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Colégio Anglo São Carlos

Nome: ____________________________________ Nº: ____ Série: 3ª. A e B


Disciplina: Técnicas de Redação Professor: Adriano T. B. Tovani Cardeal
Bimestre: Segundo [Recuperação] Valor da Avaliação: de 00,00 a 10,00
Data: _______________ Nota: _______
Visto do Aluno (revisão da prova): _______________________________

A cura pela expectativa lo que os médicos achavam que funcionava. Como eles não
se esforçavam muito para manter um registro preciso de
Hélio Schwartsman suas terapias e do desfecho dos casos, práticas que, hoje, sa-
bemos absurdas, como sangrias e tratamentos à base de me-
O gentil leitor provavelmente nunca ouviu falar de tais pesados, puderam perpetuar-se por longo tempo. O pro-
“crenoterapia”, mas ela não só existe – consiste na “utiliza- cesso de transformação da Medicina de um sistema de cren-
ção medicinal de águas minerais como terapia”, segundo o ças nem sempre racionalmente justificáveis num método ci-
Houaiss – como em tese ainda é incentivada e custeada pelo entífico baseado em evidências não foi simples. A rigor, ele
SUS, nos termos da portaria 971, de 3 de maio de 2006, do ainda nem foi concluído. O primeiro grande passo, como re-
Ministério da Saúde. Esse mesmo texto legal determina in- lata Offit, ocorreu em 1746, quando o médico James Lind
clusão de acupuntura, homeopatia e fitoterapia nos serviços embarcou no HSM Salisbury determinado a encontrar uma
públicos de saúde. Não é difícil imaginar por que um políti- cura para o escorbuto, deficiência de vitamina C que acome-
co incluiria inutilidades, desde que faturáveis, na conta do tia marinheiros com consequências catastróficas. Lind deci-
SUS. E os usuários? Como explicar que a homeopatia, por diu testar os tratamentos disponíveis. No que é hoje conside-
exemplo, tenha tantos fãs ardorosos sem reconhecer que rado o primeiro ensaio clínico, o médico dividiu 12 marujos
eles podem estar convictos de que ela funciona? E não são em 6 pares e ministrou a cada um uma terapia diferente.
apenas usuários. A maioria dos médicos homeopatas tam- Lind não teve dificuldade para constatar que apenas as fru-
bém acredita sinceramente nas virtudes e na eficácia de seu tas cítricas curavam o escorbuto. Cinquenta anos depois
saber. Por quê? O que distingue a Medicina científica, que desse experimento, o almirantado ordenou que cada mari-
existe há mais ou menos 200 anos e vem ajudando a elevar nheiro britânico consumisse uma lima por dia, e o escorbuto
a expectativa de vida e a longevidade, de práticas de eficácia “magicamente” desapareceu dos navios. Ainda seriam ne-
discutível que agruparemos sob rubrica “pseudomedicina”? cessários 200 anos para que essa abordagem científica se
Para esboçar uma resposta a tais perguntas, sirvo-me de três disseminasse na Medicina. Hoje, em tese, novos medica-
bons livros. O mais veemente é Do you believe in magic?: mentos e terapias são todos rigorosamente testados antes de
the sense and nonsense of alternative medicine, de Paul serem utilizados e só chegam ao mercado caso se mostrem
Offit, infectologista pediátrico, coinventor da vacina contra mais efetivos do que placebos ou outros tratamentos de efi-
o rotavírus, que, a esta altura, já salvou milhares de vidas, e cácia já comprovada. Como o leitor crítico já deve ter nota-
autor de várias obras que denunciam as crenças absurdas do, isso funciona muito melhor na teoria do que na prática.
que conspiram contra a saúde pública. Offit bate sem dó em Determinar a eficácia de uma droga não é tão simples quan-
figuras bem conhecidas que promovem práticas sem com- to possa parecer. O ponto importante, porém, é que a Medi-
provação científica, como Oprah Winfrey e alguns colegas cina “oficial” pelo menos incorporou o método científico e
médicos que ocupam generoso espaço na mídia norte-ame- assevera que, ainda que no plano ideal, tudo o que preconiza
ricana. Num tom mais circunspecto, temos Snake oil scien- deveria estar respaldado por evidências empíricas. O que
ce: the truth about complementary and alternative medici- caracteriza a pseudomedicina é justamente o fato de que ela
ne, de R. Barker Bausell. O autor é um bioestatístico da Uni- não aceita, ao menos não integralmente, essa lógica. Anali-
versidade de Maryland que, por cinco anos, dirigiu o pro- semos o caso da homeopatia. Em termos estritamente teóri-
grama de Medicina complementar daquela instituição. Sua cos, é difícil encontrar elementos para acreditar nela. Dois
missão, sob auspícios e fundos do NIH, a poderosa agência de seus princípios fundamentais, o similia similibus curan-
federal de investigação médica dos EUA, era avaliar a eficá- tur (“coisas semelhantes são curadas por semelhantes”) e a
cia das mais variadas práticas da chamada “medicina alter- noção de que a eficácia dos preparados aumenta com a dilui-
nativa”. A conclusão é de que elas funcionam tanto quanto... ção contrariam mais ou menos tudo o que sabemos de fisio-
nada. Esse “nada”, é claro, precisa ser qualificado, o que logia e de Química. Basicamente, o similia... postula que,
tentaremos fazer mais adiante ao discutir o “efeito placebo”. para curar uma afecção, devemos procurar drogas que pro-
Por fim, há o instrutivo Truque ou tratamento, de Simon duzam no paciente uma sintomatologia parecida com a da
Singh, um físico de partículas que se dedica à divulgação ci- doença-alvo. Não é que tal ideia esteja errada em 100% dos
entífica no Reino Unido, e Edzard Ernst, médico que estuda casos. Foi com base nela que Samuel Hahnemann (1755-
terapias complementares e acabou se tornando um crítico 1843), o criador da homeopatia, descobriu que o quinino era
delas. Eles tratam em detalhe de acupuntura, homeopatia, eficaz contra a malária. O problema é que não dá para trans-
quiropraxia e fitoterapia. Não são céticos absolutos que não formar esse achado, que provavelmente não passa de uma
acreditariam em “mafagafos” nem se fossem mordidos por coincidência, num princípio heurístico universal, como fez
um. Dizem, por exemplo, que quiropraxia e medicina herbal Hahnemann. Parece bem idiota, por exemplo, tratar uma hi-
às vezes funcionam melhor do que placebo, ainda que te- pertensão arterial ministrando sal ao paciente. E de fato o é.
nhamos de ser cautelosos ao utilizá-las. Durante uma maior O próprio Hahnemann percebeu isso e foi daí que sacou o
parte de sua história, a Medicina funcionou com base naqui- segundo grande dogma da homeopatia, o de que doses gran-

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des do princípio ativo agravariam a doença, e as pequenas a bém funcionam. Por muito tempo, o efeito placebo foi trata-
curariam. A essa doutrina, exposta em seu Organon der do como algo que estava “apenas na sua cabeça”, mas traba-
Rationellen Heilkunst, de 1810, ele chamou de “potenciação lhos mostram que a simples expectativa de cura já provoca
da dinamização”. De novo, é difícil modernamente compre- uma tempestade de reações fisiológicas reais. Embora o pla-
ender o que há de racional na diminuição das doses. É claro cebo seja especialmente eficaz no controle da dor, ele serve
que nem só de teorias é feito o saber. Em tese é perfeitamen- também para tratar insônia, náusea, depressão e outras mo-
te possível que algo funcione muito bem sem que saibamos léstias em que as expectativas desempenham papel relevan-
explicar por quê. O ácido acetilsalicílico (AAS), princípio te. Obviamente, não funciona tão bem no caso de infecções,
ativo da aspirina, presente na casca do salgueiro, vem sendo cânceres, intoxicações etc. Outro detalhe importante é que
usado com sucesso desde a Antiguidade. Seu princípio ati- o efeito placebo está presente nas drogas de verdade. Quan-
vo, porém, só foi identificado por Edmund Stone em 1763. do sua dor de cabeça passa após tomar uma aspirina, isso se
Não podemos, portanto, descartar a possibilidade de a ho- deve tanto às propriedades do AAS como à sua expectativa
meopatia ser efetiva, mesmo que não tenhamos uma teoria de melhora. A pergunta que fica, então, é o que podemos fa-
para explicar seus efeitos. E, para dirimir essa dúvida, é pre- zer para saber se uma terapia funciona “de verdade”. A res-
ciso recorrer à “prova do pudim”. Em princípio, ela deveria posta é: estatística. A exemplo de Lind, é preciso juntar vári-
ser simples. O sujeito está com um problema de saúde qual- os pacientes que tenham o mesmo problema, submeter uma
quer e segue a terapêutica prescrita. Se ela for efetiva, o sin- parte deles ao tratamento que você quer testar e a outra – o
toma ou a doença irão embora. Se não for, ou o diagnóstico grupo-controle – a um placebo. Há, é claro, alguns cuidados.
estava errado ou o tratamento não funcionou (ou ambos). O primeiro é que, como a psicologia importa, nem os paci-
Na prática, porém, as coisas são mais complicadas. O prin- entes nem os profissionais que participam da pesquisa po-
cipal complicador no caso da Medicina alternativa é o famo- dem saber quem está no grupo de teste e quem está no gru-
so “efeito placebo”. Placebo, em latim, significa “agrada- po-controle. No jargão científico, isso é conhecido como
rei”. Em sua versão mais básica, placebos são comprimidos “duplo-cego”. Os números precisam ser significativos. Ide-
que não têm nenhum princípio ativo, mas produzem no pa- almente, deveriam ser milhares de pacientes, para compen-
ciente a convicção de ter recebido um tratamento. Foi a par- sar as inevitáveis diferenças individuais entre eles. Como
tir do século XIX que os médicos começaram realmente a nem sempre isso é possível, cientistas juntam várias pesqui-
se dar conta da importância da sugestão, que, não obstante, sas diferentes para extrair resultados mais robustos. São as
era tratada mais como parte do “Folclore” do que como um chamadas “metanálises”. Bem, e o que as metanálises dizem
fenômeno a ser estudado cientificamente. As coisas come- sobre a homeopatia? Em resumo elas dizem que homeopatia
çaram a mudar com médico britânico John Haygarth (1740- e placebo são indistinguíveis. Embora uma metanálise de
1827). Ele mostrou que os então em voga tratores metálicos, 1997 conduzida por Klaus Linde e publicada em The lancet
uma engenhoca inventada pelo americano Elisha Perkins, tenha mostrado resultados levemente favoráveis à homeo-
que tinha a reputação de aliviar dores e inflamações (por si- patia, ainda que não conclusivos, revisões posteriores não
nal, essa foi a primeira patente concedida pelos EUA), pode- deixaram muita margem a dúvida. O mais duro golpe contra
riam ser substituídos por instrumentos falsos, mas parecidos a homeopatia veio da mesma The lancet, que, em 2005, pu-
com o original, e produzir os mesmos efeitos. Outro grande blicou uma grande metanálise que reavaliou 110 testes clíni-
placebologista foi o anestesista americano Henry K. Bee- cos de melhor qualidade envolvendo produtos homeopáti-
cher. Ele se deparou com o poder dos placebos quando atua- cos e placebos. Concluiu que não havia diferença e signifi-
va como médico militar durante a Segunda Guerra. Os sol- cativa entre ambos. Resolvido o problema da homeopatia,
dados chegavam com ferimentos terríveis e dores insuportá- vejamos a acupuntura. Como relatam Singh e Ernst, a pri-
veis. Nem sempre havia morfina. Um dia, meio em desespe- meira aparição dessa técnica no Ocidente foi em fins do sé-
ro, ele decidiu injetar solução salina num paciente, sugerin- culo XVII. Mas depois que Richard Nixon normalizou as
do-lhe que era um anestésico, e, para sua surpresa, a dor ce- relações dos EUA com Pequim, a acupuntura se tornou uma
deu. A partir dali, Beecher desenvolveu um programa de es- “febre”. Caiu no gosto do Ocidente e foi chancelada por im-
tudos do efeito placebo. Uma de suas principais contribui- portantes instituições com base em trabalhos científicos (é
ções foi o artigo “O poderoso placebo”, publicado em 1955 preciso muito cuidado com eles). Numa revisão de 1979, a
e que se tornou instantaneamente um clássico. Em seu estu- Organização Mundial da Saúde (é preciso bastante cuidado
do, Beecher reanalisou resultados de 15 pesquisas que havi- com ela) afirmou que a prática era efetiva para mais de 20
am utilizado um grupo de controle que se valera de placebos doenças, incluindo sinusite, resfriado comum, bronquite, as-
e verificou que 35% dos submetidos a essa ilusão responde- ma, disenteria, artrite. Em 2003, a organização voltou à car-
ram de maneira positiva. Sua conclusão foi cortante: “Se pa- ga e publicou outro trabalho no qual avaliou 293 estudos.
cientes que participam de um estudo clínico podem melho- Disse que os efeitos da acupuntura haviam sido comprova-
rar simplesmente porque acreditam que estão recebendo u- dos para 28 doenças, de enjoos matinais a AVC. Mais ainda,
ma intervenção médica eficaz, como alguém pode ter confi- ela parecia ser efetiva para mais 63 moléstias. A OMS reco-
ança nos resultados de qualquer ensaio clínico que não utili- mendava ainda que se fizessem mais trabalhos com vistas a
ze um grupo-controle submetido a placebo?”. Desde então, descobrir se funcionaria para daltonismo, surdez, convul-
foram publicados inúmeros estudos. Singh e Ernst revelam sões e coma. Ou a panacea universalis havia sido encontra-
algumas curiosidades. Sabemos, por exemplo, que a respos- da ou havia algo estranho.
ta do placebo é na média mais intensa se ele for aplicado por
injeção do que por via oral. Duas pílulas também funcionam (Folha de S. Paulo, “Ilustríssima”, 24.08.2013)
melhor. Mais surpreendente: comprimidos verdes são supe-
riores aos de outras cores, exceto o amarelo, mas este apenas Tema redacional: Entre a Medicina alternativa e a Medici-
nos casos de depressão. Preço elevado e ser uma novidade na convencional: qual delas proporciona mais malefícios ou
também turbinam o efeito placebo, que não está limitado a benefícios a tratamentos e curas de moléstias que – não raras
remédios. Cirurgias e alguns procedimentos simulados tam- vezes – acometem os organismos antrópicos?

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