulo e reação. Por sua vez, as pesquisas de
Swammerdan levam a uma conclusão mais profunda: a contra­
ção muscular pode aparecer sem a ligação nervosa do músculo à
medula espinal, diversamente de quanto faziam supor as expe­
riências de Leonardo (Quaderni, ed. franc., Gallimard, 1942,1).
Nessas, embora faltasse o cérebro, eram deixadas íntegras na rã
as ligações entre o nervo e a medula.
Os estudos de Swammerdan e Haller mostraram não só
que o movimento reflexo podia verificar-se na ausência do encé-
falo (conforme demonstram os estudos da época sobre animais
poquilotermos, decapitados ou descerebrados), mas também
em cortes cirúrgicos nos quais nem mesmo a medula espinal
desenvolve qualquer papel.
Glisson (1597-1677) tinha encontrado uma explicação, for­
mulada em 1677, que atribuía a contração muscular não mais ao
arco reflexo proposto por Willis, mas sim, à uma propriedade
local do músculo, a irritabilidade.
Dessa perspectiva, eram as peculiaridades do próprio mús­
culo submetido a excitação adequada, que permitiam a contra­
ção. Tal explicação implicava necessariamente a rejeição das
teorias baseadas em impulsos dirigidos a um centro e os prove­
nientes deste. Mas do ponto de vista do reflexo, entendido como
o entenderá muito tempo depois Pavlov — como correlação
entre estímulo e resposta — a “ irritabilidade” de Glisson ape­
nas estende a correlação a segmentos menores do organismo.
A noção de irritabilidade, de Glisson, foi retom ada por
Haller, depois das contribuições trazidas por Borelli, Bellini,
Baglivi e Astruc, e reform ulada com a denominação de vis
insita, uma força intrínseca ao músculo, como um princípio
local inconsciente e involuntário da contração.
Tal força, não é entendida como própria do músculo como
se entendia a irritabilidade de Glisson, mas como uma proprie­
dade da fibra muscular, o que permite explicar contrações de
músculos isolados e as de animais de cerebrados.
M O VIM ENTO M USCULAR E COM PO R TA M EN TO ..

Admitindo também que a vis insita pudesse


excitação nervosa, Haller abre a possibilidade de
bém as respostas musculares cuja origem não é uma excitação
local e sim distante: torna assim compatível o seu princípio,
quase molecular, com a evidência de correlações mais complexas
entre o estímulo e a resposta e que envolvem segmentos mais ou
menos extensos do corpo, como as “ simpatias” das quais Astruc
se serviu para restaurar o conceito de movimento reflexo.
Para Astruc o reflexo é uma reação autom ática, devida
somente à disposição anatômica dos órgãos do movimento. Em
Astruc notamos ainda mais clara a idéia de estímulo eliciador,
recordada na citação de Canguilhem (1955) do Disputationem
anatomicarum selectarum (1736): “Stimulata vel dolente parte
una, in contractionem agitur... pars altera — longe distans...
(vol. IV).
Descartes tinha já avançado a idéia do estímulo externo,
assim como Willis e Baglivi falavam de “ objeto externo” capaz
de impressionar os órgãos do sentido. Todavia é Astruc que
explica o term o estimulação como ponto de partida do impulso
aferente, entendendo-o na sua função de elemento causal de
uma correlação estímulo-resposta, subtendendo o mecanismo
fisiológico da condução centrípeta do estímulo e da propagação
centrífuga do influxo eferente. A contribuição de Astruc ao
conceito de estímulo diz respeito também à intensidade da res­
posta (em relação à intensidade do estímulo).
Sua preocupação é chegar a um modelo teórico útil à aná­
lise das simpatias em geral, quer dizer, daquelas reações de um
dado segmento no organismo conseqüentes à estimulação de um
outro local, mais ou menos distante. Seu clássico estudo do
espirro é apresentado expressamente como modelo “ adaptável à
explicação de todas as outras ‘simpatias’ do mesmo gênero” .
“ Como a irritação das narinas provoca através de um mecanis­
m o... rápido... a contração do diafragma, assim o vômito, a
tosse ou o fechamento das pálpebras são perfeitamente explicá­
veis através do mecanismo descrito” . É em Astruc que é clara­
mente identificável a preocupação de chegar a um conceito de
movimento reflexo capaz de servir como unidade de análise das
relações entre estímulo e respostas: nisto vai reconhecido o prin­
cipal significado do trabalho de Astruc. Com esse autor tem iní­
cio, em bora sem o apoio da observação experimental, o uso do
conceito como instrumento metodológico para o estudo dos
22 A RQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

movimentos, entendido o conceito como correlação entre estí­


mulo e reação, ou entre propriedades do primeiro e caracterís­
ticas da segunda.
A contribuição de Haller (1708-1777) em bora publicada
em edição sistemática depois do Essay de Whytt, começara muito
tempo antes com um trabalho publicado no mesmo ano em que
foi editada a Opera Omnia de Bellini, em 1747. O título da obra
era Primae Lineae Physiologiae e nela Haller propunha o seu
conceito de vis insita como princípio de explicação da contração
muscular. Essa “ força intrínseca” é um pouco diversa da “ irri­
tabilidade” de Glisson (1677) e Haller a vê como uma extensão
da “ irritabilidade” , pois que os músculos dissecados por ele,
quer cardíacos, quer intestinais, contraíam-se não somente na
ausência de qualquer influxo nervoso, mas também sem aplica­
ção direta de agentes irritantes.
Baglivi, como se sabe, atribuía esses movimentos a um estí­
mulo (mais ou menos ad hoc ): o calor ambiental. Haller, ao
contrário, admite no músculo uma propriedade intrínseca que
lhe permite contrair-se. Essa propriedade é diversa da vis con-
tractilis naturalis de Bellini, própria de todos os tecidos orgâni­
cos; a força intrínseca de Haller é contráctil, mas privativa do
músculo, “vis contractilis musculis insita”. O conceito foi
enunciado mais completamente no volume IV dos Elementa e
na Dissertatio de 1752.
É interessante notar, desde agora, que a vis insita não
exclui o conceito de estímulo: este atua como um mecanismo de
“ disparo” que provoca a atividade da vis insita e é assim, como
para Bellini, um estímulo eliciador.
O conceito de vis insita determina todo o trabalho de H al­
ler, em dois aspectos: suas pesquisas e as teorias dela derivadas
dizem respeito principalmente aos movimentos de músculos sec­
cionados. Por outro lado, e por conseqüência, Haller não con­
tribuirá para o desenvolvimento do conceito de reflexo, já que a
vis insita é incompatível com a idéia da condução da estimulação
nervosa em sentido aferente e/o u eferente. Nem mesmo a pro­
pagação mecânica da contração às partes fisicamente conexas,
como ensinavam os iatromecânicos, tem lugar no conceito de
vis insita. Haller, com efeito, entende esta última como indepen­
dente de qualquer elasticidade e portanto totalm ente indepen­
dente e desligada de eventuais movimentos alternativos de con­
tração e relaxamento.
M O VIM ENTO MUSCULAR E C O M PO R TA M EN TO . 23

Para a análise do com portam ento a contribuição de Haller


é indireta: a sua insistência em excluir a influência cerebral
sobre a contração muscular insere-se naquela corrente de idéias
que tornará sempre mais independente do encéfalo o centro de
origem do movimento muscular. Esta orientação fisiológica,
claramente impulsionada pelos iatromecânicos italianos, encon­
trava em Baglivi o primeiro pesquisador disposto a fazer estu­
dos experimentais sistemáticos sobre movimentos provocados
pela estimulação medular, após a sólida doutrina de Borelli e de
Bellini. Com Haller, o centro responsável pelo movimento é colo­
cado justam ente no órgão efetor.
Será de W hytt que a medula receberá uma renovada e deci­
siva atenção, livre das exigências lógicas do sistema iatromecâ-
nico.
A distribuição da força motriz às partes isoladas do orga­
nismo independentemente de um sistema nervoso central impli­
caria a busca de pontos de origem da atividade m otora, fora da
área cerebral, o que Haller já tinha iniciado.
É nessa linha de pesquisa que se poderá compreender a teo­
ria da ação reflexa de Robert Whytt. Na medida ein que é um
princípio não-físico, a vis insita passa a servir de fundamento
para a formulação de princípios análogos pelos pesquisadores
que virão depois de Haller, e que possibilitarão um certo retro­
cesso às teorias animísticas. Esses princípios, como o principium
sentiens de W hytt e o principium vitale exaustivamente discu­
tido e defendido por Cremadells no seu Nova Physiologiae Ele-
menta (1779) darão fundamento a posições teóricas vitalistas,
cujo único aspecto positivo, relativamente à formação de uma
ciência do com portam ento, será o de atrair a atenção dos pes­
quisadores futuros para o significado biológico dos reflexos e
portanto sobre a importância de analisar o movimento em rela­
ção às condições ambientais. Essa posição teórica encontrará
seu florecimento mais tarde, na obra de Charles Darwin (1809-
1882) A Origem das Espécies (1859) e, como veremos, sua for­
mulação mais sistemática, no trabalho do grande fisiologista
Sechenov (1829-1905). '
De todos os críticos de Haller, D. Vandelli foi o mais preo­
cupado com as distorções metodológicas da escola halleriana,
seja na prática experimental (devidas ao desconhecimento da
estrutura neuroanatôm ica dos órgãos), seja na elaboração teó­
rica dos resultados, onde ressalta a diferença das reações dos
24 AR Q U E O L O G IA DO BEHAV IORISM O

organismos entre situação cirúrgica e situação natural, de um


lado; de outro a diferença de evidências da resposta sensorial no
homem e no animal.
Vandelli replicou numerosos experimentos de Haller, tendo
obtido resultados diversos quando colocava sob controle as con­
dições emocionais dos animais. Evidenciou que a excessiva vio­
lência e crueldade dos experimentos distorcia decisivamente os
dados, e que “ o medo da morte e da d o r” e mesmo da repreen­
são verbal em voz alta tornava os animais “ insensíveis” a agres­
sões e lesões feitas aos nervos, à pele, aos músculos, bem como
aos ferimentos.
A mesma “ insensibilidade foi observada em um homem
demente que se feria profundam ente a cabeça e só sentia dor
após o fim da crise de demência” .
O alcance da nova metodologia que Vandelli vislumbra
mas não chega a form ular será compreendido perfeitamente
por I. M. Sechenov, cerca de cem anos mais tarde. Contudo é
Vandelli o primeiro a m ostrar a existência de variáveis “ psi­
cológicas” na correlação estímulo-resposta (sensorial ou mo­
tora).
Robert Whytt (1714-1766) publicou em 1751 e 1763 duas
obras importantíssimas para a pesquisa fisiológica dos séculos
XVIII e XIX, e que tornaram sua doutrina um assunto de polê­
micas agudas, que não chegam a encobrir a sua habilidade de
pesquisador e suas notáveis contribuições experimentais à neu-
rofisiologia.
Skinner (1932) vê em Whytt o valor de ter form ulado, por
primeiro, o conceito de ação reflexa “ em harm onia com os
dados experimentais” e acrescenta, para docum entar a sua afir­
mação, um trecho do Essay (1763), onde W hytt faz um relato
sobre a contração do músculo “ ... sempre que um estímulo é
aplicado aos revestimentos ou membranas que o cobrem, aos
nervos que se prolongam até ele ou a uma parte vizinha ou mes­
mo distante” .
Boring (1950) afirm a que Whytt “ publicou os primeiros
dados experimentais sobre a ação reflexa” .
P or outro lado, Canguilhem sustenta (1955) que se detém
sobre W hytt “ justam ente porque ele não contribuiu para a for­
mação do conceito de reflexo” . O conjunto das idéias de Whytt
se presta a avaliações contraditórias justam ente porque a sua
teoria do movimento, se assim a podemos cham ar, é formulada
M O VIM ENTO M USCULAR E COM PO R TA M EN TO . 25

em um momento peculiar da história da neurofisiologia do mo­


vimento.
A obra de Whytt, com efeito, assume uma posição inter­
mediária entre duas tendências da fisiologia do movimento da
época, de um lado; doutro lado, em relação à explicação do
movimento, representa algo de intermediário entre duas posi­
ções filosóficas. W hytt form ula os seus conceitos depois que
as teorias de Descartes e Willis, (que admitiam um a perfeita
integração, mais ou menos mecânica e mais ou menos física,
entre impulso aferente, órgãos centrais e impulso eferente)
tinham sido substituídas pelas teorias dos iatromecânicos carac­
terizadas justam ente pelo desaparecimento de tal integração e
pelo princípio de comunicação (entre os impulsos) independente
de centros de conversão.
Ao invés da origem central da resposta foi form ulado pelos
iatromecânicos o princípio da resposta devida ao simples con­
tato físico entre as partes, o que tirava às vias nervosas a exclusi­
vidade na produção do movimento. Para os iatromecânicos a
causa da contração é atribuída ao “ sistema de m em branas”
incluídas as dos nervos, das fibras musculares e das vísceras e
músculos. Ao mesmo tempo, porém, florescia a pesquisa sobre
animais descerebrados, da qual Whytt era um expoente de pri­
meiro plano.
Tal pesquisa, até Swammerdan e Baglivi, indicava a exis­
tência de centros motores localizados, embora não cerebrais. A
importância da medula espinal no mecanismo da realização dos
mais diversos movimento« musculares tornava-se cada vez mais
clara. W hytt, portanto, era objeto, contemporaneamente, de
duas influências: de um lado, a tendência à descentralização do
princípio causal às diversas partes do corpo, na linha dos con­
ceitos de contratilidade dos iatromecânicos e de irritabilida­
de de Glisson e reformulados por Haller como vis insita; de
outra parte, as crescentes evidências experimentais do papel
atribuído à medula e aos gânglios como centros localizados e
responsáveis pelo movimento e pelas correlações entre estímulos
e reações, chamadas “ simpatias” .
O procedimento de W hytt, nesta situação, é o de quem
quer construir uma teoria nova sobre bases experimentais,
quanto possível, independente da doutrina em voga: assim ele
recusa as especulações sobre a natureza e função do fluido
envolvido nas funções sensoriais e motrizes e também o princí­
26 A R Q U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

pio de irritabilidade, do qual Haller se servira para explicar os


movimentos dos órgãos isolados.
Em substituição aos princípios recusados, W hytt propõe,
na base de suas experiências, outras explicações que convergem
em um princípio geral chamado princípio sensitivo (sentiens)
capaz de explicar quer a contração dos músculos seccionados,
sem ter de fazer intervir o fluido nervoso, quer as “ simpatias” .
Como diz Boring (1950), na explicação das “ simpatias” ,
ou seja, do movimento simpático, ou da conexão entre uma sen­
sação e uma resposta, W hytt nos oferece sua mais válida contri­
buição que é, em última análise, o fato de ter atribuído à medula
o papel de centro do mecanismo que será cham ado mais tarde
arco diastáltico. O conceito de reflexo, que parecia ter desapare­
cido durante o desenvolvimento das teorias iatromecânicas e
depois de Haller, adquire, graças aos estudos de Astruc e de
Whytt, uma proeminente posição na neurofisiologia em geral e
na teoria do movimento em particular, ainda que a contribuição
de Whytt tenha sido, ern muitos sentidos, acessória.
Por outro lado, é necessário não esquecer que se, de Borelli
e Astruc em diante, a alma começava a ser descartada como
princípio metafísico de explicação do com portam ento e se Hal­
ler, embora usando conceitos pouco materialistas, como a vis
insita, se esforça para se desvincular de qualquer concepção me­
tafísica, Whytt com o seu principium sentiens reinsere implici­
tamente a explicação animista que terá sua reaparição mais tar­
de, em 1853, na obra de Pfluger (1829-1910) com sua desastrada
“ mente espinal” .
Ao modelo integrado, com um mecanismo centralizado
dos movimentos musculares, incluídos os reflexos, seguiu-se,
como vimos, o modeío dos iatromecânicos, que anulava o pri­
meiro, principalmente no que se refere à difusão do princípio
responsável pela conversão de um impulso aferente em impulso
eferente. A obra de W hytt, sob muitos aspectos, representa um
esforço para conciliar a tendência à difusão do centro de con­
versão com o desenvolvimento da experimentação sobre a fun­
ção da medula na produção das “ simpatias” ou dos movimen­
tos reflexos. É sob esta luz que o'. onceitos como vis contractilis
e vis insita e principalmente o principium sentiens de Whytt
devem ser vistos.
O panoram a da neurofisiologia do movimento, em conse­
qüência desta confusão de princípios não-físicos, e também dos
M O VIM ENTO M USCULAR E C O M PO R TA M EN TO . 27

resultados experimentais que indicavam a necessidade de identi­


ficar centros anatômicos especialmente responsáveis pelos movi­
mentos reflexos, apresenta nessa época uma evidente necessi­
dade de reformulação teórica sistemática. Ê precisamente este o
significado dos trabalhos de Unzer e Prochaska.
Unzer tinha uma experiência experimental aprofundada
sobre as funções da medula e dos nervos. Dos seus estudos
sobre os efeitos motores induzidos em rãs, graças às secções dos
nervos e da medula em diversos níveis, resultou seu trabalho
mais im portante, publicado em 1771, com o título de Primeiros
Princípios de uma Fisiologia da Natureza Característica do
Organismo Animal.
Unzer examina criticamente os trabalhos dos iatrornecâ-
nicos, reafirm ando a idéia de que o organismo animal pode ser
comparado a uma máquina, em bora de tipo diverso daquelas
construídas artificialmente: a m áquina orgânica, mesmo redu­
zida aos seus elementos mais simples, revela neles, propriedades
funcionais mecânicas, enquanto os constituintes últimos das
máquinas artificiais, ou não-orgânicas, não são capazes de de­
senvolver por si mesmos qualquer função mecânica.
Essa visão de Unzer é a primeira atenção, em toda a histó­
ria do reflexo, à necessidade de limitar a decomposição analítica
a uma unidade elementar, que reflita as características funda­
mentais das unidades mais complexas donde procede o processo
analítico. Como se verá adiante, Sechenov e Pavlov (e depois
Skinner) conceberão o reflexo como a unidade última da análise
do com portam ento, tendo presente que além do reflexo (a for­
ma mais simples de correlação entre os organismos e o ambien­
te) a análise não trata mais do com portamento.
A posição de Unzer se individualiza claramente no seguinte
passo de outro trabalho: “ A sensibilidade de origem externa
pode produzir no corpo os mesmos movimentos animais que
produziria se fosse acom panhada por sensação, mesmo não che­
gando ao cérebro e portanto sem a sensação” .
Aqui se pode ver a explicação do movimento reflexo (carac­
terizado como inconsciente) compreendido como produto de
centros subcorticais, e nota-se também a idéia de que a cons­
ciência ou percepção de uma impressão sensorial implica conti­
nuidade entre o receptor e o cérebro, por meio do nervo. Unzer
retorna ao modelo “ centralizado” do movimento, embora admi­
tindo também centros subcerebrais e confiando a esses o papel
28 A RQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

principal na produção do movimento reflexo (assim como suas


pesquisas indicavam, na linha dos estudos de W hytt sobre a fun­
ção “ central” da medula).
Ele distingue diversos centros de contato entre sensações e
movimentos, isto é, em linguagem mais atinente ao com porta­
mento, entre estímulo e resposta: o cérebro, os gânglios, os ple­
xos e as ramificações ou bifurcações.
Na ordenação hierárquica desses pontos de reflexão (cére­
bro, gânglios e plexos nervosos) se resume grande parte do pro­
gram a da investigação neurofisiológica do movimento, no sécu­
lo XIX.
Devemos também assinalar que, baseado na infra-estru­
tura anatômica dos diversos reflexos, Unzer nos oferece uma
descrição do mecanismo fisiológico por meio do qual um movi­
mento reflexo se origina (Canguilhem, 1955): “ Uma excitação
externa bem determ inada pode produzir um a impressão senso-
rial bem determinada que tom a a via do nervo, segundo seu
modo característico, por meio do qual ela é, por uma necessi­
dade natural, refletida em gânglios e bifurcações determinadas e
obrigada a transmitir à distância... um efeito nervoso mediato” .
Quando Sechenov, em 1862, procurará aplicar o arco reflexo ao
estudo das relações entre percepção e movimento, suas afirm a­
ções serão muito semelhantes a esta de Unzer.
No que se refere aos movimentos estritamente reflexos,
isto é, os que não requerem a intervenção do cérebro, Unzer não
se m ostra menos penetrante quando afirm a, aludindo aos movi­
mentos da rã descerebrada com aplicação de um estímulo táctil
a uma pata, que “ esta ação nervosa é devida a uma impressão
sensitiva interna não acom panhada de representação, a partir de
um a impressão sensória externa reflexa” .
O movimento reflexo é, segundo esse autor, um efeito
muscular produzido por uma ação nervosa eferente, a qual é
por sua vez o produto da reflexão de uma impressão sensorial
externa sobre um centro subcerebral.
Será Prochaska (1749-1820) que admitirá, treze anos depois,
a idéia de “ reflexões que se fazem conscientemente e incons­
cientemente” .
Prochaska publicou sua obra mais im portante em 1784,
com o título de Adnotationum academicarum fasciculus tertius,
em que revela todo seu talento de crítico e de sistematizador da
fisiologia nervosa de seu tempo. Empenhava-se em formular
M O VIM ENTO M USCULAR E C O M P O R T A M E N IO . 2y

uma proposição teórica pessoal tendo como base as teorias da


época e, com elas, os resultados experimentais dos estudos seu.s
e dos predecessores.
Com Prochaska tem-se a primeira formulação clara das
funções da medula como o centro nervoso, por excelência, do
reflexo. Para ele, de fato, o órgão em que a sensação se reflete
num impulso executor, ou seja, o “ locus” anatômico do senso-
rium comune é, ao invés do cérebro, a medula oblongata e a me­
dula spinalis, chamadas mais tarde bulbo (raquidiano) e medula
espinal.
A propriedade sensorial da medula espinal distribuída
através de toda a sua extensão está presente também nos seg­
mentos separados cirurgicamente do corpo medular. É assim
que Prochaska pode definir o movimento reflexo como produ­
zido pela medula ou por um segmento dela, como efeito da che­
gada de uma impressão sensorial a esse, graças à vis nervosa,
excluindo assim a interferência do cérebro na produção do mo­
vimento reflexo.
O conceito do reflexo ganha, na doutrina de Prochaska,
uma plasticidade que o torna um cômodo instrum ento meto­
dológico para o estudo comparativo das funções de espécies di­
versas.
Note-se que sua visão das diferenças de atividade, entre
espécies diferentes, como função do grau de diferenciação ana­
tômica de cada espécie, foi form ulada cerca de 70 anos antes da
publicação da obra maior de Darwin (1809-1882), editada em
1859. Note-se também que com a obra de Prochaska o reflexo
passa a ser um tipo de função, independente das variações dos
elementos anatômicos subjacentes, de uma espécie a outra ou de
um segmento do sistema nervoso a outro.
A teoria de Prochaska precede também Pavlov, ao insistir
sobre o significado biológico defensivo do repertório de reações
reflexas nas diversas espécies animais.
A contribuição de George Prochaska ao desenvolvimento
do estudo do com portamento não se restringe às suas luminosas
teorias estritamente fisiológicas nem à formulação sistemática
do conceito de reflexo, sobre bases experimentais: ele é o pri­
meiro a dar ao reflexo a conotação definitiva de eliciável, isto é,
a propriedade de ser provocado necessariamente por um estí­
mulo. Não tem importância, neste ponto, que ele se tenha servi­
do de uma vis nervosa ou de um sensorium comuns.
30 ARQ U EO LO G IA DO BEHAV IORISM O

Prochaska define o refelxo como correlação observada


entre estímulo e resposta, embora subentendendo o arco anato-
mofisiológico correspondente.
Com Astruc, Unzer e Prochaska se conclui uma árdua
reconstrução do sistema teórico do movimento muscular, após a
fase anarquisante que encontrou sua expressão máxima na dou­
trina halleriana da irritabilidade. O sistema nervoso central
readquire sua função controladora mas já não hegemônica. Os
novos modelos são agora produto de pertinaz investigação e de
indução laboriosa mas segura, empírica, rigorosa.
O reflexo passa, de conceito hipotético, a unidade de aná­
lise empírica e já não mais da fisiologia do movimento muscular
mas da atividade orgânica geral, frente às cambiantes estimula­
ções ambientais. Está preparado o caminho para a análise expe­
rimental do com portam ento. Aventureira, ousada e brilhante
com I. M. Sechenov, segura, cauta e parcimoniosa com I. P.
Pavlov até a extrapolação rigorosa mas, irrecusavelmente vo-
luntarista do neobehaviorismo americano, como transparece no
“ S°R” de Hull, nos “ discriminanda” e outros, gerúndios de
Tolman e na tão naturalista quanto inatural “ probabilidade”
de resposta, de B. F. Skinner.

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M OVIM ENTO M USCULAR E COM PO R TA M EN TO 31

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27. Willis, T. (1670) “ De motu musculorum” ; in Opera Omnia (1681). (apud Cangui-
Ihem, 1955).
28. Willis T. (1681) “ Cerebri anatome” , in Opera Omnia (apud Canguilhem, 1955).
Empirismo e Psicologia
Péricles Trevisan

O propósito deste trabalho é expor os traços básicos de


duas orientações im portantes da epistemologia contemporânea,
que se constituem e se desenvolvem a partir das primeiras déca­
das do século.
Os objetivos de um trabalho mais amplo e coletivo — a dis­
cussão dos aspectos epistemológicos da ciência do com porta­
mento — e seu estágio inicial de desenvolvimento determinam
não só os limites deste texto, como também, pelo menos em par­
te, sua natureza.
Trata-se, basicamente, de um texto despido de qualquer
veleidade de ser original; a intenção que o anima é a de apresen­
tar, mesmo com o risco de algum didatismo, duas concepções
epistemológicas que, pode-se presumir, definem e organizam o
espaço no qual se trava parte im portante da discussão teórica a
respeito da Psicologia.
P ara tanto, o que se pretende á apresentar, em uma forma
puram ente expositiva, as concepções a respeito da ciência, e em
particular da Psicologia, elaboradas pelos filósofos do Círculo
de Viena, em sua fase inicial (1928-1934), e a teoria psicológica
que B. Russell desenvolve em A Análise da Mente (1921). Dito
isso, ressalta evidente o arbitrário dos parâm etros escolhidos
EM PIRISM O E PSIC O L O G IA 33

para este trabalho, que encontra, para parcialmente justificá-lo,


tão-somente a confirmação da importância daqueles autores
para o itinerário intelectual de um dos principais representantes
do behaviorismo contem porâneo.1

II

Tomemos, como ponto de partida, uma citação de Carnap:


“ Há que dem onstrar mediante a análise lógica que toda propo­
sição da ciência tem sentido. Descobrir-se-á então que uma pro­
posição, ou é uma tautologia ou é respectivamente uma contra­
dição (negação de uma tautologia), caso em que a proposição
pertencerá ao campo da lógica, incluindo a Matemática, ou então
que a proposição é um enunciado pleno de sentido, isto é, nem
tautológica nem contraditória, caso em que será uma proposi­
ção empírica. É redutível ao dado e, portanto, é possível deci­
dir, em princípio, se é verdadeira ou falsa. As proposições, (ver­
dadeiras ou falsas), das ciências fáticas, são dessa classe. Não há
problemas que, em princípio, não possam ser respondidos. Não
existe uma Filosofia como teoria especulativa, como sistema de
proposições por direito próprio ao lado das da ciência” .2
Este texto, de 1930, expõe, de forma exemplar, as concep­
ções do Círculo de Viena a respeito das características do conhe­
cimento científico e da natureza da Filosofia como sistema de
proposições, isto é, enquanto Metafísica, das quais deriva um
critério que permite a demarcação entre ciência e Filosofia. Os
membros do Círculo de Viena consideraram sempre que sua
posição quanto à natureza da Metafísica diferia radicalmente da
dos críticos desta que a tradição da história da Filosofia registra.
Hm A Superação da Metafísica Mediante a Análise Lógica da
Linguagem (1932), Carnap procura mostrar que tais críticos
insistiram sempre, seja no caráter errôneo das teorias metafísi­
cas, seja na esterilidade de seus problemas, seja na incerteza de
suas respostas. Nisso estava sempre implícita a aceitação da

1 Skinner, B. F., The Shaping o f a Behaviorist, Alfred A. Kropf, N .Y ., 1979, p. 172.


2 Carnap. R., “ A Antiga e a Nova Lógica” , in Ayer, A. J., (org.), Logical Positivism,
The Free Press, 1959, que utilizo em sua tradução castelhana, F.C.E., México, 1965,
p. 151. Todos os textos de Carnap, Schlick, Hahn, Neurath utilizados na seqüência,
salvo indicação em contrário, fazem parte dessa antologia.
34 ARQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

possibilidade da discussão racional do conteúdo cognitivo da


Metafísica. Para Carnap, a posição dos positivistas contemporâ­
neos é totalm ente outra; para eles, as assim chamadas proposi­
ções da Metafísica são carentes de sentido, pois não possuem
conteúdo cognitivo. Nada mais são que uma seqüência de pala­
vras assemelhada a uma proposição: a tese é a de que são pseu-
doproposições.
Posta esta tese, dela decorre que não é possível decidir,
quanto às proposições da Metafísica, em termos de verdade ou
falsidade, pois as mesmas não afirmam rigorosamente nada:
“ não consideramos a Metafísica uma ‘simples quim era’ ou um
‘conto de fadas’. As proposições dos contos de fadas não entram
em conflito com a lógica mas apenas com a experiência: têm ple­
no sentido ainda que sejam falsas. A metafísica não é também
uma ‘superstição’; é perfeitamente possível crer tanto em pro­
posições verdadeiras como em proposições falsas, mas não é
possível crer em seqüências de palavras carentes de sentido. As
proposições metafísicas não são aceitáveis mesmo se considera­
das como ‘hipóteses de trabalho’, já que a uma hipótese é essen­
cial a relação de derivabilidade com proposições empíricas (ver­
dadeiras ou falsas) e isto é justam ente o que falta às pseudopro-
posições.” 3
Se a radicalidade da tese ressaltar, por contraste, a questão
da “ quase perenidade” da Metafísica, e a resposta é imediata e
m onótona a persistência da Metafísica explica-se pelo fato de
que, em bora suas proposições sejam rigorosamente desprovidas
de conteúdo cognitivo, elas não são vazias; possuem um conteú­
do emocional, prestando-se assim à exprssão de uma atitude
emotiva face à vida, o que dela faz, então, nada mais que um
substituto inadequado da arte.
Descartadas, desse modo, as pretensas proposições da
metafísica, o que incumbe agora é considerar as proposições

3 Carnap, A Superação da Metafísica Mediante a Análise Lógica da Linguagem,


p. 78. Neste texto, analisando exemplos tanto da linguagem comum como de alguns
sistemas filosóficos (Heidegger, Descartes, Kant, Hegel), Carnap busca mostrar que
a possibilidade de formação de pseudoproposições (portanto, a possibilidade da pró­
pria Metafísica), reside na não-correspondência rigorosa entre a sintaxe gramatical e a
sintaxe lógica. Assim, se a sintaxe histórico-gramatical, além das distinções na ordem
categorial das palavras, estabelecesse para cada categoria classes de acordo com dife­
renças lógicas indispensáveis, proposições do tipo “ César é um número primo” ou
“ O Nada nadifica” não seriam possíveis.
EM PIRISM O E PSICO LO G IA 35

i|ue possuem significado. O texto de Carnap, do qual partimos,


distingue, quanto a elas, duas classes. Primeiro, a classe das
proposições tautológicas, que pertencem ao campo da lógica e
da Matemática; segundo, a classe das proposições empíricas,
pertencentes ao campo das ciências fáticas.
A primeira classe de proposições é a classe das proposições
i|iie não afirmam nada a respeito da realidade, sendo verdadei-
i as ou falsas (isto é, tautologias ou contradições), em virtude
apenas de sua forma: “ a lógica ... trata unicamente do modo
pelo qual falamos sobre os objetos... a irrefutabilidade da pro­
posição lógica deriva precisamente do fato de que não diz nada
sobre o objeto algum” ;4 quanto à M atemática, a tese dos positi­
vistas é radicalmente contrária à de Kant. No mesmo texto diz
I lahn: “ As proposições da M atemática são exatamente da mes­
ma natureza que as da lógica: são tautológicas, nada dizem em
absoluto sobre os objetos de que queremos falar; referem-se
apenas ao modo pelo qual queremos falar deles” .5
Essa redução da M atemática à lógica, operada pelo Círculo
de Viena, a partir da interpretação das Matemáticas elabora­
da por Whitehead e Russell,6 possibilitava, como o indica expres­
samente Carnap, eliminar a maior das dificuldades do empiris­
mo: a interpretação das M atem áticas,7 ao mesmo tempo que
negar a possibilidade da existência de enunciados sintéticos a
priori.
É inegável também que essa redução, se pretendia resolver
uma dificuldade, não deixava de colocar sérios problemas, pois
até então não se acreditava possível tratar os axiomas da reduti-
bilidade, do infinito e da multiplicação como enunciados pura­
mente lógicos. Mas o preço a pagar para a tentativa de conse-

'' Hahn, Lógica, M atemática e Ciências da Natureza, p. 158.


' Idem, ibidem, p. 164.
’ A partir dela, mas levando-a claramente muito mais longe.
1 ta rrià p . “ A Antiga e a Nova Lógica’, p. 149. “ O empirismo, isto é, a concepção de
que não há conhecimento sintético a priori, encontrou sempre sua maior dificuldade
na interpretação da Matemática... Essa dificuldade é eliminada dado que as propo­
sições matemáticas não são empíricas nem sintéticas a priori, mas analíticas” . Cf.
Hahn, op. cit., p. 164: “ Se podemos afirmar apoditicame .te e com validade universal
a proposição 2 + 3 = 5... é porque mediante ‘2 mais 3’ dizemos o mesmo que dize­
mos com ‘5’, exatamente como dizemos o mesmo com Helteborus niger que com ‘ro­
sa da neve’. Damo-nos conta de que significamos o mesmo com ‘2 mais 3’ que com ‘5’
voltando aos significados de ‘2’, ‘3’, ‘5’, ‘ + ’ e realizando transformações tautológi­
cas até que vemos que ‘2 + 3 ’ significa o mesmo que ‘5’” .
36 A R Q U E O L O G IA DO BEHAVIOR1SM O

guir essa redução parecia ser compensado plenamente pelas


conseqüências disso advindas; assim, H ahn, no texto já citado,
em bora deixe entrever a existência de questões ainda não resol­
vidas, não parece nelas reconhecer motivo para modular o tom
otimista no qual trata o problema: “ Indubitavelmente, a de­
monstração do caráter tautológico da Matemática ainda não
está com pleta em todos os seus detalhes. Esta é uma tarefa difí­
cil e árdua; porém não temos dúvida de que a idéia sobre o cará­
ter essencialmente tautológico da M atem ática seja correta” .8
Passemos, agora, à consideração da segunda classe de pro­
posições. Enquanto as proposições da primeira classe — as tau­
tológicas — não nos dizem nada a respeito dos objetos e são,
por essa razão, universalmente válidas e irrefutáveis pela obser­
vação, as d a segunda classe sempre expressam algo a respeito
dos fatos, não sendo pois seguras na medida em que podem ser
refutadas pela observação.
Como essas proposições afirmam algo a respeito dos fatos,
sua verdade ou falsidade depende da possibilidade da consta­
tação da existência — ou não-existência — de um determinado
estado de coisas expresso pela proposição: “ é impossível estabe­
lecer o significado de qualquer enunciado senão descrevendo o
fato que deveria existir se o enunciado fosse certo; se o fato não
existe, então o enunciado é falso. O significado de uma proposi­
ção indubitavelmente consiste apenas nisso: ele expressa um
estado definido de coisas. Esse estado de coisas deve ser assina­
lado para dar significado a uma proposição” .9
O texto de Schlick m ostra, claramente, que o problema do
significado das proposições sintéticas, ou empíricas, se coloca
em termos de verificação. A fórm ula canônica de Carnap e de
Schlick é: “ o significado de uma proposição apóia-se no m éto­
do de sua verificação” .10 Esse método consiste no estabeleci­
mento dos enunciados de observação, ou proposições protoco­
lares, que, verificadas, verificam a proposição inicial.
Os enunciados de observação — ou proposições protocola­
res — são as orações a respeito do dado, constituídas por “ con­
ceitos radicais” ou “ conceitos básicos” ,11 que se referem aos

8 Hahn, op. cit., p. 164.


9 Schlick, P ositivism o e Realism o, pp. 92-93.
10 Carnap, A Superação da Metafísica Mediante a Análise Lógica da Linguagem,
p. 82.
11 Carnap, A Antiga e a N ova Lógica, p. 149.
EM PIRISM O E PSIC O L O G IA 37

conteúdos imediatos da vivência. Desse modo, “ um sujeito S


submete à prova (verifica) um a proposição de sistema deduzin­
do dela proposições da própria linguagem protocolar de S. O
fato de tal dedução de proposições protocolares de S ser factível
constitui o conteúdo de uma proposição; se uma proposição
não permite tal dedução não tem conteúdo, carece de signifi­
cado” .12 Através desse tipo de transform ação da proposição ini­
cial, atingimos proposições formuladas de m odo a conterem
apenas palavras cujo significado possa ser diretamente indica­
do, possa ser m ostrado. Como se depreende, o estabelecimento
de proposições protocolares implica, necessariamente, a refe­
rência à experiência. Isto não quer dizer, porém, que, em todos
os casos é indispensável uma verificação experimental efetiva,
ou seja, não é exigido que as proposições protocolares corres­
pondam sempre a observações reais. Carnap e Schlick são muito
claros nos textos desse período a respeito da questão. No texto
Pseudoproblemas na Filosofia, Carnap estabelece a diferença
que existe entre uma proposição “ testável” e uma proposição
com “ conteúdo factual” . Uma proposição é testável se, atual­
mente, podem os indicar as condições (realizáveis) sob as quais
ocorreria uma experiência que fundam enta a proposição; uma
proposição tem conteúdo factual se as experiências que a funda­
mentariam são apenas concebíveis (mas não realizáveis no m o­
mento). Assim, embora toda proposição testável tenha conteú­
do factual, nem todas as proposições que têm conteúdo factual
são testáveis. Schlick, no mesmo sentido, insistirá que o signifi­
cado de um a proposição é independente das circunstâncias em
que o sujeito se encontra em um momento dado, circunstâncias
essas que permitem ou não permitem a verificação efetiva da
proposição. O exemplo é esclarecedor, tendo-se em conta os
resultados do progresso técnico-científico registrado nos últi­
mos cinqüenta anos: a proposição “ existe uma m ontanha de

12 Carnap, Psicologia em Linguagem Fisicalista, p. 171, Cf. Schlick, Positivism o e


Realismo, p. 93: para estabelecer o significado de uma proposição deveremos
transformá-la por meio de sucessivas definições até que em última instância só apare­
çam nela palavras que já não podem ser definidas, mas cujos significados podem ser
diretamente assinalados. O critério de verdade ou falsidade da proposição estará no
fato de que em circunstâncias definidas certos dados estarão presentes ou não estarão
presentes... A enunciação das circunstâncias em que uma proposição resulta verda­
deira é o mesmo que a enunciação de seu significado... essas circunstâncias devem
ser descobertas no dado... O significado de toda proposição em última instância terá
de ser determinado pelo dado, e não por qualquer outra coisa” .
38 ARQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

três mil metros de altura no outro lado da lua” é uma proposição


com sentido (possui conteúdo factual), em bora em 1932 não
existissem meios técnicos que tornassem possível sua verifica­
ção. Esta não é, então, realizável, mas é concebível, pois somos
capazes de estabelecer quais os elementos que haveríamos de
experimentar para decidir da verdade ou da falsidade da propo­
sição: “ a verificação é logicamente possível qualquer que seja a
situação relativa a sua factibilidade prática, e isso é a única coisa
que nos interessa” .13
Através desses textos, o que os filósofos do Círculo de
Viena afirmam é uma diferença essencial entre a impossibili­
dade fática de verificar algo e a impossibilidade em principio
dessa verificação. Essa segunda impossibilidade é urna impossi­
bilidade lógica e, como tal, no limite não pode ser pensada; o
(no presente) empiricamente impossível pode ser concebível. A
conseqüência é que nenhurna limitação dos recursos técnicos
exigidos para uma verificação experimental é, de direito, funda­
mento para o estabelecimento de limites para o conhecimento
hum ano. O mundo não contém nenhum mistério insondável:
“ É cognoscível tudo o que pode ser expresso, e esta é toda a ma­
téria sobre a qual podem ser feitas perguntas com sentido ... não
há perguntas que em princípio sejam incontestáveis, nem pro­
blemas que em princípios sejam insolúveis” .14
A significação de uma proposição é estabelecida, segundo
as regras, através da estipulação de proposições protocolares
que, verificadas, a verificarão. Tais proposições protocolares
estão ligadas diretamente à observação de um sujeito concreto
S, e portanto dizem respeito a algo que, em princípio, não é
público, mas privado. As proposições protocolares, tal como
foram inicialmente entendidas pelos filósofos do Círculo de Vie­
na (especialmente Carnap e Schlick), são relativas a uma expe­
riência pessoal: “ todos os conceitos físicos podem se reduzir a
conceitos relativos à própria experiência subjetiva pessoal, por­
que todo acontecimento físico é confirmável em princípio por

13 Schlick, Positivismo e Realismo, p. 94. C f., também, Carnap, Pseudoproblemas na


Filosofia, §7 (trad. bras., col. Os Pensadores, vol. XLVI, Abril Cultural, SP,
pp. 162 e segs.)
14 Schlick, A Virada da Filosofia, p. 61. Tal como Carnap no texto citado na nota ante­
rior, Schlick entende que a possibilidade de verificação de uma proposição depende
menos do estado atual de nossos conhecimentos (isto é, do estágio real de desenvolvi­
mento da ciência) que das “ características” da própria proposição.
EM PIRISM O E PSICO LO G IA 39

meio de percepções” .15 Assim, Carnap é levado a adotar como


base da linguagem da ciência uma linguagem fenomenista, isto
é, uma linguagem acerca dos fenômenos conscientes enquanto
eventos não espaciais.
Essa decisão inicial tornou-se rapidamente alvo de muitas
ci íticas, mesmo no interior do Círculo de Viena. Assim Neurath
considerava que a adoção de uma linguagem fenomenista para a
formulação de proposições protocolares implicava necessaria­
mente uma opção pelo solipsismo, ainda que Carnap procurasse
distinguir sua posição denom inando-a solipsismo “ metodoló­
gico” .1'’ O ponto argüido por Neurath era o seguinte: se toda
proposição protocolar é uma descrição de experiências priva­
das, é muito difícil compreender como, a partir dos elementos
que a compõem, que devem ser todos eles predicados relativos a
estados de consciência (observáveis pelo sujeito que se encontra
nesse estado), é possível a constituição de uma linguagem da
ciência intersubjetiva; torna-se aliás difícil compreender a possi­
bilidade mesma de qualquer comunicação intersubjetiva.
Sob a influência de Mach, Carnap e Schlick tentaram du­
rante algum tempo refutar esse tipo de crítica, negando em pri­
meiro lugar que a experiência autopsicológica seja subjetiva no
sentido em que a entendem os idealistas. Carnap, em A Estru­
tura Lógica do Mundo, já tentara m ostrar que os elementos de
base do conhecimento, isto é, aquilo que podemos cham ar o
“ dado” , é algo não-subjetivo, mas neutro, que será posterior­
mente retom ado por Schlick: “ A experiência primitiva é abso­
lutamente neutra ou, como disse ocasionalmente Wittgenstein,
os dados imediatos ‘não têm proprietário’... O idealism o... e
outras doutrinas com tendências egocêntricas incidem no grande
erro de confundir a posição única do ego — que constitui um
fato empírico — com uma verdade lógica, apriori, ou, melhor,
no equívoco de colocar um no lugar de o u tro ” . . .. “ A frase
‘Toda experiência é uma experiência em primeira pessoa’ ou sig­
nificará o simples fato empírico de que todos os dados depen­
dem, sob certos aspectos, do estado do sistema nervoso do meu
corpo M, ou será carente de sentido. Antes que esse fato fisioló­
gico seja descoberto, a experiência de forma alguma é ‘m inha’

15 Carnap, A Antiga e a Nova Lógica, p. 149.


16 Neurath, Proposições Protocolares, p. 212. C f. também Neurath, Sociologia em
Fisicalismo, p. 295.
40 A R Q U EO LO G IA DO BEHAV IORISM O

experiência, mas é auto-suficiente e não ‘pertence’ a ninguém. A


proposição ‘o ego constitui o centro do m undo’ pode ser con­
siderada como um a expressão do mesmo fato, tendo sentido
somente se se referir ao corpo. O conceito de ‘ego’ é uma cons­
trução que repousa sobre o mesmo fato, e poderíamos facilmente
imaginar um m undo no qual não haveria nenhum a idéia de uma
barreira intransponível entre o que está dentro do ego e o que
está fora dele” .17
Em segundo lugar, na tentativa de evitar a acusação de
solipsismo (radical), Carnap e Schlick insistirão que é possível
afirm ar a existência de uma convergência de todas as experiên­
cias básicas individuais, a despeito das distinções entre os sujei­
tos (distinções de natureza física, de natureza “ histórica” e dis­
tinções relativas ao ponto espaço-temporal ocupado por cada
um), bastando para isso estabelecer um a distinção entre o con­
teúdo das experiências e sua estrutura.
Essa distinção — desde o início sustentada com dificuldade
— pode ser ilustrada através do seguinte exemplo. Se um sujeito
S observa dois pedaços de papel verde identificados, p e p ’, a
proposição “ A cor do pedaço de papel p é a mesma que a do
pedaço de papel p ” ’ pode ser verificada pelo fato de que S tem,
ao mesmo tempo, duas experiências da mesma cor. Agora, se S
mostra um dos pedaços de papel, digamos p, a um outro sujei­
to, S,, e pergunta: “ vê o verde como eu o. vejo?” , é possível
afirm ar que a experiência da cor de S, é igual à experiência da
cor de S? A resposta, segundo Schlick,18 não pode ser afirm a­
tiva, pois o que ocorre é apenas isso: S, cham ará “ verde” a cor
do papel que lhe é apresentado, e concordará inclusive19 com
S quando se tratar da especificação de qual matiz de verde se
trata. Mas a partir disso não é possível a S inferir que S, experi­
menta a “ mesma qualidade” , pois sempre é possível imaginar
que S„ ao olhar o pedaço de papel, tem um a experiência de cor
que S chama “ vermelha” e que, quando S vê “ vermelho” S, vê
“ verde” , porém denom inando-o “ vermelho” .
A possibilidade de comunicação adequada entre S e S, não

17 Schlick, Sentido e Verificação, trad, bras., col. Os Pensadores, vol. XLVI, Abril
Cultural, SP, pp. 162 e segs.
18 Schlick, P ositivism o e Realismo, pp. 99 e segs.
19 Supõe-se, sempre, ê óbvio, que os sujeitos em presença são seres humanos adultos e
“ normais” .
E M PIR ISM O E PSICOLOGIA 41

depende, pois, do fato de ambos perceberem a “ mesma coisa”


ou de “ terem a mesma experiência” (quanto a seu conteúdo),
mas sim da coincidência entre a ordem interna das experiências
de cada um. Para que ambos possam se entender basta que as
experiências de S e de S, possam ser organizadas em sistema,
segundo uma mesma ordem. Segundo Schlick, pois, só é possí­
vel falar de analogia das experiências de dois sujeitos distintos
110 sentido de uma determinada concordância de suas reações:
“ Devemos assinalar que o único significado verificável na afir­
mação de que diferentes indivíduos possuem a mesma experiên­
cia reside no fato de que todas as suas afirmações (e natural­
mente todo o restante de seu com portamento) revelam determi­
nadas concordâncias; conseqüentemente, a afirm ação não signi­
fica nada mais além disso. Existe apenas uma form a diferente
de expressão, se dissermos que se trata da igualdade de dois sis­
temas de ordenação” .20
Essa tentativa de evitar os perigos do solipsismo foi rapida­
mente abandonada,21 por seu caráter infrutífero, e sobretudo
pelos problemas que levanta,22 em proveito da tese do fisicalis-
mo, segundo a qual as proposições protocolares — fundamento
dos enunciados intersubjetivos da ciência — deveriam ser tam ­
bém intersubjetivas, ou seja, deveriam se referir a acontecimen­
tos físicos públicos.
A exposição da tese do fisicalismo, para os fins que nos
interessam aqui, será feita através da análise do texto de Carnap,
Psicologia em Linguagem Fisicalista (1932). Nesse texto, a par­
tir das seguintes teses: a) “ a linguagem fisicalista é um a lingua­
gem universal” (isto é, um a linguagem na qual qualquer propo­
sição pode ser traduzida); b) “ a linguagem fisicalista é intersub-
jetiva” ; c) “ em função da tese b a linguagem fisicalista é a lin­
guagem do sistema da ciência” ; d) donde “ toda ciência se con­
verte em física” (isto é, não há senão uma e uma só classe de
objetos, que são acontecimentos físicos), Carnap propõe-se de­
monstrar que “ toda proposição de Psicologia pode ser form ula­

20 Schlick, Positivism o e Realismo, p. 100.


21 Especialmente por Carnap, sob a influência das críticas e das teorias de Neurath.
Schlick manterá a antiga posição, como se pode ver em seu texto de 1936, Sentido e
Verificação.
22 A esse respeito, ver Neurath, Proposições Protocolares e Sociologia em Fisica­
lismo.
42 ARQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

da em linguagem fisicalista” , o que significa dizer que “ todas as


proposições da Psicologia descrevem acontecimentos físicos, a
saber, a conduta física dos humanos e de outros animais” .23
Dizer que as proposições da Psicologia descrevem aconteci­
mentos físicos, ou de outro modo, que toda proposição da Psico­
logia pode ser form ulada em linguagem fisicalista não significa
a prescrição de que o psicólogo deve se ocupar apenas com
situações fisicamente descritíveis: o psicólogo pode tratar do
que bem lhe agradar e formular suas proposições como quiser.
A exigência que se coloca é a da possibilidade de tradução des­
sas proposições em uma linguagem fisicalista: “ Nossa tese afir­
ma ... que para todo conceito ... psicológico é possível formular
uma definição qüe, direta ou indiretamente, o reduza a concei­
tos físicos ... tudo o que se pede (ao psicólogo) é a formulação
daquelas definições que incorporem a linguagem psicológica à
linguagem física. Afirmamos que essas definições podem ser
formuladas dado que implicitamente já servem de base para a
prática psicológica” .24
Sem dúvida, a argumentação de Carnap nessa passagem
nada mais representa que uma pura concessão verbal. De fato,
as “ exigências” carnapianas só podem ser satisfeitas por orien­
tações teóricas que possam receber a denominação genérica de
“ com portam entais” . N eurath, ao tratar de uma outra discipli­
na — a Sociologia — deixa claro que o program a do Círculo de
Viena implica, necessariamente, a superação da separação entre
a “ alm a” e os demais objetos (físicos) que, realizada pelo beha-
viorismo no domínio estrito da Psicologia, constitui-se no fun­
damento de uma ciência sociológica enquanto “ behaviorismo
social” (ou comportamentismo social). A crítica que é feita de
alguns métodos da ciência social — como o da compreensão —
dem onstra que a concessão positivista é meramente verbal, e
que a possibilidade de as “ ciências do espírito” (aí compreen­
dida a Psicologia) se constituírem em domínios propriamente
científicos (isto é, em parte da ciência unificada), repousa justa­

23 Carnap, Psicologia em Linguagem Fisicalista, p. 171.


24 Idem, ibidem, p. 172. Carnap concede, neste texto, que, quanto às leis psicológicas,
é uma questão aberta se as mesmas são ou não dedutiveis das vigentes para o inorgâ­
nico, embora a resposta afirmativa seja, para ele, a conjetura mais provável; essa
questão, porém, não tem conseqüências para o problema da dedutibilidade dos con
ceitos.
EM PIRISM O E PSICOLOGIA 43

mente na demonstração do caráter metafísico da distinção entre


“ ciências” e “ ciências do espírito” , correlato necessário da dis­
tinção entre o “ físico” e o “ psíquico” . No mais, o sociólogo,
como o psicólogo, tem total liberdade: pode, por exemplo, falar
do “ espírito da época” (desde que, é claro, com isso se referir
“ a certas combinações verbais, formas de culto, estilos arquite­
tônicos, modas, estilos de pintura etc.” ); pode com toda liber­
dade buscar leis sem o auxílio das leis físicas estritas, desde que,
em suas predições com base nessas leis, só faça referências a
estruturas que estejam dadas no espaço e no tem po.25
No que se refere á Psicologia, a posição de Carnap impli­
cará, como se verá na seqüência, a enfatização da importância
do programa behaviorista de Watson para a eliminação dos
conteúdos metafísicos de que essa disciplina estava carregada.26
Nesse sentido, vejamos como prossegue a análise.
Segundo Carnap, as proposições psicológicas, como as das
demais ciências fáticas, ou são proposições gerais, as quais têm
várias formas, podendo ser descritivas (exemplo: “ A experiên­
cia de uma surpresa sempre, para os indivíduos de tal ou tal
grupo, tem tal ou tal estrutura” ), ou revestir a forma de uma lei
causal, (exemplo: “ Se são apresentadas imagens de tais e tais
condições, então nas pessoas de tal ou tal grupo se produz sempre
— ou freqüentemente — uma emoção de tal ou tal classe” ).27
No entanto, as proposições psicológicas singulares pare­
cem apresentar uma característica distintiva, não presente nas
demais proposições científicas. Tomemos a seguinte proposição
psicológica singular: “ Ontem pela manhã S estava feliz” . Existe
uma diferença radical na situação epistemológica segundo aque­
la proposição seja enunciada pelo sujeito “ S” , ou por um outro
indivíduo “ X ” , qualquer. No primeiro caso, trata-se de uma
proposição sobre a mente do próprio sujeito; no segundo, de
uma proposição sobre a mente de uma outra pessoa. No primeiro
caso, aparentemente, a verificação da proposição é imediata e

25 Neurath, Sociologia em Fisicalismo, pp. 291 e segs.


26 A única referência explícita de Carnap, em Psicologia em Linguagem Fisicalista, é
exatamente o behaviorismo watsoniano.
27 Carnap, Psicologia em Linguagem Fisicalista, p. 174. Tal como nas demais ciên­
cias, a formulação de proposições gerais é feita indutivamente, a partir de propo­
sições singulares, descartada, em princípio, a validade de qualquer outro procedi­
mento. A proposição geral será sempre uma hipótese, cuja comprovação consiste na
comprovação das proposições singulares dela dedutíveis.
44 A R Q U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

subjetiva: S “ sabe” que ontem pela m anhã ele estava feliz. No


segundo caso, a verificação, necessariamente, não pode ser dire­
ta, mesmo em proposições que exprimam ocorrências atuais do
tipo “ S está alegre agora” . Trata-se, pois, de estabelecer as con­
dições necessárias e suficientes para que proposições sobre o psi­
quismo alheio possam ser verificadas intersubjetivamente, isto
é, por todo observador competente.
O procedimento utilizado por Carnap baseia-se em uma
analogia que estabelece entre uma proposição sobre uma pro­
priedade física e uma proposição sobre a mente de outrem. Para
os fins da analogia, a propriedade física em questão é definida
como “ propensão a reagir de um modo definido em circunstân­
cias determ inadas” .28 As proposições de partida são as seguin­
tes: a) “ Afirmo a proposição F,: ‘Este suporte de madeira é
muito firm e’” ; b) “ Afirmo a proposição P,: ‘A está excitado
agora’” .
O sentido das proposições F, e P, se obtém apresentando
proposições que tenham o mesmo conteúdo: as proposições F, e
P 2 que afirmam a existência de estruturações físicas caracteriza­
das pela propensão a reagir de um modo determinado a determi­
nado estímulo físico; assim teríamos:

F2 que afirm a a existência de uma microestrutura do


suporte de m adeira que se caracteriza pelo fato, de, sob
uma pequena carga, não experimentar nenhum a defor­
mação perceptível;
P 2 que afirm a a existência de uma estrutura física do corpo
de A (em especial seu sistema nervoso) tal que este se
caracteriza por pulso e respiração acelerados, os quais,
sob o efeito de determinados estímulos, se aceleram
ainda mais, com respostas veementes e insatisfatórias a
perguntas feitas, com a presença de movimentos agita­
dos em resposta a determinadas excitações etc...

Segundo Carnap, a analogia é completa, mas a reação dos


especialistas de cada campo a esses exemplos é totalm ente diver­
sa. Como os psicólogos29 negariam a identidade de conteúdo

28 Carnap, Psicologia em Linguagem Fisicalista pp. 175-176.


29 Todos eles, com exceção dos comportamentalistas radicais, adverte Carnap.
EM PIRISM O E PSIC O L O G IA 45

entre P, e P 2, Carnap procurará explorar as conseqüências disso


para os dois exemplos, no sentido de pôr de manifesto o impli­
cado pela posição dos psicólogos.
A não-aceitação, por parte dos psicólogos, baseia-se na
opinião de que a proposição P, afirm a a existência de um estado
de coisas não idêntico à correspondente estrutura física, estado
esse que apenas a acom panha ou a manifesta em suas aparência
exterior. Se é assim, há que afirm ar que:

P, “ diz que A não só tem um corpo (cuja estrutura é des­


crita por P 2) mas tam bém que, sendo um ser psicofí-
sico, há nele uma consciência e um certo poder ou enti­
dade nos quais essa excitação será encontrada” ;

e também que:

F, “ diz que o suporte não só tem a estrutura descrita por


F2, mas também que há nele uma força determ inada, a
saber, sua firmeza.

Daí decorre a afirmação de um paralelismo entre a estru­


tura física do corpo e a excitação (ou a firmeza), às custas da
negação da identidade entre ambas; o resultado disso é: primei­
ro, a explicação da reação a certos estímulos como um a “ ex­
pressão” da excitação (ou da firmeza); segundo, a afirm ação de
(|ue a excitação — ou a consciência da qual é um atributo — (e a
lirmeza) é uma propriedade oculta que está atrás da estrutura
física, que se manifesta nela, mas que, por si mesma, é incog-
noscível.
O resultado, para Carnap, é claro: estamos diante de um
procedimento de duplicação, que postula, para lá de um estado
de coisa empiricamente determinável, uma entidade paralela
cuja existência não é determinável.
A conclusão que se impõe é dupla: em primeiro lugar,
recusar a interpretação de P, mediante P 2 é converter P, em uma
pseudoproposição metafísica (carente de significado); em
segundo lugar, um a proposição referente à mente de outrem só
tem significado cognoscitivo se afirm a que um processo físico
de determinado tipo se realiza no corpo do indivíduo em ques­
tão. Generalizando: “ uma proposição singular, referente à
46 ARQ UEOLOGIA DO BEHAVIORISM O

mente de outrem , tem sempre o mesmo conteúdo que alguma


específica proposição física (isto é), uma proposição referente à
mente de outrem afirm a que um processo físico de determinada
índole se realiza no corpo da pessoa em questão” .30
Com isto, é afirm ada a possibilidade da completa elimina­
ção de expressões não fisicalistas do campo da ciência. As pro­
posições protocolares que, inicialmente, eram expressadas em
uma linguagem fenomenista, portanto subjetiva (adequada
apenas para um solilóquio, dirá mais tarde C arnap),31 devem
agora ser expressas em linguagem fisicalista, obrigando a que
contenham predicados psicológicos observáveis em uma lingua­
gem desse tipo, isto é, redutíveis a predicados físicos intersubje-
tivamente verificáveis.
Para uma teoria psicológica, o resultado é a negação radi­
cal do chamado dualismo psicológico, e a adoção do ponto de
vista segundo o qual a todo processo psicológico corresponde
um processo cerebral, posição que coincide, nas suas linhas
gerais, com a Psicologia behaviorista tal como form ulada por
Watson. Para melhor fundamentar sua posição, Carnap procura
relacionar uma série de possíveis objeções a sua tese central, que
acompanharemos visando não só o detalham ento de seu “ pro­
gram a” para uma Psicologia, mas também a indicação de
alguns problemas que esse programa implica.
Das objeções iniciais, que são q u atro ,12 podemos nos limi­
tar à análise da segunda. Contra ela, cuja tese consiste na afir­
mação de que podemos constatar a possibilidade de que um
sujeito S possua determinado sentimento mediante um raciocí­
nio analógico, Carnap desenvolve o seguinte exemplo: vejo uma
caixa “ A ” de determinada forma, cor e tam anho e descubro
que contém palitos de fósforo. Encontro a seguir outra caixa
“ B” , com as mesmas caracteristicas exteriores. Por analogia,
estabeleço a inferência de probabilidade de que esta segunda
caixa também contém palitos de fósforo. Esta “ conclusão”
pode ser com provada, mediante proposições protocolares, de

30 Carnap., toe. cit., p. 180.


31 Carnap, Testabilidade e Significado, írad. bras., col. Os Pensadores. vcL XLVi,
Abril Cultural, SP., p. 209.
32 A saber: objeção baseada no desenvolvimento incipiente da fisiologia, objeção fu n ­
dada na analogia; objeção baseada na telepatia e objeção baseada na questão da ve­
racidade das manifestações das outras pessoas.
EM PIRISM O E PSICOLOGIA 47

tal forma que as duas proposições “ a caixa A contém palitos


de fósforo” e “ a caixa B contém palitos de fósforo” são,
lógica e epistemologicamente, da mesma classe. Esta é a razão
pelo qual o argumento da analogia é válido no caso.
Mas, a situação é totalm ente outra no caso dos aconteci­
mentos psicológicos. Tomemos duas proposições: P, (“ Eu
estou irritado” ) e P2 (“ Esta pessoa está irritada” ). Se, com P ,, o
que se quer dizer é que, estando irritado, não só manifesto uma
determinada conduta, mas também experimento um sentimento
especial de irritação, não é lícito passar de P, para P 2 com base
no argumento da analogia. Isto porque não é possível compro­
var P2 tal como se comprova P,, isto é, mediante proposições
protocolares de observação própria. A proposição P 2 é, portan-
lo, epistemologicamente distinta de P,., e é o uso, logicamente
ilegítimo, da mesma estrutura gramatical em ambas as orações
que faz crer que as duas proposições são da mesma classe lógica.
Para Carnap “ Eu estou irritado” não representa adequadamente
o estado de coisas que se quer expressar. A formulação mais
adequada seria: “ Agora irritação” . Com isto se quer dizer que
quando meu corpo manifesta uma conduta irritada, há irrita­
ção. Ora, o corpo de outra pessoa é semelhante ao meu em mui­
tos aspectos: o corpo da outra pessoa manifesta agora uma con­
duta irritada. Disso, não mais poderemos concluir “ Esta pes­
soa está irritada” , pois a proposição “ Há irritação” não con­
tém “ eu” que poderia ser substituído por “ Esta pessoa” .
A análise desenvolvida por C arnap, até aqui, limitou-se às
proposições sobre o psiquismo alheio, mas é inegável que os
resultados obtidos são considerados válidos também para aque­
las proposições a respeito da mente do próprio sujeito. A tese é
a de que nada ou quase nada m uda quando se fala de mente de
outrem ou da própria mente: para Carnap não há diferença fun­
damental em termos de confirmação; o fato de o sujeito S poder
confirmar, mais diretamente que um sujeito S,, um a proposição
relativa aos pensamentos de S, implica apenas uma diferença de
grau.
Nisto está implicado que a “ introspecção” não desfruta —
não pode desfrutar — de nenhum estatuto privilegiado quando
se trata do conhecimento científico dos fenómenos psicológicos.
Assim, um psicólogo pode considerar que é através da intros­
pecção que pode registrar: “ (eu estou) excitado agora” . No
ntanto, para comunicar isto, e mesmo para com parar as con­
48 A R Q U EO LO G IA DO. BEHAVIORISM O

clusões gerais que disso eventualmente tirar, com conclusões de


outras pessoas, deve expressar seu conteúdo através de proposi­
ções que possam ser interpretadas fisicamente, pois se assim não
ocorrer suas proposições não terão sentido para uma terceira
pessoa. A posição dos psicólogos partidários da introspecção
está baseada no fato de que, ao afirm arem que pela auto-
observação captam algo não físico (que seria o objeto próprio
da Psicologia), não advertem que negam, na teoria, o mesmo
fisicalismo que adotam na prática.
Q uando um psicólogo A publica seus resultados, tem que
fazê-lo na forma canônica: “ A estava excitado” . Para o leitor,
digamos um psicólogo B, esta é uma proposição sobre o psiquis­
mo alheio, e, sendo assim, para B só é verificável o estado físico
do corpo de A no momento considerado, (que B não pode obser­
var por si mesmo, mas que pode inferir indiretamente que exis­
tiu). Daí, as proposições protocolares de um psicólogo, basea­
das na introspecção, devem ser consideradas os fa to s científi-
ficos e não proposições científicas.33 Os enunciados introspec­
tivos de um psicólogo não devem ser interpretados diferente­
mente dos enunciados sobre objetos experimentais. Os movi­
mentos corporais do psicólogo não devem ser interpretados de
modo diferente dos de um animal, os quais não devem ser inter­
pretados de form a diversa dos de um aparelho científico qual­
quer.34 Em qualquer dos casos a situação é a mesma: de uma
dada proposição física são inferidas outras proposições com a
ajuda de fórmulas físicas gerais. A única especificidade da situa­
ção de auto-observação reside nisso: “ ao usar um enunciado
introspectivo de alguém acerca do estado de sua mente (o enun­
ciado de A: ‘A está excitado’), o enunciado, considerado como
fato acústico, é o signo; em circunstâncias favoráveis, que são
com freqüência satisfatórias nos contextos científicos, o estado
de coisas aludido é tal, que pode ser descrito mediante uma pro­
posição (‘A está excitado’) que tem exatamente a mesma forma
que o fato acústico que funciona como signo dele ... Essa identi­

33 Carnap, Psicologia em Linguagem Fisicalista p. 200. Para Carnap, “ a confusão


epistemológica” da Psicologia contemporânea deriva, no essencial, dessa confusão
entre “ fatos na forma de proposição” e as “ proposições como partes da ciência” .
34 A única diferença entre esses casos, é o grau de fecundidade de suas premissas: os
dados que o próprio psicólogo fornece provavelmente justifiquem a inferência de um
número maior de proposições cientificamente importantes. Mas toda diferença
limita-se a isto.
EM PIRISM O E PSICO LO G IA 49

dade de form a do fato acústico e da proposição científica que


há que inferir dele explica porque ambas as coisas são confundi­
das tão fácil e obstinadamente ... (tudo) se aclara logo que se
perceba que aqui ... se trata apenas de inferir de um signo o que
significa” .35
Por fim, qualquer privilégio que se queira m anter para os
enunciados introspectivos, desaparece se nos voltamos para a
análise da gênese desses enunciados, elucidativa no que se refere
ao conteúdo possível dos mesmos. Para Carnap, a possibilidade
de um sujeito S constituir proposições sobre os estados físicos
de seu próprio corpo está na dependência direta de um aprendi­
zado. Através dele outro sujeito, S,, induz S ao hábito de “ ver­
balizar” de tal modo que a série de palavras produzidas por S
coincidam com a proposição da linguagem fisicalista intersubje-
tiva que expressa o estado de S, mas esse estado tal qual o per­
cebe S„ ou seja, o estado físico do corpo de S.36 Assim, proposi­
ções do tipo “ Sinto-me feliz” ... (seguida das especificações
necessárias à caracterização da situação), que descrevem estados
da própria mente, são adquiridas a partir do aprendizado de
proposições “ Você se sente feliz” (na situação determinada
“ X ” ), que são proposições acerca do psiquismo alheio (o meu,
no caso), que nada mais designam senão um determinado esta­
do físico.
Desse m odo, palavras como “ irritado” , “ d o r” , “ alegria”
etc., devem, em princípio, poder ser relacionadas com expres­
sões fisicalistas, pois disso depende a possibilidade de ensinar a
alguém o significado das mesmas: para explicar a alguém o sig­
nificado da palavra “ d o r” é necessário, primeiro, deduzir da
observação de sua conduta que tem doreS e, em seguida, dizer-
lhe: “ o que sentes agora é d o r” .
Quanto aos conceitos psicológicos, a conclusão a que Car­
nap chega, neste artigo, é a de que se trata sempre de conceitos
disposicionais. Em proposição do tipo “ O corpo de S está fisi­
camente excitado” , “ Meu corpo está fisicamente excitado” , o

35 Carnap, op. cit., pp. 201-202.


36 Carnap, Psicologia em Linguagem Fisicalista, p. 202. É interessante, pelo menos em
princípio, comparar esta teoria de Carnap com alguns textos de Skinner, como por
exemplo o cap. VIII de Contingências do Reforço, especialmente pp. 344 e segs.
(trad. bras., col. Os Pensadores, Abril Cultural, SP, 1980), e o artigo “ The Opera-
tional Analysis o f Psychological Terms” , publicado originalmente em Psychological
Review, 52, 1945.
50 ARQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

termo “ fisicamente excitado” é entendido como propensão a


reagir de um modo determinado em determinadas circunstân­
cias. Por conceito disposicional se entende uma propriedade defi­
nida por uma implicação, (uma relação condicional); assim, o
conceito de tem peratura é um conceito disposicional se defini­
mos que “ o corpo C tem a tem peratura T ” significa “ se uma
quantidade suficientemente pequena de mercúrio é posta em
contato com C, e n tão ...” . Igualmente, “ X está excitado” sig­
nifica “ se agora fossem aplicados a X estímulos de tal classe,
então X reagiria de tal maneira” .37
Essa forma de entender os conceitos psicológicos,38 implica
alguns problemas. Se “ excitado” é um predicado de disposição,
só é possível chegar à proposição do tipo “ X está excitado”
mediante generalização indutiva.39 Isto é incompatível com a
afirmação de que alguém pode saber, por introspecção, que está
excitado, (que no entanto é aceita por Carnap). Aceito que “ p ”
é um predicado disposicional se uma proposição de forma “ Px”
não pode ser confirm ada diretamente, mas apenas mediante
inferência com a ajuda da enunciados de redução a partir de fra­
ses diretamente confirmáveis, não é congruente afirm ar que há
pelo menos um observador que pode confirmar diretamente a
proposição “ X está excitado agora” , observador que é o pró­
prio “ X ” , isto é, afirm ar que existe um método introspectivo .40
Q uanto às “ leis psicológicas” , a conclusão é de que,
ainda que o estágio de desenvolvimento do conhecimento não
torne isso imediatamente factível, tais leis são definíveis pelas
leis da Física, o que permitiu a imputação de compromissos me­
tafísicos aos componentes do Círculo de Viena. Assim, a pri-

37 Carnap, loc. cit., p. 192. Essa teoria será desenvolvida posteriormente em Founda-
tions o f the Unity o f Science, e deixada de lado com a publicação do ensaio “ The
Methodological Character o f Theoretical Concepts” (1956). A interpretação dos
estados psíquicos como disposições é encontrada em alguns psicólogos, como, por
exemplo, Bergmann (The Logic o f Psychological Concepts) e Tolman.
38 Sem dúvida provisória e explicável pelo estágio atual de nossos conhecimentos, con­
forme argumenta Carnap: o avanço do conhecimento físico a respeito da estrutura
da matéria permite definir a temperatura de um corpo pela energia cinética de suas
moléculas e abandonar assim o conceito disposicional de temperatura (esta é agora
uma “ propriedade atual” ). É crível supor que o mesmo ocorrerá no que respeita aos
conceitos psicológicos (cf. Carnap, Psicologia em Linguagem Fisicalista, p. 192-
193).
39 Cf., a esse respeito, o livro de G. Ryle, The Concept o f Mind, cap. VI.
40 Esse aspecto será desenvolvido a obras posteriores, como em The Lógica! Founda-
tions o f the Unity o f Science.
A
EM PIRISM O E PSICO LO G IA ^ ^

ineira fase, caracterizada pela adoção de uma linguagem feno-


menista para a reconstrução do conhecimento empírico, corres­
ponderia a uma variante do idealismo subjetivo. A segunda fase
— o fisicalismo em sua primeira versão — corresponderia a uma
posição metafísica caracterizada como materialista. Qualquer
que seja a importância de tal imputação, é necessário lembrar,
entretanto, que os empiristas lógicos em nenhum mom ento ma­
nifestaram preocupação ou interesse por verdades ontológicas.

III

O projeto neopositivista para a Psicologia envolve, pelo


menos a título de hipótese, a redução dessa ciência à Física, na
medida em que reputa possível a expressão das leis psicológicas
em termos de leis físicas.
Nesse mesmo período histórico — primeiras décadas do sé­
culo — um outro projeto para a Psicologia é proposto, e sua no­
vidade radical é a de, ao mesmo tempo, evitar o recurso a qual­
quer forma de reducionismo, e qualquer tipo de fundamentação
que implique definir a ciência psicológica por oposição a outras
ciências, especialmente a Física.
Esse projeto é apresentado por Bertrand Russell, e suas
idéias básicas encontram-se em várias de suas obras, publicadas
no período que, aproximadamente, vai de 1920 a 1940. Uma
exposição sistemática constitui o livro básico para essa questão,
Análise da Mente (1921).
Em sua reflexão acerca da Psicologia, Russell procurará
demonstrar que as insuficiências que as críticas tradicionais des­
tacam no domínio dessa ciência, curiosamente, tendem a reapa­
recer nos programas de pesquisa que são nropostos visando dar
estatuto científico à disciplina em questão. O ponto de partida
de Russell é a consideração deste fenômeno, que é explicado,
em termos gerais, pelo fato de esses programas utilizarem, como
pressuposto, uma concepção inadequada das ciências, em espe­
cial uma filosofia “ errônea” da Física.
Para dem onstrar isso, Russell tom ará como interlocutor
privilegiado, na Psicologia, o programa behaviorista, tal como
fora formulado por Watson.
Para Russell, o program a behaviorista pode ser entendido
como uma posição rigorosamente materialista em Psicologia.
52 ARQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

Mas, questão que de imediato, se coloca: o que é uma posição


materialista em Psicologia? Se, segundo Russell, essa posição se
explica por uma tendência à redução do “ m ental” ao “ físico”
(que se exprimiria, no plano teórico, pela subordinação da Psico­
logia à Fisiologia e, em última instância, à Física), a constituição
de uma ciência psicológica não pode prescindir (deve, pelo con­
trário, nisso se fundam entar) da consideração do estágio de
desenvolvimento das demais ciências envolvidas. O que é “ men­
tal” nesse sentido, fica na estrita dependência da definição pro­
posta para o “ físico” .
Na perspectiva de Russell, a inconsistência maior do pro­
grama behaviorista reside na adoção de uma concepção do que
seja “ físico” que decorre de uma inadequada filosofia da Físi­
ca,41 isto é, de uma filosofia que não se dá conta de que esta
ciência não mais pressupõe a existência de matéria. Dessa for­
ma, o que é falho, no behaviorismo, e responde pelas inconse-
qüências a que ele conduz,42 pode ser eliminado através de uma
reformulação desse program a tal que, consistentemente com as
transformações pelas quais passou a noção de matéria, se chegue
a uma outra noção de “ m ente” .
Isso, para Russell, implica o abandono tanto do idealismo
como do materialismo, e a adoção do cham ado “ monismo neu­
tro ” . A idéia básica é que o “ dado” é neutro no sentido de que
não pode ser caracterizado nem como “ m ental” nem como “ fí­
sico” , e é desse elemento neutro que ambos são construídos.43
Essa tese de que só existe um elemento básico constituinte
do mundo, elemento que não é “ físico” ou “ m aterial” , nem
“ m ental” ou “ espiritual” , Russell recolhe-a nas críticas de
William James às concepções substancialistas da consciência.44
Mas, na medida em que James supõe que “ existe um a única ma­
téria-prim a ou um único estofo no mundo, um estofo do qual

41 Russell, The Analysis o f Mind, G. Allen and Unwin Ltd., Londres, 1956, p. 307
(trad, bras., A Análise da Mente, Zahar Editores, RJ, 1976, p. 228).
42 Essa crítica de Russell não atinge, como veremos, o aspecto puramente metodológico
do programa behaviorista.
43 “ Um dado é um dado tanto para a Física como para a Psicologia: é o ponto de
encontro das duas. Não é mental, nem físico, mas é parte da matéria bruta tanto do
mundo físico como mental” , Russell, Delineamentos da Filosofia, Ed. Civilização
Brasileira, RJ, 1969, p. 229.
44 “ Does ‘consciousness’ exist?” , in Essays in Radical Empiricism, Longmans, Green
and Co., 1912.
E M PIRISM O E P SICO LO G IA 53

Iodas as coisas são com postas” , e que tal estofo é a “ experiên­


cia pura” ,45 Russell não mais o acom panhará. Reconhecendo
que a utilização da expressão “ experiência pura” dem onstra a
influência, ainda que distante, de doutrinas idealistas, no pensa­
mento de James, Russell defenderá a idéia segundo a qual, assu­
mida com todo rigor a premissa adotada como ponto de parti­
da, “ experiência” — tal como “ consciência” — é “ produto, e
não parte do elemento principal do universo” .46 Conform ando-
se à terminologia de alguns realistas americanos, entre os quais
cita Perry e Edwin Holt, Russell preferirá dizer que a substância
de que é feito o mundo não é “ nem espírito, nem m atéria, mas
algo mais primitivo que um e o u tra” .47
Essa concepção implicará, necessariamente, uma revisão
radical da “ filosofia da m atéria” e da “ filosofia da m ente” ,
bem como uma redefinição das relações entre a ciência física e a
Psicologia. Procuremos analisar como isto é feito.
Russell parte de certas crenças, com partilhadas pelo senso
comum e pela Filosofia, a respeito da constituição do mundo.
Parece evidente que tudó o que existe ou é espírito ou é matéria,
e que a distinção entre ambos é fácil e clara: enquanto objeto
que vemos fora de nós, é físico e independente da percepção,
subsistindo se deixamos de o perceber, (é algo permanente); o
que é visto ou percebido, é subjetivo e não permanente por se
encontrar em um estado de fluxo perpétuo.
N a perspectiva russelliana tudo isto nada mais é que um
erro, o que pode ser demonstrado pela análise de exemplos muito
simples. Tomemos o caso da percepção de um objeto físico
qualquer, uma mesa, situada próxim a a um dado conjunto de
observadores. Aparentemente, ao olharem para o objeto, todos
os observadores concordam que viram um mesmo objeto,
isto é, a mesa. Porém, uma análise mais detalhada demonstra
que, quando os diferentes observadores olham a mesa, a visuali­
zam de diferentes perspectivas, e em conseqüência “ vêem” algo
diferente: “ portanto a mesa que se supõe todos verem, deve ser
uma hipótese ou um a construção” .48 A mesa “ real” , reconhece

45 James, op. cit. Cito a partir da edição brasileira (parcial) de Essays on RadicalEm pi-
ricism, publicada na coleção Os Pensadores, vol. XL, 1? edição, 1974, Abril Cultu­
ral, SP, p. 102.
46 Russell, The A nalysis o f Mind, p. 25, (trad. bras., p. 20).
47 Idem, ibidem, p. 10 (trad. bras., p. 10).
48 Idem, ibidem, p. 97 (trad. bras., p. 78).
54 ARQ UEOLOGIA DO BEHAVIORISM O

Russell, pode ser entendida — e em geral o é — como a causa


comum de todas as aparências que ela apresenta. Mas ao proce­
der desse modo, utilizando uma noção não muito digna de con­
fiança,49 cria-se mais problemas do que se resolve, sendo prefe­
rível tom ar o conjunto das sensações como sendo a mesa, dei­
xando de lado, como desnecessária, a suposição de qualquer
existente singular enquanto fonte de todos os “ aspectos” da
mesa.50
Tomemos, agora, um outro exemplo, o de uma fotografia
de corpos celestes. Q uando se fotografa uma região do firma­
mento, obtém-se um registro tal que cada objeto distinto naquela
região produz um efeito distinto na fotografia. Face a isto, é
possível, ou reunir as ocorrências de diferentes objetos celestes
num dado lugar, e se tem então uma “ perspectiva” , isto é, a vis­
ta do mundo desse lugar, ou reunir todas as ocorrências de um
certo objeto celeste em diferentes lugares, e todos os diferentes
aspectos desse objeto, reunidos, o representariam. Então, se
tem um “ algo material” ou um “ objeto físico” , ou uma “ coi­
sa” .51 A partir daí é possível uma definição de matéria despro­
vida das conotações metafísicas clássicas: “ A matéria ... é ... a
coleção de todos os particulares correlacionados que seriam
normalmente considerados como aparências ou efeitos em dife­
rentes lugares” .52
Q uanto á definição dada de “ perspectiva” , há que levar
em conta um aspecto suplementar. Q uando, por exemplo, um
indivíduo humano ouve um som, é possível definir a “ perspecti­
va” na qual se inclui essa sensação pelo conjunto de particulares
que lhe são simultâneos. Nesse caso, tais ocorrências nada mais
são que os eventos da vida privada daquele indivíduo. Isto é, o

49 Idem, ibidem, pp. 93 e segs. (trad. bras., pp. 70 e segs.).


50 O que, até aqui, foi chamado de “ aspecto” , Russell o denominará, mais tecnicamen­
te, “ particular” . Cf. The Analysis ofM in d, p. 98 (trad. bras., p. 74), também Misti­
cismo c Lógica, Zahar Editores, RJ, 1975, p. 137.
51 Misticismo e Lógica, p. 147: “ Há dois modos de classificar os particulares; podemos
considerar conjuntamente todos os que pertencem a uma determinada ‘perspectiva’
ou todos os que são como diria o senso comum, ‘aspectos’ diferentes de mesma ‘coi­
sa’... se vejo o Sol, o que vejo pertence a duas coleções: 1) a de todos os meus objetos
dos sentidos atuais, o que chamo ‘perspectiva’; 2) a de todos os particulares diferen­
tes a que chamaríamos aspectos do Sol de ... minutos atrás — esta coleção corres­
ponde ao que defino como sendo o Sol de ... minutos atrás. Desse modo, ‘perspecti­
vas’ e ‘coisas’ são apenas dois modos diferentes de classificar os particulares” .
'2 The Analysis o f Mind, p. 101 (trad. bras., p. 76).
EM PIRISM O E PSICOLOGIA 55

que Russell denomina a sua “ biografia” . Para ele, a sensação


em questão pertencerá a uma biografia, que é “ o conjunto de
particulares que precedem, ou seguem ou são simultâneos” da
sensação dada.51
Em conseqüência dessa forma de classificação dos particu­
lares, constitui-se um dualismo em relação a tudo o que existe,
pois até aqui não há nenhuma distinção possível entre “ objetos”
e “ seres vivos” , ou entre “ coisas” e “ pessoas” no sentido usual
desses termos. Assim, no caso da observação de um objeto celes-
le, a Lua, por exemplo, é possível falar em “ coisas” e “ perspec­
tivas” ou “ biografias” no sentido russelliano, quer se trate da
observação visual de um ser hum ano, quer se trate de um regis­
tro fotográfico.
Em um caso como no outro, nos diz Russell, há que notar
que o que se tem é uma sensação ou um registro fotográfi-
fico, que é ao ao mesmo tempo um membro do grupo de parti­
culares que é a Lua, e um membro do grupo de particulares que
é a perspectiva ou biografia. Daí, cada particular é associado a
dois lugares: aquele no qual o objeto está (“ lugar ativo” ), e
aquele no qual está o observador, ser humano ou artefato técni­
co (“ lugar passivo” ). É possível, em decorrência, reunir todos
os particulares “ ativamente” ou “ passivamente” em um dado
lugar. No caso da chapa fotográfica, tem-se a chapa tal como é
entendida em termos físicos (sua constituição, por exemplo) e o
aspecto do céu tal qual está registrado na chapa. No caso de um
observador humano, tem-se o cérebro e a mente (na medida em
que consiste em percepções).
Estas considerações são suficientes para Russell, em pri­
meiro lugar, negar que a subjetividade seja uma característica
distintiva da mente, uma vez que é perfeitamente possível admi­
tir que, entendida como “ a característica das perspectivas e das
biografias, a característica de dar a visão do mundo a partir de
determinado lugar” ,54 a subjetividade está presente também em
um objeto tal como a chapa fotográfica. Assim sendo, a subjeti­
vidade é um elemento necessário para definir a mente, mas de
modo algum é o elemento suficiente.
Em segundo lugar, Russell chega a uma definição da per­
cepção, entendendo-a “ como a aparência do objeto vista de um

" Idem, p. 128 (trad. bras., p. 96).


'4 Idem, p. 296 (trad. bras., p. 220).
56 A RQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

lugar onde há um cérebro (ou, no caso dos animais inferiores,


uma estrutura nervosa apropriada), com órgãos sensoriais e ner­
vos form ando parte do meio interveniente” .55 Em conseqüên­
cia, algumas indicações já podem ser adiantadas a respeito da
Física e da Psicologia. O que as distingue não é mais o fato de,
a cada uma delas, serem imputados objetos diferentes, a “ ma­
téria” e a “ m ente” ; a diferença entre a Física e a Psicologia
está em que a primeira agrupa os particulares pelos seus “ luga­
res ativos” e a segunda pelos seus “ lugares passivos” . Assim,
todo o sistema de aparências de algo material é tratado como
um a unidade pela Física, enquanto que a Psicologia interessa-se
basicamente por algumas dessas aparências, isto é, pelas apa­
rências de objetos físicos “ em lugares de onde os órgãos senso­
riais e as partes apropriadas do sistema nervoso constituem parte
de um meio interveniente” .56
Estas indicações, no entanto, são mínimas, sendo neces­
sário para, concomitantemente, encontrar uma definição ade­
quada dos “ fenômenos mentais” e explicitar integralmente as
diferenças entre a Física e a Psicologia, bem como suas relações,
modificar a linha de análise até agora seguida, procurando expli­
citar as concepções de Russell a respeito de alguns conteúdos da
“ vida mental” tradicionalmente reconhecidos, tais como a sen­
sação, a percepção, as imagens, a memória etc.
Primeiramente, Russell considera as sensações e as ima­
gens. Das sensações, nisso seguindo James e os realistas ameri­
canos, bem como Mach, diz que constituem uma fonte do conhe­
cimento do mundo, não sendo, porém, em si mesmas, conheci­
m ento.57 Para que o fosse, seria necessário supor a existência de
um sujeito e postular uma relação desse sujeito da sensação (de
ver, por exemplo), com alguma coisa outra (que é vista), relação
essa que seria a consciência. Ora, Russell assume, com todo
rigor, as opiniões de James a respeito da consciência, e quanto
ao “sujeito”, ao “ eu” adota uma postura em muitos aspectos
semelhante a de Hume. Para ele o sujeito é uma ficção lógica,
introduzido “ não porque a observação o revela, mas porque é

55 Idem, p. 131 (trad. bras., p. 98).


56 Idem, p. 104 (trad. bras., p. 78).
57 A sensação que temos quando vemos um remendo de cor é simplesmente esse remendo
de cor, um componente real do mundo físico, e uma parte de que a Física se ocupa.
Um remendo de cor não é certamente conhecimento e, portanto, não podemos dizer
que a sensação pura é cognitiva” , The Analysis o f Mind, p. 142 (trad. bras., p. 106).
EM PIRISM O E PSICO LO G IA 57

lingüisticamente conveniente e aparentemente exigido pela gra­


mática” .58
Desse modo, Russell considera que a sensação, tal como a
entende, define-se como a interseção da mente e da matéria (o
remendo de cor que eu vejo é físico e psíquico), como indepen­
dente da experiência passada e como o núcleo de nossas expe­
riências reais.59
Entendida dessa forma, a sensação constitui-se em um
dado tanto para a Física como parte a Psicologia, mas seria errô­
neo supor que elas representam todo o conteúdo de nossa vida
mental, tal como se poderia depreender do behaviorismo de
Watson. Russell crê que, além das sensações, há que reconhe­
cer, ainda, a existência de imagens. As dificuldades na definição
do que é um a imagem parecem decorrer das insuficiências dos
critérios adotados para distinguir, operação que na prática nem
sempre é possível realizar, entre imagens e sensações.
O primeiro critério analisado é o formulado originalmente
por Hume para distinguir entre “ impressão” e “ idéia” . Como
se sabe, Hume divide todas as percepções do espírito humano
em dois gêneros: as impressões (“ nossas percepções mais vivas,
quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, deseja­
mos ou querem os” )60 e as cópias daquelas, que são denom ina­
das idéias (que são as percepções “ menos vivas” , “ embaçadas
e fracas” ). Com base nisso, o critério fornecido por Hume para
distinguir entre impressão e idéias consiste na diferença nos
graus de força e de vivacidade com que cada gênero da percep­
ção toca o espírito. Em bora perfeitamente aplicável nos casos

58 The Analysis o f Mind, p. 141 (trad. bras., p. 106). Seria interessante, a respeito,
indicar a seguinte frase de Hume (A Treatise o f human nalure, I, 4, VI), após discu­
tir exaustivamente as doutrinas a respeito da “ identidade pessoal” : “ Todas as ques­
tões refinadas e sutis acerca da identidade pessoal sem dúvida não podem ser resolvi­
das e devemos encará-las como dificuldades gramaticais e não como dificuldades
filosóficas” (p. 355 da tradução francesa de A. Leroy, editada por Aubier-Montaigne,
a partir da qual cito). Interessante também aproximar destes textos de G. Ryle, a res­
peito da mesma questão (itens 6 e 7, “ O Eu” e “ O Sistemático Caráter Ilusório do
‘Eu’” , do cap. VI, “ Autoconhecimento” , de seu livro The Concept o f M ind).
59 The Analysis o f M ind, p. 144 (trad. bras., p. 108); cf. também, p. 131 (trad. bras.,
p. 98) onde Russell indica que é apenas teoricamente que podemos isolar uma sensa­
ção daquilo que é devido à experiência passada. Assim, toda experiência real é uma
percepção; a sensação seria um “ núcleo teórico” nessa experiência.
60 Hume, Investigação acerca do Entendimento humano, trad. de A. Aiex, Companhia
Editora Nacional, SP, 1972, p. 16.
58 ARQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

mais comuns, este critério não se presta para distinguir entre


imagem e sensação (ou idéia e impressão), em situações parti­
culares e excepcionais, como no sono, no delírio ou na loucura.
Sendo esta a maior insuficiência do critério humeano,
poder-se-ia pensar que seria mais adequado distinguir sensações e
imagens, distribuindo-as pelas rubricas do “ real” e do “ irreal” .
Utilizado ingenuamente, esse critério parece permitir a distinção
entre, por exemplo, a cadeira que está diante de mim, objeto
físico que posso manusear à vontade, deslocando-o para outro
lugar, sentando nele ou atirando-o pela janela, e a cadeira que
“ tenho em minha cabeça” , “ objeto im aginário” no qual, por
exemplo, não posso pretender sentar. O que Russell argumenta
é que, nesse caso, quando se diz que a cadeira “ im aginária” é
irreal, só erroneam ente se pode pretender que, com isto, se afir­
ma também que não há tal coisa como uma cadeira imaginária:
pai a dizer que a imagem é “ irreal” é necessário, primeiro, que
saibamos que se trata efetivamente de uma imagem, isto é, que
“ h á ” uma imagem. Sendo assim, as imagens, tal como as sensa­
ções, são partes do “ mundo real” , e dizer que uma imagem é
“ irreal” só pode significar que “ ela não tem os concomitantes
que teria se fosse uma sensação” ,61 a “ irrealidade” delas consis­
tindo “ simplesmente no fato de elas não obedecerem às leis da
Física” .62
Para Russell, a distinção entre imagens e sensações, verifi­
cadas as insuficiências dos critérios considerados, só pode ser
operada através de um critério baseado na origem causal de sen­
sações e imagens. Assim, dir-se-ia que as sensações são causa­
das, sempre, pela estimulação do aparelho nervoso que leva um
efeito ao cérebro, normalmente a partir da superfície do corpo.
A causação das imagens é diferente. Em princípio, e indicativa-
mente, diz Russell que uma imagem é “ ocasionada” , através da
associação, por uma sensação ou uma outra imagem, por outras
palavras, tem um a causa mnêmica.63
Definidas dessa form a, as imagens se aproximam daquilo
que Russell chama de percepção. A caracterização mínima da
percepção, que já foi indicada, era a seguinte: a percepção de
um objeto é a aparência desse objeto visto de um lugar onde há

61 The Analysis o f M ind, p. 148 (trad. bras., p. 111).


62 Idem, p. 149 (trad. bras., p. 112).
63 Idem, p. 150 (trad. bras., p. 112).
EM PIRISM O E PSICOLOGIA 59

um cérebro. Ora, o que distingue essa aparência do objeto das


aparências noutros lugares é o fato de dar origem a fenômenos
mnêmicos e de ser, ela mesma, afetada por fenômenos mnêmi-
ros. Por isso, Russell diz que, na percepção, teoricamente pelo
menos, “ podemos separar a parte que é devida à experiência
passada da parte que decorre, sem influências mnêmicas, do
caráter do objeto” ,64 sendo esta última o que se denomina sen­
sação. Se assim é, seria possível denominar “ imagem” uma
ocorrência da mesma espécie que a percepção, porém não pos­
suindo o estímulo que teria se efetivamente se tratasse de uma
percepção.
Assim compreendidas, as imagens constituem-se em ocor­
rências que podem ser denominadas “ ocorrências privadas” ,
como algo que não pertence aos acontecimentos do mundo pú­
blico, e que é irredutível a estes.65 Essa irredutibilidade das ima­
gens constitui um dos pontos básicos da crítica russelliana ao
behaviorismo de Watson. Como se sabe, para W atson, as ima­
gens, ou o que, na literatura psicológica, é entendido como tal,
são substituídas por sensações ou por movimentos incipientes,
iimbora Russell considere que, em relação a certos “ fenômenos
mentais” , como o pensamento, por exemplo, essa redução é
uma hipótese interessante, e inclusive suscetível de prova expe-
rimental, em outros casos — como são os das imagens visuais
e auditivas — não parece cabível a aplicação da hipótese de
Watson.
A dmitida a existência das imagens, Russell fará delas, jun-
lamente com as sensações, os únicos elementos da vida mental,
considerando-as, juntam ente com suas relações, os dados
últimos66 da Psicologia. Tais elementos serão fundamentais para
a análise e explicação de outros fenômenos mentais, como a me­
mória, o hábito e o pensamento. Quanto à memória,67 a teoria

Idem, p. 132 (trad. bras.., p. 98).


M Idem, p. 153 (trad. bras., p. 114). C f., também, Delineamentos da Filosofia, pp. 153
e segs.
w’ Isto implica que, consistindo em sensações, os dados da Física são também psicológi­
cos. The Analysis o f Mind, p. 299 (trad. bras., p. 223).
1,1 O que Russell considera, em sentido estrito, “ memória” , não é o que se denomina
“ memória” quando se diz que alguém lembra um poema quando pode repeti-lo
corretamente (nesse caso, trata-se de “ hábito-memória” ; cf. Delineamentos da Filo­
sofia, loc. cit., p. 215); “ memória verdadeira” ou “ lembrança” , (ou ainda
“ memória-ocorrência” ), é a recordação independente, isto é, a recordação de um
evento que ocorreu uma única vez.
60 A R Q U E O L O G IA DO BEHAV IORISM O

russelliana é a de que ela consiste na existência de uma imagem,


a qual dá origem a um a crença de que algo, aproximadamente
correspondente à imagem, ocorreu no passado. Q uanto ao que
é denominado “ pensar” e “ pensam ento” , Russell o analisa a
partir da elaboração de uma teoria do significado. Procura
mostrar, primeiro, que há uma diferença irredutível entre “ com­
preender” uma palavra e “ saber o que ela significa” . É possível
dizer que uma palavra é compreendida quando se a utiliza em
circunstâncias apropriadas e quando a audição da palavra causa
um com portam ento apropriado. O significado não se encontra
necessariamente implicado no uso da palavra: este vem primei­
ro, e o significado é “ destilado” dele por meio da observação e
da análise. No caso do uso demonstrativo da linguagem, o que se
chama “ com preensão” de uma palavra (ou de uma expressão),
pode ser explicado em termos puram ente behavioristas. Mas,
segundo Russell, uma coisa é dem onstrar compreensão da pala­
vra “ autom óvel” empregada na expressão “ Cuidado! vem aí
um automóvel” , ouvida quando se atravessa um a rua (então,
diz-se que o ouvinte “ compreende” se recuar ou saltar para o
lado). O utra coisa, m uito diferente, se passa quando do uso da
palavra no relato verbal de uma situação desse tipo. Então,
quem narra não está vendo um automóvel, e quem ouve não
olha em torno à procura do automóvel; o narrador “ recorda” e
o ouvinte “ com preende” . Nesta situação, as palavras são des­
tinadas a levar a imagens, enquanto que no primeiro caso desti­
nam-se a levar a sensação.
Segundo a opinião de Russell, a utilização de palavras no
“ pensar” depende, pelo menos originariamente, das imagens,
pois só através dessa conexão é que podemos nos colocar em
contato com o que é remoto no tempo e no espaço, com o que
não é imediatamente presente. Inegavelmente, reconhece Rus­
sell que, na medida em que há uma familiarização crescente com
as palavras, o papel das imagens no “ pensar” se reduz, no limi­
te todo pensamento podendo prescindir de imagens. Isto, porém,
deve ser entendido como um “ efeito” ou “ resultado” de um
processo relativamente longo, cujos aspectos positivos não
devem, aliás, ser sobrevalorizados. Pois, se os benefícios das pa­
lavras para o “ pensar” são difíceis de avaliar totalm ente, há
que reconhecer, em contrapartida, que a única maneira de evi­
tar erros tais como o de supor que a “ gramática é a chave da
Metafísica” , ou que “ a estrutura de um a frase corresponde com
EM PIRISM O E PSICO LO G IA 61

precisão absoluta à estrutura do fato que afirm a” , é “ ser capaz,


vez por outra, de descartar as palavras por um mom ento e con-
lemplar os fatos mais diretamente através das imagens” .58
A definição de imagem como parte dos dados últimos da
Psicologia, leva Russell ã reavaliação global do program a beha-
viorista watsoniano para esta ciência, e nesse reexame impõe-se,
como imprescindível, uma análise dos procedimentos de auto-
observação, um exame do método da introspecção e das críticas
behavioristas a ele feitas.
Russell começa pela consideração da introspecção nos qua­
dros das teorias dualistas da mente e da matéria. Nessa perspec­
tiva, postula-se a existência de duas maneiras do conhecer: atra­
vés da sensação e da percepção externa obtêm-se os dados para
o conhecimento da matéria; através de introspecção, ou de um
sentido interno, obtemos os dados para o conhecimento de pro­
cessos mentais. Pela primeira dessas maneiras de conhecer,
adquirimos conhecimento do que ocorre no mundo; pela segun­
da, do que se passa em nosso “ interior” .
Talvez os behavioristas sejam, entre os psicólogos, os que
mais resolutamente opuseram-se a essa dualidade de métodos,
mas ao fazerem-no adotaram , como paradigma, uma filosofia
inadequada da ciência física. Da argumentação de Watson con­
tra o procedimento da introspecção, Russell retém as seguintes
idéias: são certos apenas aqueles fatos que são públicos, e tais
fatos constituem a base das ciências físicas; as ciências físicas
são capazes de fornecer explicação para todos os fatos publica­
mente observáveis relativos ao procedimento hum ano; não há
fatos, relativos aos seres hum anos, inacessíveis a esse modo de
conhecimento. Em conseqüência, W atson é levado a negar
qualquer valor à introspecção, considerando-a mera supers­
tição, bem como a reduzir a “ movimentos de m atéria” certos
fenômenos como as imagens e o pensamento.
Segundo Russell, o exame da instrospecção e das críticas
até então feitas a ela deve começar, necessariamente, pelo ques­
tionam ento de alguns pressupostos quase nunca tematizados, e
que, desse modo, constituem o terreno comum de defensores e
detratores dessa “ maneira de conhecer” .
De início, Russell questiona a oposição entre a “ publicida­

68 The Analysis o fM in d , p. 212 (trad. bras., p. 158).


62 ARQ U EO LO G IA DO BEHAVIORISM O

de” e a “ privacidade” do que é — ou pode ser — observado.


Pelo que se depreende da teoria russelliana da percepção, ressalta
óbvio que nenhum a sensação é inteiramente pública. Dada a
diferença de posição, a diversidade de perspectivas, duas pes­
soas não têm a mesma sensação ao olharem para um “ mesmo”
objeto. Normalmente, as sensações consideradas “ públicas”
são aquelas em que as sensações correlacionadas são muito
semelhantes e as correlações são muito fáceis de descobrir. As
sensações “ privadas” , por sua vez, também apresentam correla­
ções observáveis, como no caso da correlação entre dor de dente
e uma cárie muito profunda: o dentista não pode observar a
dor, mas pode ver a sua causa.69
A conclusão é que entre “ publicidade” e “ privacidade”
não é admissível diferença senão de grau, e a privacidade “ por
si mesma não torna o dado inapropriado para o tratamento cien­
tífico” .70
Essa “ relativização” do público e do privado, conjugada
com as idéias básicas de Russell a respeito de teoria do conheci­
mento, tem uma curiosa conseqüência para o que respeita à
questão das relações entre a Psicologia e as ciências físicas.
Quando dizemos que “ vemos o Sol” , estamos falando de uma
ocorrência que se verifica em nós: q u an ta ao “ Sol mesmo” ,
objeto fora de nós, que seria a causa daquela ocorrência, trata-
se estritamente de um a inferência. Nesse sentido, “ ver o Sol” , é
algo tão “ privado” quanto uma dor de dente, e se é através da
auto-observação que posso saber que o cheiro de ácido sulfí-
drico é desagradável, é também por auto-observação que sei que
o Sol é quente e brilhante. Isto permite dizer que há razão em
afirm ar que “ todos os fatos que podem ser conhecidos a respei­
to das criaturas humanas são conhecidos pelo mesmo método
pelo qual são conhecidos os fatos da quím ica” ; mas, só que há
razão nisso porque, se Física e Psicologia têm um mesmo méto­
do, esse método é o da segunda e não o da prim eira.71

69 Este fato não justifica, segundo Russel!, o abandono de observações que são priva­
tivas de um só observador, como pretendia Watson, pois só através dessa observação
é que correlações desse tipo podem ser estabelecidas.
70 The Analysis o f Mind, p. 118 (trad. bras., p. 89). “ Os dados da Psicologia são os
fatos privados que não se acham muito diretamente ligados aos fatos de fora do cor­
po, enquanto que os dados da Física são os fatos privados que têm uma conexão cau­
sal muito direta com os fatos de fora do corpo” , Delineamentos da Filosofia, p. 185.
71 Correlativamente, como já foi indicado, o mundo material não é composto por áto­
mos ou elétrons, mas por sensações.
EM PIRISM O E PSICOLOGIA 63

O segundo ponto a destacar diz respeito ao que é possível


observar através da introspecção. Crê-se, usualmente, que pela
anto-observação, podemos ter acesso a coisas como pensamen-
ios, desejos, dores, emoções etc. Nesse ponto, Russell opõe-se
aos defensores da introspecção, assim entendida, por considerar
(|iie o “ mundo m ental” é constituído apenas por sensações e
imagens.72 Assim, os dados últimos da introspecção se reduzem
apenas a imagens, enquanto desejo, volição, pensamento etc.
são fenômenos complexos constituídos por sensações e imagens
inter-relacionadas, cujo conhecimento depende, não de intros­
pecção, mas de uma análise que envolve a construção de hipóte­
ses e seu teste, do mesmo modo que se procede na Física.
Como resultado dessas análises, que só pudemos reprodu­
zir cm seus traços mais gerais, podemos concluir que Russell, no
estudo dos chamados “ fenômenos mentais” , chega a resultados
que, de certo modo, abrem caminho para uma revisão radical
lio programa behaviorista para a Psicologia. Sua afirm ação da
existência das imagens como algo irredutível, que não pode ser
incluído entre os aspectos que constituem uma “ coisa” física,
sua ênfase na idéia de que a Física e a Psicologia não diferem
pelo seu objeto, mas pelo modo como os particulares são agru­
pados,73 o que envolve uma redefinição radical do que é chamado
“ mente” e “ m atéria” ,74 bem como sua conseqüente reavaliação
do chamado “ método introspectivo” , terão conseqüências de
longo alcance. Implicarão a revisão do reducionismo, bem
como permitirão contornar a tese da inacessibilidade dos dados

n Cf. Delineamentos de Filosofia, p. 189.


M “ Os nervos e o cérebro são matéria: as nossas sensações visuais, quando as conside­
ramos, poderão ser — e penso que são — membros do sistema que constitui as apa­
rências irregulares dessa matéria, mas não são todo sistema. A Psicologia ocupa-se,
inter alia, das sensações quando vemos algo material, em oposição à matéria que
vemos. Pressupondo, como devemos, que as nossas sensações têm causas físicas, as
suas leis causais são contudo radicalmente diferentes das leis da Física, dado que a
consideração de uma sensação isolada requer o parcelamento do grupo de que ela é
membro. Quando a sensação é tomada para verificar a Física, o é meramente como
signo de certo fenômeno material, isto é, de um grupo de particulares de que é mem­
bro. Mas, quando estudada pela Psicologia, é retirada desse grupo e colocada em um
contexto muito diferente ... É sobretudo esse processo diferente de agrupamento que
caracteriza a Psicologia em comparação com todas as ciências físicas...” , The
Analysis o f Mind, p. 301 (trad. bras., pp. 224-225).
74 Tal como a “ matéria” , já definida, “ mente” é uma construção lógica, e por ela
deve-se entender “ todas as ocorrências mentais que fazem parte da história de um
determinado corpo vivo ou de um cérebro vivo” . Delineamentos da Filosofia,
p. 318.
64 A R Q U EO LO G IA DO BEHAV IORISM O

“ subjetivos” . E, mais do que isso, do ponto de vista de uma


“ filosofia da psicologia” , tornarão possível, mesmo-através de
caminhos que não serão exatamente os indicados por Russell, a
superação do dualismo representado pela alternativa do “ mate­
rialismo” e do “ idealismo” .
Se o trabalho científico efetivo contem porâneo dá razão,
ou não, às teses de Russell acerca dos fenômenos mentais, isto é
algo de im portância menor, na medida em que corrobore ou
não os resultados a que ele chegou, a pesquisa psicológica move-
se, ainda hoje, em um campo de questões para cuja constituição
a contribuição de Russell não é certamente a menos im portante.
Parte II
Conceitos Básicos do
Behaviorismo Radical
Consciência e propósito
no behaviorismo radical
Júlio César C. de Rose

Na introdução de seu livro About Behaviorism, Skinner


enumera 20 objeções que são comumente feitas ao behavioris­
mo e que, em sua opinião, são infundadas. Neste texto tratarei
especialmente da refutação que Skinner dá a três destas obje­
ções, que são:

1) “ ele (o behaviorismo) ignora a consciência e os estados


m entais”
2) “ ele formula o com portamento simplesmente como um
conjunto de respostas a estímulos, representando assim a
pessoa como um autôm ato, robô, boneco ou m áquina”
3) “ ele não dá lugar para intenção ou propósito” (Skin­
ner, 1974, p. 4).

Pretendo, acom panhando a argumentação de Skinner,


mostrar que a Psicologia Comportamental, ao menos na versão
“ radical” skinneriana, não adota o caminho simplista de negar
a existência da consciência ou de estados internos, nem se reduz
a um mecanicismo do tipo estímulo-resposta.
Inicialmente, é conveniente explicitar o que Skinner entende
por behaviorismo. Ele designa, por este termo, uma filosofia da
Psicologia, que se ocupa do objeto e do método desta ciência.
68 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RAD ICAL

“ Algumas das questões que ela form ula são: Tal ciência é
realmente possível? Pode ela abordar qualquer aspecto do com­
portam ento humano? Que métodos ela pode usar? Suas leis são
tão válidas quanto as da Física ou Biologia? Poderá ela condu­
zir a uma tecnologia, e se tanto, qual será o seu papel nos assun­
tos hum anos?” (Skinner, 1974, p. 3).
A filosofia da Psicologia form ulada por Skinner é comu-
mente denom inada “ behaviorismo radical” (Skinner, 1974),
opondo-se, por um lado, às Psicologias mentalistas e cognitivis-
tas e, por outro lado, ao “ behaviorismo metodológico” .
O behaviorismo metodológico guarda estreita afinidade
com o positivismo lógico e o operacionismo. Ele admite a exis­
tência da consciência e de eventos mentais, mas propõe sua
exclusão das formulações científicas em virtude de sua subjetivi­
dade e impossibilidade de observação direta. Como alternativa
ele propõe a formulação de leis relacionando o com portamento
observável aos eventos ambientais, também observáveis.' É claro
que esta posição só é admissível acom panhada de um pressu­
posto adicional, reconhecendo que os eventos mentais podem
ser desconsiderados na seqüência causal, uma vez que são deter­
minados por eventos ambientais antecedentes, de modo que
estes seriam, em última análise, os determinantes do com porta­
mento observável, ou seja, num a seqüência estímulo evento
mental com portam ento, o elo intermediário poderia ser des­
cartado, de modo que a formulação poderia limitar-se à seqüên­
cia estímulo-comportamento, ou estímulo-resposta, sem perder
em precisão.
A alternativa proposta por Skinner, o behaviorismo radi­
cal, é baseada em um pressuposto fundamental, sobre a natureza
dos eventos com os quais a Psicologia lida, do qual decorre uma
proposição sobre a natureza das causas do com portamento.
O behaviorismo radical assenta-se sobre a negativa ontoló­
gica da existência de eventos imateriais, sem dimensões físicas,
que se passem em um m undo não-físico. Sua premissa básica é,
portanto, a de que só existem eventos materiais ocorrendo em
um universo físico. Isto não leva Skinner a descartar enunciados
sobre os eventos denominados mentais. Eles podem ser, em
alguns casos, reinterpretados como descrições de eventos físi­
cos, ou de relações entre eventos físicos, enquanto em outros
casos devem ser tomados como metáforas. Grande parte da obra
recente de Skinner é uma tentativa de interpretar os eventos de-
CO N SCIÊN CIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RA D ICA L 69

nominados mentais como fenômenos materiais envolvendo rela­


ções entre com portamento e ambiente (Skinner, 1969; 1974;
1977).
No entanto, a afirmativa de que só existem eventos mate­
riais não implica que todos os eventos sejam publicamente obser­
váveis, e aí Skinner afasta-se radicalmente do positivismo e do
behaviorismo metodológico. Skinner afirm a que uma parte do
universo (ou seja, do universo material) tem um estatuto espe­
cial por estar encerrada dentro do corpo dos seres vivos. Esta
característica, por um lado, praticamente impede a observação
pública destes eventos e por outro lado confere ao organismo
um contato especialmente íntimo com os estímulos que se origi­
nam no interior de seu próprio corpo.1
Skinner reconhece, portanto, que estes eventos privados
não podem ser excluídos do âm bito de uma ciência do compor­
tamento:
“ O behaviorismo radical... não insiste na verdade por con­
cordância e pode portanto levar em conta eventos que têm lugar
no mundo privado do interior do corpo. Ele não cham a estes
eventos inobserváveis e nem os descarta como subjetivos...”
(Skinner, 1974, p. 16).
Para que estes eventos possam ser descritos e levados em
conta por uma ciência do comportamento, Skinner admite inclu­
sive a validade da introspecção, advertindo porém que o que é
observado introspectivamente é uma parte do universo material
encerrada no corpo do indivíduo:
“ O behaviorismo radical, contudo, adota um a linha dife­
rente. Ele não nega a possibilidade de auto-observação ou auto-
conhecimento e nem a sua possível utilidade, mas questiona a
natureza do que é sentido ou observado e, desse modo, conheci­
do. Ele restaura a instrospecção mas não o que filósofos e psicó-

1 Este contato “ íntimo” é decorrente do desenvolvimento de sistemas nervosos que res­


pondem especialmente aos estímulos privados: são os sistemas interoceptivo e pro-
prioceptivo, que respondem a modificações nas vísceras, glândulas e vasos sangüí­
neos, e nos músculos, juntas e tendões. Mesmo que os estímulos privados de um indi­
víduo pudessem ser detectados e estudados por outro indivíduo, através de um equi­
pamento especial, o outro não responderia a estes estímulos da forma especial pro­
porcionada por estes sistemas nervosos: o estudioso poderia detectar estímulos dolo­
rosos, por exemplo, mas não poderia sentir a dor. Este tratamento dado por Skinner
aos eventos privados respeita a noção de “ consciência pessoal” proposta por William
James (Principies o f Psychology, Britannica Great Books, 1953, pp. 188-259).
70 C ON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

logos introspectivos acreditaram estar spectando...” (Skinner,


1974, p. 16).
“ A posição pode ser estabelecida do seguinte modo: o que
é sentido ou observado introspectivamente não é um mundo
não-físico da consciência, mente ou vida mental, mas sim o pró­
prio corpo do observador. Isto não im plica... que a introspec­
ção é uma forma de pesquisa fisiológica, nem significa (e este é
o centro do argumento) que o que é sentido ou observado intros­
pectivamente são as causas do com portam ento...” (Skinner,
1974, p. 17).
Neste ponto, Skinner já estabelece uma proposição adici-
nal a respeito da natureza das causas do com portam ento. Ele
argumenta que:
“ ... um organismo comporta-se de determinado modo por
causa de sua estrutura corrente, mas a maior parte disto está
fora do alcance da introspecção. No momento devemos con-
tentar-nos... com as histórias genética e ambiental da pessoa. O
que é introspectivamente observado são certos produtos colate­
rais dessas histórias.” (Skinner, 1974, p. 17).
Esta afirmativa precisa ser um pouco comentada e comple­
tada: ela assegura que o com portamento tem sua causa na estru­
tura biológica do organismo (de passagem negando que o beha-
viorista radical considere o organismo como “ vazio” ). A estru­
tura biológica do organismo, em um dado mom ento, é efeito de
duas histórias: a história genética, resultante da evolução da
espécie até o momento da concepção do indivíduo, e, em segui­
da, a história ambiental, envolvendo as relações entre o indiví­
duo e seu meio, desde o momento da concepção.
Não compete à Psicologia descrever como a estrutura de um
indivíduo é modificada no curso de sua história, e nem como a
estrutura causa o comportamento, e devemos esperar que a Fisio­
logia eventualmente o faça. A Psicologia permanece como uma
ciência independente'que trata das relações entre o com porta­
mento e o ambiente. É, de todo modo, à história do indivíduo
que precisaremos recorrer para explicar porque este se com porta
de determinado modo:
“ Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por
sua vez, são modificados pelas conseqüências de sua ação.”
(Skinner, 1957, p. 15).
A afirmativa de que os eventos privados são apenas produ­
tos colaterais da história ambiental tem uma abrangência muito
CO N SCIÊNCIA E PR O PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RAD ICAL 71

precisa: Skinner quer afirm ar apenas que um dado com porta­


mento não é causado por um sentimento, pensamento ou qual­
quer evento privado imediatamente antecedente, mas por toda
uma história de relações entre o indivíduo e seu ambiente. Senti­
mentos, pensamentos etc. são também formas de com porta­
mento produzidas por esta mesma história.
A afirmativa, recorrente na obra de Skinner, de que as
causas do com portamento estão no ambiente, deve ser enten­
dida de acordo com uma noção muito ampla de ambiente, que
não inclui apenas a configuração de eventos que antecede o
com portamento, como em certas versões da Psicologia estí-
mulo-resposta, mas todo um tecido de relações entre com porta­
mento e ambiente interagindo, por sua vez, com a herança gené-
lica. Os eventos privados têm , é claro, também uma parte bas­
tante im portante nesta história individual.
Evidentemente, não pode haver dois indivíduos com a
mesma história, de modo que indivíduos diferentes comportar-
se-ão de modo diferente, mesmo que sejam expostos a situações
idênticas. Skinner tem sido um dos mais ferrenhos adversários
dos métodos estatísticos no estudo do com portam ento, argu­
mentando que a utilização de dados médios de grupos obscurece
justamente estas diferenças individuais que o pesquisador não
pode ignorar, sob pena de chegar a generalizações que não se
aplicam ao com portam ento de indivíduos concretos:
“ O sistema complexo que denominamos um organismo
tem uma história elaborada e grandemente desconhecida, que
lhe confere uma certa individualidade. Nunca dois organismos
entram em um experimento precisamente nas mesmas condições
e nem são afetados da mesma maneira pelas contingências em
um espaço experimental. (É característico da maioria das con­
tingências que elas não são controladas precisamente e, em
qualquer caso, são efetivas somente em combinação com o
com portamento que o organismo traz para o experimento.) As
técnicas estatísticas não podem eliminar este tipo de individuali­
dade, elas só podem obscurecê-la e falsificá-la” (Skinner, 1969,
pp. 111-112).
A rejeição dos métodos estatísticos decorre da ênfase sobre
a história individual como determinante do com portam ento. O
objetivo do programa experimental skinneriano é a busca de leis
gerais dando conta da relação entre ambiente e com portamento.
Embora as leis buscadas devam ter um caráter de generalidade.
72 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RAD ICAL

aplicando-se, usualmente, a pelo menos todos os indivíduos da


espécie, os processos descritos por elas combinam-se de maneira
peculiar em cada indivíduo; é mais interessante, portanto, o
estudo extensivo de poucos indivíduos, já que isto permite reve­
lar como as relações entre com portam ento e ambiente se proces­
sam para indivíduos concretos.

CONTINGÊNCIAS DE REFORÇO E A NOÇÃO


DE COM PORTAM ENTO O PERANTE

A ação do ambiente sobre o organismo após a ocorrência


da resposta é m anejada através da noção de contingências de
reforço. Contingência refere-se a um arranjo temporal no qual
um evento é consistentemente seguido por outro. Por exemplo,
no caso do condicionamento pavioviano, a apresentação de
comida segue-se (é contingente) a um estímulo, o som da cam­
painha; no experimento de Skinner a apresentação de comida é
contingente à resposta de pressão a uma barra. Já em 1935 Skin­
ner notava que havia um a diferença im portante entre o condi­
cionamento produzido por contingências entre estímulos e o
produzido por contingências entre resposta e estímulo. Esta dis­
tinção inicial entre dois tipos de reflexos condicionados levou
Skinner (1937) a considerar o paradigma pavloviano como res­
trito a uma categoria de comportamentos, denominados res-
pondentes, incluindo as respostas do organismo que são evoca­
das por um estímulo determinado; a maior parte dos com porta­
mentos dos organismos superiores, especialmente aqueles que
envolvem a ação da musculatura estriada, estaria excluída desta
categoria, porque seria impossível encontrar um estímulo elicia-
dor para estas respostas; estes com portamentos parecem ocorrer
espontaneamente (por isso Skinner diz que eles são emitidos) e
estão, por assim dizer, dirigidos a certas metas. Esta categoria
foi denominada comportamento operante, para ressaltar que
são os com portamentos que operam sobre o am biente.2
O tratam ento dado ao com portam ento operante visa cap­
turar essa relação entre a resposta e sua conseqüência, sem

2 Skinner admite ocasionalmente que a distinção entre comportamentos operantes e


respondentes é paralela à distinção entre comportamentos voluntários e involun­
tários.
CO N SCIÊN CIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O R A D ICA L 73

comprometer-se com uma fórmula teleológica. As noções fun­


damentais na fórmula de Skinner são as de operante e reforço.
O termo operante designa uma classe de respostas. A carac­
terística comum a estas respostas é que elas possuem a proprie­
dade à qual o reforço é contingente. Um operante é, portanto,
uma categoria cujas instâncias concretas são respostas do orga­
nismo, ou seja, ocorrências discretas de com portamento. Estas
respostas não são definidas por sua forma, mas por sua relação
com a conseqüência. A conseqüência pode ser contingente a
propriedades molares como, por exemplo, dirigir um carro de
São Paulo até o Rio de Janeiro, ou a propriedades mais molecu­
lares como, por exemplo, engatar uma primeira.
A definição de reforço é baseada na idéia de taxa ou fre­
qüência de respostas pertencentes a um operante. Skinner
observa que alguns eventos, quando se tornam contingentes a
respostas de uma dada classe, têm o efeito de aum entar a taxa
ou freqüência subseqüente de respostas da mesma classe. Estes
eventos são denominados reforços.3
Tem sido observado que a definição de operante e de refor­
ço é circular (Schick, 1971). Skinner argumenta que não há cir­
cularidade, notando que a observação empírica mostra que
algumas conseqüências têm o efeito de aumentar a freqüência
subseqüente de respostas de um operante, enquanto outras não
têm.
Os estímulos antecedentes à emissão de uma resposta tam­
bém são importantes: quando uma resposta é reforçada em uma
determinada situação, sua probabilidade aum enta diante de
novas ocorrências daquela situação; deste modo, os estímulos
antecedentes não eliciam ou forçam a ocorrência do com porta­
mento operante, mas estabelecem a ocasião na qual uma respos­
ta, se emitida, será reforçada.
As relações entre com portamento e ambiente são de tal
modo que respostas de uma classe qualquer são seguidas por
reforço somente se ocorrerem em determinadas situações am­
bientais: passar a márcha do carro só será reforçado se a em­
breagem estiver pressionada e a velocidade do carro for apro­
priada; comer uma fruta só será reforçado se ela estiver madu-

3 De acordo com Skinner (1974) a suscetibilidade à ação de determinados reforços


decorre do patrimônio genético da espécie, enquanto outros eventos tornam-se refor­
ços em decorrência da história cultural e individual.
74 CONCEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

ra, e assim por diante. O com portam ento dos organismos é sen­
sível a estas relações, desenvolvendo gradualmente um controle
por estímulos.
Um exemplo deste processo, freqüentemente citado por
Skinner, é a aprendizagem de nomes de cores por parte de crian­
ças. Se a criança diz a palavra “ vermelho” em presença de um
objeto vermelho, ela geralmente terá como conseqüência uma
palavra ou sinal de aprovação por parte de um adulto. O mesmo
não ocorrerá se a palavra “ vermelho” for dita em presença de
um objeto não-vermelho. O reforço (palavra ou sinal de aprova­
ção) segue-se à resposta (dizer a palavra “ vermelho” ) somente
quando esta ocorre em uma situação especial (presença de objeto
vermelho). Gradualmente a probabilidade desta resposta aumen­
tará em situações similares e tenderá a diminuir em presença de
situações diferentes. Desta forma, no início a criança poderá
dizer “ vermelho” quando lhe for perguntada a cor de um obje­
to amarelo, mas à medida que a criança vai sendo freqüente­
mente exposta a situações em que é solicitada a nomear cores e é
aprovada ou corrigida em casos de acertos ou erros, a probabili­
dade da ocorrência da resposta “ vermelho” tende a aum entar
na presença de objetos vermelhos, reduzindo-se virtualmente a
zero em presença de objetos não-vermelhos.
Portanto, de acordo com Skinner, uma formulação ade­
quada das relações entre com portamento e ambiente deve levar
em conta três aspectos: 1) a situação ambiental na qual uma res­
posta ocorre, 2) a própria resposta e 3) as conseqüências da res­
posta. De acordo com Skinner, as inter-relações entre estes três
termos definem as contingências de reforço.
Skinner e seus colaboradores desenvolveram todo um pro­
grama de pesquisa destinado a esmiuçar os diferentes tipos de
inter-relação entre com portamento e ambiente, mostrando que
diferentes tipos de contingências de reforço têm efeitos caracte­
rísticos sobre o com portam ento dos indivíduos. (Veja-se, por
exemplo, Skinner, 1969, capítulos 1 e 5.)
A concepção de Skinner não é inteiramente original, reto­
mando a “ lei do efeito” de Thorndike. A abordagem skinneria-
na tem também uma relação com a teoria darwiniana da seleção
natural. Nesta, uma formulação teleológica de evolução das
espécies é substituída por uma idéia de seleção das mutações
casuais mais favoráveis. A versão skinneriana também substitui
a explicação do com portamento voluntário por um a noção de
CO N SCIÊNCIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RA D ICA L 75

fortalecimento das formas comportamentais que têm conse­


qüências mais favoráveis. A analogia com a teoria da evolução
não é, no entanto, perfeita, porque Skinner não concebe o efei­
to do reforço como seleção pura (cf. Staddon e Simmelhag,
1971), mas supõe um efeito de fortalecimento do com porta­
mento reforçado. De acordo com Skinner, este efeito torna-se
literalmente visível quando se prepara uma situação experimen­
tal livre de fatores interferentes. Nestes casos, a ocorrência de
um único reforço produz um aum ento imediato na freqüência
de uma resposta padronizada.
A formulação de Skinner tem, no entanto, várias caracte­
rísticas originais e bastante poderosas em termos explicativos.
Em primeiro lugar, pode-se mencionar o tratam ento dado ao
problema das classes de respostas. Trata-se, de fato, de identi­
ficar na corrente sempre mutável do com portam ento, unidades
que ocorram repetidamente. Admitindo-se que não há repetição
exata de uma forma de com portam ento, como se pode agrupar
instâncias de com portamento em classes analiticamente signifi­
cativas? O tratam ento dado p o r Skinner a este problem a é bas­
tante complexo (Skinner, 1935b; 1953; 1969) mas o ponto bási­
co para sua compreensão é notar que ele descarta a classificação
com base na topografia ou form a do com portam ento e busca
captar classes funcionalmente relevantes de acordo com as con­
tingências de reforço. Deve haver, segundo Skinner, relações
entre respostas num fluxo comportamental que permitam extrair
uma classe de respostas que, em bora tenham topografias dife­
rentes, sejam aproximadamente substituíveis entre si. Esta
“ equivalência” funcional é garantida por uma relação comum
que as respostas de uma mesma classe guardam com o reforço.
Uma classe de respostas, ou operante, não pode ser determina­
da a priori mas deve corresponder a um dinamismo da dife­
renciação do comportamento. Assim, quando um reforço segue-
se a uma resposta qualquer, ele não terá um efeito sobre a res­
posta que ocorreu, uma vez que esta já não existe mais. O efeito
do reforço será sustentar a probabilidade de ocorrência de
outras respostas que poderão ser semelhantes à primeira em
alguma dimensão. O reforço de uma resposta poderá gerar res­
postas de topografias variadas, que serão subseqüentemente
submetidas seletivamente à ação de novos reforços. À medida
que algumas dessas respostas vão sendo reforçadas e outras
não, Uma classe de respostas gradualmente emerge: esta classe
76 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

engloba as respostas que contêm a propriedade à qual o reforço


é contingente. Assim, a ocorrência de uma única instância com-
portam ental seguida por reforço não permite a formação de
uma classe de respostas; é necessária uma seqüência de respos­
tas, de modo que a relação de contingência extraia e diferencie
um operante. Da mesma forma, quando um observador vê a
ocorrência de uma instância com portamental singular reforça­
da, ele não tem elementos para identificar um operante. Ele pre­
cisa observar um número maior de ocorrências que lhe permi­
tam identificar a propriedade à qual o reforço é contingente.
Esta noção, até aqui algo obscura, poderá ser clarificada
com um exemplo; bastante elucidativo é o tratam ento dado por
Skinner ao com portam ento agressivo:
“ ... nenhum com portam ento é agressivo por causa de sua
topografia. Uma pessoa que, em dado momento, está agressiva
é uma que, entre outras características, 1) apresenta uma possi­
bilidade elevada de comportar-se verbalmente ou não-verbal-
mente de modo tal que alguém seja atingido (juntamente com
uma probabilidade diminuída de agir, de modo que ele seja posi­
tivamente reforçado) e 2) é reforçada por tais conseqüências”
(Skinner, 1969).
Este exemplo descreve uma classe de respostas ou um ope­
rante, que podemos rotular como com portam ento agressivo.
Este operante é definido como a classe de respostas que possui a
propriedade comum de causar dano (físico ou não-físico) a
outrem . Quando um indivíduo está agressivo, o dano causado a
outrem é um evento reforçador para ele (proposição 2); nesta
condição podemos dizer que existe uma contingência de reforço
relacionando o dano causado a outrém (conseqüência) a uma
ampla gama de respostas que, em determinadas situações, pro­
duzem dano. Estas respostas vão desde ataques físicos a respos­
tas verbais ou expressões faciais; é claro que cada indivíduo par­
ticular apresentará um padrão idiossincrático de comportamento
agressivo que decorrerá do modo como as contingências opera­
ram em relação a ele.
Uma segunda implicação da noção de operante é a idéia de
diferenciação contínua do com portamento. Esta idéia, até certo
ponto, contradiz a noção de classe apresentada até aqui, uma
vez que à medida que o com portamento vai sendo exposto às
relações de contingência os operantes vão, normalmente, sofren­
do uma progressiva diferenciação.
CO N SCIÊNCIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RADICAL 77

Isto ocorre, em primeiro lugar, porque as contingências


de reforço envolvem sempre uma inter-relação entre com porta­
mento e ambiente. Seu efeito depende, portanto, do com porta­
mento que o indivíduo traz num dado momento para a situa­
ção. À medida que o com portam ento muda, por efeito da con-
lingência, esta pode mudar por sua vez, já que o novo compor-
lamento gerado por ela altera as relações com o ambiente que
prevalecia antes. As relações de contingência não existem no
vazio, independentes do com portamento. Â medida que o com­
portamento m uda pelo próprio efeito das relações de contingên­
cia, mudam também estas porque o novo com portamento inte­
rage com o meio de modo diferente. Deste modo, a relação entre
comportamento e ambiente envolve uma interação dinâmica,
onde o com portam ento m uda constantemente o ambiente e se
diferencia progressivamente. Gianotti (1974) com parou esta
noção de diferenciação à extração, pelo escultor, de uma forma
definida a partir da massa indiferenciada; ele notou também
que a noção de operante, da form a como é empregada por Skin-
ner, encerra uma contradição, pois aponta por um lado para
este processo de contínua diferenciação do com portamento,
enquanto, por outro lado, a força de um operante se caracteriza
por sua probabilidade, que pressupõe uma classe definida e rela­
tivamente estática.
Esta contradição não é resolvida plenamente na obra de
Skinner, que insiste na noção de classe e probabilidade de res­
posta, especialmente em seus trabalhos experimentais, enquanto
aponta para o caráter dinâmico do operante em boa parte de
sua obra teórica. Algumas implicações decorrentes dessa con­
tradição foram apontadas por Schick (1971). Apesar destas con­
tradições, o conceito de operante parece dar fundamento à con­
cepção behaviorista mais viável acerca do propósito e da cons­
ciência.

COMPORTAM ENTO OPERANTE E PROPÓSITO

O conceito de operante é utilizado para tratar das ações


tradicionalmente consideradas voluntárias. Tais com portam en­
tos não são eliciados por estímulos antecedentes e parecem dota­
dos de um propósito porque são dirigidos para certas finalida­
des ou objetivos e, principalmente, porque o próprio indivíduo
78 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

é capaz de relatar esta intencionalidade ou finalidade da sua


conduta.
A idéia de finalidade ou propósito é tratada, com o concei­
to de operante, de modo similar ao tratam ento darwiniano da
noção de finalidade na evolução das espécies. Também no caso
do com portamento há uma direcionalidade, porque as formas
de conduta que não têm resultado favorável vão sendo gradual­
mente abandonadas, enquanto aquelas que têm conseqüências
reforçadoras vão sendo progressivamente diferenciadas. Nos
dois casos a explicação teleológica é substituída pela idéia de
seleção das variantes melhor sucedidas (variantes de caracteres
individuais em um caso e variantes de com portam ento no outro
caso).
O com portam ento operante é, portanto, no dizer de Skin-
ner, orientado para o futuro, embora não possa ser explicado
pela sua finalidade:
“ Possivelmente, nenhuma crítica ergue-se tão freqüente­
mente contra o behaviorismo quanto a de que ele não pode lidar
com o propósito ou a intenção. Uma fórmula estímulo-resposta
não tem saída, mas o com portamento operante é o próprio cam­
po do propósito e intenção. Por sua própria natureza ele se dirige
para o futuro: uma pessoa age a fim de que4 algo aconteça,
e finalidade aqui significa uma ordem temporal de eventos”
(Skinner, 1974, p. 55).
O propósito está, por assim dizer, embutido na própria
definição do operante. Ou seja, ele tem um caráter direcional
em virtude do processo de diferenciação do com portamento que
extraiu, da seqüência indiferenciada de movimentos do organis­
mo, uma categoria de respostas funcionalmente intercambiáveis
em virtude de sua relação temporal com a conseqüência reforça-
dora. São as contingências de reforço que permitem esta dife­
renciação de categorias orgânicas de ação; esta organicidade é
assegurada pela existência de contingências relativamente está­
veis, mantidas pelo meio físico ou pelas práticas culturais.
Deste modo, um operante não é simplesmente, movimento
“ cego” do organismo, como afirmam freqüentemente os adver-

4 A citação original é intraduzível para o português porque Skinner utiliza a expressão


“ in order that” para enfatizar que a noção de finalidade deriva de uma seqüência
temporal de eventos. Em outro texto (Skinner, 1964) ele afirma que a relação entre
comportamento e conseqüência no operante constitui uma versão humeana de causa­
lidade.
CO N SCIÊNCIA E PR O PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RA D ICA L 79

sários da posição behaviorista. A noção skinneriana de compor­


tamento não se confunde com a de movimento do organismo. O
operante é uma categoria que sofreu um processo de diferencia­
ção que lhe confere uma relação especial com o meio. Ele pode
incluir inclusive formas distintas de movimentos (topografias
distintas), que se tornaram funcionalmente intercambiáveis por
sua relação comum com o ambiente (recorde-se o exemplo do
com portamento agressivo apresentado na secção precedente).
È esta distinção entre com portam ento e movimento que
permite a Skinner considerar todas as atividades chamadas men­
tais como exemplos de categorias comportamentais:
“ Os seres humanos atentam para ou desconsideram o
mundo em que vivem. Eles buscam coisas neste mundo. Eles
generalizam de uma coisa para outra. Eles discriminam. Eles
respondem a aspectos singulares ou a conjuntos especiais de
aspectos, ‘abstraindo’ ou form ando ‘conceitos’. Eles solucio­
nam problemas agrupando, classificando, arranjando e rearran-
jando as coisas. Eles descrevem as coisas e respondem às suas
descrições, assim como às descrições feitas por outros. Eles ana­
lisam as contingências de reforço no seu mundo e extraem pla­
nos e regras que os habilitam a responder apropriadam ente sem
exposição direta às contingências. Eles descobrem e utilizam
regras para derivar regras novas a partir de antigas. Em tudo
isto e muito mais, eles estão simplesmente se com portando, e
isto é verdadeiro mesmo quando seu com portamento é encober­
to. Uma análise comportamental não rejeita qualquer um desses
“ processos mentais superiores” ; ela tom ou a liderança na inves­
tigação das contingências sob as quais eles ocorrem. O que ela
rejeita é a suposição de que atividades comparáveis têm lugar
em um m undo misterioso da m ente” (Skinner, 1974, p. 223).
Assim, embora o com portamento operante seja uma rein-
terpretação da noção de propósito, Skinner rejeita enfaticamente
a explicação do com portamento como efeito de um propósito
estabelecido previamente na mente do indivíduo. Neste sentido
Skinner acom panha a trajetória de Ryle (1950) que rejeitou os
conceitos mentais enquanto operações fantasmais que precedem
e causam o com portamento, reinterpretando a mente como uma
propriedade organizativa do próprio com portamento.
Skinner afasta-se, assim, da concepção corrente de que um
com portamento intencional é causado por uma intenção previa­
mente form ulada no mundo da mente. A “ causa” do compor-
80 C ON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

tam ento deve ser procurada na história anterior do indivíduo,


em interação com a sua herança genética. Isto não implica
negar a existência de uma condição que anteceda o com porta­
mento e que seja sentida pelo indivíduo como uma intenção ou
desejo. Apenas, para Skinner, esta é uma condição corporal,
constando de estímulos privados e provavelmente respostas pre­
cursoras do comportamento a ser manifestado. Embora esta con­
dição seja real e possa, em grande parte dos casos, ser sentida
pelo indivíduo, por exemplo na forma de uma “ inclinação” ou
“ tendência” para agir, ela não deve ser tom ada como uma causa
do com portamento subseqüente. De fato, a tendência ou incli­
nação é tão resultante da história do indivíduo quanto o com­
portamento subseqüente e, como tal, não pode ser tom ada como
uma verdadeira causa. Ela seria mais um correlato do com por­
tam ento, resultante, como ele, das contingências de reforço a
que o indivíduo foi exposto.
Há, no entanto, um sentido em que o propósito pode de­
sempenhar um papel causal mais ativo; isto ocorre quando o
indivíduo torna-se capaz de tom ar consciência do seu propósito.
De fato, o com portam ento operante pode ocorrer sem que exis­
ta, por parte do indivíduo, consciência do que está fazendo.
Consciência aqui é entendida como a capacidade de relatar para
os outros ou para si próprio o que ocorreu. Na realidade, o
com portamento operante é basicamente inconsciente, e a cons­
ciência só surge, eventualmente, no curso da vida do homem,
como um produto social. A consciência aí pode envolver a capa­
cidade de relatar a própria ação ou os sentimentos que a antece­
dem e, num nível bem mais elaborado e mais difícil de atingir, o
dar-se conta das razões do próprio com portamento.
Neste último caso Skinner sustenta, como Freud, que os
seres humanos freqüentemente não têm consciência da razão de
sua conduta e, comumente, admitem razões distorcidas em vir­
tude da repressão ou outras formas de controle que têm origem
no meio social. Nestes casos, os indivíduos não têm consciência
do real propósito de suas ações. Skinner (1974, capítulo 8) mos­
tra que as razões pelas quais um indivíduo se com porta são as
conseqüências reforçadoras que mantêm o seu com portamento.
Quando o indivíduo tem consciência destas razões, pode-se
dizer que o seu comportamento é proposital. A consciência neste
caso, como será discutido na seção seguinte, é resultado de pode­
rosas contingências de reforço, mantidas em certas culturas que
CO N SCIÊNCIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RAD ICAL 81

dão especial valor ao autoconhecimento e encorajam o relato


verbal do com portamento e de seus objetivos ou razões.
“ Uma pessoa pode estabelecer seu propósito ou intenção,
contar-nos o que ela espera fazer ou obter, e descrever-nos suas
crenças, pensamentos e conhecimentos. (Ela não pode fazer
isto, certamente, enquanto não tenha se tornado ‘consciente’
das conexões causais.) As contingências são, todavia, efetivas
mesmo quando a pessoa não pode descrevê-las. Nós podemos
pedir a ela que faça uma descrição depois do fato (‘Por que
você fez aquilo?’), e ela pode então examinar seu próprio com­
portamento e descobrir sua crença ou propósito pela primeira
vez. Ela não tinha consciência do seu propósito quando agiu,
mas pode estabelecê-lo depois” (Skinner, 1969, p. 126).
Q uando o indivíduo tem consciência do seu propósito ele
pode explicitá-lo na forma de uma regra de conduta ou uma
resolução.5 Uma resolução pode ser expressa na form a de com­
portamento manifesto, mas o que ocorre com maior freqüência
é que o indivíduo a formula apenas para si próprio, na forma de
comportamento encoberto. De qualquer modo, sempre depen­
dendo da história anterior da pessoa, a resolução assim form u­
lada pode tom ar parte nas contingências de reforço que contro­
lam o com portamento subseqüente, aum entando a probabilida­
de de que a resolução seja cumprida.
“ Uma formulação mais explícita pode ser feita antes do
ato: um homem pode anunciar seu propósito, estabelecer sua
intenção ou descrever os pensamentos, crenças e conhecimentos
sobre os quais uma ação se baseia. Estes não podem ser relatos
da ação, que ainda não ocorreu; eles parecem, em vez disso,
descrever precursores. Uma vez que uma formulação destas foi
feita, ela pode muito bem determinar a ação, como um regra
construída para o próprio indivíduo. Ela é então um verdadeiro
precursor que tem um efeito óbvio sobre o com portamento sub­
seqüente. Q uando ela é encoberta, pode ser difícil de perceber
para um observador, externo; mas ela ainda é uma forma de
com portamento ou um produto do com portamento, ao invés de
um precursor mental” 6 (Skinner, 1969, p. 216).

5 O tratamento mais aprofundado desta questão encontra-se em Skinner, 1969, capí­


tulo 6.
6 O professor Walter Cunha chamou-me a atenção para um notável exemplo literário
desta forma de regra ou resolução. Trata-se do episódio de Le Rouge et le Noir, de
82 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

A resolução, neste caso, fará parte, juntam ente com


outros aspectos do ambiente, do primeiro termo envolvido nas
contingências de reforço, ou seja, a situação na qual um dado
com portamento será reforçado caso seja emitido. Neste caso, se
o indivíduo tiver uma história anterior de freqüente reforça-
mento quando cumpre suas próprias resoluções, pode-se dizer
que a sua resolução ou decisão determina, em parte, seu com­
portam ento subseqüente. Ela determina um aspecto das con­
tingências em que o com portamento está envolvido, e que é
efetivo somente em virtude da história particular do indivíduo.
Cabe ressaltar aqui que não há sentido, para Skinner, na idéia
de uma causa única para o com portamento: este é sempre multi-
determinado por um conjunto de aspectos da situação corrente
em interação com a história do indivíduo.

A CONSCIÊNCIA SEGUNDO O
BEHAVIORISMO RADICAL

Tenho mostrado até aqui que o behaviorismo radical skin-


neriano não nega a existência dos chamados fenômenos men­
tais. Ou seja, Skinner e seus seguidores não negam, como se
afirma com freqüência, que os seres humanos sentem, pensam,
têm idéias e intenções, fazem planos etc. O behaviorismo radi­
cal procura, no entanto, reinterpretar estas ocorrências como
ações da pessoa, ou mais apropriadamente, como relações entre
a ação e o ambiente. Por ambiente entende-se aqui tanto o am­
biente interno, envolvendo a estimulação privada, quanto o am­
biente físico e social que rodeia a pessoa.

Stendhal, no qual Julien Sorel, para reforçar sua decisão de tocar a mão da sra.
de Renal, decide que o fará inapelavelmente antes que se completem as doze badala­
das da meia noite. Se ao soar a última badalada ele não tiver realizado seu intento,
subirá ao seu quarto e se suicidará. De fato, ao soar a última badalada, Julien toca a
mão da Sra. de Renal. O professor Cunha mostrava, com este exemplo, de que
modo um comportamento manifesto pode ser causado por um evento mental. Porém
a resolução de Julien pode ser entendida também como um comportamento enco­
berto que, apoiado por um estímulo externo, tem uma função nas contingências de
reforço que mantêm o comportamento manifesto. A aplicação da teoria skinneria-
na depende criticamente da noção de comportamento encoberto que, em muitos
casos, praticamente substitui a idéia de evento mental. Esta noção, como muitos
conceitos na teoria skinneriana, tem pouco apoio experimental (ao menos até o
presente), mas tem a função de assegurar a coerência do cdifício teórico.
CON SCIÊNCIA E PR O PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RADICAL 83

A consciência especialmente, tem sido considerada como o


aspecto mais im portante da vida mental e o behaviorismo é fre­
qüentemente rejeitado como incapaz de dar conta do fenômeno
da consciência. No entanto Skinner afirma que o behaviorismo
radical oferece um tratam ento mais eficaz da consciência do que
as Psicologias mentalistas:
“ Uma ciência do com portamento não ignora, como se diz
freqüentemente, a consciência. Pelo contrário, ela vai muito
além das Psicologias mentalistas ao analisar o comportamento
autodescritivo. Ela tem sugerido maneiras melhores para ensi­
nar o autoconhecimento e também o autocontrole, que depende
do autoconhecim ento” (Skinner, 1969, p. 245).
Para explicar a experiência consciente Skinner (1969, 1974)
procura, em primeiro lugar, refutar a idéia de que o organismo,
de algum modo, faz cópias do mundo externo que são aprecia­
das em uma espécie de teatro interno. Para tanto, Skinner inter-
relaciona um argumento lógico e um argumento neurofisioló-
gico.
Citando as descobertas mais recentes de neurofisiologia
Skinner argumenta que o sistema nervoso aferente não repro­
duz o padrão de estimulação externa; os impulsos nervosos não
têm muita semelhança com os objetos vistos, e a semelhança é
ainda menor no caso da audição e outras modalidades senso-
riais. O argumento principal é, no entanto, de caráter lógico: a
reprodução interna do mundo externo não pode explicar a visão
ou qualquer outra forma de experiência consciente, porque de
qualquer modo restaria explicar como o indivíduo vê a repro­
dução:
“ Suponhamos que alguém cubra os lobos ocipitais com
uma emulsão fotográfica especial que, quando desenvolvida,
forneça uma cópia razoável de um estímulo visual corrente. Em
muitas áreas isto seria considerado um triunfo na fisiologia da
visão. Contudo, nada poderia ser mais desastroso, porque tería­
mos de começar tudo de novo e perguntar como um organismo
vê um quadro em seu córtex ocipital, e teríamos agora muito
menos cérebro disponível para procurar a resposta” (Skinner,
1969, p. 232).
A alternativa proposta por Skinner elimina a representação
interna e considera a visão como uma forma de comportamento:
“ Em algum ponto o organismo deve fazer mais do que
criar duplicatas. Ele deve ver, ouvir, cheirar e assim por diante,
84 CONCEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

como formas de ação e não de reprodução. Ele deve fazer algu­


mas das coisas que são diferencialmente reforçadas quando ele
aprende a responder discriminativamente” (Skinner, 1969, p.
232).
Ver, ouvir, assim como sentir, são de acordo com Skinner
formas de com portam ento discriminativo, ou seja, com porta­
mento que mantém uma correspondência com os padrões de
estimulação externa, de acordo com contingências de reforço
mantidas pela comunidade verbal ou pelo ambiente físico. Por
exemplo, a pessoa aprende a ver cores diante de contingências
mantidas pela comunidade verbal, que a induz a nomear uma
dada cor, aprovando quando o nome é adequado e corrigindo
quando não é. Uma pessoa não vê ou não conhece cores
enquanto este com portam ento discriminativo de nomear dife­
rentes cores não é estabelecido pela comunidade verbal. Dife­
rentes culturas podem variar as contingências mantidas, desen­
volvendo uma discriminação de cores mais refinada ou mais
grosseira.
O com portamento de ver um determinado objeto é adqui­
rido usualmente em presença do objeto, mas pode vir a ocorrer
em presença de objetos parecidos, ou mesmo na ausência do
objeto, dependendo de outras variáveis.
“ É comumente mais fácil para nós ver um amigo quando
estamos olhando para ele, porque os estímulos visuais, seme­
lhantes aos que estavam presentes quando o com portam ento foi
adquirido, exercem controle máximo sobre a resposta. Mas a
mera estimulação visual não é o bastante; mesmo depois de ter­
mos sido expostos ao necessário reforçam ento, podemos não
ver um amigo que esteja presente a menos que tenhamos razão
para fazê-lo. Por outro lado, se as razões são suficientemente
fortes, podemos vê-lo em alguém que tem apenas uma seme­
lhança superficial com ele, ou mesmo quando não há ninguém
como ele” (Skinner, 1969).
O paradigma das contingências de reforço é utilizado para
descrever o com portam ento de ver, sendo interessante notar que
a resposta é inferida, sendo impossível observá-la. A hipotética
resposta visual é inferida através do com portamento manifesto.
Ê im portante analisar um pouco as contingências supostas por
Skinner. Sabemos que as contingências inter-relacionam três ter­
mos: uma situação antecedente, uma resposta e conseqüências
reforçadoras. No caso do com portam ento de ver, o aspecto crí­
CO N SCIÊNCIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RADICAL 85

tico da situação quando o com portam ento é adquirido é a pre­


sença do objeto visto. A resposta não é observável e sua topo­
grafia é desconhecida. Vários tipos de conseqüências reforçado-
ras podem ser contingentes à resposta de ver. Em alguns casos,
a própria estimulação produzida pela resposta pode ser reforça-
dora, como uma visão de um quadro ou paisagem. Em outros
casos, o que é mais comum, a estimulação visual produzida pela
resposta de ver um objeto permite que nos comportemos de mo­
do mais eficiente com relação ao objeto ou com relação às de­
mais pessoas presentes. Se eu vejo um caminhão trafegando na
contramão posso alertar o motorista do carro, permitindo que
este desvie do caminhão, o que é reforçador para mim e para ele.
O reforço advindo do com portam ento de ver pode explicar
a ocorrência do com portamento na ausência do objeto visto.
Fantasias, sonhos e alucinações são, de acordo com Skinner,
formas de com portamento visual ocorrendo na ausência do
“ objeto visto” . Imaginar, por exemplo, não seria produzir uma
reprodução interna do objeto ausente, mas engajar-se em um
com portamento visual semelhante ao apresentado diante do
objeto. Este comportamento produziria estímulos privados
semelhantes aos ocorridos em presença do objeto, de modo que
a imagem visual seria semelhante ao objeto visto em bora possi­
velmente não tão nítida.
No entanto, não é a visão de um objeto que levanta a ques­
tão do conteúdo da consciência. Esta surge quando a pessoa é
capaz de “ ver-que-está-vendo” , ou seja, quando o indivíduo
pode relatar o seu comportamento visual. Skinner admite que o
indivíduo pode ver sem ver-que-está-vendo e isto é o que acon­
tece em condições normais. Nestes casos a pessoa pode ver e res­
ponder discriminativamente aos estímulos visuais sem que possa
“ dar-se conta” do que viu, ou seja, sem ter a capacidade de rela­
tar o que viu para os outros ou para si próprio. Para que a pes­
soa aprenda a ver-que-está-vendo são exigidas contingências
especiais arranjadas pela comunidade verbal que fortalecem um
repertório de auto-observação (introspecção) e autoconheci-
mento. Quando este repertório introspectivo está estabelecido,
o com portam ento de ver-que-está-vendo pode ocorrer quando o
indivíduo vê um objeto presente e também quando ele vê um
objeto ausente. Não há diferença fundamental entre os dois
casos, porque o indivíduo não está relatando o objeto ou uma
reprodução deste, mas o seu com portamento de ver. Quando o
86 CONCEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

indivíduo relata a visão de um objeto presente, o estímulo ante­


cedente que exerce controle discriminativo sobre o seu com por­
tam ento descritivo não é o objeto, mas o seu comportamento
visual juntamente com as conseqüências deste comportamento.
Da mesma forma, quando o indivíduo relata um sonho ou uma
fantasia, é o seu com portam ento visual que exerce controle dis­
criminativo sobre o relato.
Skinner sumariza o seu argumento sobre o conteúdo da
consciência do seguinte modo:
“ O ponto central da posição behaviorista sobre o conteú­
do da consciência pode ser sumarizado deste modo: ver não
implica algo visto. Nós adquirimos o com portam ento de ver sob
estimulação de objetos reais, mas ele pode ocorrer, na ausência
desses objetos, sob controle de outras variáveis. (Quando se
considera o mundo debaixo da pele, ele sempre ocorre na ausên­
cia de tais objetos.) Nós também adquirimos o com portamento
de ver-que-estamos-vendo quando estamos vendo objetos pre­
sentes, mas ele pode também ocorrer na sua ausência” (Skin­
ner, 1969, pp. 234-235).
O argumento utilizado por Skinner para descrever a tom a­
da de consciência do com portam ento de ver é estendido à cons­
ciência que as pessoas têm de todos os seus com portamentos,
sejam manifestos ou encobertos.
O com portamento operante é basicamente inconsciente,
uma vez que a sensibilidade do indivíduo às contingências do
ambiente não requer a consciência. O com portamento é mode­
lado e mantido por contingências que atuam mesmo quando o
indivíduo não se dá conta delas. No entanto, o indivíduo poderá
desempenhar com maior eficiência quando é capaz de descrever
o seu com portamento e as variáveis relevantes que o mantêm. O
seu repertório autodescritivo será útil para si e também para os
outros. Em virtude da maximização do reforço que advém da
aquisição deste repertório autodescritivo, as comunidades ver­
bais mantêm contingências de reforço que fazem com que o
indivíduo adquira consciência, no sentido de ser capaz de relatar
o seu com portamento e variáveis das quais ele é função.
“ A comunidade está geralmente interessada no que um
homem está fazendo, tem feito, ou planeja fazer, e nos motivos
desta conduta; ela arranja contingências as quais geram respos­
tas verbais que nomeiam e descrevem os estímulos externos e
internos associados com estes eventos. Ela questiona o seu com-
CO N SCIÊNCIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RAD ICAL 87

portamento verbal perguntando ‘Como é que você sabe?’ e o


locutor responde, se o faz, descrevendo algumas das variáveis
de que o seu com portamento verbal foi função. A ‘consciên­
cia’ resultante de tudo isto é um produto social” (Skinner,
1969, p. 229).
Sendo um produto social, a consciência depende critica­
mente do tipo de comunidade verbal ou cultural na qual tem
origem. Como cada comunidade ou cultura mantém padrões
distintos de contingências, cada uma realça o conhecimento de
aspectos especiais do mundo privado e do com portamento:
“ Diferentes comunidades verbais geram diferentes espécies
c graus de consciência e autoconhecimento. Filosofias orien­
tais, Psicanálise, Psicologia Experimental, Fenomenologia, e o
inundo dos negócios práticos levam à observação de sentimen­
tos e estados mentais muito diferentes. Uma ciência indepen­
dente do subjetivo seria uma ciência independente das comuni­
dades verbais” (Skinner, 1974, p. 221).
A análise skinneriana da consciência é moldada sobre o
conceito de contingências de reforço também em outro sentido:
estas especificam relações onde, em presença de uma determi­
nada situação, o indivíduo comporta-se de modo apropriado a
produzir certo tipo de conseqüência reforçadora.
Assim, em um nível elementar, pode-se dizer que um indi­
víduo tem consciência de uma dada situação quando ele respon­
de nessa situação de modo adequado para produzir um certo
tipo de conseqüência reforçadora. Um boxeador alerta respon­
de aos movimentos do seu oponente e, neste sentido, está cons­
ciente deles; ele também responde a vários eventos de seu mundo
privado: ele poderá, por exemplo, sentir a dor provocada por
um golpe ou a fadiga ao final da luta. Já um boxeador nocau-
teado está, como se diz usualmente, inconsciente: ele não res­
ponde aos movimentos do oponente, juiz e demais pessoas em
volta, assim como não responde a eventos do seu mundo priva­
do, não sentindo dor ou fadiga. Ele recuperará (provavelmente
de modo gradual) a consciência quando for novamente capaz de
responder a esses estímulos.
Mas, normalmente, a consciência envolve um nível mais
específico e elevado de sensibilidade às contingências de refor­
ço. Isto ocorre quando a comunidade verbal estabelece conse­
qüências reforçadoras para respostas de um indivíduo aos estí­
mulos provenientes de seu próprio comportamento.
88 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

Estas respostas são, em geral, relatos do próprio compor­


tamento que, dependendo da cultura, são especialmente encora­
jados e correspondentemente reforçados. Nestes casos os estí­
mulos (principalmente proprioceptivos) originados pelo com­
portam ento são a parte principal da situação na qual uma res­
posta descritiva é freqüentemente reforçada por interesse, aten­
ção ou especialmente por ações de outros indivíduos. Quando
uma pessoa é sensível a este tipo de contingência diz-se que ela é
consciente da sua ação.
“ Nós estamos conscientes do que estamos fazendo quando
descrevemos a topografia do nosso com portam ento. Estamos
conscientes de por que o estamos fazendo quando descrevemos
variáveis relevantes, tais como aspectos relevantes da situação
ou o reforço. A comunidade verbal produz com portamento
autodiscriminativo perguntando ‘O que você está fazendo?’
ou ‘Porque você está fazendo isto?’ e reforçando adequada­
mente as respostas” (Skinner, 1969, p. 244).
Nós podemos adquirir um autoconhecimento razoável a
respeito de nossos com portamentos manifestos, porque a comu­
nidade verbal tem acesso a eles e pode modelar um repertório
autodescritivo relativamente acurado. Curiosamente, o maior
problema refere-se ao autoconhecimento daqueles eventos ou
estados internos, incluindo conjuntos de estímulos privados e
respostas encobertas. Em bora o indivíduo tenha um contato
especialmente íntimo com estes eventos, a comunidade verbal
não tem acesso aos estímulos privados e não tem meios para
modelar um repertório autodescritivo acurado:
“ Ao tentar estabelecer tal repertório, contudo, a comuni­
dade verbal atua com uma grande desvantagem. Ela não pode
arranjar sempre as contingências requeridas para discrimina­
ções sutis. Ela não pode ensinar a criança a chamar um padrão
de estímulos privados “ timidez” e um outro “ em baraço” tão
efetivamente quanto ela a ensina a chamar um estímulo “ ver­
melho” e um outro “ laranja” porque ela não pode estar segura
da presença ou ausência de padrões de estímulos privados apro­
priados para o reforçamento ou omissão do reforçamento.
Assim, a privacidade causa problemas, antes de tudo, para a
comunidade verbal. O indivíduo, por sua vez, também se res­
sente. Uma vez que a comunidade verbal não pode reforçar con-
sistentemente as respostas autodescritivas, a pessoa não é capaz
de descrever ou de outro modo “ conhecer” eventos ocorrendo
CO N SCIÊNCIA E PRO PÓ SITO NO BEHAVIORISM O RAD ICAL 89

debaixo de sua pele tão sutilmente e precisamente como ela


conhece os eventos do mundo ao redor” (Skinner, 1969, pp.
229-230, grifos e aspas do autor).
Assim, como o autoconhecimento é de origem social, ele
lorna-se problemático quando os eventos a serem conhecidos
são inacessíveis ao grupo social que modela o repertório intros­
pectivo e autodescritivo e, desta forma, leva o indivíduo a se
autoconhecer.
A comunidade verbal tem, de acordo com Skinner (1953,
pp. 150 e 151), várias formas para contornar o problem a da pri­
vacidade. Ela pode recorrer a correlatos públicos de um evento
privado: quando a criança sorri, pula e faz festas, um adulto
pode observar: “ Como você está alegre!” ou quando a criança
bate a cabeça e chora o adulto pode observar: “ Doeu” . De
acordo com Skinner, é quase certo que a criança adquira inicial­
mente estas respostas sob controle dos mesmos eventos públicos
que exercem controle sobre o adulto, mas como, para ela, há
eventos privados que os acom panham , a sua resposta pode cair
gradualmente sob controle dos eventos privados; este processo
pode levar a distorções porque a correlação entre os eventos
públicos e privados dificilmente é perfeita.
De outro modo, respostas verbais adquiridas a eventos
públicos podem ser usadas na discriminação de eventos priva­
dos com base em propriedades comuns entre os eventos públi­
cos e privados:
“ A linguagem da emoção, por exemplo, é quase inteira­
mente metafórica, seus termos foram tomados emprestados de
descrições de eventos públicos nos quais tanto a comunidade
quanto o indivíduo têm acesso aos mesmos estímulos. Aqui
novamente a comunidade não pode garantir um repertório ver­
bal acurado porque as respostas podem ser transferidas dos
eventos públicos para os privados com base em propriedades
irrelevantes” (Skinner, 1953, p. 150, trad. de J. C. Todorov e
R. Azzi).
Deste modo o conhecimento e o relato dos eventos priva­
dos é normalmente mais grosseiro e inexato. O indivíduo poderá
sentir dores físicas com muita intensidade, mas terá provavel­
mente muitas dificuldades ao descrevê-las a um médico: mesmo
que ele possa localizá-las com razoável precisão, ele certamente
terá muitas dificuldades para dizer de que tipo de dor se trata.
Por um lado, ele não adquiriu um repertório verbal adequado
90 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

para descrever com precisão o que ele sente e, por outro lado,
como isto decorre da falta de um treinamento para realizar dis­
criminações refinadas, o indivíduo na verdade não “ conhece”
com precisão o que ele está sentindo. O mesmo pode-se dizer do
conhecimento dos chamados estados subjetivos (Engelmann,
1978). O trabalho de Engelmann, em bora não tenha especi­
ficamente este objetivo, revela como é problemática para o
indivíduo uma distinção sutil entre seus estados subjetivos. A
pessoa terá dificuldade em descrever o que sente, as descrições
serão, provavelmente inconsistentes de pessoa para pessoa e
haverá inconsistência também entre os diferentes relatos de uma
mesma pessoa. A comunidade verbal tem, certamente, muito
menos confiança neste tipo de relato: se alguém diz que “ está
desesperado” , podemos achar que ele talvez esteja exagerando;
talvez esteja apenas “ triste” ou então “ algo deprim ido” ou
quem sabe “ preocupado” ou “ angustiado” . Talvez ele esteja
querendo apenas atrair a nossa atenção. Se pouco depois o indi­
víduo tentar suicidar-se, já não duvidaremos de seu relato ante­
rior, porque este terá sido corroborado por um inequívoco
evento público. No entanto, os estados subjetivos são raramente
acompanhados por eventos públicos assim inequívocos, tornan­
do difícil para o indivíduo distinguir entre eles, e tornando o seu
relato pouco confiável para a comunidade:
“ As deficiências que geram desconfiança pública levam,
no caso do próprio indivíduo, à simples ignorância. Parece não
haver meios pelos quais o indivíduo posso aperfeiçoar a referên­
cia ao seu próprio com portamento a esse respeito. Isto é parti­
cularmente mau, pois ele tem provavelmente inúmeras razões
para distorcer seu próprio relato para si mesmo” (Skinner,
1953, trad. de J. C. Todorov e R. Azzi, p. 151).
Concluindo, Skinner sustenta que o com portamento pode
ocorrer sem que o indivíduo tenha consciência dele, no sentido
de que a pessoa não se dá conta do que faz e não é capaz de rela­
tá-lo para os outros ou para si própria. Entre estes com porta­
mentos encontram-se os de ver, ouvir etc., os quais podem
ocorrer também na ausência dos objetos diante dos quais foram
adquiridos.
A comunidade verbal usualmente arranja contingências de
reforço especiais que levam o indivíduo a discriminar e relatar
seus comportamentos e, em alguns casos, variáveis das quais
eles são função. A comunidade verbal também arranja contin­
CO N SCIÊN CIA E PR O PÓ SIT O NO BEHAVIORISM O RA D ICA L 91

gências para ensinar o indivíduo a discriminar e relatar eventos


privados, mas neste caso as contingências são imperfeitas por­
que a comunidade não tem acesso direto aos eventos. O autoco-
nhecimento resultante é provavelmente mais grosseiro e espe­
cialmente passível de distorção.
Assim, de acordo com Skinner, a consciência e autoconhe-
cimento têm origem social e dependem das práticas da comuni­
dade verbal na qual o indivíduo está inserido. O indivíduo tem
mais facilidade para conhecer o mundo externo porque a comu­
nidade pode modelar um repertório descritivo apropriado. O
conhecimento do mundo interno pode vir a ocorrer mas será
provavelmente imperfeito.

Bibliografia
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Review, 1971, 78, 3-43.
Skinner, materialista metafísico?
“ Never mind, no m atter” .
José Antônio Damásio Abib

“A ciência freqüentemente fala sobre coisas que não


pode ver ou medir. ”
Skinner, 1969.

“Skinner é um materialista metafísico. ”


Flanagan Jr., 1980.

Imagine o leitor uma Psicologia que, do ponto de vista da


análise experimental ou mesmo da interpretação, nada tenha a
propor sobre o conhecimento da experiência subjetiva. Imagino
que esta ciência, por mais rigorosa e sistemática, não deve des­
pertar maior interesse, além, talvez, de mera curiosidade técnica
ou intelectual. Se pensar que uma ciência do com portamento
deve tratar apenas do visível, sugiro que a leitura será perda
de tempo que você poderá empregar em coisas, quem sabe, mais
úteis. Se, por outro lado, achar que seria interessante exami­
nar o que uma ciência do com portamento pode dizer acerca
da experiência subjetiva, então este texto talvez tenha alguma
serventia. Para mostrá-lo, comentarei alguns pontos da ciência
do com portam ento na versão skinneriana, conhecida como teo­
ria do com portam ento operante. Não me preocupo aqui com os
conceitos e leis básicas desta teoria. Apenas os utilizo no propó­
sito de ver como esta teoria pode abordar a experiência subje­
tiva. Na verdade, meu objetivo maior é esboçar, assim, algumas
proposições gerais — nem sempre explícitas no pensamento de
Skinner — sobre a filosofia do comportamento operante: o beha-
viorismo radical.
SKINNER, M A TERIALISTA M ETAFÍSICO? . 93

UM GOLPE DE VISTA NA HISTÓRIA DO


BEHAVIORISMO RADICAL: DEPOIS DE 1945...

Uma vista cTolhos mais demorada sobre os escritos de


Skinner — cuja primeira publicação data de 1931, perfazendo
até hoje, entre artigos e livros, obra já volumosa — indica um
autor inicialmente preocupado em formular uma teoria do com­
portamento. Em 1945, ao participar de um simpósio sobre o
operacionismo, junto com Feigl, Bridgman e Boring — entre
outros — apresenta um artigo intitulado “ A análise operacional
de termos psicológicos” , onde rompe explicitamente com a inter­
pretação operacionista em Psicologia feita por behavioristas
metodológicos como Stevens, Tolman e o próprio Boring. Sua
obra posterior é estritamente marcada pela posição que tomou
nessa reunião. Como tentaremos demonstrar, esta mudança
é visível já no seu clássico O comportamento dos organismos,
de 1938, em bora só se torne explícita em Ciência e comporta­
mento humano, de 1953, ou ainda, no Comportamento ver­
bal, de 1957. Em Ciência e comportamento humano, já é
extensa e complexa sua análise sobre a experiência subjetiva,
como também já se torna clara a feição que o operacionismo
toma em suas m ãos.1É a sua interpretação operacional de even­
tos privados que o diferencia de form a nítida dos behavioristas
metodológicos e que o leva a auto-intitular-se behaviorista
radical.
Os behavioristas metodológicos sustentam que eventos
privados não podem ser interpretados pela Psicologia, uma vez
que esta é uma ciência e, como tal, deve lidar apenas com
eventos públicos. Termos psicológicos como cognição, inten­
ção e outros, que supostamente se referem a eventos subjetivos,
são então operacionalizados a tal ponto que o conceito se torna,
no espírito da orientação de Bridgman, sinônimo de um con­
junto de operações.2 Se um homem tem um costume antigo de
sempre buscar seu vinho predileto em certa adega de sua cidade
e em determinado dia não o acha, pode ficar profundam ente

1 Cf. Jay Moore, On the principle o f operationism in a science o f behavior, Behavio­


rism, 1975, 3, pp. 120-138, para uma exposição relativa às diferenças entre o opera­
cionismo clássico de Bridgman e o operacionismo de Skinner.
2 Cf. Edward C. Tolman, Purposive behavior in animals and men, University o f Cali­
fornia, 1932, para uma descrição clara e rigorosa deste procedimento.
94 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

desorientado. Os behavioristas metodológicos diriam que este


homem teria a seguinte “ cognição” : “ tal adega tem aquele
vinho” , que foi obstruída pela falha de fornecimento da bebida.
Além disso, diriam que foi a crença que conduziu o homem à
adega e será a perturbação de tal crença que, após produzir
alguns momentos de desnorteamento, criará as condições para
que busque o vinho em outros fornecedores. Eventos subjetivos
— sensações, sentimentos — que estiverem presentes na crença e
em sua decepção são privados e não são considerados na concei-
tuação, seja da crença original, seja nas novas reações de busca.
Para conceituar a crença do indivíduo, consideram-se apenas os
eventos ambientais — vinho, adega etc. — em suas relações
com as reações públicas do cidadão — ir à adega, não encontrar
o vinho e dirigir-se a outro estabelecimento. Por outro lado, e
perpassando os conceitos motivacionais implicados, é por causa
de sua crença que o cidadão se dirige àquela adega e não a outra.
Ou seja, é no conceito psicológico definido por meio de eventos
públicos que se encontra a explicação do com portamento.
Skinner objeta a estes dois aspectos do behaviorismo meto­
dológico. Por um lado, não é no enfoque operacional bridgma-
niano e sistemático dos conceitos psicológicos que se encontra a
explicação do com portamento. Esta explicação deve ser realiza­
da através das contingências de reforçam ento.3 Por outro lado,
um projeto para a Psicologia, que exclua os eventos privados de
suas considerações, apresenta pelo menos dois graves inconve­
nientes. Primeiro, a Psicologia seria algo como uma sinfonia
inacabada, pois ela (justo a Psicologia!) nada poderia falar
sobre os eventos privados. Segundo, uma Psicologia que afirma
a existência de eventos subjetivos, como é o caso do behavioris­
mo metodológico, mas que por critérios metodológicos os rele­
ga a planos secundários, deixa espaço em seu interior para a
sobrevivência da questão metafísica da relação entre alma e cor­
po: um espaço para o ghost in the machine.
Com efeito, não é ignorando a experiência subjetiva que se
esboçam perspectivas para um enfoque fisicalista em Psicologia.
Pelo contrário, é precisamente esse descaso com o que se passa
sob a pele que estimula a discussão da dicotomia mente-corpo.

3 Por fugir aos propósitos deste texto não vou tecer considerações sobre o conceito do
contingências de reforçamento. Não obstante, outros textos deste livro discorrem
sobre este conceito.
SKINNER, M A TERIALISTA M ETAFÍSICO? . 95

Não é certo que sempre onde existem pelo menos duas pessoas,
resta sempre a dúvida se nossas alegrias, tristezas e imagens não
desempenham um papel nas relações com o comportamento?

FEELING: O ATO DE SENTIR, O QUE É SENTIDO

Parece-me que o melhor procedimento para compreender


a interpretação skinneriana dos eventos privados seria examinar
como ele mesmo aborda os mais variados tipos de experiência
subjetiva, para em seguida extrair proposições mais gerais que
se apliquem a todos os casos. Obviamente, uma empresa dessa
ordem não teria aqui cabimento ou espaço. Buscarei centrar-me
no que Skinner chama de feel para esboçar proposições que
imagino de alcance geral. Entretanto, apenas testes que explo­
rem eventos privados de outros tipos podem dar a palavra final.
O termo feel não possui um correspondente em nossa
língua que traduza todo o seu sentido. Como verbo, pode ser
traduzido por tocar, tatear, perceber, sentir. Como substantivo,
categoria gramatical que também apresenta a forma feeting, sua
tradução pode assumir o sentido do tato, sentimento, opinião e
até amor. Posso usar o termo feel traduzido por tocar em um
sentido ativo ou passivo, como quando toco um objeto do mun­
do e tenho a sensação desse objeto. Tal é seu sentido passivo ou,
ainda, quanto toco uma superfície no propósito de descobrir
como ela parece, da mesma forma que olho algo para descobrir
seu aspecto. Tal é seu sentido ativo. No caso ativo pode-se dizer
que tocar a superfície é um comportamento preliminar que clari­
fica a superfície. Quando ocorrem estados ou eventos que estão
dentro do corpo, por exemplo, contrações do estômago na fome,
bexiga cheia, descarga de adrenalina e pulsação aumentada
quando somos agredidos, existe também um feel, só que agora
no sentido de sentir. Porque, embora sintamos dor nas contra­
ções de fome e raiva ou medo quando da descarga de adrena­
lina, não temos uma mão que possa percorrer ou tatear estes
eventos internos para descobrir como eles são ou parecem, ou
seja, não temos um sentir ativo, porque o nosso sistema nervo­
so, ao longo de sua evolução, não desenvolveu um órgão que
pudesse inspecionar as condições internas. È um sentir mais
próximo do sentido passivo de sentir. Não obstante estas dife­
renças, o fa to é que sentimos. Never mind, it is a matter o f fact.
96 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RADICAL

Partindo destas considerações afirm o que o feel implica


tanto o que é sentido quanto o ato de sentir ou, exemplificando,
quando sinto uma dor de dente existe a condição corporal que
produz a dor e a própria dor. Portanto, uso a palavra sentir
para indicar a relação entre o ato de sentir e o que é sentido.

EVENTOS PRIVADOS: FISICALISMO EPIFENOM ÊNICO

Neste ponto formulo quatro questões sobre o sentir. São


reais os sentimentos? Se reais, qual sua natureza? Qual sua rela­
ção com o com portamento? E como é possível o acesso a senti­
mentos, se são privados?
Sobre a primeira questão (se é real o sentir) Skinner respon­
de: “ É real que uma pessoa que está algum tempo sem comer,
come e também sente fome. Uma pessoa que foi atacada res­
ponde agressivamente e também sente raiva. Uma pessoa que
não é mais reforçada, quando responde de certa forma, passará
a responder menos e também se sentirá desencorajada ou frus­
trada” .•* Os sentimentos são reais, isto é, existem. Mas, sendo
reais, qual é a sua natureza? Retomando o conceito de sentir
como sendo a relação entre o ato de sentir e o que é sentido,
qualifiquemos mais precisamente o que é sentido. Sentimos sen­
sações provenientes de estímulos interoceptivos quando, por
exemplo, sentimos as dores das contrações do estômago; senti­
mos estímulos proprioceptivos quando sentimos, por exemplo,
cansaço muscular. Sentimos ainda os com portamentos tanto
reflexos quanto operantes. Q uando digo “ sinto que vou vomi­
ta r” , o que sinto são as condições estimuladoras que em minha
história passada foram associadas ao com portam ento de vomi­
tar, ou sinto ainda respostas incipientes de vomitar, precursoras
da resposta final de vomitar. Similarmente, quanto retorno à
casa de meus pais e vislumbro, por exemplo, o velho abacateiro,
companheiro de minha infância, sinto as condições estimulado­
ras que em minha história passada foram associadas com o
com portamento de subir no abacateiro, e sinto as respostas inci­
pientes — vejo-me subindo no abacateiro — que são também

4 B. F. Skinner, Contingencies o f reinforcement, Nova York, Appleton-Century-


Crofts, 1969, p. 257.
SKINNER, M A TERIALISTA M ETAFÍSICO? . 97

precursoras da resposta final de subir no abacateiro. Se o que é


sentido são relações entre respostas e estímulos proprioceptivos
ou interoceptivos e estas relações são eventos corporais então o
que é sentido é físico. O que é sentido pode ser medido pelos
instrumentos da fisiologia, e é uma das variáveis independentes
que controlam o com portamento, inclusive o com portamento
verbal. E ainda é o que é tratado pelo dentista ou psiquiatra, e
não existe impossibilidade lógica ou empírica para o seu acesso.
O que é sentido é observável, mensurável, manipulável, acessí­
vel e pode, portanto, assumir o papel de causa explicativa.
Embora não exista qualquer dúvida sobre a natureza física
do que é sentido, não existe em Skinner nenhuma tese explícita
sobre a natureza do ato de sentir. Não obstante, comecemos
nosso exame do assunto, abordando-o indiretamente através da
análise da acessibilidade do ato de sentir. Skinner, referindo-se
á qualidade reforçadora de sons de pássaros, diz: “ As condições
geradas dentro do corpo do ouvinte permanecem privadas para
sem pre...” .5 Em outro texto encontra-se: “ O behaviorismo não
reduz sentimentos a estados corporais...” .6 Ou ainda: “ Como
pode uma personalidade, idéia, sentimento ou propósito afetar
o instrumento do fisiólogo” ?’ Sobre o ato de sentir podemos
afirmar que ele não pode ser medido pelos instrumentos do fisió-
logo e é no máximo um subproduto do com portam ento. E
podemos afirm ar que não pode ser tratado pelo dentista ou pelo
psiquiatra, ou ainda, que é privado para sempre. O ato de sentir
não é observável, mensurável, manipulável, acessível e, por­
tanto, não tem força explicativa.
Duas conseqüências advêm desta diferença de posição
sobre o que é sentido (é físico e acessível) e o ato de sentir (é
inacessível). Em primeiro lugar, quanto ao acesso, existem dois
tipos de eventos privados.8 Estados e condições corporais inter­
nas são eventos privados acessíveis através de instrumentos,
mesmo supondo que estes instrumentos ainda não existam.
Entretanto, isto não constitui obstáculo à sua acessibilidade,
uma vez que este acesso seria possível com o progresso técnico-

5 B. F. Skinner, A bou t behaviorism, Nova York, Alfred A. Knopf, 1974, p. 246.


6 B. F. Skinner, 1974, p. 241.
7 B. F. Skinner, Beyond freedom & dignity, Nova York, Alfred A. Knopf, 1971, p. 195.
8 Nesta questão registro aqui minha dívida com Richard Creel, “ Radical epiphenome-
nalism: B. F. Skinner’s account o f private events” , Behaviorism, 1980, 8, pp. 35-36.
98 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RADICAL

científico. Não existe então impossibilidade lógica ou empírica,


pois é imaginável teoricamente e realizável empiricamente. Nesse
sentido, talvez, a diferença entre eventos privados e públicos
pudesse ser definida em termos de graus de acessibilidade e
jamais de diferença de natureza. Por outro lado, o ato de sentir
é, como já dissemos, privado para sempre e portanto, por prin­
cípio, inacessível. Assim como não faz sentido afirm ar que o
vermelho que eu vejo é igual ou diferente do vermelho que outra
pessoa experiencia (vê), também não faz sentido descrever qua­
lidades do ato de sentir de outra pessoa. Não existem e nunca
existirão instrumentos que possam medir estas experiências, e é
por isso que dizemos que são privadas para sempre. Mas é pre­
cisamente a tese da inacessibilidade, por princípio, do ato de
sentir que introduz a segunda conseqüência originada pela dife­
rença de posição entre o que é sentido e o próprio ato de sentir.
Ao se omitir sobre a natureza do ato de sentir e, não obstante,
afirm ar sua inacessibilidade, Skinner não estaria — da mesma
forma que os behavioristas medotológicos — deixando espaço
para uma interpretação mentalista do ato de sentir? Creio que
não, uma vez que o ato de sentir é um produto das contingên­
cias de reforçamento que atuam sobre o com portam ento ope­
rante, como ainda o ato de sentir é um produto das condições
corporais internas. Tal como o com portam ento operante, as
condições corporais internas são eventos físicos e provavelmen­
te o ato de sentir é também de natureza física. Além disto, Skin­
ner quer saber onde estão estes sentimentos, estados mentais e
também de que estofo eles são feitos. Uma resposta tradicional
seria a de que estes sentimentos e estados mentais estariam loca­
lizados num mundo mental de dimensões não-físicas. Mas aí
surge uma outra questão. Como é possível que um evento men­
tal cause ou seja causado por um evento físico? Existiria, por­
tanto, uma contradição interna no pensamento de Skinner, se
admitíssemos que o ato de sentir é mental, pois de que forma
eventos físicos — comportamentos e condições corporais inter­
nas — produziriam um efeito mental? Logo, é mais coerente
admitir que os sentimentos sejam também físicos. Não como
uma entidade autônom a, mas no sentido de um produto ou pro­
priedade do com portam ento e de condições corporais.9 Talve/

9 Cf. Richard Creel, op. cií., pp. 48-53, para uma discussão mais detalhada desta dis
tinção entre propriedade e entidade.
SKINNER, M A TERIA LISTA M ETAFÍSICO? . 99

seja nesse sentido que Skinner diz: “ Minha dor de dente é tão
física quanto minha máquina de escrever” .10 A dor, neste exem­
plo, não é física no mesmo sentido da máquina. A dor é física
como produto ou propriedade da condição física do dente. O
ato de sentir é, portanto, um efeito físico do com portam ento e
das condições corporais, mas o ato de sentir não é causa do
com portamento. E neste ponto a posição de Skinner é clara­
mente epifenomênica.
Do ponto de vista da causação, a relação entre o ato de
sentir e o com portamento é assimétrica, uma vez que o ato de
sentir é um efeito do com portamento mas não é causa dele.
Aqui cabe a questão: porque o ato de sentir não determina o
comportamento? É necessário entender o operacionismo de
Skinner. Para que se possa dizer que eventos privados ou públi­
cos determinam o com portamento, é imprescindível que estes
eventos sejam observáveis, mensuráveis e manipuláveis. Mas
o ato de sentir é privado para sempre, logo, não pode ser obser­
vado, medido ou manipulado. Além disto, Skinner sofre as
influências do pragmatismo filosófico que orientam seu inte­
resse para a previsão e controle do com portamento. Mas, se o
ato de sentir não pode ser observado, medido ou manipulado,
conseqüentemente, as relações entre sentir e comportar-se tam ­
bém não podem ser observadas. Como é possível, então, fazer
previsão e controle do com portamento a partir da experiência
subjetiva, na ausência das leis experimentais necessárias? Não
obstante, pode-se argumentar da maneira seguinte: “ De que
modo é possível que o ato de sentir seja físico, e portanto faça
parte de um sistema físico, sem produzir efeitos físicos?” “ E, se
o ato de sentir produz efeitos físicos, como Skinner pode susten­
tar que a experiência subjetiva é um epifenômeno?” Em bora ele
não negue que o ato de sentir produz efeitos físicos, estes efeitos
são de menor importância. O que ele nega efetivamente é que a
experiência subjetiva determine de forma importante o compor­
tamento operante. Um pai pode ensinar seu filho a dizer “ estou
faminto” não porque o pai esteja sentindo o que a criança sente,
mas porque pode observar como ela come vorazmente. A crian­
ça pode aprender a descrever seus sentimentos com alguma pre­
cisão. Mas, argumenta Skinner, “ o caso não é sempre assim,

10 B. F. Skinner, The operational analysis of psychological terms (1945), in Cumulative


record, Nova York, Appleton-Century-Crofts, 1972, pp. 383-384.
100 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RADICAL

porque muitos sentimentos produzem manifestações comporta-


mentais indistintas” .11 Em outro texto diz: “ A descrição de um
estado de sentimento, por mais precisa que seja, não pode cor­
responder exatamente ao estado sentido” .12 Aqui ele está dizen­
do duas coisas. E primeiro lugar, que o ato de sentir não pode
ser completamente descrito pelo comportamento verbal ou redu­
zido a esta descrição, isto é, que o ato de sentir não pode ser redu­
zido, nem ao que é internamente sentido, nem ao comportamen­
to verbal que o descreve. É a comunidade que nos ensina a relatar
o que se passa sob a pele e o ato de sentir é inacessível a esta
comunidade. Conseqüentemente, a descrição que fazemos do
que se passa quando sentimos será necessariamente incompleta.
Nas palavras de Skinner: “ Ao invés de concluir que o homem só
pode conhecer sua experiência subjetiva — e que ele está limita­
do para sempre ao seu mundo privado e que o m undo externo é
apenas um construto — uma teoria com portamental do conhe­
cimento sugere que é o mundo privado que, em bora não seja
inteiramente desconhecido, não pode, provavelmente, ser tão
bem conhecido como o mundo externo” . E m segundo lugar,
já que a experiência subjetiva é física e incompleta a descrição
que dela fazemos, é compreensível que possa produzir efeitos
físicos indeterminados. Além disso, im porta muito em nosso
relacionamento social a existência da experiência subjetiva. Se
pergunto a certa pessoa se está aborrecida ou triste comigo e se
sua resposta for afirmativa, posso mudar meu com portamento
em relação a ela. Na ausência da dimensão subjetiva da expe­
riência, a experiência social acima descrita seria literalmente
impensável.
A posição epistemológica de Skinner sobre os eventos pri­
vados parece então ser muito original. Ela implica um monis-
mo fisicalista epifenomênico . 14 Por um lado é diferente da posi­

11 B. F. Skinner, 1971, p. 106.


12 B. F. Skinner, 1974, p. 174.
13 B. F. Skinner, 1969, p. 228.
14 Cf. Richard Creel, op. cit., pp. 43-48. Evidentemente, se o ato de sentir é epifenomê­
nico então pode surgir a seguinte questão: “ Onde está o agente do comportamento
na teoria do comportamento de Skinner” ? Em resposta dizemos: uma pessoa se
comporta em determinada situação de certa forma por causa de sua exposição a con­
tingências de reforço que atuaram no passado. A situação presente é apenas uma
parte destas contingências. Em outros termos, o que sustenta a idéia de um agente do
comportamento é a história passada da pessoa. Nas palavras de Skinner: “ Uma pes­
soa não é um agente originador, ela é um locus, um ponto, em que muitas condições
SKINNER, M A TERIALISTA M ETAFÍSICO? 101

ção epifenomênica clássica que considera a experiência subje­


tiva constituída de sutil “ m atéria” mental. Por outro lado dife­
rencia-se do monismo fisicalista do behaviorismo metodológico
que exclui do campo da Psicologia a interpretação dos eventos
privados.

REALISMO EM PÍRICO: CONTATO COM


O POSITIVISMO LÓGICO?

Filósofos e psicólogos têm recentemente defendido a tese


de que a filosofia do com portamento de Skinner é um materia­
lismo filosófico, materialismo metafísico ou ainda materialismo
eliminativo. O principal argumento que usam em defesa desta
tese é a característica fisicalista da experiência subjetiva. Já
vimos que Skinner não compreende como um evento mental
pode determinar ou ser determinado por eventos físicos. Conse­
qüentemente, o próximo passo foi rejeitar a oposição mental-
físico, substituí-la pela oposição privado-público e concluir que
tanto os eventos privados quanto os públicos são físicos. Em
suas palavras: “ Eventos privados e públicos têm os mesmos
tipos de dimensões físicas” . 15 Após citar várias proposições
skinnerianas similares à anterior, Richard Creel conclui: “ Em
vista destas proposições, que persistem já há três décadas, não
vejo razão para duvidar que Skinner defende o materialismo
filosófico” .16 Utilizando o mesmo tipo de argumento (o fisica-
lismo skinneriano), Flanagan Jr. qualifica de metafísica a abor­
dagem que Skinner desenvolve sobre os eventos privados. Nas
palavras de Flanagan: “ ... sua estratégia tem sido tom ar consis-
tentemente a posição metafísica de que eventos públicos e priva­
dos são igualmente legítimos e físicos e diferem somente em sua
acessibilidade” . 17 Em outro trecho Flanagam explicita clara-

genéticas e ambientais atuam juntas para produzir um efeito conjunto” (op. cit.,
1974, p. 168). Conferir ainda capítulos 11 e 14 do A bout behaviorism e G. E. Zuriff,
“ Where is the agent in behavior?” Behaviorism, 1975, 3, pp. 1-21. O que está em
questão, portanto, não é o agente do comportamento na teoria de Skinner, mas, sim,
porque o ato de sentir não pode, em si, ser um determinante do comportamento —
do ângulo desta teoria.
15 B. F. Skinner, 1969, p. 228.
16 Richard Cree, op. cit., p. 34.
17 Owen J. Flanagan, Jr. “ Skinnerian metaphysics and the problem o f operationism” ,
Behaviorism, 1980, 8, p. 9.
102 CONCEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RADICAL

mente o que considera a natureza metafísica do materialismo


skinneriano: “ Assim a tese de que o behaviorismo skinneriano
tem importantes elementos ontológicos e metafísicos, implica
que o que existe é a matéria ... Skinner é um materialista metafí­
sico” .18 Mahoney identifica o behaviorismo radical com o beha­
viorismo metafísico. P ara ele as feições básicas do behaviorismo
metafísico, nas mãos de John Watson, são: a negação da exis­
tência da mente e estados mentais; a redução de toda experiên­
cia a movimentos musculares e secreções glandulares; a propo­
sição de que os processos conscientes, se existem, estão além do
campo de investigação científica. Em seguida afirma: “ O beha­
viorismo radical ou metafísico não sobreviveu em sua forma
original. Embora o A bout Behaviorism de Skinner, 1974, sus­
tente o monismo materialista, ele está muito longe de uma pers­
pectiva ortodoxa watsoniana” .19 Blanshard entende que, em­
bora Skinner não negue explicitamente a realidade dos eventos
privados, tal realidade é implicitamente negada quando assume
o materialismo filosófico — posição que Skinner sustenta,
segundo Blanshard. Em outras palavfas, para Blanshard, o ma­
terialismo de Skinner seria eliminativo, no que se refere à exis­
tência da experiência subjetiva. De acordo com Richard Creel, o
raciocínio de Blanshard seria o seguinte: “ Não existe espaço
para sentimentos no m undo da matéria. Skinner é materialista.
Logo, Skinner nega a existência de sentimentos” .20 Um raciocí­
nio similar a este de Blanshard pode também estar por trás da
classificação que Bunge faz de Skinner, quando analisa as opo-
sições entre o monismo e o dualismo psicofísico. Passando a
palavra a Bunge: “ Para Skinner nada é psíquico: materialismo
eliminativo” .21 Se, por psíquico, se quer dizer mental, então
Bunge está certo. Com efeito, para Skinner nada seria, então,
psíquico. Mas, quando Bunge diz que o materialismo é elimina­
tivo, a qualificação de eliminativo pode estar indicando, não
que Skinner negue explicitamente a experiência subjetiva, mas
que, como não existe espaço no mundo da matéria para a expe-

18 Idem, ibidem, p. 10.


19 Michael J. Mahoney, Cognition and behavior modification, Cambridge, Ballinger
Publishing Company, 1974, p. 14.
20 Idem, ibidem, p. 33.
21 Mário Bunge, “ La bancarrota del dualismo psiconeural” , in La consciência, edita­
do por Augusto F. Guardiola, México, Trillas, 1979, pp. 71-84.
SKINNER, M A TERIALISTA METAFÍSICO? 103

riência subjetiva, então, esta experiência seria eliminada das


considerações da Psicologia.
Nossa tarefa agora é examinar esta tese exdrúxula, segun­
do a qual a versão do behaviorismo radical de Skinner implica
um materialismo metafísico. Em primeiro lugar, é necessário
compreender as motivações que levam Skinner a admitir esta­
tuto e dimensões fisicalistas à experiência subjetiva. Skinner é
um psicólogo de orientação empírica e pragmática, como já
tivemos ocasião de indicar. Conseqüentemente, como empiris-
ta, os eventos privados devem ser passíveis de observação, men-
suração e manipulação em uma ciência do com portam ento que
tem por princípio o dever de investigá-los experimentalmente.
Herdeiro do pragmatismo, Skinner está interessado na previsão
e controle do com portamento. Ora, se a mente tem dimensões
não-fisicas, o projeto de uma Psicologia empírica entra em crise
antes mesmo de principiar. Por conseguinte, visando a consecu­
ção de tal projeto, é condição sine qua non atribuir estatuto e
dimensões fisicalistas à experiência subjetiva. Mas esta orienta­
ção é de natureza epistemológica e metodológica. Não parece
ser metafísica. È epistemológica quanto às possibilidades do
conhecimento (empírica e pragmática). Por que o fisicalismo de
Skinner não é metafísico? Porque ele não demonstra qualquer
interesse intelectual por um mundo externo transcendente, ou
pela realidade em si. Que me seja permitido lançar mão de um
documento im portante sobre esta questão: “ É muito simples
parafrasear a alternativa behaviorista dizendo que na verdade
existe apenas um mundo e que este é o mundo da matéria, pois a
palavra matéria perdeu sua utilidade.1- Qualquer que seja o
estofo do qual o mundo é feito, ele contém organismos ...” .2i É
Skinner quem fala, aqui, contra o materialismo.
Não seria inoportuno recorrer, aqui, a Schlick que, com
efeito, entre outros, insiste na distinção entre a realidade empí­
rica e a realidade transcendente. Com este objetivo, retoma uma
distinção tradicional entre o que pode e o que não pode ser ime­
diatamente percebido. Segundo tal tradição, para se conhecer
um objeto é necessário percebê-lo diretamente. O conhecimento
seria uma intuição que só se realiza quando o objeto está pre-

:: Grifo meu.
23 B. F. Skinner, 1969, p. 248.
104 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RADICAL

sente diretamente ao sujeito do conhecimento, através de sensa­


ções, sentimentos etc. Conseqüentemente, o que não pode ser
imediatamente sentido ou percebido permanece incognoscível,
incompreensível, isolado no reino da coisa em si. Para Schlick,
denominar o que não é imediatamente perceptível de transcen­
dente é não compreender que, enquanto o imediatamente per­
ceptível pertence à experiência ou à relação direta com as coisas,
aquilo que não é imediatamente perceptível pertence ao conhe­
cimento ou à relação indireta com as coisas. Schlick é claro
sobre a diferença entre experiência e conhecimento, analisando
um caso da Física: “ Acho que não existe físico que sustente que o
conhecimento do elétron consiste no fato de ele penetrar corpo­
ralmente na consciência do investigador, mediante um ato de
intuição. Considero, pelo contrário, que defenderá o critério de
que para conhecer o elétron em sua totalidade, é necessário ape­
nas determinar as leis que regulam seu com portam ento e ser tão
exaustivo neste processo que toda fórmula contendo alguma
propriedade do elétron seja de alguma forma confirm ada pela
experiência” .24 Após estas considerações, Schlick conclui que a
realidade empírica é definida no âm bito do cognoscível, ao
nível de relações diretas ou indiretas com as coisas: noutras
palavras, ao nível da experiência ou do conhecimento, sem qual­
quer privilégio da apreensão imediata do objeto. Por outro
lado, se a realidade transcendente implica o incognoscível, como
é possível supô-lo sem contradizer-se a si mesmo? P ortanto, não
é possível falar sobre a realidade transcendente. Qualquer pro­
posição que se refira a esta realidade é desprovida de sentido e,
conseqüentemente, não afirm a ou nega coisa alguma sobre
qualquer realidade.
Quando Skinner afirma que “ a ciência freqüentemente
fala sobre coisas que não pode ver ou medir” ,25 de modo algum
está a referir-se à realidade transcendente. Está dizendo, como
Schlick, que, no mundo empírico, algumas coisas são observadas
diretamente, ao passo que outras, como a experiência subjetiva,
só podem ser atingidas via procedimentos inferenciais, indi­
retos etc. É nesta mesma página da citação anterior que Skin­
ner declara: “ É particularmente importante que uma ciência do

24 Moritz Schlick, “ Positivismo y realismo” , in El positivism o lógico, compilado por


A. J. Ayer, México, Fondo de Cultura Económica, 1965, pp. 108-109.
25 B. F. Skinner, 1969, p. 228.
SKINNER, M A TERIALISTA M ETAFÍSICO? .

kS v
com portamento defronte-se com o problema da privaCidad
Isto pode ser feito sem que se abandone a posição básica do
behaviorismo. A ciência freqüentemente fala sobre coisas que
não pode ver ou medir” .26 Concluindo, o fato de que um autor
assuma que os dados da experiência subjetiva são da mesma
natureza que os da experiência física, externa, não implica neces­
sariamente tom ar uma posição metafísica. Ouçamos Schlick
sobre a questão: “ A realidade que se deve atribuir aos dados da
consciência é absolutamente da mesma espécie que a que reco­
nhecemos, por exemplo, aos fenômenos físicos. Na História
da Filosofia dificilmente se registra algo que tenha gerado mais
confusão do que a tentativa de designar como “ ser” autênti­
co somente um dos dois. Onde quer que se empregue o termo
“ real” , o sentido da palavra é o mesmo” .27
Em segundo lugar é necessário examinar as posições explí­
citas de Skinner sobre o materialismo filosófico, quando este é
utilizado para caracterizar a teoria do com portam ento operan­
te. É surpreendente que filósofos e psicólogos omitam as propo­
sições explícitas de Skinner sobre esta questão. As análises des­
tes críticos têm-se resumido a passar da posição fisicalista de
Skinner para a inferência de um suposto materialismo metafí­
sico. Além de esta inferência não parecer autorizada — seja pelas
motivações (empirismo, pragmatismo) que orientam o projeto
para o estudo dos eventos privados, seja pelas próprias expres­
sões explícitas de Skinner, como vimos acima, ou ainda, pela
possível vinculação à tese do realismo empírico — a omissão das
teses explícitas de Skinner é grave. Pois, ainda que, por razões
óbvias, as teses explícitas de um pensador não se constituam no
único material para a análise de sua teoria, não deixam de ser
importantes na discussão da consistência de sua obra. Conside­
rando-se as teses explícitas de Skinner sobre a questão, pode-se
dizer que, no mínimo, é problemática a tese de que o behavio­
rismo radical, na versão skinneriana, é um materialismo metafí­
sico. Quando Skinner diz no Contingências de Reforçamento
que a palavra matéria perdeu sua utilidade, esta não é sua pri­
meira manifestação sobre a questão. No Comportamento dos
Organismos ele discorre sobre o tema sustentando que “ o ma­
terialista, reagindo a um sistema mentalista, provavelmente não

25 B. F. Skinner, 1969, p. 228.


:l M. Schlick, 1965, p. 106.
106 CONCEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

aceita o com portamento como o objeto de estudo da Psicologia,


porque ele deseja que os conceitos desta ciência refiram-se a
alguma coisa substancial.2IÍ Provavelmente, ele considerará ter­
mos que se referem ao com portamento como verbal e fictício e
em seu desejo de explanações materiais negligenciará o papel
destes conceitos em uma ciência descritiva. Holt adota uma
posição moderna deste tipo. Sua objeção a um termo como
instinto parece ser redutível à proposição que não é possível
encontrar o instinto recortando e abrindo o organismo” .29 Ainda
em seu texto sobre cinqüenta anos de behaviorismo coloca,
como epígrafe de uma nota sobre mente e matéria, uma citação
da revista Punch de 1885, a saber: “ W hat is matter? — Never
mind. What is mind? — No m atter” .111
Resta ainda analisar se o fisicalismo de Skinner oferece
obstáculo ao reconhecimento da experiência subjetiva como
querem Blanshard e Bunge. Apesar do fisicalismo epifenomê-
nico de Skinner, a experiência subjetiva existe, produz efeitos
físicos indiferenciados e é importante para o relacionamento
social. Além disto, o ato de sentir pode e deve ser estudado como
um efeito das contingências de reforçamento à qual a pessoa é
exposta. Finalmente, o que é sentido tem o estatuto de causa.
Recorde-se que o que é sentido implica com portamentos ope­
rantes encobertos da mais alta importância para o estudo da
experiência subjetiva, pois estes comportamentos operantes são,
entre outras coisas, o substituto de imagens e lembranças11 na
teoria do com portamento de Skinner. É claro que se Skinner
fosse um behaviorista metodológico, afirm ar que seu fisicalis­
mo é eliminativo seria pertinente. Esta confusão, apesar da
extrema clareza de Skinner sobre a questão, não é no entanto
incomum. Flanagan, por exemplo, diz que em 1938 Skinner é
um behaviorista metodológico e apenas a partir de 1945 se to r­
na um behaviorista radical. Cita em apoio a esta tese a seguinte
afirmação de Skinner do Comportamento dos Organismos: “ O
com portamento é definido como o que um organismo está
fazendo ou mais precisamente nossa observação sobre o fazer

2S Grifo meu.
29 B. F. Skinner, The behavior o f organisms, Nova York, Appleton-Century-Crofts,
1938, pp. 440-441.
30 B. F. Skinner, 1969, p. 247.
31 Cf. G. E. Zuriff, “ Ten inner causes” , Behaviorism, 1979, 7, pp. 1-8, para um exame
lúcido da questão.
SKINNER, M A TERIA LISTA M ETAFÍSICO? . 107

de outro organism o” .32 Daí, Flanagan conclui: “ Skinner insiste


que esta caracterização do objeto de estudo da Psicologia requer
rejeição de termos psicológicos que tenham significado além da
experiência im ediata” .33 Finalmente, conclui: “ Exceto este caso
anômalo de seu primeiro livro, Skinner não é um deles” .34 Um
deles, Flanagan quer dizer: “ Behaviorista metodológico como
Stevens e Boring” .35 Infelizmente, Flanagan leu mal este trecho
de Skinner. Quando Skinner diz que o “ único critério para a
rejeição de um termo popular é a implicação de um sistema
ou de uma formulação que vá além da observação im ediata” ,
ele está criticando o mentalismo que pressupõe eventos mentais
em um mundo de dimensões não-Fisicas por trás do com porta­
mento. Em suas palavras: “ Não pretendo que uma ciência do
com portamento dispense esquemas conceituais. Mas que estes
não devem ser utilizados sem uina consideração cuidadosa dos
esquemas que subjazem à linguagem popular" ,36 É novamente
surpreendente que nesta mesma página Flanagan não tenha no­
tado a crítica que Skinner faz aos behavioristas metodológicos.
Duda a importância da questão, que me seja permitido citar um
trecho relativamente iongo de Skinner: “ Um conjunto de defi­
nições convencionais pode ser estabelecido sem que se ultrapas­
se o nível do com portamento, e isto foi de fato feito pelos pri­
meiros behavioristas que utilizaram grande quantidade de tem­
po {de form a insensata, a creditof traduzindo em termos com-
portamentais os conceitos da Psicologia tradicional, a maioria
dos quais extraídos do vernáculo. Esforços rigorosos para rede­
finir alguns termos do vocabulário popular com referência ao
com portamento foram realizados, por exemplo, por Tolman
(71)” .,s È, no mínimo, curioso que Flanagan considere o Skin­
ner de 1938 um behaviorista metodológico. Pelo que se expôs é
mais prudente concluir que desde o início de seu trabalho Skin­
ner tende a se afastar do behaviorismo metodológico. A crítica
de incompletude ou de eliminação na abordagem dos eventos
privados pode ser dirigida ao operacionismo clássico de Bridg-

32 A pud J. Flanagan, 1980, p. 2.


33 J. Flanagan, 1980, p. 2.
34 J. Flanagan, 1980, p. 3.
35 J. Flanagan, 1980, p. 3.
36 B. F. Skinner, 1938, p. 7.
37 Grifo meu.
38 B. F. Skinner, 1938, p. 7.
108 C ON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RADICAL

man, ao behaviorismo metodológico de Stevens, Boring e Tol-


man e ao positivismo lógico de Carnap."' Mas, como esperamos
ter dem onstrado, não a Skinner.

FRONTEIRAS DO COM PORTAM ENTISMO


RADICAL: DUAS NOTAS

Skinner, em um artigo que analisa a morte do behavioris­


mo, sustenta que “ o behaviorismo como um a filosofia do com­
portam ento será necessariamente modificada quando a ciência
do com portamento se modificar e então os problemas atuais do
behaviorismo serão completamente resolvidos. O behaviorismo
morrerá não por ser um fracasso mas por ter sido um sucesso” .40
Esta conclusão de que o behaviorismo morrerá por ter sido um
sucesso, requer, no mínimo, duas observações. Uma, o otimis­
mo pode ser exagerado. Procurei dem onstrar que, da perspec­
tiva skinneriana, a possibilidade de uma ciência sobre a expe­
riência subjetiva é viável em parte, como quando procuramos
analisar o ato de sentir como efeito do com portamento e das
condições corporais. E, além disso, por serem promissoras as
possibilidades de acesso a eventos corporais privados com a sub­
seqüente descoberta de leis que relacionem o com portamento
com estes eventos corporais. Mas também vimos que, do ponto
de vista empírico, é impossível dem onstrar o papel causal do ato
de sentir sobre o com portamento. O monismo fisicalista epife-
nomênico ou a epistemologia da ciência do comportamento
skinneriana indica possibilidades e limites para uma ciência
do com portamento bem-sucedida na investigação dos eventos
privados. E claro que, com referência aos eventos privados aces­
síveis, existe a possibilidade de análise e investigação científica,

39 Cf. Rudolf Carnap, “ Psicologia en lenguaje fisicalista” , in El positivismo lógico, op.


cil. Neste texto dh de uma pessoa excitada que “ o corpo de tal pessoa se caracteriza
por um pulso e uma respiração acelerada. Determinados estímulos podem produ/ir
uma aceleração ainda maior do pulso e da respiração. A pessoa pode apresentar res­
postas veementes e realmente insatisfatórias às perguntas que lhe sejam feitas. Apre­
senta movimentos agitados...” (p. 178). Para Carnap, aí, o significado total da agi­
tação é constituído pela relação especificada entre a situação e a resposta. Conferir,
entretanto, Rudolf Carnap, O caráter metodológico dos conceitos teóricos, col. Os
Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1980, pp. 222-254, onde se evidencia uma
mudança de posição.
40 B. F. Skinner, 1969, p. 267.
SKINNER, M A TERIALISTA M ETAFÍSICO? . 109

mas, com referência à experiência subjetiva, para sempre priva­


da, as possibilidades são apenas heurísticas ou hermenêuticas.
Portanto, se Skinner está querendo dizer que o behaviorismo será
um sucesso porque é possível fazer ciência sobre a experiência
subjetiva inacessível, então seu otimismo é exagerado, como
acabamos de demonstrar. De fato, não acreditamos que Skin­
ner pense desta forma. Coloco a questão apenas para dirimir
eventuais dúvidas que possam surgir.
Com efeito, acreditamos que Skinner pretende dizer que o
behaviorismo será um sucesso quando a ciência do com porta­
mento avançar o que puder ser avançado ao nível da investiga­
ção dos eventos privados acessíveis e interpretar o que puder ser
interpretado sobre a experiência subjetiva. É claro que isto é um
mérito porque aponta os limites de uma ciência: coisa rara na
primeira geração (contemporânea de seus primeiros escritos),
do positivismo eufórico.
Mas, não paira um certo sabor de desilusão (feeling) quan­
do temos que admitir que o ato de sentir, o que há de mais intui­
tivamente psicológico não pode ser alcançado pela ciência do
comportamento?
Breve nota sobre o operante:
circularidade e temporalidade
Bento Prado Júnior

Aparentemente, a idéia de com portamento operante não


oferece mistérios. Já na nossa experiência diária, parece encon­
trar sua base intuitiva. Não é fato que nossas experiências mu­
dam nosso comportamento? Intuitivamente sabemos que — ao
longo do tempo — só insistimos num gesto se, anteriormente, já
revelou (ele ou gestos semelhantes) alguma eficácia. Noutras pa­
lavras, se o comportamento em questão mudou alguma coisa no
mundo ou no nosso ambiente. Pouco im porta a gênese do con­
ceito — o trabalho de Skinner para dividir o campo do com por­
tamento em duas áreas, ou para definir a diferença estrutural
entre as respostas de tipo S e as respostas de tipo R. O senso
comum espontaneamente distingue entre o “ voluntário” e o
“ involuntário” e nos prepara assim a acolher sem problemas
a partilha operada pela Análise Experimental do Com porta­
mento. Ê claro que a distinção científica não confirma as expec­
tativas do senso comum: a oposição entre respondente e ope­
rante modifica as suposições implícitas na oposição entre invo­
luntário e voluntário. Na passagem do senso comum à ciência
incipiente, perdemos a fé na liberdade e no finalismo — mas
uma certa oposição foi conservada, uma geografia foi guarda­
da, onde a intuição pode apoiar-se. Quem negaria que um gesto
bem-sucedido tende a ser repetido?
BREVE NOTA SOBRE O O PERA N TE 111

Além disso, a definição científica do operante — que nos


leva para além das evidências duvidosas do senso-comum, natu­
ralmente inclinado para o antropom orfism o e avesso à ciência
— parece não implicar nenhuma obscuridade. “ Um operan­
te é uma classe, da qual a resposta é uma instância ou um mem­
bro... É sempre uma resposta à qual é contingente um reforço
dado, mas este é contingente a propriedades que definem a perti­
nência (membership ) a um operante” ( Contingencies o f Rein-
forcement, 1969, p. 131). Nada mais simples: nossa intuição
grosseira dos fatos foi traduzida na linguagem mais rigorosa das
classes de acontecimentos, e, estas, definidas formalmente pela
propriedade comum a todos os seus membros. Passando da
intuição ao conceito, o que se ganha é a possibilidade de intro­
duzir a regularidade no domínio cambiante do comportamento.
Conquista sólida, já que a fixação dessa regularidade é feita (para
além do campo indeterminável da intuição) apenas na base de
indícios observáveis, ou seja, das propriedades físicas das res­
postas ou das instâncias públicas do com portamento. É a velha
lei do efeito que foi finalmente depurada de seu resíduo metafí-
sico ou hedonista, ou seja, da versão “ subjetiva” da noção de
reforço: a oposição incontrolável empiricamente entre o agradá­
vel t o desagradável. Os efeitos do com portamento moldariam o
com portamento subseqüente, sem que fosse necessário recorrer
a qualquer “ consciência” ou “ antecipação” do efeito, isto é,
sem reintroduzir sub-repticiamente a teleologia que se quer
excluir desde a origem da Psicologia Experimental americana.
Mas essa depuração não se faz sem dificuldade. Já em
“ The history and present status o f the law of Effect” , Postm an1
observava que a navalha de Okham, cortando os conceitos men-
talistas, poderia também ferir a própria raiz da lei do efeito,
reduzindo-a a uma mera tautologia. Segundo ele, essa depura­
ção leva à seguinte definição de reforço: “ Por um estado de coi­
sas satisfatório, entende-se apenas um estado que o animal nada
faz por evitar. Por um estado de coisas desagradável, entende-se
um estado de coisas que o animal evita ou abandona” . Estamos
certamente livres de qualquer suposição do funcionamento do
“ mundo interno” do animal e nos limitamos a descrever seus

1 A pud Paul Meehl “ On the circularity o f the law of Effect” . Psychological Bulletin.
1950, 47, 52-75.
112 CON CEITOS BÁSICOS DO BEHAVIORISM O RADICAL

movimentos patentes em nosso campo de observação. Mas o


que ganhamos com esse esforço? Postman não é insensato
quando afirma que a anterior descrição com portamental, neu­
tralizando a subjetividade das significações “ hedónicas” , pode­
ria ser traduzida nos seguintes termos: “ O animal faz o que faz
porque o faz, e não faz o que não faz porque não o faz” . O que
teria sumido, juntam ente com o uso dos conceitos mentalistas,
seria uma definição independente da variável independente, id
est, do reforço.
A clareza intuitiva e conceituai da lei do efeito (ou do con­
ceito de operante) começa a se esfumar. Mas é claro que Skinner
não esperou até 1947 para prever tal objeção, ou o escândalo
diante da definição de reforço como estímulo que reforça. Já
em Behavior o f Organisms, em 1938, diz “ Um estímulo reforça-
dor é definido enquanto tal por seu poder de produzir a m udan­
ça resultante. Não há nenhum a circularidade nisso: alguns estí­
mulos ocorrem que produzem mudança, outros não, e são clas­
sificados como reforçadores e não-reforçadores em conseqüên­
cia” (p. 62). Antecipadamente, assim, desloca a questão da defi­
nição do reforço de seu nível puramente lógico para o nível do
empírico. Esqueçamos a lógica da definição do conceito de
reforço, olhemos para o mundo e veremos que certas coisas
reforçam e outras não. Aceitemos classificá-las de acordo com
seu “ com portam ento” diferencial. Nosso trabalho está mais
próximo da botânica do que da lógica. Embora o médico de
Molière, também cientista empírico, pudesse igualmente dizer
que a virtus dormitiva... mas deixemos de lado essa aproxima­
ção inadequada.
Em 1950, respondendo ao texto de Postm an, Paul Meehl
retoma e desenvolve em “ On the circularity o f the law o f Effect”
(.Psychological Bulletin, 1950, 47, pp. 52-75) o breve argumento
de Skinner:

“ Deve ser assinalado que há, no uso comum, dois sentidos


da palavra ‘circular’. Temos, de um lado, circularidade na
definição, onde um termo não-familiar é definido pelo uso
de outros termos que não são definidos (direta ou indireta­
mente) pelo termo em questão. Não se pode falar de circu­
laridade neste sentido numa definição do tipo Skinner-
Spence. Aceitamos a definição seguinte como uma crua
formulação preliminar: ‘um estímulo reforçador é um estí­
BREVE NOTA SOBRE O O PERA N TE 113

mulo que aum enta a força subseqüente das respostas que o


precedem imediatamente’. As palavras estímulo, força,
aumento e resposta podem todas ser definidas sem qual­
quer referência ao fato ou à teoria do reforço. As defini­
ções desses termos, particularmente o termo ‘resposta’
apresentam terríveis dificuldades; mas não sei de ninguém
que m antenha que envolvam a noção de reforço” (pp. 54-
55).

Skinner não tem nenhum parentesco com o médico de


Moliére. A ilusão da circularidade provém de uma indevida con­
fusão entre o lógico e o empírico. Uma definição é circular se o
definiendum está presente já no definiens. Mas a definição do
reforço nada mais é do que uma espécie de sumário de uma série
de fatos ou de estados de coisa. Noutros termos, ao dizer que o
reforço reforça não enunciamos uma tautologia, transmitimos
informações controláveis a respeito de uma região (ou de duas
regiões) do mundo dos fatos, que felizmente não se comportam
de maneira caprichosa, mas obedecem fielmente um padrão fixo
de regularidade funcional — uma ordem “ contingente” do
ponto de vista lógico. Sicut transit behavior.

II

Infelizmente esse recurso ao fato não resolve integralmente


nosso problema, como sugere o texto capital de Karl Schick
(Journal o f Experimental Analysis o f Behavior, 1971,15, pp.413-
428) sob o título de Operants. Aí é novamente reiterado o argu­
mento da circularidade, levando em consideração a defesa prévia
de Skinner e os raciocínios de Paul Meehl. Em algum lugar, Skin­
ner afirm a que lhe basta verificar, na relação entre uma Variável
Independente e uma Variável Dependente, o registro de uma
curva regular para que esteja com alguma coisa in the bag (ou,
traduzindo, algo faturado). Resta, todavia, como observa
Schick, que devemos nos entender a respeito de noções básicas
como comportamento e unidade de comportamento que estão
incontestavelmente na base da análise experimental. De fato,
longe estaria de Skinner a idéia de assumir uma postura por
assim dizer “ convencionalista” . Ê ele mesmo quem diz:
114 C ON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RAD ICAL

“ A análise do com portamento não é um ato de subdivisão


arbitrária, e não podemos definir os conceitos de estímulo
e resposta tão simplesmente como ‘partes do com porta­
mento e do am biente’, sem dar conta das linhas naturais de
fratura que articulam o com portam ento e o am biente”
( The generic nature..., 1935, apud Schick, p. 414).

De um lado, temos a prudência metodológica que, nos


primeiros textos, empresta o estilo do “ operacionalismo” , que
se contenta com o inventário de relações constantes, no campo
do observável. De outro, insiste-se que as curvas regulares —
que mostram a função das variáveis — descrevem as coisas em
si, a articulação natural do com portam ento (voltamos à metá­
fora platônica da divisão das idéias como trabalho semelhante
ao do bom açougueiro, que divide o corpo do boi nas suas “ arti­
culações naturais” ). O difícil é manter essa dupla exigência me­
todológica e ontológica, guardando a severa separação entre os
domínios do lógico e do empírico.
Não é, de fato, a circularidade puramente lógica que preo­
cupa Schick, que não deixa, no entanto, de formulá-la. Obser­
va, com efeito, que o operante é definido pelo reforço, que o
reforço é definido pela apresentação de estímulos reforçadores,
que, por sua vez, são definidos pelo com portamento operante.
E, já que é assim, vemo-nos na impossibilidade de identificar
um operante sem identificar um estímulo reforçador, como não
podemos identificar um estímulo reforçador sem identificar um
operante. Não é esta dificuldade, repito, que comove Karl
Schick. Com efeito, se tomarmos em consideração a classe dos
maridos, não seremos obrigados a defini-la na sua relação com
a classe das mulheres (dotadas, naturalmente, dos papéis neces­
sários)? Ou vice-versa? É com um raciocínio semelhante que
Schick não vê dificuldade em definir operante e reforço na for­
ma de um par, sem necessidade (ou, no caso, sem possibilidade)
de definição independente de cada um dos termos.
Com esta operação mágica ou lógica, parece que exorciza­
mos o fantasma da circularidade: o que parecia ser um proble­
ma lógico deixou de sê-lo. Mas ele só se elidiu para reaparecer
de maneira mais dramática, no domínio privilegiado do empí­
rico. Antes de oferecer sua solução provisória, Schick havia
desarmado as propostas formuladas por Skinner e por Paul
Meehl. O que Skinner não teria notado, no texto citado de Be-
BREVE NOTA SOBRE O OPERA NTE 115

havior o f Organisms, seria que a mudança resultante do reforço


é uma “ mudança na probabilidade de ocorrência de respostas
que pertencem ao mesmo operante da resposta que foi reforça­
d a” (p. 416). Da mesma maneira, Paul Meehl nada resolve ao
definir o estímulo reforçador como aquele que aum enta a força
das respostas imediatamente precedentes. Ora, que sentido po­
deria ser atribuído à idéia de reforço de uma resposta que já
ocorreu? Karl Schick oferece sua solução de definição aos pares
porque lhe parece a única maneira de resolver logicamente, sem
apenas disfarçá-la, a dificuldade do círculo. Só na aparência
Skinner e Meehl evitariam o círculo, mas pagando um caro
preço: o de passar, sem confessar, na construção da definição,
do nível do acontecimento para o nível da “ estrutura” da res­
posta em sua singularidade, para a classe de respostas. Mas é,
como dizíamos, ao evitar essa confusão que enfrentamos a ver­
dadeira dificuldade.
Admitamos, com efeito, que, com a definição do par ope-
rante-reforço já não temos um obstáculo lógico. Um termo é
definido pelo outro sem problemas. Mas daí decorre, também,
que o destino dos termos está irremediavelmente entrelaçado —
como no matrimônio. No contingencies o f reinforcement, no
operant, como diz Schick. Ou, prolongando o paradigma matri­
monial, sem marido não há esposa (que me perdoem as feminis­
tas). Resta, diz Schick, que, assumida esta definição, seríamos
obrigados a am putar partes importantes da análise experimental
do com portamento. Assim, seria difícil, com essa definição ma­
trimonial do operante, dar conta de fenômenos como a extin­
ção, o comportamento supersticioso e a transferência da apren­
dizagem.
No contingencies o f reinforcement, no operant. Essa exi­
gência seria, segundo Schick, excessiva. Como dar conta do
processo de extinção, das respostas emitidas durante ele, quando
o reforço deixa de ser apresentado? A definição que foi resgata­
da teria de ser forçosamente ampliada. Na fórmula de Schick:
“ o operante é uma classe de respostas da qual cada instância
possui uma certa propriedade à qual o reforço poderia (could
be) tornar-se contingente” . Mas, alargado dessa maneira, o
conceito de operante perde talvez algo de sua força, já que, com
essa passagem ao domínio do possível, a propriedade que define
a classe passa a ser vicária. Desempenhará essa função qualquer
propriedade exibida anteriormente pela resposta. Schick conclui
116 CO N CEITO S BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RADICAL

que, procedendo assim, esvaziaríamos a noção skinneriana de


reforço de toda sua complexidade: o operante passaria a ser
qualquer classe de resposta que possui a mesma propriedade.
Ao que poderíamos acrescentar: a) o recurso à classe era uma
maneira de passar do contínuo e do infinito do stream o f beha­
vior ao universo finito e controlável das classes de respostas;
b) como fazer agora que, cada resposta, em sua singularidade,
passa a ser cercada por uma quantidade tão indefinida de classes
de respostas quão indefinidas são as propriedades físicas da res­
posta? Onde fica a previsibilidade do com portam ento com a
proliferação incontrolável das classes de respostas ou dos ope­
rantes possíveis?
Não é necessário, creio, reproduzir os argumentos de
Schick a respeito do com portamento supersticioso e da transfe­
rência de aprendizagem. São apenas dois outros contra-exemplos
mobilizados em prejuízo da definição de operante que estabe­
lece a condição draconiana: no contingencies o f reinforcement,
no operants. Limitemo-nos a apresentar a conclusão geral:

“ Já que qualquer resposta pertence a múltiplos operantes


ao mesmo tempo e já que o reforçamento de uma resposta
reforça muitos operantes a que pertence essa resposta, é
incorreto dizer que o reforço de uma resposta aum enta a
força do operante a que ela pertence. Dever-se-ia dizer, ao
contrário, que o reforçamento de uma resposta dá força a
alguns operantes aos quais ela pertence” .

III

Escapando ao círculo lógico, encontramo-nos presos dentro


de uma espécie de círculo real. Salvamos a definição, sob o preço
de reduzir a esfera do operante à condição única dos steady sta-
tes. Schick não o diz explicitamente, limitando-se a enumerar as
três instâncias do operante já referidas. O curioso, para mim, é
que não tenha pensado no processo de condicionamento na sua
forma mais simples — aquilo que tomo a liberdade de chamar
de a sedimentação do operante. Não é verdade, de fato, que a
noção de operante nasce da discriminação entre dois estilos de
resposta ou de aprendizagem? Schick poderia dizer: como se
instala um operante se o operante exige um reforço ? Ele quase
BREVE NOTA SOBRE O OPERA NTE 117

o diz, ao afirm ar que Skinner não tem maneira de falar a respei­


to da mudança resultante do reforço, sem falar de operantes.
Mas não o diz, porque teria de enfrentar o fato de que, ao me­
nos ao nível da teoria, pode-se falar de uma gênese do operante
a partir do não-operante. É toda a dimensão propriam ente ge­
nética ou histórica da teoria de Skinner que é neutralizada na
análise de Schick que opera, por assim dizer, um corte transver­
sal e sincrônico do operante. Mas o modelo teórico de Skinner
não é o de Darwin, não é o valor de sobrevivência da resposta
que reencontramos por baixo da lei do efeito? Lem brando a
frase de Bergson: “ Queira ou não, tenho de esperar que o açú­
car se dissolva” , poderíamos repetir: queiramos ou não, é neces­
sário esperar que o condicionamento seja feito — tempo de espe­
ra e de gênese —, para que resposta e reforço se equilibrem como
que fora do tempo. De outro lado, poderíamos perguntar: o
falecimento do sr. Joaquim , casado com dona M aria perturba a
arquitetura das classes e a relação “ lógica” entre maridos e
esposas? Se déssemos toda a força do gerúndio ao reforçamen-
to, talvez escapássemos dos dilemas de Schick.
Mas nem isso é certo e por duas razões. A primeira delas é
que a quase totalidade da atual Análise Experimental do Com­
portam ento (informação de colegas e leitura do Asytomptic
Behavior de Staddon) visa exclusivamente os steady states. A
historicidade do operante, ou a maleabilidade do comportamen­
to, tão decantada nos textos teóricos parece não ser o alvo pre­
dileto dos analistas. E podemos nos perguntar (com J. A. Gian-
notti, Que é fazer, “ Estudos Cebrap” n? 9, 1974, outro texto
capital sobre o operante) se o conceito de classe, se a lógica das
classes e dos predicados são bem escolhidos para traduzir a intui­
ção básica e viva da lei do efeito. Indo na direção de Schick e de
Staddon, privilegiamos classes e até estruturas, mas apagamos a
dimensão do tempo, e, mesmo, a oposição entre respondente e
operante. Caminhando na direção de Giannotti, valorizando o
tempo — a circularidade real m ostrada pelo efeito do efeito —
dissolvemos a noção de classe pronta. O círculo lógico não exis­
te: é a resposta que constitui retrospectivamente a classe das res­
postas. Mas o com portamento se transform a em reflexão obje­
tiva ou, em linguagem mais comum, avessa ao espírito da Aná­
lise Experimental do Comportamento, em práxis.
Depois de girar em falso dentro do conceito de operante, o
movimento centrífugo parece expulsar-nos fora dele: na direção
118 C ON CEITOS BÁSICOS DO BEHAV IORISM O RAD ICAL

do restabelecimento do império do respondente, ou na direção


da teleologia da práxis. Trata-se, é claro, da impressão de um
leigo, que não ignora que o destino desse conceito só pode ser
decidido na prática de seu uso experimental, que sabe a pobreza
da pura especulação, que transform a os conceitos em meras
idéias. Mas nossa escassa freqiientação da literatura da Análise
Experimental do Comportamento nos convenceu de que os cien­
tistas não têm uma clareza muito maior do que a nossa quando
falam do conceito de operante, tão confusos como nós, filóso­
fos ou sofistas. Teria razão Wittgenstein quando dizia que na
Psicologia só há m étodos experimentais e confusão conceituai?
Parte III
Predeterminação e
Experiência
Etologia e Behaviorismo
Lúcia Prado
“N a Psicologia há m étodos experimentais e confu­
são conceituai”
L. W ittgenstein (cap. XIV da 2? parte das
Investigações Filosóficas)

INTRODUÇÃO

A Psicologia cientifica, talvez mais do que nunca nos seus


103 anos de vida, atravessa uma aguda crise em duas frentes: de
um lado, ao nível da teoria, como apontado na epígrafe; de
outro lado, ao nível da prática científica, onde a rigidez na obe­
diência às regras metodológicas, dentro de uma determinada
postura teórica, tem levado a uma pesquisa estéril ou pouco
adequada a fornecer subsídios para a superação da crise atual.
Repetindo Skinner (1969): “ Como a ciência torna-se cada vez
mais governada por regras, o com portam ento do cientista perde
o toque pessoal do com portamento modelado pelas contingên­
cias, com os protestos de Polanyi e Bridgman, e o com porta­
mento não parece dem onstrar a posse genuína do conhecimen­
to ” . Uma análise deste estado de coisas se faz necessária, mas
fica aqui apenas prometida.
O que será privilegiado, neste texto, é o primeiro aspecto, a
crise ao nível da teoria, onde a confusão conceituai a que se
referia Wittgenstein, em 1945, foi potencializada pela confluên­
cia de abordagens que pareciam condenadas a um desencontro
irremediável: Psicanálise e Etologia (a partir de Bowlby, 1958),
teorias da aprendizagem e Etologia (a partir de Seligman, 1970),
cibernética e behaviorismo (Ashby, 1952), teoria da informação
122 PRED ETERM IN A ÇÃ O E EX PE R IÊ N C IA

e cognitivismo (toda uma plêiade de psicólogos que alimentam a


bizarra idéia de que estão de posse de um novo “ paradigm a” ,
no sentido que lhe é dado por Kuhn — cf., por exemplo, Con-
temporary issues in cognitive Psychology — The Loyola Sympo-
sium, editado por Solso, R. L., 1973), behaviorismo e Psicaná­
lise, etc. Mas, se há tentativas de aliança e “ correções” mútuas,
isto tem sido feito sobre o solo de pressupostos últimos tão diver­
gentes que o saldo parece mais negativo que positivo. Estamos
longe ainda de uma teoria capaz de assimilar todos os dados
que a prática científica tem produzido, a partir das diferentes
abordagens. Eis a razão do interesse em rever, ou melhor, em
tentar descobrir esses pressupostos, para melhor pensar a Psico­
logia hoje. O trabalho de explicitá-los poderá levar, senão a di­
minuir, pelo menos a compreender a confusão conceituai em
que nos movemos.
Tomarei, aqui, para uma breve análise, uma proposta rela­
tivamente recente, resultado do confronto entre o behaviorismo
e a Etologia: a proposta de Hinde (1973) que, baseando-se em
dados etológicos e explorando certas dificuldades surgidas den­
tro do próprio behaviorismo (como a distinção entre responden-
te e operante no fenômeno do auto-shaping), conclui pelo aban­
dono definitivo dos tipos básicos e universais de aprendizagem .1
Meu objetivo é, em poucas palavras, verificar qual o viés
da postura de Hinde que o leva a descartar a possibilidade de
chegar a leis gerais de aprendizagem. E como, além disso, esse
mesmo viés estaria na origem de sua dificuldade em compreen­
der a formulação do conceito de reforço, uma relação cuja for­
ça reside justamente na generalidade criticada por Hinde.
O texto, a ser aqui analisado, é o primeiro capítulo do
conhecido Constrainís on Learning, editado por Hinde e Steven-
son-Hinde, em 1973. Livro, aliás, onde a multiplicidade das
abordagens e a diversidade dos conceitos nele incluídos mais
uma vez confirmam a frase de Wittgenstein. O texto inicial é
uma justificativa da edição: nele, Hinde, além de nos oferecer
algumas pistas a respeito de sua posição, arrola, de maneira

1 Da confluência entre behaviorismo e Etologia, surgiu tam bém a proposta de Seligman


(1970) que, partindo de um a série de argum entos contra a “ premissa da equipotencia-
lidade” , segundo ele implicada nas teorias da aprendizagem, utiliza a noção de “ prepa­
ração” (preparedness) para dar conta de todos os dados etológicos que parecem esca­
par ao domínio da explicação skinneriana. Creio que com partilha dos mesmos pressu­
postos de Hinde.
ETO LO GIA E BEHAVIORISM O 123

mais ou menos aleatória, uma série de dados que serviriam de


argumentos contra os teóricos da aprendizagem.
Para facilitar a análise da posição de Hinde, começarei por
uma breve exposição da posição dos etólogos clássicos no que
concerne ao problema da aprendizagem.

O PA PEL DA APRENDIZAGEM NA
ABORDAGEM ETOLÕGICA

Rebatendo as críticas dos psicólogos, behavioristas ou não


(como Lehrman, 1953), Lorenz concede, em 1965, que o com­
portam ento como tal não é herdado: só o é a capacidade de
aprender este ou aquele com portam ento em tais e tais circuns­
tâncias. Sem dúvida uma concessão, da Etologia que se dedicava
à pesquisa dos “ padrões fixos de ação” que, como o nome indi­
ca, não eram passíveis de modificação através da experiência.
Tais fixed action patterns, ou unidades de com portamento
reconhecidas por uma seqüência estereotipada de contrações
musculares (Manning, 1967), apareceriam “ prontas” no reper­
tório do indivíduo quando da conjunção de dois tipos de causa
imediata: um determinado estado fisiológico do organismo
(causa interna) e um estímulo particular do ambiente, dito estí-
mulo-sinal ou estímulo-chave (causa externa). A partir desta ele­
gante e parcimoniosa formulação — na boa tradição de Lloyd
Morgan — os etólogos passaram a descrever ad nauseam o com­
portam ento reprodutivo das diferentes espécies, da mesma for­
ma que os antropólogos, depois de Lévi-Strauss, pareciam tudo
resolver com as relações de parentesco. É que, no com porta­
mento reprodutivo, tanto a causa interna quanto a causa exter­
na — os estímulos liberadores — pareciam pronta e facilmente
identificáveis. Mas o repertório comportamental das diferentes
espécies não se reduz ao comportamento reprodutivo. No decor­
rer de sua vida o indivíduo precisa se adaptar ao meio ambiente,
sujeito a constantes modificações, e o com portam ento quase
reflexo, implicado na formulação acima, não podia dar conta
do funcionamento do complicado sistema organismo-meio.
Era necessário, pois, introduzir o conceito de aprendizagem.
Mas, em que medida o reconhecimento, por assim dizer oficial,
do papel da aprendizagem na determinação do com portamento,
veio a repercutir na pesquisa etológica? A expressão “ o que
124 PR ED ETERM IN A ÇÃ O E E X PE R IÊ N C IA

antes chamávamos de inato” , usada pelos etólogos da década


de 60 e duramente criticada por Lorenz no Evolution andModi-
ficuiion o f Behavior (1965), teria sido significativa de uma mu­
dança real de perspectiva? Parece que não. Com efeito, ao ree­
ditar seu livro The Study o f Instinct (1951) em 1969, Tinbergen
insiste em dizer que, apesar dos progressos verificados nos vinte
anos que sucederam a primeira edição, “its overall approach to
behavioural problems is stili representative o f what I like to call
the biological study o f behaviour” (p. V). Na verdade, o pro­
gresso referido se resume no desenvolvimento tecnológico que
tem permitido registros cada vez mais minuciosos do com porta­
mento estudado, bem como análises cada vez mais finas das
seqüências registradas. No que se refere á análise funcional do
com portamento, não encontramos nenhuma mudança efetiva,
além de algumas concessões, puramente verbais, à importância
da aprendizagem. Aliás, importância inteiramente diluída pelas
restrições que a acom panham , como se vê no texto abaixo:
“ Estudos sobre a ontogenia do com portam ento também
entraram numa nova fase. Os progressos mais importantes
parecem ser, para mim, a quase universal aceitação do fato de
que muitos padrões de com portam ento podem se desenvolver,
alguns até um alto grau de complexidade, antes da interação
com o meio dos tipos coletivamente chamados de ‘aprendiza­
gem’; além disso, o reconhecimento de que, apesar disso, uma
dicotomia rígida entre ‘com portamento inato’ e ‘com portam en­
to aprendido’ não é mais do que um primeiro passo hesitante na
análise do processo de desenvolvimento como um todo; e, em
terceiro lugar, que, mesmo onde a aprendizagem desempenha
uma parte im portante no desenvolvimento do com portamento,
há freqüentemente, senão sempre, uma seletividade no que é
aprendido e no que não o é — um viés que guia a interação com
o ambiente — e que este viés pode, ele mesmo, ter sido inteira­
mente program ado” (p. VIII).
Este texto não só é significativo do abismo que persiste
entre a abordagem etológica e a behaviorista, como também
aponta para um problema de ordem conceituai: etólogos e psi­
cólogos de orientação behaviorista, ao falarem de ontogenia do
com portamento, não estão se referindo exatamente ao mesmo
tipo de eventos. No caso dos etólogos, a ontogenia do com por­
tam ento diz respeito ao desenvolvimento do com portamento,
ao nível do indivíduo, até sua forma estável, após passar por
ETO LO GIA E BEHAVIORISM O 125

toda uma gama de formas intermediárias: o processo ontogené-


tico é, antes de tudo, a realização progressiva de estruturas gene­
ticamente determinadas. Dele, a aprendizagem pode estar intei­
ramente excluída, como afirma Tinbergen, no texto acima. Para
Skinner (1969), no entanto, há uma oposição nítida entre com­
portamentos que são produto de contingências filogenéticas
(que dizem respeito à história da espécie, como “ o com porta­
mento relativamente estereotipado apresentado na defesa do
território” , a “ agressão filogenética” etc.) e os com portam en­
tos que são produto de contingências ontogenéticas (que dizem
respeito à história individual). Neste último caso, o com porta­
mento considerado é aquele que é instalado ou modelado pelas
suas conseqüências reforçadoras para o indivíduo: o com porta­
mento ontogenético é, pois, sempre um com portamento apren­
dido, isto é, que depende de um certo tipo de interação com o
meio para aparecer.
Fantino e Logan (1979), que pretendem chegar a uma inte­
gração da análise experimental do com portamento à perspectiva
etológica, acabam por dividir o livro em duas partes: uma, dedi­
cada ao que chamam “ uma abordagem ontogenética” (que tra­
ta dos processos de condicionamento, respondente e operante) e
outra, consagrada a “ uma abordagem filogenética” (uma suma
dos dados e modelos teóricos da Etologia) (cf. p. 473 do livro
citado). O termo “ ontogenético” é tomado, mais uma vez aí,
como sinônimo de aprendido. O que é dito explicitamente no
seguinte texto: “In this sense theprincipies o f conditioning serve
the same function fo r explaining ontogenetic change as do the
principies o f evolution fo r explaining phylogenetic change. The
difference, o f course, is that the consequences o f behavior ope-
rate directly on the individual in ontogeny and indirectly on the
species in phylogeny” (Fantino e Logan, 1979, p. 7).
Aqui, dois pontos precisam ser sublinhados:
Primeiro: apesar das concessões feitas, há uma grande
resistência, da parte dos etólogos, em considerar um com porta­
mento como aprendido.
Q uando um dado com portamento sofre claras modifica­
ções, passando de formas mais rudimentares para formas mais
complexas e eficazes, durante a vida do indivíduo, essas modifi­
cações são imputadas geralmente a causas internas: aumento
progressivo da motivação em função do estado horm onal ou
melhora do desempenho em função da m aturação do sistema
126 PRED ETERM IN A ÇA O E E X PE R IÊ N C IA

nervoso. Tomemos como exemplo, entre milhares de outras,2


esta afirmação de Tinbergen (1951, p. 149 da edição de 1974):
“Improvements in nest-building in older birds have often been
interpreted as being caused by experience, but it seems to be set­
tled beyond doubt that it is the consequence o f maturation, first
year birds often building clumsy nests because o f low (hormo­
nal) motivation” . (O grifo é meu.)
Mas se estas modificações aparecem no repertório de um
indivíduo adulto, onde o ciclo de m aturação está terminado,
e nenhuma modificação hormonal correlata possa ser identifi­
cada, o com portamento resultante é dito aprendido. Neste caso,
porém, contentam-se em afirm ar que isto se dá graças a uma
“ predisposição inata para aprender, mais ou menos estrita­
mente localizada” (Tinbergen, 1951) e o processo é vagamente
atribuído a um condicionamento, quando não, como faz Lorenz
(1969), a diferentes tipos de aprendizagem, onde não falta nem
mesmo o insight, ao lado do imprinting e do condicionamento
operante. De qualquer forma, quando há referência à aprendi­
zagem, esta se situa sempre no ponto extremo do continuum
proposto por Seligman: aqueles casos em que é tão forte a “ pre­
paração para aprender” que o com portamento dito aprendido
praticamente se confunde com o com portam ento filogenetica-
mente determinado. Assim, são significativas as expressões uti­
lizadas por Tinbergen (1951): a aprendizagem do local do ninho
pela vespa Philantus triangulum se dá com uma astonishing
rapidity and precision e depende de uma amazing learning
capacity. O reconhecimento, pelos membros de uma colônia
de gralhas, de suas respectivas posições sociais e da mudança de
status que pode ocorrer em conseqüência do casamento de uma
fêmea com um macho hierarquicamente superior, na chamada
hipergamia, é igualmente determinado por um amazing lear­
ning process. Ora, a insistência na rapidez e na divertida capa­
cidade de aprender é uma forma de minimizar a importância do
processo envolvido, anulando sua tem poralidade.3 Aliás,

2 Seria fastidioso e impossível, para os limites de um artigo, citar e analisar todos os


exemplos retirados da produção dos etólogos, para m ostrar com o a aprendizagem
aparece aí com o algo de inteiram ente acidental e desprezível na ontogenia do com por­
tam ento.
3 Tam bém Jander (1957), quando fala em aprendizagem do caminho de volta pela
formiga exploradora, reduz tal processo a um a descoberta instantânea, resultado de
um complicado cálculo matemático, como veremos.
ETOLOGIA E BEHAVIORISM O 127

Segundo: nenhum esforço é realizado no sentido de anali­


sar o processo mesmo de aprendizagem, quando admitido.
Talvez isto se deva, em parte, ao tipo de pesquisa realizado
comumente pelos etólogos: os experimentos, quando são feitos,
o são quase sempre em situação natural, onde o comrole das
variáveis é muitas vezes impossível ou pouco seguro.
De outro lado, o com portamento descrito e analisado —
mesmo quando há interferências experimentais — é um com­
portam ento já instalado. Ora, ele pode ter uma história passada
que escapa inteiramente ao olhar do etólogo. O comportamento
do gato, que repousa sempre a uma distância X do fogo, pode­
ria bem ser visto, pelos etólogos, como uma resposta instantâ­
nea, instintiva ou geneticamente programada, a uma certa tem­
peratura ambiental. No entanto, levando em conta a temporali­
dade do processo envolvido, Ashby (1952) convence mais quan­
do — a partir do modelo do seu famoso “ H om eostato” — des­
creve este com portamento como o resultado de aproximações
sucessivas, controladas pelas conseqüências, para o organismo,
de cada uma das respostas emitidas. Em última análise, algo de
muito parecido com a explicação skinneriana, apesar da enorme
divergência das abordagens.
Ora, a meu ver, este ponto — o da história passada de um
dado comportamento, já “ automatizado” ou no seu steady State
— é extremamente im portante e só pode ser respondido atra­
vés de experimentos de laboratório, com o máximo controle das
variáveis nele implicadas. Sem esquecer, no entanto, que o que
deve ser levado para o laboratório são questões ou hipóteses
surgidas da observação do que ocorre no meio natural. Eu jamais
teria descoberto que o com portamento de orientação da saúva é
aprendido,4 isto é, que ele passa, progressivamente, a estar sob
controle de determinados estímulos, se eu me limitasse a fazer
interferências no meio natural, no território onde o com porta­
mento de orientação já estava instalado. Será que o com porta­
mento da vespa Philantus é tão simples quanto diz Tinbergen?
O próprio Lorenz (citado por Bernadette Chauvin, 1976) põe
em dúvida que a informação inata “ ventre vermelho” , que
desencadearia o combate entre os peixes esgana-gata, seja real­
mente inata — e sugere algumas experiências para verificar se

4 Ao contrário do que é suposto pelos biólogos, como W ilson, Moser, Blum etc., que
trataram do mesmo problema.
128 PRED ETERM IN A ÇÃ O E EX PE R IÊ N C IA

não há aprendizagem nesta reação, mesmo insistindo (como não


poderia deixar de ser) que deva tratar-se de uma aprendizagem
instantânea.5
Ora, a falta de uma investigação sistemática, no laborató­
rio, dos estímulos que podem vir a controlar o com portamento
na situação natural, pode estar na origem de uma visão extrema­
mente rígida e esquemática do relacionamento organismo-meio.
Os chamados comportamentos “ específicos da espécie”
pressupõem, com efeito, uma única resposta diante de um único
estímulo, ou componente de estímulo (o “ estímulo-sinal” ) exter­
no. Um universo fechado em si mesmo. Como diz Chauvin
(1977): “On oublie ainsi que l’organisme peut faire la même
chose de nombreuses façons différentes ” (p. 23). Eu comple­
taria dizendo que ele também pode fazer a mesma coisa sob
controle de diferentes estímulos. Por exemplo, orientar-se no
espaço entre o ninho e a fonte de provisão, no caso das formi­
gas, como veremos adiante. Aliás, se esta flexibilidade não exis­
tisse, muitos seriam os problemas para a sobrevivência desta
espécie.

A PROPOSTA DE HINDE

No que se refere a uma tom ada de posição teórica, há uma


certa ambigüidade no texto de Hinde (cf. p. 3). Com efeito, ele
monta todo um aparato argumentative para desacreditar a pre­
tensão dos psicólogos de chegar a um sistema compreensivo do
comportamento animal (humano, inclusive), mas não se com­
promete até o fim. Em mais de um momento, Hinde acena para
a possibilidade de uma solução, dentro da teoria da aprendiza­
gem, para os problemas colocados: “ A n d at no point do I wish
to imply that learning theorists cannot cope with the issues rai­
sed ” (p. 4), ou, então: “ // is not suggested here that learning
theorists cannot cope with such phenomena ” (p. 6).

5 Aliás, os dados apresentados por Bernadette Chauvin (1976) dem onstram ampla-
mente que o papel da aprendizagem é enorme na dinâm ica do com bate entre os esga-
na-gata.
ETO LO GIA E BEHAVIORISM O 129

De outro lado, ele se pergunta se deve aceitar a tese de


Shettleworth (1972) — que insiste na necessidade de uma “ mul­
tiplicidade de princípios” para dar conta do com portamento
animal — ou se deve procurar novas leis gerais, acrescidas de
novas dimensões, como a d e preparedness proposta por Seligman
(1970).
P ara resolver esta questão, que não resolve, passa a enu­
merar todas as dificuldades que os dados etológicos teriam tra­
zido para uma abordagem, como a skinneriana, centrada em
dois tipos básicos de aprendizagem.
Tentarei mostrar aqui que os argumentos fornecidos por
Hinde, a partir dos dados da Etologia, derivam de uma incom­
preensão da noção de com portam ento operante — como foi
formulada por Skinner — e que esta incompreensão tem algo a
ver com uma certa metafísica de tipo aristotélico.
O fascínio de Hinde pela postura dos biólogos, sempre
atentos às diferenças (os cursos de Zoologia trariam o estudante
de Biologia “ imediatamente face a face com a diversidade” —
p. 3) dem onstra sua adesão aos pressupostos que carregam para
a análise do com portamento. Pressupostos que, pelo menos em
parte, advêm da constatação dessa diversidade imediatamente
dada. Daí, da forte impressão causada pela disparidade do visí­
vel, é que viria a desconfiança que nutrem (os biólogos, segundo
Hinde) pelas “ leis gerais” ou pelos “ conceitos gerais” .
Com efeito, um dos argumentos avançados por Hinde,
contra a tentativa behaviorista de identificar um número redu­
zido de tipos básicos de aprendizagem (dois para Skinner: res-
pondente e operante) é justam ente o da diversidade existente
nos mecanismos utilizados pelos diferentes organismos na sua
relação com o m undo que os cerca. Os animais, diz ele, podem
respirar pelas guelras, pulmões, pele, boca, reto ou intestino, e
isto está relacionado com o meio em que vivem e as adaptações
evolucionárias que sofreram. Ninguém o negaria. Mas também
é certo o fato de que — sob essa diversidade — todos esses ani­
mais respiram, isto é, captam (da atmosfera, os aeróbios) o oxi­
gênio necessário, ao mesmo tempo que liberam gás carbônico.
Variam os órgãos implicados na respiração dos diferentes ani­
mais, mas a relação ou troca que mantêm com o meio, através
da respiração, é a mesma para todos eles. Hinde parece querer
apagar esta relação matematizável em nome dos ajustes neces­
sários aos casos particulares.
130 PRED ETER M IN A Ç Ã O E EX PE R IÊ N C IA

Deveríamos renunciar às “ leis gerais da aprendizagem” 6


sob o pretexto de que, nas diferentes espécies (mesmo as mais
próximas), variam as respostas e os estímulos que as controlam?
Ou, então, porque as “ leis gerais” não dão conta da diferença
entre as espécies? Nisto, me parece, está o grande equívoco de
Hinde. Pois, ninguém ignora que a ciência, ao buscar leis gerais
ou conceitos gerais, de maneira alguma despreza a diferença.
Skinner, aliás, manifesta desconfiança em relação à estatística
como método em Psicologia justamente porque a apaga. A gene­
ralização, todavia, não conflita com o respeito pelo diverso. O
equívoco de Hinde é, neste assunto, ao mesmo tempo lógico e
ontológico.
Em primeiro lugar, ao afirm ar que “ the broader the gene-
ralizations, the more superficial they are likely to be” (p. 3),
revela uma concepção arcaica da generalização. Ê o que diz
Cassirer (1910), quando opõe a lógica do conceito genérico,
regido e controlado pelo conceito de substância, à lógica do
conceito matemático de função: “ Enquanto se reduzir toda
determinação ao inventário exaustivo das constantes individuais
e das propriedades inerentes às coisas, toda generalização do
conceito deverá passar, ao mesmo tempo, por significar um
enfraquecimento do conteúdo deste conceito. Mas, quanto mais
o conceito for, se assim pudermos dizer, esvaziado de todo ser
dado, mais se afirm a em contrapartida o caráter irredutível de
seu papel funcional. As propriedades inertes são substituídas por
regras gerais que nos fazem entrever, de um só golpe, uma série
global de determinações possíveis” (p. 35 da tradução france­
sa). É evidente que no primeiro caso, como m ostra Cassirer ao
caracterizar uma ciência ultrapassada, a generalização é, de
fato, superficial, como diz Hinde. Mas, pergunto, seria este tipo
de generalização que está implicado nas leis gerais da aprendiza­
gem propostas? Parece-me que não. Independentemente de qual­
quer apreciação a respeito dos conceitos gerais de operante e
respondente, é preciso insistir no fato de que pretendem dar
conta de relações funcionais entre variáveis, tais que possam ser
aplicadas a todos os casos particulares. A ambição aí é propor
“ conceitos gerais” do tipo dos conceitos gerais das M atemá­
ticas, como descritos, ainda uma vez, neste texto de Cassirer:

6 Não estamos querendo dizer aqui que estas devam ser necessariamente aquelas desco­
bertas pela Análise Experimental do Com portamento, de orientação skinneriana.
E TO LO G IA E BEHAVIORISM O 131

“ Criticando a lógica elaborada pela escola de W olff, Lam bert é


levado a sublinhar o que faz o mérito essencial dos “ conceitos
gerais” das Matemáticas: não contentes em não suprimir a deter­
minação dos casos particulares aos quais devem aplicar-se, tais
conceitos empenham-se na manifestação dessa mesma determi­
nação, em todo o seu rigor. Quando um matemático transform a
suas fórmulas no sentido de uma maior generalidade, tal trata­
mento não tem outro sentido ou objetivo senão o de tornar
compatíveis todos os casos particulares, de maneira a poder deri­
vá-los da fórm ula geral” (p. 31 da tradução francesa). Ora,
Hinde e, é preciso dizer, muitos dos cientistas que trabalham na
Análise Experimental do Com portam ento, parecem não perce­
ber todas as conseqüências desta reviravolta dentro da Psicolo­
gia. Mas, a discussão deste ponto, como foi prometido no iní­
cio, ficará para outro texto.
Em segundo lugar, a limitação à generalização, imposta
por Hinde, está ligada à manutenção de uma ontologia de tipo
aristotélico. De fato, o que faz a diferença entre a teoria aristo-
télica do movimento local e a Física galilaica? Não quero reto­
mar aqui tal oposição no sentido de Kurt Lewin, mais preocupa­
do com o estatuto da causalidade. Para meu problema, interes­
sa, em Aristóteles, exatamente a insistência na diferença quali­
tativa entre os diferentes tipos de movimento local: insursum,
do ar e do fogo, in deorsum da água e da terra, o movimento
forçado, e, finalmente, no m undo celeste, o movimento perfeito
e circular do éter ou da quinta essência. No pólo oposto, aFísica
de Galileu instaura uma teoria geral do movimento, na medida
mesma em que decide ignorar toda e qualquer diferença qualita­
tiva, já que todo movimento é pensado sobre o fundo homogê­
neo do espaço euclidiano. Só há diferença pertinente, se quanti­
tativa e matematizável.
O erro de Hinde não é fruto de ingenuidade, já que descre­
ve explicitamente o dram a epistemológico do biólogo: “ Natu­
ralmente os biólogos inevitavelmente assimilam alguma inveja
dos físicos que podem dizer e = mc2 em qualquer contingência, e
eles mesmos tiveram duas grandes oportunidades com a teoria
da evolução por seleção natural e com o deslindamento do códi­
go genético. Mas, de modo geral, eles ainda estão suficiente­
mente impressionados pela diversidade para desconfiarem de
afirmações tais como ‘todo com portam ento dos indivíduos de
uma dada espécie e aquele de todas as espécies de mamíferos,
132 PRED ETERM IN A ÇÃ O E E X PE R IÊ N C IA

incluindo o homem, ocorre de acordo com o mesmo conjunto


de leis primárias’ (Hull, 1945)” (p. 3).
Não estaria aí Hinde descrevendo a tram a de que não con­
segue escapar? Não teria a Biologia ainda uma vocação realista
ingênua, que dificulta sua autocompreensão epistemológica?
É, porém, nesta metafísica, realista e ingênua, que repousa o
pressuposto de que animais diferentes necessariamente apren­
dem a partir de mecanismos diferentes. O que é endossado, com
um mínimo de hesitação, por Hinde, quando afirma: “For the
moment, we may merely note that the mastery o f a particular
problem (e.g. maze running) to a given críterion by different
species may involve qualitatively different process (e.g.,
Schneirla, 1959; see also, Razran, 1971)” . (P. 4. Os grifos são
de Hinde e o texto não foi traduzido por causa da ambigüidade
na tradução da palavra may.)
Ora, esta afirm ação me parece levar a algumas dificulda­
des. Deveríamos, segundo ela, abandonar a busca de princípios
básicos e universais, para, no limite, multiplicar os processos de
aprendizagem pelo número de espécies estudadas. E, depois, o
que faremos com os indivíduos da mesma espécie que não se
comportam de acordo com o esperado? Pois, queiram ou não
os biólogos, as diferenças individuais, mesmo entre as formigas,
são grandes, do ponto de vista do seu desempenho. Cada indiví­
duo aprende ou domina um certo problema de maneira diferen­
te? Sim e não. Cada espécie aprende de maneira diferente? Sim
e não. Isto é, tudo parece indicar que há processos básicos
gerais, ou comuns a todos os organismos que aprendem, e que
as diferenças entre as espécies — e entre os indivíduos de uma
mesma espécie — vão depender das determinações particulares,
que são as especificações destes processos gerais. È evidente
que, não sendo formiga, não me oriento no espaço exatamente
da mesma maneira que ela: o meu meio ambiente é outro, meus
objetivos são outros, meus receptores de inform ação têm forma
e complexidade diversas, meu organismo, enfim, é totalmente
diferente do dela. No entanto, o processo subjacente deve ser o
mesmo, podendo ser inferido das relações funcionais nele impli­
cados, facilmente observáveis.
Farei, aqui, duas breves comparações, a partir das quais
será possível refletir sobre as teorias avançadas pelos biólogos a
respeito da orientação das formigas. Penso que será a melhor
forma de argumentar contra a tese de que há processos qua-
E TO LO G IA E BEHAVIORISM O 133

litativamente diferentes, se passarmos de uma espécie para a


outra.

Primeira

Se eu chegar a uma cidade desconhecida (e aqui o melhor


exemplo é Veneza) eu vou me com portar da mesma forma que a
saúva, quando colocada num labirinto desconhecido. De início,
entrarei repetidas vezes em becos sem saída; depois, progres­
sivamente, vou deixando de entrar nesses becos: uma casa am a­
rela na esquina me indicará que devo virar à direita, porque mi­
nha experiência passada me mostrou que, tom ando a esquerda
nesse ponto preciso, chegarei a um canal, ou seja, a um beco
sem saída. A princípio prestarei atenção à casa amarela, mas
logo “ ela deixará de ser vista” , fará parte do contexto em que
me movo. No fim de algum tempo, ou de algumas tentativas,
serei capaz de fazer o trajeto completo, sem erros, da estação
ferrovia à praça São M arcos.7 Q uando um terremoto mudar
meus pontos de referência, ou melhor, embaralhar a constelação
de estímulos (casa amarela, som do sino da catedral, e muitís­
simos outros que não me afloram à consciência), sob o controle
dos quais está meu com portam ento de orientação, terei de
recomeçar tudo de novo.s
Quando, para chegar ao ninho, a saúva precisa atravessar
um labirinto, ou, simplesmente, uma arena onde se encontram
obstáculos (pedrinhas, por exemplo), ela cometerá também
muitos erros, dará também muitas voltas, até que seu caminho
passa a ser cada vez mais curto: as pedrinhas, como os edifícios
para mim, tornaram-se pontos de referência para seu trajeto.
Que, nesse momento, ela se encontra sob o controle dessa cons­
telação de estímulos (por exemplo, direção da luz, contorno e
posição relativa das pedrinhas, odores diversos) é fácil verificar
experimentalmente: basta deslocar um dos elementos e o com­
portam ento se desorganizará prontamente. Em bora a direção

7 Na verdade não se trata, aqui, de um exemplo escolhido ao acaso, mas de uma descri­
ção — brevíssima — de uma experiência vivida.
8 Com o é bem possível que tenha de fazê-lo, se algum dia voltar a Veneza, depois de
tantos anos. A inda nesse ponto meu com portam ento não difere, senão quantitativa­
mente, do com portam ento da saúva.
134 PRED ETERM IN A ÇÃ O E EX PE R IÊ N C IA

da luz seja um ponto de referência im portante na orientação, se


ela variar sempre, não de forma contínua, mas bruscamente, ou
se a luz direcionada não existe (quando o espaço da arena é ilu­
minado por uma luz difusa), o com portam ento de orientação
estará sob o controle do que é invariável (ou que varia de forma
organizada): no caso, os contornos e a posição relativa das pe-
drinhas.9
Vemos aí, num caso como no outro — homem e saúva —
um nítido processo de aprendizagem do caminho a ser percor­
rido (facilmente detectado em termos quantitativos)10, ao contrá­
rio do que é suposto pelos biólogos que se ocuparam do proble­
ma, como veremos adiante. Em relação ao inseto, este desco­
nhecimento da, ou desinteresse pela adaptação ao nível do indi­
víduo, em termos da aprendizagem, se deve a dois pressupostos
básicos, com partilhados por biólogos tão importantes quanto
Wilson e Dethier. P ara eles, no caso dos insetos, 1?) as respostas
são instintivas, não-aprendidas, mas selecionadas apenas ao
nível da filogênese; 2?) há uma inelutável rigidez no com porta­
mento exibido, uma enorme estereotipia devida à simplicidade
do seu sistema nervoso, que não pode se desenvolver por causa
das limitações impostas pelo exoesqueleto, a carapaça de quiti-
na (Dethier, 1964).

Segunda

Se eu estiver num meio relativamente homogêneo e não-


familiar, onde os meus pontos de referência usuais para a orien­
tação inexistem, vou utilizar aquelas informações que me são
disponíveis no momento, embora delas normalmente não faça
uso. Por exemplo, se eu cair por acidente no meio de uma flo­
resta ou de um deserto, o Sol e as estrelas, que nunca me servem
para a orientação na minha vida urbana, passarão a ser os meus
pontos de referência. Em outras palavras, meu com portam ento

9 Nessas circunstâncias, haveria “ habituação” à luz, como o term o foi definido por
R azran (1971, citado por Fantino e Logan, 1979): “ aprender o que não fazer” . Diría­
mos que, dada a variabilidade ou desorganização implicada no estímulo “ direção da
luz” , que m uda constante e bruscam ente, ele não contém inform ação ou, em outras
palavras, não pode exercer controle sobre o com portam ento do anim al. A luz que
m uda aleatoriam ente pode equivaler à “ ausência de luz” para a aprendizagem do
caminho.
10 Estes dados podem ser encontrados na m inha tese, defendida em 1978.
E tO L O G IA E BEHAV IOR ISMO 135

de orientação ficará sob o controle desses estímulos, porque as


árvores ou as dunas que vejo são tão indiscerníveis quanto, para
mim, os prédios de apartam entos em Brasilia.
Ora, o mesmo acontece com as saúvas, quando uma arena
vazia é intercalada entre o ninho e a fonte de provisão, no labo­
ratório. P ara atravessá-la poderão, de acordo com as inform a­
ções que lhes ofereço, m udar de uma orientação olfativa para
uma orientação visual, de um a orientação tátil para um a audi­
tiva e, possivelmente, para outras ainda não descobertas. Com
certeza, na situação natural, todos esses estímulos (químicos ou
odorantes, táteis, visuais ou auditivos) devem contribuir, com
predominância de um sobre o outro de acordo com a ocasião,
para um a eficaz orientação fora do ninho.
O ra, para os biólogos, a orientação das formigas é função
de um ou outro estímulo orientador — químico, para Wilson,
Moser e outros, principalmente luminoso para Jander (1957) ou
Mittelstaedt (1962)." O que os opõe (grosso modo, escola ame­
ricana e escola alemã) é o mecanismo implicado nessa orienta­
ção. Para os primeiros, trata-se de uma reação simples, mecâ­
nica, ao estímulo orientador (S — R): as formigas seguiriam
“ cegamente” o caminho marcado por um feromônio particular.
Para os segundos, o processo de orientação supõe mecanismos
extremamente sofisticados (S — organism o-computador — R),
para os quais constroem modelos cibernétidos bastante comple­
xos. Se a formiga de Wilson é totalmente idiota (e se pergunta
como as espécies sobrevivem com tal simplicidade de reações,
ao nível do indivíduo), a formiga de Jander resolve, instintiva­
mente, equações dificílimas. Por exemplo, para encontrar o ca­
minho mais curto de volta ao ninho, depois de uma viagem de
exploração, seu computadorzinho interno utilizaria a seguinte
fórmula:

onde Z corresponde à fonte de provisão ou objetivo ( Ziel) e N


ao ninho (Nest).

11 No limite, para cada espécie; um mecanismo de orientação diferente, baseado em um


ou outro estímulo externo. Este tipo de abordagem tem sua explicação, como vimos
atrás, nos pressupostos últimos de um certo núm ero de biólogos.
136 PR ED ETERM IN A ÇÃ O E E X PE R IÊ N C IA

Num caso, como no outro, está garantida a diferença entre


o homem e o inseto. Dificilmente poderíamos nos orientar da
forma descrita por Jander: depois de peram bular ao acaso por
uma cidade desconhecida, deveríamos voltar ao hotel pelo cami­
nho mais curto, sem hesitação, porque o nosso cérebro, tendo
registrado todas as mudanças de direção em relação ao Sol, que
fizemos ao longo do passeio, e resolvendo a equação acima,
encontraria o ângulo resultante (a r), que corresponde a uma
linha reta entre o ponto a que cheguei e o hotel em que me hos­
pedo. Mas, excepcionalmente, podemos nos orientar da forma
descrita por Wilson: seria o caso de Joãozinho da história infan­
til, que conseguiu voltar para casa seguindo as pedrinhas que
colocou, na ida, entre sua casa e a casa da bruxa.
Nossa investigação do problema da orientação da saúva,
ao contrário, nos levou a revelar, em relação à orientação huma­
na, identidades estruturais e diferenças apenas materiais. Assim,
entre outras coisas, mostramos que: 1) o com portam ento de
orientação é aprendido (não se trata, pois, de uma reação instin­
tiva, automática, a um estímulo orientador único); 2) o com por­
tamento de orientação é muito maleável e a saúva pode, de
acordo com as circunstâncias, mudar de um tipo de orientação
para outro; 3) a eficácia e a rapidez da aprendizagem variam em
função da quantidade de informação disponível:12quanto maior
o número de informações, isto é, quanto mais heterogêneo e
organizado for o espaço dado, mais depressa se dará a aprendi­
zagem. Como corolário, temos: a dificuldade de aprender o ca­
minho a fazer cresce na razão direta da homogeneidade do meio
ambiente; 4) em circunstâncias normais, um estímulo isolado
não tem valor algum para a orientação: é sempre a relação entre
dois ou mais estímulos que exerce controle sobre tal com porta­
mento; 5) há diferenças individuais — no que se refere à rapidez e
à eficácia da aprendizagem — facilmente detectáveis, que devem
ser função das características anátomo-fisiológicas das formigas
de diferentes tam anhos e da experiência passada de cada for­
miga.
Comparando o homem com a formiga, vemos que a apren­
dizagem da orientação se dá da mesma forma, nos dois casos:
variam apenas as informações de que cada espécie dispõe, o que

12 Ou, se preferirem , estímulos que podem se tornar SDs.


ETO LO GIA E BEHAVIORISM O 137

é função do aparelho sensorial tanto quanto do desenvolvimen­


to do sistema nervoso. O homem pode usar mapas, ler nomes de
ruas, perguntar a direção para alguém etc. Isto é, ele tem
outros tipos de informações à sua disposição — ou, para usar os
termos de Skinner — pode também se orientar sob o controle de
regras.
É preciso, pois, investigar de forma sistemática (indo do
campo ao laboratório e vice-versa), quais os estímulos do mun­
do exterior que podem exercer controle sobre o com portam ento
dos indivíduos das diferentes espécies, e como as características
de cada espécie comparecem nos processos mais gerais da apren­
dizagem. Para os psicólogos, com efeito, estas características,
filogeneticamente determinadas, interessam como dados básicos
com os quais se devem contar para a análise do com portamento
passível de ser modificado pela experiência ao nível do indiví­
duo. E os princípios que regem estas modificações devem ser os
mesmos, em bora não necessariamente sejam os já encontrados.
Para term inar, uma outra dificuldade encontrada no texto
de H inde:13 segundo ele, se tom armos como agentes reforçado-
res aqueles estímulos que eliciam respostas características da
espécie, seria possível eliminar a circularidade do conceito de
reforço. Ora, a definição de reforço é propositadamente circu­
lar: é reforçador o que aum enta a probabilidade da resposta que
lhe antecede. E só assim pode ter a generalidade (louvável) que
pretende. Dar um conteúdo empírico ao termo reforço, em cada
caso particular, é o resultado de investigação científica e depen­
de, mais do que os etólogos possam imaginar, da multiplicidade
das condições antecedentes. Assim, as respostas características
da espécie, em condições normais, podem não ser prioritárias (e
os estímulos que as eliciam deixam de ser reforçadores) quando
as circunstâncias são anormais. Por exemplo, uma água açuca­
rada elicia, nas abelhas que fazem a coleta, uma resposta carac­
terística da espécie e, portanto, é reforçadora, em condições
normais da colméia. Mas, se a tem peratura da colméia atinge 70
graus, a água pura será reforçadora, enquanto a açucarada dei­
xa de sê-lo, como vemos no trabalho de Lindauer (1961) sobre a
regulação da tem peratura da colméia. Aliás, nesse belo texto,
Lindauer descreve também como as abelhas mais novas (recep-

13 Dificuldade explicável pelos seus pressupostos, já com entados.


138 PRED ETERM IN A ÇÃ O E E X PE R IÊ N C IA
c

toras) controlam o com portam ento das mais velhas, reforçando


ou extinguindo o comportamento de coletar água pura. As recep­
toras do material coletado vão recusando receber o mel regurgi­
tado até que as coletoras passam a oferecer água cada vez menos
saturada de açúcar. H á, aí, um claro processo de aprendizagem
de um com portam ento, que será extinguido (pelo mesmo pro­
cesso) quando a tem peratura voltar ao normal.
Por estranho que pareça, nesse ponto, a grande maioria
dos psicólogos, que publicam no Journal o f Applied Behavior
Analysis, incorre no mesmo erro elementar de Hinde.

CONCLUSÃO

Acabamos de ver como as preocupações de Hinde, com a


diversidade do m undo animal, dificilmente justificaria uma
recusa da busca dos princípios gerais da aprendizagem. Isto não
quer dizer que lhe falte razão quando critica — implicitamente
— a transposição simplista do que é feito, nas circunstâncias
artificiais e “ despidas” do laboratório, para a situação natural.
Mas isto é um outro problema, que merece mais longa discussão.
Por enquanto, basta assinalar, mais uma vez, que nenhum
entendimento entre as várias abordagens é possível enquanto
não forem esclarecidos os pressupostos lógicos e ontológicos
que lhes servem de horizonte. É daí que deve vir a confusão con­
ceituai que caracteriza ainda esta ciência tão nova, a ciência do
com portamento.
Mas, é só na Psicologia que encontramos tal confusão?
Não estaria ela também na Biologia, na Sociologia e na recente
combinação das duas, a Sociobiologia? É o que veremos no texto
seguinte.

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ETO LO GIA E BEHAVIORISM O 139

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19. Tinbergen, N. (1951) — The Study o f Instinct. (Nova Introdução acrescentada em
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Herança social e herança biológica:
a Sociobiologia1
Lúcia Prado

Ê óbvia a dificuldade da tarefa que me foi proposta. De


um lado, a preocupação com o problema das relações entre a
herança biológica e a herança cultural sempre existiu, mas conti­
nua sendo uma questão em aberto. Uma questão que se coloca,
a meu ver, muito além do alcance da ciência — tom ada no seu
sentido estrito — apesar dos recentes malabarismos para reunir
as forças de diferentes campos teóricos no sentido de respondê-
la com toda a objetividade requerida pelo raciocínio que se quer
científico.
Refiro-me aqui à Sociobiologia, de que Wilson é o divulga­
dor mais em evidência. Razão pela qual escolhi dois livros de
Wilson — Sociobiologia: a Nova Síntese e Da Natureza Huma­
na 2 — como tema desta exposição. Apenas dois livros, onde são
tantos os pontos críticos, os deslises lógicos, as contradições ao
nível das teses ditas “ sociobiológicas” , que é preciso restringir a
análise a alguns poucos focos de dificuldade.
Confesso que cheguei à Sociobiologia com uma certa des­
confiança. E não pelas razões normalmente apresentadas por
grande parte da comunidade científica, chocada diante do que

1 T rabalho apresentado na XXXIV Reunião Anual da SBPC.


2 Sociobiology. The New Synthesis, Cambridge, Belknap Press, 1975; On Humart
Nature, Cambridge, H arvard Univ. Press, 1978. T radução brasileira: Da Natureza
Humana, S. Paulo, T. A. Queiroz, 1981. As citações são da tradução brasileira.
HERA N ÇA SOCIAL E HERA N ÇA BIOLÓG ICA: A SO CIO BIO LO G IA 141

foi entendido como uma pseudociência ideológica e reacionária


(voltaremos a este ponto mais adiante). Meu preconceito tinha
origem num a discordância — que poderia docum entar com
grande número de provas experimentais — quanto aos pres­
supostos que animam o trabalho propriamente científico de
Wilson. Trata-se de suas pesquisas sobre orientação e com uni­
cação de formigas. Ora, se no seu campo privilegiado de estudo
suas afirmações levam a dificuldades lógicas insuperáveis, como
não esperar que o mesmo aconteça quando do com portam ento
das formigas ele passa ao com portam ento do homem, e — mais
ainda —, da natureza da formiga para a natureza do homem?
Um pequeno desvio é necessário, aqui, para justificar a
suspeita levantada. Em poucas palavras (não teria sentido entrar
em detalhes nesta exposição), Wilson vê no com portam ento de
orientação das formigas coletoras uma resposta instintiva, ime­
diata, mecânica, ao feromônio de pista depositado pelas form i­
gas exploradoras. Uma máquina simples, a formiga coletora, que
reage apenas à estimulação química no seu vai-e-vem fora do
ninho, como convém à alta estereotipia im putada, por Dethier,
às limitações do seu sistema nervoso devido ao exoesqueleto.
Praticamente nenhum a aprendizagem, nenhuma maleabilidade
na sua interação com o meio. Que seja. E as formigas explora­
doras? Aquelas que depositam a pista a ser seguida? Seria possí­
vel que irmãs (não esqueçamos que Wilson insiste na semelhan­
ça, do ponto de vista genético, entre as operárias de uma mesma
colônia) possam se diferenciar a tal ponto que, enquanto a
maioria segue “ cegamente” a pista odorante depositada, algu­
mas sejam capazes de encontrar o caminho mais curto a partir
necessariamente de outros referenciais? No caso das saúvas,
pelo menos, a grande maleabilidade negada por Dethier, Wilson
e seus seguidores, se traduz na possibilidade que têm de passar
de um tipo de orientação para outro, de usar como referencial o
que encontram à sua disposição: estímulos visuais, odorantes,
táteis, sonoros e outros ainda não verificados. Essa maleabi­
lidade — os graus de liberdade em relação a um program a estri­
to, para usar uma expressão de Jacob — já está presente, de
uma maneira insuspeitada por muitos biólogos e etólogos, ao
nível mesmo dos insetos. Ora, esta maleabilidade está intima­
mente relacionada com uma capacidade de aprendizagem bas­
tante desenvolvida e certamente com partilhada por todas as
operárias de uma mesma colônia.
142 PRED ETERM IN A ÇÃ O E EX PE R IÊ N C IA

É nesse ponto que se encontra a minha maior dificuldade


em seguir as teses de Wilson. Com efeito, acredito que, para
entender como o animal interage com o meio, é preciso inves­
tigar de maneira sistemática a “ parte aberta do programa gené­
tico” , usando novamente uma expressão de Jacob, aquela que
repousa na capacidade de aprender. Ora, Wilson insiste em diluir
ao máximo a im portância da aprendizagem: sua crítica cons­
tante aos psicólogos, aos “ am bientalistas” , marxistas ou teóri­
cos da aprendizagem, é a contrapartida da ênfase que dá à de­
terminação genética dos com portamentos sociais. Se já ao nível
do com portam ento da saúva esta atitude não faz mais do que
levantar dificuldades, como utilizá-la como guia para a com­
preensão do com portam ento humano?
Em mais de um lugar Wilson critica os etólogos, como
Lorenz, que apóiam suas teses (da ausência de agressão intra-
específica, por exemplo) sobre dados coletados em menos de
1000 horas de observação. Segundo Wilson, é preciso superar
esta marca. Estranha recomendação que, no entanto, dá uma
idéia da forma de obter dados — observação passiva, com pou­
ca ou nenhuma manipulação de variáveis — a partir dos quais
tudo se explica em termos de instinto, de mecanismos de libe­
ração inatos, de uma programação genética rigidamente cum­
prida. Post-factum, determina-se o valor de sobrevivência de tal
ou tal com portam ento com surpreendente facilidade: sua exis­
tência mesma é uma garantia desta função. Como falsificar tais
teses?
Do que foi brevemente exposto, há que guardar dois pon­
tos, antes de entrarmos propriamente no domínio da Sociobio-
Iogia, que se propõe dar conta do com portam ento social: 1?)
discordo — fundam entando minha discordância com provas
experimentais — da idéia mesma que Wilson tem de comporta­
mento, seja ele social ou não, seja ele animal ou humano; 2?)
partindo de uma outra concepção de com portam ento, é possível
encontrar uma continuidade muito maior, mais sólida porque
melhor comprovada experimentalmente, entre o comportamento
animal e o com portam ento humano. Prefiro me aproximar mais
do conceito de sistema ultra-estável de Ashby no seu Design fo r
a Brain do que da simplicidade dos mecanismos supostos por
Wilson quando analisa o com portam ento. Assim, não nego
absolutamente que, de uma cuidadosa análise do com portam en­
to animal, extrairemos pistas valiosas para a compreensão do
H ERA N ÇA SOCIAL E H ERA N ÇA BIOLÓGICA: A SO CIO BIO LO G IA 143

com portamento humano. É preciso, no entanto, saber melhor


onde buscar as semelhanças e as diferenças.
Voltemos, agora, à Sociobiologia, tentando responder,
ainda que de maneira apressada, três perguntas básicas:

1) O que é a Sociobiologia — a ciência que se propõe estu­


dar as relações entre a herança cultural e a herança biológica —
e quais são as suas pretensões?
Segundo definição de Wilson, a Sociobiologia é o estudo
sistemático das bases biológicas de todo com portam ento social.
Trata-se essencialmente de reorganizar tudo o que se sabe sobre
o com portam ento social das diferentes espécies a partir da teo­
ria da evolução neodarwiniana (a Nova Síntese): em poucas
palavras, diante dos diferentes comportamentos sociais, per­
guntar pelo seu significado adaptativo, em termos de valor de
sobrevivência, e relacioná-lo com os princípios básicos da gené­
tica populacional. “ O que é verdadeiramente novo acerca da
Sociobiologia” , diz Wilson no Da Natureza Humana, “ é a m a­
neira pela qual ela extraiu os fatos mais im portantes sobre orga­
nização social de sua matriz tradicional — a Etologia e a Psico­
logia — e os reordenou com base na ecologia e na genética,
estudadas ao nível de populações, no intuito de m ostrar como
os grupos sociais se adaptam ao ambiente através da evolução”
(pp. 16-17).
Uma de suas preocupações centrais, com efeito, é investi­
gar a evolução do com portam ento social hum ano, a partir de
comparações entre as sociedades humanas e as sociedades ani­
mais, mas particularmente as dos primatas. As comparações são
feitas com mais freqüência entre estas últimas e as sociedades
ditas “ primitivas” de caçadores-coletores ainda existentes. A
partir daí, alguns traços sociais foram considerados comuns à
espécie hum ana e às diferentes espécies de prim atas (traços con­
servadores): sistemas de dominância agressiva, com machos
dominantes sobre as fêmeas; escalonamento de respostas, espe­
cialmente nas interações agressivas; cuidados maternos prolon­
gados e pronunciada socialização da cria; organização matrili-
near. Outros foram ditos lábeis, isto é, partilhados apenas com
algumas espécies de prim atas. E, finalmente, traços únicos da
espécie hum ana foram listados, como o tabu do incesto, rela­
ções de parestesco formalizadas, verdadeira linguagem, cultura
elaborada, divisão cooperativa de trabalho entre machos e fê-
144 PRED ETERM IN A ÇÃ O E E X PE R IÊ N C IA

meas adultos, e atividade sexual contínua. Mas não se trata aí de


identificar os traços comuns às diferentes espécies como os úni­
cos geneticamente determinados. Como veremos adiante, o tabu
do incesto, por exemplo, teria a sua origem numa aversão instin­
tiva e, portanto, geneticamente program ada, à relação sexual
com parentes próximos e mesmo com companheiros de infância.
Mas, se o com portam ento social hum ano deve ser conhe­
cido a partir de suas bases biológicas, para que daí possamos
extrair uma ética científica — liberada das elocubrações filosó­
ficas ditadas pelos centros emocionais do sistema límbico3 — é
preciso, segundo Wilson, que os mesmos parâm etros e teorias
quantitativas utilizados para analisar colônias de cupim como
tropas de macacos rhesus sejam aplicados às sociedades hum a­
nas. Essencialmente, a demografia e a genética das populações,
com seus parâm etros e seus modelos matemáticos, constituiriam
os pilares dessa nova ciência. Mas, o que à primeira vista é rela­
tivamente simples, se complica quando Wilson afirm a: “ O prin­
cipal objetivo de uma teoria geral da Sociobiologia seria uma
habilidade para predizer características de organização social
a partir de um conhecimento destes parâmetros populacionais
combinado com informação a respeito das limitações compor-
tamentais impostas pela constituição genética da espécie” .
(Combinado de que forma? É o que veremos adiante.) A Socio­
biologia seria, assim, uma ciência totalizante, no sentido de que
cobriria todas as áreas das ciências da vida e das chamadas H u­
manidades, da Biologia Molecular às produções humanas; as
técnicas, as artes, toda a cultura, enfim. A obra monum ental de
Lévi-Strauss é uma gota d ’água neste oceano. É preciso reab-
sorvê-la na História Natural. Mas não é o que sugere o próprio
Lévi-Strauss no La Pensée Sauvage, quando propõe como telos
do pensamento científico “ reintegrar a cultura na natureza e,
finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-quími-
cas” ? A diferença entre as duas posições está na maneira de
entender esta reintegração, que não se quer reducionista num
sentido mais simplista.4

3 As contradições implicadas nesta afirm ação de Wilson são, no mínimo, curiosas: se


as respostas emocionais do sistema límbico foram m oldadas filogeneticamente, em
função do seu valor de sobrevivência, como anulá-las, em nome da ciência, sem pre­
juízo para a espécie?
4 Wilson insiste na existência de fenômenos novos, emergentes, a cada nível de comple­
xidade crescente, para a análise dos quais são necessários um tratam ento e um a lin-
H ERA N ÇA SOCIAL E H ERA N ÇA BIOLÓG ICA: A SO CIO BIO LO G IA 145

2) Em que medida a Sociobiologia é uma ciência?


Acredito que a resposta a esta pergunta — em bora apenas
esboçada aqui — nos dará algumas pistas para compreender,
não só porque a Sociobiologia tem sido presa fácil das ideolo­
gias de direita, como também foi vítima de críticas infundadas.
No primeiro caso, das hipóteses sociobiológicas foram deduzi­
das afirmações altamente suspeitas tais como: “ as leis da vida
condenam o nivelamento m undial” , “ o futuro pertence à famí­
lia tradicional” , “ os genes egoístas promovem um com porta­
mento egoísta” , etc.5 No segundo caso, houve m uita polêmica
em torno de supostas proposições de eugenia, de política con­
servadora e racista, de conformismo face à existência da “ dupla
norm a” (a poligamia do macho e a fidelidade da fêmea seriam
justificadas por leis naturais, segundo os sociobiólogos), etc.
O que eu gostaria de m ostrar é que, das afirmações de
Wilson, nenhum dos dois tipos de implicações pode ser correta­
mente deduzido, mas ambos são possíveis. O fato é que as con­
dições de possibilidade de tais deduções, errôneas ou discutíveis,
repousaria na falta de estruturação formal ou teórica do discur­
so sociobiológico. Com efeito, a Sociobiologia diz apoiar-se em
diferentes ciências, dotadas de linguagens próprias, com regras
de articulação interna bem definidas e modelos matemáticos
para lidar com relações funcionais entre suas variáveis: ecolo­
gia, demografia, genética das populações etc. Mas ela mesma
não dispõe de conceitos próprios, que sejam capazes de inte­
grar, num nível superior, do ponto de vista lógico-formal, os
conceitos destas ciências ancilares. Além disso, não oferece
nenhuma regra positiva para a articulação desses vários campos
— que permanecem, assim, justapostos ou coordenados, como
tantos vasilhames donde retirar os ingredientes para compor um
todo que venha apoiar o seu discurso, o tecido frouxo das opi­
niões que enuncia. Poderia Wilson objetar que o fio condutor
que une tais disciplinas é a teoria da evolução. Mas, essa últi­
ma nada mais é do que o pano de fundo da epistemê de nosso
século, sustentando as mais diferentes abordagens: dos ambien-

guagem especiais. Critica mesmo, indevidamente, o behaviorismo de Skinner por seu


suposto reducionismo.
5 Frases do Figaro-Magazine e do Toronto Globe and Mail, citadas por C. Davis, em
seu artigo “ La Sociobiologie et son explication de l’hum anité” , Annales, n? 4, 1981,
pp. 531-571.
146 PRED ETERM IN A ÇÃ O E E X PE R IÊ N C IA

talistas, tão criticados por Wilson, como Marx e Skinner, a


Freud, Piaget, Lévi-Strauss, M onod e Jacob. Um “ programa
metafísico” , como diz em algum lugar Popper, e, como tal, não
falsificável.
A epistemologia menos intolerante ou menos “ positivista”
impõe exigências mais rigorosas quanto ao estatuto da constru­
ção da teoria científica. Passando a palavra a nosso mestre
Gilles-Gaston Granger: “ Não somente o conhecimento cientí­
fico é um discurso sobre o objeto, mas ainda a elaboração deste
discurso e sua articulação com a percepção exigem que se possa
falar sobre esse discurso, ele mesmo, e que apareçam sucessivos
graus da linguagem. (...) Se assim é, é a hierarquização, a subor­
dinação e a mobilidade dos níveis de construção que caracteri­
zam o pensamento científico. O sonho de uma sistematização
puramente coordenadora das formas só pode pertencer a um
estado da ciência ora ultrapassado” (Pensée Formelle et Scien­
ces de l’Homme, ed. Aubier, I. 13).
As regras da construção da linguagem científica, acima
expostas por Granger, podem encontrar uma ilustração elemen­
tar na m etáfora do tricô. Um pulôver é sempre tecido a partir de
dois pontos básicos: o ponto “ meia” e o ponto “ tricô” . Para
construir cada um deles é necessário seguir regras precisas: intro­
duzir a ponta da agulha num determinado lugar, passar a linha de
frente para trás, retirar a agulha de forma a trazer com ela a
linha que a encobriu etc. Tais pontos básicos não só estão pre­
sentes em todo o pulôver, mas a um nível de complexidade
maior, compõem o chamado “ ponto fantasia” : neste caso, no­
vas regras de combinação são necessarias, onde os pontos bási­
cos são articulados de maneira a desenhar um padrão. Se as
regras de combinação não forem claras e rigorosamente obede­
cidas, o padrão (trança, concha ou olho de perdiz) não aparece­
rá. Num nível seguinte de complexidade, novas regras deverão
ser obedecidas para que o tecido se transform e num pulôver.
Sem regras de articulação muito precisas, não há nem pu­
lôver nem teoria. A Sociobiologia nos áa essa sensação vertigi­
nosa: por falta de articulação lógica entre os vários discursos
que a compõem, puxa-se um fio e o tecido se desfaz.
Isto nos leva à terceira pergunta:
3) Em que medida as análises ou teses sociobiológicas se
apóiam em dados das ciências básicas, como a genética das po­
pulações, a demografia ou a ecologia matemática?
H ERA N ÇA SOCIAL E H ERA N ÇA BIOLÓGICA: A SO CIO BIO LO G IA 147

Para responder a esta pergunta, analisaremos mais longa­


mente suas afirmações a respeito do tabu do incesto. O mesmo
poderíamos fazer, se houvesse tempo, com suas idéias a respeito
dos “ genes altruístas” , da agressão, da sexualidade etc.
Para Wilson, o tabu do incesto repousa num a natural aver­
são, manifestada pelos seres humanos, à relação sexual com
parentes próximos e, mesmo, com indivíduos que com eles foram
criados. Esta suposta reação natural, instintiva, traria, como
conseqüência, a prevenção contra o endo-cruzamento, o inbree-
ding fatal para a sobrevivência da espécie. H á muito o que dizer
sobre isto.
a) Em que dados se baseia Wilson para afirm ar a existência
desta “ aversão natural” ?
Essencialmente no fato de que, nos kibutzim, as crianças aí
criadas juntas não se casam entre si. E, pelo menos, o único
dado “ científico” apresentado. Agora, é evidente, mesmo ao
nível do senso comum, que esta afirmação é, no mínimo, discu­
tível. E que é preciso uma repressão sistemática para impedir tal
tipo de relação sexual. Sem que seja necessário recorrer a Freud,
basta tom ar conhecimento das estatísticas policiais a respeito do
assunto — não esquecendo que se caracterizam como crime ape­
nas aqueles casos que se tornaram públicos. E, ainda ao nível do
senso comum, como não citar esta frase, retirada de um rom an­
ce policial americano, traduzido para o italiano na bela coleção
da editora M ondadori? É a seguinte: “ Deve esserci di sicuro
qualcosa di sbagliato in quello che facciamo A ndy e io, se no il
mondo sarebbe pieno di cugini che si sposano fra loro, e anche
di fratelli e sorelle che si sposano. Invece la società si difende
facendo leggi contro questo genere di sbagli... ” (Parenti di San­
gue per 1’87.° Distretto de Ed McBain). De fato, esta lei corres­
ponde ao artigo 255-25 do código penal dos Estados Unidos da
América do Noite.
b) Em que medida a tese de Wilson obedece à lógica do
raciocínio evoluciorista darwiniano?
Ao afirmar a existência desta aversão natural, Wilson expli­
citamente inverte a explicação dada por Lévi-Strauss, que vê, no
tabu do incesto e na formalização das relações de parentesco, a
satisfação de uma necessidade política e econômica: a troca de
mulheres assegura o poder e as alianças intergrupais. A propó­
sito, diz Wilson: “ A explicação sociobiológica dominante, ao
contrário, considera a integração da família e os acordos nup­
148 PRED ETERM IN A ÇÃ O E E X PE R IÊ N C IA

ciais subprodutos ou, quando muito, fatores contribuintes secun­


dários. Ela identifica uma causa mais profunda, mais premente,
a pesada punição fisiológica imposta pelo endocruzam ento”
{Da Natureza Humana, p. 37, grifos meus).
Ora, com isso, a interpretação sociobiológica parece dis-
tanciar-se, antes que aproximar-se, da lógica mesma do racio­
cínio darwiniano: na verdade, desliza aí para um mal disfarçado
finalismo. Não seria mais adequado (de maneira alguma mais
científico, porque sempre de acordo com o “ program a metafísi­
co” acima referido) dizer que uma das conseqüências da prática
da proibição do incesto, culturalmente instituída como quer Lévi-
Strauss, fo i a preservação das sociedades conhecidas, por ter
como subproduto uma baixa taxa de endocruzamento? Enfim,
o inverso do que diz Wilson? Nenhuma necessidade de supor,
nesse caso, uma “ razão biológica” (Da Natureza Humana, p.
38), um ‘“ sentimento visceral’ que promove as sanções rituais
contra o incesto” {idem, p. 39), um “ instinto baseado nos ge­
nes” (mesma página). Porque, na verdade, é difícil provar a
existência de qualquer uma dessas entidades. Respeitando ou
radicalizando, mais do que Wilson, o raciocínio darwiniano,
diríamos que a criação de regras de parentesco poderia ser um
acaso que deu certo e que, portanto, foi mantido. Isto dispensa­
ria opor uma evolução cultural lamarckista (e finalista) a uma
evolução natural darwinista, como faz Wilson nas páginas 78 e
79 do livro citado.
Nosso exemplo mostra, mais uma vez, como não afloram,
na explicação sociobiológica, os esquemas das ciências em que
se pretende apoiar. Mais grave, nem sequer obedece o estilo do
pensamento de Darwin que lhe :erve de horizonte.
P ara encerrar esta breve exposição, sem pretender amarrá-
la com um firme nó final, lembremos mais uma vez Jacob: “ Há,
em Biologia, um grande número de generalizações, mas poucas
teorias...” {La logique du vivant, ed. Gallimard, 1970). Logo a
seguir dá peso maior, entre elas, à teoria da evolução, sem hesi­
tar em mostrar (contrariando Poppei) que, sendo falsificável
em princípio, é, portanto, diferente do mito. Poder-se-ia dizer o
mesmo da Sociobiologia? Essa grande Summa Sociobiológica
reúne um formidável volume de conhecimentos, que dão muito
o que pensar. Menos certo é que contenha tram a e sucos inter­
nos para digerir e explicar o rico material que nos oferece.
A imaginação:
Fenomenologia e Filosofia Analítica
Bento Prado Júnior

"... entre aimer Laura et m ’imaginer que j e l ’aime


— entre m ’imaginer que j e l'aime moins et l ’aimer
moins, queI dieu verrait la différence?’’
(A. Gide, Les faux-monnayeurs, ed. Folio 73).

Para quem desejasse levar a cabo uma contraposição siste­


mática entre a Fenomenologia e a Filosofia Analítica, o ensaio
de Ryle sobre A Fenomenologia contra “O Conceito de M ente”
poderia servir como um precioso instrumento. Não apenas na
forma da oposição, como o título sugere, mas também na forma
da exploração da superposição parcial das empresas ou de um
certo parentesco estilístico, que parece ter impressionado Mer-
leau-Ponty na ocasião. “ Eu também tive, dizia ele, a impressão,
escutando o sr. Ryle, que o que dizia não nos era tão estranho e
que as distâncias, se existem, era antes ele que as estabelecia, do
que as constatava eu, ao escutá-lo” . De resto, o próprio Ryle,
ao apresentar seu projeto de um a Filosofia do Espírito, caracte­
rizava seu livro nos seguintes termos: “ Em bora intitulado The
Concept o f Mind é, na realidade, o exame de uma multidão de
conceitos mentais específicos, tais como conhecer, aprender,
descobrir, imaginar, simular, esperar, desejar, sentir-se depri­
mido, sentir uma dor, resolver, fazer voluntariamente, fazer
deliberadamente, perceber, lembrar, e assim por diante. Poder-
se-ia descrever esse livro como um ensaio de Fenomenologia, se
a etiqueta vos aprouvesse” (p. 75). Sem tom ar ao pé da letra a
152 PSICOI OGIA E M ETAFÍSICA

concessão cortês, provavelmente M erleau-Ponty decidia ignorar


a exposição propriam ente metafísica, ultraplatônica e ultracar-
tesiana da Fenomenologia feita por Ryle que, de sua parte, con­
fessava traçar apenas uma caricatura. Também a Fenomeno­
logia não nascera como o projeto de um método neutro metafi-
sicamente, capaz de dissolver os equívocos do pensamento espe­
culativo? Mais do que isso, tornada exploração do Lebenswelt
(não seria isso sinônimo de mundo comum?), a Fenomenologia
não poderia cruzar a análise da linguagem comum? De um lado,
não se ignora que a experiência do mundo não é muda, de outro
não se pretende que o discurso corrente se desdobre descolado
do fundo de algo como um Belief primitivo.
Nossa ambição não é, todavia, tão ampla. Mais modesta­
mente, limitar-nos-emos a retomar o paralelismo apontado pelo
próprio Ryle entre sua análise da imaginação e aquela proposta
por Sartre, visando sugerir que ambos partilham de certo pres­
suposto que os condena igualmente a uma concepção cognitivis-
ta da Psicologia. É o que proponho, embora não ignore a afir­
mação de Ryle, segundo a qual a palavra “ cognitivo” belongs
to the vocabulary o f examination papers ( The Concept., p.
258). Vejamos, para começar, como Ryle situa sua própria em­
presa, na sua relação com a de Sartre: “ Era im portante, para
meu desígnio, discutir os atos especiais de imaginar, já que
somos fortemente tentados a conceber o espírito humano como
uma espécie de quarto fechado e a conceber, de algum modo, as
coisas que imaginamos visual e auditivamente como autênticos
moradores desse quarto fechado. Imaginar é então interpre­
tado erradam ente como um ato especial de testemunhar, ato
cujos objetos são interiores e acessíveis ao testemunho. Sartre,
em seu livro L ’Imaginaire, psychologie phénoménologique de
l ’imagination (1940), desejava, em parte, atacar a mesma con­
cepção equivocada. Havia um outro erro, vinculado ao prece­
dente, que tentei, como Sartre, trazer à luz. Hume, e muitos
outros, haviam afirm ado que a diferença entre o que é visto e o
que é evocado em imagem, entre ‘impressões’ e ‘idéias’, é uma
diferença de grau e de intensidade” (La Philosophie Analyti­
que, p. 81). Crítica da idéia de imagem como conteúdo de cons­
ciência e critica da continuidade entre “ impressões” e “ idéias” ,
tais seriam os passos donde partiriam as duas análises da imagi-
* nação, para prosseguir, em seguida, cada uma segundo seu esti­
lo próprio. Nosso propósito é de verificar, no contraponto entre
A IM AGINAÇÃO: FENO M ENOLOG IA E FILOSOFIA A N A LÍTICA 153

parágrafos de Ryle e de Sartre, se a cumplicidade não é mais


profunda do que a sugerida pelo primeiro.

II

Não há razão para que nos demoremos nos primeiros pas­


sos do capítulo que Ryle consagra à imaginação em seu livro,
sob os títulos de Picturing and seeing e de The Theory o f Special
Status Pictures. Trata-se de uma etapa prévia puramente negati­
va, onde se aponta para as raízes da dupla ilusão apontada no
parágrafo acima citado de Fenomenologia contra ‘O Conceito
de M ente’. O importante é situar a aproximação entre simula­
ção e imaginação que se lhe segue: os passos anteriores visavam
apenas libertar-nos da ilusão, tão freqüentemente partilhada,
que atribui à imaginação um acesso a imagens dotadas de um
estatuto especial.
A ilusão teria sua origem numa espécie de extensão indevi­
da de certas características da visão e da falta de reflexão sobre a
natureza de certas expressões de que lançamos mão para descre­
ver o ato de imaginar. De fato, no universo do visível, temos
acesso a coisas e a réplicas dessas coisas, pessoas em carne e osso
e fotografias dessas pessoas, crianças e bonecas. Dessa relação
deslizamos inconscientemente na direção de expressões que des­
crevem as imaginações como réplicas das coisas imaginadas. Ê a
relação real de semelhança entre as coisas e seus simulacros visí­
veis que é transposta para a relação entre a coisa real e a coisa
imaginada. Não há dúvida de que imaginar algo é parecido, de
algum modo, com o fato de vê-lo: mas essa semelhança não é
uma característica localizável numa eventual imagem mentál.
Parece-me que vejo algo, mas nada vejo de parecido com esse
algo. Quando abandonamos o domínio da visão e da audição, a
idéia de imagem mental perde muito de sua aparente evidência,
bem como a da semelhança eventual entre ela e, por exemplo, o
odor real, efetivamente experimentado. Ao imaginar um certo
odor — o que sempre posso fazer — dificilmente recorrerei a
expressões do tipo smelling in the m ind’s nose. Não somos,
com efeito, tentados a povoar o nariz do espírito (se o espírito
dispõe de nariz) de pequenos simulacros odorantes e imateriais.
A ilusão da imagem mental derivaria de uma verdadeira
inversão do processo real da percepção e da imaginação. Se
154 PSIC O L O G IA E M ETAFÍSICA

somos levados à idéia da imagem mental não é porque haja um


gênero imagem, do qual as fotografias e as imagens mentais
seriam espécies diferentes. Se descrevemos o ato de imaginar um
rosto como se estivéssemos “ vendo” uma imagem, é porque
somos induzidos, por uma experiência muito comum, numa fal­
sa direção. O que é familiar é que a visão de fotos de coisas ou
pessoas nos levam a imaginar tais coisas ou pessoas. Ryle situa a
questão nos verdadeiros termos: “ O gênero é ‘parece-me per­
ceber’ e uma das espécies mais familiares desse gênero é a do
‘parece-me ver alguém’ quando vemos uma fotografia dessa
pessoa” (The Concept, p p .253-254).
Não são, todavia, apenas essas duas formas de ilusão que
se antepõem contra a tentativa da constituição de uma teoria
positiva da imaginação. Elas são, por assim dizer, reforçadas
por uma espécie de monismo ou de platonismo espontâneos da
tradição da Filosofia: a idéia de que todas as formas da imagi-
ção reportam a algo como uma “ operação nuclear” subjacente
ao diverso, sempre id ê n tic a s si mesma. C ontra essa pretensa
operação nuclear (sempre o ato de ver com os olhos do espírito),
Ryle sugere que, como o demônio, a imaginação é legião: There
are hosts o f widely divergent sorts o f behaviour in the conduct
o f which we should be described as imaginative. O falso teste­
m unho no júri, o trabalho do romancista que escreve, a leitura
do romance, o inventor e sua nova m áquina, a criança que brin­
ca, todas essas figuras podem, por disparatadas que sejam, ser
descritas como imaginativas. Ao buscar a essência da imagina­
ção, para além de sua dispersão com portamental, são como
aquele colega nosso (imaginário, é claro), que, depois de visitar a
Reitoria, a Biblioteca, o Almoxarifado e o edifício do IFCH, per­
guntasse: — Tudo bem, mas onde fica a UNICAMP? Se cavar
a terra e desinfetar árvores são igualmente farming jobs, por­
que, na sua disparidade, as atividades imaginativas acima refe­
ridas deveriam remeter a alguma atividade mental, secreta e
comum? Na realidade, a tentação de reduzir tal disparidade à
idéia da “ imagem” ou de um tipo particular de percepção deri­
varia, segundo Ryle, da passividade dos teóricos diante da tradi­
cional tripartição da mente nos domínios da cognição, da emo­
ção e da volição, bem como da circunscrição da imaginação no
primeiro compartimento.
È impossível não notar a mímese do estilo aristotélico,
explícita, aliás, em outros momentos do livro, como na recupe­
A IM A GINA ÇÃO: FENO M ENOLOG IA E FILOSOFIA A N A LÍTICA 155

ração da noção de exis ou na insistência na distinção entre as


categorias dos achievements words e os succes words. Citando:
“These verbs with wich we ordinarily express these gettings and
keepings are active verbs, such as ‘win’, ‘unearth’, ‘f in d ’, ‘con­
vince’, ‘prove’, ‘cheat’, ‘unlock’, ‘safeguard’ and ‘conceal’;
and this grammatical fact is tended to make people, with the
exception o f Aristotle, oblivious to the differences o f logical
behaviour between verbs o f this class and other verbs o f activity
or process” (The Concept, p. 149). Como Aristóteles, a respeito
do Ser, afirm a Ryle que se diz imaginação em vários sentidos.

III

Para recolocar a questão da imaginação nos seus devidos


trilhos, Ryle procura formulá-la a partir de uma análise da idéia
de fingimento. Passemos a palavra ao autor:
“ Comecemos pela noção de fingir, uma noção que é par­
cialmente constitutiva de noções como as de enganar, de desem­
penhar um papel, de brincar de urso, simular doença e ser hipo­
condríaco. Ê claro que, em algumas variedades de fingimento, o
simulador está simulando ou dissimulando deliberadamente,
que em outras pode não estar seguro de até onde, se o faz, está
simulando ou dissimulando, e que em outras, ainda, ele é com­
pletamente envolvido por seu próprio desempenho. Isto pode
ser ilustrado, em pequena escala, pela criança brincando de
urso, que sabe, quando num quarto bem iluminado, que está
apenas brincando com um jogo divertido; mas que começará a
sentir-se ansiosa se abandonada só, e que perderá toda sua segu­
rança no escuro” {The Concept, p. 258).
É evidente que Ryle não deixa de antecipar a objeção que
inevitavelmente surge nos lábios do leitor, reiterando uma ques­
tão já form ulada anteriormente, mas ainda à espera de uma res­
posta positiva. Se, de fato, o ato de imaginar é um ato de fingi­
mento, como explicar a auto-ilusão completa, digamos, da alu­
cinação ou do sonho? “How can a person fancy that he sees
something, whithout realizing that he is not seeing it?” Contra
Hume, nós restabelecemos uma descontinuidade radical entre
visão e imaginação, entre “ impressão” e “ idéia” ; resta-nos,
com a clareza da distinção assim estabelecida, dar conta do fenô­
156 PSICO LO G IA E M ETAFÍSICA

meno da alucinação. Questão que Sartre não deixa de enfrentar,


por seu lado, em toda sua acuidade:
“ Tendo assimilado a imagem à sensação, Taine não tem
nenhum a dificuldade em explicar a alucinação: com efeito, a
percepção é já ‘uma alucinação verdadeira’. Ele só encontrará
dificuldades quando for preciso explicar como, dentre todas
essas alucinações, umas verdadeiras, outras falsas, nós distingui­
mos, de maneira imediata, imagens e percepções. Inversamente
nós, que tomamos como ponto de partida o fato de que os sujei­
tos reconhecem imediatamente suas imagens enquanto tais, não
arriscaremos encontrar no problema da alucinação nossa pierre
d'achoppement'?” (p. 191).
A uma primeira leitura, Ryle parece não atribuir o mesmo
peso à objeção formulada por Sartre e que ele próprio, no entan­
to, não esquece de sublinhar. E isto porque parece estabelecer,
no interior da categoria do fingimento, a mesma continuidade
que fora negada, em Hume, entre os pólos da impressão e da
idéia. Afirma, com efeito, que o Make-believe is compatible
with ali degrees o f scepticism and credulity. A alucinação seria
assim apenas um grau extremo de fingimento. Paradoxalmente,
estaríamos perto de Fernando Pessoa:

“ O poeta é um fingidor,
que finge tão completamente,
que acaba por sentir que é dor
a dor que deveras sente.”

Mas não apagamos, assim, a oposição clara entre imaginá­


rio e percebido que havíamos tão fortemente estabelecido? O
sentimento é tanto mais forte quanto a solução, de início pro­
posta por Ryle, parece não passar de um jogo de palavras. À
questão de como pode alguém ser vítima de sua própria simula­
ção, Ryle responde que não se trata de um a boa questão, isto é,
que não obedece às regras das perguntas pelo “ com o” . Basta,
para verificá-lo, form ular, segundo ele, a pergunta paralela:
“ Como pode uma criança brincar de urso, sem estar constante­
mente seguro de que se trata apenas de um jogo? Como pode
um simulador de doenças fingir que tem sintomas, sem estar
perfeitamente seguro de que são apenas fantasias?” ( The Con-
cept, p. 258). Tratar-se-iam de falsas questões. Perderiam sua
dramaticidade com a simples auscultação da experiência comum
A IM A GINA ÇÃO: FENO M ENOLOG IA E FILOSOFIA A N A L ÍTIC A 157

que desde sempre nos deu a verdade pouco misteriosa da imagi­


nação. Ryle chega a formular com mais força ainda: “ O fato de
que pessoas podem fantasiar que vêem coisas, são perseguidos
por ursos..., sem perceber que não há nada senão fantasia é sim­
plesmente parte do fato vulgar e geral de que nem todas as pes­
soas são, em todos os momentos, em todas as idades, e em todas
as condições, tão judiciosas ou tão criticas como seria de se dese­
ja r” ( The Concept, pp. 258-259).
Neste momento, o leitor não pode impedir-se de manifes­
tar surpresa. Pois era, com efeito, o mesmo Ryle que, uma pági­
na atrás, denunciava o erro da Filosofia clássica da imaginação,
definida como 0 errático vassalo da Razão. Não restauramos
aqui a “ alegoria feudal” que fôramos convidados a abandonar?
Não é aqui a alucinação — que aparentemente não devemos
excluir da legião dos com portamentos imaginativos — identifi­
cada pura e simplesmente como erro ? As crianças, os loucos, os
bêbados e outras criaturas da mesma farinha... não escutamos
aqui o eco do antigo discurso espinosano?
Não nos precipitemos. O encaminhamento da resposta
assim form ulada é preparada por uma análise de formas de fin­
gir que culmina tanto numa “ gram ática” como num a “ fenome-
nologia” do fingimento. Ryle começa por indicar a essencial
sofisticação presente em qualquer simulação. Descrever um ato
de simulação é sempre dizer que se está desempenhando o papel
de alguém que não está desempenhando um papel, que está a
comportar-se normalmente. Ao nivel da pura topografia do
com portam ento, nada distingue a imobilidade do cadáver da
imobilidade do corpo do ator que desempenha o papel do cadá­
ver. O ator não apenas está vivo, como intensamente atento ao
seu desempenho. Mas a descrição da simulação envolve uma
descrição indireta do simulado e o simulador precisa de um claro
conhecimento do com portam ento a ser simulado.
O caráter sofisticado ou indireto da simulação é clarificado
através de um curioso paralelo. Ryle afirma: “ A diferença é
paralela àquela que existe entre citar uma asserção e fazê-la. Se
cito o que você asseverou, digo exatamente o que você disse;
posso mesmo dizê-lo exatamente no seu tom de voz. No entanto,
a plena descrição de minha ação não é em nada semelhante à da
sua. A sua era, talvez, um exercicio na arte de pregador; a mi­
nha do repórter ou do imitador; você era original; eu era um
eco; você dizia o que acreditava; eu dizia o que não acreditava.
158 PSICOLOGIA E M ETAFÍSICA

Numa palavra, as palavras que eu emitia eram emitidas, por


assim dizer, como se tivessem sido escritas entre aspas. Você
falava numa oratio recta', eu podia pretender que o que dizia
fosse tom ado como oratio obliqua ” (idem, p. 259).
Notemos que esta obliqüidade não implica duplicidade
real: o com portamento de simulação distingue-se do com porta­
mento espontâneo por exigir uma descrição complexa. Noutras
palavras, não são os mesmos tipos de predicados de que lança­
mos mão para descrever os autores, digamos, de uma pregação
real e de uma pregação no contexto de um espetáculo teatral.
Mas, o mais curioso, neste item consagrado ao fingimento,
é a variedade particular com que se o encerra. Trata-se do fingi­
mento ao nível do pensamento ou da teoria. É certo que, no tra­
balho intelectual, nem todos os argumentos são igualmente
assumidos por quem os formula. Não é raro que formulemos
argumentos “ entre parênteses” no sentido acima aludido; pois
de um raciocínio hipotético não se pode cobrar categoricidade,
nem a responsabilidade de quem o formula. Ao usar palavras
como “ se” , “ suponham os” , “ adm itam os” , “ digamos” , o
pensador que assim “ simula” opera também uma forma mais
sofisticada de pensamento; noutras palavras, o raciocínio hipo­
tético é de segundo grau e pressupõe o raciocínio afirmativo.
Observação im portante não só porque, como diz Ryle, paralela­
mente ao exame da imaginação, chegamos a uma aparente sub­
versão epistemológica, mas porque fornece a chave de todo o
desenvolvimento posterior de seu raciocínio. “ Vale a pena” , diz
Ryle, “ formular esta observação, em parte porque está intima­
mente ligada com o conceito de imaginação e, em parte, porque
os lógicos e os epistemólogos assumem algumas vezes o que
assumi por longo tempo: que considerar uma proposição é um
com portamento mais elementar e simples do que afirm ar que
algo ocorre, e que aprender, por exemplo, o uso de ‘po rtan to ’
requer a aquisição anterior do uso do ‘se’. Isto é um erro. O
conceito de make-believe é de ordem superior ao de belief ”
(idem, p. 264).

IV

Sabemos assim o que significa fingir. Resta-nos (sabendo o


que falamos de fato quando falamos que alguém finge) dizer o
A IM A GINA ÇÃO: FENO M ENOLOG IA E FILOSOFIA A N A LÍTICA 159

que significa imaginar. Num primeiro momento, fingir parece


opor-se a imaginar como o com portamento observável do outro
se opõe à relação que o ator pode manter consigo mesmo. Ou,
ainda, esta oposição parece recobrir aquela que separa o público
do privado: o fato é que, a despeito de inúmeras exceções, ten­
demos a restringir a palavra imaginar a operações secretas, que
se desenvolvem “ na cabeça das pessoas” .
Eis porque se resiste a identificar a forma hipotética do fin­
gimento à descrição da maneira pela qual o dipsomaníaco “ vê”
as suas cobras. Não se trataria dos mesmos parênteses que cer­
cam o verbo “ ataca” , na expressão: o boxeador “ ataca” o seu
treinador, na situação de treino. Como já sabemos que a expe­
riência privada da imaginação não consiste na produção de uma
imagem visual ou auditiva no espaço interno da mente, resta-
nos saber se tal experiência secreta é susceptível de uma determi­
nação positiva. Descartemos desde logo o procedimento sutil de
certos epistemólogos que salvam a idéia de representação men­
tal através do recurso da vinculação da representação a um resí­
duo sensorial, na forma da relação entre o eco e o ruído: a ima­
ginação seria uma espécie de quase-sensação, “ and not a func­
tion o f intelligence, since it consists in having not indeed a pro­
per sensation, but a shadow-sensation” (idem, p. 256).
Depois de desfazer o mito da imagem mental, Ryle procede
à destruição de sua sobrevivência “ sensualista” . E é bem uma
teoria intelectualista da imaginação que edifica, sobre as ruínas
das teorias tradicionais. O que não deixa de surpreender, já que
a totalidade do Concept o f Mind pode ser descrito como o pro­
cesso dos equívocos que a Metafísica engendrou em torno dos
conceitos psicológicos, justamente por seus pressupostos cogni-
tivistas e intelectualistas. O grande equívoco de toda a tradição
não consistia justam ente no postulado injustificado segundo o
qual “ the capacity to attain knowledge o f truths was the defi­
ning property o f a mind ” e que “ other human powers could be
classed as mental only i f they could be shown to be somehow
pilotted by intellectual grasp o f true propositions ” (p. 26).
Consultemos todavia o núcleo da nova teoria da imaginação,
afinada e corrigida, na forma breve em que a expõe Ryle no
ensaio sobre A Fenomenologia contra “O Conceito da M ente”:
“ Durante todo o longo período em que derrapava, era
todavia guiado por uma idéia que continuo a crer capital no
conceito do imaginar. Trata-se do seguinte. Uma pessoa pode
160 PSICOLOGIA E M ETAFÍSICA

escutar em um concerto uma peça musical que lhe é desconheci­


da, de modo que logo busca aprender como se desdobra a melo­
dia, mas uma pessoa que repassa uma melodia em sua cabeça
deve ter já aprendido e não ter esquecido como ela se desdobra;
mais ainda, não só deve saber como ela se desenvolve, mas deve
neste instante estar em vias de utilizar esse saber; deve estar em
vias de pensar como ela se desdobra, sem tocá-la de verdade ou
sem trautear suas notas. Deve pensar como é ela, em sua ausên­
cia ” (pp. 81-82).
De algum modo, depois de partir, junto com Sartre, de uma
crítica da teoria humeana da imaginação, Ryle parece reencon­
trá-lo, ao termo de seu itinerário, definindo a imaginação como
a intenção que visa um objeto na sua ausência. Pouco im porta a
diferença da linguagem, pouco im porta também se The Concept
o f M ind é o exame de uma multiplicidade de conceitos psicoló­
gicos, enquanto L ’Imaginaire visa, através da descrição da ima­
ginação, a constituição de uma teoria unitária da “ estrutura”
da consciência. Seria exagerado dizê-lo? Talvez não, se conse­
guimos mostrar que a teoria da má-fé, no Ser e o Nada desen­
volve uma teoria da simulação que parece antecipar, ponto por
ponto, a fenomenologia proposta por Ryle. Tanto mais que, lá
também, a teoria da simulação é mobilizada para mostrar que a
alucinação não escapa à definição estrita da imaginação. É o
que transparece na oposição entre má-fé e censura, na critica
esboçada por Sartre à teoria freudiana do aparelho psicológico:
“ Que dizer, senão que a censure deve ser a má-fé? A Psica­
nálise não acrescentada nada já que, para suprimir a má-fé,
estabelece entre o inconsciente e o consciente uma consciência
autônom a e de má-fé. É que seus esforços para estabelecer uma
verdadeira dualidade — e mesmo uma trindade (Es, Ich, Uebe-
rich que se exprimem na censura) culminam apenas numa termi­
nologia verbal. A própria essência da idéia reflexiva de “ se dis­
simular” alguma coisa implica a unidade de um mesmo psiquis­
mo e por conseguinte uma dupla atividade no seio de uma uni­
dade, tendendo de um lado a manter e a localizar a coisa a escon­
der e, de outro lado, a expulsá-la e escondê-la; cada um dos dois
aspectos dessa atividade é complementar do outro, isto é, o impli­
ca em seu ser. Separando pela censura o consciente do incons­
ciente, a Psicanálise não conseguiu dissociar as duas fases do ato,
já que a libido é um conatus cego que se dirige para a expres­
são consciente e que o fenômeno consciente é um resultado pas
A IM A GINA ÇÃO: FEN O M EN O LO G IA E FILO SO FIA A N A L ÍTIC A 161

sivo e deformado: ela simplesmente localizou essa dupla ativida­


de de repulsão e de atração no nível da censura” (p. 92).
Mas não era essa mesma cisão que Ryle evitava na descri­
ção da simulação, insistindo que a complexidade da descrição
não dissolve a unidade do ato? Tanto num caso como no outro,
a unidade do ato de imaginação e de simulação é garantia de
uma interpretação que relativiza a noção de delírio e de alucina­
ção, para fechar as portas à idéia de inconsciente. A alucinação
não passa de um caso particular de simulação. O senso comum
e a transparência da consciência não podem assimilar a idéia de
uma produção anônima e anárquica de imagens, o pulular errá­
tico dos fantasmas que segundo Freud está na base de toda vida
psicológica.

Ter-nos-iam Ryle e Sartre libertado dos equívocos com que


a Filosofia clássica envolveu a natureza da imaginação? Ambos
no-lo dizem enfaticamente. E Sartre dizia, desde l ’imagination,
caracterizando a Filosofia clássica, preparando sua futura des-
construção em L ’Imaginaire: “ Pode-se m uito bem conceber
uma síntese ativa que operaria por composição de impressões
sensíveis renascentes. Ê assim que Espinosa e Descartes expli­
cam a ficção. O centauro seria constituído pela síntese espontâ­
nea de uma percepção renascente do cavalo e de uma percepção
renascente de homem” (p. 157).
Talvez para nosso propósito não nos seja inútil retornar
brevemente a esses textos clássicos, para voltar em seguida a
Sartre e Ryle. Voltemo-nos para o escólio da proposição XVIX
do II livro da Ética. A proposição enuncia: “ Não há no espírito
nenhuma volição, i.e., nenhum a afirmação e negação, além da
que envolve a idéia enquanto idéia” e seu corolário é “ A von­
tade e o entendimento são uma e a mesma coisa” . Trata-se, é
claro, de textos anticartesianos que visam diretamente a idéia
da dúvida. Espinosa contrapõe o seguinte argumento à possibili­
dade de suspender o juízo: aquilo que se descreve normalmente
como suspensão do juízo nada mais é do que um a percepção
inadequada. Sendo inadequada, não deixa de ser essencialmente
uma percepção, isto é, uma representação. Não se trata de uma
162 PSICOl.OCilA E M ETAFÍSICA

vontade livre que se retira para um território que precede o sim e


o não. Trata-se de uma idéia ou de uma representação que, por
ser imperfeitamente concebida, não pode impor claramente o
sim em sua plena positividade. Para esclarecer melhor seu argu­
mento, Espinosa lança mão do exemplo do cavalo alado e o
submete a uma análise cujo interesse exige nossa atenção:
“ Para compreendê-lo claramente, suponhamos que uma
criança se representa pela imaginação um cavalo alado e não
perceba nada de outro. Uma vez que essa imaginação envolve a
existência do cavalo, ela considerará necessariamente o cavalo
como presente; e ela não poderá duvidar de sua existência, em­
bora não tenha certeza dela (Já que a certeza para Espinosa nada
mais é do que a idéia adequada de alguma coisa). Disto aliás
temos experiência todos os dias nos sonhos, e não creio que
exista um homem que, durante seu sonho, pense ter o livre poder
de suspender seu juízo sobre o que ele sonha, e de fazer com que
não sonhe o que ele sonha; e todavia ocorre que, mesmo nos
sonhos, suspendemos nosso juízo, quando sonhamos que sonha­
mos. Concedo pois que ninguém se engana enquanto percebe,
i.e., as imaginações do espírito consideradas em si mesmas não
envolvem erro; mas nego que um homem não afirme nada en­
quanto ele percebe. Com efeito, perceber um cavalo alado, que
é senão afirmar, de um cavalo, que tem asas? Pois se o espírito
não percebesse nada além do cavalo alado, ele o consideraria
como lhe estando presente, e não teria nenhum motivo para
duvidar de sua existência, nem faculdade alguma para recusar o
seu assentimento, a menos que a imaginação do cavalo alado
esteja reunida a uma idéia que suprime a existência do dito cava­
lo, ou que o espírito não perceba que a idéia do cavalo alado é
inadequada e, então, ele negará necessariamente a existência
desse cavalo ou duvidará necessariamente dela” .
Este texto é tanto mais curioso, na sua contestação da liber­
dade da vontade, já que recorre à teoria do sonho e da imagina­
ção. Não era, com efeito o argumento do sonho um argumento
cartesiano. Nas Meditações , embora o argumento da alucinação
seja recusado (desde aquela época...), o argumento do sonho é
essencial na estratégia da dúvida, como ninguém o ignora. Antes
de voltarmos ao texto do escólio, é interessante que nos repor­
temos às páginas do Imaginário que Sartre consagrou ao argu­
mento cartesiano e, mais geralmente, ao problema do sonho
(pp. 205-225). Se Sartre recorre ao texto de Descartes é porque
A IM A GINA ÇÃO: FEN O M EN O LO G IA E FILOSOFIA A N A LÍTICA 163

coloca dificuldades para sua teoria da imaginação e do imaginá­


rio. Sartre reformula o texto de Descartes nos seguintes termos:
“ Se é verdade que o mundo do sonho se dá como um mun­
do real e percebido, quando ele é constituído apenas por um
imaginário mental, não haveria aí ao menos um caso onde a
imagem se dá com percepção...?” (p. 206).
Se a descrição cartesiana da consciência que sonha é corre­
ta, será incorreta a descrição que Sartre nos fornece da imagem.
Esta havia sido caracterizada, desde o início do livro, na sua
oposição à percepção. Assim, no primeiro capítulo, havia-se
estabelecido, entre as características essenciais da imagem, o
seguinte: 1?) o fenômeno da quase-observação; 2?) o fato de
que a consciência imaginante põe seu objeto como um nada; 3?)
a espontaneidade da intenção imaginante. Estas três caracterís­
ticas opõem essencial e radicalmente imaginação e percepção.
Isto porque o objeto da percepção é essencialmente observável,
posto como positivo (como existente) e como imposto à passivi­
dade da consciência.
Ê-lhe, portanto, indispensável encontrar a falácia do argu­
mento cartesiano e teorizar sobre a natureza do sonho. Exami­
nando mais de perto a questão, verificamos a falsidade do argu­
mento na heterogeneidade dos efeitos da reflexão nos estados de
sonho e vigília. No caso da consciência vigilante que percebe, a
reflexão nada lhe acrescente nem a altera. A contracorrente de
Descartes, Sartre diz:
“ Ora essa consciência reflexiva me fornece imediatamente
um conhecimento precioso: é possível que, no sonho, eu imagi­
ne que percebo; mas o certo é que, quando estou desperto, não
posso duvidar de que percebo. Cada um pode tentar fingir um
instante que sonha, que esse livro que lê é um livro sonhado,
mas verá imediatamente, sem poder duvidar disso, que essa fic­
ção é absurda. E, a bem dizer, sua absurdidade não é menor do
que aquela proposição: talvez eu não exista, proposição que,
justam ente para Descartes, é verdadeiramente impensável” (pp.
206-207).
Não nos interessa aqui essa assimilação entre a evidência
da percepção e a evidência do cogito. O que nos interessa é aqui­
lo que, a partir dela, Sartre poderá afirm ar, a seguir, incluindo
pela primeira vez o nome de Espinosa no L ’Imaginaire:
“ Na realidade, a percepção, como a verdade para Espino­
sa, é index sui e não poderia ser de outra maneira. E o sonho se
164 PSIC O LO G IA E M LT A I ÍSICA

assemelha também muito ao erro no espinosismo: o erro pode


dar-se como verdade, mas basta possuir a verdade para que o
erro se dissipe por si mesmo” .
O que opõe, portanto, o sonho à percepção para Sartre —
o que teria escapado a Descartes — é a fragilidade do sonho,
i.e., sua incapacidade de resistir à reflexão (ou, na linguagem de
Ryle, de competir com a percepção). De certa maneira, um juízo
do tipo “ eu sonho” é no limite impossível e contraditório: no
instante não podem coincidir as duas consciências. O único juízo
que podemos form ular, diz Sartre, é j ’ai rêvé. É, de resto,
exatamente o que diz Espinosa no texto sobre a ficção e o sonho
que citamos. Voltemos à frase nuclear:
“ ... e não creio que exista um homem que durante o seu
sonho pense ter o livre poder de suspender seu juízo sobre o que
ele sonha, e de fazer com que não sonhe o que sonha; e todavia
ocorre que, mesmo nos sonhos, nós suspendamos nosso juízo,
quando sonhamos que sonhamos” .
A “ fragilidade” do sonho tem exatamente o mesmo senti­
do em Espinosa e em Sartre. Tanto para um como para outro,
essa “ fragilidade” significa sua incapacidade de “ com petir”
com outras representações — como, já o dissemos, para o pró­
prio Ryle. No texto de Espinosa, ele nos diz explicitamente que
a criança em prestará sua crença ao cavalo alado quando, e so­
mente quando, nada perceber além dessa imagem. Assim tam ­
bém, para Sartre, um mínimo de percepção é suficiente para
desfazer o sonho. Tanto num caso como no outro, a consciência
que sonha difere da consciência desperta na medida em que o
sonho isola uma representação, enquanto a consciência desper­
ta está voltada para o horizonte do mundo ou da totalidade da
experiência. Na linguagem de Husserl, diríamos que toda per­
cepção de uma coisa é indissociável da tese do mundo (como
para Espinosa toda representação é juízo, situado na ordem
infinita das idéias). Mais ainda, para Husserl, a percepção de
uma coisa é sempre a percepção de uma “ constância” na rela­
ção variável da coisa com suas circunstâncias ( Umstände) e, em
última instância, com o mundo em geral. Refiro-me, aqui, às
análises da noção de “ coisa” , tal como é feita nas Ideen II. Iso­
lada de suas circunstâncias, a coisa perde sua substância (a
“ substância” que a percepção lhe atribui, pondo-a como exis­
tente) e se desfaz em puro “ fantasm a” . Perceber uma coisa,
perceber sua articulação com as demais, perceber a coisa dentro
A IM A GINA ÇÃO: FEN O M EN O LO G IA E FILO SO FIA A N A L ÍTIC A 165

do mundo, afirm ar sua existência, tudo isto é um a e a mesma


coisa. P ara Espinosa, também, ter uma idéia, perceber a idéia
adequadamente, i.e., na ordem das idéias, emprestar-lhe assen­
timento, tudo é o mesmo. Pensando na criança que se representa
apenas o cavalo alado, podemos dizer que, para Espinosa, so­
nhar é suprimir o mundo ou sua ordem; ou, ainda, em outros
termos, que não existe um mundo ou uma ordem do sonho e do
imaginário. Como afirm a explicitamente Sartre:
“ Todavia, essas poucas notas {sobre o sonho) não contra­
dizem essa grande lei da imaginação: não há mundo imaginário.
Com efeito, trata-se apenas de um fenômeno de crença. Nós
não detalhamos esse m undo em imagem, não o presentificamos
em seus pormenores, nem sequer pensamos em fazê-lo. Nesse
sentido, as imagens permanecem isoladas umas das outras, sepa­
radas em sua pobreza essencial, submetidas ao fenômeno da
quase-observação, no ‘vazio’.”
P ara Ryle, também, sabemos quão frágil é o imaginário,
incapaz de competir com a percepção (embora ao fazer dele,
entre outras coisas, uma antecipação da percepção, complique
um pouco a clara oposição), como sabemos que reduz a alucina­
ção ao erro ou à falta de juízo. Nem podemos esquecer que
transform ando a imaginação numa forma de make-believe, faz
dela uma superestrutura do Belief originário.

VI

É chegado o momento de concluir este exercício de mock-


thinking, que, como observa Ryle, é necessariamente mais sofis­
ticado do que o pensamento afirmativo. Deixemos desde já claro
que não queremos sugerir como outros (Castoriadis, p. ex.) algo
como um desvio congênito da Metafísica Ocidental, de sua ori­
gem até hoje, que a condena a errar por esquecer a natureza
da imaginação. Estamos de acordo com Ryle, quando afirm a
que só se pode pensar a imaginação, deslocando-a da esfera do
conhecimento e, a fortiori, da ontologia.
Tratava-se, para nós, apenas, de apontar algumas dificul­
dades da epistemologia da Psicologia que, mesmo quando am bi­
ciona coincidir com sua tarefa limitada, tem dificuldade em
166 PSICO LO G IA E M ETAFÍSICA

liberar-se de sua condição de ancilla da Metafísica. Não é ver­


dade que, tanto Sartre como Ryle, cada um à sua maneira, pre­
tendem limitar-se ao esclarecimento conceituai de certas noções
utilizadas diretamente pela Psicologia de ambição científica?
Nenhum deles pretende competir com o discurso da Psicologia
empírica em sua positividade. Sartre distingue, prudentemente,
o certo do provável e Ryle começa, mais modestamente, por
dizer: “This book offers what may with réservations be descri-
bed as a theory o f the mind. But it does not give new informa­
tions about minds”. Descrição de essência ou análise de lingua­
gem não poderiam, em princípio, conflitar com a descrição do
mundo.
Mas não é esse conflito que encontramos na recusa da espe­
cificidade do sonho e da positividade do delírio e da alucinação?
Não é a abordagem psicológica da imaginação que se perde,
quando se a visa sobre o fundo da idéia da Verdade ou do Conhe­
cimento? Decidir que a imaginação oscila entre a antecipação da
percepção e o erro não é fechar o caminho de uma Psicologia da
imaginação e de uma Psicologia tout court ? A não ser que só
reconheçamos como Psicologia aquela de inspiração cognitivis-
ta — que está a um passo do mentalismo substancialista que
Ryle quer destruir, ele, que se considera “ behaviorista” . De
qualquer maneira, a Psicanálise e a Análise Experimental do
Com portam ento são banidos do campo da ciência por estas filo­
sofias da Psicologia. Nova forma norm ativa da epistemologia,
que quer legislar sobre a ciência a ser produzida — o que é mais
estranho no caso de Ryle, que recusa, de maneira realista, à Fi­
losofia, a condição de supraciência. Não é estranha a idéia de
uma epistemologia que legisla sobre a ciência de que fala, que
pretende corrigi-la?
Para encerrar, devolvamos a frase do romance de Gide (ou
do personagem que, nele, é um moc£-romancista) ao parágrafo
donde o extraímos: “ L ’analyse psychologique a perdu pour moi
tout intérêt du jour où je me suis avisé que l’homme éprouve ce
q u ’il s ’imagine éprouver. De là à penser q u ’il s ’imagine éprou­
ver ce qu ’il éprouve... Je le vois bien avec mon amour: entre
aimer Laura et m ’imaginer que je l ’aime — entre m ’imaginer
que je l ’aime moins, et l ’aimer moins, quel dieu verrait la diffé­
rence? Dans le domaine des sentiments, le réel ne se distingue
pas de l’imaginaire”.
Do ponto de vista de Deus, sub specie aeternitatis, é clara a
A IM A GINA ÇÃO: FEN O M EN O LO G IA E FILOSOFIA A N A LÍTICA 167

distinção.' Mas o filósofo crítico ou o epistemólogo da Psicolo­


gia não pode recuar, diante da análise psicológica (Psicanálise,
p. ex.), como o faz, aqui, o imaginário romancista-moralista,
que hesita em abandonar a oposição clássica entre o real e o
imaginário.

1 A leitura dos ensaios de José A. Dam ásio Abib e Júlio César C. de Rose — presentes
neste volume — deveriam levar-me, se houvesse tem po, a m atizar as oposições impli­
cadas em m inha conclusão. Com surpresa, percebi que a análise skinneriana da visão
e da imaginação está m uito mais próxima (se podemos apreciá-la em seu laconismo)
das de Ryle, de Sartre, de Espinosa e de toda a tradição d a Metafísica, do que daquela
esboçada por Freud, desde o início de seu trabalho.

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