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Índice

Prólogo ................................................................................... 11

1. Os dois cúmplices (e um companheiro acidental) .......... 17


Carlos .................................................................................. 19
Domingos ........................................................................... 47
João ..................................................................................... 63

2. A amiga especial e a namorada fatal ............................... 75


Sandra ................................................................................. 77
Fernanda ............................................................................. 93

3. O grupo dos quatro: dois interrogatórios decisivos ... 107


Hélder ................................................................................. 109
Ricardo (e Zeinal) (e Henrique) ........................................... 143

4. A conexão brasileira ........................................................ 187


José ..................................................................................... 189

5. A guerra da informação e da contrainformação .......... 201


Octávio ............................................................................... 203
Sérgio .................................................................................. 233
Pedro e Micael ..................................................................... 251

Nota final ............................................................................... 267


Índice onomástico .................................................................. 271
Fontes consultadas ................................................................ 275
Notas ...................................................................................... 277
Anexos ..................................................................................... 285
Agradecimentos ...................................................................... 301

9
Prólogo

E
screvo este texto numa sala de espera do Campus da Justiça, em
Lisboa. O espaço, decorado em tons de cinzento, não terá mais
de dez metros quadrados. Dez metros de silêncio. Dez metros de
um edifício recente, sem história, sem alma, sem nada que o distinga de
outros que marcam a zona oriental da cidade.
Há dois dias que, juntamente com o meu colega António José Vilela,
estou a ser julgado pela alegada violação do segredo de justiça no pro-
cesso Marquês. O António está a meu lado, a rabiscar apressadamente
notas dispersas numa folha branca, que contrasta com a tinta preta da
sua esferográfica uni-ball. Será ouvido hoje por um juiz. Talvez. Quanto
a mim, só um milagre me fará avançar para o banco dos réus nas pró-
ximas horas. Porque são 14h24 e o tribunal encerra obrigatoriamente
às 17h00. Mas aqui estou. E estarei amanhã. E depois. E depois ainda.
Porque a justiça é lenta. Tão lenta que desalenta. A justiça é uma car-
ruagem secular arrastada por dois cavalos envelhecidos; o universo dos
média, a que pertenço, é um Ferrari propulsionado por mil cavalos de
potência.

(São 15h12. O António acaba de ser chamado pela funcionária judicial


para depor.)

É nesta perigosa dialética entre a velocidade do jornalismo e a da


justiça que reside um dos grandes dramas das democracias atuais. Deve
um jornalista guardar uma informação de relevante interesse público
com o argumento de que esta é parte de uma investigação em curso,

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A SANGUE FRIO

encontrando-se, por isso, em segredo de justiça? Ou, pelo contrário, tem


ele a responsabilidade de a divulgar, em nome da higiene do menos mau
dos sistemas de governo conhecidos?
O processo Marquês, que justifica a minha presença hoje neste banco
desconfortável e que é o tema deste livro, é paradigmático a esse respeito.
Sócrates foi investigado durante vários anos. Foi decretado o segredo
interno da investigação. Mas alguém compreenderia que os jornalistas
que acompanham o caso só divulgassem notícias detalhadas sobre o que
está em causa a partir do momento em que a investigação terminasse?
Passa pela cabeça de alguém que, tratando-se de um ex-primeiro-ministro
(PM) suspeito de, no exercício das suas funções, ter aceitado subornos
para beneficiar pessoas e empresas, delapidando o bem comum, os elei-
tores não tivessem acesso aos indícios que sobre ele pendem?
Embora sejam fortemente pressionados nesse sentido, os jornalistas
não podem ceder à tentação da paralisia. Porque a paralisia gera resig-
nação – e esta resulta no silêncio cúmplice. Os jornalistas têm um com-
promisso com os leitores e com a comunidade: publicar, sem concessões,
todas as informações com manifesto interesse público – e as que cons-
tam da investigação do processo Marquês possuem enormíssima rele-
vância.

(15h45. O António continua a depor.)

O processo Marquês é o maior da história da democracia portuguesa.


Foram feitas centenas de buscas, apreendidos milhões de ficheiros infor-
máticos, interrogadas mais de 100 pessoas em vários continentes, envia-
das numerosas cartas rogatórias para geografias distantes, desvendadas
contas infernais em confortáveis paraísos fiscais.
Não poderia ser de outra forma, face aos números e aos protagonistas
em causa: os negócios encontrados – sobretudo o que respeita à entrada
da Portugal Telecom (PT) no capital da brasileira Oi – cifraram-se em
milhares de milhões de euros. Quanto às figuras, têm um peso igual-
mente astronómico: José Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava ou Hen-
rique Granadeiro, entre outras.

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PRÓLOGO

Foi a soma de todos estes fatores que precipitou a decisão de escrever


este livro, que é muito mais do que uma obra sobre um ex-primeiro-ministro
acusado de corrupção. A verdade é que, à medida que fui evoluindo na
investigação, tropecei em informações que isoladas possuem um valor
relativo, mas que, quando juntas, formam um retrato assombroso sobre
várias realidades: a promiscuidade entre o poder político e económico,
a negligência gritante – um eufemismo para algo muito mais grave – com
que foram tomadas algumas das maiores decisões empresariais nos últi-
mos 15 anos em Portugal e, finalmente, a teia de micro, macro e nanor-
relações envenenadas que minam a política e a economia portuguesa a
partir dos bastidores.
Apesar dos meios humanos excecionais que foram colocados ao serviço
da investigação, esta foi, desde o início, uma luta entre David e Golias.
Se Zeinal Bava precisa de um documento com urgência a partir da Suíça,
de Angola ou do Brasil, o seu advogado pago a peso de ouro embarca num
jato privado e em poucas horas trá-lo para Lisboa. Já a investigação tem
de mandar uma carta e esperar pelo correio – a história da carruagem e
do Ferrari também se aplica neste caso.
A vida de Rosário Teixeira e Paulo Silva foi dura nos últimos anos.
Foi necessário vestirem uma capa de aço para resistirem à pressão férrea,
violenta, belicosa, para encerrarem a investigação. Sócrates e os seus
advogados não lhes tornaram a tarefa fácil – e eles não quebraram, não
porque são super-heróis de BD, mas porque sabem que neste processo
não é apenas Sócrates, Zeinal, Salgado ou Granadeiro que estão em causa
– são as suas carreiras e reputações. Não podem dar-se ao luxo de não
fornecerem ao tribunal provas suficientes para condenar inequivoca-
mente os arguidos, sob pena de se condenarem a si mesmos.
Rosário Teixeira e Paulo Silva são, por todos os motivos, duas perso-
nagens transversais a este livro. O mesmo acontece com o juiz Carlos
Alexandre e, naturalmente, com José Sócrates. Mas assim sendo, como
compreender que nenhum dos big four seja tratado num capítulo autó-
nomo? Resposta: porque eles estão em todos os capítulos. São eles o
sangue que irriga a veia, o oxigénio que alimenta o pulmão.

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A SANGUE FRIO

Os restantes onze nomes que são tratados com detalhe têm, cada um
à sua escala, uma importância capital no processo, quer pelos crimes
que terão cometido, quer pelas notícias que publicaram, quer pelo que
a sua relação com José Sócrates significa sobre si e sobre o ex-primeiro-
-ministro.
Fernanda Câncio e Sandra Santos, por exemplo, foram arrumadas no
mesmo capítulo porque juntas são, sempre segundo o Ministério Público
(MP), uma prova cabal de que José Sócrates tinha um estilo de vida
alicerçado em milhões quando declarava tostões. As duas, ainda que de
forma diversa, obtiveram vantagens na relação com um homem que, na
definição de Fernanda Câncio, era irresistível por, entre outras coisas, ter
«massa e casa em Paris».
Dinheiro é também o que agrupa o quarteto constituído por Ricardo
Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro e Hélder Bataglia. Se Sócra-
tes é o sangue e o ar do processo, Salgado e os seus amigos terão sido,
segundo Rosário Teixeira e Carlos Alexandre, o combustível para que o
ex-primeiro-ministro funcionasse, sempre à velocidade da luz, como
entreposto de interesses e negócios milionários. Falta agora que o provem
de forma cabal em sede de julgamento. A sua importância é nuclear.
Nucleares também têm sido os jornalistas que acompanham o caso,
e que estão agrupados num capítulo à parte. Octávio Ribeiro, diretor do
Correio da Manhã (CM), teve a ideia de investigar a vida de José Sócra-
tes em Paris. Foi a partir desse momento que o país acordou para o tema.
A dupla Pedro Santos Guerreiro/Micael Pereira, do Expresso, também
teve um papel primordial: foi no âmbito da investigação dos Panama
Papers que se identificaram as transferências de milhões de euros entre a
Espírito Santo Enterprises e Carlos Santos Silva, alegado testa-de-ferro
de Sócrates, com passagem pelas contas de Hélder Bataglia. Mais: foi ao
Expresso que o empresário luso-angolano revelou em primeira mão que
Ricardo Salgado lhe pediu para fazer chegar dinheiro a Carlos Santos
Silva. Foi uma declaração curta, de apenas uma linha, mas que provocou
um tumulto na investigação – a partir desse sábado, nada mais foi o
mesmo na Operação Marquês.

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PRÓLOGO

Também o diretor da TVI, Sérgio Figueiredo, é fundamental, não


pelo que a estação que lidera revelou em exclusivo sobre os meandros do
processo, mas por ter sido o canal privilegiado por José Sócrates para
fazer a sua defesa pública. Foi à TVI que o ex-primeiro-ministro deu a
primeira entrevista na cadeia; foi também à TVI que falou pela primeira
vez depois da libertação; foi, finalmente, à TVI que concedeu a primeira
entrevista aquando do lançamento de O Dom Profano, o seu segundo
livro, cuja autoria também é questionada pelo MP.
Sérgio Figueiredo, amigo pessoal de José Sócrates, foi fortemente cri-
ticado por dar espaço à defesa do agora ex-político. Nas redes sociais,
onde o insulto anónimo – e, portanto, cobarde – não paga imposto, o
diretor da TVI tem sido alvo de ataques sem quartel. Motivo? Ser pró-
ximo de José Sócrates. Como se a amizade pudesse ser penalizada. A
verdade é que os exclusivos transmitidos pela TVI teriam feito as delícias
de qualquer outro órgão de comunicação social. Em várias ocasiões, pedi
entrevistas a José Sócrates. Sei que muitos colegas meus fizeram o mesmo,
com o mesmo sucesso que eu. Afirmar que Sócrates escolheu a TVI
porque teria garantias de que seria beneficiado por não lhe serem colo-
cadas as perguntas certas, «aquelas que acabariam com ele», é lançar um
injusto manto de suspeição não só sobre Sérgio Figueiredo, mas também
sobre José Alberto Carvalho e Judite Sousa, os dois jornalistas que o
entrevistaram. E isso é algo que me recuso a fazer.
Se este livro tem alguma utilidade, não será certamente a de dar gás a
suspeitas e rumores propagados através dos labirintos das redes sociais.
Não: o seu principal mérito, se ele existe, será o de, através da exposição
livre e crua dos factos que alicerçam a Operação Marquês, revelar um
universo tantas vezes desconhecido para quem elege políticos e neles con-
fia para gerir o dinheiro dos seus impostos ou para quem escolhe um
banco para guardar as poupanças de uma vida inteira, na confiança cega
de que nada de mal lhes acontecerá. Pois bem, como dizem os americanos,
shit happens – e a história recente da banca nacional é a prova disso mesmo.
São 16h17. No mostrador do meu relógio, as horas e os minutos e os
segundos passam devagar. O António continua a depor. Daqui a

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A SANGUE FRIO

43 minutos a funcionária judicial comunicar-me-á simpaticamente que


ainda não será hoje que tentarei convencer o juiz de que sou um cidadão
cumpridor, com uma muito razoável tendência para cumprir as regras
instituídas – a menos que estas colidam com o exercício da minha liber-
dade individual.
São 16h37. Do fundo do corredor escuto a voz tristemente estridente
da funcionária judicial: «Dr. Fernando Esteves…» Levanto-me, pronto
para a dispensa da praxe. Mas o que me diz é o contrário. O juiz quer
ouvir-me já. Já?! Quem disse que os milagres não existem?

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