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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Arthur Guilherme Monzelli

REFERÊNCIA E RESISTÊNCIA

Trabalho elaborados para a disciplina


Mariátegui, o Indigenismo e as Vanguardas
Latino-Americanas, ministrada pelo Profª Drª.
Silvia Beatriz Adoue.

Araraquara – SP
Outubro de 2015
A Importância da Religião

Antes de qualquer coisa, é necessário darmos nomes aos bois, então, comecemos
localizando e contextualizando uma das mais famosas, contudo, pouquíssimo explorada – diga-se
de passagem – máximas de Marx: “a religião é o ópio do povo!”. Esta frase encontra-se na Crítica
da filosofia do direito de Hegel – Introdução, uma espécie de prólogo da sua obra: “Crítica da
filosofia do direito de Hegel”, publicada em 1843 como tentativa de superar a filosofia hegeliana.
Vale ressaltar que, nesse meio tempo também escreveu uma reflexão sobre os problemas
enfrentados pelo judaísmo na Alemanha, culminando na “Questão judaica”. Estas duas obras foram
publicadas na Rheinische Zeitung [Gazeta Renana1]. Reproduzindo na íntegra o que Marx disse: “A
miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria
real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o
espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo2.” Para entender de fato o que
Marx quis dizer no aforismo religião como ópio do povo é preciso remontar o contexto da década
de 1840, quando os judeus alemães viviam sobre um autoritário e burocrático Estado Prussiano (lê-
se a atual Alemanha), o qual embora fosse vizinho da França recém-revolucionada, não foi capaz de
entender a noção de laicidade.
Trocando em miúdos, Marx jamais defendeu a extinção absoluto de toda e qualquer
religiosidade da formação do ser social, na verdade, ele estava bem longe disso. Sua crítica a
religião se articulava no mesmo sentido da crítica da economia política, da metafísica idealista
hegeliana e da sociedade burguesa. Em outras palavras, seu combate era contra o fanatismo
religioso, o qual se expressava no Estado Prussiano sob a forma de impedimento dos direitos civis e
na ocupação dos cargos públicos a todos os sujeitos não batizados (lê-se aos não católicos ou não
protestantes, portanto, aos judeus). Para esclarecer mais ainda a questão, Marx criticava todas as
tendências particulares, específicas ou unilaterais sócio-históricas (seja uma religião, uma teoria
econômica ou um postulado filosófico), as quais pretendem serem entendidas como universais e
naturais a todos os sujeitos sociais. Por isso sua crítica não orbitava só sobre o Estado cristão e
antissemita da Prússia, mas ao próprio princípio religioso do judaísmo – mas essa é uma outra
história e pode ser melhor entendida pela leitura da própria “Questão judaica”. Basta entendermos

1
Jornal financiado pela burguesia liberal, cujo principal objetivo era criticar o caráter autoritário do governo prussiano,
bem como a penosa burocracia que assolava o povo alemão. Na Gazeta Renana Marx escreveu sobre a liberdade de
Imprensa, sobre a crítica da história do direito e fez glosas críticas a um prussiano.
2
Karl Marx. Sobre a questão judaica [1843]. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 145.

2
aqui que a religião, tal como as correntes políticas, literárias e científicas fazem parte do quadro de
referências responsáveis pela constituição dos sujeitos sociais.
Tendo em vista a nossa breve discussão até aqui, defendemos que a exposição de Mariátegui
sobre a religião, bem como sua crítica ao “novo mito da modernidade” (lê-se a Razão, o não-mito
ou o anti-mito) não entram em contradição com a crítica feita por Marx no século XIX sobre a
religião. Como isso pode ser possível? Mariátegui não critica a Razão e Marx a religião? Ora,
percebemos a plauditividade dessas possíveis indignações, porém elas não tocam ao cerne da
questão: a construção do ser social e sua luta contra a alienação e a opressão. Como já
mencionamos, seja a religião, uma obra de arte ou um tratado científico-filosófico, tudo que é
produto da ação humana enriquece o ser social e o municia contra possíveis atentados contra a sua
autonomia. Contudo, o ser humano é e foi perfeitamente capaz de produzir fenômenos, ideias e
movimentos que geram a desigualdade, a alienação e a violência gratuita. E isso se manifesta tanto
sobre a égide da religião como podemos situar historicamente na Idade Média, bem como sob
baluarte da Razão, como foi os primeiros séculos de colonização, rapina, estupro e genocídio – não
muito diferente dos polos de desigualdades extremadas geradas pelo nosso capitalismo
contemporâneo.
Por fim, deixemos claro o que pensamos antes que nossa discussão possa ser confundida
com um relativismo vazio e sem propósito. A religião, segundo o que pudemos ler em Marx,
somados com a experiência histórica de “amor e fúria” da própria realidade brasileira, constatamos
que a religião se manifestou em muitos aspectos, mais como referência coletiva e estratégia de
resistência e sobrevivência contra o opressor. Um exemplo muito elucidativo em nossa história é o
fenômeno do messianismo e milenarismo no cangaço nordestino, o qual não só uniu os muitos
sujeitos deixados ao deus-dará para morrer nos períodos de seca, enquanto os seus empregadores
latifundiários passavam essas temporadas tranquilamente em suas propriedades litorâneas ou na
capital. Para além disso, o messianismo mobilizou uma vasta população do campo brasileiro a
resistir a arbitrariedade de um governo que se intitulava republicano – embora a definição de
“governo do demônio” de Antônio Conselheiro pareça muito mais precisa –, levando a cabo a
crítica mais radical que uma classe social já fez à realidade histórica daquela época.

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