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Ensaio livre sobre aproximações conceituais possíveis quanto a teoria da

Enação na busca de uma definição de campo de pesquisa

Acordo às cinco horas da manhã sobressaltada com a sensação de ter algo para
resolver importante. Reviso mentalmente minhas tarefas diárias e logo me dou conta que
o que mais me ansiava fora uma provocação advinda de um email recebido no final da
tarde do professor solicitando um ensaio livre sobre enação. Faço uma análise mais
detalhada e me dou conta que o que me aflige não é necessariamente a tarefa e ou prazo
dado, mas sim a solicitação de posicionar a teoria em relação ao objeto de pesquisa do
doutorado. Essencialmente pelo motivo de que ainda estou delimitando tal campo. A
aflição se branda quando lembro que o enunciado do exercício também nos traz a
possibilidade de ampliar nosso olhar para o cotidiano.

Vencida essa primeira impressão, começo a construir mentalmente os argumentos


quanto ao processo de conceituação contido na teoria da Enação. Novamente sinto um
certo desconforto, pois tenho a sensação de ainda ter muito que estudar para compreender
e aprender a operar tal teoria ao ponto de ficar claro para o leitor e ainda assim estar
fidedigno aos constructos teóricos elaborados pelos neurocientistas, Humberto Maturana
e Francisco Varela. Opto em introduzir o assunto com um conceito bem básico de Enação,
que define que é uma ação de dentro para fora, tendo no meio ambiente referência crucial.
Trata-se de atividade que vem de dentro, mas se estabelece com o mundo externo e tem
neste parceria decisiva (VARELA, 1997; apud. DEMO, 2004). Ou ainda, poderíamos
dizer, que o conceito de enação define a cognição como uma atividade atribuidora de
sentido, sendo um ciclo entre a percepção e a ação. Neste movimento, surge um mundo
de valores peculiar que para alguém e é sempre tomado a partir de um determinado ponto
de vista, ou seja do observador.

Ao buscarmos destrinchar tal conceito, se faz necessário, primeiramente,


contextualizá-lo no âmbito das ciências cognitivas a qual ele pertence. Essas ciências são
a cibernética, a neurociência e a programação de computadores. A visão clássica das
ciências cognitivas são fortemente influenciadas pelo surgimento da tecnologia digital.
Que basicamente entende que o conhecer seria o resultado de manipular símbolos. E o
processo de aprendizagem humano seria análogo ao processo de entradas e saídas, os
inputs e outputs informacionais que compõe a computação, formulando assim os
processos perceptivos de representação simbólica e de produção de sentido. A
computação simbólica entende que há um sujeito separado de um objeto, a teoria da
enação faz uma crítica sobre essa visão representacional. Que o sujeito faz uma
representação do objeto, o que Varela vai dizer é que o sujeito e o mundo surgem ao
mesmo tempo, um não existiria sem o outro, a concomitância de ação entre o sujeito e o
objeto instalaria um processo de co-emergência que transformaria a ambos.

No modelo clássico tinha-se como entendimento que no processo cognitivo o que


prevaleceria seria a forma tal qual um sistema computacional agiria, obedecendo um
sentido linear de aprendizagem, num sentido linear de baixo pra cima e de entradas e
saídas num processo de informação e representação. Com o avanço das neurociências,
baseados na biologia e nos estudos das redes de neurônios, outro modelo aparece como
sendo uma outra forma de explicar o processo de cognição, surge o padrão conexionista.
Que obedece mais a estrutura mais orgânica de uma rede, descentralizada e com diversas
saídas e entradas.

Então, neste modelo é recorrente comparar a mente como o computador que teria
como padrão o processamento da informação. Tendo como premissa um sujeito e um
objeto pré-existente, que mantém a centralidade no cérebro. A linguagem seria simbólica
e a aprendizagem poderia ser quantificada. Produzindo assim uma realidade objetiva e
plural, nesta visão cognitivista o corpo é limitado.

A teoria da enação entende de forma diferente essas relações, pois dá uma


importância significativa para a experiência e ao corpo. Sendo assim, ela pode ser
considerada como teoria da cognição encarnada, pois não separa o processo de
conhecimento do corpo que habita, do ser em processo no mundo, posicionando-se assim
num outro momento teórico chamado na segunda cibernética. Que vai relacionar sujeito
e objeto de maneira indistinta, nesta proposição um ao interagir com o outro se alteram
mutuamente.

O lugar do observador passa a ser uma experiência de mundo, onde ele performa
o mundo desde que está nele. A experiência de estar no mundo e a relação que se
estabelece entre ambos é uma distinção de uma unidade que se divide entre organização
e estrutura, dispondo de domínios de ação que possuem uma forma de arranjo dividido
em sistemas, objeto e relação. Podemos descrever organização como sendo a
formalização e a abstração que ao viver várias coisas parecidas alcançamos numa espécie
de agrupamento de alguma situação. O conjunto estrutura-organização é que vai dar o
sentido a elas, uma não existe sem a outra. Sendo, assim, tem-se o entendimento que não
há essência de um objeto pré-existente, o que faz este conjunto existir é a relação.

Outro conceito importante da teoria da enação é a clausura operacional que é


representada por um conjunto de relações consigo mesma, isto é, os seres autopoéticos
eles se autoproduzem numa dinâmica interna de criação. Não é um isolamento do meio,
mas uma maneira de se autoproduzir. Autopoesi é o corpo numa potência de um contexto
biológico-cultural-social. Esta teoria faz a valorização da experiência e entende que a
realidade ela é múltipla. E vai nos fazer pensar que a vivemos as coisas no momento que
as vivemos, sendo assim tudo vai depender dos acoplamentos estruturais. Tal assertiva
teórica pode ser traduzida pelo aforismo: VIVER = FAZER = CONHECER. É um
conjunto de operações que precisam uns dos outros para continuar existindo, nos fazendo
concluir que o tipo de relações estabelecidas faz modificações nos sujeitos e objetos, a
partir do histórico de interações mútuas que se dão ao longo do tempo.

O acoplamento estrutural é descrito por ser um conjunto de perturbações mutuas


onde o ser vivo tem relação com outro ser vivo e com o meio. Essa situação tem haver
com o determinismo estrutural onde toda a nossa possibilidade de interação com o meio
depende da nossa estrutura. Se o meio mexe na estrutura muda a vida, a unidade pessoa-
objeto possibilita um tipo de interação da estrutura com o meio.
Segundo Varela a produção de sentido tem como objetivo a autoregulação, a
linguagem e a produção de novas células. Neste processo a linguagem tem como sentido
a coordenação de coordenação de ações. Podemos dizer que a linguagem seria um sistema
que coordena um sistema. Essa dinâmica de co-produção e co-emergência tem
significação na relação entre a subjetividade e objetividade, esses conceitos advem dos
preceitos budistas que entendem que as dimensões do ser vivo tanto a biológica, cultural,
social e espirituais tem apenas validade na experiência, sem pre-determinação e sim co-
existência.

Para a enação o que importa é a experiência de estar no mundo, sobrepondo-se a


um sentido de competição. Essa premissa nasce da conjunção biológica, filosófica e
religiosa de Maturana e Varela que buscam responder uma pergunta simples, afinal o que
é a vida¿ A resposta teórica vem da articulação feita sob a luz da fenomenologia que seria
a descrição filosófica dos fenômenos, em sua natureza aparente e ilusória, manifestados
na experiência aos sentidos humanos e na consciência imediata. O budismo sistema
filosófico e religioso indiano fundado por Siddharta Gautama (563-483 a.C.), o Buda, que parte
da constatação do sofrimento como a condição fundamental de toda existência e afirma a
possibilidade de superá-lo através da obtenção de um estado de bem-aventurança integral,
o nirvana. Lembrando que o budismo é uma religião que não professa a existência de nenhum
deus. E a biologia, área de origem dos pesquisadores que se debruçaram mais especificamente na
neurociência. A conjunção destes saberes deu origem a uma Matriz Biológica do Amor, que é a
ética sob a perspectiva da enação, sob essa matriz a ética é o que é desejável para se viver
socialmente, reconhecendo o outro como legítimo outro, estabelecendo em conjunto qual seria a
experiência mais interessante para se viver no coletivo.

“Em nossa cultura patriarcal, o emocionar fundamental em relação à noção de progresso


é próprio dos desejos de apropriação ou autoridade, implícitos nas conversações de hierarquia,
crescimento, controle e subordinação. Todavia, o controle dos outros, a obediência sob as relações
hierárquicas que se mantêm pela coerção e o crescimento como uma acumulação de bem-estar
pela apropriação dos meios de vida dos outros, são ações que mantêm a exclusão e geram miséria
material, depredação ambiental e sofrimento. Isso acontece porque tais circunstâncias são
dinâmicas de negação recorrente dos fundamentos matrísticos de nossa infância ocidental e, mais
profundamente, de nossa constituição como seres humanos. São, pois, intrinsecamente negadoras
do respeito mútuo e do autorrespeito constitutivos do viver democrático. Além do mais, essa
maneira de viver, no contínuo jogo da competição e da demanda de estabilidade, faz da educação
um instrumento de criação de meninos e meninas patriarcais. Eles viverão em contradição
emocional, pois o farão tanto na contínua negação da democracia como modo de coexistência
humana, quanto na permanente nostalgia da recuperação de seus fundamentos matrísticos”.
Humberto Maturana (1993) em Conversações matrísticas e patriarcais.

Com este fragmento de texto introduzo o meu pensamento quanto ao exercício de


posicionar o meu objeto de pesquisa em relação a teoria de Maturana. Como referi no início deste
ensaio ainda não tenho definido bem o problema de pesquisa, apenas tenho a ideia central
defendida na ocasião da seleção para o doutorado em informática na educação. A proposta é
tensionar filosoficamente o conceito advindo da ciência da computação de prototipagem que seria
um termo usado para se referir a tecnologias usadas para fabricar objetos físicos a partir de fontes
de dados criados em sistema de projetos computacionais, tal conceito será problematizado em
relação de produção de um outro sujeito político que emerge a partir do uso da tecnologia,
principalmente quanto ao uso das redes sociais.

Neste sentido pude fazer muitas relações quantos as leituras que venho fazendo no
doutorado que apontam que as modificações que a tecnologia produz no meio social seria de co-
emergencia. Seria além, do sentido de que os homens fazem a tecnologia e a tecnologia fazem os
homens, conforme já preconizava Marshall Mcluhan, pioneiro dos estudos culturais e no estudo
filosófico das transformações sociais provocadas pela revolução tecnológica do computador e das
telecomunicações. Segundo a enação o processo seria mais fluxional, onde a modificação se dá
na relação. Portanto estaríamos num processo constante de transformação do sujeito e do mundo.

Como estamos imersos num mundo repleto de tecnologia, poderíamos pensar que existe
uma co-emergencia entre o sujeito e o objeto que ao se acoplarem produzem novos jeitos de
existir. Lembrando assim uma hipótese levantada por Pierre Lewi, que a tecnologia possibilitaria
a comunicação de todos com todos de maneira horizontal, levando assim uma construção de um
pensamento coletivo. E assim a produção de uma ciberdemocracia, onde os sujeitos poderiam
tomar a decisão de forma em rede. Portanto poderíamos, de maneira inicial, apontar que ao estar
conectado em rede faria com que o sujeito tomasse decisões baseadas nas relações que ele
estabelece com o meio, transformando-o assim de maneira política, a si e ao mundo. Bastando
assim, estabelecer a comunicação através do meio tecnológico para influenciar na construção de
novos mundos. Porém o que observamos no momento atual, a experiência não pode ficar somente
no campo da linguagem, que seria a coordenação de ações, a experiência para ter uma ação na
linha da Matriz Biológica do Amor, teria que ser vivida de forma encarnada e na coletividade.

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