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Ofilme de WimWen- ders Chambre 666 (1982)oferece um bom pre- texto para introduzirnosso pro- blema. Durante uma das edigdes do Festival de CinemadeCannes, Wenders traz para o seu quarto no Hotel Martinez pouco mais de uma dezena de proeminentes tealizadores cinematograficos e pede que cada um deles dé um depoimento sobre uma questéo que naquela época ja comegava a incomodar os homens. decinema. Sozinho no pequenocom- partimentodohotel,sentadoemuma cadeira oude pédianteda camera, a0 lado de uma mesa onde estava colo- cado © Nagra para gravar os depoi- mentos, cada realizador procura im- provisarargumentospararesponder A questo colocada por Wende Chama a atengao um detalhe marcante dentro do cenario quase do (alguns realizadores o des durante a tomada) ¢ sintonizado em qualquer canal, mostrando © tempo todo as imagens banais do fluxo televisual. Nas miios de cada realizador ha uma folha de papel coma questo que Wenders propoe discutire que 6 exatamente a seguinte: “Tnvestigacdo sobre o future do cinema. O contexto: Cada vez mais ¢ mais filmes parecem ter sido feitos para 2 televisio, em ter mos de iluminagio, enquadramento © formato. Tudo leva crer que,em gran- de parte do mundo, a estética da televi- io estd substituindo completamente a estética do cinema. Um grande niimerode filmes se referea ‘outros filmes, 20 invés de xe referir a alguma realidade fora deles mesmos; € ‘comiosea ‘vida’ nao pudesse mais forne- cer historias. Pouquissimos filmes de cinema estie senda feitos. Huma tendénciaemdire- doa superprodugées grandiosas, emde- trimento dos ‘pequenos’ filmes. Maitos filmes encontram-se hoje dis- poniveisem video. Esse é um mercado que se encontra em franca expansio. AS [pessoas agora preferem ver os casseles cemcasa, ao inves dese dirigirem a uma sala de exibigao. A questio: ‘Ocinema¢ uina linguagem em vias de desaparecimento; uma attequeestimor- redo?” Dez anos passados apis a intervengio de Wenders, o tom spocaliptico com que a questo cra colocada parece resultar hoje francamente datado. O proprio nome que Wenders dé Asua pelicula, fazendoreferén- cia a0 miimero 666 que marea, na tradigao © aparecimento da Besta do ‘Apocatipse (no caso, a Besta parece ser identificada coma televisio eos meios ele- trOnicos em geral), deixa evidente oquanto hi de anacrimico nessa mancira de formu- Jaro problema, bem como a desconfianga que boa parte dos homens de cinema do sdepositavam nasaliernativasapon- tadas pelo video ¢ pela informitica. Ade- mais, nio hé como deixar de perceber tam- bém © modo primério com que Wenders coloca em confrontoo cinema catelevisio. Secinemaé aquiloque fuzemhomenscomo Godard, Herzog, Spielberg, Fassbinder, Guney, Antonioni e 0 proprio Wenders (0 cineasta alemio escolheu a dedo os seus entrevistados), 0 equivalente, no universo dovideoe da lelevisio, seriam coisas como ‘os programas interplanetérios de Nam June Paik, as séries € spots produzidos para a televisio por gente comoPeter Greenaway, Zbigniew Rybezynski, Raul Ruiz ¢, para pensar em exemplos brasiteiros, os irmios Waiter ¢ Joao Moreira Salles, bem como ainda os trabalhos viscerais de Bill Viola paraamidiaeletrdnicaes radical reinvengio do programa de televisio, por Jean-Luc Godard. Soa, ne minimo, como um contra- senso colocar lado a lado cineastas que fa- zem um cinema autoral ¢ inventive (uma minoria, diga-se de passagem, dentro do universo da produgio cinematogréfica) ¢ ‘eee eeoninanett bunaisdatelevisio, de auditério © scriados jeponesesno esto Jaspon, Eeviderte que estas Gltimas nia podem resumir todo 0 conjuntode possibilidadesexpressivas hoje colocado pela imagem eletrénica. O con feonto enire cinema e televistio encenado por Wenders resulta visivelmentedistorcido ¢ impossibilita encarar o problema com a mesma complexidade com que ele se im- pie & nossa al Denire 05 cineastas entrevistadas por ‘Wenders, apenas dois rejeitam o ponto de vista dramitico da colocagao inicial e cha: mamautengioparaooutroladedaquestio, qual sejs, o da possibilidade de reinvengio do cinema com a incorporagio da cletrOni- ca, Porcoincidéncia, s40 justamente os dois, cineastas que mais longe iriam levar o did Togo entre cinema e meioseletrOnicos, cor rendo todos 0s riscos de uriia experiencia que era vista, a principio, com bastante ce- ticismo pela comunidade cinematogrifica. Oprimeirodetesé Michelangelo Antonioni, que jé em 1981 se disps a sentar-se diante de uma mesa de efeitos eletrdinicos dos es- Nidios da RAL para trabalhar as cores desse pocma cromatico que € fl Mistero di ‘Oberwalid(OMistério deOberwald, 1981). ‘Osegunilo é Jean-Luc Godard,cineastaque jf-em maio de 1968 vtilizava o video para produzir reportagens-rclimpago sobre a Tevolta estudantil ¢, logo em seguida, pas- saria a produzir filmes para emissoras de televisdo (onde, paradoxalmente, seus tra- ‘balhos seriam recusados de forma sisternée tica). Apartirde 1974, coma ctiagiode sua propria produtora independente de video, a ‘Sonimage, Godard dé inicio 20 mais longo efecundo processo de fusiodasduasmidias, processnessequecomecacom icierAilleurs (1974), Comment Ca Va (1975) eNuméro Deux (1975),passa porséries televisuaisde uma preciséofulminante, ais comoSixFois Dewx (1976) ¢ France/Tour/Détour/Deux/ Enfants (1978) ¢ s¢ prolonga até hoje, in- clusive comumadesconcertante histériado cinema paraatelevisio (1989). Mas Godard. tinhaumasensibilidade afinada coma midia sletrOnica desde muito antes: basta obser- var que um filme como La Chinoise (A VIM REVISTA USP Chinens, (157), settee oo ceaitatn cho ‘rasta comm) 0 iden, $B expire urna ena ica sha brforvtney, tame oe) enejuembr area Apeoe de Wlefermal ou de programe or trev tas ene ates faherahbereatr ‘a Clarwen. cent et Wrakrwrte te t9- tm de atzalbtate, coteeratioanchs ox cate porta ae Meer a he pratt (Cithands) mreoepeetivarmenie pare a tie ‘Here dim rondes auationtamats, frate-we eye cumstacet ye a dieage tio ch priditeragter ce dinacurne) mptecally tic abrbraiimaks bebe ‘visto » culpa dhe ivdon an moshin de cine chertaceho tatactetbiad utearretwo datebend sak Gear Weve pumas cmb te. FHC ‘wae leas a fomrrene busallag do du 4 itwel, tik temtrvia. sare borg bractickes te iioge ¢ cel ebernybo entre canesta, Urbewt id's mmetiw ebetatetcres gn pera. Nem wri Sie M0, Retoerts Memmellinel eregher pire nthe de fiers ctltoe “teekinicane” expwetalreertie pemtadus pale a veseellapho (ne telrrise, tev cpl ans renin coraborckcbos whe bat Iino dus Power pour Lamas TV (1M, Sowrane 1) AM Alled peng herrea Pld TY) Th bot satinncy ene, p tie 1 RR tieid Babe bac Ateib yde bon is eerieealed Gr makes fm. FSi: depen eS anne fe ecleten ling tnx ouseja, homens detelevisioque trouxeram uma contribuigdo importante a arte do fil- me. Richard Lester, por exemplo, essenei- almente um diretor de comerciaise de tele- visio, foi um dos primeiros a trazer para o cinema. procedimentos tipicos de lingua- gemtelevisual (muitos véem nos episéxlios musicais de A Hard Day's Night (1964) ¢ Help (1965) 0 nascimento do videoclipe). ‘Também da televisio vem odiretoralemio mais polémico desta segunda metade do século, Hans-Jurgen Syberberg, que intro- duz no cinema uma iconografia grafica ¢ antiilusionista, mais tarde assumida as diti- mas conseqiéncias pelos meios eletrdni- cos. Vale lembrar ainda que até mesmo Orson Welles chegowao cinema através da tradigao do radiodraina, tendo igualmente realizado para a televisioseu Une Histoire Immnortelle(1969), Fioulmente,nosniltitnos anos, temos visio © surgimento de uma eracao de realizadores que poderiamos caracicrizar como “eclética”: gente quetrie balhasimultancamemte emcinemae televi- so, gente que produz indistintamente videos € filmes, ¢ ocupa todos os espagos do audiovisual, Raul Ruiz € um deles: co- megou Fazenda televisio no Chile, depois passou a0 cinema, continuou fazendo cinc- ima no exilio europen ¢ voltou A televisio paracontribuir com uma das mais radicais desmontagens dos esteredtipos da midi eletronica (vide os exemplos de L'Hypothése de Tableau Voté, 197%; Des GrandsEvénementsetdesGensOrdinaires, 1978; Petit Manuel d’Histwire de France, 1979; ¢ Images duu Debat, 1979), Realiza doses como John Landis, Martin Scursese, Spike Lee, Julian Tempie, Jonathan Demme, Jim Jarmush, Zbigniew Rybezynski e Annabel Jankel sfio simulta- neamente autores cinemaiogsaficos e exi+ ios diretores de videoclipes, Mesmodire- tores de cinema consagrades como. Michelangelo Antonioni, Ridley Soott, Woody Alien; Duvall ch, Fedterioa Fellini ene Bris Cassi Biegusat Amalie Jaber sedistingutzan iginhens-come tefhsudoress Ue conpeisinis abit eleVisTofe Nao ape zras poinrazties de sobrewsveci) AS TRES CRISES DO CINEMA Giliaghcvtica feito por Wenders one TEL apetiies orn, alanis de seis aspetos, sobrende no que Goncerne 8 earecwesizay Fa) dosuna “erie du cinsiine” gue VEE He sprohmdiundisanoapdsanes, poctnxle reda~ 126 he via por encarar apenas ¢ lado negative das coisas, sem atentar para o que hé de produ: tivoe inaugural em toda crise, No quecon- siste exatamente a crise do cinema? Ela é, em primeiro lugar, uma crise de natureza econdmica ¢ pode ser sumuriamente atri- buida a um inexorével crescimenta dos ‘custos de produgio. Nos terrenos da eletté- nica ¢ da informética verificamos haje, paradoxalmente, uma tendéncia no sentido de uma progressiva diminuigio dos custos de produgao, a ponto de meias ¢ processos tais como cdmeras de maiot resalugio ou recursos digitais de pos-producao estarem acessiveis a pequenos produtores, quando hd naomais de cinco anos eles $6 estavam disponiveis a geandes redes de te ° cinema, entrefanto, caminha no sentido in- yersoda fendéncia cconémica da indéstria capitulista, com uma texa de etescimento, dos custosde produgioquetemsidoafcrida come sendo-da orem dos 16% ao. ano (Carbonara et alii, 1991, 7.60), pesando nesses céiculos sobretude ox cusios cada yez mais astrondmicos da pelicula fotoquimica. {sso quer dizer que um filme que custava, em 1982, um milhiio de déla- Tesparaserproduzido, custa agora,em 1992, portanio dez anos depois, quase quairo inilhies de détures. Pode-se aventar mujfas hipsteses. para explicar essa tendéncia, mas certamente a mais provivel € que 4 indastria parou de investir no aperfeigoamento dos processos AGcnicos do cinema. A tecnologia do cine- sna encontra-se estacignada jé faz algurmas décadas, Busta folhesr os némeros de American Cinematographer, sevista dedicada ao exame das inovagdes nas areas. técnica ¢ econdmica da produgao cinema- logrifica, para verificar que as tinieas novi: dades que eorreram nessas areas nos ilti- mosanos foramas importagdes de recursos do universo da cletrinica (video de alta definigdo, mentee Compurndirizats, pespraduciio com meioy digraiis, etc) Emgmeses trediqneuiimenty delfiewdas A pixluesio de peliculs fognifiea cinemas tanita, Come € 0 kane dk Kodak soetes, amerieiba, dirigem hoje indos.os sens ine Vestinentos fies @ pesqitisa de suiportes: letcomagnélions, ais como ius de vitteo € disquetes de computador, cont yue se wntectpando a uma bastante proviivel vires Bi ny metcady audiovisual, Comme resaltay: do dessa esiggnugiorios mesos hubiroaisde # eresmenite isinadacutiony mpelas tecnologias de natureza mecinicae fotoquimica e do desaparecimento da con- corréncia comercial entre os tradicionais fornecedoresde produios, 0s cusios da pro- dugao cinematografica estio resultando cada vez mais inflacionades, a ponto de inviabilizaras produgbesde orgamemtomais modesto. O resultado dessa tendéncia ja é conhecido: as cinematografias nacionais (inclusive a brasileira) encontram-se em avangada processo de desaparecimento, enquanto as escolas independentes ¢ de experimentacgoniopodem maisarcarcom 95 cuslos de produgio, Umsegundo fendinenoa que esté asso- ‘ciada aatual crise docinema Sumasubstan- cial mudanga de comportamento das popu- lagGes urbanas, e que consiste na perda do hhabito de sair de casa para assistir a espeti- culos piblicos, em trocado consumo priva- do de produtos culturais tais como o livro, 0 disco, 0 cassete © sobretuco 0 ridio © a televisio, Os novos produtos da indist da cultura pressupéem formas de vida entradas na casa, na familia ¢ no ambiente de trabalho, formas de vida privadas, cor- respondentes a nova paisagem urbana con- solidada pelo capitalisme tardio. Hi, €cla- 1, uma relagso estreita entre esse sentido dcconfinamentoc acrescente deterioragao do meio urbano, marcado pela dificuldade de locomogia motorizada, insalubridade ambiental € criminalidade generalizada, Paraas populacdes surgidas 30b o signo da televisio, sair de-casa para iro teatrocu 20 cinemaéum acontecimento, uma aventura, tum ato de quebra da rotina, enquanto para vespectador dos.anos 400u SOiraocinema era um ato absolutamente rotineiro, até Porque se podia encontrar salas de exibigao no bairro.ou no quarteirio de casa. Associ~ ando a elevagio dos custos de produgio ao fechamento progressivodas salasde cxibir ‘slo, di para perceber o beco sem saida em que se acham imobilizadas as formas ‘cinematogritficas tradicionais, Mas ixé ainda um terociro fator cancos- rendo paraa crise do cinema, este mais sutil ‘emnais dificitdese reconhecer numa mirada apenas superficial: ele consiste numa mu danga dos hébitos perceptivos em relacio a uma, digamosassim, ontologiadaimagem. ‘Ocinema, pelo menos uma certa pritica do cinemaqueseimpéscomodominante, parte sempre da premissa de uma fundamental objetividade do mundo, que a cimera teria opoderde flagrargracasaoseumecanismo de registro. Oto inaugural docinemaesta- tia nesse instante de conftontagio direta da camera com a realidade que se impica cla, cabendo & pelicula cittematogrifica funci- ‘onas como a comprovagao desse momento de verdade. Daf a celebragio dos grandes espagos, aque a tela ampla ea profundida- dede campocinematogrificasse prestam a marayilha, bem comoo apegoa uma textu- ra de imagem resolutamente fotografica, sugestiva de um efeito de “transparéncia”. Jé a tela pequena ¢ sem profundidade da imagem eletrOnica fragmenta ¢ emoldura de formaimplacdvelo espago visivel, torna sensivel a textura granulosa do mosaico -videogrifico e se oferece a todas as interfe- réncias ¢ manipulagdes. Mais que isso: imagem ¢letronica se mostra ao espectador nao mais como um atestado da existéncia prévia das coisas visiveis, mas explicita- mente comoumaproducdodo visivel,como um efeita de mediagdo. O que a camera capta do “real” € apenas uma matéria-pri« ma para o posterior trabalho de produgio significante, razio por que se pode dizer que, a0 contririo docinems, oato inaugural no universo do video reside mais propria- mente nos trabalhios de pés-produgio. A iconografia do video nos dé a impressiode estarmos diante de um universo de imagens ¢ nko diante de uma realidade preexistente, efeito de opacidade significantea que mui- tos atribuem hoje um carter apocaliptico, como se a imagem sletrOnica praticasse algumaespécie de“desrealizacio”’ do mun- do visivel. No cntanto, nada disso chega a ser propriamente uma novidade no wniver- so das imagens, uma vez que o que faz a imagem eletriinica é simplesmente repetir, $6 que agora no nivel da massa e do automatismo técnice, © mesmo processo de iconizagéo da representagao visual jé vivido pela arte moderna a partir do impressionismo, do cubismo ¢ da arte abs- trata. A convivéncia didria com a televisio ¢ ‘os meios eletronicos em geral tem mudado substancialmente a maneira como o ¢spec- tador se relaciona comasimagens técaicas, € isso tem conseqiiénciasdiretas na aborda- gem do cinema. A iconografia atual tem relativizado bastante 0s aspectos “indiciais” daimagem técnica, ou seja, oscucariterde Tegistro, os efeitos da impressdo direta do “real” sobre um supotte, isso que se conhe~ ce na semidtica peirciana como a secundidade. Em contrapantida, ela agora se mostra também como intervengio grafi- ca, como iconografia em si (primeiridade REVISTA USB IAF na classificagio peirciana) e como infor- ‘imagio conceitual, expressio de uni saber, efeitode conhecimento (terceiridade), Para se dar conta dessa “pequena virada cpisiemoldgica”* (Bellous, 1989, p. 185), basta ver como a tecepgio de filmes em ‘vidcocassctes se parece cada vez mais com a leitura de um livro: a viswalizagao passa a Seragora um ato solitério, o filme pode ser interrompidoaqualquermomento, seja para repetir algum trecho, seja para continuar a “{eitura” num outro momento, “pequenas etversdes que fazem do espectador cada ‘vez mais um leitor” (Bellour, op. cit.). A imagem se oferece portanto como um “tex- to” para ser decifradoou “lido” pelo espec- tador (os videose filmes de Peter Greenaway sho a propria evidéncia disso) € no mais ‘como paisagentasercontemplada. Issonao querdizerque as imagens contemporincas sejam indiferentes & reatidade, como que~ rem fazer crercertos profetas doapocalipse, mas que oacesso a esta tiltima é agora mai mediado e menos inocente. ‘Voltando a questio inicial de Wenders ~ © cinema estaré morrendo? -, dirfamos que um certo conceito de cinema sim. Bas- tante sintomitico dessa sensagaio de fim 60 atual surto de filmes que exploram justa- mente a nostalgia de um tempo em que © ‘cinema era um ritual coletivo, umacelebra- ‘80 mitica € um espelho do mundo, como Cinema Paradiso (1989) de Giuseppe Tornatore, Cinema Splendor (1989) de Ettore Scola ¢ mesmo The Purple Rose of Cairo (A Rosa Pirpura do Cairo, 1985) de Woody Allen, onde jé se pode perceber umn sentimento de melancolia por alguma per- a irrepardvel. O que pode estar morrendo no cinema é uma certa técnica de producto {uma forma de“artesanato” que deriva ain- dx da época da Revolugio Industrial e que, segundo Coppola, niio sofreu qualquer mudanga substancial desde os tempos de Griffith), uma ceria modalidiade de susten- tagdo econmica (vinculada ainda as for- mas de espetiiculos teatrais e derivads wni- camente dos ingressos comprados pelo pablico), uma certatecnologia (acimerace arrasto mecanico, a pelicula fotoquimica, “arqueologia” segundo Coppola) ¢ ainda uma certa premissaepistemolégica (oolhar imaculado que se langa sobre © mundo). Esse conceito de cinema pode nao morrer hoje, nem aman, mas é certo que vai de- saparecer em algum momento. H4 quem considere que o cinema nao morre $6 porque surgiram ‘novos meios, ‘como 0 teatro nio morreu, nem a pintura, emvirtude doaparecimentodo cinema, Mas cinemanfo éteatro, nem pintura: para fazer teatro basts ter um grupo de pessoas, para fazer pintura basta ter um tubo de tinta ow mesmoumpedagodecarvio. Mas para fazer cinema precisoque as empresas fabrican- tes de cameras e de filmes se disponham a produzir as méquinas ¢ @ matéria-prima necessérias para isso, ¢ elas sé 0 farlo en- quanto perceberem que hé mercado sufici- conte para sustentaruma producio em esca- Ja industrial, Quando a demanda atingir 0 nivel critico de definhamento, € possivel que ocinema-um certo conceite decinema ~ desapareca, como jé desapareceram 09,5 mim, 0 8 mim ¢ o Super-8. ANARQUIA DO AUDIOVISUAL Mas podemes entender cinema num outro sentido. Podemos conceber urn cine~ ma lato sensu, seguindo a ctimologia da palavra (do grego kinema - ématos + grdphein,“escritadomovimento”)e,resse caso, cstariamos diante de uma das mais anitigas formas de expresso da humanida- de, nascida quando algum homem pré-his- {Grice fez projetar a sombra de stias prépri- as mios nas paredes de uma caverna. Nese sentido expandido de arte do movimento, 0 cinemangioapenasseencontraemsun mais plena vitalidade, como também vivendo Iransformagées substanciais que deverio garantir a permangncia de sua hegemonia perante as demais formas de cultura. Oci- nema, que jé foiteatrode sombras chinesas, que jf foi a Caverna de Platiio, que jé foi praxinoscopia (Reynaud), fenaquistiscopia (Platean),cronofofografia(Marey) edepois ‘se tornow cincmatografia (no sentido que The deu Lumiére), devers sofrer agora um novo corte em sua histéria para sc tomar cinema eletrénico. Nesse sentido, ele vive um momento de ruptura com as formas € as priticas fossilizadas pelo abuso da repeti~ ‘Gao, € busca solugées inovadoras para rea- firmar sua modemidade. No momentoatu- al, acletrGnica est4 introduzindo uma gran- de desordem no interior da cinematografin, na sua maneira de olhar para 6 mundo, de contar historias ou de perverté-las, de com> Dinar sons ¢ imagens, de produzit e distri- buir materiais audiovisuais, de assistir aos filmes (cf. Verité, 1990, p.95).Aoque tudo indica, o universo do cinema deverd ficar marcado, durante ainda algum tempo, por uma lotal heterogeneidade, por uma impu= tae REVISTA USE seza de materiais © por uma confusio de procedimentos, até que, a partir do destilamento da desordem atual, susja uma nova forma de cinema, no sentido expandi- do de “arte do movimento”, O fendmeno nao € propriamente novo. Elejihaviasidodetectadono ambitorestri- todocinemaexperimentalnorte-americano, quando, a partir dos anos 60, comega a pro- liferar um certo tipo de producdo que - se- gundo palavras de im contemporineo (Mekas, 1975, p. 274) - “ja nem pode ser mais chamada de cinematogrifica”: “a luz esti ali, omovimento estf ali, atela esté ali, svezes até a imagem filmada esté ali, mas ‘que se vé nia pode ser descrito ow expe= rimentado do mesmo modo como se des- creve ou se experimenta o cinema de Griffith, de Godsrd ou até mesmo 0 de Brakhage”. Mekassereferiaaumcertotipo detrabalho que, malgrado inscrito noambi- tode preocupagoes do cinema experimen tal, jindo usava mais pelicula fotoquimica, nem era mais projetado na tela de uma sala escura, como era 0.caso dos videotapes de Nam June Paik, ov tambéma um outra tipo de trabalho que, apesar de utilizar pelicula convencional ¢ projegdo em sala escura, langava mao de meios absolutamente iné- ditos de produgao, caso tipico de John ‘Whitney, que, desde adécada de 40, gerava ‘suas imagens diretamente através de um computador anal6gico. Para dar conta des- sa. ampliagao das possibilidsdes de produ- do de filmes, Gene Youngbiood (1970) ‘cunha 0 termo “expanded cinema” (“cine- ma expandido”), através do qual assitnila 20 universo do cinema experiéncias que se dio no Ambito do video e da informatica, bemcomoexperiéncias hibridas, quesedio nus franteiras com o teatro, conta pinturae com a misica. A incorporagio da eletrinica pelo cine- ‘maven se dando de forma lenta, sobretudo partir dos anos 70, em geral para dar res- posta a delerminados problemas insuperd- Yeis dentro da especificidade da cinerato- grafia stricto sensu. Aos pouces, enfrentan- do a desconfianca geral, alguns cineastas mais ousados ¢ inquietos comegam a mes- lar as tecnalogis. Biles partem do pressu- posto de que o equipamento disponiveleos métodos de trabalho acabam por submeter as idéias cnalivas a normas de todas as es- pécies (estéticas, _ profissionais, institucionais), de modo que, as vezes, é preciso recorrer a uny instrumental ainda no inteiramenteafelado peloshabitos para poderdescobrinnavas possibilidadeseuma ‘outra maneira de produzir algo diverso. No universo do cinema experimental, a passa- gem é mais natural, inclusive mais I6gica, até porque acstética do video nio fax sonia dar conseqiéncia a um conjunto de atitudes conceituais, ecnicase estéticas que remon- ta as experiéncias no-narrativas ou nio- figurativas docinernade René Claire Dziga Vertov nocomegodoséculoe asinvengdes do underground americano (Deren, Brakhage, Jacobs, etc.) posteriormente. Obras vidcogrificas como as de Bill Viola ‘ou Gary Hill - como ff foi observado por Bellour (1989, p. 180) - continuam aquilo que jé vinha sendo feito por Snow ou Frampton no ambito do cinema. Nao por acaso, muilos cineastas do movimento ex- perimental (Hollis Frampton, Ed Emshwiller, 0 japonés Taka lirura, entre outros) simplesmente mudam de suporte quandoosequipamentoseletrOnicos setor- nam disponiveis acustos razoaveis, ou pas- ‘sam a trabalhar indiferentemente com as das teenologias, como € 0 caso dos brasi- Iciros Julio Bressane, Arthur OmarcAndrea_ Tonacci. No é também por acaso que o primeiro filme elctrénico da histéria do ci- nema, ou seja, 0 primeiro filme captado e processado em video para posteriar trans- feréncia 4 pel{cula fotoguimica, foi um produta tipico do wader; famericano: 200 Morels (1971) de Frank Zappa. Ja a aproximagio coma eletr6nica, por parte de ineastas que fazem um cinema nasrativo de linhagem griffithiana, € mais dolorosa, ‘visto que ela implica toda uma transforma- ‘20 no modo de pensar e praticar o cinema. Apesar disso, progressos consideraveis ‘jf foram feitos no sentido de avangar na sfnttese do cinema com o video, numa pri- meiraetapa, edo cinema coma informatica, ‘numa etapa posterior. Umna boa demonstra~ go do estigio.de maturidade a que jd che- gou essa sintese € o aparecimento recente de filmes que integram magistralmente as imagens eletrOnicas as imageas fotoquimicas convencionais, comoéo easo de Prospero's Books (A Ultima Tempesta- de, 1991), obra de um diretor (Peter Greenaway) quejéteve umapassagem ino- ‘vadora pelos universos do video e da tele- visio ¢ que aqui experiienta as possibili- dades griificas da paleta eletrOnica de alta resolugio. Até mesmo Wim Wenders, em seu Jusqu‘au Bout du Monde (1991), des- ‘cobre as potencialidades plasticas do siste- ma digital, malgrado trabalhando-as ainda FEV/STA USP IZe EXEMPLO DA UTILIZAGAG DA 'PALETA ELETRONICA’ DE PETER GREENAWAY 130 PEVI'STA US? material bruto, um pouco como o escultor fazsurgir asuaobraa partir da manipulagio da maléria amorfa. O storyboard eletréni- co, nome que Coppola deu 80 modelo ini- cial apartir do qual se constr6i o filme, leva sobre 0 script tradicional a vantagem de poder ser visualizado como um filme (ain- da que de forma elementar) cm qualquer fase dos trabalhos, j4 com a respectiva sin- cronizagosonorae coma inscrigiodotem- po, sob a forma da duragio real de cada plano, alérn de ser fambém o embriiio da obra acabada, obra esta que nfioé mais que um aperfeigoamento daquele modeloinau- gural (Machado, 1988, pp. 184-91). Para que se possa avaliar o que muda no produto cinematogrificoa partirda mudan- ga dos seus métodos de producio, basta auentar para um filme como Passion (1982) do Jean-Luc Godard: trata-se de um projeto absolutamente antidiscursivo, um filme. ico (reconstrugéo cine de quadros célebres da hisiéria da pintura) ¢ também sonoro, antes de qualquer outra coisa. Umroteiroescritoteriacomprometi- doo resultado, na medida em que imporia a diretriz de um rexio; para evitar isso, Godard optou por um roteire videogrifico, A mancira do storyboard eletrénico de Coppola. Scenario du Film Passion (1982) € exatamente isso: um roteiro scm texto escrito, um roteiro de imagens ¢ sons, Lio clogiiente que veio mesmo a ser exibido como uma obra independente. No caso de Passion, temos portanto dois resultados: 0 trabalho de pastida eo trabalho de conciu- sio, ambos igualmente extraordinarios. Nesse sentido, ele difere se One from the Heart, cujo“rascunha” original se perdeu, substituido pelas verses maisrecentes. Em Scénario podemos ver o filme no momento mesmo do seu nascimento: no inicio, ape- nas a tela vazia ("como em Mallarmé”), depois alguns “murmirios” de imagens, ‘genas vagas que vao ¢ voltam; de repente, um som (Mozart) apartirdeleo esbogo de ‘uma agio possivel (um carro percomendo uma estrada). Naohé ainda uma histéria ou qualquer princfpio de conexdo amarrando esas aparigdes furtivas, até que, aos pou- cos, alguns lugares se impdem, algumas pessoas permanecett ¢ 0 filme comega a surgir do limbo, Livre da contingéncia de um texto anterior, de um livro (script) esta- belecendo o que se deveria fazer, Scénario pode assumit-se melhor como forma fudio- moto-visual, como“arte do movimento” em seu pleno sentido, como jf acontecia tam- bém no cinema experimental, em que a inexisténcia de um roteiro escrito permitia avangar na exploragio dos aspecios mais propriamente icénicos da forma cinemato- ica. A situagao atual da indéstria do audiovisual est4 marcada pelo hibridismo das altemativas. O cinema lentamente se toma eletronico, mas, ao mesmo tempo, © video ¢ a televisio também se deixam con- taminar pela tradicio de qualidade que o cinema traz.consigo.ao ser absorvido. Uma grande quantidade de filmes que hoje se pode ver nas salas de cinema, inclusive aqueles totalmente realizados cam meios cinematogrificos habituais, foram, na rea- lidade, pensadas © produzidos em fungio de sua funcionalidade na (ela pequena da televisio. A razdo é simples: um filme nio se pga mais apenas com a renda das salas de exibigao; ele também depende financei- famente do rendimento derivado de su distribuigio nos canais de televisio ¢ no mercado de fitas de videocassete. Brissac Peixoto (1991, pp. 75-6) ja notou a tendén- ia inexorivel do cinema contemporineo em ditegio aos espagos pequenos e inter- nos, as rtarrativas clipticas, aos cendrios artificiais, a mise en scéne teatral, “uma esiética em que a informacao sobre o que esté ocorrendo substitui a observagio da acho, em que a palavra recupera seu papel ¢ 05 detalhes tormam-se embleméticos”. Basta comparar a versio de Henry V teali« zada em 1944 por Laurence Olivier ¢ a ver- sho de 1989 creditada a Kenneth Branagh: ao invés das grandes panorimicasque mar ‘cam a versio mais antiga, temos na versio recente um filme inteiramente enquadrado para a televisio, “em que as batalhas so, mostradas por meio das patas de cavalos se entrelagando na lama ou de wm discurso do rei feito diretamente para a cimera, sem que vejamos sequer sua platéia de solda dos” (Brissac Peixoto, 1991, p, 76). Muitas filmes produzides nos tltimos anos chegam a dar evidéncia estnutural a esschibridismo fundamental doaudiovisual contemporaneo, na medida em que mes- ‘clam formatos ¢ suportes, tirando partido da diferenga de lexturas entre imagens de natureza fotoquimica ¢ imagens cletrOni- cas. Filmes como Ligitining over Water (O Filme de Nick, 1980) de Wim Wenders, Family Viewing (1987) de Atom Egoyan, sex, lies and videotape (1989) de Steven Soderberg, Anjas da Noite (1987) de Wit. son Barros, Eu te Amo (1981) ¢ Eu Sei que REVISTA USPIaS dentro da mesma perspectiva apocaliptica de Chambre 666.Nokmbito de um cinema eletrdnicas ¢ ainda melhor perceptive), so- bbretudo na esfera de aplicagio dos assim chamados “efeitos especiais”, de que a de George Lucas~ Industrial Light Pe Magic - € 0 exemplo mais cloqiente. ‘Também recentemente, 0 sucessa comer Gialdo filme de James Cameron Terminator 2 (Exterminador do Futuro 2, 1991), que realiza com éxito a sinlese de imagens fotoquimicas convencionais com oulras geradas ¢m computador, aponta para um filo que certamente fard o futuro proximo de Hollywood, “Quando cinema eletrOni- co sair da fase experimental” - arrisca-se a profetizar o cineasta Francis Ford Coppola *“ieremos um fendmeno andloge & passa- gem, em 1927, do mudoao sonoro. O cine- ma, no limiar donovoséculo, niotem ouira saida: € tenov Aristarco, 1983, p. 29). Devemos, portanto, considerar 0 cine- ma nio como um modo de expresséo fossilizado, paralisadonaconfiguracio que the deram Lumiére, Griffith seus contem- poriineos, mas comoumsistemadinamico, ‘que reage ’s contingéncias de suahistériac se transforma em func3o dos novos desafi- ‘os que Ihe langa a sociedade. Como tal, ele vive hoje um dos momentos de maior vita- lidade de sua hist6ria, momento este que podemos caracterizar como sendoo de sta radicalreinvengio. A transformagioporque passa hojeo cinema afeta todas os aspectos desua manifestacdo, da elaboragdodaima- gem aos modas de producio e distribuicio, da semiose ’ economia. Um fatoa conside- rar nesse sentido a crescente presenca da televisdo como a principal financiadora da produgocinematogrifica. Veja-setambéer atendéncia atual de transferir para a fase de pés-produgio grande parte das atividaces de produgao: maquetes, cenfrios de fundo, indumentiria especial, maquiiagem € véri- 05 outros expedientes técnicos podem ser diretamente gerados em computador para posterior insergio no filme; foco, profundi- dade de camipo, cor, iluminagio, enquadramento e perspectiva podem ser igualmente allerados depois do registro. Uma vez queos recursoseletrOnicosde pis- produgo séo hoje praticamente infinitos, niiio ¢ de se estranhar, conforme jd observa- mos atrés, que ‘cles acabern por se impor comoocorsgao daativicade cinematografi- ca lato 'sensu. No limite, h4 mesmo situa- (gdese personagensnocinemacontempori- neo queconsistemexclusivamenteemet tos (digitais) de pés-produgio, como 0 idépodcalienigena que apareceem The Abyss (OSegredodoAbismo, 1989), afigu rabidimensional que se desprende do vitral em Young Sherlock Holmes (O Enigma da Pirdmide, 1985), 0 robd de metal liquido em Terminator 2 0 Ciberjobe que aparece nas seqiléncias de realidade virtual em The Lawnmover Man (O Passageiro do Futu- 10, 1992), ‘Mas¢ preciso observar que pés-produ- ‘gio no € mais uma fase (posterior) do tra- batho de elaboragao do filme ou do video, uma vez que 2 tendéncia atual € conduzir todasas fasesde forma simulténea,e modo romper com 4 linearidade fatal dos méto- dos tradicionais de filmagemt. A eletrénica toma possivel uma coisa que sempre foi impensivel no cinema: produzir efeitos de posterizagao “a0 vivo”, no mesmo instante da captagio das imagens pelas cimeras, como o faz, por exemplo, Zbigniew Rybezynski, ao inserir um personagem no interior de uma maquete (em Kafka, 1992). One from the Heari(O Fundo da Coragao, 1981), de Francis Ford Coppola, foi 0 pri- meiro a apontat nesse sentido ¢, por conse- qiléncia, o primeiro a dissolver as distin- ‘ghes rigidas entre pré-producdo, produgio propriamente ditae pis-producio, mais ou ‘menos como ocorre num esttidio de televi- so, em queo programa é concebitlo, reali- zadloc finalizadode forma simulldnes. Tudo nesse filme ocorre ao mesmo tempo: 0 storyboard (realizado em video para per- mitir visualizar duragio, montegem ¢ sin- ‘cronizagio sonora) jé 6 também (este de atores, registro ¢ avaliacia de ensaios, ¢ vai setransformando lenta cimperceptivelmen- te no proprio filme que se esté fazendo. Durante as filmagens, 0 video permite nio apenas visualizar imediatamente os planos que Se esté filmando (nascimento do con- ceito de video assist, hoje extremamente difundido nos meios cinematogrificas), como também editf-los, sonorizi-los ¢ in- serir neles efeitos de posterizacio, ali mes- monolocal de filmager, para que a equipe possa ver oresultado deseu trabathodentro- docontextodo filme. A idéia diretriz desse método de trabalho € ter sempre o filme completo em qualquer etapa do trabalho de produgio, mesmo que no inicio ele esieja ainda num estado bastante ridimentis: 0 esforgo de criagio no consiste, portanto, ‘em Outre coisa (ule numa lapidagdo desse Var revista Usp VouteAmar(1985) ambosde Amalia Jabor fazemcatrelagartexturasdefilmeede video para marcar diferentes niveis de realidade ‘ou diferentes estados emocionais, enquan- to um outa filme como Jusqu‘au Bout dat Monde utiliza a iconografia pontilhista do computador para distinguir as imagens ‘oniricas das imagens. que exprimem uma ‘experiéncia “real”. Por sua vez, do ladoda televisio, também se di esse processo de hibridizagio: boa parte dos videoclipes e dos spats publicititios, apesar de concebi- dos para a cla pequens ede circularem sob forma de fita magnética, foram produzidos ‘originalmente em pelicula cinematogrifi- ca. Em algumas dreas da produgio audiovisual, o temo “cinevideo” designa especificamente uma técnica que consiste cm caplar a imagemem filme fotoquimico © depois fazer a telecinagem do material para a pos-produgao em video, de modo a tirar proveitodoque cada tecnologiatemde melhor, Assim, fics cada vez mais dificil falaremcinema stricto senswoumesmoem. video stricto sensu, quando os meios se ‘imbricam uns nos outros € se influenciam ‘mutuamtente, a ponto de, muitas vezes, se tomar impossfvel classificar um trabalho ‘em categorias tais como cinema, video, te- levisio, computacio graficaou sejaioque for. Talvez seja melhor falar simplesmente decinema, nosentidoexpandidode kinerna ~ ématos + grdphein, ou seja, a “arte do movimenta”. © IMPASSE DA ALTA DEFINIGAO Nos iiltimos anos, as discussées sobre ‘uma passive} fusso do cinema. como video tém sido intensificadas em viriude do aparecimento de uma nova tecnologia de captagio ¢ processamento de sons e ima- gensem movimento: aalta definicao, Cha- mamosaltadefinigaoalgunsnovospadrdes de video que praticamente dobram a reso- lugdo da imagera cletrdnica com a qual convivemos ordinariamenteetambémalar- gam mais a tela da televisio para urna pro- porgdo 16:9, de modoa resultar numaima- gem que, segundo alguns, reproduz 0 par rio de qualidade da imagem cinemato- grifica. Atualmente, dois sistemasdiferen- tes tentam seimpor como padrouniversal: ojaponés, descavolvidopelaredeestatal de televisiio NHK, com 1.125 linhas horizon- tais ¢ 60 campos por segundo, ¢ 0 europeu (chamado Eureka) cons 1.250 tinhas hori- zontais ¢ 50 campos por segundo, Em viri- aspartesdo mundo, experiénciasestiosen- do realizadas no sentido de testar as possi- bilidades de substituigao da pelicula fotoquimica convencional por fitas magné- ticas de alta definigdo, seja para produzir filmes (captando e processando tudo em video € transferindo depois para pelicula, com vistas i exibigo em salas de cinema), seja para produzir programas de tclevisio com methorresolug3ode imagem, sejapara dar infcio a uma tercoira possibilidade, jé nem mais cinemmae nem maistelevisio(tal- ‘vez um cinema eletrénico), utilizando in- cclusive novas alternativas de distribuigio: Salélites, eabos, videodiscos, otc. Na realidade, 0 alta definigio vive um momento de impasse. Originalmente, ela havia sido proposts como uma evolugio natural da televisio rumo a um padrio de (qualidade de imagem mais eievado. Todos ‘os esforgos nese sentido parecem ter sido imiiteis: os dois atuals padrSesde $25 ¢ 625 linhas tém se mostrado mais resistentes do que podiam supor os executivos das indis- trias eletrGnicas. O principal problema com relagio aos padrdes de alta definigdo é que eles sio incompativeis com os modelos standard de tclevisio, de modo que qual- quer mudanga de padrao implicaria no sucateamento de todo o parque industrial instalado, com custos de instalagio proibitivos para a maior parte dos produto- reseconsumidoresde programas, sem falar que 0 atual espectro eletromagnético teria desertambém redivididoem faixasdeonda mais Jargas, para comportar canais de alta definigio. Ademais, nio hi de fato uma demanda conereta de maior resolugéo de imagem dentro do universo da televiso: 0 que © publico pede, em geral, é melhor qualidade de programas e maior quantida- dedeopgbes, mas nionecessariamente mais Tinhas de resolugio. Uma vez que, 2 curto ‘ou médio prazo, nio hi perspectivas de implantago de sistemas de alta definicio dentroda regimeconvencionalde televisio broadcasting, os fabricantes da nova tecnologia estio mudando de estratégia ¢ tentando implantar a alta defini¢aa como alternativa a0 cinema. Grandes esforgos j& foram empreendidos nesse sentido. O pra- blems hoje saber sea alta definigio ser a salvagio da cinema (stricio sensu) ow se, pelo contririo, ocinema é que seré a salva- io da alta definigio. ‘Othando retrospectivamente para que Jfise fez no Ambito da cinema com a wiii- zagio de alta definigio, pereebe-se que, na TOA REVISTA US? maioria das vezes, o que se tenta'com essa nova tecnologia € ressuscitar 0 velho con- ceito de cinematografia sob novas roupa- gens. Todos osesforgosdescuspromotores estio dirigidos no sentido 'de comprovar 0 potencial de realismo da alta definigio, ou seja, oseupoderde restituiro mesmoeteito de transparéncia, a mesma texturs “folo- gxifica” e omesmo pressuposto ontolégico a imagem fotoquimmica do cinema, basea- do no confronto entre um ofhar e uma pai- sagem intocdvel. As experiéncias italianas conduzidas pela RAL vao muito nesse sen- tido. Giulia ¢ Giulia (Jilia e Julia, 1978), por exemplo, filme de Peter Del Monte considetado © primeiro longa-metragem inteiramente produzido no sistema japanés a NHK para posterior transferéncia 2 fit- me exibigao em salas convencionais de ‘cinema, guarda todas as convengoes de es- tilo ¢ de tinguagem do produto cinemato- grifico habitual. A idéia diretriz foi mesmo realizar um filme com mcios eletrénicos, mas de tal maneira que o espectadot co- mum jamais pudesse distingui-lo do filme normal captado em pelfcula de 35 mm. Mesmoosefeitoseletrénicosaque as vezes se recorre, como as insergSes de imagens umas nas outras, so sempre invocados de modo.amanter imaculadoo naturalismoda tomada cinematogrifica.O mesmoaconte- ce também em outras experiéncias de mes- ma natuireza, como os curtos Arlecchino a Venezia (1982) de Giuliano Montaldo Pacific Coast Highway (1991) de Steven Poster. No primeira, astravessurasde Arle- quim no Carnaval server como pretexto para mostrar as paisapens de Veneza da alvorada ao crepiisculo, em iateriores ¢ exteriores, de modoa testar aamplitude da eletrénica no registro de distintos tipos de iluminagéo e diferentes densidades cromé- ticas. No segundo, o dinamisma de uma corrida de bicicletas permite demonstrar a estabilidade da imagem em cenasde movie mento, Em quaisquer circunstincias, tudo € feito no sentido de ocultar a eletrdnica ¢ simular um efeito de realidade semethante liquele que ocinema produz. A rigor, 0 iinico realizudor que esta re- almente investigandoasaltemativasdeuma nova estética frente aos desafios langados pela alta definicao € o polonés Zbigniew Rybezynski. A possibilidade de trabalhar ‘com quadrosabertose grandesespagos, que 2 alta definigio introduz no universo do video, nio serve a Rybczynski como pre- texto para a volta a um Fealismo de tipo fologrifico, nem é explorada na perspecti- va de reconstituir o olhar de um sujeito ci- nematogrifico no instante de contempla- 20 do mundo, Peto contrinio, os grandes espagos que o realizador polonés articuta em obras como The Orchestra (1990) ¢ Kafka servem para construir um universo alucinat6rio, em permanenteexpansiocem continua metamorfose, no qual os persona- gens se duplicam ¢ se trocam de acordo comasliberdades da imaginagioe naocom as regras de uma realidade visivel determinista, Curioso € notar que um filme como Giulia e Giulia também utiliza um sistema demaquetesparasimularosinterioresonde Si0 inseridos os atores, tal como'no Kafka de Rybezynski, mas enquanto naquele o dispositive funciona no sentido de sugerir uma cena naturalista captada por uma cimers, neste ditimo ele € 0 instrimentst através do qual se poe em operagao 0 altho interior, que serve de porta ao imagindrio. Se a alla definigao tem algum futuro, ele certamente esti na perspectivailuminadora que the-da Rybezynski. BIBLIOGRAFIA ARISTARCO, Guide. “I! Cinems, Dalla Chimica ai Processé Elewronici”, in Cinema Nuow, n* 282. apriley 1983, BELLOUR, Raymond. “Dela Nouveauté des Nouveltes Images”, in M. Mourier (org), Comment Vivre ‘vee ('Image. Paris, Presses Univ, de France, 1989. BRISSAC PEIXGTO, Nelson. “As Imagens de TV Tém Tempo?" in Adauto Novas (org), Rede Amoginéria, Sio Paulo, Companbia das Letras, 199) CARBONARA, Corey & KORPI, Michiel. “HDTV and Film the Issues”, in American Cinematographer, vol. 72,1? 8, August! 1591, MACHADO, Arlindo. A Arte do Video, Sio Pavlo, Brasiliense, 1988. MEKAS, Jonas. Diario de Cine, Madrid, Furdamnentos, 1975, VERITA, Toni, “Uma Marivilhosa Desordem”, in Guido © Tereza Aristarco (orgs), 0 Nove Mundo: das Imagens Eleirdnicas. Lisboa, Edighes 70, 1950. YOUNGBLOOD. Gene. Expanded Cinema, New Yok, Dutton, 1970. REVISTA USP1aS

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