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pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou
buscar. Logo, é-se preciso criar nova demanda para manter “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque
o jogo funcionando. O resultado disso é pais e filhos angus- fingir que “está tudo bem” e que “tudo pode” significa dizer
tiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhe- ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que
cem. Assim, estão perdendo uma grande chance. Todos so- o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria
frem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais da existência. É tão ruim quanto ligar a televisão em volume
sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbri-
se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais o doméstico possa ser dito. Agora, se os pais mentiram que
rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela felicidade é um direito e seu filho merece tudo, simplesmen-
que paralisa. Quando converso com esses jovens no para- te, por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar
peito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e ris- ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espa-
cos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de ço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter
realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a nar- a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu de-
rativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é com- sejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não
plicado porque você vai ter competidores com habilidades culpar ninguém porque, eventualmente não deu certo, por-
iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que que, com certeza, vai dar errado muitas vezes. Ou transferir
se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilha- para o outro a responsabilidade pela sua desistência. Crescer
do de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna me-
com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas nor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é me-
é nesse movimento que a gente vira gente grande. Seria mui- lhor não perder tempo se sentindo injustiçado, pois, um dia,
to bacana que pais de hoje entendessem que tão importante ela acaba.
quanto boa escola, curso de línguas ou IPad, é dizer de vez
em quando: “Se vira, meu filho; você sempre poderá contar (Época, “Eliane Brum”, 11.07.2011)
comigo, mas essa briga é sua”. Assim como sentar para jan-
tar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou
Conflito de gerações ter as informações de que precisa para ser uma mãe melhor?
Apenas 4% delas! Por que será? Eu tenho duas hipóteses. A
Rosely Sayão primeira é que o conflito de gerações subiu um degrau: se
antes estava localizado entre os adolescentes e os adultos,
Em uma pesquisa sobre a percepção da sociedade so- hoje ele foi parar na relação dos adultos com os mais velhos.
bre a primeira infância, realizada por iniciativa da Fundação Pode observar: muitos pais de adolescentes não querem sa-
Maria Cecília Souto Vidigal, respostas a duas questões me ber de conflitos com os filhos porque se sentem e se com-
chamaram a atenção. A primeira investigou o que a popula- portam de maneira tão jovem quanto eles. Há pais que aju-
ção, de modo geral, considera importante para o desenvolvi- dam os filhos a falsificar documentos para frequentar locais
mento da criança de zero a três anos; a segunda buscou saber proibidos para menores de 18 anos, frequentam as mesmas
– da mãe – a quem ela recorre para obter as informações que baladas que os filhos, dão festas em casa – e participam de-
considera necessárias para cuidar bem de seu filho com até las – regadas a bebidas alcoólicas para os filhos e seus cole-
três anos e com quem ela esclarece as dúvidas que surgem gas, se vestem do mesmo modo e não negam muitos dos pe-
na lida com a criança. Em tempos de medicalização da vida, didos que recebem para não parecerem “caretas”. Minha se-
em que usamos lógica médica para atender e entender ques- gunda hipótese é a de que a geração de adultos que hoje tem
tões das mais diversas ordens que as crianças – e não apenas filhos (crianças ou adolescentes) recusa, às vezes agressiva-
elas – nos apresentam, não é difícil imaginar que, para am- mente, toda a experiência de seus ascendentes. É como se
bas as perguntas, tanto a população quanto as mães prioriza- seus pais nada soubessem a respeito de como cuidar e edu-
ram a especialidade médica. Para a primeira pergunta, levar car os mais novos, ou se o conhecimento que têm, acumula-
a criança regularmente ao pediatra e dar vacinas necessárias do durante a vida, para nada mais servisse. Isso tem conse-
foi o item considerado mais importante para o desenvolvi- quências bem mais sérias do que os jovens pais imaginam.
mento da criança por 51% da população. Quanto à segunda Primeiramente, porque, ao recusar a ajuda de seus pais e so-
pergunta, 71% das mães recorrem ao pediatra quando têm gros, eles ensinam aos próprios filhos a fazer a mesma coisa.
qualquer tipo de dúvida em relação ao filho, mesmo que ela Como uma criança ou jovem vai confiar em seus pais, se es-
não tenha relação alguma com o aparato neuroanatomofisi- tes não confiam nos deles? Negar aos avós de seus filhos a
ológico. Sabe, caro leitor, qual a porcentagem de mães que possibilidade de interferir nos cuidados e na educação de
procura parentes e família para esclarecer suas dúvidas e ob- seus netos é um ato quase suicida: é mostrar aos filhos que
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os pais não têm condições de interferir nas vidas filiais. Já final do processo ficam com a mãe, a empregada ou outra
sabemos que “o mundo é dos jovens” e que juventude não pessoa. Quem tem filhos ouve com frequência a frase “Mãe,
se trata mais de idade, e sim de estilo de vida. É por isso que me traz a toalha?”, separa as roupas que o filho usará depois
crianças e velhos são os excluídos. Portanto, nada faz mais do banho, coloca a toalha para secar e as roupas sujas em
sentido do que uma iniciativa que acontece na cidade de Se- seu devido lugar e... Estamos criando uma geração que não
attle, nos EUA: creche e asilo de idosos no mesmo local. se dá conta de que precisa assumir o processo como um to-
do, ou que toma a parte pelo todo. Volto ao exemplo da a-
(Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 23.06.2015) genda, porque quase todos nós a usamos. De que adianta a-
notar compromissos se não os verificamos depois? De nada,
não é? Pois assim tem sido com os mais novos. E esse estilo
de tomar a parte pelo todo não está circunscrito às responsa-
bilidades: está em tudo, inclusive no lazer e na diversão. Ir
a uma festa de aniversário para eles significa apenas e exata-
mente ir à festa. Providenciar presentes – quando for o caso
–, pagar por eles, pensar na roupa que irá ser usada, no meio
de transporte etc.? São tarefas da mãe, é claro! Mesmo aos
16, 17 anos. Já ouvi muita reclamação de empresários, dire-
tores e gerentes sobre funcionários mais jovens que deixam
de cumprir muitas das responsabilidades exatamente por is-
to: falta de clareza pessoal do processo ao qual seu trabalho
está integrado. Em geral cumprem o que acham que lhes ca-
be – o equivalente a tomar banho, ir à festa etc.– e dão sua
tarefa por terminada. Você percebe, leitor, a relação entre
os exemplos citados e o comportamento no trabalho? Somos
nós que temos ensinado isso a eles, desde muito cedo. Pode-
mos e devemos ensinar-lhes de modo diferente.
Contardo Calligaris
Lição incompleta Um casal de amigos, que eu não via havia anos, fez
questão de que eu me encontrasse com o filho deles, que co-
Rosely Sayão nheci quando ele era criança e, agora, é um adolescente um
pouco caricatural. Ricky se opõe a quase tudo, direta ou in-
Visitei uma amiga que estava com a neta de nove a- diretamente. Combinam que ele deverá voltar às 23h? Ricky
nos e que recebera da filha, mãe da menina, a incumbência volta de madrugada. Perguntam se ele fez as lições de casa?
de orientar a garota para que ela fizesse todas as tarefas e os Ricky mente que “sim”. Nada dramático, porém a lista das
estudos escolares do dia seguinte durante o período em que queixas é infinita: qualquer ocasião é boa para Ricky com-
ficaria na casa da avó. Solicitada a colaborar, sentei com a prar uma briga com os pais. Será que a desobediência siste-
garota para ajudá-la a se organizar nos estudos. Perguntei o mática de Ricky é um transtorno? Os pais são tentados por
que ela tinha de fazer, e a resposta foi: “Ah, não sei; está tu- essa ideia, mas fogem dela. Afinal, eles mesmos valorizam
do na agenda. Pode ver lá”. Pedi para que ela fizesse isso e a desobediência do filho: o que mais querem é que Ricky se
soube, então, que ela nunca via a agenda, porque era a mãe torne autônomo um dia, e não há como ser autônomo sem
que olhava e dizia a ela o que fazer. “Para que serve sua a- ser rebelde, não é? Argumento final: se eles mesmos não
genda escolar?”, perguntei. “Para minha mãe saber o que eu soubessem desobedecer, se não gostassem de dizer “não”,
preciso fazer, para ela escrever e ler os recados da escola e nunca teriam sido militantes, ativistas, aventureiros. Em su-
para ela saber quando tenho provas. E para eu copiar o que ma, os pais se perguntam se Ricky precisa de uma terapia,
a professora manda”. Muitas escolas usam a agenda com a mas a própria ideia de “curar” a desobediência de Ricky lhes
finalidade de informar aos pais sobre o andamento da vida parece coisa de regime totalitário em que opositor seria con-
escolar do filho, para que eles se responsabilizem por ela. O siderado “doente mental”. Tenho duas perguntas: será que a
problema é que alunos, independentemente da idade, pouco liberdade precisa ser a liberdade de desobedecer? Ou será
se importam com a agenda, já que logo percebem que ela é que, às vezes, a necessidade de desobedecer pode ser uma
um elo de comunicação entre a escola e a sua família. O uso forma de servidão? Ricky parece tão preocupado em afirmar
– ou o não uso – da agenda pelos estudantes é apenas um e- abstratamente sua desobediência que não sei se lhe sobra o
xemplo de como as escolas e as famílias não têm percebido tempo para fazer algo interessante com a liberdade que, su-
a lição que têm deixado de ensinar aos mais novos, relacio- postamente, ele conquistou. Explico. É normal que alguém
nada ao entendimento do que vem a ser um processo. Pense desobedeça quando quer tomar um caminho que lhe está
em uma criança ou em um adolescente que você conheça, sendo barrado. Mas é curioso que alguém deixe de fazer o
caro leitor, em uma situação bem corriqueira: tomar banho. que gosta só para poder desobedecer. Por exemplo, Ricky
Você acha que eles sabem que tomar banho é um processo quer passar o dia na pista de skate, a mãe pede que ele use
que tem um começo, um meio e um fim? Não! A maioria gorro (olhe bem: não capacete, que poderia parecer infantil
pensa que tomar banho é o ato de tomar banho. O início e o – só gorro), Ricky prefere não usar gorro para passar o dia
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como ele quer. A desobediência é um transtorno quando de- -saídos da Segunda Guerra e da luta antifascista) não se irri-
sobedecer se torna mais importante do que o próprio com- tavam nem se indignavam facilmente. Para contrariar, real-
portamento em nome do qual alguém desobedece. Ou seja, mente, nossos pais, seria preciso que a gente se declarasse
quando o que importa não é ir para a pista de skate, o que fascista nostálgico. E disso ninguém tinha a menor vontade.
importa é não usar o gorro e irritar a mãe. A neurose é isto: Segundo (e fato curioso), éramos todos, sem exceção, exce-
a obrigação irresistível de repetir experiências afetivas anti- lentes alunos. Todos passamos com médias acima de oito
gas e familiares. Isso, a qualquer custo – inclusive, renunci- no exame de maturidade clássica. Na universidade todos co-
ando ao que a gente deseja. Se fôssemos menos parasitados lecionávamos trinta cum laude nos exames que prestamos
por essas obrigações afetivas, seríamos provavelmente mais antes que a instituição explodisse, em maio de 1968, e o trin-
inteligentes e mais eficientes – seríamos, certamente, mais ta se tornasse uma nota “política”, de praxe para qualquer a-
livres. Ricky, em suma, não desobedece porque é um espíri- luno. Ou seja, éramos rebeldes (nós teríamos preferido dizer
to livre; ao contrário, ele perde a liberdade de passar o dia “revolucionários”, obviamente) a ponto de encarar a polícia
na pista de skate para servir a obrigação de contrariar a mãe. e a direita nas ruas; também éramos rebeldes nas nossas es-
Penso no grupinho de meus amigos mais próximos nos anos colhas concretas de vida (sexo, drogas e rock and roll). Mas
1960 – no fim do secundário e na faculdade. Tínhamos idei- não éramos rebeldes abstratos. Não éramos insubordinados.
as políticas divergentes: havia um ou dois trotskistas, alguns Simplesmente, tínhamos mais o que fazer na vida do que
comunistas do Partido Comunista ou do Manifesto, e havia brigar com nossos pais (ou quem quer que fosse) por causa
militantes de Lotta Continua. Havia até stalinistas declara- de um ou outro gorro.
dos (hoje seria bizarro, mas, na época, não o era). Um pouco
mais tarde um casal anarquista se juntou à gente. Quase nin- (Folha de S. Paulo, “Ilustrada”, 08.01.2015)
guém tinha ideias, esperanças e práticas políticas parecidas
com as de seus pais. Mas não havia como pensar que a gente
militasse e manifestasse com o propósito de indignar nossos
pais. Isso, por duas razões. Primeiro, os pais (todos recém-