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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL

MÁRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY

JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA


DO SOCIALISMO CHILENO (1957-1973)

FRANCA
2007
MÁRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY

JÚLIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA DO SOCIALISMO CHILENO


(1957-1973)

Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista


“Julio de Mesquita Filho” – Faculdade de História,
Direito e Serviço Social, para a obtenção do título de
Mestre em História.
Área de Concentração: História e Cultura Política.

Orientador: Prof. Dr. Alberto Aggio.

FRANCA
2007
Cury, Márcia Carolina de Oliveira
Júlio César Jobet e a cultura política do socialismo chileno
(1957-1973) / Márcia Carolina de Oliveira Cury. –Franca :
UNESP, 2007

Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História,


Direito e Serviço Social – UNESP.

1. Intelectuais – História – Chile. 2. Chile – História política.


3. Júlio César Jobet – Crítica e interpretação. 4. Socialismo –
História – Chile.

CDD – 983.06
MÁRCIA CAROLINA DE OLIVEIRA CURY

JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA DO SOCIALISMO CHILENO


(1957-1973)

Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” –


Faculdade de História, Direito e Serviço Social, para a obtenção do título de Mestre em
História.
Área de Concentração: História e Cultura Política.

BANCA EXAMINADORA:

Presidente: ___________________________________
Orientador: Prof. Dr. Alberto Aggio

1º Examinador: ___________________________________
Prof. Dr. Marcos Alves de Souza – UNIFRAN

2º Examinador: ___________________________________
Profª Drª Teresa Malatian – UNESP/Franca

Franca, ___ de ____________ de 2007.


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu Vi, que me ensina todos os dias a sutil diferença entre dar as mãos
e acorrentar a alma. Obrigada por sua constante presença, pela paciência, por suportar crises
e dias mais difíceis, tornando-os mais felizes para mim. Enfim, por ser quem você é, esta
pessoa que se mostra especial em cada gesto do dia a dia e que me faz querer me tornar
alguém melhor. Obrigada por existir e por fazer parte da minha vida.
À minha mãe, a quem eu tanto amo e admiro. O seu poder de superação e a força
com que enfrenta o peso das injustiças deste mundo sempre foram a minha inspiração para
“crescer”. Ao meu pai, Mario, e à Teresa; figuras que à sua maneira estão sempre presentes e
contribuindo para cada passo que dou.
À grande família: meu irmão, Claudio, esta personalidade controversa e muito
marcante na minha formação. À minha nova família, Dona Jeusa e Wagner, pessoas especiais,
com as quais sei que sempre posso contar. À Dinha e à Tatiane, família que pude escolher e
que sempre fará parte da minha vida.
À Érika, amiga são-paulina com quem compartilho sofrimentos e alegrias pelo
futebol e pelos encontros e desencontros da vida. Aos meus “bichinhos” Sandrão e Mylla,
seres que não entendem o significado disto, mas que sentem o quanto são queridos e a alegria
que trazem por fazer parte da família.
Ao meu orientador, Alberto Aggio, obrigada pela oportunidade e por acreditar no
meu trabalho. Aos professores presentes na banca de qualificação, Teresa Malatian e Marcos
Alves, por seus questionamentos e sugestões esclarecedoras e muito enriquecedoras para a
finalização deste trabalho. Ao professor e colega Fabio Franzini, por sua gentileza e
disponibilidade para ajudar.
Devo registrar ainda as pessoas que tornaram a viagem ao Chile uma experiência
inesquecível e muito frutífera. Primeiramente, agradeço à colega Janaína Capistrano, por ter
facilitado as coisas para mim com a sua atenção e dicas infalíveis.
Agradeço ao Sr. Mario e à Dona Gladis por me receberem com tamanha gentileza em
sua residência. Às figuras simpáticas e sempre atenciosas que conheci nas livrarias chilenas e
que mesmo à distância estão sempre dispostas a atender. Assim como ao Sr. Alejandro,
funcionário da Biblioteca Nacional, e à Gina Morales, secretária do PS, que com inestimável
atenção, contribuíram muito para a agilidade das minhas pesquisas. Aos professores Julio
Pinto, Luiz Ortega e Juan C. Gómez, pela atenção e disponibilidade para discutir sobre o meu
objeto de pesquisa. Agradeço também a CAPES pelo financiamento da pesquisa.
RESUMO
Em grande parte dos países da América Latina alguns intelectuais se destacaram por
proporem não só interpretar a realidade política de seus países, mas também intervir na
mesma de maneira a transformá-la. Entre eles, muitos mantiveram uma colaboração orgânica
com o movimento político e partidário da esquerda. Em meio ao debate de interpretações do
desenvolvimento nacional e de propostas de ação política para a América Latina, o Chile se
destacou na participação de intelectuais na formulação de projetos de ação que influenciaram
a arena política do país ao longo do século XX. Partindo do debate em torno da interação
entre os intelectuais e a cultura política, o presente trabalho tem por objetivo refletir acerca do
papel do intelectual Julio César Jobet (1912-1980) na cultura política do socialismo chileno.
Vinculado organicamente ao Partido Socialista, Jobet foi dirigente desde a sua fundação e
destacou-se na formulação do pensamento socialista e dos princípios teóricos que o
animariam. Buscaremos apreender a singularidade do pensamento deste intelectual por meio
das interpretações e propostas expressas nos seus escritos, nos debates tanto no interior do seu
partido como com as demais forças de esquerda da política nacional, de maneira a apreender o
alcance e a influência da sua produção nos rumos do socialismo chileno.
Palavras-chave: Intelectuais, Cultura política, Socialismo, Chile, História política, América
Latina.
ABSTRACT
To a large extent of the countries of Latin America some intellectuals attracted attention not
only for commenting on the political reality in their countries, but also intervening in order to
transform it. Among them, many kept an organic collaboration with political and partisan left-
wing movement. In the midst of the debate of interpretations of national development and
proposals for political action for Latin America, Chile stood out because of the participation
of intellectuals to the formulation of action plans that influenced the country’s political arena
throughout the twentieth century. Starting from the debate on the interaction between
intellectuals and political culture, this work aims at reflecting about the role of an intellectual
called Julio César Jobet (1912-1980) in Chilean socialism’s political culture. Organically tied
to the Socialist Party, Jobet was its leader since its foundation and outstood in the formation
of the socialist thinking and the theoretic principles that would drive it. We will seek to get
hold of the singularity of his thought through the interpretations and proposals expressed in
his writings, in the debates inside his party as well as with other Chilean left-wing groups, in
order to apprehend the reach and influence of its production in the routes of Chilean
socialism.
Keywords: Intellectuals, Political culture, Socialism, Chile, Political History, Latin America.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................................7
CAPÍTULO 1
O SOCIALISMO CHILENO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA..................................15
1.1 O socialismo chileno: das origens ao período da UP......................................................16
1.2 Elementos da historiografia do socialismo chileno........................................................39

CAPÍTULO 2
A EXPECTATIVA DA MUDANÇA.....................................................................................52
2.1 Transformações na cultura política do socialismo chileno............................................53
2.2 Uma nova configuração política e ideológica.................................................................67

CAPÍTULO 3
JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA SOCIALISTA...............................90
3.1 Análises e debates: as faces de um protagonista............................................................91
3.2 Julio César Jobet e o socialismo:
a construção de uma identidade partidária........................................................................109

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................127

FONTES.................................................................................................................................134

REFERÊNCIAS....................................................................................................................136
7

APRESENTAÇÃO

Praticamente desconhecido no Brasil, o chileno Julio César Jobet (1912-1980) se

insere num grupo de homens que buscou, ao longo da sua trajetória, aliar a atividade

intelectual à prática política no intuito de contribuir, de uma maneira ou de outra, para a

transformação da sociedade. A trajetória deste intelectual e os aspectos mais relevantes do seu

pensamento se relacionam diretamente com a história do socialismo chileno e, em especial,

com o contexto da experiência política que buscava a construção do socialismo por meio da

democracia, um dos momentos cruciais da história daquele país.

Membro do Partido Socialista do Chile (PS) desde a sua fundação, em 1933, Jobet se

dedicou à produção teórica, à difusão das idéias e da trajetória socialista, ao debate político

com diferentes grupos políticos do país e a representar o PS em diversos encontros políticos

na região. A sua atuação se deu principalmente no campo teórico e na vida intrapartidária, não

se constituindo em um homem vinculado à vida político-institucional, já que não ocupou

cargos públicos.

Jobet nasceu em Perquenco, uma pequena cidade chilena, em 1912. Sua vida pública

se desenvolveu a partir da década de 1930 e esteve compreendida entre duas profundas crises

sociais: um golpe de Estado ocorrido em 1924 – que consolidou no poder Carlos Ibañez, até

1931 –, ante o fracasso do parlamentarismo, e o golpe militar de setembro de 1973 que

destituiu Salvador Allende e deu um duro golpe na democracia do país. O descendente de

agricultores franceses realizou seus estudos secundários no Liceo de Hombres de Temuco.

Continuou seus estudos no Instituto Pedagógico da Universidade do Chile e recebeu o título

de Professor de História, Geografia e Educação Cívica, cujo trabalho para a obtenção do título

se destinava a pesquisar as idéias dos primeiros pensadores da questão social no país.

O seu trabalho historiográfico começou a se destacar a partir da década de 1940 e se

enquadrou num período de mudanças de enfoque acompanhada de uma nova abordagem

metodológica apreendida pelas novas gerações de historiadores que, entre outros métodos de

análise, assimilaram o marxismo como concepção de mundo e forma de construção do


8

conhecimento histórico. Seu trabalho veio representar uma proposta de ruptura com a

historiografia até então predominante.

Como membro do PS, Jobet também se dedicou, desde a década de 1930, à

publicação de textos socialistas em periódicos nacionais e de outros países da região.1 De

acordo com Jobet, a sua inclinação política tem origem na sua família e na realidade que o

cercava, marcada por uma profunda desigualdade social. Segundo ele, seu pai lhe dava lições

libertárias, citando idéias de Jean Jaurés – influência expressada até no nome dado às terras

cultivadas pela família: La Bastilha.2

Jobet publicou diversos trabalhos acerca do pensamento social chileno, destacando

os primeiros autores que se debruçaram sobre os temas políticos e sociais do país, localizados,

principalmente, no século XIX, numa tendência literária que se tornou referência no país por

seu pioneirismo no estudo da denominada “questão social”. Além disso, seus ensaios estão

entre as principais referências da interpretação marxista da história nacional, com abordagens

acerca de temas políticos desde a fundação do Estado chileno, até temáticas que ainda

atingiam a sua geração, como o imperialismo, o movimento operário e o desenvolvimento

político do país.

O trabalho de Jobet é parte da história do pensamento marxista na América Latina.

Sua perspectiva central encontra-se referida à análise da formação e das contradições internas

das sociedades latino-americanas. Outra dimensão fundamental do seu trabalho foi a

elaboração de projetos políticos de transformação, caracterizando sua produção como uma

tentativa de transplantar as concepções da abordagem marxista para a análise da sociedade

chilena. Este encontro entre as particularidades da realidade local e a teoria marxista adquiriu

variados contornos, de acordo com a lógica da complexidade que compõe o subcontinente. A

interpretação histórica da formação desses países expressou o desafio que os intelectuais

contemporâneos enfrentaram na utilização dos conceitos marxistas diante das nossas

especificidades.

1
Em 1935 Jobet elaborou o manual intitulado Estructura y ritmo de las doctrinas sociales (1760-1930), e
fundou com seu amigo Juan Picasso o periódico El socialista de Cautín. Em 1938, já colaborava com o
periódico socialista argentino, La Vanguardia.
2
ROBNOVITCH, Rosa. Un ensaysta quimicamente puro. La Nación, 12 sept 1971, Suplemento, p. 15
9

Pode-se considerar que a contribuição de Jobet para o pensamento político chileno

fez dele um protagonista da história política do país. Homem que viveu os dilemas do

desenvolvimento de um partido que, embora inicialmente se definisse como classista, assumiu

uma concepção socialista difusa, para, em seguida, adotar uma postura concertacionista até

meados da década de 1950. Jobet buscou, ao longo da sua trajetória, implementar uma

identidade e coesão internas ao PS, sempre em torno de uma perspectiva classista e

revolucionária.

Ao mesmo tempo, entendemos que, ao indicar as continuidades e contradições da

história do país, Jobet buscou apresentar uma nova proposta política, identificada ao partido

no qual militou, e contribuiu ativamente para a formulação das concepções revolucionárias,

constituindo-se numa das principais referências intelectuais da organização socialista. A

trajetória intelectual e a atuação política de Jobet estiveram, portanto, intimamente vinculadas

à sua fidelidade partidária.

Compreende-se a atuação de maior importância deste intelectual socialista no

contexto do final dos anos cinqüenta, período no qual se identifica em parte da sociedade

chilena um descontentamento com a dinâmica política pautada em compromissos e alianças

entre diferentes setores, que visavam políticas integradoras, mas que não se mostraram

eficientes para realizar mudanças estruturais no país. Internamente, o Partido Socialista

viveria uma mudança que acarretaria transformações na sua cultura política, com a

predominância de elementos rupturais, dos quais Jobet destacou-se como um expressivo

representante.

Entendemos que o pensamento socialista, composto de diferentes correntes e

perspectivas, representou um elemento de fundamental importância no complexo conjunto de

mudanças que se processaram no cenário chileno no século XX. Suas proposições foram

animadas por diferentes concepções traduzidas em manifestações intelectuais e políticas que

conferiram à ação dos seus grupos um conteúdo teórico e ideológico ao longo das suas

trajetórias na política nacional. A abordagem das suas formulações teóricas, que nos indica
10

uma leitura da realidade daquele país e suas perspectivas políticas, nos remete para a sua

singularidade.

A perspectiva do presente trabalho entende que as idéias são fruto de uma produção

social, e os intelectuais certamente podem ser encarados como desveladores das

representações e práticas sociais, assumindo o papel de um analista da sociedade e propagador

das aspirações desta.3 Trata-se de analisar o alcance e a responsabilidade dos teóricos sobre os

processos políticos, e de considerar a dimensão que assume a referência intelectual na

delimitação e difusão de concepções de mundo, de elementos de coesão para determinados

grupos ou na sua organização interna e também no exercício da pressão política.

Neste processo, o referencial teórico construído pelos intelectuais, em especial

aqueles que, assim como Jobet, apresentam como parte integrante da sua atividade a prática

política, termina por expressar elementos de uma cultura política específica em um momento

determinado, por meio de um conjunto de referenciais que se relaciona e contribui para a

definição de uma identidade voltada a uma coletividade. Esta é uma concepção em que o

universo da cultura política também se constitui de uma produção intelectual; universo

compreendido numa sistematização de discursos capaz de explicar a realidade, gerar

identidades coletivas, orientar práticas sociais e articular projetos de futuro.

Para a compreensão deste processo, o conceito de cultura política deve estar pautado

em sua historicidade, na qual o desenvolvimento de determinado conjunto de crenças, atitudes

e símbolos ocorre de acordo com determinado contexto histórico, como uma resposta àquilo

que se vive. A partir de tais pressupostos, para identificar o papel do intelectual na cultura

política do socialismo, deve-se avaliar os diversos elementos que a constituem e considerar a

especificidade do seu contexto, a partir do movimento histórico das conjunturas.

A mesma perspectiva deve ser adotada para a compreensão do papel que exerceu

Jobet. É necessário inseri-lo no ambiente político e intelectual vivenciado pelo Chile a partir

do início do século XX, especialmente a assimilação de novas teorias que permitiram

formulações muito significativas para o debate da esquerda do país. Tais teorias passaram a

3
FREDRIGO, Fabiana de Souza. Os intelectuais e a política nos regimes autoritários: um estudo do caso
chileno. Estudos de História, Franca, v. 7, n. 2, p. 231-264, 2000.
11

influenciar o movimento operário e, gradativamente, parte importante dos intelectuais que se

vincularam a ele. Nesse período, um novo panorama político levou à cristalização de um

movimento de esquerda influenciado pelos ideais marxistas, que se tratava de uma entidade

indiferenciada multiplicada em uma gama de vertentes socialistas ou emancipadoras.4

Em outras palavras, é preciso identificar o lugar social e político do intelectual,

relacionando tal descoberta com sua produção e sua ação no meio em que constrói suas

relações, possibilitando a análise mais precisa da sua interferência e da relação da sua

produção com um processo político e com a coletividade social. Visando apreender as teorias

produzidas, o historiador necessita, mais do que uma articulação puramente mecânica entre

contexto e conteúdo, integrar no campo das investigações os paradigmas intelectuais, as

correntes filosóficas que interferem, direta ou indiretamente, nas representações e visões de

mundo.5

A compreensão da dimensão ideológica de um partido político constitui um rico

campo de análise para o historiador na medida em que permite apreender o que ele define

para o eleitorado, como programas, discursos da formação, etc.6 Ou para aqueles que se

encontram na ideologia política do partido, que consiste em uma grade comum de leitura dos

acontecimentos, capaz de fundar uma solidariedade de ação e, para além de toda finalidade

prática, um conjunto de crenças que permite integrar os membros do partido numa

comunidade. Destaca-se, dessa maneira, a importância da ideologia expressa pelos membros

de um partido político e por seus intelectuais, por meio de uma “cultura política que constitui

o núcleo das formações políticas e que garante, para além dos acontecimentos conjunturais, a

perenidade dos partidos expressa na longa duração”. 7

Nesse trabalho de compreensão das motivações dos atos políticos, buscou-se a

apreensão desse conjunto de referentes compartilhados pelos indivíduos e pela coletividade

representada no partido, referentes ao sistema de valores, de uma leitura comum do passado,

4
MOULIAN, Tomás. El marxismo en Chile: producción y utilización. Santiago de Chile: Facultad
Latinoamericana de Ciencias Sociales, 1991. Serie Estudios Políticos, p. 1.
5
FREDRIGO, op. cit., p. 260.
6
O sentido de ideologia utilizado no presente texto refere-se ao conjunto de idéias do partido.
7
BERNSTEIN, Serge. Os partidos. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro:
IUPERJ, 1996, p. 90-91.
12

de aspirações e projeções de um futuro, da comunhão de uma visão de mundo, elementos que

constituem, em geral, a compreensão dos historiadores em torno da cultura política, e que

utilizamos neste trabalho, considerando o papel de um dos principais intelectuais do

socialismo chileno na formação dessa cultura política.8

Esse estudo permite alcançar um amplo espectro de análise que deixa compreender

as raízes e filiações dos grupos e restituir coerência aos seus comportamentos frente à política

em permanente diálogo com os contextos e experiências vividas pelos atores sociais,

permitindo assim, não se prender a esquemas de análise pré-estabelecidos para apontarmos os

supostos desvios na postura política desses grupos.

O intuito do presente trabalho é analisar a especificidade do pensamento de Jobet e a

sua influência na cultura política socialista entre o início da Frente de Ação Popular (FRAP),

em 1957, e o governo da Unidade Popular, até 1973, passando pelas candidaturas

presidenciais de Salvador Allende, em 1958 e 1964, considerando o cenário político do

período. Considera-se que esse foi um momento de crescente radicalização da esquerda e de

uma polarização ideológica do sistema partidário chileno. A intenção é procurar apreender

também de que maneira e em que grau esse processo comprometeu e alterou a cultura política

socialista e, consequentemente, influiu ou determinou a sorte do governo da esquerda no

Chile.

Um aspecto que deve ser considerado é que ao empreender-se a tarefa de analisar a

trajetória de um intelectual dedicado à política, da importância de Jobet, pode-se incorrer em

dois perigos. Por um lado, ao tomar contato com o pensamento de um historiador que se

posicionou frente às contradições da sua sociedade, a incorporação do seu discurso torna-se

um risco. Por outro, observar o dilema da relação entre a atividade intelectual e a prática

política exige uma arguta clareza diante das funções, bem como frente à fusão das atividades,

para não se perder em críticas maniqueístas em torno da negatividade do envolvimento

intelectual com os assuntos políticos.

8
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Org.). Para uma
história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 355.
13

Para a compreensão da sua trajetória foi importante analisar tal questão, já que Jobet,

como um intelectual marxista, concebia a teoria como instrumento de transformação da

sociedade. Nesse sentido, foi necessária a abordagem da sua trajetória a partir da reflexão em

torno da tensão que configura este tipo de prática intelectual. No entanto, uma dificuldade a

mais se coloca. Sob a perspectiva de que a dimensão da cultura constitui uma forma de

transcender a política, as concepções acerca dos intelectuais como “homens de cultura” são

recorrentes para referir-se ao grupo, considerado por vezes como independente e autônomo

diante dos dilemas da sociedade.

Dessa forma, esta discussão em torno do engajamento político dos intelectuais, que

coloca em questão a relação entre teoria e práxis, é tratada de maneira a direcionar o debate

para a distinção entre as atividades. A partir destas observações, considera-se que analisar a

atividade partidária e a construção teórica de um intelectual que almejava a inserção prática

na transformação da sociedade significa abordar esta categoria social distanciando-se de uma

percepção idealista que encara os intelectuais como um grupo autônomo.

O intuito do trabalho, portanto, é realizar uma abordagem da sua trajetória e do seu

pensamento que não resulte unilateral. Em outras palavras, o desafio consiste em analisar seu

papel intelectual e político dialeticamente. Recorrendo à terminologia gramsciana9, busca-se

encarar a função organizativa desempenhada por Jobet e dimensionar o alcance da atividade

do intelectual no papel da produção, reprodução e organização de bens de identificação e de

consensos coletivos, compreendendo o presente trabalho na seguinte perspectiva: a da atuação

intelectual numa determinada cultura política.

Para apresentarmos o texto, optamos por dividi-lo em três capítulos: o primeiro se

destina a esboçar a trajetória da esquerda chilena desde as suas origens, localizadas nas

organizações operárias e nas primeiras publicações de cunho socialista, passando pela

sistematização do discurso político e a sua vinculação com o movimento partidário. Esta

abordagem permite compreender a singularidade da formação e do desenvolvimento da

esquerda chilena bem como os aspectos que compreendem a formação da sua identidade,

9
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 9 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995.
14

visto que muitos elementos são resgatados ou negligenciados pelo movimento ao longo do

século XX.

Ainda no primeiro capítulo dedica-se um tópico à discussão historiográfica,

demonstrando algumas das interpretações a respeito do socialismo chileno. O enfoque

adotado objetivou traçar um debate com autores que desconsideraram muitas das

singularidades deste segmento político, e apresentar novas perspectivas para o entendimento

acerca das suas origens, do significado dos processos que marcam a sua atuação na política

institucional até o alcance do poder, considerando os diversos elementos e conjunturas que

contribuíram para a construção da sua cultura política.

O contexto político que conforma o cenário histórico da nossa pesquisa é abordado

no segundo capítulo, abarcando um panorama do período que compreende as décadas de 1950

e 1960, os novos atores que surgem ou se fortalecem nesse momento, bem como os diferentes

processos que dinamizaram a disputa política, destacando o espaço ocupado pelo socialismo.

São subsídios que nos permitem obter uma melhor compreensão da maneira como se desenha

a polarização ideológica que culmina no 11 de setembro de 1973 e, especialmente, das

metamorfoses da cultura política do socialismo chileno que alterariam, em alguns aspectos, a

sua identidade, temática abordada no segundo item deste mesmo capítulo.

O terceiro e último capítulo objetiva apresentar um mapeamento dos conceitos,

temas discutidos e influências sofridas por Julio César Jobet. Analisar o papel do intelectual e

dirigente político na cultura política do socialismo chileno, em especial no processo de

radicalização daquele segmento, examinando sua função organizativa a partir de um projeto

político. Para tanto, busca-se apreender a sua leitura da sociedade chilena, suas propostas e os

principais debates empreendidos tanto no interior do seu partido como com as principais

forças políticas do Chile por meio dos seus escritos, compreendendo a sua atuação em meio

ao efervescente debate político e intelectual do período. Ao compreender as formulações

teóricas que animavam as ações do socialismo chileno, é possível apreender os limites da

cultura política da esquerda que almejava a construção do socialismo naquele país e que

vivenciou o fracasso do governo da Unidade Popular.


CAPÍTULO 1
O SOCIALISMO CHILENO: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
16

1.1 O socialismo chileno: das origens ao período da UP

É importante considerar que a compreensão do socialismo chileno deve levar em

conta uma grande tradição histórica do Chile que remonta ao período das lutas operárias do

século XIX, passando pela formação dos partidos de esquerda, bem como pelos diversos

processos dos quais participaram, considerando que a Unidade Popular é um “capítulo

carregado de capital histórico acumulado”. Trata-se de um período capaz de expressar todas

as tensões e contradições do país.

Dessa forma, a apreensão daquele movimento vai além da sua vinculação com o

comunismo internacional do pós-guerra, com a Guerra Fria ou com o impacto do processo

revolucionário cubano. É preciso pensar o socialismo chileno como uma expressão política

daquela sociedade, em especial, dos trabalhadores.

Até as primeiras décadas do século XX, a estrutura agrária da sociedade chilena se

manteve juntamente com os seus reflexos nos setores político e social. Enquanto que países

como Brasil, México e Argentina apresentaram o processo de consolidação do Estado

Nacional juntamente com uma maior inserção no sistema capitalista mundial, o Chile, já em

1830, dava sinais de um Estado forte, e ao final do mesmo século passou por uma experiência

parlamentarista, que indicava a reorganização dos grupos dominantes na política nacional.1 A

imagem de um país politicamente maduro e democrático se fortaleceu ainda mais com a

possibilidade de vivenciar o socialismo pelas vias institucionais no século XX.

Mas é certo também que, assim como os demais países latino-americanos, o Chile

sofreu no início do século XX pressões que caracterizaram os países periféricos, como a forte

presença imperialista, tensão social gerada pelo processo de modernização capitalista e uma

precária e insuficiente incorporação das classes populares. Foi nesse sentido que o debate da

esquerda se desenhou ao longo do seu desenvolvimento: o da superação da contradição entre

a estabilidade política e a questão social do país. Debate que se ampliou de acordo com as

1
AGGIO, Alberto. Frente popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume, 1999, p.
26.
17

interpretações marxistas no país, que indicaram as diferentes vias de transformação para

aquela sociedade.

No Chile, o Estado assumiu um importante papel na intermediação entre a presença

imperialista e as elites locais na exploração das riquezas nacionais. Ao final do século XIX,

intensificou-se no país a exploração de minerais que se tornariam os seus principais produtos

comerciais. Ao mesmo tempo, o país viveu um grande desenvolvimento urbano e sua

conseqüente concentração populacional.

O desenvolvimento das relações sociais de produção na mineração e na indústria

determinou um crescimento do proletariado, sobretudo nas explorações de prata e cobre, e de

maneira especial, na exploração do salitre, além de aumentar o número de operários na

construção de ferrovias. Os primeiros núcleos do proletariado industrial surgiram nas últimas

décadas do século XIX e já realizavam atos de greve expressivos que se intensificaram no

século XX.2

As relações estabelecidas na mineração, propícias para a ação das massas, a

migração para o norte mineiro, estabeleceu uma corrente de transmissão política com o sul,

com operários, camponeses e parentes que se deslocavam em ambas as direções,

disseminando idéias e comportamentos que afloravam entre os trabalhadores do salitre. Estas

são algumas das condições, bastante originais no meio latino-americano dessa época, que

motivaram o precoce surgimento de partidos operários, de franca definição socialista, ainda

antes da revolução bolchevique de 1917.

Como conseqüência da Guerra do Pacífico (1879-1884)3, o Chile se converteu no

único produtor mundial de salitre, transformando a exploração salitreira, ao longo da mudança

de século, no eixo dinamizador do conjunto da economia chilena, de maneira a favorecer a

diversificação de sua base produtiva e tornar mais complexa a sua estrutura social.4

2
ELGUETA, Belarmino. La cara oculta de la historia: el legado intelectual de Julio César Jobet. Chile:
Factum Ediciones, 1997, p. 69.
3
Em decorrência deste conflito, o Chile expandiu seu território, recebendo parte do Atacama (cidade de
Tarapacá), do Peru, e parte do território boliviano (Antofagasta), que perdeu a saída para o mar.
4
CORREA, Sofía; FIGUEROA, Consuelo (Org.). Historia del siglo XX chileno: balance paradojal. Santiago:
Editorial Sudamericana, 2001, p. 23.
18

É possível identificar as primeiras organizações operárias modernas nas cidades,

entre os círculos de artesãos que passaram a ser integradas por operários industriais e os

mineiros. Inicialmente tratavam-se das mutuales, sociedades de socorro mútuo, que estavam

investidas de preceitos ilustrados, e buscavam, através da associação de trabalhadores de

diferentes sindicatos, incentivar a cooperação e a solidariedade entre seus filiados. A principal

característica destas organizações era a atenção especial à formação educacional dos seus

membros através da integração cultural, especialmente articulada por meio de diversos

periódicos e folhetins operários.

No final do século XIX, emergiram outros tipos de organizações operárias, como as

mancomunales e as sociedades de resistência. De acordo com Sofia Correa e Consuelo

Figueroa, as primeiras se caracterizavam por reunir trabalhadores de diferentes atividades,

enquanto que as sociedades de resistência eram marcadas por opor-se de forma permanente a

qualquer tipo de negociação nos conflitos, evidenciando um maior espírito confrontacional

nos seus postulados.

No entanto, ambas, diferentemente do mutualismo da primeira época, ostentaram um

caráter revolucionário, apresentaram-se em termos programaticamente confrontacionais frente

aos setores que oprimiam a classe operária, com propensão à conformação de uma identidade

de classe de mais claro perfil. Sofia e Consuelo destacam a transição das organizações na

medida em que:
[...] se observa um evidente trânsito de um associacionismo com demandas
exclusivamente sociais e com ambições de cooperação mútua a entidades embuídas
de uma orientação e discurso de caráter político. Os postulados socialistas e
anarquistas, de crescente gravitação durante a mudança de século, estimularam o
desenvolvimento desse tipo de organização, que experimentou um notável
incremento, aumentando de 240 sociedades operárias na última década do século
XIX, a 433 em 1910.5 [tradução nossa]

Nesse primeiro momento, havia estudiosos que se voltavam para as questões sociais

e, ao mesmo tempo, homens que iniciaram suas atividades no meio operário para se

destacarem como articuladores de movimentos de trabalhadores e difusores de idéias

questionadoras daquela ordem. O contexto inicial de difusão de um ideal socialista ou

5
CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 59.
19

anarquista é caracterizado pela atuação de grupos de agitadores independentes, articuladores e

até poetas que estabeleciam a necessidade de mudança do sistema e denunciavam os

problemas que atingiam, especialmente, os trabalhadores urbanos e industriais.

Surgiram nesse período os primeiros grupos operários com suas publicações

periódicas iniciais, como o Centro Social Obrero e a Unión Socialista, em 1897, que

buscaram expressar as reivindicações nacionais do proletariado chileno. Os grupos, que eram

orientados por idéias socialistas e anarquistas, disseminavam sua propaganda nos grandes

povoados e regiões industriais. Seus jornais eram elaborados, principalmente, em Santiago e

Valparaíso, na região salitreira e em Magallanes, traduzindo as aspirações de uma classe que

se formava vigorosamente.6

Eduardo Devés indica o início do socialismo científico no Chile, gestado na figura de

Alejandro Bustamante, no interior de duas organizações políticas: o Partido Obrero Francisco

Bilbao e o Partido Socialista, sucessor do primeiro.7 De acordo com o autor, este movimento

contrastava com o corte revolucionário dos grupos anteriormente mencionados, destacando

em seu programa a defesa do progresso, da liberdade; a oposição à servidão do povo e à

pressão exercida pela oligarquia; em combate à pobreza, bem como a defesa do sufrágio

universal. Tais documentos teriam sido redigidos por Ricardo Guerrero, apontado como o

primeiro marxista chileno.

A formação de partidos políticos ligados ao mundo operário se inicia em 1887, com a

fundação do Partido Democrático, grupo de tendência laica – denominação necessária para

um período no qual as disputas políticas se demarcavam com especial atenção na questão

religiosa – liberal e democrática. A identificação do grupo com as demandas de artesãos e

operários permitiu uma postulação reformista, de defesa da luta no interior do sistema vigente.

Ao mesmo tempo, formou-se no país um importante número de correntes anarquistas

identificadas com postulados libertários e que se filiaram à IWW (Industrial Workers of the

World).

6
JOBET, Julio César. Ensayo crítico del desarrollo económico social de Chile. 3.ed. México: Centro de
Estudios del movimiento obrero Salvador Allende, 1982, p. 123-124.
7
Cf. DEVÉS, Eduardo; DÍAZ, Carlos. El pensamiento socialista en Chile: antología 1893-1933. Chile:
Ediciones Documentas, 1987.
20

A prosperidade econômica vivenciada após a guerra de 1879 sofria flutuações e

crises que afetavam com maior intensidade os estratos mais pobres, situação que gerou o

gérmen dos movimentos de protesto que culminaram com a primeira greve geral do país, em

1890, abrindo um ciclo grevista de orientações trabalhistas e políticas que se estendeu por

quase duas décadas.

A partir de 1903, os trabalhadores chilenos passaram a realizar manifestações e

greves de maior repercussão. O nome de Luis Emilio Recabarren8, considerado o mais

importante líder do movimento dos trabalhadores no Chile, destacou-se nesse período de

efervescência social. Liderou manifestações por aumento de salário, redução de preços e

melhores condições de trabalho. Recabarren ingressou no Partido Democrata, que agrupava

artesãos e alguns setores operários e consistiu no único partido popular da época.

Recabarren é o principal nome do socialismo chileno a ser reivindicado pelo Partido

Socialista. Como um dos mais importantes líderes do movimento operário e fundador do

Partido Obrero Socialista, ele iniciou este grupo no intuito de criar uma organização que fosse

verdadeiramente representante dos trabalhadores, e o fez a partir da sua desvinculação do

Partido Democrata e da crítica à postura dessa organização.

É possível extrair das suas postulações algumas idéias que serão reivindicadas por

membros do socialismo, especialmente Jobet, na busca de uma identidade operária e de

elementos para o projeto socialista, que denotam o pioneirismo do líder operário no início do

século XX. A questão da independência de classe é uma das principais características do

pensamento de Recabarren, na medida em que ele já buscava diferenciar os componentes da

burguesia e da oligarquia nacional reunidos no Partido Democrata.

Egresso deste grupo, Recabarren publicou, em 1912, o folheto intitulado El

Socialismo, que constituiu o manifesto da nova organização fundada neste mesmo ano, em

Iquique, o Partido Obrero Socialista. Neste folheto, Recabarren se preocupa em tecer severas

críticas aos democratas, apontando-os como “vendidos da oligarquia”. Inicia-se, portanto,

8
A contribuição de Luis Emilio Recabarren é destacada em diversos trabalhos a respeito do desenvolvimento
marxista na América Latina e do movimento operário no Chile. Além das obras utilizadas no presente trabalho,
ver: JOBET, Julio César. Recabarren y los orígenes del movimiento obrero y el socialismo chilenos. 2.ed.
Santiago de Chile: PLA, 1973.
21

uma delimitação importante do movimento da esquerda nacional que, não obstante as

mudanças sofridas, será retomada com força em diferentes momentos: a independência de

classe, as críticas em torno do “reformismo burguês” e, especialmente, críticas à democracia

nacional:
[O programa democrata] só contém um programa de reformas por realizar sobre as
instituições existentes, ampliando-as, suavizando e democratizando, mas deixando
sempre o que são: instituições coercitivas da liberdade dominadas pela burguesia.
Democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo.9 [tradução nossa]

Recabarren dedicou-se à organização de uma estrutura sindical da classe operária e

consistiu no maior responsável pela organização do movimento e, posteriormente, passou a

ser o principal nome da Federación Obrera Chilena (FOCH), organização criada pelos

conservadores, sob bases mutualistas, com finalidade de assistência social e de mediações nas

relações de trabalho. A despeito desse caráter inicial, Recabarren passou a liderar o que viria a

ser um dos principais centros de atuação do proletariado chileno, gerando uma radicalização

das ações do setor e a sua filiação à Internacional Comunista, em 1921, pouco antes da

criação do Partido Comunista.

O líder tornou-se uma das referências do movimento operário chileno, dentre outros

motivos, por congregar o movimento trabalhista e a luta partidária no âmbito da política

institucional chilena, ao tomar contato com a teoria socialista. Essa particularidade do

movimento operário daquele país serve de referência para pensar que a adoção do marxismo

foi realizada historicamente e de acordo com a sua inserção nos processos políticos e sociais

específicos, legando ricas e frustrantes experiências históricas que permitem analisar

movimentos e culturas políticas desenvolvidas a partir desse encontro.

O exemplo da influência exercida pelos ideais revolucionários, com o triunfo da

Revolução Bolchevique, sobre a constituição da esquerda do país está na transformação do

Partido Obrero Socialista, fundado por Recabarren, em Partido Comunista, em 1921. A

mudança se deu após a sua visita a Moscou, ilustrada a partir do registro das suas impressões,

bastante equivocadas, que já deixam visualizar a concepção mecanicista de transplantação de

um modelo revolucionário:

9
RECABARREN, Luis Emilio. Democracia – Socialismo (1907). In: DEVÉS; DÍAZ, op. cit., p. 87.
22

Pude ver com alegria que os trabalhadores da Rússia tinham efetivamente em suas
mãos toda a força do poder político e econômico, e que parece impossível que tenha
no mundo força capaz de despojar o proletariado da Rússia daquele poder já
conquistado.
[...] ao proletariado do Chile só falta disciplinar um pouco mais sua organização
política e econômica para encontrar-se capacitado a realizar a revolução social que
expropriará todo o sistema de exploração capitalista [...]10 [tradução nossa]

Ao longo da década de 1920, diversos nomes se destacaram como herdeiros do ideal

de Recabarren, tais como Ramón Sepúlveda, Carlos Alberto Martinez, Manuel Hidalgo Plaza.

Foram líderes políticos que faziam parte do mundo operário e que trabalhavam em

organizações sociais, especialmente voltados para a difusão dos ideais socialistas da zona de

Valparaíso, do norte salitreiro, de organizações operárias de Viña Del Mar e do porto.

Parte dessas lideranças deixou o então Partido Comunista após cisões internas e

fundou grupos de orientação socialista que viriam a formar o Partido Socialista do Chile,

como a Nueva Acción Pública e a Izquierda Cristã. Somaram-se a eles o Partido Socialista

Marxista, a Orden Social, o Partido Socialista Unificado, a Acción Revolucionária Socialista.

Além do crescimento do operariado e de um movimento de esquerda, o Chile viveu,

no início do século XX, a ascensão das classes médias ao cenário político com forte

representação partidária. Dessa forma, a arena política chilena, que tinha como demarcação

dos debates a questão clerical/anticlerical, representados pelos partidos da oligarquia nacional,

evidenciou o conflito de classes latente no seio da sociedade, a partir do seu deslocamento

para a luta político-partidária e da colocação de novas alternativas que iriam percorrer todo o

século.

O sistema de partidos passou a se definir tanto em função de diferenças doutrinárias

como em termos de representação social: de modo geral, liberais e conservadores se

identificavam com a elite, proprietária de grande parte da terra e do capital; os radicais

representavam a classe média – em particular aos empregados públicos e aos profissionais de

província –, assim como aos grandes latifundiários do sul; democratas, socialistas e

comunistas eram os representantes das classes populares.

10
RECABARREN, Luis Emilio. La Rusia obrera-campesina. In: DEVÉS; DÍAZ, op. cit., p. 108-109.
23

Na década de 1930, portanto, iniciava-se o conflito político estruturado em dois

campos contrapostos - direita e esquerda - bem definidos; coexistindo, em cada um, uma

pluralidade de forças diferenciadas entre si, ainda que aglutinadas em torno de projetos

compartilhados e em função da sua confrontação em relação a outro setor. Sendo assim, é

possível falar em direitas e esquerdas, de acordo com os matizes que se advertiam no interior

de cada um desses blocos, no doutrinário ou nas estratégias políticas.11

Formando a ala direita da política chilena, tem-se o Partido Conservador que,

sinteticamente, pode ser caracterizado como o grupo representante da aristocracia

latifundiária. Além da defesa da doutrina católica, principal elemento de oposição ao Partido

Liberal, a plataforma conservadora apoiava com firmeza a livre empresa privada como fator

chave no processo de desenvolvimento do país.

Formado em 1840, o Partido Liberal representa um segmento da elite orientado para

o comércio. Com a proposta de laicização do Estado, da ampliação das liberdades civis e do

sufrágio, e da limitação da autoridade Executiva, as forças liberais chegaram ao poder em

1861 e governaram por trinta anos, durante a chamada “República Liberal”. Ideologicamente,

as diferenças entre estes e os Conservadores são bastante tênues, em especial, após o fim da

questão religiosa nos assuntos de Estado.

Conforme se verá adiante, durante o período de 1932 a 1964, o Partido Radical (PR)

teve o maior poderio eleitoral. Protagonista de um dos governos de maior impulso

modernizador, o grupo também apresenta divisões internas entre uma ala direitista que

identifica sua filosofia política com a dos conservadores e liberais, e uma ala esquerdista

promotora de reformas sociais. De acordo com Julio Pinto e Gabriel Salazar, trata-se de uma

divisão que tem suas raízes sociais e ideológicas. Sociologicamente, o PR foi dirigido pela

classe média de províncias, com um núcleo dirigente formado nas escolas secundárias do

Estado e na Universidade do Chile.12

11
CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 117.
12
SALAZAR, Gabriel; PINTO, Julio. Historia contemporánea de Chile I: Estado, legitimidad, ciudadanía.
Santiago: LOM, 1999, p. 275, v. 1.
24

Inicialmente, o anticlericalismo constituía o principal eixo ideológico do movimento,

com um desenvolvimento vinculado à maçonaria e à reforma educacional, além de

latifundiários do sul, de inclinação conservadora, que se transformaram em radicais pelo

desejo de reformas eclesiásticas e pela desconfiança em torno da centralização política. Este é

o partido do sistema político chileno que tem a mais variada composição, que compreende

desde operários até latifundiários. Inclui nortistas dos distritos mineiros, latifundiários do sul,

pequenos comerciantes, profissionais, intelectuais, artesãos, operários especializados. A sua

espinha dorsal provém da classe média.

Na esquerda, de forma muito particular no contexto latino-americano, o Partido

Comunista (PC) esteve representado precocemente e de forma mais consistente do que os seus

similares no subcontinente, marcando, assim, uma especificidade da esquerda chilena na

América Latina, que apresentou, primeiramente, a formação de um partido comunista

originado do movimento operário, para somente duas décadas depois se formar um partido

socialista.

O PC exerceu um papel central no movimento sindical do país durante quase

quarenta anos, ao mesmo tempo em que se configurou como a principal força política entre os

trabalhadores chilenos. De acordo com Pinto e Salazar, a mudança tática do partido, que passa

a seguir um caminho gradualista e pacífico até o poder, seu forte impacto em círculos

sindicais e intelectuais ajudou a manter a influência nacional da organização, chegando a

alcançar, no ano de 1964, aproximadamente 30.000 filiados.13

No entanto, o que se observa na história do Partido Comunista é a sua orientação a

partir dos ditames da Internacional Comunista, o que revela, entre as décadas de 1920 e 1930,

a adoção pelo PC da linha ultraesquerdista do chamado “Terceiro Período”, caracterizada por

uma postura confrontacional, que o isolou de outros grupos da esquerda nacional. Essa linha

13
Devemos considerar que os programas de recuperação econômica, adotados na década de 1930, além do
impulso à industrialização, significaram a incorporação de um importante segmento do setor popular urbano às
áreas fabris e à construção. O proletariado industrial, por exemplo, experimentou um aumento quantitativo que
variou de 84.991, em 1926, para 389.700, em 1949. ATRIA, Raul; TAGLE, Matias (Edit.). Estado y política en
Chile: ensayos sobre las bases sociales del desarrollo político chileno. Santiago de Chile: CPU, 1991, p. 162.
25

ditada pelo Comintern rechaçava os contatos com os partidos burgueses e objetava as

“tendências parlamentares” do Partido Socialista.

Por outro lado, os socialistas se contrapunham à orientação ultraesquerdista dos

comunistas, porque entendiam que essa postura isolaria a classe trabalhadora de outros

segmentos sociais igualmente explorados, e principalmente, por tratar-se da adoção de uma

orientação externa. O abandono da linha do “Terceiro Período” pelos comunistas deu-se a

partir da proposta de criação de amplas alianças, inclusive com os partidos considerados

burgueses, para salvar a democracia da ameaça fascista, consolidada na coalizão da Frente

Popular, em 1936.

Nos anos cinqüenta, a estratégia do PC era a de libertação nacional. Do ponto de

vista programático, permaneceram as chamadas tarefas da revolução: expropriação dos

latifúndios e nacionalização das empresas imperialistas; manteve-se da fase anterior a

intenção estratégica de aliança com a burguesia nacional, afirmando-se a concepção de que,

no Chile, o caminho poderia ser pacífico.14

No entanto, para os comunistas, havia terminado a etapa histórica de direção da

Frente de Libertação por parte da burguesia chilena. A aliança só seria segura se se optasse

pelos setores antagônicos ao imperialismo, aos monopólios e ao latifúndio. A esquerda

deveria, portanto, constituir a aliança comunista-socialista para atrair a esses setores da

burguesia; deveria se objetivar a hegemonia do proletariado, indicando-se, assim, como

núcleo, o eixo comunista-socialista. Esta nova linha estratégica apresentava como requisito

indispensável “a classe operária e as suas vanguardas como pólo dirigente da revolução de

libertação nacional”. Vale lembrar que o XX Congresso do PCUS admitia a tese da “transição

pacífica”, o que legitimava o percurso do PC chileno na década de 1950.15

O Partido Comunista considerava a sua luta como parte da revolução mundial do

proletariado a efetuar-se nos moldes da Revolução de Outubro. A Frente de Libertação

Nacional era considerada a ferramenta com a qual se poderia construir uma democracia

popular e um governo popular para a criação de um país independente e democrático.

14
AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. 2.ed. São Paulo: Annablume, 2002, p. 83.
15
Ibidem, p. 83-84.
26

No projeto comunista, a união das forças populares, dirigida pelos operários e

agricultores, desalojaria a minoria oligárquica do poder econômico e político para impulsionar

as reformas estruturais da sociedade. Tratava-se de uma organização essencialmente de

operários. Sua força provinha basicamente de trabalhadores urbanos e sindicalizados,

incluindo seguidores provenientes do setor camponês, a partir da década de 1950, fator

impulsionado, principalmente, após a Revolução Cubana; além de um pequeno segmento dos

setores médios e um número pequeno, mas significativo, de intelectuais.

Em geral, é possível indicar três momentos na trajetória do PC, sendo o primeiro, o

período que compreende desde a sua fundação, em 1921, até 1933. O segundo momento, que

abarca o período de 1933 até o X Congresso de 1956; e o terceiro até fins de 1980. O primeiro

momento se caracteriza como a etapa confrontacional, inserida no contexto de crise do Estado

oligárquico, no qual o PC preconizava a política do enfrentamento de classes e se mantinha à

margem da política estatal.

Como conseqüência da Guerra Fria, da ampliação do campo socialista e das

intervenções norte-americanas em diversas partes do mundo, a posição comunista se definiu

como uma linha de frentes amplas com signo antiimperialista. Nas eleições presidenciais de

1946, o PC fez parte de uma composição política com os radicais que elegeria Gonzalez

Videla à presidência da República.

Este governo herdou sérios problemas econômicos e sociais e se viu numa situação

delicada, especialmente no plano externo, devido à participação comunista na administração.

O Chile dependia dramaticamente do financiamento externo, ao mesmo tempo em que a sua

composição política era contrária à orientação da nova política exterior norte-americana no

período da guerra fria, cujo apelo à solidariedade nas nações americanas a fim de defender o

continente da ameaça comunista ditava as regras das relações entre os países vizinhos. Mesmo

após o afastamento dos comunistas do governo, os Estados Unidos mantiveram o embargo, a

fim de assegurar a completa ruptura entre o governo e o Partido Comunista.

No entanto, o apoio dos comunistas às greves contra a política do governo e as

permanentes críticas feitas à relação do Chile com os Estados Unidos proporcionaram ao


27

presidente González Videla a justificativa necessária ao rompimento definitivo com os

comunistas. Para conseguir conter a pressão do PC e a agitação operária, apoiada pelos

comunistas, o governo decretou, em 1948, a Lei de Defesa da Democracia, proscrevendo o

Partido Comunista e atingindo diretamente os direitos e liberdades sindicais. O movimento

operário e popular voltou a atuar com maior desenvoltura em meados da década de 1950.16

Já no X Congresso, de 1956, refletiu-se a tese da “transição pacífica” e a linha da

“frente única” entre socialistas e comunistas, substituindo a política de enfrentamento que a

Guerra Fria estabeleceu no mundo, e que foi ratificada na formação da Frente de Ação

Popular (FRAP), como se verá adiante. Os comunistas concebiam um movimento no qual era

essencial uma política de alianças pluriclassistas para a revolução de libertação nacional, no

bojo de um processo que acentuasse a participação das massas, levando em conta as suas lutas

de classe mais diretas.

Para que ambos se efetivassem, defendiam reformas substanciais nas estruturas

políticas do país, de forma a que se restaurassem todas as liberdades políticas, com vistas a

um aprofundamento de processo de democratização. Nesse sentido, o Partido Comunista foi

uma das forças políticas que mais se empenharam na defesa de reformas políticas e

institucionais de cunho democratizante, visando aperfeiçoar o sistema institucional.17

Este contexto que permitiu a formação da FRAP marca um momento de redefinição

para o socialismo chileno, cuja cultura política fora caracterizada por forte antagonismo ao

comunismo. A criação do Partido Socialista se deve também à insatisfação de alguns grupos

socialistas com a liderança comunista dentro da esquerda, o que o levou a delimitar, desde o

início, o caráter alternativo ao comunismo na esquerda nacional como uma das suas principais

características, e que se fortaleceu ao longo da sua trajetória. A sua história tem a

particularidade do contexto de crítica ao stalinismo, à política da URSS e aos partidos

comunistas. O partido se autodefiniu, constantemente, a partir da diferenciação com relação

ao comunismo, do anseio de realizar o que o PC não havia sido capaz de fazer, e de

representar “verdadeiramente” os anseios populares.

16
AGGIO, op. cit., 1999, p. 152-153.
17
AGGIO, op. cit., 2002, p. 84.
28

É preciso problematizar o surgimento da esquerda chilena, já que esta se formou

primeiramente com o comunismo, com o pioneirismo de Recabarren. O fortalecimento do PS

se deu no momento de crise da URSS, o que permite afirmar que o seu discurso, caracterizado

como humanista e libertário, também tem a ver com esse momento de contestação ao regime

soviético e das denúncias contra o stalinismo.

O Partido Socialista, fundado em 1932, pode ser caracterizado como um grupo

formado essencialmente pelas classes médias, unido por uma concepção bastante difusa do

socialismo. Sua formação tem como marco a República Socialista de 12 dias, movimento

liderado pelo comandante da aviação Marmaduque Grove, para destituir do governo Esteban

Monteiro, primeiro presidente eleito pelo Partido Radical.

Deste governo pode-se afirmar que Monteiro buscou articular em torno de si apenas

os setores tradicionais da política chilena, deixando de lado a esquerda que se fortalecia e que

tentava afirmar um projeto de ação capaz de superar a grave questão social que atingia o país.

A partir deste evento, as organizações socialistas se reuniram para formar o Partido Socialista,

que esteve sob a liderança de Grove até 1943.18

Tratava-se inicialmente de uma organização definida como marxista, mas que

privilegiava um projeto nacional e popular e que enfatizava o caráter pluriclassista da sua

identidade. É possível afirmar que se tratou de uma organização que veio compor um novo

quadro político que se configurava no país, marcado pela concepção antioligárquica e

antiimperialista. Seu caráter nacional e popular, além da sua caracterização como um partido

dos trabalhadores manuais e intelectuais, e que não admitia a divisão classista, marca a

postura do grupo que também se comprometeu com a proposta modernizadora da Frente

Popular, abrindo, assim, a primeira etapa das recorrentes cisões no partido.

Podemos destacar que, o que definiria a adesão de um indivíduo ao Partido Socialista

não seria o “seu pertencimento de classe, mas a sua consciência política revolucionária, a sua

oposição à oligarquia e ao capital estrangeiro”, como é possível observar no seguinte excerto:

18
Os líderes da rebelião foram destituídos e presos na Ilha de Páscoa. Ainda em 1932, Marmaduque Grove
concorreu à eleição presidencial, vencida por Arturo Alessandri, e obteve a segunda colocação, com 17,7% dos
votos.
29

Não se vem ao Partido porque é intelectual ou operário, vem porque se adquiriu


consciência revolucionária do atual momento histórico. Por isso lutamos contra a
demagogia, a mentira de fazer crer que só os intelectuais poderão salvar-nos, ou que
só os operários são os revolucionários. Por isso é um atentado à unidade de nosso
partido o divisionismo mentiroso do obrerismo e intelectualismo, e quem atenta
contra a unidade do Partido Socialista atenta hoje contra o futuro do povo,
pretendendo destruir o seu instrumento de libertação. 19 [tradução nossa]

Ainda de acordo com Schnake, uma das principais lideranças do grupo naquele

contexto, o movimento que originou o partido se denominava socialista por ser contrário ao

liberalismo individualista. O partido se caracterizaria pela “unidade social e política da classe

operária, setores camponeses e classe média do país, no intuito de libertar-se da exploração

econômica e política do capital internacional e da oligarquia”. Nas suas palavras, significava a

mobilização do povo para uma ação de Segunda Independência Nacional, a Independência

Econômica do Chile.

Essa característica nacionalista do socialismo chileno é um dos componentes que vão

perdurar ao longo da sua história, mas que, como se nota, trata-se também de uma forma de

demarcar a originalidade do movimento frente ao comunismo, entendido como uma extensão

do socialismo soviético; além de referendar o passado das lutas operárias e se projetar como

alternativa para o futuro, um dos determinantes mais evidentes da ação do PS, constantemente

preocupado com a “chilenidad” dos seus pressupostos, como afirma Marie Noëlle Sarget.20

Trata-se de um nacionalismo unido ao ideal da união continental fundado no sonho de

Bolívar.

Um elemento que ilustra esse ideal nacionalista é o símbolo do Partido Socialista,

que permite observar a constante referência feita ao passado do país, assim como aos ideais de

luta e da originalidade do grupo. O desenho de um machado índio sobre o mapa da América

Latina remete ao “toqui”, instrumento utilizado pelos índios mapuche, do sul do Chile, tanto

para destruir, como para construir, e que se tornou símbolo da resistência mapuche ao invasor

19
SCHNAKE, Oscar. Política Socialista (1938). In: WITKER, Alejandro (Org.). História documental del
PSCH 1933-1993: signos de identidad. Chile: IELCO, sd, p. 23-24, v.18.
20
SARGET, Marie-Noëlle. Système politique et Parti Socialiste au Chili: un essai d’analyse systematique.
Paris: Éditions L’Harmattan, 1994.
30

espanhol. O símbolo é colocado sobre o mapa do continente para se referir à coletividade, à

união e à libertação antiimperialista.21

Em geral, os postulados da República Socialista de 1932 apregoavam a justiça social

e a libertação econômica do país por meio da união dos trabalhadores manuais e intelectuais.

Sendo a união de diferentes setores sociais um dos principais pontos da declaração socialista,

assim como a definição de socialismo como um programa contrário ao “liberalismo

individualista”. Questionado sobre qual ideologia correspondia à revolução, seu representante,

Marmaduque Grove, respondeu:


A nenhuma. Nós tratamos de fazer para esta revolução seu peculiar conteúdo
ideológico [...] As doutrinas sociais foram criadas [a partir da] observação da
realidade européia [...] Assim que aplicadas na América Latina, cuja realidade é
distinta, postergam-nos as soluções imediatas de nossos problemas e introduzem o
confusionismo.22 [tradução nossa]

Esta afirmação dá uma dimensão do caráter inicial do PS, que apregoava, dentre

outras coisas, a flexibilidade das ideologias, como na utilização do marxismo, e do caráter

pluriclassista de um grupo que era composto de correntes ideológicas que variavam desde

tendências trotskistas, passando por grupos denominados antioligárquicos, latino-

americanistas, até personalidades intelectuais advindas do anarquismo e do socialismo

humanista. Os autores latino-americanos não chilenos influenciaram relativamente pouco o

PS, em comparação com outros marxistas europeus. O argentino Juan B. Justo e José Carlos

Mariátegui, marxista peruano, figuram entre os autores socialistas que ocupam lugar em

algumas referências, mais por traduções e comentários que fizeram da obra de Marx.

No entanto, o partido valoriza constantemente a contribuição de autores nacionais,

como Recabarren e, sobretudo, a daqueles fundadores do partido, como Grove, Eugenio

Matte, Oscar Schnake, nomes que constituíram a liderança nos primeiros anos de vida do

partido. Além disso, o grupo conferia especial espaço aos escritores do partido, como Jobet,

Alejandro Chelén, Raul Ampuero, Salomon Corbalán, Eugenio Gonzalez, Oscar Waiss, cujos

textos, especialmente após a década de 1940, contribuíram diretamente para forjar uma

determinada cultura política ao partido, bem como sua identidade.

21
SARGET, op. cit., p. 79.
22
GROVE, Marmaduque. Manifiesto Socialista (1934). In: WITKER, op. cit., p. 221.
31

Esses membros, em especial quando formavam parte do Comitê Central (CC),

tinham importante influência nas deliberações do partido quanto às linhas e rumos a adotar. O

CC representava a organização nas suas relações com outros grupos, decidia os acordos a

estabelecer, designava as candidaturas socialistas em via de eleições, tomava as sanções

eventuais contra dirigentes e militantes, nomeava e destituía diretores da imprensa do partido

e aplicava as decisões do Congresso Geral. Além de exercerem forte influência nas idéias a

serem seguidas pelo grupo, já que o conteúdo teórico-ideológico representava um elemento

muito valorizado na condução no partido.

É possível conceber a história do Partido Socialista em duas etapas. A primeira pode

ser demarcada do momento da sua fundação até a reunificação do socialismo, em 1957;

enquanto que a segunda abarca desse momento até a divisão de 1979; sem, no entanto,

caracterizar-se como momentos estanques, ou seja, trata-se de momentos nos quais elementos

diversos, concertacionistas e rupturais se imbricavam na conformação da cultura política

socialista, além da sua identificação latino-americanista, popular e dos objetivos de ocupação

do poder serem elementos compartilhados por grupos internos com orientações diferentes.

São concebidas aqui essas duas fases na trajetória do socialismo chileno por entender-se que

ocorre uma modificação na postura ideológica do Partido Socialista, demarcada pela

predominância do caráter confrontacional a partir do final da década de 1950 naquele

movimento.

A etapa que compreende o período de 1933 a 1957 pode ser definida como o

momento nacional-popular23, no contexto em que o socialismo surgiu como uma alternativa

para as classes populares e setores médios, apresentando características definidas por uma

clara distinção ideológica e política dos comunistas, antioligárquicas e antiimperialistas.

23
Um projeto nacional-popular tem como características: a concepção da política como constituição da vontade
coletiva, como uma busca pelo consenso, e não como o aproveitamento das conjunturas em função de uma
mobilização manipulada de massas disponíveis; pensa cada um dos elementos da política em uma perspectiva
utópica, como realização de graus cada vez maiores de democracia, portanto, como processo que deve conduzir
ao socialismo, este concebido como sistema que permite a máxima liberdade de todos; e o consenso é encarado
como algo além da articulação de interesses econômicos e políticos, trata-se de um pacto social em função de
uma mudança concertada. Cf. MOULIAN, Tomás. Democracia y socialismo en Chile. Santiago: FLACSO,
1983.
32

Esta distinção é demarcada por elementos, como um papel mais flexível e

instrumental do marxismo, a necessidade de substituir o Estado burguês pelo Estado dos

trabalhadores, a superação do capitalismo, crítica ao internacionalismo comunista, a definição

do partido como popular e não exclusivamente operário. Além disso, a defesa, por parte das

suas principais lideranças do período, da participação ativa em coalizões de governo, e a

defesa de programas de reformas democratizantes, de fomento à industrialização e do

fortalecimento do papel do Estado como regulador das desigualdades.

Esse foi um período bastante conturbado na história do partido, que reunia diferentes

grupos e concepções acerca do papel do socialismo. Incapacidade de influência do partido nas

decisões do governo, “seguidismo frente à direção burguesa” e ausência de uma perspectiva

estratégica para iniciar o processo de construção socialista a partir da etapa de reformas,

foram algumas das críticas internas dirigidas às lideranças do grupo. Começava a se delinear a

trajetória da convivência conflitiva entre as tendências com pretensões confrontacionais e os

grupos que defendiam alianças e a promoção de reformas a partir do Estado.

A segunda etapa do socialismo chileno é o momento do qual se ocupa o presente

trabalho, identificada na mudança das suas lideranças. Esta pode se caracterizar por sua

crescente ideologização e o progressivo abandono da perspectiva nacional-popular,

influenciada por processos e teorias revolucionárias externos, além do descontentamento com

as experiências de governo vivenciadas pelo país sob o comando das classes dominantes;

tendência alimentada por concepções que visualizavam uma crise total na sociedade, que

passavam a guiar seus projetos políticos.

Características centrais da cultura política socialista, como o nacionalismo, o

antiimperialismo, a postulação da substituição do Estado burguês pelo Estado dos

Trabalhadores eram compartilhadas por esta nova tendência à frente do socialismo. No

entanto, o Partido Socialista confrontaria então o que se denominou na época de

“colaboracionismo”, expresso na política de lideranças do socialismo chileno que

participaram do governo da Frente Popular, como Grove, Oscar Schnake e Salvador Allende,
33

e o “inconformismo” de algumas de suas lideranças apoiadas por intelectuais como Oscar

Waiss, Julio César Jobet e Alejandro Chelén Rojas.

O governo da FP pode ser considerado o processo que ratificou a incorporação da

esquerda no cenário político do Chile, a partir da formação de uma aliança entre o Partido

Radical e os partidos Comunista e Socialista, apesar das péssimas relações estabelecidas entre

ambos, como resultado basicamente de duas conjunturas específicas: uma crise econômica

marcada por agitações populares reprimidas pelo segundo governo de Arturo Alessandri

(Alianza Liberal) e uma estratégia política externa advinda da tática definida no VII

Congresso da Internacional Comunista, em 1935. A partir desta diretiva, formou-se a coalizão

no Chile para estabelecer a oposição ao governo autoritário alessandrista. Além disso, é

preciso destacar que a formação da coalizão foi favorecida por uma série de iniciativas

políticas graduais que propugnavam alianças entre forças políticas consideradas defensoras

das “liberdades públicas”.24

Diante da impossibilidade de uma aliança com a direita, que sustentava o governo

repressor, os Radicais assumiram uma postura mais à esquerda. Outro fator que contribuiu

para a união dos diferentes segmentos foi a repressão do governo contra os sindicatos, que

atingiu seguidores dos partidos populares; bem como a represália a uma expressiva greve dos

ferroviários. Portanto, essas medidas do governo deram maior sustentação ao projeto da FP à

medida que validou a posição dos dirigentes do Partido Radical a favor de uma aliança

antialessandrista e ocasionou a convergência dos interesses dos partidos de esquerda.

Pela Frente Popular, Pedro Aguirre Cerda, indicado como pré-candidato à

Presidência da República, venceu a disputa interna em que o Partido Socialista apresentou a

candidatura de Marmaduque Grove, um dos principais líderes do grupo, e que passou a ser

presidente de honra da aliança. Numa conjuntura de fortes suspeitas de instalação de uma

ditadura no país comandada por Alessandri, a eleição de 1938 tornava-se decisiva para a

democracia do país. A necessidade de barrar o governo repressor por meio da unidade dos

setores populares se refletiu na eleição do candidato da coalizão.

24
AGGIO, op. cit., 1999, p. 102.
34

A despeito das divergências presentes na aliança, que se tornaram fator de desunião

após a conquista do governo, a política conduzida pelo Partido Radical possibilitou relativo

consenso em torno de temas como o fortalecimento da democracia representativa no país, do

desenvolvimento econômico e, principalmente, a presença do Estado na economia e da defesa

dos interesses sociais e políticos das camadas subalternas.

A emergência dessa coalizão política, que compartilhava a defesa da democracia

como um dos principais valores, garantiu maior estabilidade ao sistema político do país,

assegurando aos partidos de esquerda o seu papel de representantes dos trabalhadores no

quadro institucional e também uma ampliação das suas bases sociais. São fatores que,

contudo, foram concebidos negativamente por suas lideranças, a partir das décadas seguintes,

e que teve a complexidade da sua formação política e social negligenciada por Jobet e por

intelectuais, que, como ele, debruçaram-se sobre a formulação e difusão de idéias rupturais.

Estas teses eram baseadas em concepções preestabelecidas nos moldes do socialismo

internacional, direcionando o debate e a condução política por parte da esquerda para uma

polarização.

O processo político iniciado em 1938 pode ser caracterizado como o marco da

consolidação da modernização do país, anunciada na década de 1920, como a afirmação de

um novo papel do Estado na economia e da democracia representativa. Essa política

conduzida pela Frente Popular, no entanto, não correspondeu integralmente às aspirações dos

grupos que a constituía, principalmente, devido à correlação de forças estabelecida no

governo, que favorecia, em grande medida, à direita.

A direita, que além do poder econômico, contava com maioria parlamentar,

representou um obstáculo à implementação de medidas democratizantes que afetavam seus

interesses imediatos. Nesse sentido, a esquerda ficou impossibilitada de influenciar as

resoluções na economia de maneira a alcançar seus objetivos por meio de projetos de

desenvolvimento e da diminuição da dependência do país em relação ao capital estrangeiro.25

25
AGGIO, op. cit., 1999, p. 22.
35

Depois da vitória da Frente Popular, em 1938, a direita conseguiu se favorecer nas

disputas no governo, num período em que deveria enfrentar ameaças à manutenção da

estrutura social e dos seus interesses, dentre elas o desafio à ordem senhorial no mundo rural.

Esta questão colocava para o setor o dilema de como evitar a formação de sindicatos nos

campos, que os partidos de esquerda começavam a propugnar. Assim, o período aberto em

1938, no que concerne às dificuldades e restrições à organização sindical no campo pode ser

registrado como negativo para as expectativas da esquerda.

De acordo com Sofia e Consuelo, estas mudanças seriam sentidas nas décadas

seguintes, junto com a chegada de pautas culturais urbanas ao mundo rural, agora mais

permeável devido à difusão do rádio e da bicicleta. Além disso, os partidos de esquerda e a

Democracia Cristã, principal motor da política nacional da década de 1960, penetraram, pela

primeira vez, de forma exitosa no campo, tornando esse setor um espaço de disputa política

entre estes grupos pela adesão do campesinato, mobilizando-os em prol de demandas

trabalhistas e com promessa de divisão de terras, o que significou, posteriormente, o aumento

das greves camponesas.26

Como destaca Aggio, as divergências na esquerda se acentuaram a partir do

momento em que o PR assumiu a hegemonia da coalizão e que Pedro Aguirre Cerda,

apontado como uma expressão da moderação e da negociação política, foi designado

candidato presidencial da FP. 27 Além disso, a despeito da pressão da retórica ruptural exposta

pela esquerda, pautada em propostas nacionalistas e de amplo apelo popular, a esquerda não

foi capaz de ditar de maneira determinante os rumos da condução do governo. Estas são as

principais limitações que ficaram marcadas na participação socialista no governo, e que foram

criticadas por parte das suas lideranças, especialmente, a partir da década de 1950.

De acordo com Sarget, durante as presidências radicais, o Partido Socialista teria

sido um elemento totalmente passivo no sistema político chileno, de maneira que o sistema

teria agido sobre ele, ameaçando a sua identidade; relação que se inverteria durante a década

26
CORREA; FIGUEROA, op. cit.., p. 223.
27
AGGIO, op. cit., 1999, p. 123.
36

de 1950, na qual o partido se tornaria um dos elementos motores do sistema político,

juntamente com a grande novidade que representava a Democracia Cristã.28

No entanto, entendemos que ao longo da sua trajetória, em especial durante a

experiência da coalizão, o Partido Socialista exerceu importante papel na expressão dos

conflitos sociais e demandas populares, na mobilização do mundo do trabalho e na defesa

desses interesses, ao mesmo tempo em que canalizou tais demandas para inseri-las nas pautas

do quadro institucional.

Além do partido se constituir em um importante grupo de pressão e de mobilização

dos grupos populares, o período contribuiu para forjar a sua identidade, cuja delimitação se

deu em relação aos outros grupos políticos – como o Partido Radical, representante dos

setores médios, e do Partido Comunista, que, no discurso socialista, servia de instrumento

para a política soviética –; identidade que assumiu novos contornos e veio a se impor como

um forte elemento para a polarização ideológica do sistema político do país.

Esta história foi marcada por embates entre os grupos de esquerda que conquistaram

uma rápida inserção e poder de representação no quadro institucional e que mudaram a

configuração política chilena. A análise desta experiência e das idéias e perspectivas que

constituíram o socialismo chileno remete para uma história singular na América Latina.

A apreensão das motivações e perspectivas que animaram o socialismo daquele país

requer um mapeamento da trajetória dos grupos que protagonizaram aquele processo,

consistindo, assim, a perspectiva adotada, numa análise das idéias que constituíram a cultura

política do socialismo e das conseqüências advindas da sua postura, a partir do aporte de uma

das suas principais referências intelectuais. Para tanto, a análise deve se centrar naquele que é

o principal contexto de definição da polarização ideológica característica do período de 1957

a 1973.

Nesse período, de acordo com Jocelyn Holt, o Chile começava a ser pensado em

termos de subdesenvolvimento e de atraso, de maneira que, segundo alguns intérpretes da

época, a realidade vivida por aquela sociedade corroborava tal qualificação. Pode-se afirmar,

28
SARGET, op. cit., p. 214.
37

no entanto, que mais do que germinar essa concepção acerca da sociedade chilena, o período

marca uma difusão e cristalização de idéias já construídas, principalmente, pela esquerda

política daquele país.

Concepções traduzidas em diversas manifestações intelectuais e políticas que

apresentaram importantes nomes, como Aníbal Pinto, Julio César Jobet, Jorge Ahumada, que

conferiram à ação política de diversos grupos o conteúdo teórico e ideológico ao longo das

suas trajetórias na política nacional. Estas postulações contribuíram para a forte polarização

ideológica que caracterizou a década de 1960, e consequentemente, as concepções em torno

da condução do governo da Unidade Popular.

Com a formação de um forte e combativo movimento operário no Chile, desde fins

do século XIX, a questão social ocupou espaços no debate intelectual e político, de forma que

os setores populares passaram a ser solicitados como apoio eleitoral no discurso dos partidos

tradicionais, mas sem ser canalizados pelos mesmos. Esse contexto de ausência de um partido

ou movimento que conseguisse articular as demandas das classes populares em crescimento, e

que exercia forte pressão naquela sociedade determinou, em grande medida, a formação dos

partidos de esquerda.

Primeiro, o Partido Comunista, − criado exclusivamente por líderes do movimento

sindical de princípios do século XX, e que, inicialmente, teve apoio fundamentalmente

operário − e, posteriormente, o Partido Socialista, com uma formação bastante eclética, que

reunia desde militares até operários, e conseguiu tornar-se um dos maiores representantes
populares do sistema político chileno.
Diferentemente dos seus similares na América Latina, os partidos de esquerda do
Chile não se isolaram da cultura e dos movimentos populares, ao contrário, constituíram-se
em seus principais representantes políticos. Nas palavras de Moulian:
[...] o marxismo representou no Chile algo mais que a ideologia de um conjunto de
partidos, com uma relação superficial e aparente com as massas, uma simples
referência ritual, importante para os intelectuais políticos, mas carente de sentido
para os “homens comuns”. É possível afirmar que constituiu um componente
importante da cultura política nacional, especialmente entre os setores populares.
Desenvolveu-se como um dos sistemas hegemônicos no âmbito das ideologias
38

políticas, cuja influência se podia sentir além dos partidos políticos de esquerda.29
[tradução nossa]

Ainda que o presente trabalho não possa apreender o alcance do marxismo e da

teoria política da esquerda chilena para além dos seus quadros, essa cultura política que reúne

indivíduos em torno de concepções acerca da política, da sociedade, de projetos e da diferença

entre os grupos políticos e sociais, tem especial importância na mobilização de diversos

setores. Mesmo se pensarmos que o marxismo surgia consubstanciado na figura material do

partido, como uma entidade aglutinadora onde os intelectuais adquiriam sua organicidade,

esta idéia é bastante válida.

Esse processo de formação da esquerda política do país, da sua incorporação no

sistema institucional e da introdução dos seus projetos políticos demarca o início da trajetória

desta tendência que vivenciou a expectativa do trânsito democrático ao socialismo. A

construção desta experiência pode ser avaliada desde a atuação do seu movimento operário no

século XIX, até a posterior organização dos seus partidos de representação popular, não se

configurando, portanto, como uma experiência discrepante dentro da sua trajetória.

É possível afirmar que um dos fatores mais destacados da vida política chilena foi a

existência de uma esquerda muito forte e estruturada, no sentido da sua constante participação

e no exercício da pressão política sobre o centro decisório, além da capacidade de mobilização

que remonta às suas origens. Esta trajetória diferenciada de um movimento de esquerda na

política institucional dentro da América Latina foi um dos elementos discutidos e

incompreendidos por parte da historiografia do país.

29
MOULIAN, Tomás. La forja de ilusiones: el sistema de partidos (1932-1973). Santiago: FLACSO, 1993, p.
73.
39

1.2 Elementos da historiografia do socialismo chileno

O tema do socialismo chileno adquiriu espaço considerável na historiografia daquele

país, porém com contornos pouco diferenciados no que se refere às abordagens adotadas. Em

geral, encontram-se trabalhos destinados a analisar o sistema político nacional, preocupados

com o seu desenvolvimento a partir das influências e relações entre os diferentes partidos que

o compuseram, entre eles, os partidos de esquerda.

Em geral, as avaliações acerca da esquerda se remetem à trajetória dos seus partidos,

e, pautam-se nas mesmas categorias analíticas adotadas no período analisado, de maneira a

apontar os limites e os desvios políticos de suas escolhas, visto que grande parte desses

trabalhos é elaborada por protagonistas daquele processo30; além de compilações de

documentos referentes a diferentes períodos dessas trajetórias.31

É possível destacar também trabalhos dedicados ao Partido Socialista que buscaram

identificar suas principais características, e, numa abordagem que abarca a sua trajetória desde

a sua fundação até o seu governo, em 1970, analisa a sua participação no sistema

institucional, numa avaliação que adquiriu poucas variações. Dentre elas, podemos destacar

comparações com o Partido Comunista e, principalmente, a indicação de “desvios” na sua

prática política, especialmente no que se refere a sua atuação político-institucional, bem como

as deficiências táticas na transição ao socialismo no governo da Unidade Popular.

Uma das análises mais significativas desta concepção de deficiência tática na

condução do governo para a construção do socialismo é a abordagem presente no trabalho de

Ignácio Walker, cuja hipótese central sustenta que a ausência de uma concepção socialista

democrática privou Allende do necessário apoio político no interior da coalizão de partidos

30
ALTAMIRANO, Carlos. Dialética de uma derrota: Chile 1970-1973. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979.
Neste trabalho, Altamirano tece duras críticas à UP por sua “inadequada percepção política da inevitabilidade do
conflito”; Alejandro Chelén, liderança intelectualmente próxima a Altamirano, publicou Trayectória del
Socialismo: apuntes para una historia critica del socialismo chileno. Trata-se de um trabalho que expressa
significativamente a posição “inconformista”, que se opôs às participações governamentais em coalizões
pluripartidárias do PS e cobrou uma posição confrontacional do partido.
31
Além das compilações utilizadas neste trabalho, podemos citar El socialismo y la unidad: (cartas del Partido
Socialista al Partido Comunista). Colección Documentos, n.1, Santiago, 1966, publicada pela Secretaria de
Educação Política do PS.
40

que o conduziu ao poder, o que teria contribuído para o fracasso da “via allendista” ao

socialismo.32

Numa leitura teleológica da trajetória do Partido Socialista, Walker entende que o

desfecho do processo do governo socialista esteve determinado pela supremacia de uma

estratégia que pregava a “inevitabilidade do conflito” no interior do partido composto por

diferentes correntes e que evoluiu do populismo para o leninismo. O que se pode observar é

que estas análises estão condicionadas pelo desfecho da “experiência chilena”, cuja imagem

de tragédia é apresentada como um fato inexorável devido à trajetória e composição do seu

principal representante político, o Partido Socialista.

Para o autor, havia uma tensão entre a retórica (revolucionária) e a prática (populista)

no partido, marcando a sua história de contradições. Suas características nacional-popular,

antiimperialista e antioligárquica demonstrariam, de acordo com Walker, a decisiva influência

que o fenômeno populista teria exercido sobre o socialismo chileno, assim como a concepção

de “segunda independência nacional” e a idéia da união entre os trabalhadores manuais e

intelectuais, elementos centrais da Declaração de Princípios do PS. Mas a crítica ao partido se

remete, especialmente, à participação do Partido Socialista no governo de cunho

modernizador da Frente Popular.

Numa tentativa de explorar as possibilidades e tensões em torno da viabilidade de um

projeto socialista democrático no interior de um partido marcado pelas diversidades internas e

que teve um papel central na política chilena ao longo do século XX, o autor,

equivocadamente, aponta para a sua inviabilidade, pautando-se numa concepção determinista

da trajetória do movimento socialista chileno, como um resultado lógico na história de um

grupo “cuja postura democrática havia sido marginal desde a sua formação”.33

Outro nome significativo dessa abordagem é o de Paul Drake, cujo trabalho se

fundamenta na análise do que o autor define como uma “relação instável do PS com o sistema

político”, apontando características do grupo, tais como uma liderança caudilhista-

32
Cf. WALKER, Ignácio. Del populismo al leninismo y la “inevitabilidad del conflito”: el Partido Socialista
de Chile (1933-1973). Santiago: Cieplan, 1986. (Documento de Trabajo).
33
Ibidem, p. 113.
41

carismática, o conflito ideológico, as incoerências táticas e estratégicas, expressas na

dualidade radicalismo ideológico-eleitoralismo político.34

Para Drake, a participação do Partido Socialista na Frente Popular, bem como o seu

esforço para adaptar-se a sua realidade, às condições nacionais específicas, como a tradição

cultural, a estrutura social e o subdesenvolvimento econômico do país, acarretando um desvio

das suas interpretações fundamentais das metas marxistas, são elementos que demonstram a

sua inserção no modelo do populismo latino-americano. Frente à participação do Partido

Socialista no processo de modernização e transformação política da sociedade se estabeleceu

a identificação do grupo com o denominado populismo através dos seguintes elementos

definidores:
Dentro de seu partido, os socialistas chilenos mantinham técnicas de campanha,
propostas de programas e alianças sociais altamente populistas nos anos 30. Além
disso, formaram coalizões multipartidárias e pluriclassistas que aspiravam a
programas populistas de desenvolvimento nos anos 40. [tradução nossa]35

Drake utiliza elementos de definição do denominado populismo de maneira a

identificar o socialismo chileno como parte desse modelo político. Em especial, o autor utiliza

três aspectos: estilo de mobilização, liderança e campanha, enfoque que daria maior espaço ao

paternalismo, ao nacionalismo e à gratificação das massas; a coalizão heterogênea, que se

refere em geral à classe trabalhadora, mas que inclui setores significativos das classes médias;

a associação a um conjunto eclético de políticas adotadas durante períodos de modernização,

programas de integração nacional correspondentes aos problemas de subdesenvolvimento,

incorporando os trabalhadores ao processo de industrialização acelerada através de “medidas

redistributivas leves”.

Contraditoriamente, o autor destaca as características socialistas do grupo, em

especial a sua marca “anti statu quo”, a ênfase na classe trabalhadora e os objetivos socialistas

revolucionários. Tais características teriam sido acentuadas ao longo da sua trajetória devido

às insuficiências do governo de coalizão para realizar as transformações desejadas, causando,

nas suas palavras, a decadência do partido, para retomar um rumo mais independente a partir

34
DRAKE, Paul. Socialismo y populismo – Chile 1936-1973. Valparaíso: Universidad Católica de Valparaíso,
1992.
35
Ibidem, p. 10.
42

da década de 1950. Ainda que o grupo tenha enfatizado a sua ideologia, como o conflito de

classes, a manutenção da sua atuação no marco institucional reafirmaria sua característica

populista.

Estas afirmações contraditórias não permitem a inserção do partido no radicalismo

socialista ou na conciliação populista, tais como a questão da presença dos setores médios

como fator de moderação e flexibilidade para a formação de alianças com diferentes setores.

Ao mesmo tempo em que os intelectuais, que também são parte desses extratos médios do

grupo, são apontados como elementos que contribuíram para a radicalidade ideológica do

partido.

Primeiramente, podemos apontar a generalidade de um conceito que é utilizado para

definir movimentos políticos e correntes ideológicas as mais diversas surgidas em regiões tão

diferentes. Entendido como uma forma particular de ideologia ou um tipo de movimento, o

que se deve notar, especialmente nesta abordagem, é a demasiada atenção voltada para o

papel carismático e manipulador exercido pelos líderes políticos que canalizam anseios

populares e são beneficiados pela inexperiência política de seus representados.

O termo populismo, surgido na década de 1950, com o propósito de expressar a

singularidade da história latino-americana, foi utilizado na maioria das vezes como forma de

generalização de diferentes experiências políticas por meio do enquadramento destas em

modelos estabelecidos. Para os analistas, o termo faria referência especificamente ao processo

de reestruturação das relações políticas e econômicas das sociedades latino-americanas e que

visava essencialmente a integração subordinada de diferentes grupos sociais na nova ordem

política que emergia. Especialmente, o populismo serviria como salvaguarda contra eventuais

tendências revolucionárias das classes populares num momento em que essas passaram a

desempenhar um inédito papel político e social.36

36
O objetivo do presente trabalho não é alongar-se na discussão acerca do conceito de populismo, mas de
apontar para a indevida utilização que é feita do termo para desqualificar a trajetória de diferentes movimentos
ou personagens políticos, neste caso, especialmente, do socialismo chileno, preferindo negligenciar as
especificidades que contribuíram para a composição da sua cultura política. Cf. ANDRADE, César Ricardo de.
O conceito de populismo nas ciências sociais latino-americanas. Estudos de História, Franca, v. 7, n. 2, p. 69-
84, 2000.
43

Entende-se aqui, que a compreensão da trajetória do socialismo chileno deve partir

da concepção de que a formação do Partido Socialista se deu no contexto de emergência de

uma diversidade de atores sociais e políticos com um conjunto de projetos contestadores da

ordem, bem como uma nova orientação para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo em que

instituições estruturadas pelo liberalismo mostraram insuficiência para acomodar conflitos e

promover integração social no momento de emergência das massas. De acordo com Aggio:
Num país da periferia do mundo como o Chile e numa época em que os supostos do
liberalismo, que haviam florescido e fulgurado no século XIX, encontravam-se
inteiramente questionados, a reestruturação do papel do Estado assumia, sem
dúvida, o lugar central como elemento definidor das ações políticas. Em relação a
isso, não seria incorreto observar que um pano de fundo único estruturava os
projetos políticos, dando um sentido propositivo ao final da década de 1930. Cada
ator político, à sua maneira, realçava o papel do Estado no sentido de estimular,
intervir ou nacionalizar a economia, regular e proteger o social, afirmar e
incrementar a autoridade dos governos [...]37

O movimento modernizador que mobilizou parcela significativa da sociedade teve a

sua explicação política no conceito do populismo. Considerando que a passagem para a

modernidade na América Latina não se deu por meio de revoluções, a recorrente utilização do

conceito denota sobretudo o seu contrário, isto é, o antipopulismo.38 Nota-se nesse caso

específico que a utilização do conceito denota o rechaço à opção política do grupo que atuou

no marco das negociações institucionais, de maneira a rejeitar o modo de ação política do

Partido Socialista. Entendemos, no entanto, que é preciso ver a história da América Latina e

da formação desses grupos políticos no sentido de capturar a complexidade dessa história,

bem como a singularidade de cada um dos projetos políticos na região.

Nascido de um contexto de lutas políticas antagonistas que marcaram os anos vinte e

trinta no Chile, o PS se tornaria, a partir do final da década de 1930, um partido de perfil

concertacionista, fundado numa base reformista, e que, paulatinamente, e de acordo com as

conjunturas históricas, viveu a predominância do caráter confrontacional. Caráter do qual seus

intelectuais foram idealizadores, em meio a um mosaico de teorizações no interior do partido

que tinha um programa revolucionário e buscava assentar suas idéias no modelo do

socialismo científico.

37
AGGIO, op. cit., 1999, p. 89.
38
ANDRADE, op. cit., p. 80.
44

Deve-se observar que o PS foi importante para colocar questões urgentes na pauta

política chilena, canalizando reivindicações sociais para realizações positivas para a

população no quadro institucional, tornando-se um dos principais representantes políticos dos

setores sociais emergentes que requeriam o seu espaço; características que Drake insere no

denominado populismo. Trata-se, portanto, de um partido que se tornou anti-reformista, mas

que ajudou na realização de reformas.

É possível afirmar que o PS exerceu desde o início da sua atuação funções sociais

múltiplas, assim como grande parte dos movimentos sociais e políticos, tais como a mediação

entre a sociedade e o sistema político no momento de emergência de novos sujeitos sociais, na

contribuição para a formação de uma certa estruturação da opinião pela difusão da sua

ideologia, exercendo pressão sobre as autoridades em nome das categorias que ele defendeu,

bem como na expressão de conflitos e de anseios populares.

Para além das conquistas sociais, é preciso destacar o principal elemento

negligenciado nas abordagens de Walker e Drake. Diferentemente dos denominados governos

populistas, como o de Getúlio Vargas, no Brasil, a conquista obtida a partir da década de

1930, no Chile, se deu, principalmente, no plano político, pautado numa nova dinâmica

conciliatória, flexível e pragmática implementada pelos governos radicais (Partido Radical), e

que passou a ser referência central na vida política do país.

Em relação à esquerda, os partidos Comunista e Socialista não somente conseguiram

assegurar o seu papel de representantes dos trabalhadores, como também puderam aumentar

suas bases e seu prestígio para atuarem como forças proeminentes do processo político

nacional. Isso lhes permitiu assegurar a autonomia política e organizativa das classes

subalternas no processo de modernização que o país viveria a partir deste período,

diferentemente do caráter manipulador atribuído às lideranças populistas.39

A definição do partido como socialista é tratada como retórica para obter vantagens

eleitorais, como nota-se na afirmação de Drake:


O nacionalismo socialista tirava proveito do antiimperialiismo. Como o partido já
havia notado, o “socialismo” e o “nacionalismo” eram as duas mercadorias políticas

39
AGGIO, op. cit., 1999, p. 20-21.
45

mais populares dos anos 30 e quase todos os candidatos tratavam de ter vantagem às
custas desse sentimento. Os líderes do Partido Socialista lutavam para superar a seus
concorrentes comunistas, falangistas [Falange Nacional] e nazistas para reclamar os
símbolos populistas do socialismo e do nacionalismo.40

Apropriadamente, Moulian afirma que descartar a priori os discursos através dos

quais os atores políticos dão sentido às suas ações para colocar em seu lugar “a essência

destilada do analista” (a radiografia que “revela” os interesses reais que ocultaria a retórica)

pode obstaculizar a compreensão de certas maneiras de época de fazer política.41 Partindo

dessa concepção, é possível afirmar que abordagens, como a realizada por Drake, não foram

capazes de compreender a imbricação de elementos que compunham a cultura política do

socialismo.

Esta postura se evidencia numa divisão estanque da história desse movimento em

períodos de maior ou menor cunho revolucionário, condizente ou não com as teses da teoria

revolucionária do comunismo internacional, de maneira a encarar sempre a participação dos

grupos de esquerda na política institucional como errática, e atribuindo-lhe negativamente a

denominação de populista.

Nesta historiografia encontra-se ainda a apreciação do desenvolvimento do sistema

político chileno, entre 1932 e 1973, a partir da participação dos partidos marxistas no centro

de análise, especialmente as influências mútuas entre sistema e partidos socialista e

comunista. Ainda inserindo o movimento socialista no fenômeno do populismo, Julio

Faúndez caracteriza a trajetória institucional do PS como errática e oportunista42, e, assim

como as abordagens anteriores, ainda se pautam pelas mesmas categorias com que estes

processos foram analisados por seus personagens.

Ainda que o livro de Faúndez descreva passagens importantes de toda a história dos

dois partidos, com uma minuciosa relação com o movimento comunista internacional, a

abordagem comparativa das suas atuações não permite adentrar com maior profundidade nas

perspectivas teóricas e ideológicas que animavam o socialismo chileno.

40
DRAKE, op. cit., p. 128.
41
MOULIAN, op. cit., 1983, p. 243.
42
FAÚNDEZ, Julio. Izquierdas y democracia en Chile, 1932-1973. Santiago: Ed. BAT, 1992, p. 88.
46

É importante destacar que, para Faúndez, o desfecho desta trajetória, o governo da

Unidade Popular, representou o momento ideal para comunistas e socialistas concretizarem

suas teses acerca da revolução socialista. No entanto, “ambos aceitaram a tese de uma

transição através da institucionalidade democrática existente sem avaliar suas conseqüências

políticas”. Nas suas palavras:


Se ambos os partidos tivessem estudado com atenção as possibilidades de uma
transição pacífica, poderiam ter adotado uma posição menos cândida acerca das
virtudes do sistema vigente e uma atitude mais flexível com o Partido Democrata
Cristão. Esta incapacidade do PS e do PC para prever as conseqüências da via ao
socialismo que estavam propondo lhes impediu dispor de um critério para
determinar a política do governo e calcular seu ritmo e alcance; nem a moderação
comunista, nem o extremismo socialista foram convincentes. [tradução nossa]43

Pode-se observar neste excerto a permanência de uma perspectiva muito recorrente

nas diferentes análises do período do governo socialista, que consiste em apontar os

componentes imediatos da crise, em termos de problema de “condução política”, como

“incoerências de condução” ou “incoerências estratégico-táticas”. Como afirma Garretón,

estes problemas não são devidamente relacionados a uma questão teórico-ideológica mais

geral da esquerda, e se atribui, assim, os problemas à condução política do processo.44

Esta distinção entre correção do projeto ideológico-político e erros de condução

política parece estar na raiz de um modo de reflexão que se pergunta por funcionamento e

procedimentos, colocando, portanto, as soluções em nível de “ajustes e reajustes, e não pelas

tensões e contradições que estão na base ou na origem histórico-estrutural de um projeto

político”.

É possível apreender uma discussão acerca da origem destas tensões na análise

realizada por Alberto Aggio. O autor tem como preocupação entender o projeto da via chilena

ao socialismo no interior do processo conhecido como “a experiência chilena”, ou seja, numa

43
FAÚNDEZ, op. cit., p. 286-287.
44
O autor defende a tese de que, no período em questão, o socialismo se caracterizava por um vazio teórico-
ideológico, que, grosso modo, significa a ausência de uma teorização do caráter concreto e específico da fase
histórica da revolução chilena, e um recurso permanente a um conjunto de categorias que obscureceram a
compreensão daquele processo. No entanto, acreditamos que, ao contrário de um vazio, houve uma importante
formulação teórica e ideológica, carregada de diversos elementos que compunham uma dada leitura daquela
realidade, e que acarretou na formação e predominância de uma determinada cultura política que teve as suas
conseqüências conhecidas. GARRETÓN, Manuel A. Continuidad y ruptura y vacío teórico ideológico. Dos
hipótesis sobre el proceso político chileno. 1970-1973. Revista Mexicana de Sociologia, [s.l], v. 39, n.4, p.
1292, oct./dic. 1977.
47

diferenciação entre projeto e processo. Essa diferenciação visa possibilitar o entendimento do

lugar ocupado pelo projeto da via chilena ao socialismo no seio da esquerda articulada na

Unidade Popular, a partir da compreensão dessa tendência política desde o início da sua

trajetória.

Aggio destaca que havia no movimento da esquerda chilena elementos bastante

convencionais e consensuais que formavam a sua cultura política. Elementos indicativos das

dificuldades e das limitações da esquerda para consubstanciar a via chilena em uma via

democrática, uma vez que se encontravam assentados muito mais numa visão já cristalizada

do socialismo do que em subsídios fundadores de uma via nova e original para a construção

socialista. E, mais importante, demonstra por meio das discrepâncias internas da UP, os

fundamentos teóricos e ideológicos que compunham a cultura política da esquerda naquele

momento, cujos objetivos centrais, evidenciados no governo da UP, foram destacados no

seguinte excerto:
O socialismo era concebido pela Unidade Popular como uma construção histórica da
classe operária em luta antagônica contra a burguesia, o que implicava, como
solução deste antagonismo, a conquista pela classe operária do poder de Estado para,
em seguida, transformar o seu caráter de classe. Tornando-se classe dominante, a
classe operária procederia à socialização dos meios de produção que, ao lado do
poder operário, criariam as condições para a extinção tanto do Estado como da
sociedade de classes [...]45

Ainda que o objeto central do seu estudo seja o governo da coalizão, a discussão tem

grande importância para o presente trabalho na medida em que o autor reconstrói o

desenvolvimento político chileno, a partir da década de 1930, visando explicitar o processo

que permitiu à esquerda ocupar o seu espaço na política nacional de forma determinante, bem

como a trajetória desta tendência no sistema político do país.

As pesquisas de Drake, Faúndez e Walker foram de significativa importância dentro

do contexto em que estavam inseridas, especialmente, por elegerem como objeto de estudo o

tema do socialismo a partir da experiência de um país que viveu o fracasso do governo da

esquerda e com isso, as frustrações daí geradas. Este país vivencia, principalmente, o trauma

45
AGGIO, op. cit., 2002, p. 154.
48

decorrente da quebra do regime democrático e da imposição do golpe de Estado pelos

militares.

No entanto, o que buscamos frisar é que, para além da inserção do socialismo em

modelos pré-estabelecidos, numa leitura condicionada pelos resultados dos processos

políticos e de uma expectativa acerca do comportamento de um grupo político, buscando

comprovar um determinado tipo de ação política, pretende-se aqui compreender o

desenvolvimento de uma cultura política de ruptura com a trajetória concertacionista do

socialismo. Entender que esta cultura política, a partir de uma determinada concepção acerca

da sociedade chilena, e de uma leitura negativa da experiência da coalizão de centro-esquerda,

tornou-se predominante naquele movimento.

É preciso conceber que o desfecho dessa trajetória, o governo da Unidade Popular,

carrega esse “capital histórico acumulado”, desenrolado pelas posturas de sujeitos históricos

com as suas respectivas responsabilidades e por diferentes conjunturas, e não determinado

pelas tensões internas. Como destaca Jocelyn Holt:


Estamos frente a um governo que se sentia amparado por toda uma história de
progressismo militante, em suas mais variadas versões: radical partidária[...] liberal-
democrática, balmacedista, intelectual marxista, científico-positivista, operário-
comunista, também anarquista, socialista pró-militar, socialista, desenvolvimentista
estrutural [...] e universitária. Ou seja, uma trajetória que constituía um dos
caminhos mais fecundos que transitaram no Chile desde o século XIX e XX tanto no
político como no social e cultural.46 [tradução nossa]

É necessário, portanto, entender sua história, entre as décadas de 1930 e 1970,

marcada pelo encontro de elementos diversos que conformavam a sua cultura política, por

divergências e dissidências que deram origem a outros grupos socialistas. Característica que

marcou a dupla dimensão das suas relações com o sistema político, definida, por vezes, pela

integração, e outras, pela ruptura, tanto na ideologia quanto na prática.

Ao longo dos anos e das experiências vivenciadas pelo partido, concebidas

negativamente por parte da sua liderança, o vocabulário e as concepções marxistas estarão

mais presentes no grupo. Esta mudança ocorreu na medida em que ele se distanciava de

muitos pontos das suas teses iniciais, endurecendo em todos os domínios a sua posição,

46
LETELIER, Alfredo J H. El Chile perplejo: del avanzar sin transar al transar sin parar. Santiago: Planeta/
Ariel, 1998, p. 115.
49

sobretudo a partir de 1957, quando se dá a união do Partido Socialista Popular com o Partido

Socialista do Chile, sob a tese da Frente dos Trabalhadores. Este é, sobretudo, um momento

de renovação das suas lideranças, no qual nota-se um gradual predomínio das concepções

confrontacionais.

Como afirma Moulian, a política se desenvolve mediante a produção de um

“imaginário” onde a realidade aparece simbolicamente elaborada. Este artefato simbólico

serve para orientar a ação e para mobilizar vontades. Assim, destaca o autor, entender a

esquerda desse período requer recriar o campo cultural existente, entender os conflitos e

contradições que permitiram a germinação no Chile de um clima ideológico no qual era

“pensável” o pensado e era “desejável” o desejado.47

A partir destas considerações, a presente análise visa compreender a trajetória do PS

que foi pautada na sua efetiva participação nos rumos políticos do país por meio de alianças e

de compromissos com diferentes tendências, e que se denominará como uma cultura

concertacionista. Baseado nestas concepções busca-se destacar as transformações no âmbito

ideológico do socialismo, que vivenciaria o predomínio teórico e prático de uma postura

antialiancista e ruptural, no intuito de compreender o processo de radicalização do socialismo

chileno a partir da década de 1950.

A partir do emprego das novas abordagens adotadas para a análise do sistema

político chileno, e que, consequentemente, muito contribuíram para uma melhor compreensão

do movimento socialista, como os trabalhos de Tomás Moulian, Manuel Garretón e Alfredo

Jocelyn-Holt, no Chile, e Alberto Aggio, na historiografia brasileira, que analisa, mais

especificamente, o governo da Unidade Popular, entende-se que o presente trabalho poderá

trazer novas elucidações para esta temática que carrega grande significado para a história

política da América Latina.

Essa nova literatura acerca do período da Unidade Popular, que tem a sua maior

expressão nos trabalhos de Tomás Moulian e Manuel A. Garretón, apresenta uma análise

47
MOULIAN, op. cit., 1993, p. 233-234.
50

periodizada de forma mais ampla e suscita problemas até então não discutidos para refletir

sobre a esquerda que alcançou o poder em 1970, no Chile.

Merece destaque o trabalho realizado por Moulian, que aborda o desenvolvimento

político do país por meio da sua evolução democrática, tendo como centro de análise o

período caracterizado pelo “aprofundamento democrático”. Nesta linha analítica o autor busca

encontrar a explicação das tensões e conflitos do desenvolvimento político daquele país,

considerando os impactos das diferentes conjunturas e do clima cultural predominante no

período sobre a esquerda chilena.

Numa abordagem que abarca o período de 1947 a 1973, Moulian fornece uma rica

análise da estruturação de forças políticas e sociais a partir da hipótese de que a crise estatal

que estoura em 1973 teve uma lenta configuração durante o período de fortalecimento

democrático, inserido entre os anos de 1958 a 1973. Isso se daria devido a desajustes que se

desenvolveram naquele contexto, especialmente, pelas contradições criadas pelo tipo de

organização do campo das forças políticas.48 Essa bibliografia confere o suporte teórico para

desenvolver com maior clareza o momento que se entende ser o de uma grande polarização

ideológica no sistema político chileno e, especialmente, de radicalização do movimento

socialista do país.

Os elementos de destaque dessa configuração do campo de forças são: a existência

de uma pauta de representação política das classes dominantes através de partidos do tipo

conservador; o desenvolvimento de um centro político policlassista, mas com forte

representação entre as camadas médias e com um caráter alternativo; e, finalmente, a força

adquirida pela esquerda através da sua unificação política, em 1956, pautada num forte

discurso antireformista. Essa configuração do campo de forças é que define, portanto, a

natureza do desenvolvimento político a partir de 1958.

O enfoque do presente trabalho parte da perspectiva de que neste período apontado

por Moulian, como de “aprofundamento democrático”, o PS sofreu com impactos das

transformações políticas e sociais do país, bem como mudanças internas que marcam a

48
MOULIAN, Tomás. Desarrollo político y estado de compromiso. Desajustes y crisis estatal en Chile.
Colección Estudios Cieplan, v. 8, n. 64, p. 105-158, jul. 1982.
51

cristalização de uma cultura política caracterizada pelo anseio de ruptura com uma trajetória

na qual a esquerda havia apostado, desde 1938. Entendemos que a inserção da esquerda no

sistema político institucional é o ponto de partida para a delimitação das disputas entre os

velhos e os novos atores no campo da esquerda, definindo e redefinindo os papéis que esta

venha a assumir na dinâmica política do país. Esta abordagem permite compreender a

singularidade da formação e do desenvolvimento da esquerda chilena e, principalmente, os

aspectos que compreendem as transformações da sua identidade.

As novas abordagens acerca do socialismo chileno possibilitam este entendimento

acerca das suas origens, bem como do significado dos processos que marcam a sua atuação na

política institucional até o alcance do poder. Este contexto é caracterizado pelo desenlace da

modernização do Estado, que passaria a ser tributário de um novo papel na economia,

combinado com a consolidação da democracia representativa no país. Para além de

caracterizar o principal representante da esquerda do país com esquemas pré-constituídos,

estes trabalhos permitem captar os múltiplos elementos que configuraram a sua identidade,

marcada, ora pela predominância de uns, ora de outros pressupostos.

Para compreender todos os meandros da dinâmica política que se desenhou a partir

da década de 1950 e se potencializou no período da Unidade Popular é necessário recriar o

campo cultural existente, entender esses conflitos e idéias que permitiram germinar no Chile

aquele clima ideológico. Para tanto, o contexto político que conforma o cenário histórico da

nossa pesquisa será abordado no segundo capítulo, que traça um panorama do período que

compreende as décadas de 1950 a 1970.

Para esta abordagem será destacado o novo panorama político, com os novos atores

em atuação nesse momento, os diferentes processos que dinamizam a disputa política,

destacando o espaço ocupado pelo socialismo, bem como os elementos da cultura política

socialista envolvidos nesse contexto. São subsídios que permitem obter uma melhor

compreensão da maneira como se desenha a polarização ideológica que culmina no 11 de

setembro de 1973 e, especialmente, das metamorfoses da cultura política do socialismo

chileno que alterariam, em alguns aspectos, a sua identidade.


CAPÍTULO 2
A EXPECTATIVA DA MUDANÇA
53

2.1 Transformações na cultura política do socialismo chileno

A violência revolucionária é inevitável e legítima. Resulta necessariamente


do caráter repressivo e armado do estado de classe. Constitui a única via
que conduz à tomada do poder político e econômico, e sua ulterior defesa e
fortalecimento. Só destruindo o aparato burocrático e militar do Estado
burguês, pode consolidar-se a revolução socialista.1.

O trecho em destaque vem ilustrar as concepções presentes nas novas orientações do

Partido Socialista empregadas por seus dirigentes e intelectuais no sentido de conferir uma

nova identidade ao grupo, a partir de um processo gradativo de radicalização dos seus

preceitos. Após aproximadamente duas décadas de história, numa trajetória construída por

alianças e projetos de caráter nacional-popular, que constituíram uma cultura política

concertacionista, pretende-se destacar neste capítulo os processos que mudariam seus

principais aspectos a marcariam definitivamente o seu curso.

Essa trajetória de atuação institucional e de compromissos políticos, expressa

especialmente na sua participação na Frente Popular, permite afirmar que o PS foi uma força

política que contribuiu decisivamente para que a esquerda chilena adentrasse ao sistema

político. Mas é correto afirmar também que esse foi um dos principais motivos das suas crises

internas. Os problemas apresentavam-se sempre quanto ao comportamento das suas lideranças

em relação à política geral do partido.

Em outras palavras, a questão que sempre esteve presente foi a de conectar o

processo de reformas dos governos radicais à perspectiva de construção do socialismo. No

entanto, ultrapassada a fase da FP, os socialistas continuaram a viver dissidências internas,

tendo como pano de fundo a questão da sua identidade originária e das perspectivas quanto às

formas de atuação no sistema político. As tensões vividas no interior do PS podem ser

identificadas a cada década, pelo impacto que os processos políticos e sociais e as suas

modificações internas exerceram sobre o grupo, ampliando, gradativamente, o nível de

radicalização desse partido.

1
XXII Congresso Geral Ordinário de 1967. In: JOBET, Julio César. Historia del Partido Socialista de Chile.
2.ed., Santiago: Ediciones Documentas, 1987, p. 313.
54

A radicalização do socialismo chileno, característica do período de 1950 a 1970, teve

a sua germinação num momento de mudança das suas lideranças, que trouxeram consigo a

obsessão pela idéia do atraso, da decadência, de uma crise total daquela sociedade que seria

resolvida somente com a revolução socialista; horizonte que inicialmente se mostra distante,

mas que foi se afirmando de acordo com as conjunturas. É possível identificar a raiz desta

inflexão na década de 1940, a qual se iniciou com a saída de dois dos principais nomes da

geração fundacional do PS, e que representavam a defesa da participação do partido nos

governos radicais e os princípios característicos da década anterior.

Marmaduque Grove, após ser derrotado em eleições internas que envolveram

intensos debates acerca dos rumos e, especialmente, da identidade do partido, retirou-se para

fundar o Partido Socialista Autêntico (PSA); além de Oscar Schnake, que se tornou

embaixador no México e não retornou mais para a política partidária. Tinha início no PS uma

revisão profunda da sua prática política no intuito de conformar uma nova e determinada

identidade.

Vale ilustrar o contexto de forte questionamento aos rumos adotados no partido, a

partir de um intenso debate estabelecido entre Jobet e Grove, em 1942. Jobet, como um dos

componentes da ala denominada “anticolaboracionista”, manifestou seu posicionamento com

relação à participação do partido no governo, no prólogo do livro de Humberto Mendoza, E

agora? O socialismo móvel do pós-guerra. Trata-se de um trabalho no qual Mendoza tece

duras críticas à participação do PS numa coalizão de centro-esquerda, afirmando que “se o

socialismo participa de governos, é porque a burguesia o quer para deter a revolução”. As

críticas de Jobet seguem o mesmo tom da obra de Mendoza, afirmando que a participação do

partido em um governo “deveria se dar em função da tomada do poder, e não da conivência

com o governo, que derrotaria a revolução, e seguiria servindo de sustentação ao regime

burguês”.2

Em meio a esse debate interno a respeito da manutenção do apoio ao governo radical

de Juan Antonio Rios, no qual a direção partidária era favorável e enfrentava forte oposição

2
JOBET, op. cit., 1987, p. 162-164.
55

interna, a publicação deste livro com a participação de um representante socialista, além dos

diversos periódicos críticos publicados no período, Grove acentuou ainda mais as disputas

internas. Expulsou alguns dirigentes, proibiu a circulação dos periódicos do partido e, por

meio de um comunicado, condenou a leitura do livro de Mendoza.

A maioria dos críticos socialistas visualizava a decadência do seu partido neste

momento por sua “obediência” à cultura e às tradições chilenas, e por seus desvios em relação

aos princípios marxistas. Suas críticas pautavam-se na participação socialista em um governo

centrista que, consagrado cada vez mais por um modelo de desenvolvimento, teria “afirmado

o sistema capitalista no país”. No ano de 1940, localiza-se, portanto, a primeira divisão do

partido, que contou ainda com a saída dos denominados “inconformistas” para formar o

Partido Socialista dos Trabalhadores.

Podemos afirmar que começava a se delinear no PS uma postura ruptural que seria

predominante nas décadas seguintes, a partir da afirmação de uma determinada leitura daquela

realidade com elementos que passaram a compor aquela cultura política. Trata-se de uma

postura que visava romper com a trajetória de inserção de projetos reformadores na política

institucional. O XI Congresso do PS, celebrado em Concepción, em 1946, concretizou a

vitória do “anticolaboracionismo”, liderado por Raul Ampuero, que já havia alcançado a

liderança da juventude do partido, em 1942.

A incorporação de três ministros socialistas ao governo de Rios seria o último ato de

colaboração oficial do partido e, a partir da vitória desta nova liderança, o partido adquiriria

paulatinamente uma fisionomia distinta. A geração de líderes como Marmaduque Grove,

Eugenio Matte e Oscar Schnake, era substituída por uma nova composição liderada por

Ampuero e com a participação de Eugenio González, os quais assumiriam a condução do

partido, em 1946, definido como “revolucionário e de classe”.

Nesse quadro de debates que colocavam em pauta a postura e a identidade ideológica

do partido foi convocada uma Conferência Nacional de Programas, para 1947, cujo programa

foi redigido por Eugenio González, considerado um dos principais intelectuais do PS. O

importante a destacar da sua formulação para o Novo Programa Socialista é o tratamento do


56

tema mais controverso no interior do socialismo chileno que vai percorrer toda a sua

trajetória: o tema da democracia. Ainda que fiel à postura classista e à temática da revolução

na perspectiva do PS, González contrariava um dos pontos da proposição do socialismo

chileno que concebia a democracia apenas como um “instrumento temporário e útil”, e toda a

ambigüidade daí gerada.

González foi um dos poucos dirigentes socialistas a expressar uma visão não-

instrumental da democracia, conectando-a a sua visão de revolução socialista no Chile. Ao

afirmar uma concepção no “humanismo socialista”, destacava que a revolução socialista

aprofundava a revolução burguesa nas suas dimensões positivas. O socialismo, para

González, era revolucionário por seus objetivos, por ser anticapitalista e antitotalitário; e seus

meios deveriam ser adequados aos fins perseguidos. Nas palavras de González:
O socialismo é revolucionário. A condição revolucionária do socialismo radica na
natureza mesma do impulso histórico que ele apresenta. Não depende, portanto, dos
meios que ele emprega para conseguir seus fins. Sejam estes quais forem o
socialismo é sempre revolucionário porque se propõe a mudar fundamentalmente as
relações de propriedade e de trabalho, como princípio de uma reconstrução completa
da ordem social. As condições objetivas e subjetivas determinarão em cada país as
características para que se desenvolva o processo revolucionário.3 [tradução nossa]

Nota-se que o pensamento de González expressa, em linhas gerais, os pressupostos da

política que estará presente na ação de Salvador Allende através do projeto da via chilena ao

socialismo. E, ainda que esta linha preconizada por González não tenha sido hegemônica no

interior do socialismo, pode-se afirmar que nos programas posteriores do PS e nas disputas

eleitorais das quais o partido participou, a recorrência a algumas das idéias desta formulação

foi freqüente, especialmente no que se refere aos meios empregados para a revolução

socialista, uma das expressões das ambigüidades do grupo.

Esta postura ambígua em relação à democracia constitui uma das principais

características dessa cultura política que começava a se afirmar. Não obstante a democracia

ter sido para a esquerda chilena o espaço vital para o seu desenvolvimento, na concepção

desta esquerda, valorizar positivamente a democracia chilena – encarada como a ordem da

3
GONZÁLEZ, Eugenio. La Conferencia Nacional de Programas de 1947. In: JOBET, op. cit., 1987, p. 198.
57

classe dominante – era associado ao reconhecimento de virtudes nos agentes sociais que se

atribuíam a paternidade do Estado chileno: a oligarquia e, mais tarde, a burguesia.4

Os debates internos se intensificavam e o partido começava a sofrer as primeiras


divisões. Em 1948, o Partido Socialista sofreu uma significativa fissura interna que, sem
dúvida, marcou profundamente este processo de revisão da prática política do grupo e de
tentativa de redefinição do seu perfil político-ideológico. A divisão ocorreu após a decretação
da Lei de Defesa Permanente da Democracia, pelo governo radical de Gonzáles Videla que,
entre outras medidas, proscreveu o Partido Comunista.
A cisão do PS se deu devido à manifestação de apoio de um grupo do partido a estas
leis repressivas. Este grupo de parlamentares socialistas, liderado por Bernardo Ibáñez e Juan
B. Rosseti, havia sido derrotado no último congresso do partido, e foi expulso do grupo
devido à votação favorável às leis. O grupo se manteve como Partido Socialista do Chile,
enquanto que o conjunto liderado por Ampuero passou a compor o Partido Socialista Popular
(PSP). Entre seus membros permaneceram Eugenio González, Alejandro Chelén, Salvador
Allende, Clodomiro Almeida, Belarmino Elgueta, enfim, os membros que compunham
majoritariamente o Partido Socialista.
As divisões internas ocorridas no partido, ao longo da década de 1940, provocaram
um declínio na sua representação eleitoral, o que estimulou nas correntes socialistas que se
mantiveram na oposição ao último governo do período da FP a apoiar a candidatura de Carlos
Ibáñez del Campo, em 1952, à Presidência da República, cujo governo é caracterizado pela
historiografia chilena como populista. Segundo a orientação do PSP, não se tratava de uma
aliança formal permanente, mas de uma ação comum com grupos políticos de orientação
progressista, cujos esforços deveriam convergir para um propósito coletivo. Além disso, o
objetivo era o de empreender um ataque à gestão repressiva e “antipopular” do governo de
Gonzáles Videla.5

4
Cf. SCHILLING, Marcelo. Hacia una crítica de la interpretación histórica de izquierda en Chile. Santiago
de Chile: Vector. Centro de Estúdios Económicos y Sociales, 1984. (Temas Socialistas, n. 2).
5
Devido ao apoio declarado a Carlos Ibáñez, o PSP sofreu uma cisão, da qual o grupo egresso formou o
Movimento de Recuperação Socialista, que, em seguida, uniu-se ao Partido Socialista do Chile. Salvador
Allende também deixou o grupo e concorreu às eleições presidenciais como representante da aliança socialista-
comunista, denominada Frente do Povo, constituída pelo Partido Socialista do Chile, pelo Partido do Trabalho e
pelo Partido Comunista que ainda estava na ilegalidade, e obteve 5,45% dos votos. O ingresso de Allende no
PSCH significou uma modificação da linha política desse grupo, até então fortemente anticomunista.
58

Podemos considerar que o forte apelo nacional-popular, bastante presente na cultura

política do socialismo chileno e, especialmente, o forte tom crítico de Ibáñez dirigido aos

partidos políticos se constituíram em elementos atrativos para este setor socialista. É possível

afirmar que o desprestígio do Radicalismo como força política governante e,

consequentemente, do modelo de alianças empreendido por este grupo até então, e as divisões

no seio da esquerda, neste início da década de 1950, possibilitaram a eleição presidencial de

Carlos Ibáñez, que já havia governado ditatorialmente o Chile entre os anos de 1927 e 1931.

Para firmar o apoio a Ibáñez, o PSP fez uma série de exigências a serem atendidas no

programa de governo, entre as quais, destacam-se a revogação da Lei de Defesa da

Democracia, a reforma agrária, a liberdade e independência do movimento sindical, além da

oposição do partido a toda manifestação de tipo “peronista ou fascista”. Este apoio se desfez

já em 1953 por entenderem os socialistas que a postura do governo não era condizente com as

propostas iniciais, além do fraco desempenho eleitoral do PS nas eleições parlamentares,

como podemos notar nas cobranças de Raul Ampuero:


[...] o partido acreditava ser possível impulsionar uma política encaminhada
realmente a destruir os privilégios da oligarquia e a livrarmo-nos da pressão
imperialista. Reclamamos com insistência do governo uma ação desta natureza, e
observamos em muitos dos integrantes do Ministério não somente inescusáveis
vacilos, mas inclusive abertas concomitâncias com os grupos tradicionalmente
inimigos dos trabalhadores.6 [tradução nossa]

Após o fracasso da participação socialista no governo Ibáñez, o PSP reconsideraria

suas posições através de novos debates internos de textos de seus dirigentes, de análises

marxistas da condição nacional de atraso e dependência, das lutas populares e da condição do

movimento operário. Neste início da década de 1950 haveria uma reorganização da política da

esquerda chilena, bem como do movimento operário nacional.

Os sindicatos voltaram a se unificar em torno de uma única organização, a Central

Única dos Trabalhadores (CUT), sob controle dos comunistas e socialistas, e os dois partidos

passaram a estruturar uma nova política de alianças, tendo como central o eixo socialista-

comunista; política pautada numa leitura negativa da experiência dos governos de coalizão de

centro-esquerda.

6
AMPUERO, Raul. XVI Congreso General Ordinario. In: JOBET, op. cit., 1987, p. 209.
59

As novas postulações do socialismo chileno se baseavam numa dada leitura da

realidade nacional e de uma determinada interpretação ideológica da mesma para elaborar

uma estratégia de transformação econômica, política e cultural do país. Nota-se nestas

interpretações a sustentação do caráter eminentemente capitalista e dependente do país e a

postulação do conteúdo classista da revolução chilena, na medida em que questionava a

potencialidade progressista, democrática e antiimperialista da burguesia nacional, a partir da

obsessiva afirmação da condição de atraso do Chile.

Este processo de afirmação de uma identidade classista começava a cristalizar a

proposta de aliança restrita aos trabalhadores para impulsionar um processo de transformação

daquela sociedade. É possível indicar que neste contexto começa a se afirmar a sobreposição

da lógica de confronto entre classes sobre a lógica presente nos anos iniciais do partido,

caracterizada por uma perspectiva de transformação mais integradora do que confrontacional.

Neste contexto estão presentes as raízes da tensão ideológica que configurará a


trajetória do socialismo até a quebra do regime democrático, em 1973. Tensão derivada tanto
dos traços das mudanças do sistema social, a partir da quebra do poder oligárquico, com
novas pautas e demandas políticas e sociais, como do clima ideológico prevalecente na
década de 1960.
Esse momento de redefinição culminou com a reunificação do socialismo por meio
da fusão entre o Partido Socialista do Chile e o Partido Socialista Popular, pautada na nova
linha política que marcaria definitivamente essa transformação na história do socialismo
chileno. Trata-se da linha da Frente dos Trabalhadores que abarcava pressupostos colocados
desde o final dos anos quarenta, e que foi adotada no XVI Congresso do PSP.
O importante a destacar deste programa é a orientação dos socialistas populares de
crítica à experiência das frentes com os “partidos burgueses”, como indicou-se acima.
Orientação ilustrada nas palavras de Jobet:
[...] era a hora de endurecer a luta, definindo-a sob objetivos revolucionários, de
acordo com as aspirações de classe dos trabalhadores, e em tal sentido, unicamente
uma frente de partidos operários e a CUT, uma Frente de Trabalhadores poderia
conduzir adiante, sem render-se, uma política de classe sob a consigna de Revolução
ou Miséria, proclamada no XVI Congresso Geral do PSP.7 [tradução nossa] [ grifos
nossos]

7
JOBET, op. cit., 1987, p. 217.
60

Este passou a ser o ponto central da discussão no interior da esquerda, o caráter das

alianças a serem formadas, numa disputa que envolvia a proposta da Frente dos

Trabalhadores, dos socialistas, e a proposta da Frente de Libertação Nacional, do Partido

Comunista. Para os socialistas, a proposta de uma aliança mais ampla utilizava-se do pretexto

de “não isolar a classe operária”, e passava por cima das fronteiras de classe para beneficiar

aos partidos burgueses. Crítica que era, no entanto, equivocada, já que os comunistas

propunham o eixo da aliança comunista e socialista.

A proposta do PSP, pautada em uma leitura negativa da sua participação em alianças

de governo, especialmente da FP, baseava-se numa concepção de revolução na qual as

transformações econômicas ocorridas na revolução democrático-burguesa se realizariam nos

países latino-americanos através de uma revolução socialista.

Estas idéias presentes nos textos de González, Jobet, Ampuero e Oscar Waiss, com

as suas variações, sustentavam que a “tese da revolução por etapas” só era aplicável aos

países capitalistas avançados, que contavam com uma burguesia autônoma e capaz de realizar

reformas modernizadoras. Para eles, os países “semi-coloniais e dependentes”, como os da

América Latina, contavam com burguesias que eram aliadas das oligarquias e do

imperialismo, inimigos da classe operária. Sendo assim, defendiam a formação de uma

aliança que representasse aos trabalhadores.

A solução intermediária encontrada nesse debate foi a proposta de uma revolução

democrática de trabalhadores com vistas à formação da República Democrática dos

Trabalhadores, com a tarefa de realizar os objetivos dos socialistas. Tarefas como a

socialização dos meios de produção e transformações de ordem política, econômica e social,

com caráter antiimperialista, classista e democrático, porque, segundo os socialistas, visava

ampliar a soberania popular e criar as condições para o socialismo. Em 1956, com uma

pequena ampliação do bloco, a aliança passou a denominar-se Frente de Ação Popular

(FRAP), e já ambicionava disputar as eleições presidenciais de 1958.8

8
A FRAP era constituída pelos grupos: Partido Socialista Popular, Partido Socialista do Chile e Partido
Democrático Popular, além do, ainda proscrito, Partido Comunista.
61

No ano seguinte, no XVII Congresso Geral do PSP selou-se a unificação socialista

através da união deste com o Partido Socialista do Chile, sob esta última sigla. O documento

da unificação redigido por Jobet registra a ênfase no resgate de aspectos antireformistas e de

classe, e de defesa dos princípios colocados na formação da FRAP:


1º Que a unificação socialista se realize de acordo com uma leal adesão aos
princípios, programas e métodos do socialismo revolucionário, como expressão
teórica e política da classe trabalhadora;
2º Que a unificação socialista abra uma nova etapa no desenvolvimento do
socialismo no Chile, tanto por sua reconstituição como movimento revolucionário,
eliminando toda dualidade de princípios e política, como por sua posição de
vanguarda das classes populares em luta com as classes de posse e contra o
imperialismo, pela derrocada do regime capitalista.9 [tradução nossa]

De acordo com Aggio, este processo solidificou o início da nova fase do movimento

da esquerda chilena, bem como do momento que vivia o movimento operário, desde o início

da década. As mudanças na esquerda, ocorridas através da crítica aos rumos adotados nas

décadas anteriores, da proximidade programática e da agenda política colocada diante dela –

com a reunificação do movimento sindical, lutas de massas (greves gerais de 1954, 1955 e

1956) e a necessidade de redemocratização política –, comunistas e socialistas passaram a

buscar uma composição eleitoral forte para a disputa de 1958.10 Seguindo os pressupostos da

tese da Frente dos Trabalhadores, a FRAP lançou como candidato à Presidência da República,

Salvador Allende, sob a consigna “un camino nuevo, un candidato popular y un programa de

lucha”.11

Ainda que os intelectuais socialistas não citassem frequentemente suas fontes

ideológicas, é possível observar nestas formulações influências trotskistas a partir de alguns

elementos da “teoria da revolução do atraso”, especialmente sob dois aspectos fundamentais:

o caráter de classe da revolução e a concepção de revolução como um processo contínuo,

ininterrupto, e não etapista.

Trotski concebia a revolução permanente como a única solução possível para realizar

a modernização numa sociedade considerada atrasada, cuja característica, por razões

históricas, como o colonialismo, é a submissão ao impacto de outras sociedades, definidas

9
JOBET, op. cit., 1987, p. 226-227.
10
AGGIO, op.cit., 2002, p. 89.
11
JOBET, op. cit., 1987, p. 240.
62

avançadas, cujo impacto é traumático, e obriga a sociedade atrasada a adotar novas formas de

produção econômica.

Nesta teoria da revolução permanente, Trotski entendia que deveria se transitar dos

objetivos burgueses para os objetivos socialistas, e que caberia ao proletariado a tarefa de

realizar as reformas burguesas, sem atribuir, no entanto, um caráter burguês à revolução, e

falar das perspectivas, a longo prazo, numa revolução que deve ser definida por seus fins

últimos. A solução consistia em reencontrar o caminho de um verdadeiro movimento de

massas em uma ação política através da qual fosse criada uma estrutura institucional que

servisse como expressão da classe operária e do movimento.12

A intelectualidade socialista, ainda que tenha buscado uma caracterização mais

correta do Chile, não mostrou avanços nas suas avaliações e projetos políticos. Suas teses

ficaram marcadas por modelos que, ao destacar as especificidades locais, buscou mais

legitimidade como expressão do movimento revolucionário nacional do que a apresentação de

projetos genuínos. Com uma limitada interpretação das particularidades chilenas, suas

propostas se mostraram bastante convencionais, com enfoques recorrentes na linha

revolucionária dominante no período.

Sobre este aspecto, Moulian firma, comparativamente, que as funções intelectuais no

Partido Comunista se restringiam a aplicar à realidade nacional a linha “leninista universal”,

difundir essa linha, considerada como um saber teórico já constituído e provado, e absorver as

modificações que, ao ritmo das mudanças históricas, deviam realizar os centros dirigentes do

movimento. Para o autor, esse pode ser apontado como um dos fatores para a primazia

intelectual exercida pelo socialismo no movimento da esquerda chilena, em detrimento da

dificuldade de influência teórica do comunismo sobre os diferentes setores políticos e sociais.

Para Moulian, a dependência teórica e política do PC em relação ao movimento

internacional teria se evidenciado na etapa de união da esquerda sob o prisma da criação do

governo popular, na qual se revelaram as debilidades dos comunistas para influenciar

12
Estas idéias estão presentes no seu estudo voltado à compreensão das particularidades da sociedade russa e foi
destinado a pensar também uma teoria da revolução socialista que fosse aplicável às sociedades atrasadas.
Cf. HOBSBAWM, Eric J. (Org.). História do marxismo: o marxismo na época da III Internacional: problemas
da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
63

intelectualmente o movimento esquerdista. Entre as evidências dessa debilidade estariam

fatores como a dificuldade em reformular suas interpretações históricas tradicionais sobre a

sociedade e sua fraqueza diante do veto socialista, o que o obrigava a contemporizar com a

visão esquerdista desse grupo, e o seu apego à tradição das análises do PCUS, visão que o

impedia formular uma concepção de “socialismo nacional”.13

No entanto, nota-se que a dependência intelectual com relação ao movimento

internacional não se trata de uma característica exclusiva do comunismo no Chile. As

formulações historiográficas e políticas que orientavam o movimento socialista se

caracterizavam pela tentativa de implementação mecanicista das formulações teóricas do

movimento comunista internacional, configurando-se suas postulações em incompreensões

acerca das especificidades daquela sociedade, restringindo as suas caracterizações políticas,

sociais e culturais a aspectos essencialmente econômicos.

Nestas proposições do socialismo chileno, estão presentes elementos como

nacionalismo, antiimperialismo e, principalmente, a revolução, que tinha o seu significado no

rompimento com o “Estado burguês”, o mais novo elemento da sua cultura política.

Utilizaram-se conceitos e interpretações-chave convencionais que se colocavam como

desafios para a esquerda, demonstrando sua limitação na formulação de proposições que

superassem o âmbito da estrutura econômica e que abarcassem o aspecto político e de novas

relações sociais no interior da sociedade projetada.

Podemos afirmar que estas novas características assumidas pelo PS, nas quais a

importância da ideologia na sua ação adquire contornos cada vez mais decisivos, agiram tanto

como uma força de atração e de mobilização, como acabou se revelando como a fonte da

deformação da sua percepção da realidade e, consequentemente, do sentido da sua prática.

Esta inflexão política e ideológica do Partido Socialista neste período deriva também da sua

inserção internacional e do efeito que determinadas influências externas tiveram em seu

desenvolvimento, especialmente no contexto da Guerra Fria.

13
MOULIAN, op. cit., 1983, p. 36-38.
64

É importante observar que a sua proposta de “socialismo revolucionário” emergiu,

principalmente, como resposta ao imperialismo norte-americano e ao bloco soviético, bem

como em apoio às lutas de libertação nacional, ao longo das décadas de 1950 e 1960, como da

Iugoslávia, de Cuba, da China e do Vietnã, sempre citados como os novos referenciais

externos do partido. Estas experiências indicavam, para o PS, a “possibilidade de um

socialismo alternativo frente ao modelo stalinista”.14

A Iugoslávia se apresentava como o caso ideal para os socialistas, não só por sua

experiência no campo da autogestão, mas também pelo seu não-alinhamento no plano

internacional, levando os líderes Raúl Ampuero, Aniceto Rodríguez e Oscar Waiss a

visitarem o país, em 1955.15 A relação entre socialistas chilenos e iugoslavos intensificou as

tensões com o Partido Comunista chileno, especialmente depois que a URSS rompeu relações

com a Iugoslávia, em 1958.

Mas a influência de maior impacto sobre o socialismo chileno foi o advento da

Revolução Cubana, em 1959. Esta experiência evidenciava na cabeça dos dirigentes

socialistas a possibilidade de uma revolução na América Latina em desafio ao poderio norte-

americano, demonstrava que era possível saltar etapas, questionava a tese da “via pacífica” ao

poder, além de ser uma experiência nacionalista, americanista, antiimperialista e,

principalmente, não inserida na política de blocos da Guerra Fria.

O tema da Revolução Cubana foi intensamente debatido e divulgado nas publicações

socialistas, a partir das quais podemos apreender a crescente radicalização do seu discurso

impulsionada pela experiência vizinha. Para os dirigentes e intelectuais do partido, a iniciativa

cubana legitimava pressupostos defendidos por dirigentes do grupo, tais como o rompimento

com um modelo de política de alianças e a afirmação da lógica de enfrentamento de classes.

Nas palavras desses membros, esta revolução rompia os “esquemas de unidade nacional, de

colaboração de classes e validava a utilização da violência nas lutas políticas”.16

14
WALKER, op. cit., p. 48-49.
15
Como resultado dos registros da viagem, além da publicação de diversos artigos sobre o tema, Oscar Waiss
publicou, em 1956, o ensaio Amanecer en Belgrado, pela Prensa Latinoamericana, editorial socialista dedicada
a uma série de produções sobre as questões do subcontinente.
16
CORBALÁN, Salomón. Perspectivas de la Revolución Cubana. Arauco, Santiago, n. 19, p. 5-8, ago. 1961.
65

Ainda que a estratégia da luta armada não tenha sido de fato recorrida no PS e não

tenha sido pensada concretamente como uma via de acesso ao poder por suas lideranças,

tendo impacto sobre uma minoria castrista, a referência ao processo foi utilizada até como

forma de radicalização do discurso. Trata-se de uma “retorificação romântica”, no sentido de

fortalecer a idéia da necessidade de uma revolução socialista para superar o imperialismo, esta

vocalizada como uma insurreição.

Estes anos de 1957 e 1958 registraram o final da fase de “democracia restrita” e o

início do impulso de democratização que marcaria a década de 1960 e o início dos anos

setenta. No final da década de 1950, em virtude das dificuldades econômicas pelas quais

passava o país, derivadas da política econômica adotada pelo governo Ibáñez, gerou-se um

clima propício às mudanças políticas.

A união da esquerda foi favorecida ainda pela reforma da legislação eleitoral

conquistada através da união de diversos partidos do Parlamento, o Bloco de Saneamento

Democrático, com exceção da direita, que, dentre outras coisas, revogou a lei que excluía os

comunistas do sistema político. Este período que se abre com reformas políticas foi

extremamente significativo para a esquerda que se mostrou com uma força considerável no

plano parlamentar.

O desempenho de Allende nas eleições de 1958 favoreceu a estratégia comunista do

“caminho pacífico”, fortalecendo sua consigna “hacia un gobierno popular”, com um

programa eleitoral que expressava aspectos consensuais de uma etapa de transição ao

socialismo, mas mantendo apenas correntes de esquerda, conforme propugnavam os

socialistas.

Como uma indicação de recuperação do sistema partidário, o quadro eleitoral se

apresentou bastante fragmentado, com quatro candidaturas com potencial de vitória. A direita,

representada por Jorge Alessandri, venceu as eleições com uma proposta de modernização

bastante diversa daquela empreendida pela FP. Visando um “governo próprio”, no qual se

rejeitava a política, Alessandri mergulhou o país em desequilíbrios econômicos.17 Além disso,

17
AGGIO, op. cit., 2002, p. 91-92.
66

essa postura apolítica tornou a direita incapaz de reproduzir-se politicamente no contexto de

democracia pluralista que se acendia novamente, um momento que abriu espaço para

experiências de reordenação integral do país.

Como desdobramento de todo o processo político-social que caracterizou o fim do

ciclo dos governos Radicais e da fase de “democracia restrita”, o Chile conheceu, na década

de 1960, processos que afetariam fortemente o sistema político. Observa-se uma imensa

ampliação da representatividade política, com um aprofundamento do realinhamento político-

partidário que havia se iniciado na década anterior, assim como a chamada fase das

“alternativas globais”, principalmente, a partir da emergência da Democracia Cristã e do

fortalecimento da esquerda.

O período compreendido entre meados da década de 1940 e a década de 1960,

consiste no principal contexto de transformações na cultura política socialista, que se

converterá numa alternativa real de mudança do país, a partir da expansão da sua ideologia

revolucionária. O grupo marcadamente concertacionista da década de 1930, não mais

caracteriza o socialismo deste contexto.

Este socialismo se mostrou obcecado pela idéia do atraso e da necessidade da

revolução, para apresentar-se como a única alternativa que, por sua radicalidade, podia

superar o capitalismo, mas que se mostraria incapaz de propor uma alternativa política viável

dentro daquelas condições políticas e sociais. Suas postulações se prenderam mais à busca

pela fórmula para aplicar a revolução do que com a análise teórica da história e das condições

sociais e políticas específicas do Chile, ainda que, retoricamente, o socialismo buscasse

afirmar a sua originalidade na reflexão acerca da história nacional.

As novas lideranças socialistas negligenciaram a necessidade de compreender a

composição de um país que se estruturou politicamente, no início do século XX, pautada em

projetos de transformação da sociedade que combinavam mudança e gradualismo, a partir de

um padrão de institucionalização dos conflitos, e que teve, além dos setores populares, as

classes médias como atores centrais nos processos decisórios da política nacional. Este,

portanto, é o socialismo que devemos ter em mente para compreender a dinâmica política
67

desenhada nos anos sessenta, marcada pela forte polarização, que além do fortalecimento da

esquerda nacional, assistirá a emergência de uma nova e forte opção política centrista.

2.2 Uma nova configuração política e ideológica

A eleição presidencial de 1958 marcou a nova configuração de forças no sistema

político chileno que iria prevalecer, em linhas gerais, até a quebra do regime democrático, em

1973. Nesse período de “aprofundamento democrático”, uma das principais características do

sistema partidário é o que se denomina como uma forte polarização tripartida configurada

com a esquerda unificada, a direita e um novo centro político com grande capacidade

mobilizadora e que não apresentava a tendência pendular característica do PR. Pode-se

afirmar que o acontecimento político de maior importância desse período foi a emergência

desta força de centro ideologizado, que modificaria o caráter do sistema político prevalecente

desde o final dos anos trinta, cujo funcionamento se dava com um centro mais pragmático e

menos carregado de um discurso revolucionário.18

Falar em recriar o “campo cultural” do período requer compreender que a década de

1960 estava profundamente caracterizada pelo auge das tendências de “alternativas globais”

que se expressaram, por um lado, favorecidas por fenômenos externos, como a

desestalinização e uma nova confiança na possibilidade do socialismo em função da vitória da

Revolução Cubana.

No âmbito interno, pela aposta no fim dos compromissos característicos das décadas

anteriores, especialmente por parte da esquerda, e na consolidação das idéias modernizadoras

com mudanças estruturais, propiciada pelo centro ligado à proposta da Aliança para o

Progresso, estratégia diplomática norte-americana para o desenvolvimento da América Latina,

que buscou evitar o avanço dos ideais comunistas na região.

O período iniciado com as reformas políticas e eleitorais de 1957-1958 encontrou o

movimento sindical reorganizado, bem como a esquerda unida, representada na FRAP e

18
MOULIAN, op. cit., 1993, p. 183.
68

politicamente forte, após as vitórias no plano parlamentar. Por outro lado, este período

também conheceu a emergência da Democracia Cristã, que ocuparia importante espaço no

centro político, bem como a vitória da direita nas eleições presidenciais, conquistada,

principalmente, devido à fragmentação em que se encontrava o quadro político.

As dificuldades presentes durante a formação da FRAP no que se refere às

concepções divergentes de ambos os partidos quanto ao formato da aliança política,

mantiveram-se no momento de apresentar a candidatura presidencial de Allende, em 1958. Os

comunistas buscavam uma frente ampla, em função dos objetivos democráticos e

antiimperialistas, e do momento político do país, em que o centro ainda não aparecia como a

principal força de disputa com a esquerda, como se apresentaria no pleito seguinte, e das

possibilidades de vitória diante da direita.

Os socialistas, por sua vez, negavam-se a participar de alianças estáveis com forças

de centro, buscando já caracterizar a coalizão de esquerda como um grupo “classista”, em

defesa da criação do “Estado democrático de Trabalhadores”. Nota-se que, internamente, o

partido vivia um momento de completa afirmação dos novos princípios que o regiam. Mesmo

antes da Revolução Cubana, a projeção da construção do socialismo por meio da união da

esquerda se intensificou, através de discussões acerca da sua identidade, lideradas por nomes

representantes dessa cultura política que começava a predominar, como o de Salomón

Corbalán e de Raúl Ampuero.

A aposta na mudança estrutural adquiria legitimidade entre os mais diversos setores,

especialmente na esquerda, mas também no centro emergente. E não era somente no Chile

que se propagava o questionamento ao capitalismo, e se proclamava que tudo tinha que

mudar, abandonar o “caminho da frustração” e construir um mundo novo de justiça social. E,

inicialmente, as direitas ficaram encurraladas neste contexto de questionamento da viabilidade

daquele modelo capitalista na América Latina, tanto mais quando começou a impor-se um

ethos revolucionário inspirado no processo cubano, expresso pela esquerda na alternativa

“socialismo ou fascismo”.19

19
CORREA; FIGUEROA, op. cit., p.210.
69

Esta polêmica entre socialistas e comunistas frente às vias de acesso ao poder

manteve-se no início da década de 1960. No PC prevalecia a tese do caminho pacífico e a

linha de alianças para o poder, o que era impulsionado pelas expectativas de vencer as

eleições de 1964, devido aos bons resultados obtidos no último pleito, no qual Allende obteve

28% dos votos, ficando na segunda colocação.

Além disso, acreditava nas oportunidades abertas com as limitações da direita, a

partir da dura política econômica aplicada no governo Alessandri, devido a qual contava com

um aumento da mobilização social e com o trânsito de setores populares para a esquerda.

Mas, ao mesmo tempo, foi essa expectativa de vitória que permitiu a manutenção da aliança

entre comunistas e socialistas, e a redução das crises que esses partidos enfrentaram durante a

fase de alianças de centro-esquerda.

Na esquerda, este período abre as pré-condições da fase de leninização do Partido

Socialista, ocorrida entre 1965 e 1970. Mantém-se, desde 1958, o debate ideológico acerca do

“trânsito não violento” ou sobre a transição institucional, realizada pelos comunistas. O outro

debate é a teorização sobre a inviabilidade da “revolução democrático-burguesa”, que

realizavam os socialistas, mas que não chegou a tensionar a frente política.

Por outro lado, o novo grupo do centro político, o Partido Democrata Cristão,

vinculou-se às teses econômico-sociais de corte desenvolvimentista, através da sua principal

liderança, Eduardo Frei. Ele se mostrou um tipo de político com capacidade de formular

projetos que pareciam realizáveis, que abarcavam idéias concretas, capazes de atingir

mudanças profundas nas estruturas do país, com uma orientação moderada e democrática.

Todos esses elementos são considerados decisivos na ascensão política da DC. A origem

deste grupo localiza-se essencialmente a partir da Falange Nacional, partido que participou de

diversos governos, bem como de uma geração do catolicismo chileno integrada à política20

Este partido utilizou-se das novas tendências de análise elaboradas pela CEPAL e

pelos intelectuais que partilhavam das suas idéias. A DC tornou-se porta-voz dos enfoques

desenvolvimentistas que visavam elaborar uma visão totalizadora do estancamento econômico

20
A Falange Nacional originou-se de um grupo dissidente do Partido Conservador, no final da década de 1930, e
veio a compor a base do Partido Democrata Cristão nos anos cinqüenta. Cf. AGGIO, op. cit, 2002, p. 98
70

e dos fenômenos de desequilíbrio entre os diferentes setores. Ao mesmo tempo, a importância

dos aspectos rupturais no programa da Democracia Cristã demonstrou que seu projeto

apontava para importantes reorganizações da sociedade e não se subordinava aos parâmetros

fixados pelos interesses das classes dominantes. A DC mostrava-se como uma força

autônoma, diferente da postura pragmática e flexível para migrar para um ou outro extremo

do sistema político da principal força de centro até aquele momento, o Partido Radical.21

As principais medidas presentes no programa da Democracia Cristã incidiam numa

potencialização da indústria nacional, numa maior redistribuição de renda e em medidas para

uma maior promoção popular, destinadas a impulsionar a organização dos setores populares e

marginalizados daquela sociedade, principalmente de grupos até então negligenciados pela

esquerda. Os aspectos de ruptura que o seu programa apresentou foram sentidos

principalmente pelo enfrentamento com interesses das classes dominantes, como a reforma

agrária, a sindicalização camponesa, a organização de pequenos proprietários, a reforma

bancária e urbana.

O contexto político mundial também teria sido um dos fatores importantes para a

ascensão desse novo centro político. Tratava-se de um contexto marcado pela ânsia da

necessidade de mudanças profundas que acabassem com as raízes do fascismo e, para as

classes dominantes, pela necessidade de políticas de integração que evitassem que as classes

populares se passassem ao campo da revolução social. Nesse quadro, desenvolveu-se uma

“filosofia política” que estabelecia o ideal de uma “nova cristandade”, a partir da qual

começou a ser aplicado em alguns setores uma nova pastoral de aproximação dos operários,

que pretendia colocar a “verdadeira redenção do proletariado” frente à “falsa libertação” do

marxismo.22

Além disso, a expectativa criada em torno da ascensão de John Kennedy, nos EUA,

em 1961, com a sua nova política para a América Latina, pautada no auxílio ao

desenvolvimento do subcontinente representada na Aliança para o Progresso, e que constituía

uma resposta ao desafio cubano, foi igualmente favorável à projeção da imagem progressista,

21
MOULIAN, op. cit., 1982, p. 136.
22
MOULIAN, op. cit., 1993, p. 128.
71

renovadora e, principalmente, alternativista da Democracia Cristã. O partido reforçava a sua

imagem alternativista ao se apresentar como uma força autônoma, isolada, e com a pretensão

de permanecer como uma força diferente dos extremos do espectro político.

Esse caráter da proposta democrata cristã se constitui de elementos da doutrina social

da Igreja e da filosofia social de Jacques Maritain, projetando uma imagem ideal de

sociedade, diferente do capitalismo e do socialismo. Com uma concepção teleológica da

política, o seu programa propunha grandes transformações como uma etapa na construção do

novo tipo de sociedade.

Identificam-se duas propostas em debate no partido acerca da definição e das

características do projeto alternativo: uma que propunha um projeto sem filiação com nenhum

outro modelo, original, denominado comunitarismo, e uma que propugnava um projeto

diferente dos socialismos históricos, mas que também buscava substituir a propriedade

privada dos meios de produção, denominado socialismo comunitário. A disputa entre os dois

projetos adentrou o governo democrata cristão e gerou grandes tensões, principalmente, a

partir de 1967.23

Outra característica importante deste centro político emergente diz respeito a sua

composição social. Diferentemente do Partido Radical, que consistia em uma grande

organização de camadas médias, abarcando profissionais e elites provinciais e com um núcleo

de trabalhadores restrito a empregados do Estado, a Democracia Cristã, ainda que articulasse

setores médios, caracterizou-se como um partido policlassista, num leque que abarcava desde

a burguesia industrial ou da construção ou finanças até operários e camponeses. Essa

capacidade de articular setores operários ficou evidente com a sua forte presença na CUT,

onde obteve a primeira maioria entre os partidos (considerados individualmente) nas eleições

gerais.

O partido também demonstrou força entre os camponeses organizados, ao dirigir

confederações de assalariados, a confederação de assentamentos, de cooperativas camponesas

e de pequenos proprietários. De acordo com Moulian, esta penetração nos setores populares

23
MOULIAN, op. cit., 1982, p. 138.
72

pela Democracia Cristã, que impedia a unificação destes em torno da esquerda, pode ser

compreendida, entre outros fatores, por consistir numa organização do campo católico, por

propiciar mudanças profundas e globais, e por mobilizar trabalhadores que eram

antimarxistas, por ideologia ou por experiências negativas em suas relações com os partidos

de esquerda. O partido mostrou grande capacidade e preocupação em elaborar, sistematizar e

divulgar suas concepções, com a utilização de aparatos culturais que, segundo o autor, podia

comparar-se com a dos partidos marxistas, o que foi um elemento primordial no seu êxito

político.24

O cenário chileno, conforme se indicou, também se apresentava propício às novas

propostas de mudança. Naquela conjuntura, a direita terminava o seu governo de forma

bastante desgastada e temerosa de que, em 1964, se concretizasse a vitória eleitoral da

esquerda, como se anunciou na eleição anterior. Mesmo ciente de que a Democracia Cristã

não cederia espaços decisórios no seu programa, nem num possível governo, defensivamente,

a direita renunciou à candidatura própria, entendendo que o quadro político tripartido daria a

possibilidade de vitória à esquerda, como ocorreu numa eleição complementar para deputado

na província de Curicó, ao sul do Chile. Dessa forma, a Democracia Cristã se mostrava como

a única alternativa para fazer frente à esquerda, representada na FRAP.

A DC aparecia, portanto, decisivamente nas eleições de 1964 com um programa

original, com proposições concretas de transformação da sociedade, de crítica ao capitalismo,

sem ser anticapitalista, suas proposições se apresentavam como a “Revolução em Liberdade”,

como uma alternativa global ao estado de coisas que imperava no país.

Enquanto o Partido Democrata Cristão atingia seu auge, devido a um discurso

inteiramente compatível com o clima cultural da época, combinando mudanças sociais com

modernização e democracia política, pode-se afirmar que o declínio da direita teve estreita

relação com as suas debilidades ideológicas para captar os anseios de uma época,

amplificadas por seu fracasso como força governante.

24
Exemplo desse empreendimento foi a fundação, em 1944, pela Falange Nacional, da Editorial do Pacífico,
complementada por uma livraria, através das quais publicou e difundiu livros doutrinários e políticos de autores
nacionais e da vanguarda católica francesa da época. Além da publicação, desde 1945, da Revista Política y
Espiritu. MOULIAN, op. cit., 1982, p. 139.
73

A estratégia da DC foi reforçar a sua imagem alternativista e revolucionária, não para

conseguir pactos com a esquerda, mas sim para canalizar o voto popular sem renunciar a sua

posição policlassista; tratava-se de um centro que visava substituir aquela esquerda, sendo

popular. Além disso, não havia mais condições ideológicas, especialmente do lado socialista,

que permitissem acordos entre centro e esquerda. Essas táticas da Democracia Cristã podem

ser encaradas como importantes fatores para gerar a dinâmica de radicalização e os efeitos

sobre o sistema político chileno que viriam a se aprofundar ao longo do governo da Unidade

Popular.

A esquerda, por sua vez, via-se ameaçada pelo discurso revolucionário da DC, antes

e depois da conquista do governo pelo centro. Buscou assim, mobilizar-se para reafirmar a

sua identidade revolucionária, acentuando o caráter maximalista do seu discurso, e recorrendo

ainda mais às referências ao processo cubano. Esse processo de radicalização com as suas

referências a elementos externos pode ser claramente identificado em um dos principais meios

de comunicação do PS, a revista Arauco, que começou a ser editada exatamente em 1959.

Ao destacar os propósitos da revista, o dirigente socialista Salomon Corbalán

afirmou: “aparece esta revista em um momento em que o eco da revolução cubana agita e

comove as massas trabalhadoras do continente, incendiando as esperanças e dando-lhes as

oportunidades de aproveitar fecundas lições.”25

No entanto, as referências ao processo cubano foram praticamente eliminadas da

campanha socialista, principalmente devido à forte campanha anticomunista empreendida

pela direita, ao aproximar-se a disputa eleitoral de 1964. A propaganda anticomunista visava

induzir o eleitor a escolher entre uma opção democrática e outra totalitária; era dirigida

especialmente às mulheres, com forte apelo emocional, evocando aos perigos que poderia

significar para suas famílias a opção marxista.

As campanhas eram veiculadas através de emissoras de rádio, periódicos, revistas e

murais. No excerto seguinte, Sofia e Consuelo ilustram o tom dessa campanha:

25
WALKER, op. cit., p. 51.
74

Um destes anúncios publicitários, divulgado pelas emissoras de rádio, começava


com os disparos de uma metralhadora e os gritos de uma mulher pela morte do seu
filho nas mãos dos comunistas; na continuação, uma voz masculina dizia: “para
evitar isto no Chile, vote em Eduardo Frei”; para concluir com outra salva de
metralhadora e uma dramática música de fundo.26

Em entrevista à revista Cuadernos, numa alusão à Revolução Cubana, Allende

destacou a sua convicção de que o socialismo era uma intensificação da democracia e não

uma alternativa à mesma. Allende acrescentou que a revolução chilena não seria como a

cubana, que não havia a pretensão de levar a cabo a instauração de um regime marxista, mas

sim democrático, nacional, popular, revolucionário e de transição ao socialismo.27

No XX Congresso do PS, em 1964, mergulhado no debate acerca das eleições, essa

tese defendida por Allende conseguiu impor-se. O encontro, portanto, descartava a via

insurrecional e foi, posteriormente, criticado pelo partido, especialmente por Jobet, para quem

este foi um período de refluxo da luta socialista. Esse momento também registrou a saída de

um grupo de jovens do partido, de Concepción, que, em 1965, passaram a formar o

Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR).28 As decisões do Congresso foram

publicadas de maneira que demonstram a prevalecente concepção instrumental acerca da

democracia do país:
Ao povo do Chile: o socialismo, usando as regras do jogo de uma democracia
formalista e tradicional, busca fazer as mudanças reais que abram a perspectiva para
a construção de uma sociedade mais justa. Um caminho legal, mas revolucionário,
porque alterará as estruturas básicas em que se cimentam nossas relações de
produção. Sabemos que o socialismo é um processo. Queremos chegar ao
socialismo, mas não buscando o caminho brusco e violento.29 [tradução nossa]

Nesta eleição, com amplo apoio da população, da Igreja, da direita, e dos EUA,

Eduardo Frei venceu as eleições com 56% dos votos, contra 39% de Allende. Essa ascensão

da Democracia Cristã teria impacto decisivo no processo de radicalização da esquerda e,

principalmente, do Partido Socialista. Podemos destacar três razões principais para esta

influência: a percepção dos socialistas de que a Democracia Cristã, sob um discurso

progressista, fazia parte dos planos dos Estados Unidos para a América Latina, e a outra cara

26
CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 242-243.
27
WALKER, op. cit., p. 56-57.
28
O MIR foi o grupo que mais expressou a defesa da ruptura revolucionária, e atuou constantemente fora do
sistema institucional, recorrendo à violência política como forma de atuação, principalmente, durante o governo
da UP.
29
PARTIDO SOCIALISTA DE CHILE. XX Congreso General. Arauco, n. 52, maio, 1964.
75

do imperialismo; o fato de a DC ter arrebatado da esquerda boa parte das suas bandeiras de

luta; e a DC ter ocupado o centro político de modo excludente, o que contribuiu para uma

polarização. Essas preocupações do PS se explicitam na discussão do Congresso de Linares,

em 1965:
[...] temos que enfrentar, pela primeira vez, um governo que, com objetivos distintos
dos nossos, mobiliza o povo com um programa que em muitos aspectos é o nosso
programa. [...] A resposta à impotência da burguesia para resolver as contradições da
nossa estrutura econômica e de dependência do imperialismo é a transformação
revolucionária do regime atual pela classe operária convertida em classe governante
[...] Dentro dessa perspectiva, as tarefas presentes dos partidos de vanguarda são,
por um lado, a reconquista das massas, enfrentando o partido do governo com
soluções revolucionárias que estabeleçam a alternativa: Democracia Cristã Burguesa
ou Socialismo; e por outro, impulsionar a luta do povo de seu nível atual – de
relativa confiança no governo –, até uma saída revolucionária que culmine com a
tomada do poder.30

Essa é uma demonstração do tom que adquirirá o discurso do PS, no sentido de

acentuar ainda mais as suas posições e diferenciar seu perfil “revolucionário” da característica

“reformista” da Democracia Cristã. Naquele momento, para o PS, havia que se demonstrar

que o Partido Democrata Cristão representava uma linha de continuidade com o passado e

com interesses de classe não distintos da direita. Além de retornar com força o debate acerca

das vias para alcançar o poder.

A derrota nas eleições foi encarada de distintas maneiras entre os grupos que

compunham a FRAP. Por um lado, os comunistas argumentavam que a coalizão comunista-

socialista não foi capaz de captar amplos setores da classe trabalhadora, e propunham ampliar

sua base popular, atraindo os setores progressistas e as bases políticas do centro. Para os

comunistas, a aliança não deveria se restringir aos dois partidos da esquerda. Diferentemente

do que pensavam os socialistas, para o PC, os inimigos eram as forças imperialistas e

oligárquicas, e não a DC ou outras forças do centro. A sua proposta consistia, portanto, em

constituir uma aliança ampla para as eleições presidenciais de 1970.31

Os socialistas chegaram a conclusões extremas, pensando que a derrota da aliança

demonstrava ser uma ilusão esperar que os trabalhadores chegassem ao poder através do voto.

30
XXI Congreso General do PSCH. In: JOBET, op. cit., 1987, p. 295-296.
31
Esta proposição do PC se aproximava da tese do PCUS de que na América Latina a transição ao socialismo
implicava a construção de um Estado Nacional Democrático, sendo que a sua conquista não dependia do papel
de vanguarda dos PCs, mas sim das forças progressistas da nação. Ver: AGGIO, op. cit., 2002, p. 106.
76

No entanto, após intensos debates internos, a direção do PS concluiu que todas as formas de

luta seriam adotadas com objetivos revolucionários, e que era um “falso dilema estabelecer a

via eleitoral ou a via insurrecional”, ainda fortemente imbuídos da concepção instrumental

acerca da democracia. Em texto redigido pelo dirigente Adonis Sepúlveda, aprovou-se o texto

que defendia a seguinte idéia:


[...] o partido tem um objetivo, e para alcançá-lo deverá usar os métodos e os meios
que a luta revolucionária julgar necessários. A insurreição ocorrerá quando a direção
do movimento popular compreender que o processo social, que ela mesma
impulsionou, chegou a sua maturidade e se disponha para servir de parteira da
revolução.32 [tradução nossa]

Fortalecia-se no Partido Socialista uma tendência que defendia a necessidade do

confronto de classes e da insurreição popular como a única possibilidade de construção do

socialismo no Chile, linha que foi confirmada nos Congressos de Linares, em 1965, e de

Chillán, em 1967, como efeito da ameaça democrata cristã sentida pelos socialistas. O

documento de 1965 assegurava que as “condições objetivas” para a revolução chilena já

estavam dadas, e que o problema residia nas “condições subjetivas”. Era necessário preparar o

partido para a “inevitabilidade do confronto”.

No Congresso de Chillán, o partido declarou-se marxista-leninista e adotou o

centralismo democrático, afirmou-se como vanguarda da classe trabalhadora e um partido de

classe, além de enfatizar o caráter continental da revolução.33 Observa-se que começa a

prevalecer a característica do socialismo chileno de permanente recorrência ao campo teórico-

ideológico socialista como algo fixo e acabado, como um conjunto de leis universais, numa

completa abstração das particularidades daquela sociedade.

A forte liderança política de Salvador Allende seria decisiva nos rumos do partido

nos anos seguintes. De acordo com Aggio, Allende não ocupava nenhum cargo expressivo na

direção partidária naquele momento, sendo-lhe negado até mesmo a sua inclusão no Comitê

32
JOBET, op. cit., 1987, p. 297.
33
Em 1969, Raul Ampuero, um dos defensores da tese insurrecional, teceu duras críticas aos comunistas e a
Allende, denominando-os de eleitoreiros; além de acusar o Comitê Central de abolir a democracia interna. O
dirigente havia sido expulso do partido, em 1967, possivelmente, por disputas pela liderança. Suas críticas estão
no seu livro La izquierda en punto muerto de 1969.
77

Central do partido no congresso de 1967, já que se posicionava contra as teses do seu partido.

No entanto, seu nome foi indicado novamente como candidato à Presidência em 1970.

Esta resolução se deu numa reunião plenária ocorrida em junho de 1969, na qual a

temática principal era a eleição presidencial, e se destacaram nos debates as figuras de Carlos

Altamirano, na defesa do caráter insurrecional da revolução socialista, por um lado, e, por

outro, Salvador Allende, defensor de uma nova política popular e de ampliação da aliança. Os

socialistas convocaram então as forças antiimperialistas e anticapitalistas para formarem uma

“Frente Revolucionária”.

Na disputa interna entre Allende e o secretário geral Aniceto Rodríguez para a

indicação do candidato pelo PS, em agosto de 1969, Allende obteve 31 dos 34 votos

regionais, ocasionando a retirada da postulação de Rodríguez. Na reunião do CC que decidiu

a candidatura socialista, Allende foi indicado candidato, demonstrando a forte liderança

política exercida pelo dirigente, internamente, e reconhecidamente, entre os setores populares.

As contradições internas do PS se mantiveram em torno das vias de acesso ao poder

e do caráter das alianças políticas; aprovando-se o rechaço à “via pacífica”, uma conduta

ruptural frente à “institucionalidade burguesa e o compromisso com as lutas revolucionárias”.

Nesse contexto, o PC preferiu apoiar o candidato do Partido Radical, Alberto Baltra, já que o

choque entre as concepções da Frente de Libertação Nacional com a Frente dos Trabalhadores

não cessava.

Nesse cenário, Allende exerceu um papel fundamental na articulação dos partidos

para a constituição da Unidade Popular, que incluiu, além dos partidos Socialista e

Comunista, o Partido Radical, que vivia uma viragem à esquerda, e o Movimento de Ação

Popular Unitário (MAPU), grupo egresso da Democracia Cristã, em 1969. Mas, se houve uma

concessão no que se refere à composição da aliança, o tom de ruptura que prevaleceu no PS

ao longo da década de 1960, e da obsessão quanto à necessidade e à inevitabilidade de se “ir

mais além”, foi imposto pelos socialistas com a idéia de que o futuro do governo da UP

deveria ter como tarefa o início da construção do socialismo. Essa radicalização do discurso

socialista se inseriu num quadro político-eleitoral que evidenciava a divisão do país em três
78

blocos posicionados numa polarização irredutível, isto é, os três apresentando-se como

alternativas globais.34

Nesse cenário, devemos considerar também os resultados do governo democrata

cristão. Ainda que tenha conseguido manter um terço do eleitorado, o partido já dava sinais de

queda nas eleições parlamentares de 1969. Isto se deve também a cisões internas decorrentes

da ausência de consenso em torno do projeto ideal de sociedade que se acirraram ao longo do

governo.

O período que a DC esteve no poder, o Chile viveu a implementação de reformas

estruturais que combinavam reforma agrária, ampliação e integração do mercado interno e

impulso à industrialização, mas que, de acordo com Aggio, mostrou-se bastante tímida em

relação à adoção de novas formas de gestão e de propriedade. Nota-se, portanto, um eco dos

governos da FP na política adotada pela DC, embora atualizada em algumas dimensões. O

governo de Frei teria sido assim, um continuador do reformismo antioligárquico chileno,

numa política que combinava desenvolvimento, modernização e justiça social.35

No aspecto político, o resultado desse governo foi uma fragmentação partidária que

resultou na citada polarização, especialmente devido a uma nova dinâmica adotada pela

Democracia Cristã, com ênfase no tom ruptural e alternativo que contraditava com o padrão

de convivência política construído pelo radicalismo nos anos quarenta, não conseguindo

impor-se como um modelo político estável. Se, por um lado, essa postura impossibilitava uma

aproximação com a esquerda, a qual visava substituir no campo popular, por outro, os

desdobramentos políticos da reforma agrária frente a direita ficaram insustentáveis para a DC,

visto que este tema afetava o núcleo político histórico da classe dominante.

A direita havia se afastado do governo em 1966 e buscou a rearticulação na formação

do Partido Nacional (PN), que contaria com os Conservadores, os Liberais e o Partido de

Ação Nacional, uma pequena organização que passaria a ter grande influência no discurso da

direita. Com essa nova formação, operou-se tanto uma renovação da elite política de direita

no Chile como uma mudança no seu modo de fazer política, que passaria de uma estrutura

34
Cf. AGGIO, op. cit., 2002.
35
Ibidem, p. 102.
79

típica dos partidos de notáveis da direita tradicional, para um partido de militantes, com forte

organização e capacidade mobilizadora.

Para as eleições presidenciais, a direita lançou a proposta da “Nova República”,

representada por Jorge Alessandri, que evidenciava a “alternativa global” da direita, numa

atitude mais ofensiva, como destaca o autor:


Tão logo a direita reorganizou-se no Partido Nacional, os setores empresariais –
somados a uma classe média receosa do “caos” que uma suposta revolução em curso
poderia provocar – abandonaram a política de compromissos com a DC, bem como
a sua posição defensiva. O antigo tema da “contra-reforma” burguesa, pensado agora
pela direita de maneira bastante radical, vocalizando a necessidade de um “governo
forte”, fazendo renascer o tema do nacionalismo e advogando drásticas mudanças na
Constituição, bem como no econômico, uma igualmente drástica liberação da
36
economia, vai novamente animar os círculos direitistas. .

É preciso destacar também que neste período de intensificação dos conflitos e de


ênfase na idéia de ruptura e revolução, nota-se uma exacerbação das tensões sociais no campo
e na cidade, gerando repressão por parte do governo às manifestações populares, rompendo
com isso os laços que mantinham a base de apoio popular à DC. A política de promoção
popular e a rápida mobilização política deste setor foram as marcas do governo da DC,
abarcando o apoio ao processo de sindicalização e à formação de milhares de organizações de
base, como Juntas de Vizinhos, centros de mães, clubes esportivos, cursos de preparação de
líderes comunitários.37
De acordo com Faúndez, o governo Frei teria fracassado na estratégia econômica ao
sacrificar seu programa de reformas para impedir um processo inflacionário, freando, por um
lado, seu plano de reformas estruturais, sem abandonar o estímulo à mobilização política, ao
mesmo tempo em que mantinha a obsessão da autonomia política frente aos demais partidos.
Além de enfrentar os questionamentos no próprio grupo para aprofundar o plano de reformas,
crescia o descontentamento popular que, gradativamente, legitimaria uma alternativa à
revolução em liberdade da DC, bem como o questionamento ao capitalismo.38
As organizações criadas no marco da “Promoção Popular” se transformaram em
canal de expressão das novas demandas, ao mesmo tempo em que, enquanto espaços de

36
AGGIO, op. cit., 2002, p. 102.
37
O número de trabalhadores sindicalizados teria chegado a 550.000, em 1970, representando aproximadamente
20% da força de trabalho; organizou-se ainda cerca de 20.000 núcleos de base. Ver: FAÚNDEZ, op. cit., p. 158.
38
Ibidem, p. 160
80

discussão e encontro, contribuíam para a expansão das expectativas populares. É importante


notar que as manifestações sociais passaram a adotar novos procedimentos de pressão
política, como a ocupação de terras agrícolas e terrenos urbanos, ocupação de pobladores sem
casa, ocupação de fábricas. Esses atos demonstravam uma radicalização dos setores
organizados, não mais restrito aos sindicatos, em formas de ação política direta no âmbito do
trabalho e comunitário, que vão adentrar o governo da Unidade Popular com mais força e
maior repercussão.
Nas palavras de Sofia e Consuelo, eram “signos de beligerância” que se
disseminavam e que deslegitimavam os mecanismos e práticas de acordo político:
[...] a incorporação de vastos setores da população à atividade política superou as
modalidades do agir partidário, outrora sustentado na negociação e no acordo entre
as elites parlamentares, o que se traduziu em um cada vez mais freqüente
enfretamento direto − seja de palavra, seja de ação − entre os diversos atores
envolvidos. [...] Não é casualidade que crescentemente se tenha feito uso de
expedientes de ação direta, tais como greves, ocupações, marchas e concentrações,
que proliferaram como produto da deslegitimação e ineficiência de mecanismos
convencionais de diálogo.39

No entanto, entendemos que neste período havia uma crise parcial naquela
sociedade, pois o regime político não se encontrava em crise e mantinha a sua legitimidade.
Este era um espaço considerado pelas forças e classes em disputa como um âmbito que
permitia a concorrência pelo poder para a realização dos seus projetos.
As urgências pelas transformações globais suscitadas na década de 1960 foram
resultado das propostas impulsionadas no mundo político, institucional e intelectual, mas
também como uma resposta, dentro daquele campo cultural, às mudanças sociais que vinham
se produzindo desde meados do século. Mudanças, como o grande crescimento demográfico
sustentado numa progressiva migração do mundo rural para as cidades, com o conseqüente
surgimento de uma nova marginalidade urbana, além da incorporação de sujeitos até então
excluídos da participação, como os camponeses e as mulheres, massa que passou a constituir
um novo elemento de pressão.
Além desse quadro social, a tripartição de forças foi um fator decisivo para a vitória
eleitoral de Allende, que obteve 36,2% dos votos, contra 34,9% do Partido Nacional,
representado por Jorge Alessandri, e 27,8% de Radomiro Tomic, da Democracia Cristã. É

39
CORREA; FIGUEROA, op. cit, p.256.
81

importante considerar que, ainda que a UP tenha vencido por uma margem pequena, mais de
dois terços do eleitorado optaram por representantes de projetos de reformas profundas.
Ainda que o presente trabalho não vise tratar detalhadamente o governo da esquerda,
representada na Unidade Popular, é necessário discutir, ainda que de maneira geral, as
características desse governo, suas propostas e, principalmente, a dinâmica política do
período, de maneira a captar os resultados dos debates empreendidos pelos principais sujeitos
políticos.
O programa da UP visava a construção do socialismo nos marcos da
institucionalidade, por meio de amplas transformações estruturais naquela sociedade, e se
baseava numa forte crítica às experiências reformistas do país, especialmente da Democracia
Cristã, reclamando um plano de ação mais profundo, para substituir a estrutura econômica
dominante. Era um pressuposto que esse processo requeria uma etapa de transição, na qual o
Estado, intervindo de forma direta na economia iria realizar as transformações destinadas à
socialização dos meios de produção.
Neste âmbito o programa visava separar setores da economia em áreas de gestão
diferenciada em Área de Propriedade Social (APS), que seria controlada pelo Estado, incluiria
setores da grande mineração, os monopólios industriais estratégicos, o comércio exterior, os
bancos e as grandes empresas dos setores-chave de distribuição, energia e transporte; Área de
Propriedade Privada, constituída por empresas médias e pequenas; e a Área de Propriedade
Mista, estabelecida em alguns setores tecnologicamente avançados de produção, na qual o
Estado e o capital privado formariam empresas conjuntas. A aceleração da reforma agrária e a
ampliação do seu alcance, com o fim de integrar completamente os trabalhadores agrícolas,
bem como o setor agrícola ao restante da economia, também constituía um dos principais
pontos do programa.
Para conseguir aplicar seus projetos, a UP se apoiaria na força e na flexibilidade das
instituições políticas existentes. Dessa forma, as mudanças estruturais se realizariam mediante
reformas constitucionais e legais e, em último caso, através de plebiscito. No seu programa,
um dos temas que era consenso dizia respeito à participação popular, mas que não apresentava
um projeto definido que apresentasse a maneira como se daria essa participação. Esse tema se
inseria nas questões que envolviam a etapa de transição, como o seu caráter, a sua duração e o
82

comportamento destas forças populares no governo, e que se tornaram os principais fatores de


divergência na Unidade Popular.
É possível afirmar que, na concepção de Allende, a participação popular se daria de
forma gradual e planejada, como parte da sua idéia de aprofundamento da democracia, a partir
da criação de órgãos através dos quais a população participaria; enquanto que para os
membros do PS, como Carlos Altamirano40, Jobet, Chelén, ou demais socialistas como Raul
Ampuero e o MIR, a participação popular se daria de forma direta para a constituição de um
poder popular, em substituição ao “Estado burguês”.
Diferentemente da proposta de um processo construtivo, como o concebido por
Allende e os setores que o apoiavam, como o PC, esta seria uma etapa de destruição das
instituições existentes, na concepção de setores socialistas constituídos, principalmente, por
seus intelectuais. Esta concepção acerca da democracia, que a compreende como um
invólucro da classe dominante é que está na raiz do comportamento ruptural desta esquerda
durante a experiência chilena frente às instituições e aos demais sujeitos políticos e sociais.
Uma exposição bastante significativa das concepções dos intelectuais socialistas
acerca do governo da UP está presente na compilação de artigos, publicada em 1972, em cuja
introdução Jobet e Alejandro Chelén se preocupam em reafirmar o caráter ideológico do
socialismo chileno e a incompatibilidade deste com os “caminhos reformistas que incorreriam
o governo da UP”.
Para os autores, a vitória de um conglomerado de partidos operários de orientação
marxista com grupos “demoburgueses”, com o propósito de criar uma etapa de transição ao
socialismo significaria o predomínio do reformismo. De acordo com os socialistas:
Os partidos revolucionários não podem deixar-se capturar pela sociedade
demoburguesa e desenvolver sua ação exclusivamente dentro do marco institucional
do sistema dominante, como uma força meramente reformista, reduzindo sua
atividade a tomar medidas aparentemente revolucionárias, porque, no fundo, não
destroem o regime capitalista [...] Precisamente, o perigo do atual regime de
“Unidade Popular” é o de malograr o despertar social dos diversos setores
trabalhadores, ocorrido com o triunfo de setembro de 1970, por uma direção
reformista, deixando a meio caminho a revolução prometida.41 [tradução nossa]

40
As concepções acerca da “inevitabilidade do conflito”, do dirigente socialista Carlos Altamirano, secretário
geral do partido durante o governo da UP, estão expostas no seu livro: Dialética de uma derrota: Chile 1970-
1973. São Paulo: Brasiliense, 1979.
41
JOBET, Julio César; ROJAS, Alejandro Chelén. Pensamiento teórico y político del Partido Socialista de
Chile. Santiago: Ed. Quimantu, 1972, p. 7.
83

Conquistado o governo, a meta a seguir deveria ser a construção imediata do


socialismo, eliminar o sistema capitalista de maneira a não se limitar à “prática reformista”.
Os autores inserem também a temática do poder popular sob a perspectiva da construção do
socialismo a partir “de baixo”. O resgate da tradição ideológica e doutrinária do socialismo
chileno é reivindicado pelos autores, apontando a necessidade de um retorno às fontes
doutrinárias, “através da análise de textos para reafirmar a personalidade socialista com uma
verdadeira inspiração revolucionária e acentuar uma afirmação ideológica marxista”.
Dessa forma, a organização de um novo Estado que confiasse às massas as
responsabilidades econômicas, sociais e políticas, além da adoção do mecanismo de
autogestão como forma de participação direta dos trabalhadores, consideradas questões
inseparáveis do funcionamento de uma democracia revolucionária popular, deveriam impor-
se nas práticas do governo.
Principal bandeira defendida pelo líder socialista Carlos Altamirano, a participação
direta da população foi o elemento central da sua política no Comitê Central do partido. Mais
do que isso, prevalecia entre os intelectuais socialistas uma visão mítica do poder, na qual este
aparece como objeto de posse, e não como uma relação social complexa que o diversifica em
um conjunto de instâncias da sociedade. Assim, o projeto de sociedade aparece confundido
com um projeto de “tomada do poder”.42
Para ele, todo o processo pelo qual passava a esquerda com a vitória da UP tinha uma
importância decisiva no transcurso do processo político, mas, que, no entanto, não teria maior
significado se não fosse respaldado pela “mobilização total das massas populares e sem a sua
incorporação como sujeito ativo na organização das instituições políticas”, e acrescentou:
[...] a revolução chilena só será possível na medida em que as vanguardas da classe
trabalhadora saibam revolucionar a si mesmas, se incorporem às massas populares e
encontrem nelas o dinamismo, a orientação e a força que farão possível a condução
do povo chileno para a construção do socialismo. O sectarismo partidário e o apego
às tradições da ordem burguesa são os grandes inimigos da revolução.43 [tradução
nossa]

Nas palavras de Allende, não era o princípio da legalidade o que afetaria as


mudanças estruturais no sistema econômico e social do Chile, e sim seus postulados, que até

42
GARRETÓN, op. cit., 1983, p. 1301.
43
ALTAMIRANO, Carlos. El Partido Socialista y la Revolución Chilena. In: JOBET; ROJAS, op. cit., 1972, p.
337.
84

então, refletiam seu opressor regime social. Segundo Allende, as normas jurídicas e as
técnicas ordenadoras das relações sociais entre os chilenos respondiam às exigências do
sistema capitalista. Assim, no regime de transição ao socialismo as normas jurídicas iriam
responder às necessidades do povo para a edificação da nova sociedade. A conquista do poder
popular é traçada como uma meta:
Legalidade haverá. Que à legalidade capitalista suceda a legalidade socialista
conforme as transformações socioeconômicas que estamos implantando, sem que
uma fratura violenta da juridicidade abra as portas a arbitrariedades e excessos que,
responsavelmente, queremos evitar. [...] a construção do novo regime social
encontra na base, no povo, seu ator e seu juiz. Ao Estado corresponde orientar,
organizar e dirigir, mas de nenhuma maneira substituir a vontade o povo. Tanto no
econômico como no político os próprios trabalhadores devem deter o poder de
decidir. Consegui-lo será o triunfo da revolução.44 [tradução nossa]

Diferentemente do caráter classista estabelecido pelos membros socialistas, Allende


atribui não só à classe trabalhadora a função de instaurar o novo regime e de cumprir o
programa socialista, mas também a outros setores sociais e grupos políticos. Deveriam ficar
de fora do movimento quem não estivesse comprometido com a transformação do país. A
lógica nação – antinação parece suplantar o nexo da luta de classes presente na proposta dos
demais socialistas. Como nota-se na sua afirmação:
Se sustentarmos que no cumprimento da etapa que temos adiante devem ter
participação outros setores médios e da burguesia, é lógico que contemplemos para
eles um lugar destacado na instauração de um novo regime e no exercício de um
novo governo. E não se trata de uma participação passiva e subordinada, mas de
uma colaboração efetiva em prol de soluções que são para eles de inegável
benefício.45 [tradução nossa]

Para a participação popular, Allende projeta o seu papel de direção e orientação na


medida em que se promovesse a sua unidade política e sindical, no sentido de colocar as suas
lutas nas medidas anunciadas e dar aos seus partidos e organizações uma participação real no
movimento popular. Allende expressaria ainda a sua convicção de que se os partidos não se
constituíssem na vanguarda de uma transição institucional e pacífica ao socialismo, o
enfrentamento de classes seria inevitável.
Esta divergência ficou explícita no episódio da Assembléia de Concepción, em 1971,
na qual parte das forças de esquerda, especialmente o PS, propôs a dissolução do Congresso
Nacional e a sua substituição por uma Assembléia do Povo, o que dava mostras de um ataque

44
ALLENDE, Salvador. La via chilena hacia el socialismo. In: JOBET; ROJAS, op. cit., 1972, p. 498.
45
JOBET, Julio César. Principios de ordens politico del Partido Socialista de Chile (1964). In: JOBET; ROJAS,
op. cit., 1972, p. 476.
85

à política seguida pelo governo central através da instituição de um duplo poder. Essa
Assembléia teve sérias repercussões políticas para o governo, já que Concepción era a terceira
maior cidade industrial do país, e agrupava uma quantidade importante de operários que
apoiavam tradicionalmente aos partidos Comunista e Socialista. A cidade que também
abrigava a sede regional do MIR consistia, desde a década anterior, no foco de uma atividade
extremista levada a cabo por camponeses, operários e estudantes.
Allende e o PC condenaram a ação. O presidente enviou uma carta aos partidos da
coalizão, exigindo apoio ao governo e, recordando-lhes que o poder popular não seria
alcançado mediante táticas divisionistas baseadas em uma “visão romântica e pouco realista
da situação”. O PS se comprometeu a apoiar o governo, mas negou-se a condenar os membros
da regional de Concepción, sugerindo que não estava em total desacordo com as idéias
colocadas na Assembléia.46
Allende não conseguia encontrar respaldo para a via chilena no próprio partido e nos
círculos intelectuais da esquerda, para os quais o problema residia em saber como se passaria
do governo popular para o poder popular. Ainda que não possamos apontar os socialistas
como oposicionistas ao governo, esta ambígua posição não só contribuiu para dar
credibilidade às acusações dos opositores, de que o governo estava comprometido com
posições extremistas para levar a cabo a ditadura do proletariado, mas contribuiu também para
debilitar a eficácia da ação governativa.
O constante embate no seio do Partido Socialista entre as propostas de transformação
atravessou a sua história e veio a permear o governo da Unidade Popular (1970-1973), que
viveu o desacerto entre um programa de transformações implementado e o radicalismo da sua
esquerda, orientado em grande parte pelos supostos ideológicos da sua intelectualidade,
disposta a ver o período como a ante-sala do socialismo; dificultando a manutenção de uma
direção única por parte do governo.47
A esquerda chilena de 1969 era diferente daquela de 1938 que fez parte da coalizão
com o centro. Ao contrário, parte dessa esquerda tinha como principal característica a
obsessão pela idéia da necessidade de “superação do reformismo”, rechaçando assim, a

46
FAÚNDEZ, op. cit., p. 240.
47
AGGIO, op. cit., 2002, p. 24-25.
86

concepção acerca do socialismo que não fosse insurrecional. Além disso, o movimento
mostrou-se incapaz de apreender novas expressões democráticas nas mobilizações de parte
daquela sociedade, uma vez que seus membros estavam pautados em concepções do
vanguardismo leninista e do socialismo como tomada do poder. Esta última é uma expressão
das contradições vividas no interior da UP: “tornar-se governo e continuar perseguindo a
construção socialista como uma ruptura revolucionária”.48
Durante o governo da UP a pressão para uma aceleração do processo revolucionário
se tornou o ponto crucial do debate político da esquerda, como podemos observar no excerto
seguinte que explicita as colocações dessa tendência dos dirigentes socialistas:
A contradição entre as forças crescentes das massas e o poder da burguesia define
esta etapa como um período essencialmente transitório. Nosso objetivo, portanto,
deve ser de afirmar o governo, dinamizar a ação das massas, afastar a resistência dos
inimigos e converter o processo atual em uma marcha irreversível para o
socialismo.49 [tradução nossa]

Esta esquerda imprimiu naquele movimento a idéia da oposição entre reforma e


revolução no seu seio, concebendo esta última sempre como um processo insurrecional de
confronto entre classes. Tese que não foi capaz de apreender a complexidade das contradições
e potencialidades do conflito político e social do Chile e de apresentar uma nova proposta
política e de relações sociais num quadro de recorrentes teses esquemáticas.
Todas as tensões presentes no interior da UP exerceram seu impacto ao longo do
governo. No primeiro ano de governo, os conflitos entre a UP e a DC, que tentava se
apresentar como a maior força de oposição ao governo e à direita, permaneceram latentes.
Enquanto que no plano econômico e social o governo atingiu metas importantes, no que diz
respeito à distribuição de renda e à promoção popular.
No entanto, o ano seguinte seria marcado por impasses institucionais, problemas de
desabastecimento e inflação. No plano político, as forças de oposição atuaram com maior
desenvoltura e radicalizaram suas ações contra o governo. Ao mesmo tempo, emergia com

48
Cf. AGGIO, Alberto. Experiência chilena e via chilena ao socialismo: um estudo crítico da cultura política da
Unidade Popular no Chile (1970-1973). Revista de História, São Paulo, n.11, p. 57-76, 1992.
49
Resolución política Congreso de La Serena. (jan. 1971). In: JOBET, Julio César. El Partido Socialista de
Chile. Santiago: PLA, 1971, p. 183.
87

mais força as divisões internas da UP, encobertas enquanto o governo deteve a iniciativa
política, e entre algumas forças internas e o governo, evidenciava-se um desacerto.50
No ano de 1972, o cenário era de confrontação ceda vez mais aberta no país. As
situações de explosão da violência multiplicavam-se, afetando seriamente o padrão de
institucionalização dos conflitos, que havia sido uma tônica do desenvolvimento político
chileno e que tinha permitido a posse de Allende e uma relativa estabilidade no primeiro ano
de governo. A chamada crise de outubro é a maior expressão da ofensiva da oposição. O país
viveu uma paralisia quase total das suas atividades, demonstrando um alto grau de
organização e mobilização das organizações patronais e da classe média, em contestação
aberta ao governo.51
Este foi um dos poucos momentos em que a esquerda conseguiu superar suas
divisões, apelando à iniciativa das massas e a sua organização em apoio ao governo, no
sentido de assegurar-lhe legitimidade. Nesse contexto, os Cordões Industriais, Comandos
Comunais e outras organizações populares, além da CUT, converteram-se no centro de apoio
ao governo, que confiou neles para manter a produção e assegurar o abastecimento regular.
Ao final de 1972, restavam poucas alternativas para Allende dar continuidade a sua
estratégia, especialmente diante da impossibilidade de acordo com o centro político. Os
encaminhamentos da UP, visando aprofundar a implementação do seu programa como forma
de garantir a sua unidade orgânica, mantiveram o clima de polarização.52
A organização e a mobilização da classe média demonstraram que as sucessivas
ações da esquerda e dos setores populares através de ocupações, as intervenções diretas do
governo em diversas áreas da economia, os problemas de desabastecimento, bem como as
freqüentes greves e conflitos violentos geraram uma grande insegurança em setores daquela
sociedade. Insatisfação que foi canalizada pela direita como um fator de afirmação da sua
estratégia.
O papel que havia sido desempenhado pela classe média nas políticas pendulares dos
Radicais encontrava cada vez menos espaço, sendo que as ações da UP eram dirigidas no

50
AGGIO, op. cit., 2002, p. 128.
51
Ibidem, p. 137.
52
Ibidem, p. 141.
88

sentido de rejeitar a sua continuidade. Além disso, o elemento popular afirmado pela UP
afrontava a identidade desse setor, como destacam Garretón e Moulian:
O elemento obrerista do discurso da Unidade Popular, sua reivindicação do povo
como sujeito da política não era compatível nem com o elitismo das camadas médias
[...] nem com a sua luta permanente para defender as fronteiras que deviam separar
as camadas médias dos operários e do povo; nem com a sua ideologia meritocrática
e a sua convicção de que a condição social de cada um refletia sua capacidade, sua
disciplina ou sua laboriosidade.53 [grifos do autor] [tradução nossa]

A conjuntura de 1973 é caracterizada por uma polarização em que a Democracia


Cristã estava situada ao lado da direita, por não conseguir reafirmar sua postura alternativista
com o seu decréscimo eleitoral neste ano. Por outro lado, as relações de Allende com a UP se
deterioraram, principalmente, pela insistência de setores da esquerda na necessidade de
estruturar um “pólo revolucionário” e abandonar a estratégia da legalidade. O que se pode
notar é que a demanda por autoridade, espalhada pela sociedade e projetada nos atores
políticos, conseguiu ser captada e muito bem operada pela direita.
Observa-se nesta trajetória do socialismo chileno, principalmente, a partir das
inflexões ocorridas a partir de meados da década de 1940, a construção de um imaginário, a
partir do qual se estabeleceu uma concepção abstrata daquela sociedade, com base em teorias
revolucionárias, sem a capacidade para interpretar as particularidades da história e da
formação social e política do país. Rompeu-se assim, com uma história pautada por
compromisso e gradualismo, e que havia possibilitado as transformações pelas quais passou a
sociedade chilena, combinando desenvolvimento, democracia política e participação, de cujo
início, o PS também foi tributário.
A década de 1960 caracterizou-se pela expectativa de mudança expressa em
diferentes facetas nos projetos de mudança estrutural do país, a partir de concepções que
pensavam aquela sociedade em termos de atraso e subdesenvolvimento, bem como do
questionamento da viabilidade daquele modelo capitalista para o desenvolvimento do Chile.
No meio intelectual, a generalização da idéia do atraso e do desajuste entre a
“estrutura política e a sócio-econômica” se constituiu numa das principais características dos
debates e das formulações teóricas e políticas que vieram a animar os grupos de esquerda
nestes anos. Enquanto que as formulações da CEPAL apresentaram alternativas de

53
GARRETÓN, M. Antonio; MOULIAN, Tomás. La unidad popular y el conflito político en Chile. Santiago:
Ediciones Minga, 1983, p. 100.
89

desenvolvimento, que alimentaram o projeto da Democracia Cristã. Neste momento de


refundação das propostas políticas nesse quadro de novas demandas e da possibilidade de
transformações profundas, nota-se também um momento de refluxo dos partidos tradicionais.
A sociedade chilena viveu neste contexto a expectativa da “Revolução em
Liberdade” proposta pelo emergente centro político que se apresentava como uma alternativa
aos campos extremos do sistema político. Pela esquerda, a aposta num governo popular
representou a culminação de um longo processo político que para ela havia começado em
1938, com estratégias que variaram da participação no poder sob o predomínio do centro,
chegando à vocalização de um projeto que estabelecia a necessidade do socialismo para a
transformação da sociedade.
O importante a destacar é que, após a vitória de Allende, os conflitos vividos no
interior da UP explicitaram as deficiências do projeto da via chilena ao socialismo e,
principalmente, as dificuldades impostas pelos elementos que compunham a cultura política
do socialismo chileno, que nunca compreendeu aquele projeto como uma via democrática, a
não ser retoricamente, como fator de legitimação ideológica dos discursos partidários.
Nota-se que a diversidade no interior da Unidade Popular remonta às origens do
socialismo e que adquiriu uma modalidade especial após a Revolução Cubana, como uma
experiência que parecia dar a resposta ao que a esquerda encarava como a “história frustrante
das alianças com o reformismo” e das derrotas eleitorais. Essa linha ruptural dentro da
esquerda é a manifestação desse clima ideológico que, dialeticamente, ela contribuiu para
forjar, e que se expandiu desde a década de 1960. Esta linha trouxe elementos como a relação
entre o modelo estratégico soviético e a revolução nos países subdesenvolvidos, a idéia da
necessidade do socialismo e a convicção fortemente desenvolvida pelos intelectuais do
fracasso do capitalismo e da condição de crise total na sociedade, para estabelecer o
imperativo da transformação global.
CAPÍTULO 3
JULIO CÉSAR JOBET E A CULTURA POLÍTICA SOCIALISTA
91

3.1 Análises e debates: as faces de um protagonista

Na América Latina, o debate político passou a ser liderado, principalmente após o

segundo pós-guerra, por intelectuais socialistas.1 O pensamento de esquerda formou-se

representado pela intelectualidade que se destacou na interpretação dos processos históricos e

na formulação de projetos políticos para seus países ou para o subcontinente como um todo.

Foram homens que buscaram desenvolver propostas para a transformação da sociedade a

partir das suas perspectivas teóricas. A atuação intelectual e política de Julio César Jobet se

enquadra nesse contexto de difusão do marxismo no subcontinente.

Visualizamos nos itens anteriores que o desenvolvimento da esquerda chilena se

desenhou principalmente na busca de alternativas que superassem as contradições entre a

estabilidade política e a questão social do país. Foram debates que se ampliaram de acordo

com o desenvolvimento do seu pensamento político, e que indicariam ao longo do século as

diferentes vias de transformação, em especial teorias ligadas à tradição revolucionária da

esquerda pós-1917.

O que podemos destacar é que o processo de radicalização da esquerda chilena teve

como um dos seus principais fatores a atuação dos seus intelectuais na realização de uma

renovação das orientações internas, buscando reconstituir as principais categorias analíticas e

do pensamento político que foram mobilizadas para concretizar um determinado projeto

socialista. Esta investigação apresenta os intelectuais como figuras centrais, como

protagonistas numa defesa de tradições políticas e de esquemas ideológicos que significou um

rompimento com a cultura concertacionista característica do socialismo chileno até os anos

quarenta.

O Chile é um país que se destaca pela constante atuação dos seus teóricos na esfera

política e, principalmente, no movimento socialista, que conferia especial espaço aos seus

intelectuais na organização e difusão das idéias e debates políticos. Como afirma Jocelyn-

Holt, a este protagonismo se deve, dentre outras questões, o diagnóstico crítico da sociedade
1
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34,
2000.p. 26.
92

senhorial, a visão histórica do Chile como país economicamente atrasado, a radicalização

ideológica, a crítica às instituições públicas, que passaram a ser vistas como obstáculos

oligárquicos que impediam efetuar as mudanças estruturais.2

Buscamos indicar até aqui, em meio às inflexões ideológicas que marcaram a política

chilena, as atuações dos principais intelectuais socialistas representantes dessa nova fase do

socialismo chileno. Nomes como o de Oscar Waiss, Alejandro Chelén, Raul Ampuero e Julio

César Jobet, bem como as orientações que buscaram imprimir nas ações do Partido Socialista,

no intuito de demonstrar que a sua participação teve influência direta nessa mudança de

postura que ocasionou uma radicalização dos seus pressupostos.

De acordo com Federico Gil, os profissionais e intelectuais constituíam um grupo de

especial importância nos assuntos partidários. Tinham respeito e prestígio na organização, e

seus trabalhos nas diversas comissões internas tinham forte peso. Além disso, esses

intelectuais desempenhavam importantes funções como representantes intermediários entre o

partido e as instituições públicas e privadas, como a CORFO (Corporación de Fomiento), a

CEPAL e a Universidade do Chile, bem como em grupos de pressão daquela sociedade, como

a Sociedade Nacional de Agricultura.3

Além disso, a atuação destes intelectuais era de fundamental importância na

formação teórica dos militantes, e se via favorecida pela estrutura de funcionamento do

partido, dividido em núcleos, cujo objetivo era o de formação política das suas bases. As

atividades se davam, sobretudo, com o estudo coletivo e individual do marxismo e das

publicações do partido e dos seus membros.4

Dentre esses intelectuais, Julio César Jobet merece destaque devido a sua vasta

produção, tanto historiográfica, como política. Não por acaso, Jobet é reconhecidamente uma

das maiores referências intelectuais do socialismo chileno, na medida em que traduziu em

2
LETELIER, Alfredo J H. Os intelectuais-políticos chilenos: um caso equivocado de protagonismo contínuo: os
intelectuais e a política na América Latina. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, ano 4, n. 5, p. 65-97, 2003, p.
66.
3
GIL, Federico. El sistema político de Chile. Santiago: Ed. Andrés Bello, 1969, p. 310.
4
SARGET, op. cit., p. 94.
93

seus trabalhos os princípios e categorias que orientaram este processo de busca de uma nova

identidade para o socialismo, e que sempre se posicionou como um porta-voz do partido.

Entendemos que a atuação de maior importância de Julio César Jobet se dá no

contexto do final dos anos cinqüenta. A historiografia identifica nesse período, em setores da

sociedade chilena, a difusão de uma espécie de decepção generalizada a respeito das

possibilidades de mudança no tipo de dinâmica política baseada nos pactos e na sua real

capacidade para conduzir as transformações na sua estrutura econômica e na sua organização

social, que ainda apresentavam aspectos da sua ordem tradicional.

A década de 1950 marcaria o colapso do modelo político que governou o país desde

os anos trinta, caracterizada por políticas de coalizão durante os governos radicais (Partido

Radical), que favoreciam acordos entre as diferentes tendências políticas. Tratava-se então de

um momento de negação de um processo construído desde o final dos anos trinta,

denominado por Eugenio Tironi como “arreglo democrático”, caracterizado por um

entendimento entre as forças sociais e políticas do Chile e pela congregação do

desenvolvimento com pautas integradoras no plano social, no qual o Estado assumia o seu

papel central; elementos que constituíam o que havia de essencial na particularidade chilena.5

Conforme indicamos no capítulo anterior, a década de 1950 foi marcada pela nova

configuração que passou a adquirir o sistema político chileno, na qual o sistema institucional

sofreu alterações devido à nova postura assumida pelos partidos políticos e, ao mesmo tempo,

pela busca de novas alternativas distintas da prática de acordos políticos, vivenciada desde a

década de 1930.

Como decorrência, teria emergido na primeira metade da década de 1960 uma

generalizada sensação de crise e de desenvolvimento frustrado, aumentando o terreno de

aceitação da idéia de que a sociedade chilena necessitava passar por mudanças profundas.

Nesse sentido, a esquerda assumia uma oposição aberta ao governo e ao seu “reformismo”,

fazendo reaparecer, sob o impacto da Revolução Cubana (1959), a temática da iminência do

5
AGGIO, op. cit., 2002, p. 155.
94

socialismo, e contribuindo ainda mais para a polarização ideológica do sistema político

chileno. 6

No meio intelectual, a generalização da idéia de atraso e do desajuste entre a

estrutura política e a sócio-econômica se constituiu numa das principais características dos

debates e das formulações teóricas e políticas que viriam a animar os grupos de esquerda nos

próximos anos. As obras do economista Aníbal Pinto, Chile, un caso de desarrollo frustrado,

de 1956, e a obra intitulada Ni estabilidad, ni desarrollo: la política del Fundo Monetario,

publicada em 1960, são trabalhos que se tornaram referência para a esquerda e para os

partidos de centro do país.

A crítica de Pinto à política do governo Jorge Alessandri (1958-1964) baseada no

constrangimento do protagonismo do Estado e das limitações protetoras à produção nacional

seria interpretada pela esquerda como uma manifestação antiimperialista e pelo centro como

nacional-desenvolvimentismo.7 Para o autor, o descompasso entre a infraestrutura e a

superestrutura havia se tornado insustentável no contexto de crise social que vivia o país, o

que tornava imprescindível a concretização de uma alternativa política capaz de refundar o

desenvolvimento chileno em outros moldes para superar o atraso.

Obra de impacto na historiografia e na análise estrutural do país foi o Ensayo crítico

del desarrollo económico social de Chile, de Jobet, publicada em 1951. Esta publicação teve

grande repercussão porque além de resgatar temas da denominada “questão social” e seus

principais autores e momentos das lutas operárias, o trabalho teceu duras críticas à ordem

tradicional e à democracia do país, destacando os limites daquele sistema. A visão da América

colonizada e dependente, como herança da sua formação histórica é reforçada e dá o tom das

idéias e propostas socialistas na versão do antiimperialismo e da Segunda Independência

Nacional e Continental.

No entanto, trabalhos como o de Jobet e o de Pinto buscaram tecer críticas às

estruturas daquele país e ao alcance da democracia, sem propor um novo tipo de compromisso

6AGGIO, op. cit., 2002, p. 103.


7COSTA, Janaína Capistrano. As relações entre executivo e legislativo no contexto da crise da democracia
chilena em 1973. 2005. 230f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)- Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2005, p. 55.
95

político capaz de realizar transformações significativas dentro da lógica política daquela

sociedade. O que veremos adiante é que Jobet propôs um projeto político de legitimação de

um patrimônio ideológico partidário baseado em concepções bastante convencionais da

esquerda mundial, abstraindo-se da realidade política do seu país e das exigências que aquela

sociedade trazia consigo.

Como um historiador marxista vinculado a um partido político, uma das questões que

despontam como mais interessantes e importantes refere-se à maneira como se relacionam,

em Julio César Jobet, suas concepções historiográficas e seus posicionamentos políticos.

Como historiador, Jobet concebeu os fatos do passado e buscou as origens das questões que o

inquietaram no seu tempo. A partir dessas considerações, visamos indicar as principais

características do seu pensamento e as idéias políticas subjacentes, para apreendermos a sua

proposta para o projeto socialista que se tornou uma das linhas de maior expressividade nesse

processo de radicalização da esquerda.

O seu trabalho historiográfico começou a se destacar a partir da década de 1940 e se

enquadrou num período de mudanças de enfoque, acompanhada de uma nova abordagem

metodológica apreendida pelas novas gerações de historiadores. Entre outros métodos de

análise, esses novos intelectuais assimilaram o marxismo como concepção de mundo e forma

de construção do conhecimento histórico, influência fortalecida pelo seu engajamento no

movimento socialista. Seu trabalho veio representar uma proposta de ruptura com a

historiografia predominante.

Visualizar no trabalho de Jobet a questão da relação do intelectual com o seu meio

não é uma tarefa muito difícil, já que o historiador, como um marxista e dirigente partidário,

evidenciou em seus escritos que o trabalho teórico serve de ferramenta para a atividade

política e social. Entendia que o historiador é um homem de uma época e de uma classe social

determinada, portanto, influenciado pelas paixões e anseios de classe.8 Cabe destacar que

buscamos não priorizar o enfoque à discussão do seu trabalho historiográfico, já debatido em

8
JOBET, op. cit., 1951, p. 14.
96

trabalho anterior9, visando discutir mais o seu protagonismo político. Dessa forma,

articulando as suas idéias com o seu projeto socialista em um contexto determinado.

A análise da história chilena é empreendida por Jobet no sentido de identificar as

continuidades e as principais características que marcaram o seu processo histórico desde o

período da colonização até o momento vivido pelo historiador. É possível observar que seu

trabalho sofreu a influência de diferentes momentos políticos que culminaram em oscilações

em toda a sua abordagem histórica.

Para compreender a formação chilena, Jobet ocupou-se da discussão em torno do

caráter da colonização do país realizada pela Espanha e que delineou a estrutura política,

econômica e social chilena. Para o historiador, ao chegarem à América no século XVI,

Espanha e Portugal viviam uma transição para o sistema capitalista no âmbito econômico,

mas permaneciam com traços feudais nas relações políticas e sociais. O mais importante para

o presente trabalho é que Jobet realiza uma análise das questões do seu tempo buscando

estabelecer sua relação com a formação histórica nacional, realizada a partir da análise do

nexo colônia-nação.

Nesta dimensão, Jobet se aproximou das idéias de Mariátegui a respeito da

colonização peruana, no sentido de indicar a coexistência dos sistemas feudal e capitalista

naquela sociedade. Podemos afirmar que Jobet não foi capaz de transcender idéias que já se

mostravam questionáveis por outros intelectuais, como Caio Prado Jr e André Gunder Frank.

Comparativamente, é possível dizer que, evitando caracterizar o sistema vigente no Brasil

como um modo de produção específico, Caio Prado Jr indicou como aspecto fundamental da

colonização o peso dos fatores externos na formação da sociedade. Dessa forma, ele superou

teses em voga no período, ao não procurar um feudalismo local.

Em sua abordagem, Jobet também evitou prender-se a um modelo explicativo com o

intuito de demonstrar autonomia, como afirmou o próprio autor, e realizou uma miscelânea

conceitual ao conceber as relações sociais de caráter feudal e a produção para a Metrópole

como mercantil; utilizou, dessa forma, termos como “semifeudalismo” na caracterização do

9
CURY, Márcia Carolina de O. Entre o passado e o futuro: a análise da história chilena e o projeto
socialista de Julio César Jobet. Trabalho de Conclusão de Curso (História). Franca: UNESP, 2004.
97

sistema de exploração instaurado no Chile, e formulou teses superadas e debatidas no

momento mesmo de sua produção.

A interpretação histórica de tendência denominada conservadora, com a qual Jobet

empreende os primeiros debates, indica que a conquista e colonização da América tiveram a

motivação idealista de estender a civilização cristã. Historiadores como Diego Barros Arana,

Francisco A Encina, Alberto Edwards e Jose Toribio Medina são alguns dos principais nomes

da historiografia do final do século XIX citados por Jobet.

Além da defesa da colonização, predominava nas idéias desses autores a concepção

da superioridade branca. Para eles, o sangue espanhol teria se concentrado nas altas classes

sociais, o que justificava o combate à mestiçagem, encarada como a responsável pela origem

das classes populares e pelo “atraso na evolução” do povo chileno. A principal advertência do

historiador marxista se deu no sentido da ausência dos setores populares como sujeitos

históricos nessas investigações, de forma que a evolução e o desenvolvimento do país se

confundiram exclusivamente com a trajetória e os interesses das classes dominantes.

Outro tema bastante desenvolvido por Jobet é a consolidação do liberalismo no país,

que, segundo ele, expandia-se e consolidava-se em razão do desenvolvimento de uma

burguesia mineira e comercial vinculada às transformações econômicas que se iniciaram por

volta de 1860. O caráter dual que assumiu esse processo, que teve, de um lado, o ataque às

instituições conservadoras do país e, por outro, a aliança burguesa com a oligarquia local no

âmbito econômico, caracterizaram, na leitura de Jobet, a singularidade do liberalismo chileno.

O historiador concebeu esta primeira fase do liberalismo nacional como o

desenvolvimento de uma economia classista atrasada, feudal-capitalista, como expressão de

um “falso liberalismo”, à medida que foi importado das nações européias e era alheio à

realidade econômica e social do país. Assim, o novo sistema teria servido para fortalecer os

grupos que detinham a riqueza e para intensificar a exploração de uma classe sobre a outra.

Com a sua perspectiva totalizante da história, Jobet se dedicou a examinar a

consolidação da classe burguesa e o processo de sua afirmação na arena política. Pois, o

processo de estruturação econômica da burguesia “demo-liberal” teria constituído a base do


98

desenvolvimento correlativo da sua consolidação política. Assim, somente quando essa classe

se integrou como tal, independentemente, com base em recursos econômicos próprios e ao

apresentar-se a conjuntura favorável, surgiu com força para conquistar o poder político,

“indispensável para consagrar juridicamente sua hegemonia”.

Esta análise norteia uma das principais características do seu trabalho, e que

influenciaria as proposições políticas de Jobet voltadas ao caráter da revolução socialista e à

democracia chilena, na medida em que Jobet visualiza neste setor a classe inimiga dos

trabalhadores e um dos principais obstáculos para a revolução socialista, o que caracteriza a

concepção classista da sua proposta política.

Sua análise se pautou na idéia de que nas sociedades divididas em classes

antagônicas, a conquista do poder político se apresenta como objetivo das classes novas ou

em formação. Por essa razão, a ação da burguesia nacional buscou ocupar o governo e

implementar seu programa democrático liberal. O processo econômico que constituiria o

nascimento dessa burguesia foi marcado pelo desenvolvimento das ferrovias, maior

exportação de produtos agrícolas, aumento do comércio e, principalmente, pelo auge da

mineração, com destaque para a exploração do cobre. Para o autor, esse foi o momento de

transição da economia semifeudal para a capitalista, bem como o desenvolvimento da

burguesia e do movimento demo-liberal que esta representava.

Para o historiador, o Chile vivenciou um desenvolvimento significativo, porém em

desarmonia com seu verdadeiro caráter econômico e social, ou seja, sem uma conexão com os

“verdadeiros anseios e perspectivas nacionais”, na sua concepção, identificados sempre com

os anseios populares. O país passou a ser um vasto mercado de produtos manufaturados

estrangeiros e provedor de matérias-primas, especialmente minerais. Jobet visualizou a

manutenção dessa situação ao longo de um século por favorecer a determinados setores que

controlavam a economia e o Estado, mas que resultava negativa para o país no seu conjunto e

espoliadora para os trabalhadores.

Para Jobet, a forma assumida pelo liberalismo no Chile significou a manutenção da

economia colonial do país delimitada pela agricultura, denominada semifeudal, e pela


99

exploração do minério para exportação, baseada na proeminência de um mineral em

diferentes períodos: ouro na colônia, prata no segundo terço do século XIX (denominada

república conservadora), cobre até a Guerra do Pacífico (república liberal), salitre desde fins

do século XIX (república parlamentar e penetração do imperialismo inglês), cobre novamente

desde a ditadura de Carlos Ibáñez del Campo (domínio do imperialismo norte-americano).10

A introdução do liberalismo representou, portanto, a efetivação da dependência de

fatores externos e a exploração estrangeira e, ao mesmo tempo, o fortalecimento da burguesia

e da oligarquia nacional com o desenvolvimento da indústria extrativa, do comércio e a

manutenção da estrutura latifundiária. A abordagem de Jobet indicou que a formação de uma

burguesia forte aliada ao imperialismo impediu a formação de grandes capitais nacionais

necessários para o desenvolvimento industrial independente no país. O Estado deveria ser

capaz de administrar as riquezas nacionais no sentido de promover as transformações

estruturais necessárias para a “libertação do povo”.

A intervenção estatal deveria ser realizada por “verdadeiros estadistas ocupados da

questão nacional” para empreender uma ampla reforma agrária, grande industrialização, a

nacionalização das riquezas minerais, dos meios de transporte, de comunicação e de crédito.

A planificação da economia deveria ocorrer conjuntamente à reforma educacional, indicada

como requisito básico para o funcionamento de uma “democracia fecunda e disciplinada”.11

Na sua leitura, no momento de romper com o modo de produção semifeudal, o

liberalismo econômico e político deu um passo decisivo no progresso nacional. Mas a

formação de uma classe dirigente de domínio político e econômico trouxe consigo um perigo

para a autonomia nacional: o capital imperialista favorecido pela adesão daquela classe aos

princípios do liberalismo de não-intervenção. Essa questão teria se traduzido na incapacidade

da classe dirigente ao não utilizar a riqueza nacional para o desenvolvimento interno. A sua

hipótese apostava no papel decisivo do Estado na acumulação de capital e no gerenciamento

desse processo que, tanto poderia destinar-se ao desenvolvimento nacional, quanto aos

interesses de uma minoria, havendo prevalecido, na sua concepção, esse último.

10
JOBET, op. cit., 1951, p. 52.
11
Ibidem, p. 77.
100

Não obstante a oposição à idéia da revolução por etapas, Jobet não fugiu à regra da

concepção que predominava na esquerda latino-americana da necessidade de superação do

feudalismo local. Além disso, a visão de um Estado técnico e gerenciador a favor do

progresso e desenvolvimento nacional revela mais uma perspectiva que Jobet compartilhou

com os intelectuais marxistas do seu tempo, além de não se diferenciar da perspectiva

presente nas proposições do Partido Radical e da Frente Popular.

Por outro lado, assim como Mariátegui e Caio Prado Jr., o historiador chileno

afirmava buscar compreender sua realidade concreta para elaborar projetos de ação

específicos. Da mesma maneira que Ricupero avaliou em relação ao pensamento daqueles

intelectuais, nota-se no pensamento de Jobet que, ao indicar o passado colonial como

obstáculo ao desenvolvimento da nação, o socialista observou que as revoluções burguesas

não seguiram a “via clássica” de ruptura; ao mesmo tempo em que não proporcionaram um

deslocamento das classes dominantes.12

A despeito das mudanças ocorridas na sua teoria em relação ao papel atribuído à

burguesia e ao capital, como veremos adiante, o princípio organizativo e diretivo dos partidos

na política apresentou-se como uma constante. No que concerne ao gerenciamento do Estado,

para Jobet, os partidos políticos do período não teriam contribuído para a superação do atraso

do país devido à falta de uma concepção técnica e de um sentido orgânico e construtivo por

parte desses grupos que manejaram as instituições.

Estas abordagens constituíram seu trabalho historiográfico que, em oposição à

denominada “história oficial”, adotou uma perspectiva totalizante de análise, de maneira a

abarcar setores antes desconsiderados e tecer críticas à estrutura econômica nacional. Jobet

visava, assim, elaborar uma nova visão a respeito da sociedade chilena, resultante dos

conflitos entre as classes e do papel desses grupos nos diferentes aspectos do devir histórico.

A sua proposta visava expor a contradição notada entre “o que era escrito e exaltado

pela historiografia”, que caracterizava a história chilena como uma evolução, e a “condição

em que se encontrava o país”; superar uma historiografia limitada à crônica política, que

12
RICUPERO, op. cit., p. 67-69.
101

desconhecia a subordinação do país e a exploração da classe trabalhadora, entendendo que

esta não havia tido seus próprios historiadores. E, em determinada fase do seu pensamento,

afirmou orientar seu enfoque da história sob a ótica do movimento operário.13

Sujeito histórico engajado, Jobet foi influenciado pelos diferentes processos políticos

e debates intelectuais ao longo da sua trajetória. Na constante busca de vias para a superação

do atraso e da dependência, o historiador indicou inicialmente, a alternativa de um Estado

forte, gerenciador, que utilizasse o caráter liberal das instituições políticas do país. Um Estado

técnico, auxiliado pela burguesia liberal, deveria superar a fase semifeudal do Chile e garantir

o bem-estar à população. Nessa etapa, conforme indicou Zemelman, houve uma profunda

influência de autores liberais do pensamento social chileno, adeptos de Augusto Comte e

outros nomes do positivismo e liberalismo europeus, além da literatura enciclopedista,

socialista utópica e jauresiana francesa.

Como reflexo do desenvolvimento do marxismo na América Latina e no Chile, a

radicalização do seu discurso marcou uma grande mudança de enfoque, que passou a ser

orientada pela ótica do desenvolvimento do movimento dos trabalhadores e das “classes

médias radicalizadas”. Nesse período de fortalecimento do debate teórico marxista e da luta

política na esquerda, o caráter do liberalismo e, principalmente, o papel da burguesia,

passaram a ser questionados no pensamento de Jobet, momento no qual passou a predominar

a concepção de enfrentamento de classes.

Nesse contexto, forjou-se a crítica mais significativa no seu trabalho e que foi

recorrente na historiografia a partir dos anos cinqüenta, referente ao regime político vigente

no Chile. O sistema democrático chileno, caracterizado como limitado pelo historiador, foi

apontado como o principal responsável pelo acentuado antagonismo de classe. Tal

entendimento influenciou profundamente a sua atuação e ocasionou profundos embates

teóricos no Partido Socialista. Sob essa perspectiva, Jobet apontou como uma das causas do

funcionamento de uma democracia formalista e burocrática a falta de uma consciência

13
ZEMELMAN, Hugo. Prólogo. In. JOBET, op. cit., 1982, p. XIV.
102

política de amplos setores do povo e de uma verdadeira organização da vontade popular por

parte dos grupos políticos.

Esta crítica está presente na sua obra de 1951, na qual o autor expõe ainda uma

variada temática que abarca a origem do movimento operário, o desenvolvimento do

pensamento social no Chile, a presença do imperialismo no país e a história do Partido

Socialista. A problemática central desta análise é a preocupação com a origem do

subdesenvolvimento e a formação daquela sociedade. A reação do Congresso chileno à sua

indicação como embaixador do Chile na Iugoslávia, em 1953, ilustra a controvérsia em torno

da figura de Jobet. A oposição se deu devido à publicação do seu ensaio no período, que foi

declarado “maldito e antichileno” pelos parlamentares, principalmente, por tecer críticas à

democracia do país, identificada como um dos seus principais valores.

Inúmeros críticos chilenos e estrangeiros dedicaram artigos em jornais, revistas e

anais das universidades para discutir os trabalhos de Jobet de maneira a destacar os eixos que

permearam a sua interpretação histórica; debate que ficou evidentemente marcado pelas

ressalvas referentes à vinculação socialista de Jobet. Dentre as principais avaliações da

importância e do papel de Jobet, as atribuições que mais se destacam são o seu pioneirismo na

análise da história nacional a partir de uma abordagem marxista, que também lhe rendeu

muitas críticas, mas também o reconhecimento por abordar temas até então negligenciados

pela historiografia do país.

No entanto, mais do que um ensaísta que analisou a história nacional, denunciando

injustiças sociais e que criticou a presença imperialista no Chile, Jobet é sempre identificado

como um dos principais nomes do socialismo, como um intelectual responsável pela

divulgação dos princípios do socialismo científico, como um autor que buscou relacionar a

história da esquerda contemporânea com os primeiros pensadores e movimentos nacionais, e

como o responsável pelo resgate e exaltação de uma tradição intelectual de esquerda.14

14
Entre os artigos publicados destacam-se: ROBNOVITCH, Rosa. Un ensaysta quimicamente puro. La Nación,
Santiago, 12 sep. 1971, Suplemento, p. 15; GARCÍA, Pablo. Una Nueva Obra de Julio César Jobet. La Nación,
Santiago, 12 nov. 1973, Suplemento, p. 3; GUERRERO, Victor P. La producción ensaystica de Julio César
Jobet. Occidente, Santiago, n. 279, nov. 1978, p. 39-42; DURÁN, Germán S. História: Julio César Jobet y el
Ensayo Crítico del desarrollo económico social. Occidente, Santiago, n. 350, ene./feb./mar. 1994, p. 48-50.
103

Além de dirigente do Partido Socialista, desde a sua fundação, Jobet se empenhou na

difusão de um pensamento revolucionário e dos seus princípios, consagrando-se como uma

referência intelectual e como historiador da organização. Suas postulações se orientaram de

acordo com a idéia de que, na América Latina, a luta de classes assumiu condições distintas

das nações altamente industrializadas, definindo, dessa forma, um papel diferente para suas

classes sociais, em especial, à burguesia local, que, na sua concepção, não teria um papel

revolucionário.

Como uma maneira de destacar a originalidade do PS e de diferenciá-lo do Partido

Comunista, com o qual travou debates e disputas ao longo da sua trajetória, Jobet procurou

enfatizar a independência do seu partido frente às Internacionais, às quais submeteu a severas

críticas. Na sua leitura, a II Internacional limitou-se ao reformismo e à colaboração de classes;

seu rápido desenvolvimento e a ausência de uma linha revolucionária teriam distorcido as

finalidades assinaladas por seus fundadores. Reproduzindo muitas das críticas da III

Internacional, Jobet afirmava:


Embriagada por triunfos eleitorais participou do poder em seus governos de
concentração nacional, em companhia de inimigos da classe trabalhadora,
garantindo, desse modo, a existência do regime burguês, e em circunstâncias
decisivas para a sorte do capitalismo, demonstrou-se inapta para dirigir os
movimentos proletários [...]15[tradução nossa]

É interessante notar que a declarada oposição de Jobet ao comunismo soviético, num

contexto de forte difusão de uma postura anticomunista, fez muitos críticos não associarem a

figura do intelectual ao novo posicionamento mais radical assumido pela esquerda, e

relacionarem a sua imagem à postura mais flexível que marcou a trajetória inicial do Partido

Socialista, caracterizando-o como representante do socialismo democrático; crítica que

demonstra até certo desconhecimento dos seus últimos trabalhos panfletários e a apreensão

somente dos seus discursos expostos nas suas primeiras publicações, bem como das

autodefinições do autor, que se dizia um marxista não dogmático.16

Conforme indicamos, outro tema bastante discutido por Jobet foi o das organizações

e movimentos populares, no intuito de identificar as expressões de classe no quadro das lutas

15
JOBET, op. cit., 1987, p. 24.
16
GUERRERO, op. cit., p. 42, GARCÍA, op. cit., p. 3.
104

sociais. Em diversos trabalhos, o historiador abordou a formação da classe operária chilena

nas suas primeiras agremiações e organizações políticas. Suas análises relacionaram as lutas

políticas do seu tempo com as experiências do passado. Nesse sentido, identificou as

tendências socialistas do país como uma continuação legítima das tentativas organizativas, de

aspirações democráticas e de lutas sociais dos trabalhadores iniciadas no século XIX. Sob

esse aspecto, sua obra chegou a ser identificada como um “catalisador na criação de uma nova

identidade para o povo chileno”.17

Para Jobet, as experiências adquiridas pelos trabalhadores nestas lutas os conduziram

à iniciativa de buscar a sua unidade no âmbito sindical e, posteriormente, partidário. O

movimento operário nacional estaria, em sua primeira etapa, “débil e com escassa consciência

de classe”.18 Sob essa perspectiva, Jobet diferenciou o movimento dos trabalhadores numa

escala evolucionista, na qual a passagem para um estado revolucionário da luta estaria na

fusão do movimento com o pensamento socialista.

Nesse longo processo de “formação da consciência revolucionária” do proletariado

chileno, Jobet observou, com especial interesse, o trabalho ideológico dos pensadores

políticos liberais e socialistas dos dois últimos séculos. Entre eles, destacou como a principal

ponte entre as lutas do passado e do seu tempo a figura de Luís Emílio Recabarren.

É importante observar que a mudança de enfoque para a ótica do movimento dos

trabalhadores, que mencionamos anteriormente, destacou-se no momento em que o

historiador concebeu a burguesia como aliada do imperialismo e da aristocracia nacional e

incapaz de realizar as transformações do país. A missão que era anteriormente destinada à

burguesia gerenciadora do Estado foi transferida ao proletariado. Tendências significativas da

esquerda passaram a entender esse curso do desenvolvimento capitalista como dependente e a

questionar a suposta potencialidade progressista, democrática e antiimperialista da burguesia

nacional. O principal grupo a defender essa idéia pertencia ao Partido Socialista.

17
JIMENEZ, Michael F. apud. JOBET, Julio César. Despedida Melancólica. Occidente, Santiago, n.263,
oct./nov. 1975, p. 60.
18
JOBET, op. cit., 1987, p. 54-55.
105

O questionamento das positividades do liberalismo para o progresso nacional

também marcou essa nova fase do seu pensamento. Na sua visão, a democracia, ainda que

tenha permitido algumas mudanças no quadro social do país, não teria passado de uma

expressão do capitalismo em uma fase do seu desenvolvimento, o que não poderia garantir a

emancipação dos trabalhadores. Sob o regime capitalista, a democracia havia constituído

somente uma etapa na marcha da sua libertação.


Sem dúvida, a democracia, apesar de suas imperfeições e de suas limitações em
benefício da classe dominante, outorgou certos avanços às massas trabalhadoras,
permitindo-lhes conquistar direitos políticos, algumas vantagens econômicas e,
sobretudo, desenvolver suas organizações de luta [...] e nada mais. Somente um
regime socialista poderia acabar com todas as desigualdades [...]19[tradução nossa]

Caberia, portanto, ao proletariado guiado pela teoria socialista dos partidos, o papel

de agentes revolucionários. Nesse quadro, Jobet incluiu a chamada pequena burguesia que, na

sua visão, também era explorada e prejudicada pelas ações do Estado e do imperialismo.

O papel de liderança do movimento popular era identificado no grupo do qual era

dirigente. Para ele, a formação do PS, em 1933, significou a cristalização do movimento

revolucionário e o nascimento da verdadeira representação de classe; a organização

representava o instrumento genuíno da ação revolucionária das massas contra o regime

burguês.
Sua formação [do Partido Socialista] significava a soldadura da contradição
existente [...] entre o incremento da classe trabalhadora e sua consciência de classe, e
a profunda crise de direção e organização que sofria o movimento operário
chileno.20[tradução nossa]

Jobet ocupou-se obstinadamente da organização e posicionamento partidários.

Considerando o papel de vanguarda a ser assumido pelo PS, a coesão interna tornava-se uma

questão crucial. Para ele, a composição heterogênea e a “mentalidade pragmática” dos

componentes do partido teriam gerado as “perigosas contradições” que marcaram a história da

organização socialista chilena, o que nos indica a sua posição antialiancista que marcaria a sua

atuação até os anos setenta. Na sua concepção era necessário formar-se uma organização

sólida e disciplinada de maneira a estender um sistemático trabalho de doutrina para fundir os

19
JOBET, op. cit., 1987, p. 20.
20
JOBET, op. cit., 1951, p. 197.
106

componentes do partido em uma unidade ideológica e política através de uma assimilação

correta dos princípios teóricos e programáticos do socialismo.

Além das novas experiências revolucionárias que exerciam influência sobre os

socialistas, dos fracassos eleitorais, da crise interna que abalou o socialismo no início da

década de 1950, a sensação de crise e da necessidade de mudança que se generalizavam, as

inflexões ocorridas no pensamento socialista estão relacionadas com as modificações

experimentadas pelas análises intelectuais dos anos sessenta. Estas novas interpretações

buscavam mostrar os limites do desenvolvimento capitalista em países com uma

industrialização tardia e delimitada pela dinâmica do sistema capitalista mundial.

A partir da difusão destas concepções, expandiu-se a idéia de que a resolução da

crise da sociedade chilena requeria uma rápida transformação socialista. Estas análises,

revestidas de legitimidade científica, careciam de uma perspectiva na qual os dados estruturais

sobre os limites do desenvolvimento capitalista se vinculassem com uma análise da dinâmica

das classes sociais, do universo ideológico cultural e da natureza do Estado, sumariamente

descrito como Estado burguês, e dos atores político-sociais.21

Outro elemento que podemos identificar nestas colocações de Jobet é a forte

influência exercida pela teoria organizativa leninista, a partir da qual Jobet concebeu o partido

socialista como um instrumento de educação política dos trabalhadores e, a exemplo da

proposta de Lênin, de superação das “lutas espontâneas e econômicas” dos trabalhadores.

Para Jobet:
[...] a vanguarda do processo revolucionário chileno deve estar constituída pelos
partidos da classe operária como força motriz da luta social. É responsabilidade
destes partidos reencontrar-se com as lutas das massas, ajudar a superar o caráter
economicista que, todavia predomina em muitos setores e orientá-la em seu sentido
político revolucionário.22[tradução nossa]

Nas obras analisadas, podemos observar claramente sua visão teleológica acerca do

movimento operário, na qual o historiador utiliza como elemento definidor da evolução das

lutas dos trabalhadores a vinculação deste movimento à luta político-partidária. A classe

operária teria, primeiramente, uma escassa consciência de classe e seria imatura; junto ao

21
GARRETÓN; MOULIAN, op. cit., 1983, p. 143.
22
JOBET, op. cit., 1987, p. 351.
107

campesinato, estariam alheios às questões políticas e compunham a “forma embrionária da

luta consciente”.

Jobet afirmou que a política sindical do PS deu um novo sentido às organizações, de

maneira a criar um clima de unidade e superar a “greve pela greve”. As formulações leninistas

também estão presentes na concepção de que a consciência política de classe só pode ser

levada ao operário do exterior da luta econômica e da esfera das relações entre operários e

patrões.23 Nesse sentido, conferiu ao PS o papel de aglutinador e esclarecedor da luta

operária:
[...] sem dúvida, todo partido de massas, com consciência de sua responsabilidade
histórica no desenvolvimento do movimento operário, está obrigado a manter
estreitas relações com os sindicatos e a exercer algumas funções específicas em seu
seio; e o partido de massas pode ser o condutor da ação sindical [...]24[tradução
nossa]

A partir destas observações, podemos compreender melhor o pensamento de Jobet,

de implementação do Estado dos Trabalhadores, articulado pelo nexo partido/ sindicatos/

movimento popular, no qual a postulação marxista desempenharia o papel central de

aglutinadora desses elementos. A teoria seria, portanto, a ferramenta do partido na condução

da população, designada como massas, rumo à revolução socialista.

O seu trabalho teórico pode ser comparado à controvérsia do seu projeto político.

Suas análises da história nacional superaram proposições comuns ao seu contexto, referentes à

abordagem de cunho mais conservador da historiografia chilena. No entanto, seu projeto foi

limitado ao pensamento de sua época e ambiente, pautado numa perspectiva presa a teses

esquemáticas de análise da constituição e das contradições de uma sociedade, sem conseguir

apreender o que havia de essencial das particularidades da sociedade chilena, que permitiu um

processo de modernização com democracia naquele país.

A atuação e o pensamento de Jobet se confundem com a trajetória e os ideais do PS e

da esquerda chilena, até 1973, que mesclaram diversos elementos na sua cultura política,

combinando subsídios da cultura operária com aspectos das concepções das classes médias, e

apresentando momentos de alternância na predominância dos pressupostos do partido. A sua

23
JOBET, op. cit., 1987, p. 62.
24
Ibidem, p. 47.
108

influência no pensamento político chileno, através de obras de críticas àquela estrutura

econômica e social, engajamento e proposta de transformação fez de Jobet um protagonista da

história política do país, principalmente, como porta-voz de uma cultura política de ruptura.

Entendendo suas atividades políticas e teóricas de maneira uniforme, trabalhou temas

recorrentes na esquerda latino-americana, como atraso, imperialismo e dominação. Assim,

articulava as discussões das questões do seu tempo com o debate histórico, no intuito de

apontar alternativas para a transformação da sociedade. Suas concepções eram baseadas em

um programa revolucionário e, ao mesmo tempo, buscava assentar suas idéias no modelo do

socialismo científico para interpretar a realidade chilena, cuja complexidade Jobet não foi

capaz de apreender.

Jobet construiu a história chilena de maneira a indicar as continuidades nas formas de

dominação e a necessidade de “despertar as massas” para o seu papel histórico de libertação.

A proposta de criação do Estado dos Trabalhadores, portanto, requeria o papel de aglutinador,

identificado no Partido Socialista. Essa interpretação de Jobet acerca da história do

movimento operário atribui aos trabalhadores não atrelados ao movimento partidário uma

falta de consciência, o que denota a desvalorização de diversas expressões de luta das

camadas populares chilenas, e também o intuito de autojustificação25, já que a tarefa de

imprimir a consciência nos trabalhadores se destinava ao partido e aos seus intelectuais.

Ao se contrapor à historiografia denominada oficial, Jobet desenvolveu suas

formulações históricas com a função ideológica de legitimar o seu projeto socialista e,

principalmente, o papel do seu grupo político. Para manter sua pretensão hegemônica, Jobet

construiu uma outra história “oficial”, a da legitimação da vanguarda partidária. O que

podemos observar nas análises e propostas dos intelectuais socialistas, como Jobet, é a

constante recorrência ao patrimônio doutrinário do campo teórico-ideológico socialista.

A valorização desse patrimônio socialista no Chile contribuiu para a emergência do

debate e do questionamento acerca da situação histórica nacional, bem como para a

reivindicação de transformações sociais e estruturais, e para a mobilização de um projeto

25
HAUPT, Georges. Por que a história do movimento operário? Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5,
n.10, p. 208-231, mar./ago. 1985.
109

político. Mas, ao mesmo tempo, obscureceu a compreensão das características históricas

particulares daquele país, afetando, consequentemente, o caráter do projeto de transformação

que deveria se apresentar como algo novo para a sociedade chilena.

Desenvolvendo análises em torno do movimento operário, questão agrária,

dependência nacional, imperialismo e desenvolvimento capitalista no Chile, Jobet atuou no

sentido de construir uma nova ótica de reflexão da história que desse corpo teórico ao Partido

Socialista e que legitimasse uma nova proposta política para as questões nacionais.

Alternativa que era identificada no partido no qual militou e contribuiu ativamente para a

formulação das concepções revolucionárias, marcando a trajetória deste intelectual que

desenvolveu sua atividade com uma fidelidade partidária.

3.2 Julio César Jobet e o socialismo: a construção de uma identidade partidária

Conforme destacamos, a partir de 1958, a esquerda acentuou o seu discurso classista,

bem como a sua perspectiva anti-reformista, com idéias pautadas nas concepções do

marxismo difundidas pelos intelectuais que a conformavam; enclausurou-se em um tipo de

discurso que opunha reforma e revolução, além da idéia da necessidade de pensar o governo

popular como uma preparação da ruptura revolucionária. Mesmo assim, de acordo com

Moulian, a esquerda foi capaz de exercer uma forte influência político-cultural na sociedade

chilena. Essa eficácia ideológica não proviria do marxismo como sistema teórico, mas,

segundo o autor, da capacidade simbolizadora que adquiriu o discurso obrerista e anti-

reformista dentro do setor mais radicalizado da esfera popular. Nas palavras de Moulian:
Dentro de uma sociedade com forte heterogeneidade estrutural e bastante dividida,
este discurso operava como princípio de identidade, fixava os limites que
singularizavam e diferenciavam a uma parte dos setores populares. O discurso
marxista em uso serviu para separar o popular-revolucionário-operário do popular-
reformista-pequeno-burguês, para delimitar e, por isso, para cristalizar a existência
de cada universo [...] A influência cultural da esquerda repousa nesta capacidade de
criar identidade. Sua força expansiva residia na capacidade de gerar idéias-força e
símbolos que o colocavam em relação com certos núcleos básicos da cultura popular
radicalizada.26 [tradução nossa]

26
MOULIAN, op. cit., 1983, p. 97.
110

Essa participação dos partidos de esquerda nas lutas populares, a associação da

emancipação com a proposta do socialismo, a identificação com as suas reivindicações se

expressaram também na produção artística, criando uma épica popular que favoreceu essa

capacidade de apropriação, criando-se uma memória coletiva que associava as lutas populares

com a esquerda. No âmbito da literatura, entre os anos trinta e cinqüenta também se observa

um desenvolvimento criativo e a emergência de posturas com orientações diversas,

claramente imersos no clima político e ideológico do período.

Um exemplo significativo nota-se na figura do escritor Pablo Neruda, que, impelido

pelos eventos políticos de sua época, como a Guerra Civil Espanhola e a sua incorporação ao

Partido Comunista, distanciou-se dos temas mais subjetivos da poesia e aderiu às questões da

poesia militante, cujos versos se propunham “a expressar a causa do povo e ativar as forças

contrárias ao avanço do imperialismo”, temática cuja expressão mais forte se encontra na obra

Canto General, publicada em 1950.

Já na década de 1960, o movimento cultural denominado Nova Canção Chilena

também teve destaque com a sua inserção no movimento internacional de canções de protesto.

Nas obras dos criadores da Nova Canção se observa uma inclinação a resgatar e reivindicar

acontecimentos e personagens históricos vitais para a identidade coletiva da esquerda, e um

interesse por musicalizar poemas com ressonância militante de autores como Neruda e

Bertold Brecht.

De acordo com Sofia e Consuelo, se a Nova Canção funda suas raízes musicais no

folclore, suas composições se caracterizam por um marcado compromisso político com o

destino das classes populares, com a sua condição presente e com a sua projeção futura,

conforme o projeto da esquerda, cujas campanhas e manifestações animaram os cantores e

conjuntos musicais do movimento, especialmente na campanha de 1970.27

Ao final dos anos sessenta, e à medida que o país entrava em um processo de

radicalização das forças políticas, de aceleração das demandas sociais e políticas e exigências

de maior participação, viveu-se este momento intenso no mundo da cultura popular e da

27
CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 232.
111

comunicação de massas. Desde antes da eleição de 1970, existiam diários de esquerda, em

tom de humor, como Clarín e Puro Chile. Por outro lado, com a vitória da Unidade Popular

surgiram, na direita, meios que também recorreram a este tom periodístico, como o diário

Tribuna e o semanal Sepa; além das manifestações artísticas universitárias na música, na

dança e no teatro.

Outro dado importante do período diz respeito ao forte empreendimento editorial,

cujo maior exemplo representa a editorial estatal Quimantú, estabelecida pelo governo da

Unidade Popular. O projeto da Quimantú visava a difusão da leitura através da publicação de

textos clássicos em edições mais econômicas vendidas em quiosques. Aspirava também criar

“consciência crítica” na população e dar formação política aos chilenos, em especial, na

doutrina marxista. Um dos trabalhos publicados nesta linha de formação política foi o de

Jobet, editado em 1972, História do Partido Socialista do Chile.

A editora lançou ainda coleções como Nosotros los chilenos, que buscava destacar o

papel protagonista que o governo da UP atribuía aos setores populares, apresentando textos

com ilustrações que remetiam ao mundo do trabalho, aos costumes e aos episódios históricos

do país; criou-se revistas voltadas para o entretenimento e formação, como a revista Paloma,

que se dirigia às mulheres, mas também aos homens para difundir a idéia de um novo

conceito de família; revistas de discussão intelectual e temas culturais, como La Quinta de la

Rueda.28

Desde a década de 1950, vinha ocorrendo no mundo intelectual e partidário essa

ampla discussão acerca dos problemas que afetavam aos países subdesenvolvidos; debate

incentivado pela frustração que provocava a percepção dos limites a que estava submetido o

projeto industrializador aplicado posteriormente à Grande Depressão dos anos trinta. A

produção política de Jobet se insere no amplo debate que se desenhou com a chegada dos

anos sessenta entre diferentes bandeiras de luta que colocaram no centro da discussão a

necessidade da transformação e da integração de setores sociais até então marginalizados e

que mobilizou diferentes setores da produção cultural e intelectual do país.

28
CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 234.
112

Conforme indicamos, por um lado, apresentou-se o influxo exercido pelas idéias da

CEPAL, unido ao desencanto gerado pelo fracasso das políticas livre-cambistas

impulsionadas pelos governos da década de 1950, que originou novos projetos de cunho

desenvolvimentista, representado na proposta da Democracia Cristã. A idéia apresentada pelo

economista chileno Jorge Ahumada, de forte influência sobre a proposta centrista, era acerca

da necessidade de uma revolução das estruturas tradicionais impulsionadas “de cima”,

buscando subverter as estruturas tradicionais que vinham operando historicamente, e que

eram apontadas como as causas da “crise integral”. Ele destacava, dessa maneira, a existência

de vários desequilíbrios estruturais entre os distintos setores da economia que afetariam a

todos os aspectos da vida social.29

Por outro lado, apresentou-se a proposta de uma transformação global presente no

projeto socialista, de acentuado caráter anti-reformista, pautado numa concepção restrita da

revolução, somente como um processo insurrecional que substituiria o “Estado burguês” pelo

poder popular exercido pela classe operária. Como podemos notar, a disputa entre os dois

principais projetos do período se acirrou na medida em que a proposta democrata-cristã

afetava diretamente as posições da esquerda, que se apresentava naquele momento como o

movimento mais identificado com as posturas de mudança radical e transformação de cunho

popular. Enquanto que a DC se apresentava com uma proposta progressista, também voltada

para os setores marginalizados, com um tom rupturista.

Esta proposta da Democracia Cristã se inseria numa teorização do desenvolvimento

social que rechaçava a luta de classes como princípio explicativo da história. Dessa maneira, o

debate se acentuava especialmente sob esse aspecto, já que contra a leitura do marxismo

apresentada pelos socialistas, a DC apresentava como referencial a “teoria da

marginalização”, centrando a sua política na temática da integração social; esta criticada pela

esquerda como um reformismo que em nada alteraria as relações de produção e de exploração

do capitalismo.30

29
CORREA; FIGUEROA, op. cit., p. 239.
30
AGGIO, op. cit., 2002, p. 100.
113

A trajetória de Jobet no socialismo chileno é expressão direta desse debate e do

posicionamento assumido pelo socialismo neste período, marcado pelo forte anti-reformismo

e pela postura classista. Esta relação de Jobet com o socialismo chileno é uma relação

recorrente na política chilena entre a produção intelectual e uma cultura política determinada.

Relação que diz respeito, portanto, à interseção entre a produção teórica e os comportamentos

e acontecimentos concretos, à produção de sentidos para uma coletividade, assim como à

canalização e reprodução dos ideais e reivindicações de uma sociedade ou grupo determinado

para a constituição de uma cultura política.

Duas dimensões analíticas são essenciais no socialismo chileno que podemos

apreender nas proposições de Jobet e dos dirigentes vinculados a ele. São elas as dimensões

do socialismo como necessidade histórica e como revolução. A concepção do socialismo

como necessidade se fortaleceu especialmente após a Revolução Cubana, impondo-se a idéia

de que o socialismo constituía a única alternativa possível para a crise histórica do

desenvolvimento chileno. Esta concepção se mesclava com a idéia de revolução, já que

através dela, o necessário se tornava possível. Essa forma de projetar o socialismo recorria a

uma tradição para a qual a transformação da sociedade se coroava com a revolução estatal.

Nas palavras de Moulian:


Como existia esta contradição entre o necessário e o possível não era raro que ao
intensificar-se a crise social se buscasse resolver mediante o recurso lírico: o
otimismo, a esperança no triunfo, o avançar sin transar. A linguagem se
esquerdizava quando a realidade se degradava. [tradução nossa] [grifos nossos]31

Estas perspectivas do socialismo, como necessidade e como revolução, podem ser

apontadas como o principal eixo da proposta socialista de Jobet e dos dirigentes próximos a

ele, principalmente, Carlos Altamirano, secretário geral do PS durante o governo da Unidade

Popular. Jobet e Altamirano representavam a proposta que projetava a implantação do Estado

dos trabalhadores num “processo ininterrupto de confrontação”. Tese desenvolvida e

defendida em grande parte da sua trajetória no intuito de construir uma linha programática

dentro do seu grupo e que exerceria grande influência no choque com o conteúdo democrático

da proposta de Allende, em 1970.

31
MOULIAN, op. cit., 1983, p. 171.
114

No primeiro processo eleitoral disputado após a unificação socialista, identificado

também como o início desta fase classista do socialismo, Jobet, como representante do

Comitê do PS de Santiago, teve importante papel na articulação da aliança da esquerda, a

Frente de Ação Popular. Jobet e Raul Ampuero orientaram a introdução da tese no programa

do partido, que estava baseada na concepção de que a tarefa da sua geração consistia em

romper com as experiências pautadas nos compromissos de classe, e buscar a construção de

um governo popular. Em suas próprias palavras, não se tratava de realizar a “última etapa das

transformações burguesas”, senão em dar o primeiro passo na revolução socialista.32

Não obstante a sua oposição à aliança com os comunistas, declarada na sua

participação no Congresso pela Liberdade da Cultura, Jobet representou a postura do partido

nas demais publicações oficiais, defendendo a união dos partidos representantes da classe

trabalhadora como um importante instrumento de luta na construção do governo popular, e

afirmando que as divergências ideológicas dos dois partidos seriam superadas. Dessa forma, a

sua postura de historiador e teórico oficial do partido fica evidente, na medida em que o

intelectual suprimiu posturas mais pessoais para defender a tese do partido e se mostrar como

um porta-voz da política popular.

As declarações de Jobet provocaram reações do Partido Comunista através da sua

imprensa. O que chama a atenção neste episódio é que na reunião do Congresso da Unidade

Socialista, em Santiago, Jobet alcançou a votação necessária para ocupar um posto no Comitê

Central; aprovou-se, também uma resolução segundo a qual se ditava a incompatibilidade

entre a atividade de dirigente do PS e a participação nas tarefas do Congresso pela Liberdade

da Cultura, entendida, na época, como uma represália ao posicionamento assumido por Jobet,

de crítica à união com os comunistas. Dessa forma, Jobet acatou às ordens do partido e

renunciou a suas atividades no Congresso cultural.

O que podemos verificar é que a sua atuação se deu diretamente na formação e

condução da FRAP, que era concebida “como uma tática de classes e revolucionária,

orientada a separar de maneira categórica a burguesia dos setores explorados”. Sem

32
JOBET, op. cit, 1987, p. 240.
115

questionar o caráter desta transformação no quadro institucional e revelando mais uma vez a

concepção instrumental acerca da democracia vigente no país, Jobet afirmava:


Um caminho novo supõe a mudança do sistema capitalista democrático burguês por
outro de orientação socialista, resultado da direção do governo pelas classes
trabalhadoras. O instrumento para levá-lo a cabo é uma nova organização de forças
políticas e sociais não comprometidas com o regime dominante.33 [tradução nossa]

Para o dirigente, o movimento que esteve muito próximo de alcançar a vitória, em

1958, sofreu um grande desgaste devido à debilidade dos partidos que a compunha e,

principalmente, pelas fraudes eleitorais. Mas, ainda que a coalizão tenha se fragilizado, a

experiência teria garantido uma maior coesão dos grupos socialistas até a eleição de Salvador

Allende pela Unidade Popular, em 1970.

Estas afirmações do historiador, após a derrota da FRAP, indicam os efeitos da

Revolução Cubana (1959) sobre parte da esquerda chilena. O paradigma insurrecional, que

não se apresentava como alternativa concreta até a formação da aliança, ganhou força e

assumiu posição importante nas discussões dos socialistas que combinavam formas de luta

com a necessidade de transformar rapidamente o governo popular em revolução socialista.34

Jobet e os dirigentes próximos a ele entendiam que a postura a ser adotada deveria

ser de oposição ao modelo da Frente Popular, para adotar uma “nova política revolucionária”,

e que esse caminho se opunha radicalmente à tese de que a “fase democrático-burguesa”

constituía uma etapa necessária. As orientações presentes nos programas e declarações

socialistas, a partir da década de 1950, principalmente a partir da formação da FRAP, são

baseadas nas concepções difundidas por seus intelectuais, como Jobet, Waiss e Chelén, que

passaram a adquirir cada vez mais importância nos debates internos à medida que o partido

necessitava fundamentar cientificamente as suas teses.

Exemplo dessa importância adquirida por seus intelectuais é a abundante publicação

dos seus textos, especialmente na Revista Arauco e no periódico Occidente. A revista mensal

Arauco foi dirigida na prática por Jobet, que, segundo Sarget, sofreu permanentemente com a

falta de colaboradores regulares. O intelectual socialista confiou à autora ter freqüentemente

33
JOBET, op. cit, 1987, p. 240-241.
34
MOULIAN, op. cit., 1991, p. 69.
116

redigido sozinho números inteiros da revista, atribuindo assinaturas variadas a seus próprios

artigos.35

Com esse amplo espaço ocupado pelos intelectuais socialistas, a cobrança pela

adoção de uma postura ruptural pelos partidos da esquerda passou a ser o eixo central destas

publicações. Dentre estes dirigentes, destaca-se Jobet, para quem o processo revolucionário de

Cuba representou uma nova dimensão na luta de classes da América Latina ao demonstrar a

“impotência da burguesia como força progressiva e revolucionária, bem como a validade da

violência revolucionária para alcançar o poder, ao legar a tática específica da guerrilha”.36 A

partir de então, passou a ser absolutamente rechaçada a aplicação da política de “conciliação

de classes”, como a vivenciada na Frente Popular. Não por acaso, Jobet é apontado como o

mais documentado crítico da Frente Popular.37

O radicalismo crescente no seio da esquerda chilena após a Revolução Cubana

acirrou o debate político e contribuiu, posteriormente, para uma incompreensão em relação ao

conteúdo politicamente democrático do projeto da Unidade Popular. Ainda que Jobet tenha

reconhecido o significado da vitória de Allende como um novo ciclo na história social e

política do Chile, a “via pacífica”, conforme sua denominação, colocava-se novamente como

o principal obstáculo à libertação nacional.

Na sua concepção, a “via eleitoral no quadro democrático burguês” não excluiria o

problema constante para atingir o socialismo que se tratava de substituir o Estado capitalista,

derrubar a burguesia e suas instituições repressivas. Entendendo que o Estado representativo

moderno significava uma autoridade política exclusiva da burguesia para gerenciar seus

assuntos e interesses, Jobet estabelecia que as contradições e a exploração do sistema seriam

abolidas somente por meio da revolução:


A necessidade da classe trabalhadora de conquistar seu bem-estar econômico, e o
anseio da classe detentora em conservar seus privilégios, opondo resistência à
democratização da riqueza determina a luta entre essas duas classes. A classe
capitalista está representada pelo Estado atual, que é um organismo de opressão de
uma classe sobre a outra. Eliminadas as classes, deve desaparecer o caráter opressor
do Estado, limitando-se este a guiar, harmonizar a proteger as atividades da
sociedade [...] O socialismo só poderá ser realizado por meios revolucionários e as

35
SARGET, op. cit., p. 327.
36
JOBET, op. cit.,1987, p. 317.
37
ELGUETA, op. cit., p. 127.
117

forças fundamentais dessa revolução são os trabalhadores da indústria, do campo, da


técnica e da inteligência, possuídos de uma clara e profunda consciência socialista.
O novo regime socialista só pode nascer da iniciativa e da ação revolucionária das
massas trabalhadoras.38 [tradução nossa]

Essa postura presente no socialismo chileno reflete a releitura da idéia de

“necessidade histórica”, realizada pelos intelectuais da corrente mais radical da teoria da

dependência, e bastante influente na década de 1960, que visava afirmar a necessidade

imediata do socialismo, a partir de uma lógica estrutural. Esse discurso veio se contrapor às

teses etapistas e buscava demonstrar que na América Latina não havia condições de

viabilidade para uma nova tentativa modernizadora no marco do capitalismo.

Esta abordagem dos “dependentistas” mais radicais, como André Gunder Frank,

Teothônio dos Santos e Rui Mauro Marini se enquadra numa revisão da historiografia que

visualizava a existência e a necessidade de superação de um feudalismo local. Nesta visão se

apoiava a tese gradualista, para defender a idéia de que o subdesenvolvimento era a forma de

ser do capitalismo atrasado, e não uma etapa superável. Esta idéia é formulada numa nova

proposta de análise sobre a relação metrópole-satélite.

Com estas afirmações, os autores tentavam superar a idéia na qual o socialismo

aparecia postergado, e substituí-la por um discurso de corte igualmente estruturalista sobre a

atualidade do socialismo. Pode-se afirmar então que esta constitui a chave de leitura da época,

e que foi absorvida e representada também no socialismo chileno através dos seus

intelectuais: a prontidão da revolução, entendida como um processo ruptural, argumentada

como necessidade e não como possibilidade. A colocação de reformas passou a ser

considerada como uma política descompassada em relação ao tempo histórico.39

O socialismo iugoslavo também foi um modelo que exerceu influência significativa

no pensamento de Jobet, merecendo destaque em grande parte das suas publicações,

especialmente ao longo da década de 1960. A referência ao processo daquele país incide

38
JOBET, Julio César. Teoría, Programa y Política del PSCH. Arauco, Santiago, v. 4, n. 27, p. 65, 1962.
39
Além desta influência, um nome bastante recorrente no período é o de Regis Debray. Seus textos políticos
influenciados pelo castrismo representavam a concepção da necessidade imediata do socialismo e da luta
armada. Para ele, a “história havia dado o seu veredicto”, os problemas em torno do caráter da revolução já
estavam resolvidos pela prática da revolução cubana. A premissa de Debray era que “Cuba havia feito passar
bruscamente a luta de classes latino-americana a um nível superior”. MOULIAN, op. cit., 1993, p. 250-251.
118

especialmente sobre dois aspectos: “um novo tipo de democracia, baseada na autogestão” e a

sua “autonomia frente ao comunismo soviético”. A defesa da autogestão aparece como um

elemento bastante contraditório do seu pensamento, já que como um intelectual influenciado

pelas idéias vanguardistas de Lênin, essa proposta aparece obscurecida no seu pensamento.

Ainda que os dirigentes não apresentassem um projeto muito claro a respeito da

participação popular no governo da UP, Jobet e Altamirano defenderam este caminho no

processo de construção do socialismo, além de pressionarem a gestão de Allende no sentido

de acelerar o processo revolucionário, conferindo-lhe um imediato caráter socialista. Junto a

Altamirano e Chelén, Jobet compôs esse quadro de intelectuais que impôs uma dinâmica mais

radical ao socialismo no período, buscando uma caracterização ideológica e classista do

movimento. Esse novo sentido conferido pelos intelectuais do socialismo visava reconstruir a

identidade do grupo que, no contexto de sua formação, enfatizava a composição social

heterogênea e a oposição à definição de classe do partido, evidenciada nas declarações de

Marmaduque Grove, seu principal líder nas décadas de 1930 e 1940.

Como afirmamos, Jobet atuou no sentido de conferir uma identidade classista e

revolucionária ao socialismo – esta última entendida somente como um processo insurrecional

–, visando também se contrapor ao movimento comunista ao criticar as experiências de

aliança do comunismo com forças políticas concebidas como burguesas e com programas

“reformistas”. O autor defendia também um caráter democrático do socialismo em

contraposição às tendências do comunismo internacional; e procurava destacar uma

identidade nacional, fazendo frente a um movimento “dependente de diretrizes internacionais,

estranhas às questões do país”. Para tanto, a referência à experiência da Frente Popular se

mostra constante:
A aliança radical-comunista anulou a independência da classe trabalhadora e de seus
partidos e entregou a direção do movimento democrático à pequena burguesia, mais
desorientada e perigosa por sua limitação e demagogia [...] A posição justa [do PS]
era a de criar uma frente classista, polarizando o descontentamento crescente das
massas trabalhadoras, porque somente assim se conseguiria a independência do PS e
uma posição de ataque não subordinada a outros partidos.40 [tradução nossa]

40
JOBET, Julio César. El Partido Socialista y el Frente Popular en Chile. Arauco, Santiago, n. 85, p. 27-28,
1967.
119

A influência exercida por Jobet pode ser caracterizada como indireta, mas ativa, visto

que o PS caracterizava-se pela grande importância conferida aos seus intelectuais e à

formação teórica dos seus quadros, e principalmente, na afirmação da sua proposta socialista a

partir da fundamentação científica e dos debates teóricos internos. Nesse sentido, Jobet pode

ser considerado como um dos principais organizadores daquele grupo.

É possível afirmar que, a despeito das ambigüidades e oscilações presentes no seu

discurso ao longo da sua trajetória, a radicalização da proposta socialista foi o nexo que

predominou na sua ação política e que esteve entre as linhas de maior expressividade no

partido, a partir da década de 1950. A sua atuação na proposta da FRAP e ao longo da década

de 1960 expressa o caráter de suas reflexões e propostas inseridas no movimento socialista

numa constante reafirmação da identidade revolucionária e de classe.

O que buscamos demonstrar aqui é que teses elaboradas e difundidas por intelectuais

como Jobet contribuíram para uma radicalização ideológica do socialismo, desenvolvendo a

idéia da oposição entre reforma e revolução no seu seio e imprimindo a concepção de um

processo revolucionário de confronto entre classes. Esta tese não foi capaz de apreender a

complexidade da formação histórica daquele país, cujo mais importante processo se

caracterizou pelo entendimento ente as forças sociais e políticas do Chile e pela congregação

do desenvolvimento com pautas integradoras no plano social.

Os temas relacionados com o nacionalismo, a democracia, o antiimperialismo e,

principalmente, a revolução adquiriam significado no rompimento com o “Estado burguês”.

Estes homens utilizaram, portanto, conceitos e interpretações-chave de caráter convencional

no plano da cultura política da esquerda, demonstrando sua limitação na formulação de

proposições que superassem o âmbito da estrutura econômica e que abarcassem o aspecto

político e de novas relações sociais no interior da sociedade projetada, que não fosse

entendido somente como a tomada do poder.

Ao recriarmos sucintamente o campo cultural da esquerda, o que procuramos

apreender é o discurso que orientava as ações daquela nova direção do PS, e que buscava

legitimar-se naquele momento político. O intelectual que era referência naquele grupo tinha o
120

papel de produzir teoricamente um discurso que forjasse um imaginário no qual a realidade

aparecesse simbolicamente elaborada, no sentido de orientar ações e mobilizar vontades

coletivas, colocando-se, ao mesmo tempo, como um porta-voz do seu partido.

Nessa tarefa, Jobet buscava estabelecer a revolução socialista como ilusão

libertadora. Como afirma Moulian41, a proposta socialista era apontada como o único modelo

de boa ordem, principalmente, por sua consonância com certas características culturais da

época, que (dialeticamente) a esquerda contribuiu para formar. Instaurou-se como a única

teoria que, por sua radicalidade, podia “dar conta” do capitalismo.

Compreender esse campo cultural da época que compunha os discursos e propostas

políticas nos permite apreender o sentido que os sujeitos históricos davam às suas ações por

meio dos seus discursos. Observar as idéias-força, os conceitos-chave, a lógica que

imprimiam na forma de fazer política é uma maneira de não nos prendermos em análises que

buscam “revelar” os interesses reais que ocultaria a retórica. Parte da esquerda de 1969 se

caracterizava pela cabal oposição ao modelo político caracterizado pelos compromissos,

concebido como reformistas, rechaçando assim, a concepção acerca do socialismo como

agregação de reformas.

Em meio às inflexões políticas e ideológicas do período, além da influência da

Revolução Cubana, a experiência da “Revolução em Liberdade”, da Democracia Cristã,

também exerceu fortes efeitos sobre a esquerda ao realizar profundas mudanças de corte

reformista e modernizador a partir de uma retórica revolucionária e uma mobilização mais à

esquerda deste setor com uma maior radicalização da sua proposta.

Por outro lado, a linha proposta pela esquerda da UP deve ser encarada como uma

manifestação do clima ideológico que havia se criado e difundido na esquerda, especialmente

na década de 1960, como a confiança no socialismo, a “crença” fortemente desenvolvida

pelos intelectuais no fracasso do capitalismo e a profunda esperança na mudança total e

imediata. A formação da FRAP, em 1957, já reunia alguns aspectos desta conjuntura da

esquerda que buscamos destacar.

41
MOULIAN, op. cit., 1993, p. 241.
121

Os Congressos de Liñares (1965), de Chillán (1967) e de La Serena (1971) são os

momentos nos quais se definem os elementos ideológicos de ruptura e a sua caracterização

leninista. O período anterior, compreendido entre 1961 e 1964, é caracterizado por Jobet

como um momento de refluxo político, de maneira a delimitar a nova fase do socialismo

como a verdadeira expressão revolucionária daquele movimento. Dessa forma, Jobet chamava

para a transformação revolucionária do regime vigente pela classe operária, afirmando que

somente uma concepção revolucionária marxista-leninista permitiria a congruência efetiva

entre a estratégia e a ação diária. Defendia assim, a posição de vanguarda do PS.

Como afirma Aggio, quando a esquerda chilena atuou como força política que

postulava a transformação social a partir de fora do aparelho de Estado, ela havia conseguido

demonstrar a sua capacidade de construir e vocalizar um discurso fundado na perspectiva dos

governados, centrando-se nas temáticas da igualdade e do direito à não-opressão. Dessa

maneira, não tomava para si a necessidade de ordem e unidade do Estado, apostando até

mesmo na sua ruptura. Esse discurso, somado aos elementos ideológicos da esquerda, teria

garantido a ela a sua legitimidade revolucionária. O desafio posto à UP como ator político era,

portanto, o de construir um discurso a partir do Estado, dar e assegurar-lhe legitimidade

perante toda a sociedade, ao invés de continuar perseguindo a ruptura revolucionária.42

O discurso mais radical e as referências a uma política de classe se apresentam como

elementos definidores da retórica socialista no governo da Unidade Popular. O documento de

1971, que registra as resoluções do Congresso de La Serena, indica os rumos e perspectivas

adotadas pelas lideranças do PS nesse processo. A vitória da UP simbolizava, na linguagem

das lideranças socialistas do período, como Jobet e Altamirano, a derrota da burguesia e do

imperialismo, na medida em que gerava condições favoráveis à classe operária e às massas

para uma conquista “efetiva” do poder e para iniciar a construção do socialismo no país.

De acordo com as suas declarações, além da consciência e experiência dos

trabalhadores, o contexto também era favorável devido à correlação de forças presente e o

controle sobre parte do aparato governamental. Nesse sentido, coloca-se um dos pontos mais

42
AGGIO, op. cit., 1992, p. 64.
122

importantes para se compreender o debate da esquerda no período da UP: a questão do

governo popular que, para parte dos socialistas, deveria se fortalecer e superar o controle da

institucionalidade exercido pelas “classes de posse”, reunidas no Partido Democrata Cristão e

no Partido Nacional.

A participação operária no governo não poderia limitar-se a sua dependência do

aparato governamental, os trabalhadores deveriam preparar-se para se incorporarem ao

exercício do poder por meio do manejo das instituições. Para tanto, o fortalecimento dos

comitês da UP e a sua conversão em instrumento das massas trabalhadoras era a medida

apontada como o caminho imediato para a criação do poder popular.

O caminho para a construção do socialismo era indicado em algumas medidas

programáticas como a nacionalização das empresas imperialistas, dos bancos; uma reforma

agrária apoiada na mobilização dos camponeses; a incorporação dos trabalhadores ao

exercício do poder, desenvolvendo a gestão operária nas empresas nacionalizadas,

construindo uma nova estrutura política que culminasse na Assembléia do Povo.

Esse Congresso representa um dos momentos mais importantes da história do partido

na medida em que reforçou o sentido de ruptura e de confrontação de classes no discurso

socialista. Na concepção desses socialistas, as medidas tomadas pelo governo da UP

reforçavam “a potencialidade revolucionária da situação e intensificavam a polarização de

classes”. Em especial, a pressão para uma aceleração do processo revolucionário se tornou o

ponto crucial do debate político da esquerda, como podemos observar:


A contradição entre as forças crescentes das massas e o poder da burguesia define
esta etapa como um período essencialmente transitório. Nosso objetivo, portanto,
deve ser de afirmar o governo, dinamizar a ação das massas, afastar a resistência dos
inimigos e converter o processo atual em uma marcha irreversível para o
socialismo.43 [tradução nossa]

Quanto às perspectivas para o governo da UP, Jobet estabeleceu que, ainda que esse

processo tenha sido muito significativo e de início de um novo ciclo na história social e

política do país, não era viável ratificar a disputa eleitoral. Nas suas próprias palavras, não

seria possível “substituir o Estado capitalista e derrubar a burguesia e as suas instituições

43
Resolución política Congreso de La Serena. (jan. 1971). In: JOBET, Julio César. El Partido Socialista de
Chile. Santiago: PLA, 1971, p. 183.
123

repressivas”, tarefa possível somente pela “revolução de operários, camponeses e estudantes”.

A concepção acerca da revolução socialista como um confronto de classes se destaca no

seguinte excerto:
A UP ao desatar um conjunto de profundas mudanças estruturais intensificará,
fatalmente, o conflito entre detentores e proletários, camponeses e pobladores [...]
dia a dia irá rompendo a institucionalidade burguesa e abrindo caminho para um
novo sistema socialista. O êxito da UP aumentará na medida em que dirigir um
ataque ao regime capitalista e à situação dependente e subdesenvolvida do Chile e
propague seu programa claro e realista de uma alternativa socialista verdadeiramente
revolucionária. Ao mesmo tempo deve consolidar-se a unidade dos partidos
operários e de todos os elementos verdadeiramente revolucionários no seio da UP
[...]44[tradução nossa]

Jobet reafirmou as posições declaradas por Altamirano de que deveria haver,

primeiramente, a transição de uma “velha esquerda”, dominada essencialmente por uma

concepção “reformista e parlamentar”, para uma “nova esquerda revolucionária”, adotando

metas definidas direcionadas à ruptura da institucionalidade burguesa, termo utilizado para

referir-se às estruturas do Estado.

Aos partidos caberia a responsabilidade de unir-se à luta das massas e de ajudar a

superar o caráter economicista que predominaria em muitos de seus setores e orientá-la em

um sentido político revolucionário. O discurso vanguardista pautado na doutrina leninista da

revolução, sempre enfatizado pelo PS, apresentava-se como elemento importante nesse

contexto de fortalecimento do discurso ideológico, de maneira a reafirmar o papel de

liderança revolucionária e de representante da classe trabalhadora chilena nesse processo de

transformações:
Necessitamos um PS vigorado pela aplicação estrita do centralismo democrático;
que se desenvolva em primeiro lugar entre a classe operária: que reconheça a
legitimidade e necessidade da luta ideológica, que eduque sua militância nela [...] Só
cumprindo estas premissas o PS poderá preparar-se a si mesmo e às massas para o
decisivo enfrentamento com a burguesia e o imperialismo.45 [Grifos nossos]
[tradução nossa]

O que podemos notar é que estes intelectuais ligados ao socialismo foram incapazes

de compreender aquela sociedade na sua complexidade política e social, concebendo-as

somente com categorias abstratas, como “Estado burguês” e “burguesia inimiga da classe

operária”. Assim, a construção do socialismo era idealizada como um processo da classe

44
JOBET, op. cit., 1971, p. 187.
45
Ibidem, p. 184.
124

operária em luta contra a burguesia, para conquistar o poder do Estado e transformar o seu

caráter de classe.

Em outras palavras, trata-se de uma proposição que se apresentava inteiramente

convencional frente à teoria socialista, e não como algo novo para aquela realidade social. As

afirmações constantemente reiteradas de que o Chile apresentava uma realidade histórica

particular para a construção do socialismo foram, com exceção do presidente Allende,

assumidas mais como retórica do que como um imperativo para a elaboração de uma nova

teoria da transição socialista.46

Estas recorrências às teses universais do socialismo, às suas categorias abstratas se

acentuaram após a declarada adesão do PS ao marxismo-leninismo. De acordo com Sarget, a

leninização do partido tem maior relação com uma reação contra a ameaça da DC, e que

permitiria uma adaptação da organização, dos seus métodos de ação e de trabalho. Além da

vontade de uma ruptura com um passado humanista e pluralista, um endurecimento

dogmático do pensamento e a adoção de uma linguagem estritamente marxista. Mas,

principalmente, como uma tentativa de modernizar o partido, de lutar contra as práticas

caudilhistas, para tornar o aparelho obediente às regras da racionalidade, organização,

disciplina, e pela difusão, na juventude socialista, do ideal de rigor e de pureza

revolucionária.47

Por outro lado, destacamos o empobrecimento do socialismo na sua capacidade de

contribuir com elementos válidos para uma estratégia revolucionária eficiente na complexa

realidade histórica do Chile. Para Moulian, a leninização produziu um partido dividido, no

qual o mundo da teoria e o da política real tendia a uma dissociação. Essas novas

considerações teóricas serviriam apenas como sistema simbólico, como mecanismo de uma

imagem política, mais que como guia de ação.48

No entanto, entendemos que estas orientações acabaram por gerar ações extremas

por parte da esquerda que obstaculizaram a efetiva concretização de um projeto político

46
AGGIO, op. cit., 1992, p. 63.
47
SARGET, op. cit., p. 168.
48
MOULIAN, op. cit., 1983, p. 89.
125

pautado na história e na realidade daquele país, com as suas instituições políticas, as suas

composições social, econômica e cultural; caracterizando-se, portanto, como uma ação efetiva

desses homens que tiveram responsabilidades naquele processo.

A idéia de que, no Chile, o marxismo consistiu num componente importante da

cultura política nacional e que se desenvolveu como um dos sistemas hegemônicos no âmbito

das ideologias políticas, cuja influência podia ser sentida para além dos partidos de esquerda,

certamente se deve à atuação de homens que, como Jobet, dedicaram-se a difundir concepções

a respeito da sua realidade. Nessa tarefa, transplantaram conceitos e concepções teóricas para

a interpretação da sociedade da qual faziam parte e traduziram as teses da linguagem

filosófica e política do marxismo em idéias-força ou símbolos mobilizadores no socialismo

chileno, de maneira a se concretizarem em comportamentos e ações políticas com

conseqüências diversas.

Ainda que não possa ser identificado como um dirigente político, Jobet pode ser

considerado como um intelectual que participou ativamente daquele processo de radicalização

da esquerda, já que desempenhou um papel organizador no Partido Socialista, na medida em

que publicou e difundiu posições doutrinárias. Jobet foi porta-voz de uma posição

determinada daquele movimento político que gerou ações e conseqüências conhecidas para

aquela experiência de governo da esquerda que deveria ter se apresentado como uma

alternativa nova frente ao que já havia proposto a esquerda ortodoxa.

Jobet pode ser caracterizado como o intelectual da ruptura. Seu pensamento dirigiu a

esquerda política do Chile para um caminho oposto ao seguido até a década de 1940,

representando uma cultura política que passou a ser predominante. Trata-se de um intelectual

que negava a sua realidade e fazia uma leitura a partir de um imaginário que legitimava,

naquele momento, a linha insurrecional para o socialismo chileno.

Dessa forma, entendemos que a teoria socialista intensamente desenvolvida por Jobet

buscava construir um discurso hegemônico no campo partidário e popular. Elaborada

intelectualmente para dar sentido teórico à ação dos diferentes setores sociais e, ao mesmo

tempo, legitimar o papel de vanguarda de seu partido, a ação político-intelectual de Jobet


126

procurou traduzir retoricamente os anseios de radicalização de parte da sociedade para o

ambiente sistematizado da política chilena.

O choque provocado por um protagonismo dessa natureza contribuiu intensamente

para a construção e cristalização de uma cultura política que se mostrou bastante convencional

no campo da esquerda. Ela evidenciaria uma concepção mecanicista de transplantação de um

modelo revolucionário que buscou direcionar o processo de construção do socialismo a partir

de uma estratégia confrontacional que levou a polarizações irreversíveis.


127

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que, em determinados processos históricos modernos, os intelectuais

partidários, enquanto teorizadores podem ser apontados como meros aclimatadores de uma

produção elaborada segundo cânones externos. Mas enquanto organizadores da vida política

se mostram capazes de conectar-se com as necessidades de parte importante do movimento

popular, fortalecendo a sua identificação com a organização partidária.

Ao analisarmos a atuação de um intelectual da importância de Jobet, é possível

apreender a ressonância que as suas formulações tinham para a delimitação de práticas, a

partir de concepções elaboradas acerca da realidade chilena. O que poderíamos pensar num

primeiro momento é que a palavra de um intelectual pode ser só mais uma em meio a tantas

formulações, idéias e concepções, inclusive, entre os dirigentes políticos. No entanto, o lugar

ocupado por Jobet, como uma referência intelectual, como um formulador e difusor das idéias

de um grupo determinado da esquerda, permite afirmar que a sua prática mostrou-se bastante

influente e até determinante nos rumos do partido.

O que observamos é que num grupo como o Partido Socialista do Chile,

caracterizado pela busca da fundamentação científica para as suas propostas, com base no

marxismo, a ação dos seus intelectuais adquiriram relevância significativa na interpretação

daquela realidade, na elaboração de projetos revolucionários, na formação dos militantes e no

debate político com os demais grupos nacionais e internacionais. Esta intervenção dos

intelectuais nos rumos do PS é notada, principalmente, a partir de meados da década de 1940,

quando tem início o questionamento quanto às formas da sua atuação político-institucional.

Este é um contexto no qual se inicia o choque entre diretrizes internas, bem como a

emergência de uma cultura política de ruptura, que afetaria diretamente os rumos da esquerda

e, consequentemente, do seu governo. Para compreendermos a formação dessa cultura política

de ruptura no socialismo chileno, bem como a sua influência nas orientações do partido,

optamos por entendê-la inserida num processo mais amplo da trajetória desse segmento

político, apreendendo quais eram as suas características e com quais elementos daquele

movimento ela desejava romper.


128

O socialismo chileno tem como singularidade ter se constituído enquanto um grupo

de forte representação e poder de pressão institucional. Trata-se de um grupo com forte

tradição histórica que remonta, desde as lutas operárias do século XIX, até concepções

políticas dos setores médios e de movimentos de trabalhadores do século XX. Destacamos,

portanto, que o governo da Unidade Popular, uma das maiores experiências da história da

esquerda, foi um episódio permeado por toda uma tradição.

Concebemos aqui a história do Partido Socialista em duas etapas. A primeira

demarcada do momento da sua fundação até a reunificação do socialismo, em 1957; enquanto

que a segunda abarca desse momento até a divisão de 1979; sem, no entanto, caracterizar-se

como momentos estanques. Em outras palavras, são momentos nos quais elementos diversos,

concertacionistas e rupturais se imbricavam na conformação da cultura política socialista,

além da sua identificação latino-americanista, popular e dos objetivos de ocupação do poder

serem elementos compartilhados por grupos internos com orientações diferentes.

Para apreendermos as inflexões na identidade do socialismo chileno, buscamos

compreender essa trajetória socialista de atuação no sistema institucional, característica

principalmente do período de governo da Frente Popular, e que entendemos ter contribuído

para o fortalecimento da democracia chilena. A sua cultura política, que denominamos

concertacionista, contribuiu para a constituição de um espaço onde todos os sujeitos sabiam

poder disputar e debater projetos políticos, representando os segmentos sociais que

constituíam a sua base de apoio. Essa característica, nós entendemos ser um dos principais

elementos da história da esquerda, e que foi incompreendida por parte da historiografia.

O momento de inserção da esquerda no quadro institucional pode ser encarado como

crucial para a compreensão das interpretações realizadas acerca desse segmento político, bem

como da sua trajetória mesma. A historiografia, em geral, apontou as negatividades da

atuação da esquerda chilena, através de denominações, como errática, ou mesmo, inserindo-a

no modelo do populismo, numa perspectiva que entendemos ser a da criação de uma

expectativa em torno de qual deveria ser a atuação dos socialistas. Da mesma maneira,

buscamos nos contrapor a uma interpretação que entendemos ser teleológica, na medida em
129

que ela identifica na história de cisões e conflitos entre as correntes internas do socialismo o

inevitável conflito e a inviabilidade do seu governo.

Primeiramente, entendemos que a formação do PS se deu num contexto de

emergência de uma diversidade de sujeitos sociais e políticos com um conjunto de projetos

contestadores da ordem e com novas propostas para o desenvolvimento. Além disso, que os

resultados políticos do processo no qual a esquerda estava inserida não se aproxima em nada

dos resultados obtidos pelas experiências políticas denominadas populistas.

A perspectiva da presente pesquisa foi a de compreender os elementos que

compunham a cultura política do socialismo chileno. Não buscamos, dessa forma, comprovar

um determinado tipo de ação política, ou fazer a leitura desse objeto com uma expectativa

determinada quanto ao seu comportamento e quanto aos resultados daquele processo. O nosso

intuito foi apreender as tensões presentes na base do projeto político do socialismo chileno, a

partir do desenvolvimento de uma cultura política de ruptura que veio a predominar e alterar,

em alguns aspectos, a sua identidade.

Foi possível identificar o desenvolvimento dessa cultura política de ruptura, a partir

da influência de uma das suas principais referências intelectuais. Esta análise foi realizada sob

a perspectiva de recriação do campo cultural da época. Em outras palavras, a proposta foi

compreender as tensões, conflitos do desenvolvimento político do país, considerando os

grupos que emergiram e se fortaleceram, os impactos das diferentes conjunturas e do clima

cultural predominante sobre a esquerda chilena.

As inflexões ocorridas no socialismo ocorreram na década de 1950. Estas mudanças

começaram a se delinear na década anterior, quando parte significativa dos seus dirigentes e

intelectuais passou a questionar a participação do partido nos governos radicais. O que

podemos notar é que estes questionamentos e a cobrança por uma atuação de corte mais

radical começaram a desenhar uma nova cultura política, que adquiriu tons mais definidos

principalmente nos anos sessenta.

Esta nova liderança do Partido Socialista apresentava como principal característica a

obsessão pela idéia da necessidade da “superação do reformismo”, identificado sempre com a


130

experiência da Frente Popular e dos governos radicais, ou seja, um modelo a ser negado pelo

“socialismo revolucionário”.

A generalização da idéia do atraso e do desajuste entre a estrutura política e a

infraestrutura econômica apresentou-se como uma das idéias centrais das formulações que

animaram os grupos de esquerda do país. Este pensamento era representado pela

intelectualidade que se destacou na interpretação dos processos históricos e na formulação de

projetos políticos.

Estas idéias estavam em consonância com a perspectiva da década de 1960, que se

caracterizou pelo auge das denominadas “alternativas globais”, através das quais se identifica

na esquerda a aposta no fim dos compromissos políticos característicos das décadas

anteriores; e no centro político, a consolidação das idéias modernizadoras com mudanças

estruturais, causando forte impacto sobre a proposta socialista.

Estas urgências pelas transformações globais suscitadas na década de 1960 foram

resultado, conforme destacamos, das propostas impulsionadas no mundo político,

institucional e intelectual, mas também como resposta às mudanças sociais que vinham

ocorrendo desde meados do século e que adquiriram variados contornos, dentro da lógica de

cada segmento político. A expectativa de mudança expressa em diferentes facetas dos projetos

de transformação estrutural daquele país esteve presente em diversas concepções que

pensavam aquela sociedade em termos de atraso, de desajustes ou de crise total.

Nesse contexto, assistiu-se à produção de cunho político e a um forte movimento

cultural que envolvia intelectuais nacionais com grande repercussão, como Pablo Neruda. A

produção artística engajada da Nova Canção Chilena também foi um grande destaque, bem

como os debates no âmbito político e econômico entre nomes das mais variadas tendências,

como a produção da CEPAL, que orientou o projeto da Democracia Cristã; todos anunciando

a possibilidade, ou a necessidade de um novo Chile.

A esquerda, a partir do questionamento da viabilidade do modelo capitalista para o

desenvolvimento do país, da sua obsessão pela idéia de crise total e da necessidade da

revolução, apresentava-se como a única alternativa capaz de transformar a sociedade. Sob esta
131

perspectiva, o socialismo deste período, diferente da década de 1930, imprimiu decisivamente

a dualidade entre reforma e revolução, compreendendo esta última somente como um

processo insurrecional de confronto de classes.

A partir de 1957, o socialismo chileno acentuou o seu discurso classista e a sua

perspectiva anti-reformista, pautada nas concepções do marxismo que eram difundidas pelos

intelectuais que o conformava. Este discurso atravessou a década de 1960 e o seu governo −

que tinha como principal proposta a construção do socialismo em democracia –,

estabelecendo a necessidade de encarar o governo popular como uma preparação da ruptura

revolucionária.

O que procuramos demonstrar foi que neste processo de radicalização da esquerda, a

atuação dos seus intelectuais teve um papel decisivo para a formulação das orientações

internas, na medida em que eles buscavam imprimir categorias analíticas e políticas que se

apresentassem como legitimamente revolucionários na mobilização de um determinado

projeto de socialismo.

No entanto, ao tentar destacar as especificidades locais, estes intelectuais buscaram

mais legitimidade como expressão do movimento revolucionário nacional do que a

apresentação de projetos genuínos. Nesse contexto, Jobet foi reconhecidamente uma das suas

maiores referências, que expressou em seus trabalhos historiográficos e panfletários os

princípios e categorias que orientaram essa busca por uma “identidade revolucionária” para o

socialismo, portando-se sempre como porta-voz do partido.

O mais importante a destacar é que Jobet é a expressão máxima de um dos setores da

esquerda que buscava romper com a trajetória inicial do partido, e que constituía a sua direção

majoritária naquele momento. As postulações de Jobet e dos intelectuais próximos a ele se

prenderam mais à tentativa de validação de uma determinada “fórmula revolucionária” do que

à compreensão histórica e das condições políticas e sociais específicas do Chile.

Suas idéias negligenciaram a composição do país que se estruturou politicamente

pautada em projetos de transformação que combinavam mudança e gradualismo; uma vez que

a democracia era encarada por estes socialistas como o espaço de defesa dos interesses
132

burgueses e de dominação sobre as camadas populares e, por conseguinte, de perpetuação do

capitalismo no Chile. Romper com a democracia, tomar o poder do Estado e afirmar o poder

popular, nesse sentido, garantiria o caráter revolucionário e não reformista daquele processo.

É possível afirmar que o trabalho teórico de Jobet superou proposições do seu

contexto no que concerne à abordagem historiográfica ao se contrapor às interpretações de

cunho conservador da história chilena. No entanto, seu projeto político mostrou-se bastante

limitado ao seu ambiente e a sua época, mostrando-se pautado numa perspectiva presa a teses

esquemáticas acerca da constituição e das contradições da sociedade. Suas formulações

tiveram o objetivo de legitimar um determinado projeto socialista e, principalmente, o papel

do seu grupo político.

Por outro lado, não podemos desconsiderar a importância do patrimônio ideológico

socialista para o questionamento da situação histórica chilena e para a inserção de

reivindicações políticas e sociais dos setores populares na pauta política do país, que resultou

na mobilização de projetos que consolidaram uma tradição de esquerda no Chile. No entanto,

neste contexto, a recorrência a esquemas abstratos obscureceu a compreensão das

características particulares daquela sociedade, afetando o projeto de transformação que

deveria se apresentar como uma alternativa nova e viável para os chilenos.

Nesse processo de busca pelo caminho revolucionário, as experiências russa,

iugoslava e cubana foram exaustivamente citadas pelos líderes partidários responsáveis pela

projeção e condução do governo popular, mas que se mostraram incapazes de pensar a “via

chilena” como um processo revolucionário inovador tanto para a esquerda como para o país.

Estes homens tinham no socialismo somente a “necessidade histórica” e a “revolução” como

horizonte para a construção de uma nova sociedade.

Esta concepção socialista tinha como característica a proposta de rompimento com

uma história de projetos modernizadores que também privilegiaram a integração social como

pautas reformadoras para aquela sociedade, e que, além dos setores populares, teve como um

dos protagonistas os setores médios. Além disso, a base que combinava mudança e

gradualismo não se assentava nessa proposta que tinha como perspectiva a tomada do poder,
133

quebrando assim a lógica dos compromissos políticos pautados num consenso entre os

diversos componentes políticos e sociais. Estes foram elementos que caracterizaram este

projeto de socialismo baseado numa idéia que identificava a emancipação nacional com a

tomada do poder e com a revolução, entendida como um confronto decisivo de classes.

Procuramos destacar neste trabalho uma importante expressão da interseção entre a

produção teórica e os acontecimentos concretos, que foi a relação de Jobet com o socialismo

chileno. Visamos demonstrar que ele foi o intelectual da ruptura, que realizou uma leitura da

realidade legitimadora da linha insurrecional para o socialismo daquele país, a partir da

concepção mecanicista de transplantação de um modelo revolucionário; perspectiva que foi

incapaz de apreender a proposta democrática de Salvador Allende, gerando polarizações

irreversíveis naquele processo.

A perspectiva de recriação do campo cultural da esquerda nos permitiu entender o

discurso e as teses bastante convencionais que orientaram as ações daquela direção do

socialismo e, assim, compreender a lógica que esta imprimia na sua forma de fazer política.

Longe de negarmos o papel dos diversos segmentos políticos e sociais do Chile no trágico

desfecho do governo da Unidade Popular, o nosso objetivo foi apreender a responsabilidade e

os limites da cultura política de uma esquerda que tinha a possibilidade histórica de construir

o socialismo em democracia, mas que o perseguia como um processo insurrecional, e

vivenciou, dessa forma, mais que uma derrota, o fracasso de um governo.


134

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