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NILO ODALIA

GILBERTO FREYRE
– UMA INTERPRETAÇÃO
ETNO-CULTURAL DO BRASIL

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expediente

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SUMÁRIO

PREFÁCIO 5
INTRODUÇÃO 7

CAPÍTULO I
CONTEXTO HISTÓRICO 15
Gilberto Freyre e a historiografia brasileira 21

CAPÍTULO II
NOS TRÓPICOS,
UMA NOVA SOCIEDADE 25

CAPÍTULO III
O HOMEM BRASILEIRO 39
i. O indígena na sociedade híbrida 41
ii. O papel do português 44
a. posição geográfica
e heterogeneidade étnica 44
b. o papel da religião católica
e de sua hierarquia 48
iii. O papel do negro 51

CAPÍTULO IV
OS VALORES ETNO-CULTURAIS
DA NOVA SOCIEDADE 57
Considerações finais 66

BIBLIOGRAFIAS 71

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PREFÁCIO

Este ensaio foi escrito originalmente para uma


coleção destinada a oferecer ao público leitor as obras
mais significativas dos cientistas sociais brasileiros. Esta
a razão pela qual este ensaio em, primeiro lugar, tem um
acentuado caráter didático; em segundo, baseia-se, qua-
se que exclusivamente, na obra fundamental de Gilber-
to Freyre: Casa Grande & Senzala.
Como direi mais adiante, embora nosso autor te-
nha uma obra vasta e diversificada, Casa Grande & Senza-
la, apesar de ser seu primeiro ensaio, é, inquestionavel-
mente, seu livro mais importante e significativo.
Preferi, em conseqüência, manter a forma e a es-
trutura originais deste trabalho, pois espero que assim
atinja um maior número de leitores, especialmente o não
especialista, o chamado “leigo culto” que tem interesse
pelos autores de seu país.
Tomo a liberdade de oferecer este livro às pessoas
que me são caras, minha esposa, Therezinha, e às minhas
netas e neto, Júlia, Lucas, Izabela e a pequeninha Ana,
de apenas um ano.

Obrigado,
São Paulo, maio de 2001.

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INTRODUÇÃO

Á pergunta Por que lemos um determinado livro?, pode-


mos dar diferentes e, às vezes, contraditórias respostas.
Creio, porém, que ela deve ser constantemente formu-
lada, pois é através dela que podemos recuperar nossa
própria autobiografia intelectual e tentar compreender
os problemas que vivíamos (e que vivemos). E, não me-
nos importante, nos compreender como um indivíduo
singular, cheio de dúvidas e incertezas, à busca de ver-
dades e, talvez, de segurança, num mundo feito de areia
movediça, cujas faces se revelam diferentemente, segun-
do o nosso tempo de duração.
Em nossa adolescência, José de Alencar e Joa-
quim Manoel de Macedo podem estimular nossa imagi-
nação romântica e instigam a que sonhemos com um
amor único e eterno; Jorge Amado (Jubiabá e Capitães de
Areia) nos põe frente a uma realidade que, freqüentemen-
te, ou desconhecemos ou deixamos de ver, por como-
dismo; na maturidade, o Machado de Assis de Dom Cas-
murro, com ironia e espírito, apenas nos confirma o que
a vida nos ensinara.
Com eles descobrimos a literatura e, por que
não?, nossa própria imaginação. Pelas suas mãos, trilha-
mos novos caminhos que nos levam a Stendhal, Proust,

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Kafka, Faulkner, aos sempre eternos clássicos Homero,


Ovídio e de cada um extraímos experiências que de ou-
tra maneira não teríamos e vemos o mundo que nos ro-
deia de maneira diversa, cuja complexidade e emaranha-
do aguçam nossa curiosidade e inteligência, pois
queremos compreendê-lo e, se possível, explicá-lo.
Explicar o mundo, este o grande desafio a que nos
propomos numa determinada fase de nossa vida, que
pode variar de pessoa para pessoa, mas que fatalmente
um dia tomba sobre nossa cabeça. Quando isto aconte-
ce, buscamos naqueles escritores que chamamos de ci-
entistas sociais, incluindo, evidentemente, os filósofos,
respostas a questões que vão desde o que é a vida, a mor-
te, até, o que pode parecer mais prosaico, mas não é, o
de se saber o que somos como membros de uma comu-
nidade determinada, o fato de pertencer a um país, cuja
história, afinal, condiciona o que sou, ou, mais generi-
camente, o que somos. Então, voltamos nossa atenção
para os historiadores, os sociólogos, os antropólogos e
os outros cientistas sociais que tiveram a mesma inquie-
tação, as mesmas dúvidas e incertezas, a mesma necessi-
dade de explicar-se, tentando conhecer-se pelo mundo
que os rodeia.
É natural que assim ajamos, pois logo percebemos
que para refletir sobre um problema não é suficiente
contarmos apenas com os dados que a experiência pes-
soal nos fornece. Mesmo porque ao limitar sua reflexão
somente às suas próprias experiências e concepções, o
homem perde de vista a riqueza e a diversidade de vi-
sões que os outros podem lhe proporcionar – e como
conseqüência podemos adquirir alguns dos piores males

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INTRODUÇÃO 9

que afligem o homem: a intolerância, a intransigência e


o dogmatismo.
Das ciências sociais, a história é uma das mais atra-
tivas e por várias razões. Antes de mais nada, por ser
uma narrativa. Significativa, diz um teórico inglês e com
isso ele quer dizer que o objetivo do historiador não é o
mesmo de um romancista. A este não importa a veraci-
dade do que conta, mas o enredo, a tensão, as emoções e
os sentimentos que pode despertar. Ele, sem dúvida, nos
revela o que é o homem nos seus traços fundamentais,
explorando, na expressão de Sartre, as situações-limites,
nas quais pode utilizar de maneira mais livre e profun-
damente sua imaginação, visando o conhecimento do
homem e do humano.
As situações-limites não existem apenas na ficção,
elas são uma constante na vida do homem. Todos nós já
as experimentamos, o que muito provavelmente não fi-
zemos é transformá-las de uma experiência única e pes-
soal num paradigma de caráter geral, – tarefa do poeta e
do romancista.
A história também se interessa e vivamente pelo
fato ou acontecimento único, contudo, o historiador se
nega a generalizações e prefere dirigir seu esforço no sen-
tido de reconstruir, através da gênese, desenvolvimento
e continuidade (categorias da análise histórica), o acon-
tecimento. Quando o consegue, presume ter encontra-
do a verdade histórica. Essa a sua principal preocupação,
a de atingir a verdade histórica.
A história como todo conhecimento científico
busca a verdade; sua diferença em relação às chamadas
ciências exatas está em que tenta demonstrá-la, através
de uma narrativa significativa e argumentativa.

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A racionalidade da argumentação é um traço mar-


cante da narrativa histórica. Os fatos devem ser encadea-
dos numa relação de causa e efeito, que pode nos auxiliar
a compreender o que sucedeu na história. Para ilustra-
ção do que dizemos, tomemos como exemplo uma afir-
mação do nosso autor, Gilberto Freyre, e vejamos como
ele constrói seu raciocínio. No primeiro capítulo de Casa
Grande & Senzala, ele afirma que uma das características
do povo português é a sua mobilidade (efeito) que, por sua
vez, está vinculada ao fato histórico do povo português
ter o semita (causa) como um dos formadores de sua
etnia1. Mas no caso de Gilberto Freyre podemos ir mais
longe, porque diferentemente de muitos autors sua obra
é construída não passo-a-passo até chegar a uma conclu-
são. Ele parte de uma afirmação categórica de que por-
tugueses, índios e negros, construíram nos trópicos uma
sociedade nova, agrária, híbrida e escravocrata, caben-
do-lhe, então, a tarefa da demonstração.
Contrariamente ao que ocorre com os fenômenos
físicos, a ocorrência do fenômeno histórico está intima-
mente relacionado ao contexto em que ocorre. Por isso,
compreender um acontecimento social, cultural ou po-
lítico relevante significa também inseri-lo no contexto
em que aconteceu.

1
Convém aqui notar que a noção de causalidade na história
não tem a mesma conotação que nas ciências físico-matemá-
ticas. Nestas, o determinismo físico é um dos fundamentos
da causalidade, de maneira que a uma mesma causa deve cor-
responder o mesmo efeito. Essa determinação não existe na
história. Historiadores distintos poderão apontar causas dis-
tintas para a explicação de um mesmo fenômeno histórico.

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INTRODUÇÃO 11

Casa Grande & Senzala não é apenas uma interpre-


tação do Brasil, de um certo historiador; é uma obra que
pode e deve ser lida também como a expressão, ao nível
do imaginário, dos problemas que afetaram a sociedade
brasileira num determinado momento histórico.
O historiador elabora sua obra fazendo pergun-
tas ao passado que se originam dos problemas vividos
por sua sociedade no presente. Ele não busca soluções
no passado, seu interesse é em saber se problema similar
já ocorreu anteriormente, com isso ele reconstrói a ima-
gem que temos da sociedade passada e amplia o repertó-
rio de informações que poderão auxiliar na compreen-
são e, eventualmente, na solução de um problema da
sociedade a que pertence. Marrou, o historiador francês,
resumiu, de maneira didática, essa relação numa fórmu-
la matemática: H (história) = P/p, na qual P é o passado e
p é o presente. A história é igual o passado em função
do presente. Contudo, essa equação de Marrou estaria
incompleta senão lhe agregássemos como o faz nosso
autor o futuro. Não no sentido de tentar antecipá-lo,
pois isso seria temerário, mas como um gancho ao qual
se apega para melhor compreender seu presente2 .

2
Ao apontar em W.I. Thomas (The relation of Research to the
Social Process) a ausência do futuro em suas considerações so-
bre a história, diz o nosso autor: “compreende-se nosso repúdio a
Thomas na parte em que esse grande renovador dos modernos estudos soci-
ais deixou de revelar essa sensibilidade moderna ao tempo, para mostrar-
se apegado ao sentido clássico do passado como experiência humana socio-
logicamente dependente do presente; e não interdependente com relação ao
mesmo presente e ao próprio futuro” (FREYRE, Gilberto. Ordem e
Progresso. 4ª ed. Rio de Janeiro, Record, p. clxviii-clxix).

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Se o historiador está ou deve estar tão arraigado


no presente, a fim de realizar sua obra, ele se transfor-
ma, quer queira ou não, em um documento, num mo-
numento, num registro de seu tempo. Ele nos dá, se
aprendermos a ler as entrelinhas de sua obra, elementos
que nos informam sobre os problemas e questões que
afetam ou afetavam os homens de sua época. Para tan-
to, se torna necessário encontrar uma metodologia ade-
quada, não só ao autor, mas para nós mesmos.
Em meus livros, tenho utilizado o chamado estru-
turalismo genético, método desenvolvido por Lucien
Goldmann, em cujo centro se encontra o conceito de
visão de mundo, que nada mais é do que o conjunto de
idéias, sentimentos, projetos e ideais que tornam possí-
vel a existência de um grupo social.
No plano do imaginário, essa visão do mundo se
consubstancia nas obras dos escritores, de todas as espé-
cies, que a revelam, de maneira geral, paulatinamente.
Na maioria dos autores, a visão de mundo apenas
se completa e concretiza em suas obras da maturidade.
Gilberto Freyre é uma exceção a essa regra, pois Casa
Grande & Senzala é, ao mesmo tempo, sua primeira obra
e onde se realiza de maneira cabal sua visão de mundo,
que denominamos de etno-cultural.
Embora não seja autor de uma obra única, ele o
poderia ser e assim mesmo seu lugar na historiografia
brasileira já estaria assegurado. As demais obras de Gil-
berto ou são um complemento de sua obra fundamen-
tal (Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso), ou dela se des-
viam, pouco acrescentando a sua visão de mundo.
Nos meus estudos sobre Varnhagen e Oliveira
Vianna, afirmava que com Gilberto Freyre esses três

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INTRODUÇÃO 13

autores pertenciam a uma mesma corrente historiográ-


fica, pois tinham como problema central compreender
como se formava, ou estava se formando, a Nação, o
Estado, o Homem brasileiro e, enfim, a própria socie-
dade brasileira. Contudo, denominei de visão política do
mundo a estrutura básica das obras de Varnhagen e de
Oliveira Vianna e, agora, chamo de visão de mundo
etno-cultural a de Gilberto Freyre.
Por que essa diferença? Em Varnhagen, a preocu-
pação básica parte da premissa fundamental de que a
Nação, o Estado e o Homem branco brasileiro ainda
não haviam se constituído e, assim sendo, a missão do
historiador era de contribuir, através da análise históri-
ca do passado brasileiro, para que se constituíssem pelo
seu enraizamento nas características essenciais do que era
efetivamente brasileiro. Com exceção do estado monár-
quico, um legado de Portugal, que precisava, segundo
esse historiador, alguns reparos, a Nação brasileira e o
Homem branco brasileiro deveriam ainda se constituir
pela adoção dos valores europeus e pela miscigenação
das três etnias. Projetava, então, para o futuro uma na-
ção brasileira de valores europeus e um homem branco
brasileiro, consciente de que surgia da reunião de três
etnias diferentes, física e culturalmente, em que deveria
predominar o branco.
Em Oliveira Vianna, sua visão de mundo política
se consubstancia tendo como centro o Estado que, como
para Varnhagen, é o instrumento necessário e impres-
cindível para que a nação brasileira se concretize, aten-
dendo às características básicas do espaço e da realidade
histórica brasileiros. Daí a necessidade de um Estado al-
tamente centralizado e poderoso, capaz de impor sua

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orientação e educação à massa populacional. Da afirma-


ção de que, no Brasil, não existiam classes sociais, ele
propõe uma organização estatal corporativista, seme-
lhante à do fascismo italiano.
Para Gilberto Freyre, sua premissa fundamental
é a de que a sociedade brasileira já está constituída assim
como o homem brasileiro.
O objetivo de Gilberto Freyre é de demonstrar
como se constituiu, no Brasil, em função das caracterís-
ticas do país e da colonização portuguesa uma socieda-
de tropical, híbrida e antagônica, porém harmônica e
um homem brasileiro fruto da miscigenação das três
etnias, branco, preto e indígena. A absoluta originali-
dade da análise de Gilberto não se encontra nesses dois
primeiros elementos, mas sim na maneira pela qual ele
fundamenta a formação da sociedade e do homem bra-
sileiro, utilizando para tanto os traços etno-culturais, em
seu sentido mais largo, das três etnias.
Em resumo, a obra de Gilberto Freyre revela uma
visão de mundo etno-cultural, cuja estrutura significante
é formada por três elementos:

1. uma sociedade tropical, híbrida e antagônica;


2. o homem brasileiro;
3. os valores etno-culturais da nova sociedade.

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CAPÍTULO I

CONTEXTO HISTÓRICO

Gilberto Freyre nasceu nos estertores do século


XIX e nos albores do século XX, em 1.900. De família
abastada, pode usufruir de uma educação esmerada, as-
sistido por professores particulares, alguns estrangeiros,
e pelo próprio pai, Dr. Alfredo Freyre. Depois de seus
estudos secundários, realizados no Colégio Americano
Gilreath de Pernambuco, embarcou para os Estados
Unidos para estudar no Universidade de Baylor, onde
bacharelou-se em Ciências e Letras, inscrevendo-se, em
seguida, na Universidade de Colúmbia, na qual fez seu
mestrado e doutorado.
Casa Grande & Senzala foi escrito no final da década
de 20 e publicado em 1933, um período rico de aconte-
cimentos e no qual a sociedade brasileira vivia aconteci-
mentos que iriam transformá-la de maneira significativa
nas décadas seguintes.
Com a primeira guerra mundial (1914-1918), fin-
dava-se o século XIX, o século burguês, por excelência.

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A chamada “belle époque” fora de modo brusco e catas-


trófico encerrada por uma guerra que custara milhões e
milhões de vidas humanas, cujas conseqüências sociais,
políticas e econômicas foram muito mais sensíveis do
que a destruição física causada pelas novas armas (gases,
canhões e aviões) empregadas, durante o conflito. As
grandes potências coloniais, especialmente a Inglaterra,
viram reduzidas em grande parte sua influência sobre o
mundo.
Duas forças novas emergiam: de um lado, os Es-
tados Unidos da América, cuja participação na guerra
fora decisiva para o seu desfecho; de outro, a URSS, nas-
cida da revolução socialista de 1917, que trouxe consigo
a certeza de que os profetas sociais do século XIX, ho-
mens que sonhavam com um mundo mais justo e igua-
litário, tinham razão e que o mundo burguês estava pres-
tes a ruir.
Sucederam-se revoluções e uma nova onda, como
no século XIX depois das guerras napoleônicas, de re-
voltas nos países colonizados, cujo objetivo central era
libertarem-se do jugo colonialista e autodeterminarem-
se como países independentes.
O fracasso da revolução socialista alemã, em 1919,
a guerra civil na nova União Soviética e sua dificuldade
em afirmar-se contribuíram fortemente para que a onda
socializante perdesse ímpeto, mas a convulsão interna
nos países europeus não amainou e preparou o terreno
para que o fascismo italiano e o nacional-socialismo ale-
mão fossem vitoriosos na década seguinte.
No Brasil, a década de 20 foi pródiga de aconteci-
mentos, mostrando que a chamada República Velha es-
tava com seus dias contados. Em 1.922, assume Artur

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CONTEXTO HISTÓRICO 17

Bernardes, em substituição a Epitácio Pessoa, sob esta-


do de sítio, em virtude do movimento militar de 5 de
julho, iniciado no Forte de Copacabana e se estendido
pela Vila Militar e na Escola Militar do Realengo.
As insurreições político-militares se sucederam e
a mais importante foi a de 1924, em que os amotinados
chegaram a ocupar parcialmente a cidade de São Paulo.
A conseqüência mais significativa dessa insurreição foi
o fato de que dela nasceu a famosa Coluna Prestes, cujas
andanças até hoje despertam curiosidade e controvérsias.
De uma maneira geral, o ideário político defendi-
do pelos insurretos era um liberalismo pouco consisten-
te em que o apelo à democracia e à soberania popular
não dissimulava a verdadeira luta – a luta entre facções
políticas burguesas, ansiosas por afirmarem sua hegemo-
nia num país que se transformava1.
Transformações que ocorriam em sua infra-estru-
tura pela industrialização do país que se acelerara depois
do final da I Guerra Mundial. Com o novo surto de in-
dustrialização e os problemas vividos pela Europa pós-
guerra se incrementa o fluxo de imigrantes, iniciado no
final do século XIX. Com eles, novas idéias e novos ide-
ais de justiça social e de organização da sociedade. As
idéias socialistas se corporificam na criação, em 1922, do
Partido Comunista Brasileiro, cuja presença no cenário
político brasileiro será marcante, embora tenha sido
mantido como partido clandestino durante quase toda
a sua existência.

1
Ver sobre a rebelião de 24 o livro de Corrêa, Anna Marti-
nez, A rebelião de 1924 em São Paulo. S.P. Hucitec, 1976.

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As disputas regionais eram uma constante no in-


terior do partido hegemônico, o Partido Republicano,
cuja organização federativa favorecia as disputas entre os
estados com a predominância dos mais fortes.
O Partido Republicano Paulista (PRP) e o Parti-
do Republicano Mineiro (PRM) durante muito tempo
conservaram em suas mãos o poder de decisão – a isso
se chamou a política do “café com leite”. Artur Bernar-
des (1922-1926) e Washington Luiz (1926-1930) serão os
últimos presidentes e o canto de cisne da República Ve-
lha. A revolução de 30, comandada por Getúlio Vargas,
que permanecerá no poder, criando em 1937 o chama-
do Estado Novo, pôs um fim ao Brasil que nascera da
proclamação da República e inicia um novo ciclo de
nossa história, cujo término coincide com o fim da II
Guerra Mundial e com a emergência de um novo surto
de democracia, liberdade e justiça social.2
Contudo, a década de 20 não é apenas uma déca-
da de inquietação política, ela é também o momento em
que o país, sob a forte influência dos acontecimento
mundiais e pelo surto industrial começa a mudar sua fi-
sionomia socio-econômica, de um país rural, vivendo
quase que exclusivamente da exportação de produtos
agrícolas, especialmente o café, passa a uma incipiente,
porém forte, industrialização, que modificará profunda-
mente sua fisionomia, nas décadas seguintes.
Os problemas sociais começam a surgir; a emer-
gência do Partido Comunista, as greves, que passam a

2
Casalecchi, José Ênio, O Partido Republicano Paulista. SP. Brasi-
liense, 1987.

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CONTEXTO HISTÓRICO 19

ter daí em diante uma conotação política, falsa ou ver-


dadeira, vinculada à criação da União Soviética, põem
em guarda os conservadores. que criam duas expressões
“perigo vermelho” e “doutrinas exóticas”, de muito fu-
turo por terem sido repetidas à exaustão para desqualifi-
car as reivindicações operárias.
É de Washington Luís a afirmação de que as agita-
ções operárias, decorrentes da chamada “questão operá-
ria” que nada mais seria do que “o estado de espírito de
alguns operários e não o estado de uma sociedade”, eram
um problema de ordem pública e não de ordem social.
Em linguagem mais vulgar, traduziu-se a expressão de
Washington Luís na afirmação de que a questão operá-
ria (ou a questão social) era um problema de polícia.
A década de 20, contudo, não foi apenas rica em
acontecimentos socio-econômicos e políticos. O mun-
do cultural se agita com o término da guerra mundial e
entra em ebulição. Na Europa, a revolução que come-
çava a ocorrer, na primeira década deste século, na pin-
tura, na escultura, na literatura, no cinema, na música,
na história, bruscamente, interrompida pela guerra, re-
toma fôlego e o pós-guerra é marcado por uma ebulição
cultural em que se espelha a angústia do homem moder-
no, dividido entre o céu e a terra, utópico, sonhando
com um novo tipo de sociedade, a socialista; pessimista,
céptico e fragmentado, pelos horrores da guerra, pelas
novas técnicas e tecnologias, que parecia a muitos o ca-
minho direto para um mundo sem liberdade.
Esse homem dilacerado, porém, contraditoria-
mente, pleno de vida, experimentalista, ansioso e pron-
to para novas aventuras, expõe-se, de peito aberto nas
artes, pintura, poesia, romance, na música popular (jazz,

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especialmente) e erudita, no cinema. É o tempo do da-


daismo, do expressionismo, do surrealismo, do cubismo,
cuja revolução é tanto formal (linguagem) quanto con-
teudística. Paris volta a ser o centro do mundo cultural
e para lá acorrem jovens do mundo inteiro na ânsia da
descoberta do novo, do insólito. Lá estão, também, os
jovens brasileiros que irão transformar a paisagem cul-
tural brasileira, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,
e tantos outros, que irão se reunir em São Paulo para
deflagrar o que se denominou de movimento modernis-
ta, através da famosa Semana de Arte Moderna, realiza-
da no Teatro Municipal.
A Semana de Arte Moderna revelará alguns no-
mes que serão referência obrigatória no mundo cultural
e político das décadas a seguir. Uns (Menotti del Picchia,
Plinio Salgado, Cassiano Ricardo) buscam formular um
novo nacionalismo, isento do ufanismo vazio e provin-
ciano de Afonso Celso (Porque me ufano de meu país), porém
ligado às tradições da terra e dos costumes do país; ou-
tros, tentarão em suas obras um caráter mais universal,
mais formalista, com experiências lingüísticas que, assen-
tadas no mundo mais cosmopolita de São Paulo, procu-
ram refletir a realidade lingüística de uma região em que
os imigrantes são uma importante presença. Oswald de
Andrade com seu Marco Zero é um exemplo típico. Macu-
naima, de Mario de Andrade, é um caso especial, pois nele
se revela o velho e angustiante problema das três etnias
que nos formaram e que dão como resultado um herói
nacional sem nenhum caráter.
Tão importante quanto a Semana de Arte Moder-
na, de 1922, e quase como uma resposta às suas ansieda-
des, no Nordeste, um novo tipo de literatura surge, na

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CONTEXTO HISTÓRICO 21

qual o centro de atenção é o homem nordestino e sua


inserção num meio geográfico duro, hostil, áspero, onde
a luta pela sobrevivência é o cotidiano de milhões de
homens, mulheres e crianças, cuja esperança de vida de-
pende da chuva e dos “coronéis”.
O chamado ciclo nordestino de romances regio-
nais revela um país que grande parte da população bra-
sileira desconhecia. Não fora suficiente “Os Sertões”, de
Euclides da Cunha, para que descobríssemos o Nordes-
te, para isso foi necessário que surgissem nomes como o
de José Américo de Almeida (A Bagaceira), Amando Fon-
tes (A Rua do Siriri), José Lins do Rego, Graciliano Ra-
mos, e tantos outros.
O Brasil estava sendo reinterpretado pelos poetas
e romancistas e com eles se abria um novo caminho para
os historiadores, que aceitarão o desafio de tentar inter-
pretar e compreender esse multifacético Brasil, com no-
vas metodologias e novos instrumentos de pesquisa.
Gilberto Freyre é um desses historiadores.

GILBERTO FREYRE
E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Antes de entrarmos propriamente na análise da


obra Casa Grande & Senzala, convém, previamente, situar
o seu autor no conjunto da historiografia brasileira, da
qual o sorocabano Francisco Adolfo de Varnhagen
(1816-7188) é, a justo título, considerado o “pai”
fundador.

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22 NILO ODALIA

A importância de Varnhagen para a historiografia


brasileira deriva de, pelo menos, duas razões principais:
1o) é o primeiro historiador brasileiro a escrever duas
obras sobre o Brasil (História Geral do Brasil e História da In-
dependência do Brasil), cobrindo o período do seu descobri-
mento à independência, lastreadas, pela primeira vez,
numa pesquisa histórica documental exaustiva e compe-
tente. Pesquisador infatigável, Varnhagen dedicou toda
a sua vida aos arquivos, brasileiros e estrangeiros, desco-
brindo e revelando uma documentação preciosa sobre a
nossa história;
2o) é o primeiro historiador de uma corrente historio-
gráfica, cuja problemática central gira em torno dos te-
mas ligados à constituição da Nação brasileira, do papel
do Estado numa nação emergente e, finalmente, sobre
o homem brasileiro, cuja característica básica é o de ser
o produto de três etnias – a branca, a índia e a negra. Na
análise deste último problema, Varnhagen dará uma
atenção especial à miscigenação, que será um dos temas
mais caros a Gilberto Freyre.
Até a década de 30, mais ou menos, a problemáti-
ca inaugurada por Varnhagen será uma constante em
nossa historiografia. Com os historiadores que surgem,
nessa época, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de
Hollanda e Gilberto Freyre ocorre, segundo José Honó-
rio Rodrigues, uma ruptura. Prefiro nuançar a afirma-
ção de José Honório Rodrigues dizendo que, pelo me-
nos no que tange a Gilberto Freyre, a ruptura é antes
metodológica do que temática. E isto por uma razão
simples, todos os grandes temas de uma sociedade e cul-
tura híbridas já estão presentes em Varnhagen, o que se
altera, de maneira substancial e mesmo revolucionária,

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CONTEXTO HISTÓRICO 23

é a maneira pela qual Freyre vai analisar os fenômenos


de integração racial e cultural e a documentação, em seu
sentido mais lato, sobre a qual apoiará sua análise.
Não serão apenas os documentos escritos que ser-
virão a Freyre para compor a paisagem da sociedade hí-
brida brasileira; sua análise abrangerá do documento es-
crito ao utensílio domiciliar, da alimentação ao gesto
familiar, da religião ao apetite sexual, do objeto pessoal
aos instrumentos de trabalho, das pequenas coisas que
fazem o cotidiano do homem e da mulher, que revelam
a sua intimidade, à estrutura psicológica de uma etnia3.
Gilberto Freyre antecipa, de algumas décadas, o que se
tornará, depois dos anos 70, uma constante do pensa-
mento historiográfico da História Nova, originária da Es-
cola dos Annales 4.
Uma outra característica a ser observada em nos-
so autor é a sua linguagem, sua escritura. Seu estilo é
quase a de um romancista, por isso já foi comparado a
Marcel Proust, o escritor francês, que recupera um tem-
po e um mundo perdidos através do exercício da memó-
ria. Casa Grande & Senzala, sem dúvida, guarda em si o
tom melancólico e nostálgico da ressurreição (da revi-
vência) de um passado extinto. Daí, em parte, a engano-

3
Não se pode esquecer que Gilberto Freyre escreveu Ordem e
Progresso, utilizando para tanto questionários por ele ela-
borados, cerca de 1.000, embora nem todos tenham sido
respondidos.
4
Ver Burke, Peter. A Escola dos Annales – 1929 – 1989 – A Re-
volução francesa da Historiografia. Trad. de Nilo Odalia. SP. Edi-
tora Unesp., 1991.

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24 NILO ODALIA

sa facilidade da leitura das obras de Gilberto Freyre. Ele


parece ser transparente demais. É uma ilusão contra a
qual devemos nos prevenir.
Mas a sua escritura não é apenas isso, ela é algo
mais; às vezes, pode parecer que utiliza em excesso o re-
curso do antagonismo entre as idéias, as coisas e os ho-
mens, o que pode, numa primeira leitura, dar a impres-
são de que seu pensamento é inconsistente por ser
contraditório; chocante em algumas afirmações, exces-
sivamente audacioso e confiante nas análises comparati-
vas dos traços psicológicos de povos e etnias e de um
ecletismo metodológico (aliás confessado sem mea-culpa)
que arrepia os dogmáticos de plantão, Gilberto Freyre
construiu uma obra na qual se fundem, de maneira ori-
ginal, harmoniosa e consistente, o estilo de romancista
e a mente de um verdadeiro cientista social.

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CAPÍTULO II

NOS TRÓPICOS,
UMA NOVA SOCIEDADE

Ao escrever Casa Grande & Senzala, Gilberto


Freyre partia de uma premissa básica, que era também
uma certeza: a colonização portuguesa, no Brasil, fora
um sucesso, pois dela nascera uma sociedade nova e di-
ferente, com características próprias e peculiares.
Esta nova sociedade criada pelo concurso de três
diferentes etnias e civilizações – a negra, a índia e a bran-
ca – possuía também uma outra originalidade, a de ter
florescido no meio tropical. Era, como o diz o enuncia-
do do capítulo primeiro de Casa grande & Senzala, uma
“sociedade agrária, escravocrata e híbrida”, tornada pos-
sível, entre outras razões, que adiante veremos, pela ex-
periência portuguesa de colonização na Índia e na
África.

“Quando em 1.532 se organizou econômica e ci-


vilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século
inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de de-

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26 NILO ODALIA

monstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida


tropical”1.

A afirmação tão peremptória de Gilberto Freyre


sobre a existência de uma sociedade constituída no Bra-
sil, isto quer dizer nos trópicos, é uma resposta direta
aos cientistas europeus, como Lapouge, Buckle e tantos
outros, que, no século XIX, não admitiam a possibilida-
de de terem sucesso as tentativas de constituição de
sociedades estáveis nos trópicos; e indireta, a todos os
cientistas brasileiros, antropólogos, sociólogos e, espe-
cialmente, historiadores, que ou concordavam com as
opiniões expressas pelos cientistas europeus, ou tentan-
do superá-las buscavam formas de ação política, através
da atuação do Estado, visando constituir uma sociedade
brasileira, de características européias, mas sempre como
uma projeção futura, e não uma realidade atual.
Não basta, contudo, a afirmação da existência de
uma sociedade brasileira, construída pela “aptidão” dos
portugueses em viver nos trópicos. É fundamental que
se apresentem razões e argumentos que demonstrem que
a sociedade colonial brasileira era algo mais do que ape-
nas uma massa heterogênea de homens e mulheres, de
diferentes etnias, sem vínculos sociais mais significativos
entre si2. Para negros e índios, apenas os que decorriam

1
Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala – Formação da Família
Brasileira. 17a ed. RJ., José Olympio Editora, 1975, p. 4. To-
das as referências a textos do autor terão como fonte essa
edição do livro. Os números pospostos às citações referem-
se aos números das páginas dessa edição.

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NOS TRÓPICOS , UMA NOVA SOCIEDADE 27

do regime de trabalho e da servidão e, quando brancos,


da dependência em relação aos senhores de escravos, ou
da metrópole.
A resposta de Gilberto é pronta e rápida ao dar as
razões e fundamentos da aptidão portuguesa em coloni-
zar os trópicos. Ela pode parecer a uma leitura menos
atenta muito simples, para não dizer simplória, e, até
certo ponto, surpreendente, pois amalgama, sem pre-
paração teórica prévia, fatores diversos e de níveis
distintos.
Em primeiro lugar, o fator econômico, a agricul-
tura, base da nova sociedade, em seguida, as condições
que a tornaram possível: “a estabilidade da família patriarcal,
a regularidade do trabalho por meio da escravidão” e, como novi-
dade absoluta, “a união do português com a mulher índia, incor-
porada assim à cultura econômica e social do invasor” (p. 4). Para
o raciocínio do escritor, contudo, a enumeração de for-
ma tão imediata dos fatores gerais que contribuíram para
a criação dessa sociedade agrária, escravocrata e híbrida,
nos trópicos, é apenas um artifício metodológico que lhe
permite, em seguida, ir discriminando com abundância
de detalhes outras matrizes em que se formou essa apti-
dão portuguesa.
A preocupação central de Freyre é a de transmi-
tir ao seu leitor uma visão global e integrada da situação
do colonizador português ao estabelecer-se numa nova

2
Sobre uma visão bastante pessimista da sociedade colonial
brasileira, ver ABREU, Capistrano de. Capítulos de História
Colonial (1500-1800). 6ª ed. Revista, anotada e prefaciada por
José Honório Rodrigues. RJ., Civilização Brasileira, 1976.

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28 NILO ODALIA

terra, cuja excentricidade lhe é menos penosa do que a


outros colonizadores europeus, pois ele é, por sua for-
mação histórica, um homem europeu em que a África,
de diferentes maneiras, exerceu uma influência prepon-
derante. Por isso, o conceito de antagonismo3 é um dos
conceitos-chave para a compreensão de Casa Grande &
Senzala. Antagonismo que nasce dessa complexa mistura
de Europa e África que resulta, expressão surpreenden-
te desse autor, numa “indecisão étnica e cultural”, como que a
bicontinentalidade “correspondesse em população assim vaga e
incerta à bissexualidade no indivíduo” (p. 6). É ele ainda que
permite compreender o caráter especial que assumiu a
colonização portuguesa, resultando na “formação sui generis
da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ain-
da hoje sobre antagonismos” (p. 8).
Uma vez assentada a premissa maior, a do suces-
so do povo português em criar um novo tipo de socie-
dade nos trópicos, empresa na qual falharam outros po-
vos europeus, cabe ao nosso autor a tarefa de detalhar e
demonstrar como isso foi possível.
Na formação histórica do povo português deve
destacar-se a presença do semita, cujas características po-
dem ser encontradas no “português navegador e cosmopolita do
século XV”: mobilidade, adaptabilidade, de fácil aclimata-

3
Ao enfatizar o conceito de antagonismo, Gilberto Freyre
está se opondo a Varnhagen e Oliveira Vianna, cuja preo-
cupação fundamental é o conflito. Esses autores, especial-
mente Varnhagen, temiam que os conflitos, quaisquer que
fossem suas causas, provocassem a fragmentação política e
territorial do país.

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NOS TRÓPICOS , UMA NOVA SOCIEDADE 29

ção em meios geográficos diferentes e, não menos impor-


tante, capazes de um “realismo econômico que desde cedo corrigiu
os excessos de espírito militar e religioso na formação brasileira” (p. 8).
Por outro lado, uma nação cuja população era tão
rala e escassa teria que superar a falta de homens por sua
mobilidade, que não seria suficiente, não estivesse ela
apoiada numa outra característica do português, a
miscibilidade. Miscibilidade possível graças a uma mo-
ral sexual “mais frouxa, mais relassa que a dos homens do Norte”,
mas que, na colônia, por falta de mulheres brancas, não
está apenas adstrita à necessidade biológica natural, po-
rém, também, à uma política deliberada e incentivada
pelo governo português.

“A escassez de capital-homem, supriram-na os portu-


gueses com extremos de mobilidade e miscibilidade: domi-
nando espaços enormes e onde quer que pousassem, na
África ou na América, emprenhando mulheres e fazendo
filhos, numa atividade genésica que tanto tinha de violen-
tamente instintiva da parte do indivíduo quanto de políti-
ca, de calculada, de estimulada por evidentes razões econô-
micas e políticas da parte do Estado” (p. 8).

Se o intercurso sexual com a índia e a negra trou-


xe para o português colonizador a possibilidade de su-
prir as deficiências demográficas da metrópole, o clima,
o regime de águas, a fauna e a flora da colônia, obrigou-
o a transformar-se de maneira radical a fim de adaptar-
se às novas condições mesológicas do espaço territorial
que conquistara. Assim, um povo de pouca tradição ru-
ral soube como criar como suporte para a colonização,
e não simplesmente a exploração comercial dos recur-

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30 NILO ODALIA

sos naturais do Brasil, uma infra-estrutura de base agrá-


ria permanente, na qual, se a mão de obra era escrava,
índia ou negra, ele conservava para si a gerência do em-
preendimento, de caráter essencialmente particular, sus-
tentado na organização familiar.
Ao Estado cabia estabelecer as normas e as exigên-
cias; ao proprietário, a obrigação de investir, povoar e
defender militarmente a colônia.

“A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado


nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século
XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade pro-
dutiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas,
compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se
desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colo-
nial mais poderosa da América” (p. 18-9).

Fixar-se à terra, esta a grande diferença entre o


colonizador português e os outros povos que também
se aventuraram em expedições d´além mar e esta fixa-
ção significou na prática uma profunda transformação
de hábitos e costumes sexuais, religiosos e alimentares.
Uma das originalidades da interpretação de
Freyre está exatamente nessa maneira peculiar de asso-
ciar antagonicamente, positiva ou negativamente, os di-
versos elementos da realidade social, buscando neles
uma explicação do passado brasileiro, que se amplia ao
buscar compreender também seus efeitos em nossa situ-
ação presente.
É à alimentação precária, e pouco diversificada,
que atinge indistintamente senhores e escravos, em ra-
zão da monocultura, por exemplo, que ele atribui as

02.p65 30 19/7/2001, 11:57


NOS TRÓPICOS , UMA NOVA SOCIEDADE 31

“importantes diferenças somáticas e psíquicas” existen-


tes “entre o europeu e o brasileiro” e não pela miscige-
nação e pelo clima – como pretendem muitos. Mas foi
dessa mesma economia latifundiária, assentada na
monocultura e na mão de obra escrava, que se originou
a relativa estabilidade da colônia, em contraste com o
que ocorria nos países vizinhos. Mas ele vai mais longe
e confere ao abuso de jejuns religiosos uma parte da res-
ponsabilidade por ser o brasileiro “um dos povos modernos
mais desprestigiados na sua eugenia e mais comprometidos na sua ca-
pacidade econômica pela deficiência de alimento” (p. 42).
Ainda no capítulo da alimentação, ao qual Freyre
dá um relevo especial, é necessário ressaltar a influência
negra, por duas razões principais: em primeiro lugar,
por ter trazido para a colônia novos costumes alimenta-
res, por exemplo os vegetais; em segundo lugar, por ter
um regime alimentar mais equilibrado, em virtude de ser
escravo, uma mão de obra que deveria ser preservada,
por ser cara. Se o escravo deveria ser preservado e sendo
duras as condições de trabalho, nada mais adequado do
que uma alimentação energizante e revigorante. Nas
palavras de Gilberto Freyre:

“A alimentação do negro nos engenhos brasileiros po-


dia não ser um primor de culinária; mas faltar nunca fal-
tava. E sua abundância de milho, toucinho e feijão reco-
menda-a como regime apropriado ao duro esforço exigido
do escravo agrícola” (p. 44).

Ainda sobre o negro e a alimentação, diz-nos o


autor que o escravo por ser o “melhor elemento nutri-
do” da sociedade patriarcal legou aos seus descendentes

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32 NILO ODALIA

bons costumes alimentares, “explicando-se em grande parte pelo


fator dieta (...) serem em geral de ascendência africana muitas das me-
lhores expressões de vigor ou de beleza física em nosso país: as mula-
tas, as baianas, as crioulas, as quadraronas, ....” (p. 44).
Na seqüência de seu pensamento, estabelece uma
nítida diferença entre o negro e os mestiços das diversas
etnias, ressaltando ainda uma vez a superioridade daque-
le em termos de energia física, pelo menos, até a aboli-
ção, quando então a má alimentação passou a ser um tra-
ço comum a todos.

“Os escravos negros gozaram sobre os caboclos e


brancarões livres da vantagem de condições de vida antes
conservadoras que desprestigiadoras de sua eugenia: pude-
ram resistir melhor às influências patogênicas, sociais e do
meio físico, e perpetuar-se assim em descendências, mais
sadias e vigorosas” (p. 46-7).

Talvez seja conveniente aqui lembrar que, no Pre-


fácio à 1a. edição, nosso autor confessa que depois de
viver mais de 3 (três) anos nos Estados Unidos, viu des-
cerem de uma nave brasileira marinheiros, que lhe de-
ram a impressão de serem caricaturas de homens e acres-
centa que lhe faltou, na ocasião, quem o alertasse “como
em 1929 Roquete Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de
Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivídu-
os que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doen-
tes”.4 E completa seu pensamento declinando seu débito
em relação a Franz Boas que o ensinou a diferenciar en-

4
Prefácio à 1a ed., op. cit., p. lvii.

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NOS TRÓPICOS , UMA NOVA SOCIEDADE 33

tre raça e cultura, diferença sobre a qual repousa toda a


estrutura de Casa Grande & Senzala5, segundo suas própri-
as palavras.
Em cada linha desse livro podemos facilmente
constatar o peso dessa diferença, que lhe permite inovar
na maneira bastante peculiar de apresentar os fundamen-
tos de sua interpretação da sociedade híbrida brasileira.
Já dissemos, em nossa introdução, e agora repetimos,
que a novidade freiriana não estava na temática, mas sim
em sua metodologia e no arranjo singular que seu racio-
cínio arma para a demonstração de suas teses.
Depois de nos falar sobre as vantagens do negro
em relação aos demais componentes étnicos da socieda-
de patriarcal, seu raciocínio volta-se para as razões da
decadência física do brasileiro, para a qual atribui um
papel destacado à sífilis, “a doença por excelência das casas gran-
des e das senzalas”, cuja disseminação era facilitada pelo fato
de que as marcas por ela deixada no corpo eram um si-
nal de orgulho, tal como uma condecoração de guerra.
Miscigenação e sifilização correram paralelas no
decurso de nossa história; às vantagens da primeira
corresponderam, infelizmente, as desvantagens da outra,
pois, depois da má-alimentação, a sífilis talvez tenha sido
“a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia
econômica do mestiço brasileiro” e numa frase de efeito afirma:

“Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização


andam juntas: o Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado
antes de se haver civilizado” (p. 47).

5
Idem, p. lviii.

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34 NILO ODALIA

Miscigenação e sifilização iniciam-se no Brasil no


alvorecer de seu povoamento, pois ambas contribuíram
para a formação da única sociedade possível, nestas pa-
ragens tropicais, a híbrida. E mais do que isso, os primei-
ros colonizadores que se perderam no meio dos índios,
prepararam o caminho para os novos colonizadores “ain-
da virgens de experiências exóticas”. Contudo, a sifilização do
país não foi obra apenas dos portugueses, mas teve tam-
bém a contribuição de aventureiros espanhóis e france-
ses que “acabavam muitas vezes tomando gosto pela vida desregrada
no meio de mulher fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros”.
Nessa corrente de surpresas que é o pensamento
de Gilberto Freyre, não apenas por sua linguagem que
nos soa suavemente desbocada, por ser um cientista so-
cial que a emprega, ele nos conduz da miscigenação e
sifilização ao sadismo e masoquismo.
O primeiro uma das características da casa gran-
de, onde o mandonismo patriarcal se faz sentir sobre os
negros e as negras, influenciando o comportamento dos
filhos, cujo sadismo se exercerá quer sobre as negras quer
sobre o “moleque leva-pancadas”, muitas vezes a vítima
dos primeiros impulsos sexuais do jovem senhor. Po-
rém, esse sadismo se origina do intercurso sexual do con-
quistador branco com a índia, primeiramente, e com a
negra, posteriormente, tendo como contrapartida o ma-
soquismo de ambas. E vai mais longe nosso autor, que
vê na submissão da mulher na sociedade brasileira uma
herança desse sadismo, cuja influência se estende ao cam-
po social e político.
Daí que de alguma maneira nos atraia o dirigente
de punho firme, Floriano Peixoto, por exemplo, e ser
da tradição conservadora brasileira um mandonismo sá-

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NOS TRÓPICOS , UMA NOVA SOCIEDADE 35

dico que se recobre de grandes palavras o “princípio de


Autoridade”, ou a “defesa da Ordem”6.

“Entre essas duas místicas – a da Ordem e a da Li-


berdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se
vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente
saída do regime de senhores e escravos. Na verdade, o equi-
líbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e pro-
fundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, douto-
res e analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente
européia e outros de cultura principalmente africana e
ameríndia” (p. 52).

Não há, para o nosso autor, uma predominância


da cultura européia na formação de nossa sociedade.
Não nos esqueçamos que ela é uma sociedade híbrida,
na qual a tradição européia... “Em vez de ser dura e seca, ran-
gendo do esforço de adaptar-se a condições inteiramente estranhas, a
cultura européia se pôs em contacto com a indígena, amaciada pelo
óleo da mediação africana”.7
Esse amalgama de culturas, fez-se sentir até mes-
mo entre os jesuítas, cuja catequese adaptou-se às nossas
condições, pois a cristianização dos indígenas se fez atra-
vés de cantos, músicas e danças, enfatizando o lado mís-
tico e festivo do cristianismo, embora estejam na África
e no “voluptuoso misticismo dos árabes” as raízes dos Exercícios
Espirituais jesuíticos.

6
O assunto é retomado e ampliado em Ordem e Progresso.
7
Casa Grande & Senzala, p. 52

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36 NILO ODALIA

Um novo mundo, um novo homem, uma nova


sociedade. O trópico de natureza exuberante e desconhe-
cida, cuja beleza feita de uma fauna, de uma flora, de
massas de água e de acidentes geográficos, de maneira
geral, profundamente diferentes dos da Europa, camu-
fla um ecossistema no qual o homem europeu deve adap-
tar-se, modificando todos os seus hábitos e costumes de
vida anterior. Sejam eles alimentares ou sexuais, pois é
através destes que se intercomunica com as mulheres
índia e negra, ao mesmo tempo em que assegura, pela
escravidão, uma mão de obra necessária para o seu lati-
fúndio. Com isso um novo homem nasce, mais adaptá-
vel ao meio ambiente e com uma cultura que se
miscigena como ele próprio. No seio dos antagonismos
que brota quase naturalmente da mistura de raça e cul-
tura surge uma nova sociedade – híbrida, estável,
maleável e adaptada aos trópicos.

“Considerada de modo geral, a formação brasileira tem


sido... um processo de antagonismos. Antagonismos de eco-
nomia e cultura. A cultura européia e a indígena. A euro-
péia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrá-
ria e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege.
O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de enge-
nho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mas-
cate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o anal-
fabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o
mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.” (p. 53).

Neste mosaico de antagonismos permitindo e ab-


sorvendo os choques violentos atuam, entre outros fa-
tores, a miscigenação, o cristianismo lírico à portugue-

02.p65 36 19/7/2001, 11:57


NOS TRÓPICOS , UMA NOVA SOCIEDADE 37

sa8, a tolerância moral, a facilidade de comunicações en-


tre as diferentes regiões geográficas do país9, embora ti-
vesse o colonizador que lutar contra os excessos da na-
tureza.
Finalmente, não devemos esquecer que somente
após a bem sucedida colonização portuguesa no Brasil é
que se modificou de maneira radical o procedimento de
colonização européia das terras tropicais, que se reduziam,
até então, em feitorias e extração das riquezas naturais.10

8
“Sociedade que se desenvolveria defendida menos pela cons-
ciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita
e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado
em sistema de profilaxia social e política” (id., ibidem, p. 4).
9
“É verdade que agindo sempre, entre tantos antagonismos
contundentes, amortecendo-lhes o choque ou harmonizan-
do-os, condições de confraternização e de mobilidade social
peculiares ao Brasil: a miscigenação, a dispersão da herança,
a fácil e freqüente mudança de profissão e de residência, o
fácil e freqüente acesso a cargos e a elevadas posições polí-
ticas e sociais de mestiços e de filhos naturais, o cristianis-
mo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidade
a estrangeiros, a intercomunicação entre as diferentes zonas
do país. Esta, menos por facilidades técnicas do que pelas
físicas: a ausência de um sistema de montanhas ou de rios
verdadeiramente perturbador da unidade brasileira ou da re-
ciprocidade cultural e econômica entre os extremos geográ-
ficos” (id, ibidem, p. 54).
10
“Antes de vitoriosa a colonização portuguesa do Brasil, não
se compreendia outro tipo de domínio europeu nas regiões
tropicais que não fosse o da exploração comercial através
de feitorias ou da pura extração de riqueza mineral” (id.,
ibidem, p. 16)

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CAPÍTULO III

O HOMEM BRASILEIRO

Toda sociedade é híbrida, pois nenhuma das exis-


tentes permaneceu incólume às mutações raciais ou cul-
turais impostas por invasões e domínios estrangeiros, ou
pela presença ou proximidade de grupos étnica e cultu-
ralmente diferentes.
A intercomunicação étnica e cultural entre povos
diferentes é um fenômeno tão antigo quanto a existên-
cia do homem. Mesmo o mais profundo ódio, que pos-
sa existir entre povos distintos quanto as suas origens
racial e cultural, jamais impediu que ela ocorresse.
As influências, por outro lado, nunca tiveram
mão única, ela é sempre intercambiante; por mais que
um povo seja dominante sempre assimilará algo da cul-
tura e dos costumes do povo dominado.
Os povos mais antigos mostram, de maneira clara
e insofismável, a inter-relação que ocorre quando etnias,
tradições e costumes entram em contato. A assimilação
dos vencedores a sua cultura parece ter sido sempre uma
arma dos vencidos. Isto não quer dizer que a intercomu-

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40 NILO ODALIA

nicação não se faça sem conflitos e sem a presença de se-


qüelas, muitas vezes cruéis e, infelizmente, duradouras.
O racismo, o fanatismo político ou religioso, que
são algumas dessas seqüelas não são privilégios ou exclu-
sividades de um tempo, de uma região, ou de um país.
Eles se distribuem pelos quatro cantos do mundo e é,
com tristeza e comoção, que vemos, nos dias de hoje,
um renascimento dessa intolerância que surge, daquilo
que, ao contrário, deveria unir ainda mais o homem: a
intercomunicação racial e cultural.
Gilberto Freyre ao definir a sociedade que se for-
mou no Brasil como híbrida não trazia nada de novo ou
original. Ele apenas constatava que aqui nascera uma
nova sociedade, cujas características raciais e culturais se
originavam de três diferentes etnias e culturas e cujos
antagonismos que poderiam ter conduzido ao conflito
e à desinteligência, ao racismo e à intolerância, foram –
aqui está o novo – aplainados e mesmo superados pelos
atributos naturais ou históricos de cada uma das etnias
e culturas em presença, ou em função das condições
socio-econômicas em que se produziu sua interação.
Varnhagen anunciara e preconizara uma nova so-
ciedade brasileira, na qual a miscigenação deveria ser
uma preocupação do Estado, a fim de que os conflitos
raciais não assumissem o caráter violento que em outros
países predominava; sua maior preocupação era que aqui
não se reproduzisse o que acontecia nos Estados Unidos
da América1.

1
Ver VARNHAGEN, F. A de. História Geral do Brasil. 4ª ed.
R.J., J.E. & Laemmert Ltd. s.d. 5 v. e ODALIA, Nilo. As
formas do Mesmo. SP. Edunesp, 1997.

03.p65 40 19/7/2001, 11:57


O HOMEM BRASILEIRO 41

Gilberto Freyre faz a constatação de que essa so-


ciedade híbrida, antagônica, porém não violenta, já exis-
tia e que dela nascia um novo homem, fruto de cada uma
das etnias e de cada uma das culturas aqui presentes.
Cabia a ele explicitar como esse fato histórico ocorrera.

I . O INDÍGENA NA SOCIEDADE HÍBRIDA

O processo de explicitação se inicia pelo indíge-


na, o elemento autóctone da nova sociedade. Quando
aqui chegaram os portugueses, encontraram uma socie-
dade de bases rudimentares e primitivas, ao contrário
dos espanhóis que encontraram, no Peru e no México,
sociedades altamente desenvolvidas. Maias, incas e azte-
cas opuseram ao invasor uma resistência que se prolon-
gou no tempo, impedindo que lá ocorresse uma proces-
so similar de adaptação ao conseguido pelo português no
Brasil. Por outro lado, nas colônias espanholas, a cobiça
e a avidez do invasor pode, desde logo, dirigir-se ao que
mais desejavam, o ouro e a prata.
Muito depressa, o português compreendeu que as
condições de sua nova colônia não lhe permitiria viver
apenas da coleta do que lhe poderia oferecer uma natu-
reza exuberante, na qual, porém, não encontrava o que
mais ambicionava, os metais preciosos.
Frente a uma sociedade indígena nômade, que vi-
via da coleta, da caça e da pesca, ao português não res-
tou outra opção, senão a de construir uma base eco-
nômica – a agricultura ligada à cana de açúcar, que
sustentasse um processo de colonização das novas terras
conquistadas.

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42 NILO ODALIA

A frágil oposição do indígena, que, na expressão


do nosso autor, foi apenas uma resistência vegetal, se
expressava basicamente pelo seu retraimento para o in-
terior das matas, em razão de sua incapacidade de adap-
tar-se “à nova técnica econômica e ao novo regime moral e social”
trazidos pelo invasor português.
Nova técnica econômica que exigia o trabalho diá-
rio e constante a um homem cujas funções em sua socie-
dade eram primordialmente o de guerreiro, o de caça-
dor e o de pescador.
Novo regime moral e social que lhes era imposto
pelos portugueses, entre os quais se sobressaíam os pa-
dres jesuítas, que lhes trouxeram um novo Deus, uma
nova religião. Que não apenas tentava substituir a que
lhes era própria, mas também a destruía pelo deboche e
pelo menosprezo.
Novos costumes sociais em que a sedentarização
era um fator preponderante; em que seus hábitos, como
o de andar nu, passavam a ser ridicularizados e vistos
como um pecado a ser evitado.
O homem indígena em virtude de sua absoluta
incapacidade de adaptar-se ao mundo novo que esboça-
va ser criado pelo português, teve um papel menos im-
portante do que a mulher índia no processo de consti-
tuição do homem e da sociedade híbrida brasileira. Foi
através dela que muitas das tradições e costumes, alimen-
tos e utensílios da cultura indígena, passaram a ser inte-
grados na nova sociedade em gestação2.

2
“Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da
América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto

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O HOMEM BRASILEIRO 43

O sexo é o primeiro fato relevante, pois é a mu-


lher índia que suprirá a falta da mulher branca e será
através dela que se constituirá uma população de
mamelucos que desempenhará no futuro um papel im-
portante no desbravamento dos sertões, com a expan-
são territorial da colônia; serão eles ainda que se encar-
regarão das expedições punitivas ou para a apreensão de
mão de obra escrava indígena.
A presença das mulheres índias com seus corpos
nus e limpos desencadeia um furor sexual entre os por-
tugueses que produz, como escreve Gilberto Freyre,
uma “quase intoxicação sexual”, da qual não estavam
isentos nem mesmo os padres jesuítas.
Contudo, para Gilberto Freyre, o que mais im-
porta para o tipo de estudo que faz é o que denomina de
“cultura moral” do indígena, ou seja, as “relações sexuais
e de família; a magia e a mítica”. E isto porque são traços
que permanecem “no fundo de nossa organização social, moral e
religiosa, quebrando-lhe ou pelo menos comprometendo-lhe seriamente
a suposta uniformidade do padrão católico ou europeu” (p. 99). E

às relações de raça; dentro de um ambiente de quase reci-


procidade cultural que resultou no máximo de aproveita-
mento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo
adiantado; no máximo de contemporização da cultura ad-
ventícia com a nativa, da do conquistador com a do con-
quistado. Organizou-se uma sociedade cristã na superestru-
tura, com a mulher indígena, recém-batizada, por esposa e
mãe de família; e servindo-se em sua economia e vida do-
méstica de muitas das tradições, experiências e utensílios da
gente autóctone” (FREYRE, Gilberto, op. cit., p. 91).

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44 NILO ODALIA

isso é o fundamental para uma sociedade híbrida, anta-


gônica, porém não conflitante.

II . O PAPEL DO PORTUGUÊS

A . POSIÇÃO GEOGRÁFICA E
HETEROGENEIDADE ÉTNICA

As razões que explicam, segundo o nosso autor,


o êxito da colonização portuguesa no Brasil, estão inti-
mamente vinculadas ao processo de formação histórica
do povo português e à peculiar situação geográfica da
Península Ibérica.
No que tange à localização geográfica de Portu-
gal, uma simples olhada num mapa da Europa permite
perceber-se que esse país, como também a Espanha,
apresenta como característica marcante o de ser um pon-
to de passagem, de contato e de encontro.
A Península Ibérica é uma das portas de entrada
ou de saída da Europa, como o é a Itália, no extremo
sul. Esta uma das razões de terem sido os países dessas
duas penínsulas potências marítimas. Em tais condições
geográficas, é natural que Portugal tenha sido um terri-
tório no qual a intercomunicação entre povos diferen-
tes, quer vindos do interior da Europa, quer sejam a ela
estranhos, árabes e mouros, se efetuou tanto pacifica-
mente, por razões comerciais ou outras quaisquer, quan-
to através da violência pela conquista guerreira, num
passado remoto: visigodos, romanos ou árabes; moder-
namente, os franceses comandados por Napoleão.

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O HOMEM BRASILEIRO 45

“Predisposto pela sua situação geográfica a ponto de


contato, de trânsito, de intercomunicação e de conflito entre
elementos diversos, quer étnicos, quer sociais, Portugal acu-
sa em sua antropologia, tanto quanto em sua cultura, uma
grande variedade de antagonismos, uns em equilíbrio, ou-
tros em conflito. Esses antagonismos em conflito são ape-
nas a parte indigesta da formação portuguesa: a parte
maior se mostra harmoniosa nos seus contrastes, forman-
do um todo social plástico, que é o carateristicamente por-
tuguês” (p. 201).

Essa plasticidade do povo português, insistente-


mente utilizada por Gilberto Freyre para explicar sua
capacidade de absorção de conflitos, através de seu espí-
rito conciliador e tolerante, está intimamente associada
à heterogeneidade étnica e cultural do povo português
que, por sua vez, vincula-se às características geográficas
de Portugal. Há como que uma “indecisão do peninsu-
lar entre a Europa e a África” (p. 6), pois desde o paleo-
lítico e o paleolítico superior, passando pelos períodos
neoneolítico e o neolítico, se sucederam invasões de po-
vos vindos da África, cujos traços étnicos e culturais, já
na idade de bronze, na ausência de novas invasões, se
sedimentaram.

“No período neoneolítico e neolítico continua na


Península o íntimo contato entre a Europa e a África.
Segue-se um período – o da idade de bronze – que alguns
consideram de estabilização. O homem da Península
passado pela primeira fervura de miscigenação, teria sido
deixado a esfriar por alguns séculos, sem invasões africa-
nas ou do Norte que perturbassem o processo como que de

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46 NILO ODALIA

endurecimento de cultura e de definição do tipo físico.”


(p. 201).

Contudo, os contatos com povos de fora não pa-


raram, sejam por meio de novas invasões, sejam por ra-
zões comerciais ou de navegação. Dessa maneira, gregos,
cartagineses e celtas contribuíram para que o povo por-
tuguês, quando da invasão dos romanos, apresentasse
uma dualidade de formas de cultura, “sendo entretanto pro-
vável que o tipo moreno e de cabelo crespo fosse o mais caraterístico,
encarnando formas de cultura porventura mais mediterrâneas do que
nórdicas; mais africanas do que européias” (p. 202).
O que o autor deseja ressaltar e enfatizar é que a
característica básica do povo português é não possuir
“nenhum exclusivismo de tipo no passado étnico” e que “a sua an-
tropologia (é) mista desde remotos tempos pré e proto-históricos; (e
complementarmente) a extrema mobilidade que tem caraterizado
(sua) formação social”. Esta afirmação tanto vale para o pas-
sado mais remoto dos portugueses quanto ao que ocor-
reu mais modernamente com a presença de judeus,
berberes, mouros, alemães, negros, flamengos e ingleses.
Essa mescla de etnias tem como uma de suas con-
seqüências o fato de Portugal ser “o país europeu do louro tran-
sitório ou do meio-louro” e não possuir “nenhuma elite loura ou
nórdica, branca pura: nem gente toda morena e de cabelo preto. Nem
os dólico-louros de Oliveira Viana, nem os judeus de Sombart, nem
os moçárabes de Debbané, mas portugueses típicos. Gente mista na
sua antropologia e na sua cultura” (p. 202-4).
A romanização ou a latinização da Península Ibé-
rica, se não deixou traços sensíveis em sua composição
étnica, pois sua influência foi mais de caráter econômi-
co e político, trouxe ao povo vencido as vantagens de

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O HOMEM BRASILEIRO 47

uma técnica superior de trabalho que se traduziu em es-


tradas, termas, aquedutos, arcos, fábricas de louças, a
exploração do seu subsolo (minas) e novas formas de
habitação. Muitas instituições tomaram as feições roma-
nas e a fala latinizou-se e os deuses romanos foram in-
troduzidos e aceitos.
Depois dos romanos vieram os alanos, os vânda-
los, os suevos e os visigodos, sendo que estes últimos
permaneceram dominantes por cerca de três séculos,
sem que destruíssem as estruturas latinas deixadas pelos
romanos, antes adaptando-se a elas e, em especial, ao
Direito romano.
A longa e exaustiva peregrinação do nosso autor,
assinalando cada um dos povos e cada uma das etnias que
estão à raiz da formação do povo português, tem como
objetivo central demonstrar que sua “aptidão” para colo-
nizar os trópicos é decorrente dele ser constituído por
“gente mista na sua antropologia e na sua cultura”. “Gente mista”,
expressão que eqüivale a dizer não existir predominân-
cia marcante de nenhuma das etnias ou culturas que a
formaram. Nem o tipo negróide (africano) nem o tipo
louro (europeu), nenhum dos dois firmou-se como o
tipo predominante, pois como no Brasil, onde são mais
freqüentes, o “louro transitório, o meio-louro e o falso
louro” (p. 206) já existiam em Portugal.
Não havendo um tipo predominante, cada uma
das etnias que colaboraram na formação do povo portu-
guês deixaram traços genéticos que o predispunham não
só a mobilidade – contribuição dos semitas –, mas, fun-
damentalmente, a uma fácil adaptação a novos meios
geográficos e a novas condições de vida. Sua adaptabili-
dade se concretiza em todos os setores da vida, do sexo

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48 NILO ODALIA

à alimentação, da conquista de espaços à criação de um


estilo de vida próprio e peculiar3.

B . O PAPEL DA RELIGIÃO CATÓLICA


E DE SUA HIERARQUIA

Nessa mistura de raças e culturas, um ponto


enfatizado, por nosso autor, é a inexistência de antago-
nismos provocados pela religião. Mesmo a adoção do
catolicismo não correspondeu a um repúdio total dos
deuses romanos que haviam penetrado profundamente
nos sentimentos religiosos da “população indígena”. Os no-
vos santos católicos deles tomaram muitos de seus atri-
butos e semelhanças para se tornarem populares (p. 204).
Se os invasores arianos, por um lado, converteram-se ao
catolicismo, abandonando suas crenças religiosas origi-
nais, legaram a Portugal, por outro, costumes que “cria-
riam definitivas raízes na antiga província romana”. En-
tre as influências provocadas pelo Direito romano e
pelos costumes arianos, imiscuiu-se de maneira sutil uma

3
“A colonização do Brasil se processou aristocraticamente –
mais do que a de qualquer outra parte da América.... Mas
onde o processo de colonização européia afirmou-se essen-
cialmente aristocrático foi no norte do Brasil. Aristocráti-
co, patriarcal, escravocrata. O português fez-se aqui senhor
de terras mais vastas, dono de homens mais numerosos que
qualquer outro colonizador da América. Essencialmente
plebeu, ele teria falhado na esfera aristocrática em que teve
de desenvolver-se seu domínio colonial no Brasil. Não fa-
lhou, antes fundou a maior civilização moderna nos trópi-
cos” (idem, ibidem, p. 190).

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O HOMEM BRASILEIRO 49

terceira influência, o Direito Canônico, cujo efeito foi


o de amaciar os antagonismos entre aquelas. Com isso:

“Estabeleceu-se uma nobreza episcopal com gestos de


quem abençoa ou pacifica, mas na verdade de quem manda
e domina. Domínio efetivo, através da autoridade conferida
aos bispos de decidirem em causas civis” (p. 206).

Isto quer dizer que, em Portugal, os padres obti-


veram não apenas prestígio místico e moral, como tam-
bém o jurídico, além de tomarem para si grande parte
do poder político e intelectual. É ainda em terras portu-
guesas que se formam ordens religiosas que eram tam-
bém militares e que tiveram grande relevância nas guer-
ras de reconquista das terras aos mouros, do que se
aproveitaram para se tornarem grandes latifundiários. Aí
está como que o início do tipo de colonização latifundi-
ária e semi-feudal realizada no Brasil pelos portugueses
(p. 206-7). A diferença entre uma e outra, porém, reside
no fato de que a colonização, no Brasil, foi realizada por
particulares e aos padres coube vincular-se ao latifúndio
como um dos tantos agregados ao senhor de engenho.
Coube às ordens religiosas, também, um papel de-
cisivo na reorganização econômica das terras retomadas
aos mouros e na reorganização política de populações
tão heterogêneas. Com isso a nação portuguesa consti-
tuiu-se religiosamente. E diz mais nosso autor, quando
afirma que “por tolerância política da maioria” duas grandes
dissidências permaneceram intocadas, os judeus e os
mouriscos. Mas essa tolerância terminou, pelo menos
em relação aos judeus, quando estes tornaram-se “os deten-
tores das grandes fortunas peninsulares” . E completa seu pensa-

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50 NILO ODALIA

mento afirmando: “Foi quando a maioria se apercebeu de que sua


tolerância estava sendo abusada. Pelo menos pelos judeus” (p. 207).
A conseqüência maior desse enriquecimento dos
judeus e do ódio que despertou foi a criação do Tribu-
nal do Santo Ofício, cujas funções tanto incluíam o exa-
me das consciências como o exame minucioso dos bens
que haviam acumulado (p. 207-8).
Contudo, segundo nosso autor o ódio verdadeiro
foi aquele que o português sentiu em relação ao mouro,
que ele compara ao ódio do colonizador português ao
bugre ou ao herege, principalmente em relação este. Pois
contra este conjugaram seus esforços para expulsá-los
jesuítas e senhores de engenho. Como diz Gilberto:

“Sem esse grande espantalho comum talvez nunca se


tivesse desenvolvido “consciências de espécie” entre grupos
tão distantes uns dos outros, tão sem nexo político entre si,
como os primeiros focos de colonização lusitana no Brasil.
A unificação moral e política realizou-se em grande parte
pela solidariedade dos diferentes grupos contra a heresia,
ora encarnada pelo francês, ora pelo inglês, ou holandês; às
vezes, simplesmente pelo bugre” (p. 192).

Segue-se daí que o ódio se manifesta contra o pe-


cado e não contra o homem pecador. O que se busca
evitar é que na colônia entre o pecado, pois este é verda-
deiramente o inimigo. Não o indígena ou o estrangeiro,
qualquer que seja sua etnia ou cor4.

4
“Seu ódio (o dos padres) é profilático. Contra o pecado e não
contra o pecador, diria o teólogo. É o pecado, a heresia, a

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O HOMEM BRASILEIRO 51

“Na falta de sentimento ou da consciência da superio-


ridade da raça, tão salientes nos colonizadores ingleses, o
colonizador do Brasil apoiou-se no critério da pureza da
fé. Em vez de ser o sangue foi a fé que se defendeu a todo
transe da infecção ou contaminação com os hereges. Fez-se
da ortodoxia uma condição da unidade política. Mas não
se deve confundir esse critério de profilaxia e de seleção, tão
legítimo à luz das idéias do tempo como o eugênico dos po-
vos modernos, com a pura xenofobia” (p. 195-6)

III . O PAPEL DO NEGRO

A grande importância atribuída por GF. à presen-


ça do escravo negro na sociedade híbrida brasileira
explicita-se, materialmente, desde logo, por dedicar-lhe
dois dos cinco capítulos de sua obra. Este, contudo, é
apenas um sinal visual imediato do quanto nosso autor
é sensível ao papel exercido pelo negro na constituição
de nossa sociedade e na formação do homem brasileiro.
Influência que tem origem nos peitos da negra ama-de-
leite que sugados pelo bebê branco vão condicionar sua
vida sexual futura.
Contudo, o que realmente interessa ao escritor
pernambucano é mostrar e demonstrar em quê e no
como o negro acabou por se constituir num importante

infidelidade que não se deixa entrar na colônia, e não o es-


trangeiro. É o infiel que se trata como inimigo no indígena,
e não o indivíduo de raça diversa, ou de cor diferente” (idem,
ibidem, p. 193).

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52 NILO ODALIA

componente na criação do homem brasileiro. Não ape-


nas na economia da sociedade em gestação, aspecto que
menos interessa a Gilberto Freyre, nem sua contribui-
ção à vida estética da nova sociedade5. O que realmente
lhe interessa é demonstrar a presença marcante e decisi-
va do negro no que hoje é o homem brasileiro. Não é
por outra razão que inicia o IV capítulo de Casa Grande
& Senzala, com esta afirmação categórica:

“Todo o brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz


na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gen-
te de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a som-
bra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No
litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul e em Minas
Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou
vaga e remota, do africano” (p. 283)

Se lhe interessa menos as contribuições estéticas e


econômicas do negro, embora sem despreza-las ou
desconhecê-las, restam como principais objetivos de aná-
lise sua contribuição biológica e cultural. Não é suficien-
te atentar para o fato de que em quase todos os brasilei-
ros de hoje a “sombra” do negro é facilmente detectável,
é preciso limpar essa contribuição de todo biologismo

5
“Não nos interessa, senão indiretamente, neste ensaio, a
importância do negro na vida estética, muito menos no
puro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretan-
to, recordar que foi imensa. No litoral agrário, muito maior,
ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido,
que a do português” (idem, ibidem, p. 284).

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O HOMEM BRASILEIRO 53

que vê no negro um ser inferior, física e intelectualmen-


te, quer em relação ao indígena ou ao branco português.
Em sua valorização do negro, numa longa digres-
são, apoiada em autores diversos, Gilberto Freyre afir-
ma a superioridade negra em relação ao indígena. Essa
superioridade se afirma tanto no plano cultural6 quanto
nas características físicas, que são muito mais adequadas
ao clima tropical7.
O mesmo raciocínio se aplica em relação branco,
pois este, de maneira alguma, apresenta superioridade
física ou mental sobre o negro. Sua demonstração é ex-
tensa e exaustiva e o fio de argumentação segue a técni-
ca de contrapor experiências distintas de diferentes ci-
entistas que se contradizem.

6
“ Porque nada mais anticientífico que falar-se da inferiori-
dade do africano em relação ao ameríndio sem discriminar-
se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro. Se o
tapuio; se o banto; se o hotentote. Nada mais absurdo do
que negar-se ao negro sudanês, por exemplo, importado em
número considerável para o Brasil, cultura superior à do
indígena mais adiantado. Escrever que “ nem pelos artefa-
tos, nem pela cultura dos vegetais, nem pela domesticação
das espécies zoológicas, nem pela constituição da família ou
das tribos, nem pelos conhecimentos astronômicos, nem
pela criação da linguagem e das lendas, eram os pretos supe-
riores aos nossos silvícolas”, é produzir uma afirmativa que
virada pelo avesso é que dá certo” (idem, ibidem, p. 285).
7
“Pode-se juntar, a essa superioridade técnica e de cultura dos
negros, sua predisposição como que biológica e psíquica
para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiões
quentes. Seu gosto de sol. Sua energia sempre fresca quan-
do em contato com a floresta tropical” (idem, ibidem, p. 286).

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54 NILO ODALIA

Nada ou quase nada escapa ao crivo crítico de GF.


Da forma do crânio ao peso do cérebro, dos lábios gros-
sos e narizes achatados aos pelos do corpo, do pensa-
mento reflexivo ao instintivo, da hereditariedade ao ca-
ráter adquirido, tudo, enfim, é manejado habilmente
pelo nosso autor de maneira a nos demonstrar a impos-
sibilidade de afirmar-se a superioridade de uma raça so-
bre a outra.
Gilberto Freyre, ao encarecer a contribuição do
africano nos diferentes setores da sociedade agrária bra-
sileira, enfatiza que as razões disso devem ser buscadas
no fato de que, ao contrário do que ocorreu nos Esta-
dos Unidos da América, para o Brasil não vieram ape-
nas escravos cuja qualidade fundamental era a força física
como para aquele país. As necessidades da colonização
portuguesa eram outras e incluíam a falta de mulheres e
de técnicos, quando do início da mineração (p. 306). Por
outro lado, não deixa ele de lembrar, baseando-se no
abade Étienne, que muitos dos africanos vindos para a
colônia eram letrados, como pode ser comprovado pelo
movimento malê, em 1835, na Bahia. Em suas palavras,
o movimento revela “aspectos que quase identificam essa
suposta revolta de escravos com o desabafo ou a erup-
ção de cultura adiantada, oprimida por outra, menos
nobre”8.

8
“Não romantizamos. Fosse esse movimento puramente
malê ou maometano, ou combinação de vários grupos sob
líderes muçulmanos, o certo é que se destaca das simples
revoltas de escravos dos tempos coloniais. Merece lugar en-
tre as revoluções libertárias, de sentido religioso, social ou
cultural” (idem, ibidem, p. 299)

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O HOMEM BRASILEIRO 55

Tão importante é, também, a sua afirmação de


que o negro por sua adaptabilidade aos trópicos foi “o
maior e mais plástico colaborador do branco na obra de colonização
agrária”, chegando a ser um precioso auxiliar na europei-
zação do indígena9.
As razões dessa importância do negro em quase
todas as áreas da então colônia devem ser buscadas no
fato de que muitos dos africanos que aqui vieram eram
islamitas, com uma cultura superior quer em relação ao
nativo, quer em relação ao português. Este último anal-
fabeto, ou semi-alfabetizado, incapaz mesmo de escrever
uma carta.

“A formação brasileira foi beneficiada pelo melhor da


cultura negra da África, absorvendo elementos por assim
dizer da elite que faltaram na mesma proporção ao Sul
dos Estados Unidos” (p. 299-300).

9
“Tais contrastes de disposição psíquica e de adaptação tal-
vez biológica ao clima quente explicam em parte ter sido o
negro na América Portuguesa o maior e o mais plástico co-
laborador do branco na obra de colonização agrária; o fato
de haver até desempenhado entre os indígenas uma missão
civilizadora no sentido europeizante” (idem, ibidem, p. 289).

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CAPÍTULO IV

OS VALORES ETNO-CULTURAIS
DA NOVA SOCIEDADE

Toda sociedade necessita para sua existência e so-


brevivência que seus membros mantenham, entre si, não
apenas relações de trabalho, sejam livres ou escravistas,
como no início de nossa colonização, mas partilhem va-
lores sejam materiais ou culturais que cimentem e dêem
um sentido comunitário a tais relações. É o que alguns
autores denominam de capital social.
Os portugueses quando aqui chegaram encontra-
ram uma natureza exuberante e uma terra “em que plan-
tando tudo dá”, mas uma sociedade indígena que disso
ainda não se apercebera, vivendo exclusivamente da
caça, da pesca e da coleta.
Sem uma estrutura agrária adequada, os coloniza-
dores logo se deram conta de que a simples pilhagem ti-
nha fôlego curto e que não podiam sobreviver adaptan-
do-se a um modo de produção primitivo, e que lhes
cabia a tarefa de construir um modo de produção con-

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58 NILO ODALIA

dizente com suas expectativas econômicas. Diferente-


mente do que acontecia com os colonizadores espa-
nhóis, o ouro e a prata eram apenas uma esperança, uma
utopia que se traduzia em eldorados imaginários.
Essa sociedade indígena nômade, refratária ao tra-
balho constante e diário, ao português oferecia, em con-
trapartida, em abundância, a mulher dócil e higiênica,
que facilitou e incentivou sua fixação na terra, e foi atra-
vés dela que começa a esboçar-se a sociedade híbrida de
que fala nosso autor, daí uma das razões de sua ênfase
na análise das relações sexuais.
É pelo contacto constante e íntimo com a mulher
indígena que o colonizador, longe de seu país e de seus
hábitos e costumes, adquire novas maneiras de ser, no-
vos comportamentos e uma maneira nova de pensar.
Nesse sentido, o português ao tomar a indígena como
esposa, amante ou serviçal, fazia muito mais do que sim-
plesmente dar vazão a sua sensualidade: dava os passos
iniciais para a construção de uma nova sociedade em que
os valores sexuais desempenhariam um decisivo papel.
Como esposa, mãe, amante ou serviçal (menos efi-
ciente do que a negra, que, posteriormente, veio a subs-
tituí-la com vantagens), a cunhã legou aos portugueses e
a seus descendentes novos costumes, novas drogas e há-
bitos alimentares, principalmente, a mandioca, o caju,
o milho; a um povo – como todo europeu pouco assea-
do em que a higiene corporal pouca ou nenhuma impor-
tância possuía – ensinou, pelo exemplo, as delícias de
manter o corpo cuidado e limpo pelo banho diário; e
deu-lhe filhos, muitos filhos, os curumins, que não apenas
ajudaram a povoar a terra, como serviram para que os
jesuítas, no afã de transformá-los em bons cristãos e bons

04.p65 58 19/7/2001, 11:57


O S VALORES ETNO - CULTURAIS 59
DA NOVA SOCIEDADE

cidadãos, deles se servissem para desacreditar e desmo-


ralizar os costumes socio-religiosos dos indígenas.
É a ela também que se deve o ter se incorporado
na vida do país mil e uma pequenas coisas como o min-
gau que saboreamos, a rede em que embalamos o nosso
ócio e nossa volúpia, o óleo de coco, para besuntar os
cabelos, o gosto pelos animais domésticos, e a cerâmica.
As relações sexuais facilitaram e incentivaram o
português tanto a fixar-se na terra pela generosa abun-
dância de mulheres quanto lhe permitiu uma incursão
no mundo sexual do indígena – diverso e mais descon-
traído do que do adventício, pleno de proibições e de
tabus, impostos por uma religião que em tudo vê peca-
do e ofensas, mas que, historicamente, sofre a influência
de uma moralidade moçárabe, mais tolerante e permis-
siva que aqui encontra campo para se exprimir. Até mes-
mo a homossexualidade tão combatida pela inquisição e
pelos padres se manifesta livremente na sociedade indí-
gena, a tal ponto que o autor classifica os invertidos se-
xuais, por suas atribuições, entre as mulheres, jovens ou
velhas. É tão normal entre eles a inversão sexual, tem-
porária ou permanente, que passam a ser chamados de
bugres (bougre), um termo francês utilizado para designar
o homossexual. Até mesmo a instituição da couvade é pos-
sível interpretar-se tendo por fundamento a bissexua-
lidade, ou seja o desejo do homem invertido sentir em
si por sua “identificação com a mulher a alegria da maternidade”1.
Como a mulher tem um valor econômico, por
representar o trabalho diário e constante da agricultura

1
FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala, p. 117.

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e da indústria, a poligamia indígena é menos uma decor-


rência das necessidades sexuais do homem do que de seu
desejo de agregar novos valores econômicos pela posse
de mais de uma mulher2.
Em suma, como ressalta nosso autor, o homem
indígena, quando da descoberta do Brasil, levava uma
vida parasitária, lançando sobre os ombros da mulher a
pesada carga dos serviços da agricultura, da indústria e
da arte. Enquanto que aos invertidos, muito provavel-
mente, estavam reservadas as tarefas da magia e do mis-
ticismo, do aconselhamento e do curandeirismo.
O homossexualismo nas tribos indígenas não
ocorria, ao que parece, por uma perversão congênita, ou
por escassez de mulheres, mas antes pelo tipo de vida
social que levavam, na qual os homens se segregavam em
instituições próprias e reservadas, que favoreciam a
homomixia (p. 119).
Era também nessas associações secretas, reserva-
das exclusivamente aos homens, que se dava a iniciação
e a educação das crianças pelos homens mais velhos. Era
aí que a criança, em contato com os mais velhos da tribo,
se iniciava nos mistérios e tradições de seu povo, através
de uma educação técnica e moral, durante a qual lhe
eram transmitidos todos os conhecimentos técnicos, re-
lativos à construção, à caça, à pesca e à guerra, acoplados

2
“Entre os seus era a mulher índia o principal valor econô-
mico e técnico. Um pouco besta de carga e um pouco es-
crava do homem. Mas superior a ele na capacidade de utili-
zar as cousas e de produzir o necessário à vida e ao conforto
comuns.” (Idem, ibidem, p. 116).

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DA NOVA SOCIEDADE

à música e ao canto, bem como aos mistérios da magia e


da religião, suscetíveis de serem ensinados aos leigos.
A criança indígena, assinala o nosso autor, não
vive num paraíso, nem desfrutava de uma liberdade sem
restrições. Toda uma cultura do medo se desenvolvia em
torno dele, a fim de controlar sua espontaneidade e
submetê-lo a autoridade dos mais velhos, ou para
protegê-lo de espíritos ou de influências malignas. Dan-
ças e cantos auxiliavam nessa pedagogia e profilaxia,
onde não faltavam as figuras de bichos e papões, pron-
tos a castigar o menino mau e desobediente.
A preocupação do autor ao analisar minuciosa-
mente os papéis desempenhados pela criança, a mulher
e o homem na sociedade indígena tem como objetivo
fundamental demonstrar por que caminhos sua cultura,
hábitos e costumes, alimentares e sexuais, mágicos e
míticos, integraram-se no novo homem que surgia na
nova sociedade em formação.
Integração que se fez por processos, muitas vezes,
violentos e dolorosos, nos quais a exterminação física do
índio era uma constante, quer pela escravidão ou destrui-
ção das suas aldeias, quer pela disseminação de doenças,
desconhecidas, até então.
Por sua incapacidade de atender às exigências do
trabalho sedentário e rotineiro, o índio teve um papel
bem menos importante do que o da mulher nesse pro-
cesso de adaptação dos valores indígenas à nova socieda-
de em constituição. Por outro lado, é preciso também
lembrar que a sociedade indígena tem na mulher o seu ele-
mento mais significativo e operante, pois sua cultura “qua-
se que era só feminina na sua organização técnica, mais complexa, o ho-
mem limitando-se a caçar, pescar, a remar e a fazer a guerra” (p. 159).

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Se a nossa sociedade é híbrida, como tantas outras,


sua originalidade está em que aqui não se desenvolveram
“bolões duros, secos, indigestos, inassimiláveis ao sistema social do eu-
ropeu. Muito menos estratificando-se em arcaísmos e curiosidades
etnográficas”.
A cultura indígena é uma “presença viva, útil, ativa, e
não apenas pitoresca, de elementos com atuação criadora no desenvol-
vimento nacional”. Não temos também o ódio e a antipatia
entre as duas raças que observamos nos países de coloni-
zação protestante e anglo-saxônica. Nossas relações fo-
ram suavizadas pelo “óleo lúbrico da profunda miscigenação, quer
a livre e danada, quer a regular e cristã sob a benção dos padres, pelo
incitamento da Igreja e do Estado” (p. 160).
Se a mulher indígena foi a grande artífice no iní-
cio de nossa colonização para a formação do novo ho-
mem brasileiro, é o negro, nas suas diversas proveniên-
cias, que desempenhará, por sua capacidade de trabalho
e cultura, um papel decisivo na fixação do português e
na construção da nova sociedade.
Gilberto Freyre, desde logo, afirma que não o “in-
teressa, senão indiretamente, neste ensaio, a importância do negro na
vida estética, muito menos no puro progresso econômico do Brasil. De-
vemos, entretanto, recordar que foi imensa. No litoral agrário, muito
maior, ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a
do português. / Idéia extravagante para os meios ortodoxos e oficiais
do Brasil, essa do negro superior ao indígena e até ao português. Em
vários aspectos de cultura material e moral. Superior em capacidade
técnica e artística.” (p. 284).
Ao afirmar, de maneira taxativa, de que apenas
indiretamente lhe interessa a contribuição do negro na
vida estética e no progresso econômico do Brasil, mes-
mo que ela tenha sido imensa, Gilberto Freyre mostra

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que sua obra quer, na realidade, circunscrever-se aos as-


pectos biológicos e culturais de sua participação na cons-
trução da sociedade híbrida, antagônica e não conflituo-
sa, e do homem brasileiro. Sua superioridade sobre o
indígena e o português aparece, desde logo, por sua faci-
lidade em adaptar-se ao clima tropical e se completa por
ser “superior em capacidade técnica e artística” e em muitos “aspectos
de cultura material e moral” (p. 284).
Essa é uma idéia extravagante, diz o nosso autor,
e sua tarefa é a demonstração dessa idéia extravagante,
ao longo dos dois longos capítulos que dedica à contri-
buição do negro na “vida sexual e de família do brasileiro”.
Talvez devamos nos perguntar o porquê da esco-
lha da vida sexual como chave para o desvendamento do
homem brasileiro e da sociedade híbrida nacional. A res-
posta parece estar no fato de que o ato sexual é o mais
íntimo dos atos humanos; é aquele em que deixamos de
ser um aristocrata, um senhor de engenho, um escra-
vo(a), um menino, uma mulher, para sermos apenas ho-
mens e mulheres. Que se entregam ao sexo, não apenas
pelo desejo, mas para se sentir vivo, confessando, muitas
vezes, suas fraquezas e transmitindo valores que de ou-
tra forma, talvez, nunca viessem à tona. O sexo sempre
foi uma arma dos conquistados, nem sempre consciente,
para superar os sofrimentos do domínio e para a trans-
missão de seus valores culturais, pois são estes que po-
dem mostrar ao Outro que são também seres humanos.
A ama negra que oferece seus peitos fartos ao bebê
branco não lhe dá apenas o leite que o faz viver, mas lhe
transmite pelo canto e pelas palavras carinhosas uma
concepção de mundo diferente daquele de seus pais; a
escrava negra, bela e jovem, que se deita com o jovem

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senhor não lhe dá apenas o seu corpo e seus cheiros, es-


tes são os meios de que dispõe para afirmar sua feminili-
dade, em sua trágica condição.
O sexo assim deixa de ser um fato íntimo e pesso-
al, ele se transforma num instrumento fundamental de
intercomunicação cultural, no qual seus participantes
dão e recebem sem uma consciência clara de que isso
acontece.
O português sujo e carente que vê a indígena nua
e limpa, o senhor de escravos, ou o menino da casa gran-
de, que buscam na senzala, este a iniciação, aquele o que
lhe falta no quarto do casal, rompem sem o saber as fron-
teiras culturais que deviam segrega-los. Então se abrem
as portas para uma sociedade híbrida, antagônica e
multicultural.
Contudo, nosso autor jamais deixa de enfatizar
que a promiscuidade sexual, da qual resultam para os
seus participantes sérias conseqüências, das quais a
sifilização, transmitida pelo branco, é apenas uma delas,
não é fruto da baixa moral do africano, mas sim um dos
muitos amargos produtos do sistema escravista. Não é
o africano, homem ou mulher, que impõe sua sensuali-
dade, é o sistema que a abriga como uma de suas formas
de ser3. Mas ao abriga-la, esse sistema permite que os va-
lores etno-culturais dos dois parceiros se intercomuni-

3
“É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra
sua nem do índio mas do sistema social e econômico em
que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravi-
dão sem depravação sexual. É da essência do regime.” (Idem,
ibidem, p. 316).

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quem, de maneira que a preta velha, não é apenas uma


escrava que dá seu leite ao menino branco; por ser bati-
zada, ela lhe transmite sua forma de ser católica, diferen-
te da de seus pais. Os africanos, homens e mulheres, re-
criam a religião que recebem do branco e ao a recriarem
mesclam seus próprios valores culturais, que serão, por
sua vez, absorvidos pelos brancos e neles se sentirão tão
à vontade quanto aqueles.
Obrigados a aprender o português, a língua do
senhor, adaptam-na às idiossincrasias de sua língua na-
tal. Nesse processo, as línguas africanas acabam por se
dissolver na língua portuguesa, enriquecendo-a com ter-
mos, vocábulos e, mais importante, dando-lhe uma dic-
ção bem diferente do falar português. A dureza deste na
boca do escravo e da escrava se transmuda num falar gen-
til e adocicado. Um diga-me autoritário e impositivo se
transforma num suave me diga. E por mais que os mes-
tres da língua portuguesa, especialmente os jesuítas,
combatam o linguajar africano, junto aos filhos dos se-
nhores, não conseguem impedir que eles também utili-
zem os novos vocábulos e as novas maneiras de dizer o
português. É como que uma nova língua, cuja expres-
sividade, quase infantil, está em seu amolecimento, na
sua doçura, que transforma sujeira em cacá, bunda em
bumbum, urinar em pipi. Mesmo os nomes próprios se
adaptam à nova forma de dizer e então surgem as
Dondons, as Toninhas, Totonhas, Tetés, etc.4 Essa influência

4
“No ambiente relasso da escravidão brasileira, as línguas
africanas sem motivos para subsistirem à parte, em oposi-
ção à dos brancos, dissolveram nela, enriquecendo-a de ex-

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amolecedora das línguas dos seus senhores ocorre tam-


bém nos Estados Unidos da América, especialmente em
Louisiana, e no francês das Antilhas.
É tão marcante a presença do africano no desen-
volvimento da língua portuguesa no Brasil que nosso
autor não vacila em afirmar que “nossa língua nacional resul-
ta da interpenetração das duas tendências” (p. 334).
Contudo, não devemos nos enganar, por interpe-
netração não se deve compreender uma fusão das duas
maneiras de falar numa só. Para Gilberto Freyre, utili-
zando João Ribeiro que nos ensina não haver nenhum
interesse “em reduzir duas fórmulas em uma única e em
comprimir dois sentimentos em um só”, a preservação
de duas formas de dizer mais uma vez confirma que

“A força e a potencialidade da cultura brasileira pare-


ce-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibra-
dos; o caso dos pronomes que sirva de exemplo” (p. 335).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir-se um estudo sobre Gilberto


Freyre, especialmente quando se utiliza basicamente sua
obra primeira e mais importante, Casa Grande & Senzala?
A indagação e a dúvida procedem, pois Freyre não é um

pressivos modos de dizer; de toda uma série de palavras de-


liciosas de pitoresco; agrestes e novas no seu sabor; muitas
vezes, substituindo com vantagem vocábulos portugueses,
como que gastos e puídos pelo uso” (Idem, ibidem, p. 333).

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DA NOVA SOCIEDADE

autor que conclui sua obra, ele demonstra o que quer


provar. E o que ele deseja demonstrar? Que nos trópi-
cos se constituiu uma sociedade tropical, híbrida e anta-
gônica, que renegava o que diziam os Buckle, Lapouge,
Gobineau, e tantos outros que acreditavam nessa possi-
bilidade. Porém, mais do que isso, ele demonstrou que
o terror do conflito que preocupara tanto os políticos e
historiadores do século XIX e início do século XX, eram
infundados porque a sociedade que se formara era anta-
gônica, porém não conflituosa. Por conflituosa, deve-
mos entender as sociedades que não sabem ou não con-
seguem manipular seus conflitos internos, sociais,
econômicos e étnicos, a não ser pela violência física.
Os conflitos raciais nos Estados Unidos até as dé-
cadas de 60 e 70, as violências étnicas entre negros na
África, a guerra entre sérvios, muçulmanos, croatas e
albaneses na Iugoslávia, nos dias de hoje, mostram com
clareza o que Freyre considera uma sociedade antagôni-
ca, onde as oposições raciais, religiosas, sociais, jamais
atingem esses cumes de violência.
Preconceitos existem em todos os quadrantes; eles
não se exprimem apenas nas relações entre brancos e
negros. Os conflitos étnicos não são causados pela cor
da pele, eles envolvem frustrações de distintas origens,
ou sociais, ou culturais, ou religiosas ou econômicas, ou
de qualquer outra coisa que conduz o homem à agres-
são e ao genocídio.
Se essa violência étnica não aconteceu no Brasil
foi porque, vimos, espero, nas análises anteriores, o ho-
mem brasileiro, anunciado por Varnhagen, e demons-
trado por Freyre, é a somatória de valores biológicos e
culturais das três etnias que o constituíram e disso ele é

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consciente. Contudo, isso que me parece o maior méri-


to de Freyre é, freqüentemente, lançado ao seu rosto
como uma ofensa, para alguns, porque é apenas uma
demonstração de seu conservadorismo político; para
outros, porque sua análise da escravatura no Brasil dá
um retrato excessivamente complacente das verdadeiras
relações entre o escravo e o seu senhor. Faria apenas
duas observações:
1a) os autores dessas críticas dão a impressão de
que não leram Gilberto Freyre, pois esquecem sua in-
sistência em mostrar que o fato fundamental que deter-
mina, em grande parte, a natureza das relações entre
brancos e africanos é o sistema escravista. E o sistema
escravista, aqui ou nos Estados Unidos, é sempre trági-
co e doloroso.
A diferença aqui está no fato, já anunciado por
Varnhagen, que o homem brasileiro deveria saber que é
o resultado da fusão e miscigenação das três etnias. O
que não aconteceu nos Estados Unidos da América,
onde o negro, ou qualquer outra etnia, que não fosse a
branca, de origem anglo-saxônica, era escorraçada, como
uma moléstia contagiosa, como algo que deveria ser evi-
tado, jamais se compreendendo que essas etnias também
iriam e estão contribuindo para o surgimento do ho-
mem norte-americano;
2a) alguns brasilianistas, quando vêm ao Brasil
para estudar o sistema escravista5, parecem vir com uma

5
Ver Karasch, Mary. C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro –
1808-1850. Trad. De Pedro Maia Soares. SP., Cia. das Le-
tras, 2000.

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única preocupação: saber por quê os conflitos raciais no


Brasil não são tão violentos quanto nos Estados Unidos.
Frustrados por não entenderem esse fenômeno, criticam
autores como Gilberto Freyre e, talvez, se conhecessem
criticariam Varnhagen, porque ambos estão empenha-
dos em mostrar que o homem brasileiro é o fruto da
miscigenação biológica e cultural das três etnias. E nisso
foram coadjuvados, no século XIX, pelos políticos con-
servadores, cujo maior temor era a fragmentação do
país, se aqui ocorresse o que ocorreu nos Estados Uni-
dos – discriminação racial – e nas colônias espanholas –
lutas pela libertação. Seria conveniente, eles estudarem
se houve nos Estados Unidos, antes da guerra de seces-
são, autores com as mesmas preocupações. Com isso
compreenderiam melhor o Brasil e o seu próprio país.

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BIBLIOGRAFIA SELETA
DE GILBERTO FREYRE

Como a bibliografia de Gilberto Freyre é extensa


e variada, darei aqui apenas alguns dos seus títulos. Nas
novas edições de seus principais livros existem bibliogra-
fias completas.

Casa Grande & Senzala. 17ª ed. R. J., José Olympio, 1975.
Sobrados e Mucambos. 5ª ed. R.J., José Olympio, INL-MEC,
1977.
Ordem e Progresso. 4ª ed. R. J., Record, 1990.
Nordeste,4ª ed., R.J., José Olympio, 1967.

BIBLIOGRAFIA GERAL

ABREU, Capistrano de, Capítulos de História Colonial(1500-


1800) – 6ª edição, revista, anotada e prefaciada por
José Honório Rodrigues. RJ., Civilização Brasilei-
ra, 1976.
BURKE, Peter, A escola dos Annales – 1929 – 1989 – A Re-
volução francesa da Historiografia. Trad. de Nilo Odalia.
S.P., Editora Unesp, 1991.

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72 NILO ODALIA

CASALECCHI, José Ênio, O Partido Republicano Paulista.


S.P., Brasiliense, 1987.
CORRÊA, Anna Martinez, A rebelião de 1924 em São Pau-
lo. S.P. Hucitec, 1976.
KARASCH, Mary, C., A vida dos escravos no Rio de Janeiro –
1808 – 1850. Trad. de Pedro Maia Soares. S.P. Cia.
das Letras, 2.000.
ODALIA, Nilo, As formas do Mesmo. S.P., Edunesp, 1997.
VARNHAGEN, F.ª de – História Geral do Brasil, 4ª edi-
ção, R.J., J.E.& Laemmert Ltd., s.d., 5 volumes

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