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IHU

ON-LINE
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 475 | Ano XV
19/10/2015

ISSN 1981-8769
Hölderlin
(impresso)
ISSN 1981-8793
(online)
O trágico na noite da
Modernidade

Françoise Dastur: A sofisticada poesia de Hölderlin

Clademir Araldi: Hölderlin e Nietzsche e o trágico como


denominador comum
Kathrin Rosenfield: A exploração do conhecimento racional
até seu limite

Antônio Albano de Freitas: Cesar Kuzma: Tshepo


A perversa ideologia Olhar e discernir, Madlingozi:
meritocrática na confrontar e A “meia verdade”
contemporaneidade responder africana
Editorial

Hölderlin. O trágico na
noite da Modernidade

A
obra e a vida de um dos maiores manha. “Essa repercussão e ressonância
nomes da literatura alemã do não se restringem à esfera literária. Há
século XVIII, Johann Christian um compromisso profundo – e admiti-
Friedrich Hölderlin é tema de debate do – com Hölderlin por parte de Walter
na revista IHU On-Line desta semana. Benjamin, de Martin Heidegger e Theo-
Nascido às margens do Rio Neckar, em dor W. Adorno”, ressalta.
Tübingen, na Alemanha, em 1770, numa Também podem ser lidas as seguintes
paisagem bucólica na qual viveu seus entrevistas:
últimos 36 anos recluso em uma torre, - A “meia verdade” africana é a te-
Hölderlin morreu imerso na loucura. mática abordada pelo sul-africano A IHU On-Line é a revista do Instituto
Além de grandes pensadores como Tshepo Madlingozi, da Universidade de Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi-
Hegel e Musil, entre outros, ele foi o Pretória, África do Sul, onde também cação pode ser acessada às segundas-feiras
poeta preferido de Friedrich Nietzsche. coordena um módulo do Mestrado em no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço
Seus textos influenciaram de modo de- Direitos Humanos e Democratização na www.ihuonline.unisinos.br.
cisivo a célebre obra do filósofo Assim África;
falou Zaratustra (São Paulo: Companhia - Xabier Etxeberria, professor ca- A versão impressa circula às terças-feiras, a
das Letras, 2011), que, a exemplo de tedrático emérito de Ética da Univer- partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo
Hipérion (São Paulo: Nova Alexandria, sidade de Deusto, Espanha, analisa a da IHU On-Line é copyleft.
2003), texto escrito por Hölderlin, é questão da justiça do castigo e o perdão Diretor de Redação
uma obra poética em prosa. da transformação, fazendo uma ampla Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br)
Segundo o filósofo Clademir Araldi, abordagem sobre as nuances dos deba-
coordenador do Programa de Pós-Gra- tes em torno do perdão; Jornalistas
duação em Filosofia da Universidade - Tiago da Silva César, professor do João Vitor Santos - MTB 13.051/RS
Federal de Pelotas – UFPel, ambos os Centro de Teologia e Ciências Humanas (joaovs@unisinos.br)
Gênios, o Filosófico e o Poético, nutriam da Universidade Católica de Pernam- Leslie Chaves – MTB 12.415/RS
buco – Unicap, analisa a obra A ilusão (leslies@unisinos.br)
2 um apreço especial por Sófocles. Assim,
o trágico pode ser considerado um de- panóptica: Encarcerar e punir nas im- Márcia Junges - MTB 9.447/RS
nominador comum, observa. periais cadeias da Província de São Pe- (mjunges@unisinos.br)
“Hölderlin nos permitiu, sobretudo, dro (1850-1888) (São Leopoldo: Oikos/ Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS
entrever uma possível reconciliação do Editora Unisinos, 2015), de sua autoria; (prfachin@unisinos.br)
homem com sua condição finita. Aliás, - Antônio Albano de Freitas, dou- Ricardo Machado - MTB 15.598/RS
isso repercute, um pouco mais tarde, na torando em Economia na Universidade (ricardom@unisinos.br)
ideia de amor fati, de Nietzsche”, afir- Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, re-
Revisão
ma Françoise Dastur, professora emé- flete sobre o “Mérito e herança na es-
Carla Bigliardi
rita de Filosofia, vinculada aos Arquivos trutura das desigualdades brasileiras”,
Husserl de Paris, na École Normale Su- tema que abordará no Ciclo de Estudos Projeto Gráfico
périeure – ENS. O Capital no Século XXI – uma discussão Ricardo Machado
Joãosinho Beckenkamp, professor sobre a desigualdade no Brasil;
na Universidade Federal de Minas Ge- - Outro conferencista do mesmo Editoração
rais – UFMG, menciona que a influência evento que debate a obra O capital Rafael Tarcísio Forneck
de Schiller na obra de Hölderlin é de- do século XXI de Thomas Piketty, Fla- Atualização diária do sítio
cisiva em seus escritos, e a mais nobre vio Comim, professor da Universidade Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
possível, “aquela em que um poeta e Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner,
pensador lança em outro as sementes aborda o tema “Políticas públicas de re- Matheus Freitas e Nahiene Machado.
de um novo universo poético”. gulação do capital e possibilidades para
Marcia Sá Cavalcante Schuback, fi- um Estado social no Brasil”. Colaboração
lósofa e tradutora de obras filosóficas Dois artigos completam a edição: Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesqui-
e poéticas de língua alemã e docente - Cezar Kusma, professor do Depar- sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de
na Södertörn University, em Estocolmo, tamento de Teologia da PUC-Rio, reflete Curitiba-PR.
aponta a centralidade do Hipérion como sobre o andamento do Sínodo dos Bispos
chave para a poética de Hölderlin. A ele sobre a Família que se realiza em Roma
se atribui ter transformado a tragédia e que tem sido amplamente debatido
ultrapassando sua concepção moderna. nas Notícias do Dia atualizadas diaria-
A exploração do conhecimento racio- mente na página do IHU.
nal até seu limite é uma das abordagens - “Os filhos de todas as bombas” é
da entrevista de Kathrin Rosenfield, da o título do artigo de Camila Alves da Instituto Humanitas Unisinos - IHU
Universidade Federal do Rio Grande do Costa, pesquisadora do Observatório Av. Unisinos, 950
Sul – UFRGS. Para ela, as ideias “desa- das Nacionalidades/UECE e membro São Leopoldo / RS
fiadoras” de Hölderlin influenciaram do Comitê Editorial da revista Tensões CEP: 93022-000
Hegel e Musil. Mundiais.
O amplo alcance da obra de Hölder- Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
A todas e a todos uma boa leitura e
lin foi um dos aspectos ressaltados por e-mail: humanitas@unisinos.br
uma ótima semana!
Johann Kreuzer, decano da Faculdade Diretor: Inácio Neutzling
de Ciências Humanas e Sociais e diretor Imagem da capa: Reprodução do Obra Der Gerente Administrativo: Jacinto
do Instituto de Filosofia da Universidade Wanderer über dem Nebelmeer - Kunsthalle Schneider (jacintos@unisinos.br)
Carl von Ossietzky Oldenburg, na Ale- in Hamburg, de Caspar David Friedrich, 1818

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


Sumário
Destaques da Semana
6 Destaques On-Line
8 Linha do Tempo
10 Tshepo Madlingozi: A “meia verdade” africana
14 Xabier Etxeberria: A justiça do castigo e o perdão da transformação
23 Tiago da Silva Cesar: A ilusão panóptica: Encarcerar e punir nas imperiais cadeias da Província de São
Pedro (1850-1888)
29 Eventos - Joviano Mayer: Advocacia popular, uma manifestação do Comum
31 Eventos - Vivenciar a Laudato Si’ em suas diversas perspectivas

Tema de Capa
36 Biografia: Johann Christian Friedrich Hölderlin
38 Françoise Dastur: A sofisticada poesia de Hölderlin
46 Clademir Araldi: Hölderlin e Nietzsche e o trágico como denominador comum
52 Joãosinho Beckenkamp: Schiller e Hölderlin: “as sementes de um novo universo poético” 3
57 Márcia Schuback: O Hipérion como chave para a poética de Hölderlin
63 Kathrin Rosenfield: A exploração do conhecimento racional até seu limite
67 Johann Kreuzer: O Hölderlin que transcende a literatura

IHU em Revista
72 Agenda de Eventos
73 Cesar Kuzma: Olhar e discernir, confrontar e responder: questões urgentes no Sínodo dos Bispos sobre as
Famílias
78 Antônio Albano de Freitas: A perversa ideologia meritocrática na contemporaneidade
81 Flavio Comim: A politização do combate à pobreza e o precipício da desigualdade
84 #Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos: Os filhos de todas as bombas
86 Publicações
87 Retrovisor

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


IHU
ON-LINE

Destaques da
Semana
DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Destaques On-Line
Entrevistas publicadas entre os dias 12-10-2015 e 16-10-2015 no sítio do IHU.

O Direito que emerge do espaço público


Entrevista com José Geraldo de Sousa Junior, graduado em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e
doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. É
jurista, pesquisador reconhecido como um dos autores do projeto O Direito Achado
na Rua, professor da UnB desde 1985 e membro do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil – OAB.
Publicada em 16-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1ZI4EBI

O Direito Achado na Rua é “uma concepção de Direito que emerge transforma-


dora dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades rein-
ventadas, que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
cidadania e participação democrática para a transformação social”, explica José
Geraldo de Sousa Junior à IHU On-Line. Organizador do livro recém-lançado, O
6 Direito Achado na Rua – concepção e prática (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015), o ex-reitor da Universidade de
Brasília – UnB pontua que “o importante a considerar” na perspectiva do Direito Achado na Rua é que ele se re-
fere “à atitude de reconhecimento que valoriza o protagonismo instituinte da cidadania ativa e dos movimentos
sociais no processo legítimo de criação autônoma de direitos”.

COP-21 e a tentativa de definir metas de curto prazo


Entrevista com Pedro Telles, coordenador da Campanha de Clima e Energia do
Greenpeace e mestre em Estudos do Desenvolvimento, pelo Institute of Develop-
ment Studies.
Publicada em 15-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1NKgTtC

As metas brasileiras para a COP-21, que será realizada em dezembro, em Paris,


poderiam ter sido mais ambiciosas, “porque em 2012 o Brasil já tinha reduzido
as emissões em 41%, e a meta agora é reduzir as emissões em 43% até 2030”,
diz Pedro Telles à IHU On-Line. Na entrevista, concedida por telefone, ele expli-
ca que o “ponto mais preocupante” da proposta brasileira diz respeito às metas
para combater o desmatamento ilegal, a principal fonte das emissões brasileiras,
responsável por 1/3 das emissões. Na avaliação dele, as metas demonstram uma Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
preocupação com o desmatamento na Amazônia, nos próximos 15 anos, mas nada
informam sobre o desmatamento em outros biomas, em que a prática aumenta.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Crises e um desenvolvimentismo que não faz jus ao


nome: os impasses brasileiros
Entrevista com Alexandre de Freitas Barbosa, graduado em Ciências Econômicas
pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp (1991), mestre em História
Econômica pela Universidade de São Paulo – USP (1997) e doutor em Economia
Aplicada pela Unicamp (2003), com pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento – CEBRAP. Atualmente é professor do Instituto de Estudos Brasilei-
ros – IEB e participante do Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil-África, ambos na USP.
Publicada em 14-10-2015
Disponível em http://bit.ly/1PvTvPO

“Não queria falar sobre economia; estou desestimulado com o modo como vem
sendo realizado o debate no país”, justificou o economista Alexandre Freitas Bar-
Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br
bosa, antes de iniciar a entrevista, concedida à IHU On-Line pessoalmente, quando
esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, participando do Ciclo de Estudos O
Capital no Século XXI – uma discussão sobre a desigualdade no Brasil. Na avaliação de Barbosa, hoje o debate
sobre os rumos econômicos do país é dividido por dois grupos: um que defende acirradamente o ajuste fiscal
e justifica que o Estado esgotou sua capacidade de investimento, e outro que é radicalmente contra o ajuste
fiscal e justifica que a redução dos juros é suficiente para pôr as contas públicas em ordem e manter os gastos
do Estado. “Então, na verdade, o que existe é um não debate”, adverte.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Linha do Tempo
A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, entre os dias 12-10-2015 e 16-10-2015, relacionadas a assuntos
que tiveram repercussão ao longo da semana

1% da população Guarani e Kaiowá – O ataque contra


mundial concentra Os condenados desta Francisco: a carta dos
metade de toda a terra 13, mas não só. Artigo
riqueza do planeta A omissão do Estado brasileiro de Massimo Faggioli
em cumprir os direitos indígenas
2015 será lembrado como o estabelecidos na Constituição O Papa Francisco teve que li-
primeiro ano da série histórica Federal em 1988, que previu a dar com os golpistas de verdade
no qual a riqueza de 1% da po- homologação e a demarcação na Argentina, e é de se duvidar
das terras indígenas, e o atraso
pulação mundial alcançou a me- que ele se deixe intimidar por
na identificação destas terras
tade do valor total de ativos. Em alguns cardeais. O verdadeiro
permite que a violência se per-
outras palavras: 1% da população petue e se converta em genocí- problema é que Francisco rea-
mundial, aqueles que têm um dio do povo Guarani e Kaiowá. O briu, sobre muitas questões de
patrimônio avaliado em 760.000 comentário é de Neimar Macha- disciplina e de vida da Igreja,
8 dólares (2,96 milhões de reais), do de Sousa, em artigo publicado um debate que os signatários
pelo portal do Cimi, 15-10-2015.
possuem tanto dinheiro líquido e da carta consideravam encer-
investido quanto o 99% restante Confira um trecho do artigo. rado para sempre. A análise é
da população mundial. A lista de violações de direitos do historiador italiano Massimo
dos povos indígenas no estado de Faggioli. O artigo foi publica-
A reportagem é de Ignacio
Mato Grosso do Sul é tão grave
do no sítio L’HuffingtonPost.it,
Fariza e publicada por El País, e extensa que pode ser classi-
13-10-2015.
14-10-2015. ficada em diversas categorias:
insegurança alimentar; remo- Confira um trecho.
Essa enorme disparidade entre
ção dos territórios tradicionais
privilegiados e o resto da Huma- para as reservas indígenas; vio- O caso da carta dos cardeais
nidade, longe de diminuir, con- lência contra a mulher nas áre- para Francisco, divulgada na
tinua aumentando desde o início as de retomada e nas reservas, segunda-feira, 12 de outubro de
da Grande Recessão, em 2008. criadas pelo Governo Brasileiro; 2015, deve ser considerado por
contaminação por agrotóxicos;
A estatística do Credit Suisse, aquilo que é. Não é uma questão
intolerância religiosa; assassina-
uma das mais confiáveis, deixa to; trabalho escravo; exploração de mérito ou de método sobre
somente uma leitura possível: os sexual; crianças fora da escola e os trabalhos do Sínodo, mas um
ricos sairão da crise sendo mais sem atendimento médico, isto ataque à legitimidade da dire-
ricos, tanto em termos absolutos num contexto demográfico em ção imprimida à Igreja pelo Papa
que 45% dos Guarani e Kaiowá,
como relativos, e os pobres, re- Francisco e, em seguida, um ata-
neste estado, têm menos de 17
lativamente mais pobres. que contra o próprio papa.
anos de idade.
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ly/1ZIhJLc ly/1GK69Uh ly/1MHqDmZ

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Castells: as grandes E se o “egoísmo Por Dilma, Lula


mudanças apenas humano” for um mito aciona PT em busca
começaram de acordo para salvar
interesseiro?
Num texto traduzido por “Ou-
mandato de Cunha
tras Palavras”, e que pareceu Novas pesquisas sugerem: nos-
O Palácio do Planalto e o ex-
para alguns espantoso, o sociólo- sa espécie é majoritariamente
presidente Luiz Inácio Lula da
go Immanuel Wallerstein susten- colaborativa, altruísta e solidá-
Silva intensificaram ontem as
tou, há dias: vivemos, em plano
ria. Ideia da ganância coletiva articulações para salvar o man-
global, um giro – ainda que leve
– à esquerda. Na entrevista a pode ser projeção ideológica dos dato do presidente da Câmara,

seguir, este pensamento é com- que concentram poder e capital. Eduardo Cunha (PMDB-RJ), no
plementado por outro sociólogo. O artigo é de George Monbiot, Conselho de Ética. A moeda de
O catalão Manuel Castells diz troca nesse jogo é a garantia 9
jornalista e ambientalista inglês,
que é cedo demais para chorar de que Cunha não avançará ne-
publicado por Outras Palavras,
a suposta “morte” da série de nhuma casa no tabuleiro rumo
grandes rebeliões iniciadas em 14-10-2015.
à abertura do processo de im-
2011: Primaveras Árabes, Indig-
Confira um trecho. peachment da presidente Dilma
nados (Espanha), Occupy (EUA),
Rousseff. A reportagem é de Vera
Parque Gezy (Turquia), Jorna- Você se debate contra os sinais
Rosa e Tânia Monteiro, publicada
das de Junho (Brasil) e outras. A
de indiferença e egoísmo huma- no jornal O Estado de S. Paulo,
entrevista é de Alex Rodriguez,
nos? Sente-se oprimido pela sen- 15-10-2015.
publicada por Outras Palavras,
13-10-2015. sação de que, enquanto se preo-
Lula desembarcou ontem em
Confira um trecho. cupa com o mundo, ao contrário Brasília e vai se reunir hoje no-
de muitos outros? Julga que a vamente com Dilma. O ex-presi-
Estamos começando uma nova
era? indiferença de pessoas iguais a dente quer que deputados do PT
fechem acordo com outros par-
Em termos tecnológicos, eco- você está esvaziando o que resta
tidos da base aliada para barrar
nômicos e culturais, começamos da civilização e da vida na Terra?
a investigação contra Cunha, no
faz tempo. Agora iniciamos uma Se assim é, você não está sozi-
nova era em termos políticos e Conselho de Ética, por quebra de
nho. Mas também não está certo.
institucionais. decoro parlamentar.

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ly/1QAc9V1 ly/1QAcuHa ly/1NLWgx0

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ENTREVISTA

A “meia verdade” africana


Tshepo Madlingozi critica o trabalho das comissões da verdade na África do Sul.
Para ele, não houve verdadeira restauração. Como na democracia africana, há
verdade somente para elite dominante
Por Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Hedy Hofmann

A história do continente africa-


no, em especial da África do
Sul, é marcada pela opressão
e violência contra o povo negro. Com
o passar dos anos, e instalação das
rar a meta da paz, é priorizada a re-
conciliação de elite entre os políticos.
A meta de alcançar estabilidade triunfa
sobre a meta de alcançar uma transfor-
mação radical da sociedade, sob forma
comissões – que no Brasil, em função de redistribuição material”, destaca ao
da comissão local, ficaram conhecidas explicar o fracasso da justiça restaura-
como comissões da verdade –, imagina- tiva na África.
-se que o passado já tenha sido resga-
tado e que hoje, depois do apartheid, Tshepo Madlingozi possui graduação
viva-se uma democracia plena. Pura e mestrado em Direito pela University
ilusão. Tshepo Madlingozi, coordenador of Pretoria, na África do Sul, onde tam-
do Mestrado em Direito da University of bém coordena um módulo do Mestrado
10 Pretoria, na África do Sul, destaca que em Direito (Direitos Humanos e Demo-
hoje se vive, na verdade, uma pseudo- cratização na África). Além da área dos
democracia. “Democracia da burgue- Direitos Humanos, tem experiência em
sia, uma democracia desnudada, onde Direito e Movimentos Sociais e Direito
a maioria é pobre e excluída de estru- e Transformação. Também é integran-
turas formais da tomada de decisões”, te do comitê editorial do Jornal do
destaca. Direito African Human Rights (Direitos
Essa realidade é mais bem compre- Humanos na África) e membro do comi-
endida a partir do relato que Madlingo- tê editorial da Imprensa do Direito da
zi faz sobre a atuação da comissão da University of Pretoria (África do Sul).
verdade africana. Para ele, a comissão É membro fundador do Conselho para
não fez uma restauração do passado o Avanço da Constituição Sul-Africana.
e tampouco reconheceu as vítimas. Madlingozi participou do III Colóquio
“Dado o fato de que a África do Sul é do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
composta de comunidades polarizadas e o VI Colóquio da Cátedra Unes-
com memórias polarizadas e envene- co – Unisinos de Direitos Humanos e
nadas, o que a comissão fez não aju- violência, governo e governança – A
dou a África do Sul a transcender a sua justiça, a verdade e a memória na
história fragmentada. Nenhuma verda- perspectiva das vítimas. A narrativa
de foi emitida” explica em entrevista das testemunhas, estatuto epistêmi-
concedida por e-mail à IHU On-Line. co, ético e político. O evento, reali-
E o país – e até o continente – segue zado em setembro de 2015, foi promo-
sem encarar de frente seu passado,
vido pelo Instituto Humanitas Unisinos
constituindo apenas “meias verdades”
– IHU, Cátedra Unesco – Unisinos de Di-
que, para o professor, servem para uma
reitos Humanos e violência, governo e
pequena elite branca – ou menor ain-
governança, Filosofia – Unisinos e Pro-
da negra – que ignora a história. Assim,
gramas de Pós-Graduação em Direito e
não se consegue propor uma evolução
em Saúde Coletiva – Unisinos.
de uma sociedade congregando e reco-
nhecendo seu povo. “A fim de assegu- Confira a entrevista.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

ção. Falo disso no contexto dos


colonialismos dos que se assenta-
ram na terra, tais como aquele que
tínhamos na África do Sul. O foco
A maioria das comissões não dessas comissões é alcançar a paz
e a estabilidade, tendo reconcilia-
presta serviços psicossociais ade- ção como uma meta secundária e
complementar. Investe-se energia
quados às vítimas e o resultado excessiva em paz e estabilidade, a
é que retraumatizam as vítimas tal ponto que o trabalho de recon-
ciliação é muito limitado. A fim de
assegurar a meta da paz, é priori-
IHU On-Line – Quais são as prin- cados de apartheid – inclusive a zada a reconciliação de elite entre
cipais constatações e descobertas polícia e os serviços militares, o os políticos. A meta de alcançar
que as comissões da verdade rea- funcionalismo civil, bem como o estabilidade triunfa sobre a meta
lizaram sobre o regime discrimi- judiciário e a mídia. de alcançar uma transformação ra-
natório de apartheid1 na África dical da sociedade, sob forma de
do Sul? redistribuição material. Como tal,
IHU On-Line – Que período his- a reconciliação é reduzida àquela
Tshepo Madlingozi – O encargo tórico foi investigado e em que entre vítimas individuais e perpe-
da Comissão da Verdade e da Re- medida as descobertas irão aju- tradores individuais.
conciliação (TRC – Truth and Re- dar a contar uma outra história
conciliation Commission) era bas- desse país? O resultado é o sacrifício de
tante limitado. Em última análise, uma reconciliação social profunda
Tshepo Madlingozi – A TRC abran- e completa, porque beneficiários
os principais achados da comissão geu o período de 1960 a 1994. Esse
foram de que um pouco menos de do conflito (no caso da África do
foi um período extremamente limi- Sul, pessoas brancas ‘comuns’)
17 mil pessoas foram vítimas do tado e arbitrário, se lembrarmos
apartheid, e que um pouco menos são exonerados. Assim não é exato
que o apartheid começou em 1948, falar sobre reconciliação ‘nacio-
de 2 mil pessoas – a maioria do lado que o colonialismo oficial começou nal’. Reconciliação da elite e re-
do movimento de liberação – eram em 1910, quando os colonizadores conciliação individual, conforme 11
perpetradores. A TRC constatou ingleses e holandeses assinaram expliquei acima, impedem qual-
que a máquina do governo como um acordo para estabelecer a Áfri- quer processo de construção na-
um todo estava envolvida nos pe- ca do Sul (como uma “terra do ho- cional significativa. Finalmente,
mem branco”), e que a conquista não pode haver uma nova nação a
1 Apartheid: foi um regime de segregação
racial adotado de 1948 a 1994 pelos sucessi-
da terra começou em 1652, quando não ser que a terra que foi rou-
vos governos do Partido Nacional na África o vice-rei português enviado à Ín- bada durante o colonialismo seja
do Sul, no qual os direitos da maioria dos dia foi morto na África do Sul.
habitantes foram cerceados pelo governo for- devolvida. Não fazer isso signi-
mado pela minoria branca. A segregação ra- A história que a comissão contou fica que alguns continuam a ser
cial na África do Sul teve início ainda no perí- a respeito da África do sul, por- nativos e outros continuam a ser
odo colonial, mas o apartheid foi introduzido
como política oficial após as eleições gerais de tanto, é extremamente parcial e colonizadores.
1948. A nova legislação dividia os habitantes contém muitas lacunas históricas.
em grupos raciais (“negros”, “brancos”, “de É verdade que tudo que a comis- IHU On-Line – Em que sentido
cor”, e “indianos”), segregando as áreas re-
são pode fazer é reduzir as men- o testemunho das vítimas é im-
sidenciais, muitas vezes através de remoções
forçadas. A partir de finais da década de 1970, tiras que circulam em sociedade. portante para que se faça justiça,
os negros foram privados de sua cidadania, Dado o fato de que a África do Sul ainda que tardiamente?
tornando-se legalmente cidadãos de uma das é composta de comunidades pola-
dez pátrias tribais autônomas chamadas de
rizadas com memórias polarizadas Tshepo Madlingozi – Feitos de
bantustões. Nessa altura, o governo já havia
segregado a saúde, a educação e outros servi- e envenenadas, o que a comissão modo certo, os testemunhos po-
ços públicos, fornecendo aos negros serviços fez não ajudou a África do Sul a dem ajudar as vítimas a se senti-
inferiores aos dos brancos. O apartheid trou-
transcender a sua história frag- rem novamente humanas, após
xe violência e um significativo movimento de anos violados e desumanizados.
resistência interna, bem como um longo em- mentada. Nenhuma verdade foi
bargo comercial contra a África do Sul. Uma emitida. Testemunhar diante de uma comis-
série de revoltas populares e protestos causa- são da verdade pode levar a um
ram o banimento da oposição e a detenção de reconhecimento público e oficial,
líderes antiapartheid. Em 1990, o presidente IHU On-Line – Em que medida se
assim iniciando o processo de cica-
Frederik Willem de Klerk iniciou negociações pode falar em reconciliação na-
para acabar com o apartheid, o que culminou trização das vítimas. Todavia, como
cional a partir dos trabalhos em-
com a realização de eleições multirraciais e o enfoque real da justiça transicio-
democráticas em 1994, que foram vencidas preendidos por essas comissões?
nal é, frequentemente, a estabi-
pelo Congresso Nacional Africano, sob a li-
derança de Nelson Mandela. (Nota da IHU Tshepo Madlingozi – Também lidade e reconciliação da elite, a
On-Line) não foi alcançada uma reconcilia- participação das vítimas diante de

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

uma comissão muitas vezes apenas mais. Seus poderes de investigar e parecidos e subdesenvolvidos para
proporciona uma catarse à nação, trazer para o seu alcance os atos proteger o privilégio dos brancos.
não às próprias vítimas. As lágrimas de outros estados e nações são li- Ainda após a comissão, a sociedade
e o testemunho das vítimas assim mitados, se não completamente branca não tem feito nada para es-
servem para legitimar o compro- excluídos. tender a mão à população negra a
metimento da elite. Finalmente, a fim de mostrar remorso e trabalhar
Os outros desafios são questões
maioria das comissões não presta para terminar com o privilégio dos
de timing e sequência. Se a comis-
serviços psicossociais adequados às brancos. Houve muita negação en-
são começar o seu trabalho no mo-
vítimas e, dessa forma, o resultado tre os brancos.
mento errado, a qualidade do seu
é que retraumatizam as vítimas ao trabalho e o produto que finalmen- Quanto à sociedade negra, ela
contarem suas histórias ou quando te sairá disso é comprometido. Por sabia o que estava acontecendo,
as histórias são questionadas pelos exemplo, no caso da África do Sul, mas queria detalhes específicos
perpetradores, ou quando depois quando a comissão começou o seu sobre o que aconteceu. Essas es-
as vítimas são perseguidas pela mí- trabalho, ainda havia um grande pecificidades e detalhes não vie-
dia sensacionalista. conflito e assim muitas das vítimas ram. Nós ainda não sabemos quem
Junto com isso, o fato de que os não participaram no processo da deu a ordem para matar, ou onde
mecanismos de justiça transicional comissão porque ou ainda estavam estão os cadáveres dos que foram
nunca resultam em reparação ade- traumatizadas, ou não confiavam desaparecidos à força – para dar
quada e restituição significa que as nas agências de governo. A questão dois exemplos. Ao mesmo tempo,
feridas da vítima são abertas sem da sequência também é importan- as elites negras estão sofrendo de
ser aplicado qualquer bálsamo para te. Será que o país deverá primeiro amnésia e se recusando a reconhe-
mitigá-las. Assim, na minha organi- investir toda a sua energia em acer- cer que a pobreza não é causada
zação, Khulumani Support Group2, tar as contas com o passado, ou por preguiça, como alegam, mas
constatamos que anos depois as será que deve primeiro obter uma sim é o resultado do apartheid. A
vítimas que testemunharam na co- boa paz (paz em ambos os sentidos atitude da elite negra em relação
missão da verdade estão amargu- – um fim à violência física e um fim às vítimas é vergonhosa.
radas, envergonhadas e sentem-se à violência do empobrecimento)?
traídas. Finalmente, porque as comissões IHU On-Line – Qual é a situação
apenas fazem recomendações. O da multiculturalidade na África
12 trabalho e o legado das comissões do Sul após a queda do regime de
IHU On-Line – Quais são os
maiores desafios que se apresen- são restringidos pelo fato de que apartheid? Há uma interação en-
tam na condução dos trabalhos governos sucessores poderão des- tre as diferentes etnias?
das comissões da verdade? prezar suas recomendações.
Tshepo Madlingozi – Como nunca
Tshepo Madlingozi – O maior obs- houve justiça redistributiva onde
IHU On-Line – Como a socieda- o poder econômico e cultural é
táculo é aquele ao qual aludi até
de reagiu diante dos trabalhos distribuído equitativamente, os
agora. Comissões são os produtos
de elucidação sobre o que houve brancos ainda dominam a socieda-
de justiça transicional. A justiça
com as vítimas na África do Sul? de civil na África do Sul. A África
transicional é um produto tanto de
comprometimentos da elite como Tshepo Madlingozi – Na África do do Sul ainda não alcançou o que
da pressão dos países poderosos Sul, as longas divisões da história o Professor Boaventura de Sousa
do Ocidente e suas agências inter- trazidas pelo colonialismo e apar- Santos4 denomina “justiça cogniti-
governamentais. O trabalho das theid significaram que não se pode va” – uma sociedade onde todo o
comissões é restringido por esses falar de uma só sociedade. Pode- tipo de conhecer e ser-no-mundo é
acordos da elite e os diktats3 dos ríamos preferivelmente, e ainda tratado equitativamente. A África
países ocidentais (a assim-chama- muito grosseiramente, referir-nos do Sul é arquitetonicamente, este-
da ‘comunidade internacional’). à sociedade branca e à sociedade
4 Boaventura de Sousa Santos (1940):
Assim o seu encargo e escopo são negra (que inclui todos aqueles doutor em Sociologia do Direito pela Univer-
com frequência excessivamente que foram oprimidos). A maioria sidade de Yale, Estados Unidos, e professor
limitados. O período da sua inves- dos membros da sociedade de cor catedrático da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, Portugal. É um
tigação muitas vezes é estreito de- branca pensava que a comissão dos principais intelectuais da área de ciên-
era uma caça às bruxas contra os cias sociais, com mérito internacionalmente
2 É um movimento social de mais de 104 mil brancos. Referiam-se à comissão reconhecido, tendo ganho especial popula-
vítimas e sobreviventes do apartheid. www. debochadamente como “uma co- ridade no Brasil, principalmente depois de
khulumani.net (Nota do entrevistado) ter participado nas três edições do Fórum
3 Diktat: é um estatuto, sanção severa ou missão do choro”, uma plataforma Social Mundial, em Porto Alegre. Confira a
liquidação imposta a um partido derrotado inútil onde as pessoas vão simples- entrevista O Fórum Social Mundial desafia-
pelo vencedor, ou um decreto dogmático. O mente para chorar. Uma minoria do por novas perspectivas, concedida por
termo adquiriu um sentido pejorativo, para Boaventura ao sítio do Instituto Humanitas
dentro da sociedade branca reagiu
descrever um conjunto de regras ditadas por Unisinos – IHU em 30-01-2010, disponível
uma potência estrangeira ou um poder local com horror porque não sabia que em http://bit.ly/BoaventuraIHU. (Nota da
impopular. (Nota da IHU On-Line) havia negros sendo mortos, desa- IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

ticamente, epistemologicamente e a África do Sul em 1810, para assim IHU On-Line – Em que sentido se
culturalmente ainda uma província tomarem o lugar dos holandeses no pode falar em uma democratiza-
da Europa. saque aos recursos naturais da Áfri- ção na África do Sul, em especí-
ca do Sul e assegurar a continuida- fico, e na África como um todo?
A cultura europeia domina a edu-
de do seu comércio com a Índia. O
cação e a vida cultural da nação. Tshepo Madlingozi – A África
país chamado “África do Sul” foi
Não há multiculturalismo por cau- do Sul é uma democracia formal
estabelecido em 1910, quando os
sa da dominância da cultura Euro- – são realizadas eleições, existe
colonizadores ingleses e holande-
Americana e pelo fato de que um um parlamento multipartidário,
ses assinaram um acordo de paz
crime ao qual o professor Santos há um judiciário independente, e
para assegurar que a África do
chama de “epistemicídio“ con- em geral é respeitada a liberdade
Sul fosse um país do homem bran-
tinua. Esse crime acompanhou a de expressão. Todavia, porque a
co. Esse acordo de paz seguiu-se
colonização da África do Sul quan- democracia sul-africana pós-1994
a uma renhida guerra entre esses
do as epistemologias e culturas é um produto de um compromis-
colonizadores depois que foram
indígenas foram mortas. Como a so de elites, é uma democracia
comissão não alcançou a reconci- encontrados diamantes e outros
de elite. Na África do Sul se im-
liação social e a formação de uma minerais.
pôs o neoliberalismo, estamos fa-
nação, a África do Sul permanece De 1910 a 1994 os sul-africanos lando sobre uma democracia da
uma sociedade polarizada, mar- brancos e os países europeus en- burguesia, uma democracia des-
cada por esse epistemicídio, bem riqueceram pelo roubo de terras, nudada, onde a maioria é pobre
como o racismo contra os negros, minerais e mão de obra dos sul- e excluída de estruturas formais
guerra contra as mulheres, homo- africanos negros. Em segundo lu- da tomada de decisões. Quando a
fobia e xenofobia. gar, apesar de as Nações Unidas maioria pobre se queixa da falta
declararem o apartheid um crime de uma democracia participativa,
IHU On-Line – Como analisa a contra a humanidade, os Estados simplesmente são ignorados, ou se
dívida humanitária que a Europa, Unidos e países da Europa continu- lhes diz que esperem as próximas
em termos gerais, e os Estados aram a ter relações comerciais com eleições. Quando a maioria pobre
Unidos e a Inglaterra, especifica- o regime do apartheid, e a lucrar resiste à democracia neoliberal e
mente, têm para com a África do desse crime contra a humanidade. ao capitalismo, é reprimida pela
Sul e outros países do continente Finalmente, agências financeiras polícia, pela mídia e pelas organi- 13
africano? internacionais, bancos e países eu- zações não governamentais.
ropeus emprestavam dinheiro ao
Tshepo Madlingozi – Antes de Assim, nessa democracia, o libe-
governo do apartheid para possibi-
1652 – o ano da invasão da Áfri- ralismo para a classe média coexis-
litarem a existência do regime.
ca do Sul, “pelo menos mil navios te com o liberalismo para a maioria
portugueses, 600 holandeses e 400 Assim, não estamos falando so- pobre. Finalmente, porque a estru-
ingleses e franceses lançaram ân- bre uma dívida “humanitária”, tura política que temos hoje é es-
cora na costa sul-africana”, levan- estamos falando sobre a dívida de truturada pela justiça transicional
do a um saque em grande escala de reparação e injustiça histórica. Em que lhe deu origem, a democracia
recursos e pessoas (Terreblanche, cima dessa dívida há a dívida odio- triunfou sobre a descolonização.
2002). A Companhia Holandesa das sa que foi incorrida pelo governo Sejamos claros, a justiça transi-
Índias Orientais invadiu a África do do apartheid. Essa dívida deve ser cional é sempre antidescoloniza-
Sul em 1652 para estabelecer um abolida e o dinheiro que foi pago ção. Dessa forma, elementos de
posto de reabastecimento com a fi- pelo Estado pós-1994 para servi- colonialidade, supremacia branca
nalidade de atender aos navios ho- ços desse empréstimo deve ser e neocolonialismo continuam lado
landeses. Os ingleses conquistaram devolvido. a lado com a democracia formal.■

LEIA MAIS...
—— A derrocada dos movimentos sociais na África pós-Apartheid. Entrevista com Tshepo Ma-
dlingozi, publicada em Notícias do Dia, de 13-12-2014, no sítio do Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1LO6b4Z.
—— Khulumani, uma luta que transforma vítimas em cidadãos. Reportagem publicada em No-
tícias do Dia, de 17-09-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/1LaTuO3.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ENTREVISTA

A justiça do castigo e o perdão


da transformação
Xabier Etxeberria trata os conceitos de justiça e perdão com distinção de
patamares. Os dois se entrelaçam somente quando a primeira aparece
humanizada, restaurando a vítima
Por Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Janaína Cardoso

I maginemos duas estradas. Elas levam a ca-


minhos distintos. Uma se chama justiça e a
outra perdão. Trilhar uma não necessaria-
mente significa passar pela outra. O professor Xa-
bier Etxeberria Mauleon entende que justiça, no
em nome de outro. Se alguém matou o meu pai, eu
posso perdoar ao assassino o dano que ele causou
em mim. Mas o assassinato quem teria que perdoar
é o assassinado – meu pai –, que já não está aqui
para fazê-lo”.
caso penal, “se realiza quando se cumpre a pena
Xabier Etxeberria Mauleon é doutor em Filoso-
ou castigo pelo delito, haja ou não transformação
fia, catedrático emérito de Ética da Universidade
interior no delinquente”. Já o perdão se dá quan-
de Deusto, Espanha, investigador da Pós-graduação
do “implica uma transformação interior, tanto no
do Centro de Ética Aplicada. Professor visitante e
ofendido que oferece o perdão como no ofensor
colaborador em universidades da América Latina.
que o recebe no arrependimento”. Logo, é algo
É membro de Comités de Etica Hospitalaria. No
mais complexo e para além do pragmatismo.
país basco, participa em contextos e compromissos
Mas essas estradas jamais se cruzam, nunca ha- pela justiça, a favor das vítimas da violência e pela
14 verá ponto em comum? O professor acredita que paz em processos de mediação e reconciliação en-
se pode trilhar a estrada da justiça sem que se tre grupos em conflito. Atua essencialmente sobre
perca a essência do perdão. O destino desse ca- os temas: pela justiça, a favor das vítimas da vio-
minho pode ser mais do que o ponto de inserção lência e pela paz, com as pessoas com incapacida-
entre perdão e justiça. “O ‘espírito do perdão’ de intelectual, com os povos indígenas, e pela éti-
começa a aparecer na justiça quando é humaniza- ca no exercício da profissão. Sua publicação mais
da, quando com a pena não persegue unicamen- recente é La educación para la paz reconfigurada:
te o bem da ordem social senão que se preocupa la perspectiva de las víctimas (Madrid, Catarata,
com a restauração da vítima. E, também, quando 2013).
não pretende unicamente castigar o delinquente.
Assim, por um lado, evita castigos desumanos e, Etxeberria participou do III Colóquio do Institu-
por outro, quer que se reabilite e tem em conta to Humanitas Unisinos – IHU e o VI Colóquio da
seus avanços para reduzir o castigo”, explica, ao Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos
apresentar a ideia de justiça restaurativa. “De e violência, governo e governança – A justiça, a
todos os modos, se aspiramos a que a justiça e o verdade e a memória na perspectiva das vítimas.
perdão tenham um nexo mais intenso e interno, A narrativa das testemunhas, estatuto epistêmi-
é necessário que a justiça como tal seja trans- co, ético e político. O evento, realizado em se-
formada para passar a ser justiça restaurativa”, tembro de 2015, foi promovido pelo Instituto Hu-
completa. manitas Unisinos – IHU, Cátedra Unesco – Unisinos
de Direitos Humanos e violência, governo e gover-
Na entrevista a seguir, concedida por nança, Filosofia – Unisinos e Programas de Pós-Gra-
e-mail à IHU On-Line, Etxeberria também reflete duação em Direito e em Saúde Coletiva – Unisinos.
sobre perdão e memória. “Ninguém pode perdoar
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os ne- nar as diferenças da justiça penal tida, realiza suas potencialidades
xos fundamentais entre justiça e e do perdão. A justiça penal se quando implica uma transforma-
perdão? realiza quando se cumpre a pena ção interior, tanto no ofendido que
ou castigo pelo delito, haja ou não oferece o perdão como no ofensor
Xabier Etxeberria Mauleon – O transformação interior no delin- que o recebe no arrependimento.
primeiro nexo aparece ao relacio- quente. O perdão, em contrapar- Esta transformação, que se veri-

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IHU On-Line – Até que ponto é


possível perdoar em nome daque-
les que já se foram e que não po-
dem testemunhar sobre a injusti-
Se talvez a anistia seja tolerá- ça sofrida?
Xabier Etxeberria Mauleon –
vel em situações-limite, tem Propriamente falando, perdoa
que ser como algo totalmen- quem tem sofrido o dano injusto,
a quem o causou e pelo que lhe
te alheio ao que é o perdão tenha feito. Ninguém pode perdo-
ar em nome de outro. Se alguém
matou o meu pai, eu posso perdo-
fica nas condutas corresponden- e sua vítima, apoiados no que seja ar ao seu assassino o dano que ele
tes, faz desnecessário o castigo. preciso, realizam entre eles, volun- causou em mim. Mas o assassinato
Isto supõe, em quem perdoa, que tariamente e com autenticidade, quem teria que perdoar é o assas-
desativa suas emoções de ódio e encontros restaurativos inspirados sinado – meu pai –, que já não está
ressentimento. Também alenta a no perdão. Assim, estes encontros aqui para fazê-lo. O mais que pos-
possibilidade de que quem causou conseguem o que nem a melhor so dizer a quem o matou, se é ver-
o dano se transforme, seja uma justiça penal pode realizar. Deve-se dade, é que penso que, pelo que
nova pessoa. E aquele que pede esclarecer que estes encontros não conhecia de meu pai, tinha uma
honestamente perdão, supõe que “igualam” a vítima e quem come- profunda disposição para perdoar.
se reconheça com dor, como vítima teu o crime, pois ambos percorrem O assassinato, além de quebrar a
sua, a quem vitimou, e que está em processos assimétricos: pede-se à vida, quebra muitas possibilidades
disposição não só de dizê-lo, mas vítima que afine moralmente seus valiosas.
de reparar o dano no que puder. sentimentos para com quem lhe
Isso não tira o valor ao assassino
fez o dano. Enquanto o criminoso
Segundo isto, pareceria que jus- que se arrepende sinceramente.
tem que fazer um processo que
tiça e perdão são realidades hete- Este arrependimento expressado
lhe leve da autojustificação de seu
rogêneas. Entretanto, isto ocorre publicamente tem um efeito re-
delito – especialmente orgulhosa
unicamente quando se tem uma
no que tem motivação política – à
parador ao assassinado: este não 15
concepção rigorosamente retribu- pode testemunhar a injustiça sofri-
tiva da justiça, a que reclama que traumática confissão honesta de
da, mas quem o matou sim, ao re-
se castigue sem exceção ao apena- sua culpabilidade. Neste sentido, o
conhecê-la como tal, ao reconhe-
do com um dano igual em intensi- ciclo completo do perdão é a mais
cer o assassinado como sua vítima.
dade ao que ele causou. O “espíri- radical negação da impunidade.
No entanto, nada disso tira que,
to do perdão” – que não o perdão De todos os modos, se aspiramos com seu ato destruidor da vida,
como tal – começa a aparecer na a que a justiça e o perdão tenham bloqueou a si mesmo a possibilida-
justiça quando esta é humanizada, um nexo mais intenso e interno – de de que seu arrependimento fos-
quando com a pena não persegue que o perdão esteja dentro dos se acolhido por quem mais possa
unicamente o bem da ordem so- processos de justiça –, é necessário interessar-lhe, sua vítima.
cial senão que se preocupa com a que a justiça como tal seja trans-
restauração da vítima. E, também, formada para passar a ser justiça Pseudoperdão da
quando não pretende unicamente restaurativa. Uma justiça que não anistia
castigar quem cometeu um crime. consiste em igualar no delinquen-
Assim, por um lado, evita castigos te o mal sofrido com o castigo e o O que passa a ser inadequado é
desumanos e, por outro, quer que mal cometido, senão em restaurar que as autoridades públicas pre-
se reabilite e tem em conta seus a todos os implicados no delito, tendam “perdoar por representa-
avanços para reduzir o castigo. com processos diferentes segundo ção”. Isso através das chamadas
sua situação. O qual se consegue “medidas de graça”, quando as
Complementaridade através do protagonismo de todos consideram como medidas de per-
entre justiça e perdão eles, mas, especialmente, das re- dão. Aqui me refiro especialmente
lações entre a vítima e a pessoa à anistia. Esta, ao suspender a apli-
Outro nexo importante entre que cometeu o crime(espaço espe- cação de uma lei penal durante um
justiça e perdão se dá quando se cífico do perdão), com a vigilância, tempo a um determinado coletivo
estabelece uma complementarida- garantia e amparo das instituições de pessoas que a violaram, faz com
de entre eles. Por um lado, a jus- públicas. Estão ocorrendo interes- que não existam juridicamente cri-
tiça penal faz sua tarefa, de forma santes avanços reflexivos e suges- minosos e também que não existam
humana e baseada no respeito aos tões práticas nesta nova modalida- juridicamente vítimas. Que isto se
direitos humanos. Por outro lado, de de justiça, mas nos resta ainda interprete como perdão – quando
o criminoso que se submete a ela muito caminho a percorrer. oficialmente não existe quem tem

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

que perdoar – quando se faz em damental, de garantir uma ordem se realiza sem pretendê-lo expres-
nome das vítimas sem contar com social na qual respeitemos mutua- samente em âmbitos informais,
elas, quando se “perdoa” a quem mente nossas liberdades. Quando como, especialmente, os meios de
cometeu delitos que oficialmen- castiga, pretende que isso sirva comunicação em todas suas varian-
te não cometeram (a anistia é um para prevenir novos delitos. Se tes. Obviamente, sem que esque-
decreto de esquecimento jurídico em sua aplicação respeita os direi- ça do relevante papel educativo
sobre tudo isso), não é só a maior tos humanos – se não se perverte da família, dos grupos informais
perversão do que é o perdão, como expressando-se ela mesma como de iguais, etc. A educação para a
também supõe uma “revitimização” violência – colabora no fomento da paz é complicada porque entre to-
das vítimas. Se talvez a anistia seja paz e em que os cidadãos interiori- dos estes agentes educativos pode
tolerável – não justificável – em si- zem elementos básicos da cultura haver notáveis diferenças, quando
tuações-limite – algo do que duvido de paz. Mas quando se expressa não fortes contradições.
muito –, tem que ser como algo to- como mera justiça retributiva, ou
talmente alheio ao que é o perdão. O ideal seria que todos os agen-
como justiça pura e duramente
tes, cada um desde o que é, fo-
Os indultos das penas já atribuí- preventiva, tem graves limitações:
mentassem uma cultura de paz
das trazem o esclarecimento dos o enfoque retributivo pode manter
compreendida em sua complexi-
fatos, que costumam se contem- um fundo de referência à vingança
dade. Uma cultura de paz que po-
plar na aplicação da justiça tran- (à vítima se lhe oferece a satisfa-
deria formular-se, de outro modo,
sicional, nem devem ser considera- ção fundamental de que se casti-
como a cultura que assume que a
dos como perdão. Porque, de novo, ga quem cometeu o crime contra
paz consiste em todos desfrutarem
isso suporia que as autoridades se si); e o enfoque preventivo pode de todos os direitos humanos, to-
arrogam a representação das víti- ser duramente utilitarista, casti- mados em sua interdependência e
mas. No entanto, caso sejam ofe- gar só em função da eficácia para indivisibilidade.
recidas em condições adequadas, a prevenção.
podem ser aceitáveis em certas Educação para a Paz
circunstâncias, expressando tam- Cultura de Paz
bém, ainda que seja parcialmente, De qualquer forma, aqui gostaria
o espírito do perdão. A cultura de paz perante o deli- de ressaltar uma questão concreta.
to deve aspirar a mais. Deve aspi- Grãos de uma paz reconfigurada.
16 IHU On-Line – Em que medida rar que a paz perante o delito se Eu falaria também de uma edu-
a justiça e o perdão sedimentam perceba como a plena restauração cação para a paz reconfigurada. A
uma cultura da paz fundamental da vítima e, inclusive, como a re- clássica educação para a paz tem
em nosso tempo? cuperação do criminoso, pessoal e tido muito presente que se deve
para a vida cívica. E é aqui onde educar na aprendizagem da reso-
Xabier Etxeberria Mauleon – A o espírito do perdão, com seu ci-
cultura de paz deve remeter-se a lução ou manejo positivo dos con-
clo completo de perdão que se flitos. E se tem prestado especial
uma concepção ampla e comple- oferece generosamente, pode ser-
xa de paz. Concepção que inclua atenção às violências dos violen-
vir de grande inspiração: por um tos para enfrentá-las de modo tal
a superação não só das violências
lado, impelindo que se transforme que no futuro não tenham lugar.
diretas às pessoas, mas também
a justiça penal com “ousadia pru- Reconfigurá-la, como proponho,
das violências estruturais que se
dente”; por outro lado, alentando seria dizer: centremos o processo
sofrem, especialmente as econô-
iniciativas de perdão na sociedade educativo pela paz nas vítimas,
micas, e das violências de discrimi-
externas em si à aplicação da justi- não meramente para contemplar
nação originadas nos preconceitos
ça, que ofereçam frutos não fáceis nelas o duríssimo e cruel efeito da
culturais. Neste sentido, a justiça
de conseguir nesta. violência. Senão para que sejam
social, a justiça distributiva de
bens e recursos necessários para elas as que nos ensinem, para que
satisfazer nossas necessidades de IHU On-Line – Nesse sentido, sejam elas nossas educadoras mais
modo tal que possamos potencia- qual é a importância de uma relevantes. Porque será nelas onde
lizar nossas capacidades, é fun- educação para uma paz reconfi- compreenderemos decisivamente
damental. Também a poderíamos gurada e compreendida em sua o que de verdade é a violência, e
chamar “justiça do reconhecimen- complexidade? será também através do testemu-
to”, que se concretiza em reconhe- nho delas como melhor interiori-
Xabier Etxeberria Mauleon – A
cer efetivamente a todas as pesso- zaremos em nós como temos que
cultura de paz se interioriza atra-
as sua condição de dignidade, sua afrontá-la (entre outras coisas, não
vés da educação para a paz. Não só
identidade diferencial, seja a nível esquecendo as vítimas).
a que se fomenta nas escolas, tam-
pessoal, seja coletivamente, como
bém a que se expressa em lugares A educação para a paz reconfigu-
grupo identitário.
de educação não regulados, como rada a partir das vítimas dispostas a
A justiça diante do delito tem a em associações que incluem inicia- dar um testemunho moral não poli-
pretensão mais básica, mas fun- tivas educativas. Assim como a que ticamente partidário de sua vitimi-

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zação nos fará olhar para o futuro a A melhor prova de que estamos consideração abstrata do que é o
partir do presente, mas assumindo dispostos a perceber todas as ví- ser humano, senão do impacto da
ao mesmo tempo memorialmente o timas é quando percebemos as vítima.
passado. Sei, por experiência, que vítimas que nós temos feito. Em
Quando a vítima sobrevivente
neste testemunho acaba tendo lu- qualquer caso, vítima, no sentido
emite um testemunho falado, é
gar o perdão, por certo de modo moral, é quem sofre injustamente
importante distinguir entre o que
eticamente muito afinado. segundo o critério dos direitos hu-
nele há de testemunho moral estri-
manos. Temos que estar dispostos
to, no qual ela tem uma autorida-
IHU On-Line – Como a perspec- a considerar existencialmente que,
de especial que cabe reconhecer, e
tiva do testemunho das vítimas é desde a perspectiva da solidarieda-
outras considerações legítimas que
importante enquanto referente de, todas as vítimas são de todos.
pode fazer. Mas é necessário situar
epistêmico para construir crité- E que, desde a perspectiva da não
entre as posições partidárias, com
rios de justiça? instrumentalização, nenhuma víti-
as quais se pode entrar em deba-
ma é de ninguém.
te. Quando as vítimas intervêm no
Xabier Etxeberria Mauleon – Ao
debate público, algumas decidem
perguntar-nos de que modo as víti-
situar-se no terreno do testemunho
mas são o referencial fundamental
estritamente moral, enquanto ou-
no qual os critérios de justiça nos
tras enlaçam sua experiência com
são revelados, podemos distinguir
propostas que cabem dentro do
dois momentos: o de seu “estar
aí”, em sua condição de vítimas,
Todas as vítimas pluralismo político legítimo (que
exclui reagir com violência à vio-
diante de nós, à maneira de “tes- são de todos, ne- lência sofrida). Cada uma pode to-
temunho mudo” enquanto não há
palavra, mas muito expressivo na nhuma vítima mar a decisão que considere mais
oportuna. Em qualquer caso, que
própria materialidade de sua vi-
timização (aqui entram todas as
é de ninguém as vítimas sobreviventes partici-
pem nos processos de educação
vítimas, também as assassinadas, para a paz, nos debates públicos
especialmente as assassinadas); e
Vítimas enquanto sobre a justiça, etc. É algo a que
o fato de estar nos contando, re- têm direito e algo muito fecundo
referentes epistêmicos
latando não meramente o que lhes para a sociedade. 17
aconteceu, mas como o vivencia-
Somente com uma atitude assim
ram e o vivenciam e que aprendi-
as vítimas poderão ser referentes IHU On-Line – Qual é a impor-
zagens têm extraído de sua experi-
epistêmicos para que os critérios tância da memória no aprofunda-
ência (aqui só cabe contemplar as
de justiça nos sejam desvelados. mento da democracia?
vítimas sobreviventes).
Estes critérios se revelarão para
Xabier Etxeberria Mauleon
nós quando diante das vítimas
Ver a vítima como estejamos em atitude de recep-
– Respondo à pergunta especifi-
vítima cando, primeiro, que vou me re-
tividade, de deixar-nos impactar
ferir à memória das violências de
por sua interpelação. Para o qual
A primeira coisa que necessi- motivação política que podem ter
precisamos nos despir de todos
tamos dizer é que, em ambos os acontecido em uma sociedade, se-
preconceitos. Também, se revela-
casos, para que seja referencial jam provenientes do Estado, sejam
rão inicialmente “em negativo”,
epistêmico para nós, temos que contra o Estado. E especificando,
na carência de justiça que se ma-
ser capazes de percebê-las como em segundo lugar, que penso nes-
terializa em seus corpos e psique
vítimas. Isto parece muito básico e se tipo de memória que reassume
vulnerados. Diante disso emergirá
simples, mas é enormemente difí- a verdade empírica dos fatos com
em nós um espontâneo “não pode
cil. Às vezes, consideramos vítima o correspondente juízo moral sobre
ser!”, muito emocional – cheio de
entre as pessoas próximas de nós eles, segundo os critérios dos direi-
indignação moral –, mas ao mesmo
quem não o é (por exemplo, nos tos humanos. Uma memória que,
tempo muito carregado de razão
faz sofrer o fato de alguém ligado portanto, desmonta as autojustifi-
e expresso como convicção: não
a nós estar na prisão, mas não é cativas que se deram aos crimes.
pode ser a tortura, o assassinato,
injustamente, porque se está atu- a marginalização, a exploração, a Esta memória já é por si mesma
ando de acordo com os direitos hu- discriminação, etc. Depois terão parte da justiça e do reconheci-
manos). Noutro sentido, custa-nos de vir a argumentação e o diálogo, mento devidos às vítimas. Mas,
muito perceber como vítimas para dar forma precisa aos crité- como sugere a pergunta, ajuda
aquelas que nós fizemos ou que as rios e, especialmente, para que também no aprofundamento da
pessoas próximas de nós fizeram, possam ser referências para nossos democracia. Em primeiro lugar,
pois tendemos a considerar justi- comportamentos cívicos e das polí- por essa deslegitimização radical
ficada a violência que se exerceu ticas públicas. Mas é fundamental da violência, isto é, das dinâmicas
contra elas. que os critérios não provenham da antidemocráticas que se aninham

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


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sobre ela. Em segundo lugar, por- dição de possibilidade de outras culares e impregnam toda nossa
que especifica muito vivamente modalidades de reparação. Por ou- vida, tendem a converter-se em
um dos horizontes decisivos da tro lado, a memória é condição do fins, a ser considerados fonte de
democracia: ser um sistema de re- perdão: só se perdoa o que se re- sentido. Então se faz depender,
solução pacífica dos conflitos, isto corda, ainda que nem todo recor- tanto a plenitude da vida pessoal
é, ser contrário ao sistema de re- dar seja alentador do perdão. como o desenvolvimento social,
solução violenta que memoramos de nossa mera tecnologização.
Em meu contexto de reflexão e
como negativo. Em terceiro lugar, Mas, repito, os avanços técnicos
intervenção social não se costuma
porque sempre, entre os violen- são meios, meios enormemente
falar de memória como expressão
tados que recordamos memorial- potentes. Como tais, podem servir
de um direito à defesa da vida. A
mente, há pessoas que, sem serem tanto para a justiça como para a
memória do passado violento, do
elas violentadoras, têm entregado injustiça, para a tolerância como
aplastamento da vida, vivida pe-
o melhor de sua vida – às vezes sua para a intolerância. Concretamen-
las vítimas e seus achegados, pode
própria vida – para gestar a demo- te, nunca podemos exercer fac-
incentivar-nos em uma dupla di-
cracia ou consolidá-la. tualmente tanta violência como
reção, segundo as emoções e as
agora, precisamente porque a téc-
Em quarto lugar, porque a memó- convicções que a configurem. Se
nica faz possíveis violências antes
ria nos ajuda a viver uma democra- está configurada pelo ódio e pelo
impossíveis.
cia que integra as gerações: quan- ressentimento puros, não confron-
do está presente, não somente se tados eticamente, arrastará à vio-
decide pensando nas futuras gera- lência vingativa, quanto maior me- Técnica
ções – por exemplo, em temas eco- lhor, isto é, não só não expressará o
direito à vida senão que o contradi- Isto reclama que a técnica, em
lógicos – senão também pensando
rá. Se está configurada pela lógica sua orientação a fins, esteja co-
nas passadas, de uma maneira es-
retributiva, que considera que a mandada pela ética, pelos valores
pecial nas vítimas, oferecendo-lhes
justiça se realiza quando quem vio- morais, pelos critérios de justiça.
os reconhecimentos e reparações
lentou a vida deve sofrer uma vio- Para mim, é difícil fazer uma valo-
que se precisem. Por último, por-
lência similar, será uma memória rização a respeito, se agora temos
que uma democracia que integra
que, por um lado, aceitará de bom menos valores que antes em rela-
memorialmente as suas vítimas,
grado o castigo penal – inclusive a ção à atividade violenta. Podemos
que assume valores como estes,
18 não é uma democracia meramen- pena de morte –, mas, por outro pensar que há um universalismo
lado, considerará que com isso se dos direitos humanos, nos quais
te agregativa (na qual comanda o
previnam assassinatos futuros. inserimos os avanços na justiça
interesse particular que mais votos
e memória, que é compartilhado
reúne), senão que é uma democra- Estritamente falando, creio que por uma porcentagem muito im-
cia que alenta um interesse público unicamente a memória que se con- portante da humanidade e que
que transborda nossos interesses figura de modo tal que, sendo fiel antes não se dava. Um universalis-
particulares. Obviamente, sempre aos fatos, os emoldura em senti- mo que é um forte antídoto contra
sem ferir as liberdades, como nos mentos e convicções que arrastam a violência. Mas também é certo
recordam precisamente as vítimas o criminoso a sofrer moralmente que essas enormes violências que
que têm sofrido. pelo que fez e à vítima a oferecer começaram com a primeira guerra
uma oportunidade de regenera- mundial antes não existiam; ain-
IHU On-Line – De que maneira ção a quem cometeu crime. Isto da que caiba a pergunta se não
o direito à memória se configura é, emoldura-os em dinâmicas pró- existiam porque os humanos não
como um direito à defesa da vida? prias de perdão e arrependimento. dispunham de uma potente tecno-
Só essa memória é memória que logia para matar.
Xabier Etxeberria Mauleon – expressa e realiza em sentido ple-
Normalmente, o direito à memó- no o direito à defesa da vida. De qualquer forma, o que nos im-
ria, em uma comunidade política, porta é destacar, por um lado, que
se apresenta como um direito das devemos trabalhar intensamente
vítimas. Sobretudo, direito das IHU On-Line – Apesar dos avan-
pelo enraizamento dos direitos hu-
vítimas que foram assassinadas: ços obtidos através da memória e
manos em todas as coletividades
da justiça, a intolerância e a vio-
o único reconhecimento que lhes políticas e nos cidadãos concretos.
lência ressurgem periodicamen-
podemos dar é através da memó- Direitos convenientemente incul-
te. Como compreender esse para-
ria social, histórica, judicial, assim turados quando se precise. E, por
doxo em um tempo tão avançado
como das iniciativas ligadas a ela. A outro lado, que temos de ser cons-
tecnicamente e indigente em ter-
única reparação que lhes podemos cientes de que hoje em dia a re-
mos éticos?
oferecer é a reparação memorial. ferência aos valores de paz é cada
Mas, também, a memória é direi- Xabier Etxeberria Mauleon – vez mais necessária e urgente por-
to das vítimas sobreviventes, pois Os avanços técnicos, por si, são que as possibilidades de destruição
também é em si reconhecimento e avanços no âmbito dos meios. Ain- se multiplicam indefinidamente
reparação delas e, também, é con- da que quando são muito espeta- devido à eficácia da tecnologia.

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IHU On-Line – Qual é a peculia- Da ditadura à medida da Alemanha Oriental).


ridade da justiça de transição na democracia Isto significa que o poder antigo
Espanha e na Europa como um fica muito debilitado, o que, em
todo? Pensando nos dois primeiros tipos teoria, permite ao novo transmitir
de transição e vistos com o olho de mais justiça penal e realizar mais
Xabier Etxeberria Mauleon – Tal-
um analista social, poderia se di- expurgos administrativos. Assim
vez, a Europa seja o lugar onde ti-
zer que o que há dominado para tem sido, mas sempre dentro da
vemos mais situações transicionais,
definir como se realizava a transi- “moderação”.
mais do que na América Latina. Por
um lado está a transição da ditadu- ção (quanta justiça retributiva se
ra militar à democracia em países impunha e quanto “perdão-esque- Negociação
como Grécia, Portugal e Espanha. cimento” se assumia) tem sido a
relação de forças que existia entre Em segundo lugar, temos o mode-
Por outro lado, está a transição da
expoentes do regime que fenecia e lo negociação, próprio de situações
ditadura comunista à democracia,
da democracia que emergia: quan- nas quais há equilíbrio de poderes
nos Estados da Europa Oriental. Por
to mais força tinham os do antigo entre o poder que é destituído e
último, em escala menor, têm sur-
regime, mais (falso) perdão e es- o poder que será empossado, com
gido situações transicionais diante
quecimento oficial – instigador do o que a repressão sobre o que sai
do final de expressões terroristas
esquecimento social – havia. Os acaba sendo simbólica.
diversas, especialmente do IRA1 na
Irlanda e da ETA2 na Espanha. mesmos analistas distinguem três
modelos de transição. Transição
1 Exército Republicano Irlandês (IRA)
(do inglês Irish Republican Army): grupo Em terceiro lugar, temos o mo-
paramilitar católico e reintegralista, que pre- delo transição, no qual líderes
tendia separar a Irlanda do Norte do Reino
Unido e reanexar-se à República da Irlanda. transformados que provêm do po-
Outrora recorreu a métodos terroristas, prin- der antigo e que conseguem pactos
cipalmente ataques bombistas e emboscadas O direito à com líderes do novo poder (o caso
com armas de fogo, e tinha como alvos tra-
dicionais protestantes, políticos unionistas e
representantes do governo britânico. O IRA
memória, em mais representativo é a Espanha)
conduzem o passo do poder ditato-
tinha ligações com outros grupos nacionalis- uma comuni- rial ao democrático: dado o caráter
tas irlandeses e um braço político: o partido
pactuado de todo o processo, onde 19
nacionalista Sinn Fein (“Nós Próprios”). Ao
longo de mais de duas décadas de luta ar-
dade política, todos encontram um acordo com-
mada, ocorreram mais de 3500 mortes. A
principal razão pela qual o IRA lutava era a
se apresenta partilhado para a saída jurídica é
na anistia geral.
igualdade religiosa, visto que 75% da popula-
ção norte-irlandesa era protestante e o pou-
como um direi-
co que restava, católica, o que fazia com que
to das vítimas Apagamento das
houvesse desigualdade e preconceito entre as
religiões. Como os protestantes eram maio-
vítimas
ria, decidiam candidaturas políticas e plebis-
citos, entre outros, impedindo que a vontade Como se vê, o esquecimento das
católica se manifestasse. Em 28 de Julho de Colpaso vítimas das ditaduras nos processos
2005, o IRA anuncia o fim da “luta armada” e
a entrega de armas. O processo de entrega de de transição tem sido fortíssimo.
armas terminou em 26 de Setembro de 2005.
Em primeiro lugar, temos o mo- Elas praticamente não têm existido
Todo o processo de desmantelo do arma- delo colapso, no qual cai o antigo no processo. A justiça transicional,
mento foi orientado pelo chefe da Comissão regime por derrotas ou pressões no que tem de justiça, tem sido
Internacional de Desarmamento, o general externas, militares ou de outro
canadiano John de Chastelain. Porém, gru- muito escassa, e no que tem de
pos de dissidentes que não aceitavam a reso- tipo (caso da Grécia e, em boa esquecimento sem nenhum tipo de
lução pacífica da questão política continuam
tentando realizar atentados terroristas, sem nos da Espanha, da França, do Reino Unido
condições que o moralizem mini-
sucesso. (Nota da IHU On-Line) dos Estados Unidos e pela União Europeia mamente, tem sido elevadíssima.
2 Euskadi Ta Askatasuna (basco para Pá- em bloco. Em geral, a mídia doméstica e in- Obviamente, se alega uma razão
tria Basca e Liberdade, mais conhecida pela ternacional também se refere aos integrantes moral para justificar tudo isso: que
sigla ETA): organização nacionalista basca do grupo como “terroristas”. A organização
armada. É a principal organização do Mo- reivindica a zona do nordeste da Espanha e tal estratégia era necessária para
vimento de Libertação Nacional Basco e o do sudoeste da França, na região montanho- que acontecesse a paz e a demo-
principal ator do chamado conflito basco. Foi sa junto aos Pirenéus, virada para o Golfo de cracia, que se não se assumisse se
fundada em 1959 como um grupo de promo- Biscaia, região denominada por Euskal Her-
ção da cultura basca. No final dos anos 1960, ria (País Basco). A ETA reivindica, em terri-
prolongava a violência estrutural
evoluiu para uma organização, paramilitar tório espanhol, a região chamada Hegoalde dos Estados.
separatista, lutando pela independência da ou País Basco do Sul, que é constituído por
região histórica do País Basco (Euskal Her- Álava, Biscaia, Guipúscoa e Navarra; também No entanto, isto desde hoje, essa
ria), cujo antigo território atualmente se dis- reivindica, em território francês, a região suposta necessidade extrema é
tribui entre a Espanha e a França. Ao mesmo chamada Iparralde ou País Basco do Norte, mais que duvidosa. O que funcio-
tempo, a ETA assumiu uma ideologia mar- que é constituído pelos territórios históricos
xista-leninista revolucionária. É classificada de Labourd, Baixa Navarra e Soule. (Nota da nou foi o esquecimento cômodo da
como um organização terrorista pelos gover- IHU On-Line) vítima, que nem sequer a tivessem

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seriamente em conta para fazer e, além disso, muitas outras coi- e aos obstáculos que institucio-
o “cálculo estratégico”. Esqueci- sas mais, nas quais não vou entrar nalmente lhes colocamos, houve,
mento favorecido em muitos ca- neste momento, relativas à cons- em setores relevantes da popula-
sos pelo amplo tempo que durava cientização cidadã. ção civil e em instâncias de go-
a ditadura, que havia favorecido verno menores, como as prefei-
que as vítimas massivas dos primei- IHU On-Line – A partir de uma turas, uma reação espontânea a
ros tempos tivessem morrido ou se perspectiva dos milhares de re- favor da acolhida dos refugiados.
tivessem calado totalmente pelo fugiados que aportam na Europa Esta reação tem impulsionado um
terror. a cada ano, quais são os desafios setor de responsáveis públicos a
que se apresentam na construção abrir ainda mais as possibilidades
O que mudou nas situações tran-
de um referencial de justiça e de acolhida, ainda que de forma
sicionais com ocasião do fim do
paz na União Europeia? tímida. Isso nos mostra que, des-
terrorismo de ETA e IRA tem sido
de a sociedade civil organizada,
precisamente a emergência e a Xabier Etxeberria Mauleon – A podemos ter ainda incidência,
participação social de suas vítimas. chegada massiva de refugiados nestes tempos no qual parece que
Estabeleceram-se negociações nas com demanda de asilo à Europa, tudo está regido pelas grandes di-
que a justiça transicional estava especialmente da Síria e Iraque, nâmicas estruturais do mercado
presente de modo latente. E no fi- mas não só, está sendo um fato globalizado.
nal do IRA há justiça transicional, político maior para os europeus.
mas ao mesmo tempo atenção às A nós, que queremos remeter-nos
vítimas. No final da ETA, fracas- aos direitos humanos indivisíveis Acolhida mesquinha
sadas as negociações anteriores, e interdependentes como sinal de
ninguém – salvo eles mesmos – con- identidade compartilhada, mais No entanto, por outro lado, estas
templa uma justiça transicional. além das identidades nacionais ou pequenas luzes ainda estão acom-
Só está a via da justiça penal or- englobando-as, nos questiona o panhadas de grandes sombras. A
dinária, que alguns gostariam que modo como realmente os respei- disposição para maior acolhida aos
se completasse com aproximações tamos: ainda tratamos de cumprir refugiados continua sendo mesqui-
à justiça restaurativa. com uma moldura nacional, com nha. O reconhecimento do direito
uma moldura europeia, ou com de asilo que assiste aos refugiados
uma moldura internacional quando segundo o direito internacional dos
20 Mais justiça penal. se precisa? direitos humanos ainda continua
Melhor democracia? sem ser efetivo. Paradoxalmente,
Inicialmente, as reações diver-
sas da maioria dos responsáveis abrir mais a mão para que entrem
O que têm de moralmente in-
políticos dos Estados têm mostra- mais refugiados de zonas de con-
suficiente nos dois primeiros ti-
do que ainda tendemos a cumprir flito implica fechá-la com mais du-
pos de processos transicionais,
com uma moldura prioritariamen- reza aos imigrantes de motivação
comparando às experiências reais
te nacional, como “justiça nacio- econômica que vêm especialmente
que se teve (incluamos já aqui a
nal”. O que se traduz em resis- da África.
América Latina), é que não ne-
cessariamente, à primeira vista, tência a aceitar refugiados que
fazer mais justiça penal parece compliquem com nossos padrões Violência da Fome
desembocar em uma melhor de- de vida, nossa repartição interna
mocracia. Isto deve nos ensinar de bem-estar, nossas identidades É certo que o direito internacio-
duas coisas: em primeiro lugar, culturais tradicionais. Isto é, nos- nal não os ampara como ampara a
que democracias tranquilas que sas condutas têm mostrado que quem foge da violência da perse-
se acomodam no esquecimento seguimos sem ter uma disposição guição e da guerra. Mas não é algo
das vítimas se acomodam em uma adequada a favor da justiça glo- similar fugir da violência mortífera
injustiça da qual devem prestar bal. Essa justiça, que teria de nos da fome? Em teoria, se é conscien-
conta e remediar dentro do pos- impulsionar a fazer o que estives- te de que o que nos reclama a justi-
sível. Em alguns casos, os des- se em nossas mãos para remediar ça com alcance internacional pede
cendentes dessas vítimas, como as carências graves e as violações uma colaboração firme para me-
na Espanha os “netos”, alçam voz massivas de direitos humanos que lhorar as coisas, segundo a escala
sofrem grandes setores das popu- dos direitos humanos e respeitan-
para recordar-nos isso. Em segun-
lações de qualquer parte do mun-
do lugar, temos que aprender que do-os, no ponto de saída, para que
do, algumas dessas muito próxi-
não basta o mero fazer justiça finalize a guerra na Síria, Iraque ou
mas a nós geograficamente.
retributiva para que não haja im- Afeganistão, para que haja desen-
punidade e advenha uma demo- Certamente, por trás do impac- volvimento econômico-social na
cracia e uma paz positiva. Temos to das notícias visuais dos meios África. Inclusive reconhecendo que
que ser conscientes de que fazer de comunicação, que têm per- não é fácil tomar iniciativas efica-
uma justiça penal afinada (o espí- mitido aproximar-nos à grande zes e adequadas, nossos esforços
rito do perdão pode ajudar muito) crueldade da fuga dos refugiados continuam sendo muito pequenos

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e com frequência contraditórios, vos Indígenas das Nações Unidas.3 manos com ações que iniviabilizam
motivados pelos egoísmos nacio- Este direito significa que eles têm estes direitos em outros.
nais. Necessitamos a confluência de ser não só receptores da justi- Da minha parte, defendo o va-
de uma sociedade civil muito ativa ça, senão protagonistas dela diante lor de avançar até dinâmicas de
a favor desta justiça internacional das injustiças que têm sofrido em perdão pedido e oferecido, res-
e de líderes políticos que trans- coordenação com o Estado quando tauradoras para seus protagonis-
bordem suas perspectivas de curto se precise. Obviamente, sempre tas que, no caso dos povos indí-
prazo e nacionalistas. Tomara con- alentados ambos pela intenção ho- genas, deverão estar configuradas
sigamos que as tímidas esperanças por suas sensibilidades culturais
nesta de respeitar o que pedem os
que emergem da sociedade civil se específicas de respeito ao modo
direitos humanos, que são univer-
consolidem e se expandam. de entender o perdão. Mas com
sais, mas que realizam esta univer-
salidade em inculturações abertas a condição decisiva de que não
IHU On-Line – No caso das popu- substituam senão que completem
a pluralidades legítimas.
lações indígenas remanescentes e plenifiquem as medidas de reco-
na América Latina, como se pode nhecimento e reparação devidos.
falar em justiça e perdão frente A partir daí se poderão fazer pro-
à situação de calamidade em que postas de humanização radical da
continuam vivendo? justiça diante do delito, inspira-
das no perdão.
Xabier Etxeberria Mauleon – O esquecimen-
Respondo tua pergunta distinguin- Respostas à violência
do entre o momento presente, isto to das vítimas
é, o momento no qual os opressores
dos povos indígenas estão vivos, e
das ditaduras Comecei respondendo a esta
pergunta com algumas distin-
o momento passado, no qual pode- nos processos de ções. Retomo-as agora. Quando
mos nos remontar até a conquis-
ta e a colonização. E distinguindo transição tem as expressões de violência são
atuais e intersubjetivas, as dinâ-
também entre opressões feitas sido fortíssimo micas de justiça e perdão têm de
por estritas iniciativas de pessoas ser conformes com esta intersub-
concretas (por grupos de pessoas jetividade. Quando a violência é 21
com a correspondente liderança) e estrutural, essas dinâmicas pre-
Perdão
opressões feitas através das estru- cisam ter alcance estrutural. Ad-
turas econômicas, políticas e reli- quirem uma dimensão coletiva,
Como fazer conexão com o per-
giosas afetando negativamente as com frequência expressamente
dão? A quem corresponde pedir
comunidades indígenas. pública – quando estão implica-
perdão com sinceridade e autenti-
das as estruturas do Estado. Evi-
cidade é, evidentemente, aos vio-
Reconhecer o indígena dentemente, nestas dinâmicas,
lentos. Há neste ato uma obrigação os responsáveis das estruturas
Diante deste panorama, em con- moral, tanto em seu nível pessoal em questão têm uma responsa-
junto, aos que oprimem ou margi- como cívico. Aos povos indígenas bilidade também especial, mas
nalizam e discriminam os povos in- corresponde perdoá-los. Há que todos os que participam em tor-
dígenas, o que lhes corresponde é reconhecer, com respeito empático ná-las efetivas, em que funcio-
tomar as iniciativas que dependem que inibe todo forçamento social nem, têm de assumir sua cota de
deles para que se realize a justi- ao perdão, que não tem obrigação responsabilidade.
ça, tanto em seu nível distributi- pública de perdoar, que não tem
vo como penal humanizado. Essas mais obrigação que a de não res- Perspectiva histórica
iniciativas devem incluir expressão ponder a rupturas de direitos hu-
de reconhecimento dos indígenas Por último, está a perspectiva
como vítimas deles, dor sincera 3 Declaração dos Direitos dos Povos histórica. Nesta, os indígenas que
pelo dano que lhes causou e dispo-
Indígenas das Nações Unidas: aprovada sofreram enormemente, inclusi-
pela Assembleia Geral em 2007, a Declara-
sição efetiva à reparação. Como se ção define os direitos individuais e colectivos
ve até sofrer o genocídio, já não
vê, dimensões de arrependimento para a cultura, a linguagem, a educação, a estão para reclamar justiça nem
que têm de se expressar em geral identidade, o emprego ea saúde, resolvendo perdoar. Tampouco estão os que
assim problemas pós-coloniais que confron- cometeram essas violências. Somos
publicamente. taram povos indígenas ao longo dos séculos.
A declaração visa manter, reforçar e incenti- seus descendentes. A responsabi-
Por outro lado, neste fazer justi- var o crescimento das instituições, culturas e lidade destes descendentes pela
ça frente à injustiça, há que reco- tradições indígenas. Também proíbe a discri- história passada é complexa, mas
nhecer aos povos indígenas seu di- minação contra os povos indígenas e promo-
existe. Tratando de fazer-se res-
ve a sua participação ativa em matérias que
reito ao autogoverno, proclamado dizem respeito a seu passado, presente e fu- ponsável, os representantes atuais
na Declaração dos Direitos dos Po- turo. (Nota da IHU On-Line) dos violentados e dos perpetra-

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dores podem implementar dinâ- um bom heterorreconhecimento mento de si mesmo, desejo de não
micas de perdão e de reparação, da cultura de referência e se esta ser o que se é, não porque assim
com relevantes possibilidades de é de tal natureza que não enclau- se quer desde a própria liberdade,
restauração. sura forçadamente nela, que inclui pois esta resulta oprimida, senão
a abertura à liberdade. O reconhe- porque se quer fugir da inferiori-
Todas as situações e possibilida-
cimento será adequado se é reco- zação, marginalização e opressão.
des de iniciativa diversas que sur-
nhecimento do valor da cultura do
gem das distinções consideradas
outro e se não bloqueia sua liber- IHU On-Line – Em que medida
sugerem questões relevantes à
dade. Esta liberdade deixará de ser uma ética da diferença é funda-
colocação em prática da justiça e
meramente formal quando tiver mental para um aprofundamen-
do perdão, introduzem modulações
um espaço e uma referência para to da cultura de paz em nosso
específicas. Mas em uma entrevis-
exercitar-se, para dar sentido às mundo?
ta não posso fazer-me responsável
escolhas, espaço que encontre nos
por isso. Xabier Etxeberria Mauleon –
enraizamentos culturais abertura
a outras culturas, assim como em Penso que a resposta a esta per-
IHU On-Line – Como a injustiça reconhecimento da capacidade de gunta se desprende das respostas a
afeta a identidade coletiva dos liberdade. duas perguntas precedentes, pelo
povos originários? que não vou me prolongar muito
Injustiças nela. O respeito à diferença é ex-
Xabier Etxeberria Mauleon – As
pressão do respeito à liberdade do
identidades coletivas, e em boa
Pois bem, as injustiças que os po- outro e às criações que faz com sua
medida as individuais, se constro-
vos indígenas têm sofrido e sofrem liberdade. Também é, já quando
em através de uma interação entre
são violências que forçam a deses- alcança sua versão empática, ex-
três fatores. Por um lado, através
truturar o funcionamento positivo pressão do apreço da criatividade
do enraizamento cultural nas iden-
do triângulo identitário, ferindo humana que se mostra na varieda-
tidades das que nos reconhecemos
gravemente e, às vezes, matando de de atitudes, valores, obras.
membros, em geral através da so-
cialização. Por outro lado, através – “culturicídio” – a vivência e afian- Evidentemente, a ética da dife-
do reconhecimento dos outros: nos çamento da identidade coletiva. rença tem que marcar limites, pois
Já a conquista e colonização supôs
22 autoidentificamos afetados pelas
um enorme e duríssimo mau reco-
nem toda diferença é moralmente
heteroidentificações dos demais, aceitável. Estes limites têm que
especialmente os que têm poder e nhecimento da identidade cultural configurar-se a partir dos direitos
influência. Por último, através de dos indígenas, que ia desde o me- humanos. Mas não de uns direitos
nossas iniciativas, individuais e co- nosprezo à demonização, não só de duramente ocidentalizados em
suas culturas em si senão de quem
letivas, que emergem da liberdade, suas expressões e interpretações,
eram seus portadores, com uma ex-
nos permitem gerir a nosso modo, senão abertos, à hora de ir concre-
pressão estrutural que durou sécu-
crítica e criativamente, a contri- tizando-os e desenvolvendo-os, às
los e que continuou no fundamen-
buição dos outros dois fatores e, aportações das diversas tradições
tal quando se constituíram Estados
além disso, nos abrem a encontros culturais.
independentes na América Latina.
com outras identidades coletivas
Continua inclusive agora, nos novos Isto supõe que a ética da diferen-
das quais podemos aprender e com
menosprezos. Este mau reconhe- ça, expressa nas diversidades cul-
as quais podemos contribuir.
cimento, exercido por quem tem turais e também pessoais, realiza-
Constrói-se positivamente uma poder e através de meios podero- -se adequadamente quando se abre
identidade quando se estabelece sos, é em si expressão de injusti- à interculturalidade e ao diálogo.
uma relação triangular, não hie- ça cultural, e historicamente tem Têm que levar a cabo em condições
rarquizada entre os três fatores. forçado muitos indígenas, espe- de equidade e com a intenção de
Cada um deles vem a ser um ângu- cialmente os que emigravam para buscar conjuntamente os fundos
lo do triângulo. Assim, cada ângulo as cidades, a ocultar sua identida- ético-cívicos que amparem as di-
se materializa incluindo os outros de, a não transmiti-la a seus filhos. ferenças legítimas e os enriqueci-
dois. O enraizamento cultural será O mau reconhecimento do outro, mentos que podemos aportar uns
positivo se, ao realizar-se, inclui interiorizado, cria mau reconheci- aos outros. ■

LEIA MAIS...
Justiça e Perdão. Artigo de Xabier Etxeberria Mauleon, publicado em Cadernos IHU ideias, Ano 13, número
226, de 2015, disponível em http://bit.ly/1OL0F2k.

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ESTANTE

A ilusão panóptica: Encarcerar


e punir nas imperiais cadeias da
Província de São Pedro (1850-1888)
“A lei pune, mas a forma de executá-la pode chegar a doses absurdas de
castigo”, descreve Tiago da Silva Cesar
Por Ricardo Machado e Leslie Chaves

O processo de formação do siste-


ma carcerário no Rio Grande do
Sul durante o período imperial
é o foco da obra A ilusão panóptica: En-
carcerar e punir nas imperiais cadeias da
te no ‘oásis’, mas que valorize também a
extensão do ‘deserto’. O oásis aqui seria
essas grandes prisões, chamativas desde
o ponto de vista investigativo, não cabe
dúvida, mas poucas e re-
Província de São Pedro (1850-1888) (São centes em comparação com
Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2015). as acanhadas cadeias que
O livro é resultado de uma minuciosa pes- realmente formavam a ma-
quisa realizada pelo historiador Tiago da lha prisional provincial (o
Silva Cesar. Doutor na área, o professor e deserto do qual ainda pouco
pesquisador buscou desvendar o plano de se sabe)”, ressalta.
fundo dos primórdios do sistema punitivo
Durante as pesquisas para 23
gaúcho. “Interessava-me, sobremaneira,
a escrita de “A ilusão pa-
averiguar quais ideias realmente pesaram
nóptica”, o autor constatou
durante as campanhas construtivas de
que o Brasil foi pioneiro na
estabelecimentos de nova planta, entre
implantação de estabele-
1850 e 1888, conformando em nossos pa-
cimentos correcionais na
gos um extenso e intrincado arquipélago
América Latina e também
de instituições punitivas com miradas e
em relação a muitos países
atenções diferenciadas com os reclusos”,
europeus. Ainda, evidenciou uma realida-
explica em entrevista por e-mail à IHU
de que, mesmo com o passar do tempo,
On-Line.
não sofreu muitas modificações: “Do indi-
Para Cesar, explorar essa história inicial víduo que alimentava o sistema prisional
das prisões no Estado, entre outros aspec- na segunda metade do século XIX, eu di-
tos, torna-se relevante porque evidencia ria, baseando-me nas fontes trabalhadas,
um período pregresso aos sistemas de cár- que a carne presidiária por excelência era
cere modernos, o qual é parte importante do sexo masculino, jovem, solteiro, negro
da construção de um contexto mais amplo ou não branco, e pobre. Talvez não muito
do sistema penitenciário. “A cadeia velha distante do perfil da população carcerária
aparece como uma espécie de etapa-rea- dos dias de hoje”, aponta.
lidade passada, situada na transição en-
tre os antigos aljubes e a construção das Tiago da Silva Cesar tem toda sua for-
modernas prisões. Acho que tal linearida- mação centrada na História. Nessa área
de acaba escondendo o fato de que foi é doutor pela Universidade de Córdoba
justamente nessas cadeias velhas e ruino- – UCO, Espanha, mestre e graduado pela
sas onde se viveu primeiramente, e com Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
maior incidência, a experiência histórica Unisinos. Atualmente é professor do Cen-
do encarceramento. O que proponho, tro de Teologia e Ciências Humanas da
apenas, é superar essa miragem a qual Universidade Católica de Pernambuco
chamei de ‘ilusão panóptica’, partindo de – Unicap.
uma mirada que não se prenda unicamen- Confira a entrevista.

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Quero deixar claro que não é mi-


nha intenção desmerecer tais tra-
balhos, ainda mais quando consti-
tuem contribuições singulares para
a História das Prisões. O que pro-
O sistema penitenciário ponho, apenas, é superar essa mi-
ragem a qual chamei de “ilusão pa-
dos oitocentos não se nóptica”, partindo de uma mirada
caracterizava por uma que não se prenda unicamente no
“oásis”, mas que valorize também
homogeneidade de a extensão do “deserto”. O oásis
aqui seria essas grandes prisões,
estabelecimentos chamativas desde o ponto de vis-
ta investigativo, não cabe dúvida,
IHU On-Line – Do que se trata O panoptismo2 lido através de mas poucas e recentes em compa-
seu livro, A ilusão panóptica: En- Vigiar e Punir: O nascimento da ração com as acanhadas cadeias
que realmente formavam a malha
carcerar e punir nas imperiais ca- prisão (Petrópolis: Vozes, 1987)
prisional provincial (o deserto do
deias da Província de São Pedro fez com que os historiadores se de-
qual ainda pouco se sabe).
(1850-1888) (São Leopoldo: Oi- bruçassem especialmente sobre as
kos/Editora Unisinos, 2015)? prisões modelo ou centrais (Casas O livro trata ademais das condi-
de Correção, Casa de Prisão com ções e mazelas carcerárias sofridas
Tiago da Silva Cesar – Em A ilu-
Trabalho e Penitenciárias), em de- pelos reclusos, independentemen-
são panóptica analisei o processo
trimento das ruinosas, estreitas e te da sua condição jurídica. For-
de formação do aparelho carce- mas de resistência e de existência,
insalubres cadeias municipais/co-
rário sul-rio-grandense durante o portanto, não de mera sobrevivên-
marcais que, em realidade, cons-
período imperial. Interessava-me, cia, foram analisadas juntamente
tituíam a regra prisional durante
sobremaneira, averiguar quais os oitocentos. É comum encontrar- com aqueles elementos mais caros
ideias realmente pesaram durante mos trabalhos em que a “cadeia à vida em privação de liberdade,
as campanhas construtivas de esta- velha” aparece como uma espécie como: alimentação, vestimentas,
24 belecimentos de nova planta, en- de etapa-realidade passada, situ- asseio pessoal, atenções médico-
tre 1850 e 1888, conformando em ada na transição entre os antigos -hospitalares dispensadas, etc. Es-
nossos pagos um extenso e intrin- aljubes e a construção das moder- pero ter logrado reconstruir parte
cado arquipélago de instituições nas prisões. Acho que tal lineari- significativa da teia relacional sur-
punitivas com miradas e atenções dade acaba escondendo o fato de gida da interação entre o intra e
diferenciadas com os reclusos. Eu que foi justamente nessas cadeias o extramuros, ou seja, entre esses
busquei com esse enfoque colocar velhas e ruinosas onde se viveu estabelecimentos e seus ocupan-
a Casa de Correção de Porto Ale- primeiramente, e com maior inci- tes, e as autoridades estatais, ins-
gre1, então símbolo da reforma pe- dência, a experiência histórica do tituições (polícia, exército, igreja,
nitenciária oitocentista em terras encarceramento. hospitais, etc.), e a própria socie-
gaúchas, como uma engrenagem a dade através de formas, agentes
mais do sistema, já que nem todos 2 Panóptico – panoptismo: original- e maneiras diversas de contato e
os presos da província acabavam mente criado pelo filósofo e jurista Jeremy projeções mentais.
Bentham, o panoptismo seria uma forma
entre suas grades. privilegiada de olhar, uma vigilância que gera
controle, ou seja, um olhar vigilante e contro- IHU On-Line – Historicamente,
1 Casa de Correção de Porto Alegre: lador sobre os corpos no espaço. Através des- como se constituiu o sistema car-
foi construída à margem do rio Guaíba para ta perspectiva, Bentham criou o panóptico, o
substituir a Cadeia Velha em 1855, que já ha- conceito de um projeto arquitetônico que tem cerário no Rio Grande do Sul? Que
via sido desativada em 1841, pelas péssimas por fim vigiar e observar todos os prisionei- particularidades dizem respeito
condições de insalubridade e maus-tratos aos ros dentro de um centro penitenciário, seria à realidade da Província de São
presos, denunciados por uma Comissão do uma forma mais econômica de vigilância,
Império em 1831, que apontou a necessidade pois se utilizaria apenas de um guarda, que
Pedro?
de transferir os mesmos para um lugar mais observaria os detentos dentro de um lugar Tiago da Silva Cesar – O sistema
apropriado para cumprirem suas sentenças. estrategicamente localizada. O Panoptismo
A autorização para a construção da Casa de corresponde à observação total produzindo carcerário rio-grandense, assim
Correção foi dada ainda em 1835, mas em ra- poder disciplinador na vida de um indiví- como o de outras províncias im-
zão da Revolução Farroupilha, só veio a ser duo, que também foi percebida por Foucault periais, se constituiu a partir da
retomada em 1845. O local escolhido para a (1987) como promotor de uma “Sociedade
construção foi a Praia do Arsenal, na ponta Disciplinar”, consistindo essencialmente um
promulgação do Código Criminal
do promontório da cidade, que formava um modelo de controle social por meio da reu- de 1830, quando a privação de li-
ângulo agudo no rio Guaíba e que foi selecio- nião de muitas técnicas de separação, de vigi- berdade passou a ser pena de fato.
nado por oferecer melhores condições de hi- lância, de monitoramento, de controle, que se
Isso não significa que antes não
giene, fácil acesso à água, solo rochoso para a rizomatizam pelas sociedades a partir de uma
base dos seus alicerces e o isolamento. (Nota cadeia hierárquica vindo do poder central. existissem cadeias, o que mudou
da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) com a codificação penal foi a es-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

tipulação formal de seu uso como aparelho penal-carcerário acorde ca Latina, como também o foi em
penalidade, dado que antes ser- com as demandas da época. relação a muitos países europeus.
viam, na maioria dos casos, para O Rio de Janeiro, por exemplo, já
reter o réu até seu julgamento e IHU On-Line – Que modelos de dispunha de sua Casa de Correção
sentença propriamente dita. sistema carcerário foram implan- em 1850, depois de principiada em
tados no Brasil Imperial, especial- 1834. E tal pioneirismo não se res-
Quando a pena de privação de
mente no Sul? tringiu a uma única prisão modelo,
liberdade se tornou a rainha das
pois apesar da autonomia dos go-
formas penais do Estado Liberal, Tiago da Silva Cesar – Devo co- vernos provinciais nessa matéria,
se gerou uma demanda de espaços meçar dizendo que o sistema pe- muitos tentaram erigir estabeleci-
prisionais que só aumentou com as nitenciário dos oitocentos não se mentos com tais características em
inovações trazidas com o Código do caracterizava por uma homogenei- suas capitais.
Processo Criminal de 1832. Este úl- dade de estabelecimentos, padro-
timo estipulou que os réus fossem nização de regulamentos e supri- Além disso, pode-se perceber
julgados pelo Júri do seu domicílio, mento das necessidades diárias de para o caso sulino, como a reforma
ou no lugar onde haviam cometido funcionamento das instituições e penitenciária ali não se reduziu à
o crime. Dispensa dizer que tais manutenção dos presos. E tudo isso construção da sua Casa de Corre-
determinações fizeram com que graças ao artigo 10, parágrafo 9, do ção. Muitos outros cárceres tam-
muitos municípios que não dispu- Ato Adicional de 1834, que delegou bém foram construídos paralela-
nham de cadeia (escusados pela às Assembleias Legislativas Provin- mente ao estabelecimento prisional
escassez de verbas ou à raiz da fal- ciais a incumbência de legislar so- da capital gaúcha, observando-se
ta de rigor por parte dos Ouvidores bre a construção de prisões e casas neles, inclusive, alguns elementos
de Comarcas que deviam fiscalizar de correção, além do regime a ser da ideologia correcional. Pois se o
a construção de cadeias, além da nelas adotado. Podemos, portanto, que se buscava era a emenda do
Casa de Câmara, segundo os alva- imaginar o resultado dessa medida, sentenciado, se fazia importante a
rás de criações de vilas), tivessem que deixava o assunto completa- disponibilização de recintos penais
da noite para o dia que adaptar mente nas mãos dos presidentes da salubres, higiênicos, com atenções
edifícios, alugar, ou passar a re- província. médicas, separações por sexo, sta-
querer recursos provinciais para a tus jurídico e delitos. Lembre-se
Para o caso rio-grandense, sa-
construção de edificações próprias. que o arquiteto que assinou as
bemos que alguns presidentes (in-
plantas baixas da Correção porto- 25
Dito isso, poderíamos nos fa- fluenciados pela reforma penitenci-
ária oitocentista) cogitaram desde alegrense foi o mesmo que proje-
zer outra pergunta: se a partir de
muito cedo a ideia de construir vá- tou outros cárceres que serviriam
1830/32 se gerou uma demanda
rias prisões de caráter correcional. de modelo para outros estabeleci-
por espaços prisionais, por que o
Os estabelecimentos correcionais mentos municipais.
livro arranca somente em 1850? A
resposta é simples. A demanda au- se diferenciavam dos demais espa- Em síntese, o sistema carcerário
mentou, mas graças às agitações ços prisionais por proporcionarem sulino funcionava em um conjunto
políticas que atravessaram o Im- aos reclusos elementos que – assim muito heterogêneo de estabeleci-
pério durante o período regencial, o entendiam seus idealizadores mentos. Entre 1883-1885, ou seja,
e inclusive depois, com a Praieira, e defensores – incidiam sobre sua já nos últimos anos do Império, de
em Recife/PE (1848-1850), se pode emenda moral e de conduta. Se- um total de 46 prisões, apenas 23
dizer que não houve até 1850 umas gundo a ideologia correcional, não pertenciam aos municípios ou à
condições ideais para se atender bastava apenas privar o homem província, ocupando os restantes
tal demanda, por outra parte, de delinquente de sua liberdade, tam- prédios alugados (19) ou edifícios
extrema importância para a cana- bém se fazia necessário oferecer- compartilhados com a Câmara Mu-
lização do exercício punitivo pelo -lhe meios/instrumentos para sua nicipal (4), sem que se possa preci-
Estado. Vale lembrar que a cons- regeneração. Esses instrumentos sar se estes últimos eram imóveis
trução da Casa de Correção de Por- de emenda seriam, basicamente, próprios ou alugados. Em geral
to Alegre teve que ser adiada pela o trabalho em oficinas internas nos conformavam arranjos inapro-
Farroupilha (1835-1845), e, no final mais diferentes ofícios, o ensino priados de prédios não construí-
do conflito, a prisão da futura Pe- das primeiras letras, e uma aten- dos para servir como cadeia, com
lotas que estava sendo levantada ção espiritual onde por meio de grandes deficiências estruturais
em meados da década de 1830 en- missas e confissões se reforçasse o para a manutenção dos presos em
contrava-se em ruínas. Assim, não caráter moralizante da pena. Tudo seu interior, ademais de insalubres,
deveria influenciar positivamente a
deve ser de estranhar que tenha estreitos e com pouca capacidade.
fim de se evitar a reincidência.
sido durante a década de 1850 que Devemos acrescentar que além
se tenha posto realmente em mar- Em “A ilusão panóptica”, ob- das cadeias novas, poucas e nem
cha uma autêntica campanha cons- servei que o Brasil não foi apenas sempre construídas com a rapidez
trutiva de cárceres na província, a pioneiro na implantação de estabe- e a qualidade esperada, também
fim de dotá-la efetivamente de um lecimentos correcionais na Améri- se lançou mão de antigas casas de

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moradia, quartos em destacamen- Tiago da Silva Cesar – Se posso emenda moral-comportamental).


tos do exército e em postos poli- me permitir fazer uma imagem ro- Isso explica, em boa medida, o por-
ciais, ranchos de palha, antigo ma- bot do indivíduo que alimentava o quê das oficinas e a escola terem
tadouro, e, inclusive, troncos em sistema prisional na segunda meta- constituído experiências efêmeras.
coletorias provinciais. Era nessas de do século XIX, eu diria, basean-
Nos cárceres imperiais, incluindo
infames estruturas que se aguarda- do-me nas fontes trabalhadas, que
as prisões modelo, não se discipli-
va o pronunciamento, o processo, a carne presidiária por excelência
nou, nem se corrigiu/regenerou
o julgamento, e, em alguns casos, era do sexo masculino, jovem, sol-
ninguém, a não ser que entendamos
o cumprimento das sentenças de teiro, negro ou não branco, e po-
o termo disciplinarização como uma
privação de liberdade. bre. Talvez não muito distante do
prática de aprendizagem cívica,
perfil da população carcerária dos
porque isso sim se deu no intramu-
IHU On-Line – Que tipos de con- dias de hoje.
ros penal, onde as massas oriundas
dutas eram consideradas crimi- dos setores menos favorecidos da
nosas no Brasil Império durante o IHU On-Line – Como ocorria o sociedade tinham que lidar obriga-
século XIX? castigo na segunda metade do toriamente com as leis, com a pa-
século XIX e de que forma ele se lavra escrita, com os códigos e re-
Tiago da Silva Cesar – Com o ad- tornou um expediente de discipli- gulamentos, e os valores e práticas
vento do Código Criminal do Impé- narização não somente penitenci- de reforço das hierarquias sociais
rio (1830), uma série de condutas ária, mas também social? (mesmo que isso fosse apenas para
e ações passaram a ser penaliza-
Tiago da Silva Cesar – Quero instrumentalizá-las em favor pró-
das com sentenças que, na maior
parabenizá-los pelo uso da palavra prio). As leis dispostas nos Códigos
parte, consistiam em privar o réu
“castigo” em vez de “punição”, puniam, mas as péssimas condições
de sua liberdade. De todas elas,
pois realmente castigamos mais de reclusão castigavam, e é essa re-
a miríade de crimes e delitos en-
do que punimos. A lei pune, mas alidade-imagem que se perpetuou
globados nas categorias “contra as
a forma de executá-la pode che- até nossos dias. Essa foi a exempla-
pessoas” e “contra a propriedade”
gar a doses absurdas de castigo. ridade pela qual se optou.
foi, sem dúvida, a mais reprimida
pelas autoridades policiais e judi- Nossa herança colonial nos leva a
ciais. Sendo a sociedade brasileira optar antes pelo castigo que pela IHU On-Line – De que forma o
trabalho se constituía como espé-
26 no século XIX ainda de tipo antigo, punição, pois o castigo está mais
próximo da vingança, única forma cie de alternativa paradoxal aos
portanto, longe de experimentar
uma industrialização que transfor- de reparação que, mesmo que ne- presos, por um lado como castigo
masse profundamente sua econo- gada, satisfaz um grande público, e por outro como a “solução para
chegando até mesmo a ser celebra- todos os males”?
mia, acarretando mudanças signifi-
da em certas ocasiões.
cativas no âmbito social e cultural, Tiago da Silva Cesar – A questão
não coube aos delitos contra a pro- As prisões correcionais, eu diria, do trabalho penal nos conduz no-
priedade o lugar de destaque nas chocaram com as nossas velhas vamente a pensar os valores da-
estatísticas criminais do Império, práticas punitivas. Por isso, mesmo quela sociedade. A implementação
mas sim àqueles que atentavam num momento em que as classes de oficinas nos estabelecimentos
contra a segurança e bem-estar in- abastadas e dirigentes passaram penitenciários visava, segundo a
dividual das pessoas. a se escandalizar e rechaçar cada ideologia correcional, à moraliza-
vez mais o contato visual com ce- ção dos indivíduos, convertendo
No Rio Grande do Sul, entre
nas de sofrimento alheio, incluindo homens desocupados em traba-
1850 e 1859, ferimentos e ho-
o açoite de escravos, sua ideologia lhadores morigerados através da
micídios juntos ultrapassaram
assentada na emenda e na regene- terapia laboral. O problema era
80% do total de registros. Entre
ração do delinquente não logrou que isso simplesmente não inte-
1873-1877, apesar de uma maior
encontrar eco suficiente para uma ressava às classes dirigentes. No
diversificação de delitos, as mes-
implementação efetiva. Nesse sen- caso rio-grandense, por exemplo,
mas infrações alcançaram mais tido, o caso da Casa de Correção o que pesou realmente tanto na
de 69%. E, em 1882, computando de Porto Alegre é muito sintomá- hora de abrir como na de fechar as
as tentativas de homicídio, quase tico. Observamos, por exemplo, oficinas não foi sua função mora-
89%. Como podemos ver, roubos e que a mentalidade que levava a lizadora, mas sim a possibilidade
furtos estavam ainda muito longe uma ação prática por parte dos real de garantir ou não vantagens
de tomar a dianteira dos crimes e presidentes da província estava econômicas por meio da utilização
delitos majoritariamente perse- muito mais para o que defendiam da mão de obra carcerária. É curio-
guidos e reprimidos. os reformadores penitenciários uti- so observar que ainda hoje muita
litaristas de finais do século XVIII, gente opine que o preso deveria
IHU On-Line – Qual era o perfil do que para aqueles que advoga- trabalhar para se sustentar, etc.,
da população carcerária na se- vam pela ideologia correcional mas poucos se perguntam por que
gunda metade do século XIX? (trabalho+educação+religião = eles não haveriam de querer?! As

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DE CAPA IHU EM REVISTA

prisões são autênticas plataformas controle e disciplinarização do lançando mão de todas as fissuras
de empobrecimento, além de es- sistema prisional à época? do sistema penitenciário para se
paços com escassas atividades em sentir menos engaiolado. Basta
Tiago da Silva Cesar – Os presos
que se possam ocupar seus encar- dizer que através de trocas, com-
do passado desenvolveram estraté-
cerados, motivo suficiente para pras e subornos muitos sentencia-
gias de ação e resistência de dois ti-
que o trabalho assalariado de en- dos garantiam acesso a mulheres,
pos: uma ativa e outra passiva. Am-
tão pudesse ser tudo, menos um ao consumo de bebidas alcoólicas,
bas podiam ser exercidas individual
castigo penal. Estou seguro de que à participação em jogos proibidos,
ou coletivamente, mas a ativa era
os reclusos não o viam como tal, incluindo saídas à rua para vender
normalmente aquela que se dava
mais bem o contrário, pois pior era produtos manufaturados nas pró-
de maneira direta, que não evita-
a ociosidade. Quando a princípios prias celas, incluindo visitas aos
va enfrentamentos com guardas, seus familiares.
da segunda metade do século XIX
escoltas e funcionários se neces-
silenciaram as oficinas da Casa de
Correção, isso não se deu por inte- IHU On-Line – Qual a contribui-
resse dos presos, mas sim por deci- ção da obra Vigiar e Punir, de Fou-
são governamental. cault, para compreendermos a
constituição de um determinado
IHU On-Line – Como a escolari- Ontem, como sistema carcerário? Que chaves
de leitura ele oferece para anali-
zação aparecia como alternativa
à recuperação dos presos? Que
hoje, as prisões sarmos a realidade gaúcha?
experiências ocorreram neste continuam sen- Tiago da Silva Cesar – Quando
sentido durante o final do século
XIX? do plataformas li Vigiar e Punir: O nascimento da
prisão (Petrópolis: Vozes, 1987)
Tiago da Silva Cesar – Retoman- de empobreci- pela primeira vez fiquei fascinado
com a obra em geral, e, especial-
do o que já se disse antes, tanto
o trabalho como a instrução esco-
mento e envelhe- mente, com a análise do panoptis-
lar formal foram considerados, no cimento humano mo e das técnicas e mecanismos
século XIX, ingredientes de uma disciplinares. Confesso que per-
espécie de coquetel disciplinar e
moralizante pensado para as clas-
maneci por certo tempo “preso
do panóptico foucaultiano”, e até
27
sário fosse, além de jogar com as desejei encontrar a minha prisão
ses criminais e perigosas. Assim
como se daria com o trabalho, as possibilidades de evasão. A adapta- panóptica para historiá-la. Poste-
luzes também incidiriam sobre a tiva, por sua vez, caracterizava-se riormente, já digerida a leitura,
conduta do indivíduo, converten- pela maleabilidade demonstrada e ciente dos limites daquela obra,
do um “bruto” sentenciado em um na hora de tirar proveito dos me- entendi (em boa parte por boca
indivíduo útil e dócil à sociedade. andros institucionais, das relações do próprio autor através de suas
A ideia da instrução como remédio travadas no intramuros carcerário entrevistas) que seu objetivo não
ou tratamento para a regeneração. e com indivíduos de fora das gra- era justamente fazer uma história
Porém, semelhantemente ao que des, dos contatos com pessoas im- das prisões em toda regra, mas sim
ocorreu com as oficinas de trabalho portantes, incluindo a utilização refletir a partir desta instituição
assalariado (que chocou com os va- de canais burocráticos que exigiam como se deu o nascimento/origem
lores da sociedade escravocrata), um domínio mínimo de escrita e da chamada sociedade disciplinar.
também a escola ensaiada no in- de códigos de conversação formal
para dirigir-se às autoridades. A prisão panóptica surge aqui
terior do recinto penal da Casa de como alegoria dessa sociedade,
Correção não teve os resultados es- Claro está que um preso podia já que desde uma torre central se
perados. Para o período estudado, passar de um estado a outro sem poderia ver rapidamente o que se
logramos documentar apenas duas maiores problemas, mas há sufi- passava em qualquer extremidade
iniciativas escolares sem grande cientes dados que levam a crer dos raios com ela conectados, po-
vulto, e, pelo que se desprende que a resistência adaptativa foi de dendo ainda transmitir uma sensa-
desses documentos, nada indica longe o comportamento mais assu- ção de vigilância constante ao não
que tivessem tido uma existência mido pela massa encarcerada. Ape- deixar visível o rosto de quem mo-
muito longeva. No final das contas, sar de contas, uma falsa submissão nitoraria desde dentro. Foucault,
optou-se pela “escola do crime”, às ordens, leis e regulamentos era sem sombra de dúvidas, nos ajuda
mas também nesse caso, não por- muito mais conveniente para uma a pensar o lugar ocupado por essas
que tivesse sido a alternativa dada ação estratégica de sobrevivência instituições dentro da nova racio-
a escolher aos presidiários. do que uma resistência aberta. Mas nalidade punitiva, como a necessi-
gostaríamos ainda de dizer que, dade de aceleramento do processo
IHU On-Line – Que tipos de re- além disso, o presidiário do passa- civilizador (político, econômico e
sistência havia aos processos de do também tentou viver na prisão, social) que ia tornando paulatina-

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mente incompatível a existência Foucault partia de algumas inter- sem dores na consciência, continu-
de penalidades infamantes e san- rogações, como por exemplo: por amos sendo coniventes com uma
guinárias com a nova sensibilidade que as prisões permaneceram ape- situação de abandono extremo e
civilizada da sociedade burguesa sar de sua contraprodutividade? com as condições infra-humanas
e liberal. Mas nesse processo de Ou a quem/e para que serve esse impostas a homens e mulheres pri-
transição de paradigmas penais, fracasso? Ou dito de outra forma, vados de liberdade.
o poder capilar e disciplinar nem para que são úteis esses diferentes
Tanto ontem como hoje o pro-
sempre saiu vitorioso. fenômenos constantemente criti-
cados: pertinácia da delinquência, blema, a mim me parece, continua
Conforme falei anteriormente, no indução à reincidência, transfor- sendo apenas o de buscar mais es-
Brasil as instituições prisionais não mação do infrator ocasional em paços prisionais para a demanda
apresentaram durante o período delinquente habitual, organização que não deixa de aumentar. Con-
imperial uma uniformidade de mo- de um meio fechado de delinquên- tinuamos criminalizando muitas
delos, controles, vigilâncias, regu- cia? Segundo sua tese, quanto mais ações e comportamentos achando
lamentos, etc., nem constância em delinquentes existam, mais crimes que isso basta para a transforma-
sua aplicabilidade a ponto de servir existirão, e quanto mais crimes, ção de uma sociedade, mas esque-
de instrumentos de docilização do mais medo terá a população, e cemos que a base está na distri-
corpo. Pelo contrário, permitiam o quanto mais temor tenha a popu- buição da renda, na melhoria das
surgimento de fissuras no sistema, lação, mais aceitável e desejável condições de vida, portanto, na
que só aumentava com a inevitável será o sistema de controle policial- erradicação da pobreza e, claro
interação entre presidiários e car- -penitenciário. A um só tempo jus- está, na educação de qualidade.
cereiros. Muito longe da imagem tifica o controle policial e esconde Enquanto desvalorizarmos os pro-
projetada de meros sepulcros pro- a rentabilidade econômica da de- fissionais da educação, ou, o que
visórios, nesses estabelecimentos, a linquência, sobretudo através dos é pior, fecharmos escolas, não res-
vida não parava. Tirando isso, Vigiar diferentes tipos de tráfico: drogas, tam dúvidas de que iremos necessi-
e Punir continua inspirando historia- armas, bebida alcoólica, combustí- tar construir muitos outros comple-
dores seniors e nouvelles, ademais veis, prostituição e outros. A delin- xos penitenciários. Não devemos
de servir como uma autêntica caixa quência torna possível o que por si esquecer que somos uma sociedade
de ferramentas conceituais. Acredi- não pode ser realizado legalmente repressora, hierarquizada, racista,
na sociedade. Não esqueçamos que desigual e relacional, e tais valores
28 to que, para analisar uma ingente
quantidade de técnicas e controles o surgimento de estabelecimentos culturais se reproduzem e se refor-
disciplinares, até o de uma delinqu- prisionais privatizados aumenta çam na própria exclusão social da
ência útil, seu refinamento analítico ainda mais o peso econômico da maioria por uma minoria, essa sim,
e seus insights interpretativos con- delinquência. Num país com a ter- portadora de todos os direitos ci-
tinuam, quarenta anos depois, insu- ceira maior população carcerária vis, políticos e sociais.
peráveis. Em A ilusão panóptica, a do mundo, com mais de 700 mil
A reforma penitenciária oito-
proposta teórico-metodológica não presos, perdendo somente para
centista fracassou porque mais do
excluiu Foucault, mas seu uso é ins- a dos Estados Unidos e para a da
que corrigir ou emendar, o que
trumental, isto é, sem espartilhar China, como escapar do business
realmente interessou aos gover-
as fontes que, por outra parte, nos carcerário?
nantes foi a edificação de sólidas
convidaram a continuar avançando. prisões, com maior capacidade e
IHU On-Line – Ainda que a rea- segurança. Vendo as coisas retros-
O poder em Foucault lidade atual do sistema carcerário pectivamente, percebo que nunca
não seja seu objeto de estudo, houve de fato uma política que
Para Michel Foucault, a proble- que aproximações percebe en- procurasse inverter a velha função
mática relativa ao conceito de tre o sistema carcerário gaúcho estigmatizadora e de reforço social
poder consistiu em um de seus do século XIX e o sistema atual da pena de privação de liberda-
principais eixos de investigação e penitenciário? de. Ontem, como hoje, as prisões
expansão de seu pensamento, pa- Tiago da Silva Cesar – Enquanto continuam sendo plataformas de
tentemente reconhecido em suas no século XIX se utilizava a pala- empobrecimento e envelhecimen-
obras. Para Foucault, o poder é vra “regenerado” para se referir à to humano. Superlotações, fome,
mais exercido que possuído, ou emenda moral-comportamental do doenças, pobreza extrema, mor-
melhor, só se possui exercendo-o, presidiário, hoje se usa “ressocia- tes e agressões de todo tipo e todo
e não se localiza em nenhuma par- lizado” para aqueles que logram tipo de vexames continua sendo
te, senão na própria relação de for- sair em liberdade e reintegrar-se sua marca registrada. Talvez esse
ças entre dominados e dominantes. plenamente. Cento e sessenta anos quadro seja justamente o motivo
Apreender suas práticas e estraté- nos separam da abertura do primei- de sua existência e permanência
gias – de poder – é desentranhar ro raio da Casa de Correção (1855), no tempo, pois como disse a princí-
sua microfísica, compreendê-la, com a realidade escalofriante de pio, nossa sociedade não pune, ela
desvelar sua rede capilar. nossos atuais presídios (2015), e, castiga.■

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EVENTOS

Advocacia popular, uma


manifestação do Comum
Joviano Mayer apresenta uma outra forma de “operar o Direito”,
com militância, como ato político

29
FOTO: JOÃO VITOR SANTOS

Por João Vitor Santos

Conceituar a ideia de Comum não nas Gerais – UFMG Joviano Gabriel fensoria Pública. Advocacia popular
é tarefa muito fácil. Ainda é algo Maia Mayer, em mais um encontro é militância, ativismo, se faz como
em construção, constituído de for- do 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, um projeto político”, completa. O
ma coletiva e colaborativa, agre- Políticas Públicas e Tecnologias de trabalho dos Margaridas consiste
gando diversos movimentos e ma- Governo. Territórios, governamen- em advogar em favor de grupos co-
nifestações que emergem da base to da vida e o comum,1 promovido letivos que fazem ocupações orde-
social. Entretanto, é possível se pelo Instituto Humanitas Unisinos nadas. Muitas das ocupações se dão
aproximar mais do conceito quando – IHU. como luta pela conquista de mo-
se veem manifestações, e constru- Na conferência, ocorrida na noi- radia em espaços urbanos. Depois
ções, de coletivos dentro da lógica te de quinta-feira, 07-10, Joviano do coletivo tomar posse do espaço
do Comum. É o caso do Coletivo destacou que advocacia popular é improdutivo, é papel desses advo-
Margarida Alves, que exerce a cha- mais do que exercer a função de gados defenderem os interesses
mada advocacia popular. A experi- operador do Direito, de ser advoga- das famílias e, mais adiante, asse-
ência do grupo de Belo Horizonte, do. “É um ato político”, pontua. “E gurar a posse dos lotes. “A função
Minas Gerais, foi apresentada pelo não podemos confundir com a De- social da terra e da propriedade,
advogado e mestre em arquitetura 1 Saiba mais em http://bit.ly/1HzxGLT. (Nota
assegurada em lei, traz legitimida-
pela Universidade Federal de Mi- da IHU On-Line) de para essa luta de quem não tem

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

onde morar. As ocupações fazem nos casos de ocupações de Belo Ho- namento da vida e o comum
parte da história das cidades bra- rizonte, como a Dandara. O local ocorre no dia 22 de outubro. O
sileiras”, defende, ao lembrar que hoje abriga cerca de 1800 famílias. professor Mário Leal Lahorgue,
as áreas invadidas têm a situação “Nessas comunidades, é funda- da Universidade Federal do Rio
jurídica minuciosamente investiga- mental a construção de projetos Grande do Sul – UFRGS, falará
da. “Sabemos a quanto tempo está urbanísticos desde o momento em sobre Guerra dos lugares: a co-
sem uso e até quanto deve de im- que entramos. Isso gera outro tipo lonização da terra e da moradia
postos, como IPTU”. de relação social com as pessoas.
na era das finanças.
Não se promove um adensamento.
A assessoria jurídica popular,
Já pensamos em ruas, avenidas e • Interessados em conhecer mais
como destaca Joviano, requer en-
espaços comuns de convivência. É sobre o trabalho dos Margari-
volvimento por completo. Além de
diferente de pensar nas ocupações das podem acessar a página no
todo o levantamento da área, tam-
cheias de vielas, becos e um barra- Facebook.
bém é preciso conhecer as famílias
co em cima do outro”, explica.
e planejar como será a ocupação. • A ONG Acesso Cidadania e Direi-
São como amarras que, mais tar- Fique atento tos Humanos também tem sua
de, sustentarão recursos que der- página no Facebook. O telefone
rubam reintegração de posse e, • A próxima conferência do 2º para contato é 51-3028-8058.■
inclusive, darão caminho para o Ciclo de Estudos Metrópoles,
poder público realizar a urbaniza- Políticas Públicas e Tecnologias Confira a reportagem completa
ção destes espaços. É o que houve de Governo. Territórios, gover- em http://bit.ly/1RMm9eH

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EVENTOS

Vivenciar a Laudato Si’ em


suas diversas perspectivas
Trazer para o cotidiano dos estudantes as experiências da Carta Encíclica do
Papa Francisco foi um dos objetivos da mesa-redonda promovida pelo Instituto
Humanitas Unisinos – IHU
Por Leslie Chaves

to, do qual estiveram à frente a


professora Cleusa Maria Andreatta,
do Programa Teologia Pública do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
que esteve coordenando a mesa,
Lucas Henrique da Luz, professor e
coordenador do curso de Adminis-
tração da Unisinos e integrante do
IHU, Manfredo Araujo de Olivei-
ra, professor titular da Universi-
31
FOTOS: LESLIE CHAVES

dade Federal do Ceará, e Laércio


Pilz, professor do departamento
de Ciências Humanas da Unisinos.

De acordo com a professora Cleu-


Para Manfredo Araujo de Oliveira, a visão integral é a grande novidade sa Maria Andreatta, a ideia é pro-
mover uma apresentação acadêmi-
O documento elaborado por Ber- campus São Leopoldo da Unisinos.
ca da Laudato Si’ e compreender
goglio com acuidade a respeito dos Estudantes de diversas áreas do co-
sua relevância e contribuição atual
graves problemas ambientais que o nhecimento participaram do even-
planeta tem sofrido gerou impacto
tanto no campo científico quanto
na sociedade como um todo, em
função dos alertas amparados em
dados consistentes e, sobretudo,
pela sua visão sistêmica a respeito
das relações entre os seres huma-
nos, deles com a natureza e entre
os fenômenos que acontecem no
mundo. Para debater a importân-
cia da Carta Encíclica Laudato Si’,
na noite da última quinta-feira, 15-
10-2015, foi realizada uma mesa-
-redonda no Auditório Central do
Laércio Pilz: “A universidade é um espaço privilegiado de vida e de pensamento aberto”

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Para Manfredo Araujo de Olivei-


ra, a visão integral é a grande no-
vidade. O professor, que ficou en-
carregado de falar sobre as raízes
humanas da crise ecológica, frisa
que a visão tecnológica dos seres
humanos sobre a vida criou o antro-
pocentrismo moderno. “Essa visão
tem muitas consequências, e a pior
delas é o relativismo prático. Desse
modo, os seres humanos e todos os
outros seres e elementos do mundo
se reduzem a objetos descartáveis
e utilizáveis”, salientou.

A mesa-redonda foi encerrada


com uma proposta do professor
Laércio Pilz aos estudantes presen-
tes. O professor falou sobre o papel
da universidade e quais são os de-
safios da sociedade na busca da re-
solução dos problemas apontados
pela Laudato Si’. “A universidade
é um espaço privilegiado de vida e
32 de pensamento aberto. Nosso obje-
tivo, quando ingressamos nesse lu-
gar, é compreender o mundo. Mas
Cleusa Andreatta: “Laudato Si’ assume uma abordagem ecumênica e inter-religiosa”
é importante que isso seja feito de
uma maneira integral”, provoca. ■
ao debate sobre os grandes desafios e pensamos que não seremos afe- Confira a reportagem completa
da crise ambiental hoje. “A Laudato tados, mas hoje estamos sentindo em http://bit.ly/1W0l83a.
Si’ assume uma abordagem ecumê- essa chuva aqui”, exemplifica.
nica e inter-religiosa, citando líde-
res de diversos credos. Também se
baseia na colegialidade, busca nos
contextos específicos os debates
em torno das questões ecológicas,
e ainda tem um caráter multi-inter-
transdisciplinar”, enumera.

O professor Lucas Henrique da Luz


mencionou a questão da instabilida-
de do tempo, que na última semana
tem castigado o Rio Grande do Sul
com temporais e excesso de chuva.
“Estar aqui hoje é um desafio repre-
sentativo, em função das mudanças
climáticas. Assistimos aos proble-
mas de desmatamento na Amazônia Lucas Henrique da Luz lembrou da instabilidade do tempo que tem castigado o Rio Grande do Sul

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IHU
ON-LINE

Tema de
Capa
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Biografia

Johann Christian Friedrich Hölderlin


Johann Christian Friedrich Hölderlin (Lauffen am Neckar, 20 de março de 1770
– Tübingen, 7 de junho de 1843), poeta lírico e romancista alemão. Conseguiu
sintetizar na sua obra o espírito da Grécia antiga, os pontos de vista românticos
sobre a natureza e uma forma não ortodoxa de cristianismo, alinhando-se hoje
entre os maiores poetas germânicos.

Vida nanceiramente do
apoio de sua mãe.
Nasceu na cidade de Lauffen, Nessa altura, Höl-
às margens do rio Neckar. Era fi- derlin já sofria de
lho de uma enfermeira e de um uma doença cha-
pastor, que veio a falecer quando mada hipocondria
Hölderlin tinha apenas dois anos. grave, condição
Em 1774, sua mãe casou-se com que pioraria de-
o prefeito de Nürtingen, que tam- pois de seu último
bém viria a falecer cinco anos mais encontro com Su-
tarde. A mãe de Hölderlin, Johan-
sette Gontard, em
na Christiana Hölderlin, era bas-
1800.
tante religiosa e enviou-o à escola
clássica de Nürtingen e a escolas Quando, em
protestantes. 1802, recebeu a

Friedrich Hölderlin 1792 por Franz Karl Hiemer


Em 1788 iniciou seus estudos em notícia da morte
36 Teologia na Universidade de Tübin- de Susette, Höl-
gen, como bolsista. Lá conheceu derlin voltou para
Hegel e Schelling, que mais tarde a casa da mãe
se tornariam seus amigos. Devido em Nürtingen e
aos recursos limitados da família e dedicou-se ao tra-
de sua recusa em seguir uma car- balho das tradu-
reira clerical, Hölderlin trabalhou ções de Sófocles e
como tutor para crianças de famí- Píndaro.
lias ricas. Em 1805 sua
Em 1794, frequentou a Univer- insanidade foi
sidade de Jena, a fim de ouvir as diagnosticada. En-
palestras de Fichte. Lá ele conhe- tretanto, essa ca-
ceu Johann Wolfgang von Goethe, Produção Literária
racterização de seu estado mental
Friedrich Schiller, Johann Gottlieb como loucura é até hoje vista de
Fichte, Friedrich Von Hardenberg Hölderlin começou como um su-
forma incerta. cessor de Schiller e do Classicismo
(Novalis) e Isaac Sinclair. Em junho
de 1795, abandonou a cidade uni- Então, em 1807 foi deixado aos Suábio. Seus primeiros poemas são
versitária e retornou a Nürtingen. cuidados de Ernst Zimmers, um geralmente hinos que versam acer-
Em 1796 foi professor particular carpinteiro que vivia em Tübin- ca de objetos abstratos. Mais tarde
de Jacó Gontard, um banqueiro de gen e grande admirador da obra trabalhou com as formas antigas
Frankfurt, cuja esposa, Susette, viria Hipérion. Sob o nome de “Scarda- da ode e da elegia. Em particular,
a ser seu grande amor. Susette Gon- nelli”, Hölderlin escreveu ainda as odes são marcadas pelo domí-
tard serviu de inspiração para a com- poemas, que contavam com gran- nio completo de um formulário
posição de Diotima, protagonista de de estranhamento formal. Mesmo métrico difícil. Dos grandes poe-
seu romance epistolar Hipérion. contando com alguns períodos mas de sua fase madura, alguns
Nessa época, Hölderlin se encon- de lucidez, não retornou mais são escritos em forma de elegias,
trava em uma situação financeira ao convívio social. Durante os 36 outros contemplam o verso livre.
difícil (mesmo tendo alguns de seus anos seguintes permaneceria em Ocasionalmente é possível encon-
poemas publicados ocasionalmente um quarto em uma torre, às mar- trar outras formas, como o hino em
com a ajuda do seu patrono, Schil- gens do rio Neckar, até 1843, ano hexâmetro; um exemplo é a obra
ler). Devido a isso, ele dependia fi- de sua morte. chamada O Arquipélago.

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A compreensão de Hölderlin Somente no século XX, as duas derlin não encontrou a notoriedade
acerca da cultura grega antiga, peças de Sófocles, Édipo Rei e An- nem o reconhecimento destes.
tal como expresso em suas cartas tígona, foram celebradas como um
a Casimir Ulrich Boehlendorff e de A incompreensão do público e da
modelo de tradução poética, que
suas observações sobre a tradução crítica levou à estabilização do en-
deixa visíveis as singularidades do
tardia de Sófocles, é diferente da tendimento de sua obra como a de
texto original. Um bom exemplo
imagem ideal de muitos de seus da excelente recepção da obra um admirador dos gregos que não
contemporâneos, já que Hölderlin de Hölderlin na modernidade é a atingiu a serenidade de Goethe e
enfatiza as características anticlás- adaptação de Bertolt Brecht da Schiller, a de um romântico juvenil
sicas da cultura grega. Já no início Antígona de Sófocles, baseada na e de um poeta patriótico. Hölder-
de seu romance epistolar Hipérion, tradução de Hölderlin. Convém lin, poeta do sagrado, descobrindo
Hölderlin representa a sua ideia de salientar que, apesar de ter sido na Grécia antiga o lado dionisíaco,
destino trágico, como ele a conce- praticamente incompreendido que foi ignorado por Goethe e exal-
bia, ou seja, a partir de sua per- durante todo um século, leitores tado por Nietzsche, é hoje de gran-
cepção da cultura grega clássica. ilustres como Friedrich Nietzsche e de expressividade na poesia alemã,
A poesia de Hölderlin, que hoje Stefan George, entre outros, aco- alcançando notoriedade mundial.
é considerada de grande destaque lheram e fizeram reverberar sua
dentro dos estudos germânicos, poesia. O que fez com que Hölder- Obras
permaneceu desconhecida até a lin não fosse reconhecido foi o fato
1797 – 1800 – A Morte de Empédocles
metade do século XIX. Ele não foi de que sua poética não estava em
(fragmentos)
reconhecido entre os escritores consonância com o que vinha sendo
produzido na época. Devido a isso, 1797 – 1799 – Hipérion ou O Eremita
de sua época, permanecendo des-
Hölderlin encontrou o desdém até na Grécia
conhecido mesmo após sua mor-
mesmo de pessoas próximas como 1804 – Tragédias de Sófocles
te. Para os seus contemporâneos,
Hölderlin era um jovem romântico Schiller, Hegel e Schelling. E mes- 1826 – Poemas de Friedrich Hölderlin
e melancólico, mero imitador de mo tendo sido colega de Hegel e (editado por Ludwig Uhland e Gustav
Schiller. O grande reconhecimento Schelling, em um educandário na Schwab)
veio mais tarde. Suábia, e colega de Schiller, Höl- Fonte: http://bit.ly/1MrTxD3

37
Referências Bibliográficas
HÖLDERLIN, Friedrich. Poemas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
_____. Elegias. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio e Alvim, 1992.
_____. A Morte de Empédocles. Tradução e introdução de Marise Moassab Curiori. São Paulo: Iluminuras, 2008.
_____. Reflexões. Trad. Márcia de Sá Cavalcante e Antonio Abranches. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
_____. Hölderlin e outros estudos. In: QUINTELA, Paulo. Obras Completas de Paulo Quintela. Volumes II, III e IV.
Lisboa: Calouste Guilbekian. 1999
________. Observações sobre Édipo e Antígona. In: ROSENFIELD, K. Antígona – de Sófocles a Hölderlin. Porto Alegre:
L&PM. 2000.
_____. Hipérion ou o eremita na Grécia. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.
BLANCHOT, M. A palavra “sagrada” de Hölderlin. In:_____. A parte do Fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1997.
_____. O itinerário de Hölderlin. In:_____. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral.
Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987.
CAMPOS, H. A palavra vermelha de Hölderlin. In:_____. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva,
1977.
CAVALCANTE, M. Introdução: Pelos caminhos do coração. In: Hölderlin. Reflexões. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994.
DASTUR, F. Hölderlin: Tragédia e Modernidade. In: Reflexões. Trad. Márcia de Sá Cavalcante e Antonio Abranches.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
_____. O teatro de Hölderlin. In: Folhetim do Pequeno Gesto. Rio de janeiro, nº4,
1999.
MACHADO, R. Hölderlin e o afastamento do divino. In:_____. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
MAYOS, G. vHölderlin, um projeto emancipatório fracassado, In Convivium, Barcelona, Núm. 3, 1992 (traduzido por
Gabriel Lago de Sousa Barroso).
ROSENFIELD, K. Rumo a uma linguagem inacabada: a propósito da ode “coragem de poeta” de Hölderlin. In.
_____. A linguagem Liberada. Coleção Debates. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
_____. Antígona – de Sófocles a Hölderlin. Porto Alegre: L&PM, 2000.

Fonte: http://bit.ly/1MrTxD3

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

A sofisticada poesia de Hölderlin


Ideia das trevas que permeiam nosso tempo é tributária ao poeta alemão,
afirma Françoise Dastur
Por Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Vanise Dresch

P ode-se pensar na poesia como


o único modo adequado de fa-
lar “desses terríveis aconteci-
mentos que são os extermínios de se-
res humanos em massa, pois estes não
nem Schiller, que julga sua poesia filo-
sófica demais, são realmente capazes
de compreender o significado da poesia
de Hölderlin”.
Françoise Dastur é professora emé-
são próprios do nazismo somente, mas
rita de Filosofia, vinculada aos Arqui-
também do comunismo e, antes deles,
vos Husserl de Paris, na École Normale
de todos os massacres de massa que
Supérieure – ENS. Lecionou nas univer-
marcaram a época colonial e que ca-
sidades Paris I, Paris 12 e Nice-Sophia
racterizam efetivamente essa ‘noite’
Antipolis e, como professora convi-
que é a Modernidade, segundo Hölder-
dada, na PUC do Rio de Janeiro, nas
lin”. A reflexão faz parte da entrevista,
universidades de Caracas (Venezuela),
concedida por e-mail, com a filósofa
Laval (Quebec), de Warwick, Essex
francesa Françoise Dastur à IHU On-
(Reino Unido), De Paul (Chicago), Bos-
Line. “Os poetas assemelham-se aos
ton College, Northwestern (Evanston),
sacerdotes do deus do vinho, que ates-
além de ter dado conferências em dez
tam o sagrado nessa noite profunda
38 que é a Modernidade”, observa.
universidades na Índia em 2011. É di-
retora honorária da Escola Francesa
E acrescenta: “Ao ler Sófocles, Höl- de Daseinsanalyse, da qual foi um dos
derlin entende, de fato, que só há membros fundadores. Publicou muitos
tragédia propriamente dita quando o artigos em francês, alemão e inglês e
deus se retira, quando a aspiração à é autora de quinze livros. Suas últimas
totalidade não tem mais objeto, e o publicações: À la naissance des choses.
homem tem de fazer o luto do divino, Art, Poésie et philosophie (La Ver-
como diz literalmente, aliás, a palavra sanne: Encre Marine, 2005), Heidegger.
alemã para tragédia, Trauerspiel, jogo La question du logos (Paris: Vrin, 2007),
ou espetáculo do luto. É esse luto do La mort. Essai sur la finitude (Paris:
divino que constitui a experiência fun- PUF, 2007), Heidegger et la pensée à
damental dos tempos modernos”. A in- venir (Paris: Vrin, 2011) e Hölderlin, le
compreensão do poeta por seus pares retournement natal (nova edição am-
é outro aspecto abordado por Dastur: pliada – Paris: Les Belles Lettres – Encre
“Na verdade, nem Goethe, que não vê Marine, 2013).
Hölderlin como um verdadeiro poeta,
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a relação pensador pré-socrático que, como escrever uma tragédia moderna.
que pode ser estabelecida entre se conta, jogou-se voluntariamen- Foi depois desse fracasso, contu-
tragédia e Modernidade na poesia te no Etna. Porém, depois de três do, que decidiu dedicar-se à poesia
de Hölderlin? lírica e compôs seus mais famo-
tentativas sucessivas que deram
Françoise Dastur – É preciso co- origem a três versões diferentes, sos poemas. Ele volta à tragédia
meçar lembrando que Hölderlin, somente nos últimos anos de sua
todas incompletas, de A morte de
autor em 1776 do romance Hipé- vida consciente e pouco antes de
Empédocles1, Hölderlin desistiu de
rion, criou posteriormente o proje- mergulhar na loucura, mas apenas
to de escrever uma tragédia cujo 1 São Paulo: Iluminuras, 2008. (Nota da IHU como intérprete e tradutor das tra-
tema era a morte de Empédocles, On-Line) gédias de Sófocles.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Luto do divino
O personagem de Empédocles o
permite compreender que a tragé-
Novalis é animado pela mes- dia grega, a qual encenava a hybris
do herói, sua desmedida e sua as-
ma exigência que se expres- piração a unir-se imediatamente
sava nos três condiscípulos à totalidade, não se adapta mais
ao tempo presente, ao qual cor-
do seminário de Tübingen responde outro tipo de trágico. É
nesse momento então que Hölder-
lin começa a traduzir para o ale-
Parece então que foi a partir da ressou-se muito cedo pela tragédia mão as tragédias de Sófocles8, em
grega. Porém, comparado a eles, particular Édipo Rei e Antígona9, e
reflexão sobre esse modo peculiar
caracteriza-se por uma concepção as acompanha das “Observações”,
da poesia que é a tragédia, que Höl-
totalmente original da relação da pois é preciso mostrar que o trá-
derlin tomou consciência da dife-
gico no sentido moderno não pode
rença que separa os modernos dos Modernidade com a Antiguidade. A
ser mais que uma nova compreen-
antigos. Como seus dois condiscípu- oposição entre os antigos e os mo-
são profunda do trágico grego. Em
los do seminário de Tübingen, He- dernos já havia sido o tema de seu
suas Observações sobre as tragé-
romance Hipérion, e a conclusão
gel2 e Schelling3, e já como Lessing4, dias de Sófocles10, ele explica que
de Hölderlin era de que essa oposi-
Schlegel5 e Schiller6, Hölderlin inte- o homem moderno, ao contrário
ção permanecia insuperável.
do grego, não tem relação com a
2 Friedrich Hegel (Georg Wilhelm Frie- De fato, é pela impossibilidade moira, com o destino, pois nasceu
drich Hegel, 1770-1831): filósofo alemão
idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de reavivar a cultura antiga que solitário, separado, estritamen-
de Aquino, tentou desenvolver um sistema Hipérion escolhe, no final do ro- te individuado e enclausurado em
filosófico no qual estivessem integradas todas mance, a vida de eremita, isto é, sua interioridade, enquanto o ho-
as contribuições de seus principais predeces-
sores. Sobre Hegel, confira no link http://bit. a união com a natureza. Mas se mem grego é nativamente aberto
ly/ihuon217 a edição 217 da IHU On-Line, Hölderlin tivesse mantido essa po- ao todo.
de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia
do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich He-
sição, teria sido apenas mais um O homem moderno perdeu o sen- 39
gel (1807-2007), em comemoração aos 200
exemplo dessa nostalgia da Grécia, so do compartilhamento, do desti-
anos de lançamento dessa obra. Veja ainda que foi tão comum em sua época. no e, nesse aspecto, aproxima-se
a edição 261, de 09-06-2008, Carlos Rober- Nos anos seguintes, conscientiza- de certos heróis de Sófocles, Édipo
to Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler
-se de que não há retorno possível em particular, a respeito do qual
Hegel, disponível em http://bit.ly/ihuon261,
e Hegel. A tradução da história pela razão, à Antiguidade. Hölderlin opõe-se, Sófocles diz, em Édipo em Colo-
edição 430, disponível em http://bit.ly/ assim, ao Classicismo de Winckel- no11, que ele se encontra no dys-
ihuon430. (Nota da IHU On-Line) mann7, para quem a arte grega é a
3 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm moron, na ausência de destino,
Joseph von Schelling, 1775-1854): filósofo norma perfeita de toda a arte por uma vez que sobreviveu à revela-
alemão. Suas primeiras obras são geralmente vir. Segundo ele, devemos ser mo- ção dos crimes terríveis que, sem
vistas como um elo importante entre Kant e dernos e, embora os gregos possam
Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas
desejar, cometeu, tornando-se as-
obras são representativas do idealismo e do continuar a nos dar o exemplo, não sim atheos, abandonado pelo deus,
romantismo alemães. Criticou a filosofia de podemos buscar nossos modelos na e não ateu no sentido moderno do
Hegel como “filosofia negativa”. Schelling Antiguidade. É preciso, de fato, termo.
tentou desenvolver uma “filosofia positiva”,
que influenciou o existencialismo. Entrou
distinguir o modelo do exemplo, o
que tem para ser imitado em um Ao ler Sófocles, Hölderlin en-
para o seminário teológico de Tübingen aos
16 anos. (Nota da IHU On-Line) sentido estático e reprodutivo da- tende, de fato, que só há tragédia
4 Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781): propriamente dita quando o deus
quilo que pode ser seguido de ma-
filósofo e escritor alemão. Considerado um se retira, quando a aspiração à to-
dos maiores escritores alemães do século neira dinâmica e inventiva.
talidade não tem mais objeto, e
XVIII, é um autor de extrema importância
para o neoclassicismo de Goethe, Schiller, Al- mão e do Classicismo de Weimar. Sua ami- o homem tem de fazer o luto do
fieri e Chénier. (Nota da IHU On-Line) zade com Goethe rendeu uma longa troca
5 August Wilhelm von Schlegel (1767- de cartas que se tornou famosa na literatura 8 Sófocles: dramaturgo grego. Viveu em
1845): crítico, tradutor, filólogo e professor alemã. Sua poesia também é famosa, como Atenas, cerca de 400 anos antes da Era Cris-
universitário alemão, irmão do também fi- por exemplo a “An die Freude”, que inspirou tã. Considerado um dos mais importantes
lólogo Friedrich von Schlegel. (Nota da IHU Ludwig van Beethoven a escrever, em 1823, escritores gregos da tragédia. Édipo Rei, An-
On-Line) o quarto movimento de sua nona sinfonia. tígona e Electra são as suas peças mais conhe-
6 Johann Christoph Friedrich von (Nota da IHU On-Line) cidas. (Nota da IHU On-Line)
Schiller (1759-1805): poeta, filósofo e histo- 7 Johann Joachim Winckelmann (1717- 9 Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. (Nota da
riador alemão, tido como o mais importante 1768): historiador de arte e arqueólogo ale- IHU On-Line)
dramaturgo alemão. Schiller foi um dos gran- mão. Foi o primeiro a estabelecer distinção 10 Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (Nota da
des homens de letras da Alemanha do século entre arte Grega, Greco-Romana e Romana. IHU On-Line)
XVIII, e juntamente com Goethe, Wieland e É um dos pais da história da arte. (Nota da 11 Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. (Nota da
Herder é representante do Romantismo ale- IHU On-Line) IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

divino, como diz literalmente, ali- homem. O que Hölderlin nos faz aspirações mais profundas é, sem
ás, a palavra alemã para tragédia, compreender, na verdade, é menos dúvida, o que ainda temos para
Trauerspiel, jogo ou espetáculo a necessidade do herói trágico de compreender.
do luto. É esse luto do divino que morrer efetivamente, como acon-
Encontrar dentro de seus limites
constitui a experiência fundamen- tece com Empédocles e Antígona,
os verdadeiros recursos de uma
tal dos tempos modernos. a fim de expressar a força do desti-
vida autêntica era justamente o
no, do que a necessidade de supor-
que Hölderlin, assim como Nietzs-
IHU On-Line – Em que sentido a tar em vida outro tipo de morte,
che, esperava do homem moderno.
poesia de Hölderlin expressa as não uma morte física, mas espiri-
Nos dias de hoje, em que a hybris,
inquietações e as profundezas do tual, justamente o caso de Édipo.
a desmedida do homem, tomou a
sujeito da Modernidade? Hölderlin percebeu bem que su- forma de uma técnica onipotente,
Françoise Dastur – Hölderlin, portar a finitude, a separação do em que os sonhos de imortalida-
como Novalis12, seu contemporâ- todo e do divino, é, afinal, uma ex- de nunca foram tão poderosos e a
neo, e como Nietzsche13, é poeta periência mais profunda do divino morte é cada vez mais negada, é
e filósofo ao mesmo tempo, e, a que o desejo de unir-se imediata- certamente bom lembrar aos ho-
meu ver, é nesse poeta-filósofo mente a ele na morte. É por essa mens que sua mortalidade é um
que encontramos a interpretação razão que Édipo, para ele, é aquele recurso e que o respeito à finitude
mais profunda da condição da fini- que ensina a inverter a aspiração e aos limites da existência humana
tude – trágica por isso mesmo – do à totalidade em seu contrário, que é só o que pode dar um sentido a
é o enfrentamento da finitude. esta.
12 Christiane Wilhelmine Sophie von Assim, nas Observações sobre Só-
Kühn (1782-1797): foi uma mulher que ins- focles14, ele declara: “O desejo IHU On-Line – Como a poesia de
pirou o poeta romântico alemão e filósofo
Friedrich von Hardenberg, conhecido por
de deixar esse mundo em troca Hölderlin repercute na filosofia
muitos simplesmente como Novalis. A ima- de outro deve ser convertido em de Nietzsche?
gem de Sophie aparece em Novalis Hymns ‘À um desejo de deixar outro mun-
noite, um texto fundamental do movimento do por este.” O que é reservado Françoise Dastur – Já respon-
literário conhecido como Romantismo ale-
ao homem, então, principalmente di em parte a essa pergunta ao
mão. (Nota da IHU On-Line)
ao homem moderno, cuja prefigu- estabelecer um paralelo entre a
13 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi-
lósofo alemão, conhecido por seus concei- ração no mundo grego é Édipo, é concepção da Modernidade que
40 tos além-do-homem, transvaloração dos
valores, niilismo, vontade de poder e eterno
esse enfrentamento de sua própria encontramos em Hölderlin e em
finitude, que deve incentivá-lo a Nietzsche, respectivamente. Quan-
retorno. Entre suas obras figuram como as
mais importantes Assim falou Zaratustra desviar-se do mundo suprassensível do Nietzsche afirma, em O crepús-
(9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, para concentrar todos os seus es- culo dos ídolos15, que “não temos
1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916)
forços na morada terrena. Mas Höl- nada a aprender com os gregos,
e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: o gênio deles nos é estranho de-
Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando derlin insiste que não se trata de
foi acometido por um colapso nervoso que um simples “ateísmo”, semelhante mais”, ele reflete o que Hölderlin
nunca o abandonou até o dia de sua morte.
ao dos sofistas, que enclausuram o dizia ao editor de suas traduções
A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da de Sófocles: “A arte grega nos é
edição número 127 da IHU On-Line, de homem somente na esfera do hu-
13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do mano; trata-se, ao contrário, nesse estranha”. São também os dois
martelo e do crepúsculo, disponível para do- enfrentamento da finitude, de des- nomes que Heidegger associa, em
wnload em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15
viar-se cientemente do divino para sua aula de 1936 sobre “A vontade
dos Cadernos IHU em formação é intitu- de potência enquanto arte”, para
lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e demarcar de maneira mais profun-
pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. da que na Grécia antiga o limite destacar que eles foram os únicos a
Confira, também, a entrevista concedida por
que separa o humano do divino. extrair o “clássico” dos mal-enten-
Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU didos classicistas e humanistas, ao
On-Line, de 10-05-2010, disponível em Hölderlin nos permitiu, sobretu- se oporem às posições de Herder16,
http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis-
mo radical de Nietzsche não pode ser mini- do, entrever uma possível recon- Winckelmann, Goethe17 e Hegel e
mizado, na qual discute ideias de sua confe- ciliação do homem com sua con-
rência A crítica de Heidegger ao biologismo dição finita. Aliás, isso repercute, 15 São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Nota da
de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte IHU On-Line)
integrante do Ciclo de Estudos Filosofias
um pouco mais tarde, na ideia de 16 Johann Gottfried von Herder (1744-
da diferença – Pré-evento do XI Simpósio Amor fati, de Nietzsche. Amar o 1803): filósofo e escritor alemão. Estudou
Internacional IHU: O (des)governo bio- destino, amar a finitude, em vez Teologia, Filosofia e Medicina em Königs-
político da vida humana. Na edição 330 da de tentar superá-la ou revoltar-se berg. Foi aluno de Kant e tornou-se amigo de
revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a Hamann, cujas ideias em matéria de linguís-
entrevista Nietzsche, o pensamento trágico contra ela, eis a lição que os mo- tica, poesia e mitologia influenciaram pro-
e a afirmação da totalidade da existência, dernos podem tirar dos antigos. O fundamente seu pensamento. (Nota da IHU
concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e fato de que não há nisso nenhuma On-Line)
disponível para download em http://bit.ly/ 17 Johann Wolfgang von Goethe (1749-
resignação, nenhuma mutilação do
nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, leia 1832): escritor alemão, cientista e filósofo.
a entrevista O amor fati como resposta à ti- homem, nenhum abandono de suas Como escritor, Goethe foi uma das mais
rania do sentido, com Danilo Bilate, disponí- importantes figuras da literatura alemã e do
vel em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU 14 Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. (Nota da Romantismo europeu, nos finais do século
On-Line) IHU On-Line) XVIII e inícios do século XIX. Juntamente

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DE CAPA IHU EM REVISTA

ao redescobrirem, por detrás do do pathos sagrado e da sobrieda- se tornar somente o espelho da re-
ideal de uma naturalidade compa- de segundo Hölderlin, que divide alidade social existente. Não vendo
tível com a razão que o classicis- profundamente a Grécia antiga e a mais na tragédia um fenômeno me-
mo prega – cito Heidegger –, “essa impede de alcançar a simplicidade tafísico, Eurípedes pronuncia por
característica própria da natureza do modelo a seguir, como ambos isso mesmo, segundo Nietzsche, a
que os gregos da grande época cha- afirmam com vigor. sentença de morte da tragédia. Da
mavam de deinon e deinotaton, o mesma maneira, Hölderlin explica
aterrorizante”. que o tema da tragédia é o confli-
to entre a natureza e a cultura, o
Foi justamente o fato de haver
destino que cabe ao herói trágico
algo profundamente estranho,
que representa o sacrifício através
obscuro e inquietante na Grécia
antiga, fazendo com que não se A cristandade do qual o homem ajuda a natureza
a aparecer, a sair de seu recolhi-
pudesse mais simplesmente falar,
de acordo com a expressão clás-
ou a Europa, a mento. Para ele também, o tema
sica, de “serenidade grega”, que uma crítica vi- da tragédia não é político, mas o
equilíbrio impossível entre a na-
Nietzsche tentou mostrar já em O
nascimento da tragédia18, ao tra- rulenta à Refor- tureza e a cultura, o homem e o
deus, e é por essa razão que ele
zer à tona, sob a bela aparência e
à medida que caracteriza a civili-
ma, a respeito vê realizar-se nela uma purifica-
zação apolínea, a natureza bárba- da qual ele não ção da hybris especulativa, que se
inverte em seu contrário, ou seja,
ra e titanesca de seu fundamento
dionisíaco, atribuindo, assim, uma hesita em dizer leva a esse desamparo do homem
abandonado pelos deuses que de-
importância fundamental a esse
deus oriental que é Dionísio na de-
que destruiu termina a era trágica como era da
finição daquilo que constitui a pe- o laço do ho- retirada do divino.
culiaridade do grego. Ora, é esse
dualismo do apolinismo e do dio- mem com Deus Aquilo de que trata a tragédia é,
portanto, justamente o equilíbrio
nisismo que divide profundamen- impossível entre o humano e o divi-
te a Grécia antiga e a impede de no. Quanto mais o divino se aproxi-
alcançar a simplicidade do modelo IHU On-Line – Quais são os ne-
ma do homem, mais se afasta como 41
a seguir. Nietzsche opõe esses dois xos entre as obras desse poeta e
divino: esta é a armadilha da fa-
princípios em O nascimento da tra- desse filósofo alemão?
miliaridade e o perigo da captação
gédia como a arte musical às artes Françoise Dastur – Sabe-se que especulativa; quanto mais o divino
plásticas, a embriaguez ao sonho, Nietzsche, nascido em 1844, um se afasta do homem, mais volta a
e mostra que o que diferencia os ano após a morte de Hölderlin, co- ser divino no sentido autêntico, no
gregos dos bárbaros orientais é nheceu e apreciou a obra deste. entanto, mais o homem é abando-
justamente a reconciliação desses O que une Nietzsche e Hölderlin, nado por ele: o que ameaça, en-
dois princípios na tragédia, onde o sem esquecer que ambos tiveram tão, é a subumanidade do “último
coro é o elemento musical e a ação um mesmo projeto, o de escrever homem”, daquele que “apequena
das personagens, o sonho apolíneo uma tragédia cujo herói seria Em- tudo” e que não “colocará mais es-
que dá forma e limita no elemento pédocles, é a recusa de considerar trela no mundo”, de que fala Niet-
épico à visão dionisíaca do coro. a tragédia somente do ponto de zsche no prólogo de Assim falou
Na carta que Hölderlin escre- vista do espectador e de ver nela, Zaratustra19.
ve ao seu amigo Böhlendorff, em como faz Aristóteles em sua Poé-
Quando Hölderlin também afirma
1801, ele também destaca, nos tica, apenas uma purgação ou um
que os alemães, excessivamente
gregos, a natureza, que os liga ao remédio psicológico ou político.
recolhidos em si mesmos, não são
Oriente, isto é, ao “pathos sagra- Nietzsche mostra em O nasci- mais capazes de abrir-se à beleza,
do” e ao “fogo do céu”, e a cultu- mento da tragédia que o fato de ele vai ao encontro de Nietzsche na
ra, que os volta para o Ocidente, considerar a tragédia do ponto de crítica feroz que este faz de seus
quer dizer, para a “claridade da re- vista crítico do espectador, e não contemporâneos.
presentação e a sobriedade junia- em se identificando com o ator ou
na”. É esse dualismo do apolinismo o coro, só se torna possível pelo de- IHU On-Line – Hölderlin era
e do dionisismo segundo Nietzsche, clínio interno da própria tragédia. amigo de Hegel e Schelling, e co-
com Schiller foi um dos líderes do movimento
Para ele, com Eurípedes, é o pró- nheceu Goethe, Schiller, Fichte20
literário romântico alemão Sutrm und Drang. prio espectador que sobe ao palco,
De suas obras, merecem destaque Fausto e o que faz com que a tragédia perca 19 Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. (Nota da
Os sofrimentos do jovem Werther. (Nota da seu status de representação me- IHU On-Line)
IHU On-Line) 20 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814):
18 São Paulo: Companhia das Letras, 2003. tafísica da vida e de expressão da filósofo alemão. Exerceu forte influência so-
(Nota da IHU On-Line) natureza em toda a sua força, para bre os representantes do nacionalismo ale-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

e Novalis. Como esses expoentes sível” e a aliança de um “mono- Parece haver uma forte oposição,
da alta cultura reagiram à sua teísmo da razão do coração” com principalmente, entre a relação
poética? um “politeísmo da imaginação e que Goethe mantém com a nature-
da arte”. Hegel, inicialmente mui- za e a maneira pela qual Hölderlin
Françoise Dastur – Hölderlin
to impressionado com as ideias se sente mergulhado nela.
viveu no seminário de Tübingen
numa grande proximidade com de Schelling, que foi o mais pre- Goethe, que nunca viveu em
Hegel e Schelling, e essa amizade coce dos três e começou a publi- contato com a natureza, a bus-
perdurou nos anos seguintes, pelo car assim que saiu do seminário, ca nos jardins e nos parques das
menos até o momento em que foi ao encontro de Hölderlin em grandes cidades e sonha com uma
Hölderlin começou a dar sinais de Frankfurt, em 1797, e foi durante união entre a natureza e a cultu-
desequilíbrio mental e foi atendi- os três anos que passaram juntos ra, cujo modelo ele encontrará
do por seu amigo Sinclair. Durante nessa cidade que Hegel, sob a in- em suas viagens e sua estada na
o período em que Hegel, Hölder- fluência de Hölderlin, que estava Itália. Ele vê a natureza com olhos
lin e Schelling passaram juntos no redigindo então suas versões su- de cientista e tenta penetrar nela
seminário de Tübingen, eles com- cessivas de A morte de Empédo- para retraçar a gênese de cada
partilharam o mesmo ideal: os três cles, concebeu as primeiras bases uma de suas formas. Hölderlin, ao
entusiasmaram-se com a Revolução de seu sistema filosófico. contrário, descobre as forças da
Francesa21 e, muito críticos em re- natureza tanto à sua volta como
lação à teologia que lhes era en- dentro dele mesmo. Goethe vê o
sinada, preferiram se voltar juntos olho como o meio de ter acesso ao
para a Grécia antiga. “fenômeno original” da natureza,
enquanto Hölderlin ouve a voz da
Foi durante a estada no seminá-
rio que redigiram juntos “O mais
Como seus dois natureza que fala diretamente
antigo programa sistemático do condiscípulos à sua alma. Este tenta defender
idealismo alemão”, texto com um a natureza contra a cultura, en-
tom revolucionário em que à po- do seminário de quanto Goethe quer fazer uso das
esia era reconhecido o papel de
educadora da humanidade, e que
Tübingen, Hegel armas da ciência para dominar os
segredos da natureza.

42 reivindicava uma “religião sen- e Schelling, e já


Nostalgia do divino
mão, assim como sobre as teorias filosóficas como Lessing,
de Schelling, Hegel e Schopenhauer. Fichte
decidiu devotar sua vida à filosofia depois de Schlegel e Schil- Em 1795, ainda em Iena, Höl-
derlin também conheceu Novalis,
ler as três Críticas de Immanuel Kant, publi-
cadas em 1781, 1788 e 1790. Sua investigação ler, Hölderlin sobre quem Fichte exercia então
obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu um grande fascínio. Novalis, dois
próprio editor que publicasse o manuscrito.
O livro surgiu em 1792, sem o nome e o prefá-
interessou-se anos mais jovem que Hölderlin e
cio do autor, e foi saudado amplamente como muito cedo pela falecido seis anos depois, ainda
uma nova obra de Kant. Quando Kant escla- não havia escrito muito naquela
receu o equívoco, Fichte tornou-se famoso
do dia para a noite e foi convidado a lecionar
tragédia grega época, mas suas preocupações se
na Universidade de Jena. Fichte foi um con- aproximavam daquelas de Hölder-
ferencista popular, mas suas obras teóricas lin. Porque Novalis também lera
são difíceis. Acusado de ateísmo, perdeu o o famoso poema de Schiller, “Os
emprego e mudou-se para Berlim. Discursos A voz da natureza
à nação alemã é sua obra mais conhecida. deuses da Grécia”, publicado em
(Nota da IHU On-Line) Hölderlin frequentou as aulas de 1788, no qual é dito que os deu-
21 Revolução Francesa: nome dado ao ses povoavam então o mundo e
conjunto de acontecimentos que, entre 5 de Fichte em Iena, em 1794, e foi du-
maio de 1789 e 9 de novembro de 1799, al- rante sua estada nessa cidade que misturavam-se com os humanos,
teraram o quadro político e social da França. encontrou Goethe e Schiller, por mas, ao partirem, deixando no seu
Começa com a convocação dos Estados Ge-
quem tinha uma admiração apai- rastro apenas “a letra morta”, a
rais e a Queda da Bastilha e se encerra com o
xonada desde sua juventude. Estes natureza e o homem se veem des-
golpe de estado do 18 Brumário, de Napoleão
Bonaparte. Em causa estavam o Antigo Regi- dois autores não só zombaram das pojados de sua parte divina.
me (Ancien Régime) e a autoridade do clero e
da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do
traduções de Sófocles de Hölder- A mesma nostalgia anima Höl-
Iluminismo e da independência estaduniden- lin, como também demonstraram derlin, que, em um poema data-
se (1776). Está entre as maiores revoluções da certo desprezo por seus poemas. do de 1801, “Retorno”, lamenta a
história da humanidade. A Revolução Fran-
Na verdade, nem Goethe, que não falta dos “nomes sagrados” e, na
cesa é considerada como o acontecimento
que deu início à Idade Contemporânea. Abo- vê Hölderlin como um verdadeiro elegia “Pão e vinho”, composta no
liu a servidão e os direitos feudais e procla- poeta, nem Schiller, que julga sua ano anterior, explica ao seu ami-
mou os princípios universais de “Liberdade, poesia filosófica demais, são real- go Heinze que os deuses, outrora,
Igualdade e Fraternidade” (Liberté, Egalité,
Fraternité), lema de autoria de Jean-Jacques mente capazes de compreender o favoreciam a vida, mas que par-
Rousseau. (Nota da IHU On-Line) significado da poesia de Hölderlin. tiram para outro mundo. Novalis

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DE CAPA IHU EM REVISTA

é animado pela mesma exigência exatos, é justamente porque os aos mortais o rastro dos deuses
que se expressava nos três condis- homens estão separados do “todo” mergulhados na opacidade da noite
cípulos do seminário de Tübingen, que podem tomar consciência da do mundo”. Este é, de fato, o sen-
aquela de uma renovação do cris- importância de sua relação com tido dos versos de “Como em dia
tianismo, e isso o leva também, ele. Como bem explica Heidegger de festa”, nos quais o poeta afirma
em seu ensaio de 1799, A cristan- na conferência dedicada a Rilke23, que o dia continua a brilhar mesmo
dade ou a Europa22, a uma crítica proferida em 1926, justamente dentro da noite mais profunda:
virulenta à Reforma, a respeito da com o título “Por que os poetas?”,
qual ele não hesita em dizer que a ausência do divino significa que Mas eis o dia! Eu o esperava,
destruiu o laço do homem com nada mais une os homens e que é o vi-o chegar
Deus. próprio fundamento do mundo que E o que eu vi, que intacta esteja
agora está em falta. minha palavra.
IHU On-Line – Como pode ser (tradução literal do francês)
entendida a pergunta de Hölder-
lin: “Para que poesia em tempos Adorno24, por sua vez, declarou
de indigência”? É possível esta- que “escrever um poema depois de
belecer um nexo com a questão Auschwitz é bárbaro” e que “hoje
de Adorno sobre a possibilida- Hölderlin é impossível escrever poemas”. Era
em 1949, poucos anos após a Se-
de de se fazer poesia depois de
Auschwitz?
opõe-se ao Clas- gunda Guerra Mundial, e pode-se

Françoise Dastur – Quando Höl-


sicismo de Win- conceber que Adorno estivesse pre-
ocupado em manifestar-se contra o
derlin se pergunta, na sétima es- ckelmann, para esquecimento em que podia cair o
trofe da elegia intitulada “Pão extermínio, nos campos nazistas,
e vinho”, “... por que poetas em quem a arte gre- de judeus, ciganos, deficientes
tempos de indigência?”, ele está
fazendo alusão à situação do ho-
ga é a norma mentais e homossexuais. Ele voltou
mais tarde a essa declaração para
mem moderno, que perdeu toda perfeita de toda explicar que não quisera condenar
e qualquer relação com o sagra- a arte e a cultura em geral, mas
a arte por vir
do e tem de suportar a ausência
dos deuses. É por essa razão que,
somente a cultura do pós-guerra,
que queria jogar no esquecimento
43
dirigindo-se ao seu amigo Heinze, o que ocorrera.
a quem o poema é dedicado, ele Enquanto a realidade é vivida
em toda a sua intensidade, não há Na realidade, pode-se pensar
acrescenta:
mesmo a necessidade de poetas, que a poesia é, ao contrário, o úni-
pois a atividade poética do ho- co modo adequado de falar desses
“Mas eles são, tu dizes, como os
mem confunde-se com o evento da terríveis acontecimentos que são
sacerdotes sagrados de Baco,
totalidade de sua vida. É quando os extermínios de seres humanos
Que, de país em país, er-
se desfaz essa união do céu e da em massa. Estes não são próprios
ram na noite sagrada.”
terra a que chamamos de mundo do nazismo somente, mas também
que a palavra do poeta tem de di- do comunismo e, antes deles, de
Os poetas assemelham-se aos
zer das Heilige, ou seja, não tan- todos os massacres de massa que
sacerdotes do deus do vinho, que
marcaram a época colonial e que
atestam o sagrado nessa noite pro- to o “sagrado”, termo que só tem
funda que é a Modernidade. Por- sentido em oposição ao profano, 24 Theodor Adorno [Theodor Wiesen-
que essa noite é, ela mesma, “sa- mas o indene, o íntegro, o salvo. grund Adorno] (1903-1969): sociólogo,
grada”, exatamente porque essa Acerca desses poetas do tempo da filósofo, musicólogo e compositor, definiu o
perfil do pensamento alemão das últimas dé-
ausência do divino ainda é uma indigência, dessa noite do mundo cadas. Adorno ficou conhecido no mundo in-
maneira de este reinar. Os homens que é também uma noite sagrada telectual, em todos os países, em especial pelo
não se encontram, pois, em esta- – pois a retirada do divino é ainda seu clássico Dialética do Iluminismo, escrito
junto com Max Horkheimer, primeiro diretor
do de absoluta separação em rela- uma maneira de o divino reinar –,
do Instituto de Pesquisa Social, que deu ori-
ção ao sagrado, em relação àquilo Heidegger nos diz que eles “trazem gem ao movimento de ideias em filosofia e so-
que se diz em alemão das Heilige, ciologia que conhecemos hoje como Escola de
palavra que se aproxima do verbo 23 Rainer Maria Rilke por vezes também Frankfurt. Sobre Adorno, confira a entrevista
Rainer Maria von Rilke (1875-1926): foi um concedida pelo filósofo Bruno Pucci à edição
heilen, curar, devolver a integri- poeta de língua alemã do século XX. Escreveu 386 da revista IHU On-Line, intitulada Ser
dade a alguém, que tem a mesma também poemas em francês. Rilke fez seus autônomo não é apenas saber dominar bem
raiz do vocábulo inglês whole e estudos nas universidades de Praga, Munique as tecnologias, disponível para download em
e Berlim. Em 1894 fez sua primeira publica- http://bit.ly/ihuon386. A conversa foi moti-
que deveria ser traduzido por in-
ção, uma coleção de versos de amor, intitula- vada pela palestra Theodor Adorno e a frieza
dene ou inteiro. Em termos mais dos Vida e canções (Leben und Lieder). Não burguesa em tempos de tecnologias digitais,
exerceu nenhuma profissão, tendo vivido, proferida por Pucci dentro da programação
22 Lisboa: Antigona, 2006. (Nota da IHU sempre, à custa de amigas nobres. (Nota da do Ciclo Filosofias da Intersubjetividade.
On-Line) IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

caracterizam efetivamente essa Por certo, ela parece inicialmente de poièsis. Dar existência a algo
“noite” que é a Modernidade, se- não passar do lúdico, como dizia somente através do poder das pa-
gundo Hölderlin. Schiller, que invocava, junto com lavras é, de fato, para o grego, o
as necessidades físicas e morais paradigma de qualquer “produ-
IHU On-Line – Em que sentido a do homem, a necessidade do lú- ção” como tal. Essa força poiéti-
poesia, para Hölderlin, é a mais dico, que é também necessidade ca da poesia, que a torna superior
laboriosa das tarefas? de arte, através da qual o homem tanto à teoria como à prática, tan-
foge do constrangimento físico ou to à filosofia como à política, é o
Françoise Dastur – Hölderlin moral e vive a experiência real da singular poder de instauração ao
não diz exatamente isso. Ele de- liberdade. Para Hölderlin, porém, qual Hölderlin se refere no verso
clara, numa carta de janeiro de a inocência do lúdico, que tira a final de Andenken [Memória], um
1799 enviada à sua mãe, que a poesia e a arte em geral do rei- poema escrito entre 1803 e 1804,
poesia é “essa ocupação inocente no do constrangimento, é ainda pouco antes de ele mergulhar na
entre outras” a que ele deseja se apenas a face externa sob a qual a sua “loucura”, como se costuma
dedicar inteiramente e com toda a dizer: “Mas o que permanece, os
tranquilidade, abandonando então poetas instauram”. Mas o que se-
todos os esforços feitos antes para ria assim instaurado pela poesia?
conquistar um lugar no mundo, Outra passagem da carta de Höl-
seja na condição de pastor, como derlin ao seu irmão diz isso cla-
desejava a mãe, seja na condição
de filósofo e universitário, como
O que deve ser ramente: “Ela aproxima e une os
homens, mas não como o jogo, em
ele desejou em vão. Agora, ex- evitado a qual- que o vínculo consiste em esque-
plica ele, não lhe interessa mais
lutar contra essa inclinação que o quer preço é cer-se de si e em que as particu-
laridades vivas do indivíduo nunca
arrastou, desde a mais tenra ida-
de, para a poesia.
transformar o podem manifestar-se.” Então, o
que a poesia instaura por excelên-
Em carta anterior enviada ao
dizer poético cia é o viver-juntos dos homens,
amigo Neuffer em 24 de fevereiro em uma sequ- um viver-juntos em que o indiví-
duo mantém sua particularidade
de 1796, Hölderlin reconhecia não
44 estar em condições de “realizar um ência de teses e, lembrando-se de si mesmo,
mantém com todos os outros um
esforço contínuo, tal qual exige a
tarefa filosófica a realizar”. Por-
filosóficas vínculo vivo.
tanto, é a filosofia, e não a poesia,
que ele considera uma tarefa labo- IHU On-Line – Qual é a impor-
riosa, quando sua inclinação natu- poesia se apresenta quando medi- tância e o estranhamento formal
ral o leva para a poesia. Citando da pelos critérios práticos da vida dos poemas escritos sob o pseu-
ainda a mesma carta: “A filosofia cotidiana. Para alcançar a “essên- dônimo Scarnadelli?
é tirânica, e seu jugo, eu mais o cia” da poesia, isto é, o que cons-
suporto do que o busco”. Em outra titui o verdadeiro ser, não é mais Françoise Dastur – Durante o
carta enviada também a Neuffer “o instinto lúdico” que tem de longo período de sua loucura, de
em 12 de novembro de 1798, Höl- ser invocado, mas um fazer mais 1807 a 1843, Hölderlin viveu reti-
derlin confessa dedicar “toda a sua elevado do que aquele que rege rado em uma torre à beira do Ne-
alma” a dar vida aos seus poemas, a prática cotidiana e que o vocá- ckar25, na casa do marceneiro Ernst
reconhecendo estar bem longe de bulo grego poièsis já indica por si Zimmer, em Tübingen, e continuou
alcançar isso. Ao mesmo tempo, mesmo. exaltadamente a escrever cartas,
contudo, sabe que a filosofia é sobretudo à mãe, e poemas, na
Na verdade, não se destacou su- maioria das vezes para atender à
“um porto seguro” onde poderia ficientemente o duplo sentido sig-
“refugiar-se sem vergonha”, mas solicitação daqueles que o visita-
nificativo desse termo grego que vam. Uns 50 poemas desses foram
não pode abandonar seu primeiro
designa, ao mesmo tempo, um preservados, dos quais a metade é
amor e prefere “perecer sem mé-
fazer entendido como fabricação assinada Scardanelli e seguida de
rito em vez de deixar a doce pátria
e produção e a criação poética no datas fictícias que vão de 1648 a
das Musas”.
sentido específico, reunindo as-
A poesia, assim, também requer sim, do ponto de vista semântico, 25 Neckar (ou, na sua forma portuguesa,
esforço e não pode consistir em uma espécie eminente da produ- Necar): é um rio da Alemanha e um afluen-
te importante do Reno, que ele encontra em
um simples jogo com as palavras. ção à produção no sentido geral. Mannheim. Nascendo na Floresta Negra, flui
Hölderlin expõe isso em carta en- Pode-se ver nisso o sinal de uma através das montanhas Odenwald e atravessa
dereçada ao seu irmão em 1º de preponderância da arte da pala- Tübingen, Nürtingen, Esslingen, Stuttgart e
Heidelberg. O comprimento total do Neckar,
janeiro de 1799, destacando o vra sobre todas as artes na Gré-
da sua nascente perto de Villingen-Schwen-
interesse que a poesia apresenta cia, uma vez que é essa arte, e ningen até o Reno, é de 367 km. Sua bacia é
para a educação da nação alemã. nenhuma outra, que tem o nome de 13.960 km². (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

1940. Foi somente no final de sua compensação, os poemas assi- rem supérfluas. Para ele, trata-se,
vida, por volta de 1839, que Höl- nados Scardanelli são compostos na verdade, da relação que o pen-
derlin começou a autonomear-se por duas estrofes apenas e quase samento e a poesia podem man-
Scardanelli, mas também usou os todos dedicados às estações: ve- ter. Como ele destaca em 1943,
pseudônimos de Salvator Rosa, rão, outono, inverno e primavera. em seu posfácio de “Que é me-
Buonarotti ou Rosetti. Estes três Caracterizam-se pela pobreza do tafísica?”, se o poeta e o pensa-
últimos pseudônimos remetem a vocabulário e pela abundância de dor “se unem no cuidado com a
personagens que existiram. Salva- palavras abstratas. palavra, os dois encontram-se, ao
tor Rosa é o nome de um pintor mesmo tempo, em sua essência,
e poeta satírico italiano do século separados pela maior distância”
XVII, personagem extravagante e e, como diz Hölderlin, “habi-
eterno rebelde, cuja obra anuncia tam próximos nos montes mais
o Romantismo. Antonio Rosetti é separados”.
o nome de um compositor checo Hölderlin nos Portanto, o que deve ser evita-
do século XVIII, cuja obra foi in-
fluenciada por aquela de Mozart. permitiu entre- do a qualquer preço é transformar
o dizer poético em uma sequên-
Quanto a Philippe Buonarotti, um
descendente de Michelangelo, foi
ver uma possível cia de teses filosóficas, sendo essa
próximo de Gracchus Babeuf, re- reconciliação do a tentação do pensador quando
tenta dialogar com um poeta. A
volucionário francês guilhotinado
em 1797 e considerado por Marx homem com sua elucidação (tradução que prefiro
à “interpretação” para a palavra
como o precursor do socialismo. condição finita Erlaüterung) que o pensador tenta
É mais difícil saber ao que reme- fazer de um poema deve se pres-
te o nome de Scardanelli. A últi- tar, então, a desaparecer diante da
ma hipótese em data remete a um Porém, marcam também um re- “pura presença do poema”. Por-
membro italiano chamado Skarda- torno de Hölderlin à rima e às re- que essa pura presença do poema
nelli, membro da linhagem do ba- petições, como se ele tivesse bus- não é dada de imediato; isso vale
rão Von Kempelen que exibiu, nas cado um último refúgio na visão de a fortiori para os poemas de Höl-
capitais europeias, um pretenso um mundo marcado por harmonia derlin, a respeito dos quais Heideg-
autômato jogador de xadrez, in- pura. Lemos esses poemas com o ger diz, no prefácio de Explicações 45
ventado em 1769, mas que, na sentimento de que Hölderlin con- da poesia de Hölderlin26, livro que
verdade, era acionado por um ex- seguiu finalmente – como também reúne seus ensaios, que eles “pa-
celente jogador de xadrez escon- acontecerá com Nietzsche, mais recem um cofre ainda não contem-
dido dentro do autômato, sendo tarde, em sua loucura – escapar plado, onde o que diz o poema é
esse jogador Skardanelli provavel- dessa clausura no ego que carac- preservado”.
mente. Podemos nos perguntar, de teriza o homem moderno, fazendo
com que este esteja ausente para Na verdade, para conseguirmos
fato, se quando Hölderlin assinava
todo mundo, e só o mundo, em seu entender a poesia de Hölderlin,
Skardanelli – às vezes escrito com
esplendor, pode então, com toda precisamos deixar o terreno de
k – nos poemas que lhe eram so-
a serenidade, manifestar-se em nossas representações habitu-
licitados, ele não se identificava
linguagem num breve poema. É o ais, principalmente aquelas que
com esse personagem, que supos-
que dizem os últimos versos de um nos levam a considerar a poesia
tamente exercia o papel de um
poema escrito em janeiro de 1843, de um ponto de vista estetizante
autômato.
“O inverno”: ou filológico. Para Heidegger, é
preciso, antes de mais nada, ou-
Clausura do ego vir a voz do poeta. Ora, isso só é
Mas o espírito de quietude, em
horas em que resplandece possível se conseguirmos, em vez
Quanto à importância des-
A natureza, une-se em toda de falarmos “sobre” o poema si-
ses poemas, não deveríamos
a profundidade (tradução li- tuando-nos fora dele e tentando,
subestimá-la. Sabe-se que um
teral da versão em francês) como filósofo ou filólogo, legislar
dos mais belos poemas, “In lie-
sobre o que ele é, deixar o pró-
blicher Blaüe” [No azul adorá-
prio poema nos dizer onde está
vel], foi escrito em sua loucura,
IHU On-Line – Segundo Heideg- sua própria particularidade. Esse
em 1822, pois foi o jovem poeta
ger, para ler Hölderlin, o melhor desvio para alcançar o poema
Waiblinger que foi visitá-lo em
caminho seria o desvio. Essa afir- que é o discurso da elucidação é,
sua torre e o conservou para nós.
mação seria pertinente? pois, necessário, mas, como bem
Outro poema, de grande beleza
assinala Heidegger, deve “que-
e composição perfeita, “Wenn Françoise Dastur – Heidegger
brar-se” no final.■
aus der Ferne” [Se de muito lon- diz mais exatamente que as ten-
ge], foi provavelmente composto tativas de elucidação da poesia de 26 Brasília: UNB, 2014. (Nota da IHU
bem no início de sua loucura. Em Hölderlin são fadadas a se torna- On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Hölderlin e Nietzsche e o trágico


como denominador comum
“Poeta preferido” de Nietzsche, Hölderlin influencia a redação de Assim
falou Zaratustra de modo decisivo. Ambos os Gênios, o Filosófico e o
Poético, nutriam apreço especial por Sófocles, revela Clademir Araldi
Por Márcia Junges e Ricardo Machado

“H ölderlin e Nietzsche
são grandes conhece-
dores das tragédias
e dos tragediógrafos gregos. O Gênio
em casa, como se ele tivesse lá reen-
contrado sua pátria mítica”. De acordo
com Clademir, “a loucura de Nietzsche
é ‘trágica’, à medida que foi ocasiona-
Poético do primeiro se expressou nas
da por terríveis doenças, que o acome-
traduções das tragédias de Sófocles, na
teram desde a adolescência. Nos anos
retomada de temas ‘trágicos’ em seus
de loucura, a doença neurodegenera-
romances, elegias e poesias. No Gênio
tiva do filósofo solitário apagou logo a
Filosófico de Nietzsche, a preocupa-
vida de sua mente e, aos poucos, a de
ção maior reside em intuir/elaborar o
46 nascimento da tragédia, desde o ex-
seu frágil corpo”.

cesso dionisíaco”. A análise é do Prof. Clademir Araldi é graduado em Filo-


Dr. Clademir Araldi, na entrevista que sofia pela Faculdade de Filosofia Nossa
concedeu por e-mail à IHU On-Line. E Senhora da Imaculada Conceição, com
acrescenta: “É significativa a alta es- aperfeiçoamento em Filosofia pela Uni-
tima que ambos os Gênios, o Filosófi- versidade Técnica de Berlim, Alema-
co e o Poético, nutriam por Sófocles; nha. Cursou mestrado em Filosofia pela
é revelador que o último, na época Universidade Federal do Rio Grande do
de O nascimento da tragédia, passe a Sul – UFRGS, com a tese O niilismo na
valorizar Ésquilo como o poeta trágico moral. Investigação sobre a crítica da
superior”. moral em Nietzsche, e doutorado na
Universidade de São Paulo – USP, com
Acometidos pela loucura em diferen-
a tese A radicalização do niilismo na
tes contextos, o poeta e o filósofo têm
obra de Nietzsche: acerca da posição
no trágico um denominador comum:
de um novo sentido de criação e de
“Os longos anos que Hölderlin passou
aniquilamento. É pós-doutor pela Uni-
recluso na torre às margens do Neckar
versidade Técnica de Berlim e autor de
são trágicos, mas o silêncio do ‘infeliz
Niilismo, criação, aniquilamento. Niet-
poeta’ não significou o enterro de to-
zsche e a filosofia dos extremos (São
dos os seus pensamentos no ‘túmulo de
Paulo: Discurso Editorial, 2004). Atual-
uma loucura de muitos anos’. Brilha-
mente, leciona na Universidade Fede-
ram, em meio à loucura, pensamentos
ral de Pelotas – UFPel, onde é coorde-
e imagens tão belos, em forma de po-
nador do Programa de Pós-Graduação
esia. E o Hipérion ficou durante muitos
em Filosofia.
desses anos de loucura sobre a mesa de
Hölderlin, como se nele ele estivesse Confira a entrevista.

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DE CAPA IHU EM REVISTA

nascimento da tragédia (São Pau-


lo: Companhia das Letras, 1992)
e, de um modo mais complexo,
em Assim falou Zaratustra (São
No final do século XVIII e no li- Paulo: Companhia das Letras,
2011).
miar do século XIX, os pensadores
É decisiva, nesse sentido, a cone-
e artistas românticos tinham cons- xão que os românticos estabelecem
ciência de que viviam em um tem- entre o belo, o feio, o sublime e os
tempos modernos, na aurora do Ro-
po de transição, com a experiência mantismo. A superação da crise da
de aceleração dos acontecimentos modernidade ocorreria por meio da
‘nova mitologia’, de um ‘messia-
nismo dionisíaco’, que transparece
IHU On-Line – Em que sentido movimentos políticos e sociais nitidamente no poema “Brod und
Hölderlin1 é um dos pensadores da época, os Idealistas Românti- Wein”, de Hölderlin. Os projetos
que ajuda a construir uma nova cos do período pós-revolucionário estéticos dos românticos possuem
visão do moderno, a partir da buscaram uma estetização total uma complexa relação com a tem-
arte? da existência e do mundo, a par- poralidade moderna, como pode-
tir do artista criador. Nesse senti- mos perceber não só em Hölderlin,
Clademir Araldi – Antes de mais
do, o Romantismo configura uma mas também nos irmãos Schlegel,4
nada, é preciso recordar que Höl-
ruptura radical no mundo moder-
derlin e os românticos alemães em Schelling,5 Tieck,6 Novalis,7
no. Somente a arte poderia levar
viveram, pensaram e escreve-
a cabo o projeto de revolucionar de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte
ram sob o impacto da Revolução
todas as estruturas do mundo integrante do Ciclo de Estudos Filosofias
Francesa.2 Em contraposição aos da diferença – Pré-evento do XI Simpósio
moderno, ao colocar o sujeito Internacional IHU: O (des)governo bio-
1 Johann Christian Friedrich Hölder- no centro da criação e transfor- político da vida humana. Na edição 330 da
lin (1770-1843): poeta lírico e romancista
alemão. Conseguiu sintetizar na sua obra o
mação do mundo. A literatura e Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, leia a
entrevista Nietzsche, o pensamento trágico
47
a estética românticas do final do
espírito da Grécia antiga, os pontos de vista e a afirmação da totalidade da existência,
românticos sobre a natureza e uma forma século XVIII e do início do sécu- concedida pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e
não ortodoxa de cristianismo, alinhando-se lo XIX brotam da “embriaguez da disponível para download em http://bit.ly/
hoje entre os maiores poetas germânicos. nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, leia
subjetividade”, através do gênio
Em 1788 iniciou seus estudos em Teologia a entrevista O amor fati como resposta à ti-
na Universidade de Tübingen, como bolsis- criador, solitário e incompreendi- rania do sentido, com Danilo Bilate, disponí-
ta. Lá conheceu Hegel e Schelling, que mais do. Essa “embriaguez” repercute vel em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU
tarde se tornariam seus amigos. Devido aos ainda nas criações filosóficas de On-Line)
recursos limitados da família e de sua recu- 4 August Wilhelm von Schlegel (1767-
sa em seguir uma carreira clerical, Hölderlin Nietzsche,3 especialmente em O 1845): crítico, tradutor, filólogo e professor
trabalhou como tutor para crianças de famí- universitário alemão, irmão do também fi-
lias ricas. Em 1796 foi professor particular de 3 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó- lólogo Friedrich von Schlegel. (Nota da IHU
Jacó Gontard, um banqueiro de Frankfurt, sofo alemão, conhecido por seus conceitos On-Line)
cuja esposa, Susette, viria a ser seu grande além-do-homem, transvaloração dos va- 5 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm
amor. Susette Gontard serviu de inspiração lores, niilismo, vontade de poder e eterno Joseph von Schelling, 1775-1854): filósofo
para a composição de Diotima, protagonista retorno. Entre suas obras figuram como as alemão. Suas primeiras obras são geralmente
de seu romance epistolar Hipérion. (Nota da mais importantes Assim falou Zaratustra vistas como um elo importante entre Kant e
IHU On-Line) (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas
2 Revolução Francesa: nome dado ao con- 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) obras são representativas do idealismo e do
junto de acontecimentos que, entre 5 de maio e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: romantismo alemães. Criticou a filosofia de
de 1789 e 9 de novembro de 1799, alteraram Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando Hegel como “filosofia negativa”. Schelling
o quadro político e social da França. Come- foi acometido por um colapso nervoso que tentou desenvolver uma “filosofia positiva”,
ça com a convocação dos Estados Gerais e a nunca o abandonou até o dia de sua morte. que influenciou o existencialismo. Entrou
Queda da Bastilha e se encerra com o golpe A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da para o seminário teológico de Tübingen aos
de estado do 18 Brumário, de Napoleão Bo- edição número 127 da IHU On-Line, de 16 anos. (Nota da IHU On-Line)
naparte. Em causa estavam o Antigo Regime 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do 6 Ludwig Tieck (1773-1853): foi um poeta,
(Ancien Régime) e a autoridade do clero e da martelo e do crepúsculo, disponível para do- romancista, crítico, tradutor e editor alemão,
nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Ilu- wnload em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 fez parte do movimento do romantismo do fi-
minismo e da independência estadunidense dos Cadernos IHU em formação é intitu- nal do século XVIII e início do XIX. (Nota da
(1776). Está entre as maiores revoluções da lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e IHU On-Line)
história da humanidade. A Revolução Fran- pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. 7 Georg Philipp Friedrich von Harden-
cesa é considerada como o acontecimento Confira, também, a entrevista concedida por berg (1772-1801): Freiherr (barão) von Har-
que deu início à Idade Contemporânea. Abo- Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU denberg, mais conhecido pelo pseudónimo
liu a servidão e os direitos feudais e procla- On-Line, de 10-05-2010, disponível em Novalis, foi um dos mais importantes repre-
mou os princípios universais de “Liberdade, http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis- sentantes do primeiro romantismo alemão de
Igualdade e Fraternidade” (Liberté, Egalité, mo radical de Nietzsche não pode ser mini- finais do século XVIII e o criador da flor azul,
Fraternité), lema de autoria de Jean-Jacques mizado, na qual discute ideias de sua confe- um dos símbolos mais duráveis do movimen-
Rousseau. (Nota da IHU On-Line) rência A crítica de Heidegger ao biologismo to romântico. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Wackenroder,8 Kleist,9 E.T.A. Ho- transição, ao mesmo tempo em Mito e ritual


ffmann10... Há, sem dúvida, uma que tenta abandonar o Romantis-
desproporção entre a consciência mo, superando-o. A modernidade A letra do manuscrito é de Hegel,
da crise moderna (a rebeldia con- seria marcada por crises, abalos mas o que mais importa, segundo
tra os valores estabelecidos na cul- de formas de vida tradicionais, e R. R. Torres Filho, é “que se tra-
tura, na sociedade e na moral) e pelo pressentimento de novas for- ta de um desses escritos cuja au-
os ímpetos criadores dos artistas e mas de criação. Embora não haja toria, por definição, é coletiva ou
literários do Primeiro Romantismo, uma unidade orgânica nos proje- nenhuma – sensíveis a tendências
dentre os quais Hölderlin sobressai e ideias que estão “no ar”, infor-
tos estéticos do Romantismo – nem
como um astro solitário. muladas (...)”[Pensadores. F.von
no início do movimento, nem nos
seus desdobramentos tardios –, Schelling. Obras escolhidas. 3. ed.,
IHU On-Line – Qual é o contex- São Paulo: Nova Cultural, 1989).
podemos perceber um traço co-
to artístico e filosófico dentro do Certamente, nesse manuscrito es-
mum: a salvação ou fuga da mo-
qual as criações literárias de Höl- tão presentes ideias centrais do
dernidade se dá desde o ponto de
derlin surgem? movimento romântico, como a
vista da subjetividade criadora do concepção organicista de nature-
Clademir Araldi – No final do gênio, do indivíduo que se eleva za, o novo vínculo entre beleza e
século XVIII e no limiar do sécu- das tendências temporais de dis- verdade e a nova mitologia, ideias
lo XIX, os pensadores e artistas solução. A ‘nova mitologia’, anun- essas presentes na obra de Hölder-
românticos tinham consciência ciada no Programa Sistemático lin, no Hipérion, principalmente. E
de que viviam em um tempo de (1796) e elaborada por F. Schlegel também numa de suas mais conhe-
transição, com a experiência de nos anos seguintes, provém de cidas elegias, Brod und Wein (Pão
aceleração dos acontecimentos. um núcleo a-histórico de criação, e vinho), escrita por volta de 1800,
No prefácio da Fenomenologia do mas se efetiva no tempo histórico, em que o poeta-pensador ensaia
espírito (Petrópolis: Vozes, 2003), unir o Oriente com o Ocidente, o
no espírito comunitário românti-
Hegel11 evoca o moderno como mito de Dioniso com o de Cristo.
co. Esse panfleto, encontrado em
8 Wilhelm Heinrich Wackenroder 1917 por F. Rosenzweig12 e deno- Os símbolos dionisíacos, como a
(1773-1798): foi um jurista e escritor alemão. minado de “O mais antigo Progra- ceia da comunidade dos iniciados
Com Ludwig Tieck, ele foi cofundador do ro-
ma Sistemático do Idealismo Ale-
48 mantismo alemão. Wackenroder nasceu em
Berlim. Ele era um amigo próximo de Tieck mão” é emblemático, tanto em
(tal como era praticada em Roma
pelos iniciados nos Mistérios dionisía-
desde a juventude até sua morte precoce. relação à sensibilidade quanto ao cos) possui muitas semelhanças com
Eles colaboraram em praticamente tudo o
que escreveu nesse período. Wackenroder
pensamento romântico. Sua auto- o cristianismo, como Manfred Frank14
morreu em Berlim em 1798 com a idade de ria é incerta: para alguns o autor mostrou em sua obra Der kommen-
24 de um caso de febre tifoide. (Nota da IHU foi Schelling, para outros, Hegel de Gott (1982). É preciso salientar,
On-Line)
(como defende O. Pöggeler,13 p. sobretudo, a maestria da prosa e da
9 Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist
(1777-1811): foi um poeta, romancista, dra- ex.) ou Hölderlin. Eram três jo- poesia de Hölderlin em elaborar a
maturgo e contista alemão. É conhecido por vens entusiasmados, colegas no união do mito e dos rituais de Dioni-
sua comédia O Jarro Quebrado, pela tragédia so: no “teatro sagrado” da tragédia
Pentesileia bem como por seu conto Michael Instituto Teológico de Tübingen.
Kohlhaas. (Nota da IHU On-Line) grega, Dioniso juntaria mito e ritual.
10 Ernst Theodor Amadeus Wilhelm gel (1807-2007), em comemoração aos 200 O poeta alemão, no entanto, busca
Hoffmann (1776-1822): escritor, compo- anos de lançamento dessa obra. Veja ainda ‘ressuscitar’ o espírito da comunida-
sitor, caricaturista e pintor alemão. Um dos a edição 261, de 09-06-2008, Carlos Rober-
maiores nomes da literatura fantástica mun- to Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler
de. Através do cenáculo romântico,
dial. Suas histórias foram a base da famosa Hegel, disponível em http://bit.ly/ihuon261, seria possível superar a separação
ópera de Jacques Offenbach, Os Contos de e Hegel. A tradução da história pela razão, entre os indivíduos modernos, dis-
Hoffmann, em que Hoffman aparece como edição 430, disponível em http://bit.ly/ tantes uns dos outros na noite do
personagem. Hoffmann é também o autor ihuon430. (Nota da IHU On-Line)
do conto “O Quebra-Nozes e o Rei dos Ca- 12 Franz Rosenzweig (1886-1929): filósofo “afastamento dos deuses”.
mundongos”, no qual foi baseado o balé O judeu nascido na Alemanha, é autor de uma
Quebra-Nozes. O balé Coppélia é também obra importante na qual se destacam Der
baseado em dois outros contos de Hoffmann, Stern der Erlösung (A estrela da redenção) IHU On-Line – Qual é a impor-
enquanto a Kreisleriana de Schumann é base- e Judentum und Christentum (Judaísmo e tância da poesia de Hölderlin na
ada no personagem Johannes Kreisler, igual- Cristianismo). Trabalhou com Martin Buber filosofia de Nietzsche, sobretudo
mente criado por Hoffmann. (Nota da IHU na tradução da Bíblia hebraica para o alemão.
On-Line) Confira a entrevista que Ricardo Timm de
em seus escritos juvenis?
11 Friedrich Hegel (Georg Wilhelm Frie- Souza concedeu à IHU On-Line: Rosen-
Clademir Araldi – O impacto da
drich Hegel, 1770-1831): filósofo alemão zweig e uma nova compreensão da ideia de
idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás sujeito, disponível em http://bit.ly/GCaglu. poesia e da prosa de Hölderlin no
de Aquino, tentou desenvolver um sistema (Nota da IHU On-Line)
filosófico no qual estivessem integradas todas 13 Otto Pöggeler (1928-2014): foi um filó- 14 Manfred Frank (1945): filósofo alemão,
as contribuições de seus principais predeces- sofo alemão especializado em fenomenologia professor emérito de filosofia da Univer-
sores. Sobre Hegel, confira no link http://bit. e na obra de Martin Heidegger. Também pu- sidade de Tübingen. Foca-se no idealismo
ly/ihuon217 a edição 217 da IHU On-Line, blicou um estudo da poesia de Paul Celan, e alemão, romantismo e conceitos de subje-
de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia foi diretor do Arquivo Hegel na Universidade tividade e autoconsciência. (Nota da IHU
do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich He- Ruhr, em Bochum. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

pensamento e na vida de Nietzsche pensamentos em Hölderlin, que tu Em outras poesias, como espe-
está bem condensado na “Carta a pareces considerar como confusão cialmente na “Recordação” (An-
meu amigo, na qual lhe recomendo a e obscuridade. Se tua censura atin- denken) e na “Andança” (Wan-
leitura de meu poeta preferido”, de ge realmente algumas poesias da derung), o poeta eleva-nos para
19 de outubro de 1861. Nessa carta a época de sua loucura, e mesmo nas a suprema idealidade, e nós sen-
um amigo imaginário, escrita por um anteriores a profundidade do pen- timos com ele, que esse era seu
adolescente ginasial de 17 anos, es- samento às vezes se debate com elemento pátrio. Por fim, é digna
tão contidas as fortes impressões de o irromper da noite da loucura, de menção uma série inteira de
suas leituras de Hölderlin, que cito então a maior parte delas são de poesias, nas quais ele diz verdades
em quase sua totalidade: longe pérolas puras e preciosas de amargas aos alemães, que são com
nossa arte poética em geral. Apon- frequência muito bem fundadas.
“Esses versos (...) fazem fluir Também no Hipérion ele lança agu-
to somente algumas poesias, como
o ânimo mais puro e brando; es- das e cortantes palavras contra o
“Retorno à pátria” (Rückkehr in die
ses versos, em sua naturalidade e “barbarismo” alemão. Essa repulsa
Heimath), “A torrente encadeada”
originalidade obscurecem a arte à realidade, contudo, está unida
(der gefesselte Strom), “Crepúscu-
e a elegância formal de Platão;15 ao mais elevado amor à pátria, que
lo” (Sonnenuntergang), “O cantor
esses versos, ora agitando-se no Hölderlin possui de fato em alto
cego” (der blinde Sänger), e te
mais sublime ímpeto da ode, ora grau. Mas ele odiava no alemão o
apresento mesmo as últimas estro-
perdendo-se nos mais delicados mero especialista, o filisteu.
fes da “Fantasia noturna” (Aben-
sonidos da melancolia (...). Assim
dphantasie), em que se expressa a Na tragédia inacabada Empé-
sendo, não conheces o Empédo-
mais profunda melancolia e aspira- docles, o poeta nos desdobra sua
cles, este fragmento dramático
ção por repouso. natureza própria. A morte de Em-
tão pleno de significação, em cujos
tons melancólicos ressoa o futuro pédocles é uma morte de orgulho
– No céu do entardecer desabro- divino, de desprezo pelos homens,
do infeliz poeta, o túmulo de uma
cha uma primavera; de saciedade da terra e panteísmo.
loucura de muitos anos. Entretan-
Incontáveis se abrem as rosas, e Fiquei comovido sempre por intei-
to, esse poema não ressoa, como
sereno parece ro ao ler a obra toda; existe uma
você pensa, em palavras obscuras,
O mundo dourado; oh! Levem- elevação divina nesse Empédocles.
mas na mais pura linguagem so-
-me para lá, No Hipérion, por sua vez, mesmo
focliana e numa plenitude infini-
ta de pensamentos profundos. Tu
Purpúreas nuvens! E pos- que ele pareça logo estar banhado 49
sam lá em cima por um brilho transfigurador, tudo
não conheces também o Hipérion,
é insatisfeito e incompleto. As figu-
que no movimento harmonioso de
ras, que o poeta nos evoca, são “fi-
sua prosa, na sublimidade e be- Em luz e vento diluir em mim
guras rarefeitas, que, em sons nos
leza das formas aí emergentes, amor e dor!
suscitam nostalgia, ressoam em
produzem em mim uma impressão Pois, como que afugentado de
nós, nos encantam, mas também
semelhante ao bater de ondas do um pedido doido, foge
despertam uma ânsia insatisfeita”.
mar agitado. De fato, essa prosa é O encanto. Fica escuro, e soli-
Em nenhum outro lugar se revela
música, tons brandos que se fun- tário
a nostalgia pela Grécia em sonidos
dem, interrompidos por dissonân- Sob o céu, como sem-
mais puros; em nenhum outro lu-
cias dolorosas, esfacelando-se, por pre, estou eu.
gar se distingue com mais clareza a
fim, em sombrias e secretas can- afinidade anímica de Hölderlin com
ções sepulcrais. – O que foi dito, Venha agora, sono suave! Dema- Schiller e com Hegel, seu amigo de
no entanto, diz respeito somen- siado deseja confiança. (...)17.
te à forma exterior; permita-me O coração, pois finalmente, ju-
agora acrescentar ainda algumas ventude, incandesces! Apropriação indevida
palavras acerca da plenitude de Tu, inquieta, sonhadora!
Pacífica e serena é en- Infelizmente, como bem provou
15 Platão (427-347 a.C.): filósofo ateniense.
Criador de sistemas filosóficos influentes até tão minha idade.16 Thomas Brobjer,18 essa carta é uma
hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialéti-
ca. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre 16 – Am Abendhimmel blühet ein Frühling Komm du nun, sanfter Schlummer! Zu viel
de Aristóteles. Entre suas obras, destacam- auf; begehrt
-se A República (São Paulo: Editora Edipro, Unzählig blühn die Rosen, und ruhig scheint Das Herz, doch endlich, Jugend, verglühst
2012) e Fédon (São Paulo: Martin Claret, Die Goldne Welt; o dorthin nehmt mich, du ja!
2002). Sobre Platão, confira e entrevista As Purpurne Wolken! Und mögen droben Du ruhelose, träumerische!
implicações éticas da cosmologia de Platão, Friedlich und heiter ist dann mein Alter.
concedida pelo filósofo Marcelo Perine à edi- In Licht und Luft zerrinnen mir Lieb und 17 NIETZSCHE, F. W. Frühe Schriften, vol.
ção 194 da revista IHU On-Line, de 04-09- Leid! – II, C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung.
2006, disponível em http://bit.ly/pteX8f. Doch, wie verscheucht von thörichter Bitte, München, 1933-1940. Munique: DTV, 1994,
Leia, também, a edição 294 da revista IHU flieht p. 1-5. Traduzido por Clademir Araldi. (Nota
On-Line, de 25-05-2009, intitulada Platão. Der Zauber. Dunkel wird’s, und einsam do entrevistado)
A totalidade em movimento, disponível em Unter dem Himmel, wie immer, bin ich. 18 Thomas H. Brobjer: é um pesquisa-
(Nota da IHU On-Line) dor interessado em Nietzsche e professor no

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

apropriação (indevida, um plágio) foi autorizado para publicação por nutriam por Sófocles; é revelador
da obra de William Neumann: Mo- seu autor), muitas imagens, sím- que o último, na época de O nas-
derne Klassiker. Deutsche Liter- bolos e metáforas de Hölderlin são cimento da tragédia, passe a valo-
aturgeschichte der neueren Zeit in apropriados pelo Gênio Filosófico. rizar Ésquilo como o poeta trágico
Biographen, Kritiken und Proben: Elas giram em torno da tragédia, superior.
Friedrich Hölderlin (cf. Brobjer, Th. do apolíneo e do dionisíaco, por
Roberto Machado,20 em sua obra
Nietzsche-Studien 30, 2001. Berlim: exemplo: o raio, o nascer e o pôr-
O nascimento do trágico (Rio de
De Gruyter, p. 397-412). Bem, até -do-sol, o cálice da plenitude, o
Janeiro: Jorge Zahar, 2006), defen-
mesmo os gênios filosóficos come- fogo devorador, o outono, a des-
de, com razão, que o trágico é uma
tem erros e precisam de esforço e truição criadora, a necessidade da
invenção romântica e moderna,
tempo para amadurecer! Mesmo que morte para a vida, o fruto maduro,
de Schiller até Nietzsche. Temos,
Nietzsche não cite a fonte, Neumann a meia-noite, o meio-dia, instante
então, que distinguir entre a Tra-
foi importante para ele para entrar e eternidade.
gédia, enquanto gênero dramático
na profusão do mundo de Hölderlin,
específico, e o trágico, como pa-
um dos autores que constrói o anta- IHU On-Line – Que aproximações thos moderno em relação à exis-
gonismo entre Apolo e Dioniso, entre podem ser feitas entre as concep- tência. Tragikon, como mostrou
as artes plásticas e a música. Em O ções de trágico de Hölderlin e as Glenn Most,21 é quase sempre apli-
nascimento da tragédia, o jovem de Nietzsche? Nesse sentido, que cado à literatura, em sentido pejo-
Nietzsche também procura fundir as aproximações podem ser feitas rativo; quando é aplicado a estados
artes plásticas com a música dionisí- entre os 36 anos em que Hölder- psicológicos de pessoas, significa
aca, na tragédia grega. Seria a ‘união lin viveu e escreveu recluso em “arrogante, presunçoso”. Talvez
fraternal’ de Apolo e Dioniso, busca- sua torre, à beira do Neckar, e os Nietzsche e Hölderlin não tenham
da em vários momentos da prosa e 10 anos em que Nietzsche viveu diferenciado a “visão trágica do
da poesia de Hölderlin. Entre 1869 após seu colapso? mundo” do gênero dramático “tra-
e 1871 há vários esboços do Filósofo gédia”, ao tratar, por exemplo, dos
Solitário para prosseguir a tragédia Clademir Araldi – Hölderlin e
Nietzsche são grandes conhecedo- efeitos catárticos que uma verda-
inacabada de Hölderlin: “Empedok- deira tragédia suscita. Apesar dis-
les”, “Der Tod des Empedokles”, em res das tragédias e dos tragedió-
grafos gregos. O Gênio Poético do so, é muito relevante o modo como
três ou em cinco atos. Cumpriu-se a os dois alemães tratam do desacor-
primeiro se expressou nas tradu-
50 triste sina do Poeta que enlouque-
ções das tragédias de Sófocles,19 na do ‘trágico’ do homem no mundo.
ceu: os projetos de Nietzsche ficam A loucura de ambos é trágica num
inacabados! retomada de temas ‘trágicos’ em
seus romances, elegias e poesias. sentido bem moderno, que nós en-
No Gênio Filosófico de Nietzsche, tendemos com muita nitidez.
Influência
a preocupação maior reside em
intuir/elaborar o nascimento da Saber fatal
Por volta de 1874, Nietzsche
adquiriu as “Obras Escolhidas” de tragédia, desde o excesso dionisí-
aco. A matriz da tragédia estaria Os longos anos que Hölderlin pas-
Hölderlin (ed. por C. T. Schwab). O sou recluso na torre às margens do
que mais surpreende é que a influ- um tanto longínqua, na sabedoria
ência maior do seu “poeta prefe- pessimista dos helenos, nos mitos
20 Roberto Machado: filósofo brasileiro,
rido” se fará sentir em Assim fa- trágicos e no dionisismo oriental; autor de Nietzsche e a verdade (2. ed. Rio de
lou Zaratustra. Depois de escrever mas é “o gênio recém-nascido da Janeiro: Rocco, 1984); Zaratustra, tragédia
música dionisíaca” quem trouxe nietzschiana (Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
o Zaratustra I, no início de 1883, 1997), e um dos autores de Danação da
Nietzsche retoma os planos para à luz a tragédia grega. Hölderlin, norma. Medicina Social e a constituição da
retomar a tragédia “Empedokles”. mais comedido nesse ponto, vê na psiquiatria no Brasil (Rio de Janeiro: Gra-
Só que desta vez é Zaratustra o fraqueza, no encanto das criaturas al, 1978). Em 01-04-2004, Machado abriu o
evento Ciclo de Estudos sobre Michael Fou-
protagonista. A maior parte das mortais, a natureza originária da
cault, promovido pelo Instituto Humanitas
versões do verão – outono de 1883 tragédia. Mas ambos se abismam Unisinos – IHU com a palestra Foucault, a
até julho de 1885 – é construída em seus paradoxos e antagonis- filosofia e a literatura. Na edição 203, de 06-
mos. Como repercutem o hino ao 11-2006, Michel Foucault, 80 anos, concedeu
em quatro ou cinco atos. No últi- a entrevista Nietzsche, Foucault e a loucura
mo ato aparece a “Festa dos mor- nada, a natureza solar, o percurso como experiência originária, disponível em
tos”, ou “A morte de Zaratustra”. pela terra incognita de Hipérion, http://bit.ly/ihuon203. Em 04-06-2010 es-
Toda boa tragédia culmina com a nos escritos de Nietzsche! É signi- teve no IHU no Ciclo de Estudos Filosofias da
diferença – Pré-evento do XI Simpósio Inter-
morte do herói. Por que Nietzsche ficativa a alta estima que ambos
nacional IHU: O (des)governo biopolítico da
não escreveu o Zaratustra V? Isso os Gênios, o Filosófico e o Poético, vida humana, falando sobre A geografia de-
leuziana do pensamento. Sobre o tema, con-
dá o que pensar... De todo modo,
19 Sófocles: dramaturgo grego. Viveu em cedeu uma entrevista disponível em http://
nos quatro livros escritos (o IV não Atenas, cerca de 400 anos antes da Era Cris- bit.ly/8ZvBiq. (Nota da IHU On-Line)
tã. Considerado um dos mais importantes 21 Glenn Warren Most (1952): é um estu-
departamento de História da Ciência e das escritores gregos da tragédia. Édipo Rei, An- dioso de obras clássicas dos EUA e pesquisa-
Ideias, na Uppsala Universitet, na Suécia. tígona e Electra são as suas peças mais conhe- dora de literatura comparada da Alemanha e
(Nota da IHU On-Line) cidas. (Nota da IHU On-Line) da Itália. (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Neckar são trágicos, mas o silêncio Clademir Araldi – Susette Gon- noiva amada de Novalis, em 1797,
do “infeliz poeta” não significou tard foi o grande amor da vida com apenas 15 anos. Em Hymnen
o enterro de todos os seus pensa- de Hölderlin. Desde o início de an die Nacht (1800), Novalis tentou
mentos no “túmulo de uma lou- 1796, o jovem poeta foi precep- transfigurar a dor da perda, cultu-
cura de muitos anos”. Brilharam, tor na casa do banqueiro Jakob F. ando/recordando seu grande amor
em meio à loucura, pensamentos Gontard24 (Frankfurt), com quem (romântico).
e imagens tão belos, em forma de era casada e teve quatro filhos.
poesia. E o Hipérion ficou durante O poeta-preceptor foi obrigado a “O grande meio-dia”
muitos desses anos de loucura so- abandonar a casa, por causa das
bre a mesa de Hölderlin, como se suspeitas de suas relações com Su- Lou Salomé era bem jovem
nele ele estivesse em casa, como sette. Ele continuou a encontrar- quando Nietzsche a conheceu na
se ele tivesse lá reencontrado sua -se e a corresponder-se com ela
Itália, em 1882. Nietzsche era filó-
pátria mítica. Já a loucura de Niet- até 1800. Hölderlin tentou eterni-
sofo errante há vários anos, ainda
zsche é ‘trágica’, à medida que foi zar Susette em suas poesias (por
apreciava vulcões ativos (Vesúvio)
ocasionada por terríveis doenças, exemplo, em “Wen aus der Ferne”)
e histórias de marinheiros, como
que o acometeram desde a ado- e em seu romance epistolar Hipé-
lescência. Nos anos de loucura, a rion, como Diotima. Em uma de podemos observar no Zaratustra.
doença neurodegenerativa do filó- suas últimas cartas ao Gênio Poé- À diferença de Hölderlin e de No-
sofo solitário apagou logo a vida de tico, assim escreveu Susette: “Não valis, a paixão de Nietzsche não
sua mente e, aos poucos, a de seu posso mais continuar escrevendo, foi correspondida. Lou recusou o
frágil corpo. Apenas nos primei- adeus! Adeus! Tu és imperecível em convite de casamento do Gênio
ros meses de loucura, Nietzsche mim! E permaneças até quando eu Filosófico, viajou com Paul Rée,26
conseguiu lembrar eventos decisi- permanecer.” até então amigo de Nietzsche,
vos de sua vida, depois, somente para Paris, e viveu muitos anos
Susette morreu em 22 de junho
a companhia da mãe, do piano e, ainda. Nietzsche ficou com a sua
de 1802. Hölderlin provavelmen-
que tragédia, da indesejável irmã! mais fiel companheira, a solidão,
te ficou sabendo da morte de sua
É trágico também o modo como o teve pensamentos de suicídio, es-
amada no início de julho daquele
Gênio Filosófico pressagia sua lou- creveu cartas ‘desaforadas’ a seus
ano. É muito obscuro o que aconte-
cura (desde a juventude), como ‘traidores’. Mas logrou nos meses
ceu de maio a julho de 1802, desde
a máscara de um saber fatal... O
que o melancólico poeta parte a pé seguintes transfigurar suas dores e 51
diagnóstico da loucura de cada um frustrações em Assim falou Zara-
para Bordeaux, até ser encontrado
deles é questionável, mas é certo tustra. Um livro para todos e para
por amigos em Stuttgart, em esta-
que eram hipocondríacos, em dife- ninguém, sua criação filosófico-po-
do deplorável. A ‘loucura’ de Höl-
rentes graus. ética mais elevada.
derlin foi diagnosticada em 1805,
no mesmo ano em que é publicado Nietzsche e Hölderlin buscaram
IHU On-Line – Em que sentido as o livro Die Nachtwachen, de Bona- alcançar e agarrar-se ao ‘grande
paixões impossíveis por Susette ventura, talvez o ápice do niilismo
Gontard22 e por Louise von Salo- meio-dia’ (der grosse Mittag), ao
poético romântico. A doença tam-
mé23 marcam o destino de Hölder- pensamento e ao sentimento ro-
bém levou Sophie von Kühn,25 a
lin e de Nietzsche? mântico da unidade de tudo o que
vários amantes. Conheceu Sigmund Freud, vive, da reconciliação de todos os
22 Susette Gontard (1769-1802): era a Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke, Paul mortais no coração do ser. Mas pre-
esposa do patrão de Hölderlin, o banqueiro Rée, entre outros grandes homens. Mulher cipitaram-se fatalmente na solidão
Frankfurt Jakob Friedrich Gontard. O poe- sensível, tinha fama de sedutora. (Nota da
ta alemão Friedrich Hölderlin se apaixonou IHU On-Line) tumular da loucura, ansiando por
por ela depois de trabalhar em sua residên- 24 Jakob Friedrich Gontard: banqueiro encontrar seu lar, no coração e nos
cia como preceptor. Diz-se que a paixão fatal de Frankfurt e marido de Susette Gontard. instantes da eternidade. Como isso
do poeta contribuiu para a sua descida para a (Nota da IHU On-Line)
loucura e a morte final. Hölderlin e Gontard 25 Christiane Wilhelmine Sophie von é belo, trágico – e distante! ■
trocaram um grande corpo de cartas, que foi Kühn (1782-1797): foi uma mulher que ins-
preservado e foi publicado em muitas edi- pirou o poeta romântico alemão e filósofo 26 Paul Ludwig Carl Heinrich Rée
ções. (Nota da IHU On-Line) Friedrich von Hardenberg, conhecido por (1849-1901): foi um autor e filósofo alemão,
23 Lou Andreas-Salomé nascida Louise muitos simplesmente como Novalis. A ima- amigo de Friedrich Nietzsche durante um
von Salomé (1861-1937): foi uma intelectu- gem de Sophie aparece em Novalis Hymns À determinado período. Teve um caso com Lou
al alemã, nascida na Rússia. Lou Andreas-Sa- noite, um texto fundamental do movimento Salomé, formando um triângulo amoroso
lomé foi uma bela mulher que escandalizou literário conhecido como Romantismo ale- com Friedrich Nietzsche. (Nota da IHU
a sociedade e quebrou regras morais. Teve mão. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

LEIA MAIS...
—— O niilismo como doença da vontade humana. Entrevista com Clademir Araldi, publicada na
revista IHU On-Line, nº 354, de 20-12-2010, disponível em http://bit.ly/1VCX6LE.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Schiller e Hölderlin: “as sementes


de um novo universo poético”
Influência de Schiller na obra de Hölderlin é decisiva em seus escritos,
observa Joãosinho Beckenkamp
Por Márcia Junges e João Vitor Santos

U ma admiração que marca a tra-


jetória de Hölderlin por comple-
to. Assim o Prof. Dr. Joãosinho
Beckenkamp compreende a influência de
Schiller sobre o autor de Hipérion. Tal
“profunda inclinação” no uso de codino-
mes por um incapacitado mental, o que
Hölderlin veio a se tornar depois de 1806,
“denuncia antes o sadismo do olhar psi-
quiátrico, que Foucault nos ensinou mais
impacto não cedeu nem mesmo após Höl- recentemente a entender melhor; tal
derlin ter encontrado “sua própria posi- procedimento pode bem ser comparado
ção, a partir de 1795”. Contudo, pondera à construção de factoides usual em nosso
o pesquisador da Universidade Federal de jornalismo de fofoca, em torno do qual
Minas Gerais – UFMG na entrevista conce- se juntam sabidamente os olhares sádicos
dida à IHU On-Line por e-mail, “é preciso das massas modernas”.
recuperar a compreensão da importância Joãosinho Beckenkamp é mestre em
de Schiller no contexto em questão” para
52 entender esse apego. E destaca: “Falando
Filosofia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – UFRGS e pela Georgia Au-
da influência de Schiller sobre Hölderlin, gusta Universität Göttingen, Alemanha,
neste sentido, há que reconhecer que se com a tese Kants Begriffstheorie. Cursou
trata da mais nobre das influências, aque- doutorado em Filosofia pela Universidade
la em que um poeta e pensador lança em Estadual de Campinas – Unicamp com a
outro as sementes de um novo universo tese Conceito e Crítica: Estudo sobre a
poético”. gênese do conceitualismo kantiano. Or-
Sobre o fato de a obra de Hölderlin ex- ganizou a obra Immanuel Kant, Princípios
pressar em seus escritos formas não orto- metafísicos da doutrina do direito (São
doxas do cristianismo, Beckenkamp rea- Paulo: WMF Martins Fontes, 2014) e é au-
ge apontando que a “insistência em ver tor de O jovem Hegel: Formação de um
em toda produção artística algum tipo de sistema pós-kantiano (São Paulo: Loyola,
2009) e Entre Kant e Hegel (Porto Alegre:
expressão do mitológico e/ou religioso
EDIPUCRS, 2004). Leciona na Universida-
caracteriza bem o filisteísmo que mar-
de Federal de Minas Gerais – UFMG, na Fa-
ca a leitura de Hölderlin no século XIX”.
culdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Acerca da questão dos pseudônimos usa-
dos pelo poeta alemão, destaca que essa Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida vimento romântico como fenô- e mesmo Schelling3 constituem
a poesia de Hölderlin ajudou a meno histórico. Se é justo dizer
compor o imaginário literário ro- que os irmãos Schlegel1, Novalis2
denberg poeta e filósofo alemão. Foi um dos
mais importantes representantes do roman-
mântico da poesia alemã? tismo alemão de finais do século XVIII. (Nota
1 August Wilhelm von Schlegel (1767- da IHU On-Line)
Joãosinho Beckenkamp – O 1845): crítico, tradutor, filólogo e professor 3 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm
imaginário romântico alemão universitário alemão, irmão do também fi- Joseph von Schelling, 1775-1854): filósofo
em geral é uma construção pós- lólofo Friedrich von Schlegel. (Nota da IHU alemão. Suas primeiras obras são geralmente
On-Line) vistas como um elo importante entre Kant e
tuma, encontrando só alguns 2 Novalis (1772-1801): pseudônimo de Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas
elementos incipientes no mo- Georg Friedrich Philipp Freiherr von Har- obras são representativas do idealismo e do

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DE CAPA IHU EM REVISTA

entusiasmo, dá continuidade, em
seus estudos sobre história univer-
sal, à filosofia da história de Kant,
de acordo com a qual a humanida-
Com golpes certeiros, Adorno de começa em inocente união com
a natureza, a qual precisa ser rom-
aponta para a inversão opera- pida para que o homem desenvol-
va sua racionalidade. Com a cisão
da por Heidegger na relação entre natureza e liberdade, sensi-
entre o nacional e o estrangei- bilidade e razão, advém na história
da humanidade a fragmentação,
ro na poesia de Hölderlin que só faz aumentar com o avanço
da reflexão, da técnica e da civi-
lização. Já na Teosofia de Julius,
fontes importantes deste imaginá- Joãosinho Beckenkamp – Höl-
Schiller havia feito culminar este
rio, é incorreto afirmar o mesmo derlin estreou no cenário literário
processo na recuperação final da
de Hölderlin, que se relaciona an- alemão sob a proteção de Schiller.
rememoração, nobre tarefa dos ar-
tes com o classicismo sui generis Além disso, os poemas de sua fase
tistas, segundo o poema Os artistas
de Schiller e Goethe4, em pleno inicial são fortemente marcados
de 1789. Fiel à sua natureza artís-
apogeu quando Hölderlin entrou no pela influência do conterrâneo tica, Schiller não podia aceitar sem
cenário literário alemão. mais velho e experiente. A admi- reservas a contraposição irreconci-
ração por Schiller, aliás, marca liável entre natureza e liberdade
A posterior incorporação da fi- toda a trajetória de Hölderlin, não
gura de Hölderlin ao imaginário que caracteriza a filosofia moral
cessando sequer depois que este kantiana, procurando ir além de
romântico se deve, por um lado, a encontrou sua própria posição a
sua biografia realmente trágica e, Kant no ensaio Sobre graça e digni-
partir de 1795. Para entender este dade, de 1793, e nas cartas Sobre
por outro lado, a uma incompreen- apego, é preciso recuperar a com- a educação estética do homem,
são de seu projeto poético. Projeto preensão da importância de Schil- de 1795, textos seminais em que
que começou a ser estudado com ler no contexto em questão. procura vislumbrar perspectivas de
mais atenção só no século XX (as-
sim, a fundamental obra tardia de Marcado inicialmente pelo pro- aproximação e reconciliação entre 53
cesso de esclarecimento em curso razão e natureza.
Hölderlin, considerada ao longo do
no século XVIII, Schiller encontra
século XIX como produção ininte-
ligível de um louco, teve sua pri-
por volta de 1790 a formulação ca- Estética do sublime
bal dos princípios deste processo
meira publicação efetiva apenas
na filosofia crítica de Kant6. Com É esta busca de novas perspec-
em 1914, na edição preparada por tivas morais e estéticas para o
Norbert von Hellingrath5). 6 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo homem que Hölderlin acompanha
prussiano, considerado como o último gran-
de filósofo dos princípios da era moderna,
desde a década de 1780, marcando
IHU On-Line – Qual é a razão representante do Iluminismo. Kant teve um sua trajetória tanto quanto a influ-
pela qual os contemporâneos de grande impacto no romantismo alemão e nas ência da forma lírica schilleriana
Hölderlin o consideravam um imi- filosofias idealistas do século XIX, as quais se
marcou sua produção poética ini-
tornaram um ponto de partida para Hegel.
tador de Schiller? Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- cial. Esta busca de novos horizon-
nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- tes inaugura com muita ousadia o
romantismo alemães. Criticou a filosofia de menon), isto é, entre o que nos aparece e o pensamento que se consolidaria
Hegel como “filosofia negativa”. Schelling que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não
tentou desenvolver uma “filosofia positiva”, poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- progressivamente como idealis-
que influenciou o existencialismo. Entrou mento científico, como até então pretendera mo alemão pós-kantiano, o que já
para o seminário teológico de Tübingen aos a metafísica clássica. A ciência se restringi- por si coloca Schiller em posição
16 anos. (Nota da IHU On-Line) ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria
4 Johann Wolfgang von Goethe (1749- constituída pelas formas a priori da sensibili-
de destaque neste contexto de
1832): escritor alemão, cientista e filósofo. dade (espaço e tempo) e pelas categorias do efervescência revolucionária das
Como escritor, Goethe foi uma das mais entendimento. A IHU On-Line número 93, ideias. Para a formação de Hölder-
importantes figuras da literatura alemã e do de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa lin como poeta trágico, entretan-
Romantismo europeu, nos finais do século à vida e à obra do pensador com o título Kant:
XVIII e inícios do século XIX. Juntamente razão, liberdade e ética, disponível para do- to, contribui ainda um outro avan-
com Schiller foi um dos líderes do movimento wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também ço promovido por Schiller a partir
literário romântico alemão Sutrm und Drang. sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU da estética kantiana. Interessado
De suas obras, merecem destaque Fausto e em formação número 2, intitulado Em-
Os sofrimentos do jovem Werther. (Nota da manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e
na compreensão do drama moder-
IHU On-Line) ética, que pode ser acessado em http://bit. no, gênero em que debutara e ao
5 Norbert von Hellingrath (1888-1916): ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da qual voltaria em seguida, Schiller
foi um estudioso literário alemão, cujo prin- revista IHU On-Line, de 06-05-2013, inti- se apropria da estética kantiana
cipal contribuição para estudos literários é a tulada A autonomia do sujeito, hoje. Impera-
primeira edição completa das obras do poeta tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ do sublime, levando-a do âmbito
Friedrich Hölderlin. (Nota da IHU On-Line) ihuon417. (Nota da IHU On-Line) da contemplação da natureza, ao

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

qual Kant a confinara, para o da ideias ou esquemas intelectuais, ções, iniciada por Dieter Henrich8
representação artística, com o que a poesia de Hölderlin se move no nos anos 80 do século passado. Esta
prepara a passagem da estética do horizonte de um esquema histórico pesquisa identifica duas constela-
belo para a estética do sublime que tem sua origem em Rousseau7, ções marcadas por Hölderlin. Na
como forma adequada de compre- ganha conceitos mais precisos em primeira delas, tem-se a passagem
ender a arte moderna. Kant e é reivindicado para a arte de Hölderlin por Iena no momento
por Schiller. Segundo este esque- em que Fichte9 domina o cenário fi-
Pois é na estética do sublime
ma, a história da cultura humana losófico da universidade. Confron-
assim estendida que se encontra
não transcorre linearmente, mas tado com a filosofia de Fichte, Höl-
o fundamento teórico para a com-
se caracteriza por uma cisão origi- derlin registra, num pequeno texto
preensão daquela apreciação esté-
nária, na qual o homem perde sua de 1795 intitulado Juízo e ser, a
tica do sofrimento que caracteriza
unidade em si, com os outros e com perda da unidade originária em
o prazer com o patético e o trági-
a natureza, passando a se fragmen- termos da reflexão na consciência,
co, tornando-se logo patente que
tar cada vez mais num processo de que se move sempre em contrapo-
é destino do homem moderno só
especialização movido por uma sições decorrentes da partição ori-
encontrar ainda o sentimento de
progressiva reflexão e abstração. ginária que cindiu a consciência em
si como ser espiritual pleno neste
sujeito e objeto.
misto de prazer e dor que se en- Com a perda da unidade originá-
contra no sentimento trágico da ria, começa a história do homem Neste mesmo período, Hölderlin
história e da própria existência. moderno, que se vê, pois, desafia- avança com seu projeto do roman-
Em Schiller este desdobramento do por uma incessante fragmenta- ce Hipérion, no qual este processo
trágico do sublime começa a ser ção e ameaçado de perder irrecor- de cisão em contrapostos aparen-
feito nos ensaios Sobre o sublime rivelmente a unidade. De dentro temente irreconciliáveis é articu-
e Sobre o patético, de 1793, ganha deste processo, propõe-se o esque- lado com o esquema histórico que
expressão no ensaio Sobre poesia ma para uma filosofia da história naquela altura passou a constituir
ingênua e sentimental, de 1795/6, que vê na especialização não só o germe formador de uma nova
e culmina na versão publicada em o lado negativo da fragmentação, filosofia da história, situando-se
1801 do ensaio Sobre o sublime; mas também o lado positivo do historicamente a cisão originária
para Hölderlin, esta consequência avanço na formação da humanida- no período clássico da cultura gre-
trágica marca sua mais própria po- de, cumprindo finalmente projetar ga. Claramente a partir de 1795,
54 sição poética, atingida no decor- a recuperação da imensa riqueza Hölderlin ensaia uma resposta es-
rer de sua passagem por Iena em assim gerada num ato final de re- tética ao ininterrupto processo de
1794/5. fragmentação que, desde aquela
memoração e reconciliação com
Falando da influência de Schil- este curso histórico, o que equi- explosão de reflexividade na cul-
ler sobre Hölderlin, neste sentido, valeria a uma reconquista da uni- tura grega do século V a. C., é
há que reconhecer que se trata da dade, agora enriquecida por toda constitutivo do homem moderno.
mais nobre das influências, aquela esta complexidade. Em seu projeto poético, Hölderlin
em que um poeta e pensador lança aprofunda a estética do sublime
proposta por Schiller, desenvolven-
em outro as sementes de um novo Primeira constelação
universo poético.
8 Dieter Henrich (1927): é um alemão
Para a compreensão do destino filósofo. Um pensador contemporâneo na
IHU On-Line – É correto afirmar desta filosofia da história da hu- tradição do idealismo alemão, Henrich é par-
ticularmente conhecido para a influência de
que a poesia de Hölderlin pode manidade em Hölderlin, contribui
Kant, Hegel e Fichte em sua obra. (Nota da
ser classificada como uma poesia bastante a pesquisa das constela- IHU On-Line)
metafísica? Por quê? 9 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814):
7 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): fi- filósofo alemão. Exerceu forte influência so-
Joãosinho Beckenkamp – Num lósofo franco-suíço, escritor, teórico político bre os representantes do nacionalismo ale-
sentido em que se pode considerar e compositor musical autodidata. Uma das mão, assim como sobre as teorias filosóficas
figuras marcantes do Iluminismo francês, de Schelling, Hegel e Schopenhauer. Fichte
a lírica de Schiller uma poesia filo- Rousseau é também um precursor do ro- decidiu devotar sua vida à filosofia depois de
sófica, certamente não, pois nela mantismo. As ideias iluministas de Rousse- ler as três Críticas de Immanuel Kant, publi-
de fato transparece o esquema au, Montesquieu e Diderot, que defendiam a cadas em 1781, 1788 e 1790. Sua investigação
igualdade de todos perante a lei, a tolerância obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu
intelectual subjacente. Algo que religiosa e a livre expressão do pensamento, próprio editor que publicasse o manuscrito.
já foi criticado pelos contemporâ- influenciaram a Revolução Francesa. Con- O livro surgiu em 1792, sem o nome e o prefá-
neos. Mas seria correto considerar tra a sociedade de ordens e de privilégios do cio do autor, e foi saudado amplamente como
a poesia de Hölderlin uma poesia Antigo Regime, os iluministas sugeriam um uma nova obra de Kant. Quando Kant escla-
governo monárquico ou republicano, consti- receu o equívoco, Fichte tornou-se famoso
metafísica no sentido daquela in- tucional e parlamentar. Sobre esse pensador, do dia para a noite e foi convidado a lecionar
tegração dos propósitos da arte e confira a edição 415 da IHU On-Line, de na Universidade de Jena. Fichte foi um con-
da filosofia tão característica do 22-04-2013, intitulada Somos condenados ferencista popular, mas suas obras teóricas
a viver em sociedade? As contribuições de são difíceis. Acusado de ateísmo, perdeu o
movimento romântico e idealista
Rousseau à modernidade política, disponí- emprego e mudou-se para Berlim. Seus Dis-
alemão. Ainda que não se rebai- vel em http://bit.ly/ihuon415. (Nota da IHU cursos à nação alemã são sua obra mais co-
xe jamais à simples expressão de On-Line) nhecida. (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

do uma arte no horizonte trágico do mitológico e/ou religioso carac- IHU On-Line – Por que Stefan
deste processo histórico. teriza bem o filisteísmo que mar- George12 aponta Hölderlin como
ca a leitura de Hölderlin no século poeta sagrado na nação alemã?
Segunda constelação XIX. O tratamento dado à figura de
Joãosinho Beckenkamp – O
Cristo, inegável sobretudo na lírica
melhor juízo sobre o culto do he-
Na segunda constelação, temos o tardia de Hölderlin, expressa ape-
roico e do irracional, elevado a
reencontro de Hölderlin com Hegel nas com mais paixão e insistência o
requintes estéticos no círculo de
em Frankfurt entre 1797 e 1800, lamento, formulado por Schiller no
George, é o juízo da história, que
identificando-se uma forte influên- poema Os deuses da Grécia, diante
o coloca em íntima relação com
cia do primeiro sobre o segundo. do fato de que o belo cosmos da
a catástrofe nazifascista. A rei-
De natureza francamente prosaica, mitologia politeísta grega tenha
vindicação de Hölderlin por parte
Hegel não podia, é claro, subscre- dado lugar a um único transcen-
destas correntes obscurantistas
ver o programa estético do amigo, dente, deixando despovoado de
da cultura alemã só encontra sua
mas recebe dele a ambiciosa cons- deuses, mitos e heróis o mundo dos
explicação na imagem essencial-
trução histórica que plasmará em homens.
mente falseadora que se cons-
sua própria filosofia especulativa,
truiu do poeta no decorrer do sé-
na qual se fundem filosofia da histó- IHU On-Line – É possível afirmar culo XIX.
ria e metafísica. Hegel reconhece, que a inclinação de Hölderlin para
com Hölderlin, a irreversibilidade os pseudônimos anagramáticos se
do processo histórico que levou da IHU On-Line – Qual é a peculia-
manifestou já no Hipérion? Por
bela unidade grega à fragmentação ridade da interpretação filosófica
que ele usava tais pseudônimos?
do homem moderno, mas não o de Heidegger13 sobre a poesia de
acompanha na passagem da estéti- Joãosinho Beckenkamp – A Hölderlin?
ca do belo para a estética do subli- pseudonímia não é característica
Joãosinho Beckenkamp – No
me, o que o leva coerentemente a de Hölderlin, que usou seu próprio
contexto da Primeira Guerra Mun-
propor a tese do fim da arte (bela), nome na maioria de suas publi-
dial, Walter Benjamin14 já havia
fim este amplamente documentado cações. Na época, valeram-se de
formulado uma decisiva crítica
nas experimentações desencontra- pseudônimos, por exemplo, Frie-
da apropriação chauvinista de
das da antiguidade tardia. drich von Hardenberg10, conhecido
por seu pseudônimo Novalis, e Jo-
Para Hegel, a arte não pode re- hann Christian Friedrich Richter11,
12 Stefan George (1868-1933): foi um
tradutor e poeta alemão. (Nota da IHU
55
conciliar o espírito com um mundo conhecido por seu pseudônimo On-Line)
irremediavelmente prosaico como 13 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
Jean Paul; e nunca ninguém viu
alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
é o moderno. Esta tarefa só po- particular relevância nisto. A cons- (1927). A problemática heideggeriana é am-
deria ser realizada pela filosofia, trução de algo assim como uma pro- pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas
através do conhecimento da ne- funda inclinação de Hölderlin para sobre o humanismo (1947), Introdução à
cessidade do processo em questão. metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira
os pseudônimos, obviamente a par- as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O
Compartilhando a mesma compre- tir dos rabiscos de um incapacitado século de Heidegger, disponível em http://
ensão da história, em relação à mental (Hölderlin depois de 1806), bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, inti-
qual se pode ainda falar de uma tulada Ser e tempo. A desconstrução da me-
denuncia antes o sadismo do olhar
tafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira,
certa metafísica, Hölderlin e Hegel psiquiátrico, que Foucault nos en- ainda, Cadernos IHU em formação nº 12,
se distinguem, portanto, por deci- sinou mais recentemente a enten- Martin Heidegger. A desconstrução da me-
sões fundamentalmente diferentes der melhor. Tal procedimento pode tafísica, que pode ser acessado em http://bit.
ly/ihuem12. Confira, também, a entrevista
no concernente à resposta dada bem ser comparado à construção concedida por Ernildo Stein à edição 328 da
ao desafio lançado pelo processo, de factoides usual em nosso jorna- revista IHU On-Line, de 10-05-2010, dispo-
tendo Hegel proposto uma reconci- lismo de fofoca, em torno do qual nível em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O
liação prosaica com um mundo pro- biologismo radical de Nietzsche não pode ser
se juntam sabidamente os olhares
minimizado, na qual discute ideias de sua
saico, enquanto Hölderlin insistia sádicos das massas modernas. conferência A crítica de Heidegger ao biolo-
numa resposta estética, aprofun- gismo de Nietzsche e a questão da biopolítica,
dando cada vez mais a percepção 10 Georg Philipp Friedrich von Har- parte integrante do ciclo de estudos Filo-
denberg (1772-1801), Freiherr (barão) von sofias da diferença – pré-evento do XI
do trágico neste curso inevitável
Hardenberg, mais conhecido pelo pseudó- Simpósio Internacional IHU: O (des)
da história. nimo Novalis, foi um dos mais importantes governo biopolítico da vida humana.
representantes do primeiro romantismo (Nota da IHU On-Line)
alemão de finais do século XVIII e o criador 14 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo
IHU On-Line – Em que sentido da flor azul, um dos símbolos mais duráveis alemão. Foi refugiado judeu e, diante da pers-
sua obra expressa uma forma não do movimento romântico. (Nota da IHU pectiva de ser capturado pelos nazistas, pre-
ortodoxa do cristianismo e como On-Line) feriu o suicídio. Um dos principais pensado-
11 Jean Paul (1763-1825): pseudônimo de res da Escola de Frankfurt. Sobre Benjamin,
isso repercutiu em seu tempo? Johann Paul Friedrich Richter. Foi um es- confira a entrevista Walter Benjamin e o
critor romântico alemão muito admirado na império do instante, concedida pelo filó-
Joãosinho Beckenkamp – A in-
sua época. A modificação que fez no seu nome sofo espanhol José Antonio Zamora à IHU
sistência em ver em toda produção deveu-se à admiração que sentia por Jean- On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/
artística algum tipo de expressão -Jacques Rousseau. (Nota da IHU On-Line) zamora313. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Hölderlin no círculo de George. também isto como distorção, é tiguidade tardia. Benjamin acabou
Após a Segunda Guerra Mundial, preciso recuperar aquela filosofia por incorporar este procedimento
durante a qual Benjamin perdeu da história de que se falou acima, em sua técnica da constelação,
sua vida fugindo da perseguição e que coloca Hölderlin ao lado de muito admirada e empregada por
nazista, coube a Adorno15 desem- Hegel entre os autores que procu- Adorno, no qual a parataxe cons-
penhar papel semelhante em re- raram responder à modernidade titui um elemento importante do
lação à apropriação heideggeriana em seus próprios termos. estilo.
de Hölderlin, o que ocorreu no
ano de 1963 durante o encontro A leitura de Benjamin e Ador-
IHU On-Line – Em que consiste o no prepara a poesia hölderliniana
anual da Sociedade Hölderlin em conceito de parataxis de Theodor
Berlim. Em sua intervenção, que para a acolhida numa perspectiva
Adorno sobre a poesia de Hölder- messiânica coerente com a heran-
traz o título de Parataxis, Adorno
lin? E em que sentido Adorno re- ça judaica dos intérpretes. A ênfa-
empreende uma verdadeira des-
futa a recepção heideggeriana do se na parataxe, com sua tendência
construção da leitura heideggeria-
poeta alemão?
na, mostrando-a na continuidade à dissonância ou desarmonia, pode
daquele falseamento do poeta Joãosinho Beckenkamp – Ain- fazer esquecer, entretanto, o ou-
que marcou por longo tempo sua da que tenha vasta base material tro momento decisivo da poética
recepção. Com golpes certeiros, a seu favor, a crítica de Adorno a de Hölderlin, o da harmonização
Adorno aponta, por exemplo, para Heidegger não constitui algo assim das dissonâncias; o procedimen-
a inversão operada por Heidegger como uma refutação da leitura to poético visado por Hölderlin
na relação entre o nacional e o es- heideggeriana, pois não é disto se concebe melhor talvez com a
trangeiro na poesia de Hölderlin, que se trata na recepção e inter- noção de harmonia austera, que
inversão sem a qual não é possível pretação das obras. Assim como Hellingrath havia recuperado da
apresentar Hölderlin como o poe- a interpretação cristã do Antigo tradição retórica em seu comentá-
ta nacionalista alemão que dele se Testamento não constitui uma re- rio de 1911 sobre as traduções höl-
quis fazer. futação da interpretação judaica derlinianas de Píndaro17, e do qual
Uma das peculiaridades da in- de sua própria tradição, a qual é tributário, por sua vez, o comen-
terpretação heideggeriana de se mantém viva até hoje, assim tário de Benjamin. A harmoniza-
Hölderlin consiste precisamen- tampouco a crítica bem fundada ção das desarmonias constituídas
56 te em tratá-lo como um poeta de Adorno à interpretação hei- no processo histórico apela natu-
autenticamente germânico, ou deggeriana de Hölderlin constitui ralmente a um sentimento trági-
seja, como um herói do naciona- uma refutação, sendo de prever co da existência, que perpassaria,
lismo alemão. Outra peculiarida- que ela continue tendo fervorosos então, toda a obra de Hölderlin.
de desta interpretação se expres- adeptos entre chauvinistas e des- Mas isto remete ao complexo de
sa naquilo que Adorno chamou contentes com o mundo moderno sua poética, cujo tratamento exi-
de jargão da autenticidade de em geral. giria muito mais espaço do que o
Heidegger. Segundo este jargão, Quanto ao conceito de parataxe, previsto aqui.
Hölderlin seria o poeta do autên- foi ele cunhado no século XIX para A posterior incorporação da fi-
tico ser originário ou da verda- reunir várias figuras de linguagem gura de Hölderlin ao imaginário
deira origem, a ser buscada, no que se caracterizam por sua natu-
caso, em imemoráveis tempos romântico se deve, por um lado, a
reza assindética. Adorno o aplica a sua biografia realmente trágica e,
pré-socráticos! Para compreender Hölderlin na esteira da leitura que por outro lado, a uma incompre-
Benjamin propôs de duas versões ensão de seu projeto poético, que
15 Theodor Adorno [Theodor Wiesen-
grund Adorno] (1903-1969): sociólogo, de um poema de Hölderlin no ano começou a ser estudado com mais
filósofo, musicólogo e compositor, definiu o de 1914, o que é explicitado no en- atenção só no século XX (assim, a
perfil do pensamento alemão das últimas dé- saio Parataxis de 1963. Em seu co-
cadas. Adorno ficou conhecido no mundo in- fundamental obra tardia de Hölder-
telectual, em todos os países, em especial pelo mentário, Benjamin registra a ten- lin, considerada ao longo do século
seu clássico Dialética do Iluminismo, escrito dência à simples justaposição de XIX como produção ininteligível de
junto com Max Horkheimer, primeiro diretor elementos divergentes na versão
do Instituto de Pesquisa Social, que deu ori- um louco, teve sua primeira publi-
final do poema de Hölderlin, va-
gem ao movimento de idéias em filosofia e so- cação efetiva apenas em 1914, na
ciologia que conhecemos hoje como Escola de lendo-se da noção neokantiana de
edição preparada por Norbert von
Frankfurt. Sobre Adorno, confira a entrevista série, citada por Adorno, e ainda
concedida pelo filósofo Bruno Pucci à edição Hellingrath).■
da noção de mosaico, proveniente
386 da Revista IHU On-Line, intitulada Ser
autônomo não é apenas saber dominar bem dos trabalhos de Riegl16 sobre a an- um dos profissionais mais influentes do for-
as tecnologias, disponível para download em malismo. (Nota da IHU On-Line)
http://bit.ly/ihuon386. A conversa foi moti- 16 Alois Riegl (1858-1905 ): foi um austrí- 17 Píndaro (522 a.C.-443 a.C.): também
vada pelo palestra Theodor Adorno e a frieza aco historiador de arte, e é considerado um conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou
burguesa em tempos de tecnologias digitais, membro da Escola de História da Arte de Vie- Píndaro de Beozia, foi um poeta grego, autor
proferida por Pucci dentro da programação na. Ele foi uma das figuras mais importantes de “Epinícios” ou “Odes Triunfais”, e autor
do Ciclo Filosofias da Intersubjetividade. no estabelecimento da história da arte como também da célebre frase “Homem, torna-te
(Nota da IHU On-Line) uma disciplina acadêmica autossuficiente, e no que és”. (Nota da IHU On-Line)

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O Hipérion como chave para a


poética de Hölderlin
Romance em prosa, ou poesia em prosa, o Hipérion ocupa lugar central na
obra de Hölderlin, avalia Márcia Schuback. A ele se atribui ter transformado
a tragédia ultrapassando sua concepção moderna
Por: Márcia Junges e Ricardo Machado

U ma das mais belas e impor-


tantes narrativas do acolhi-
mento do fundo nômade da
existência humana, “via excêntrica” e
da errância humana como o seu único
Márcia Schuback acentua que Höl-
derlin transformou o sentido de tragé-
dia: “Pode-se dizer que ele elaborou
um sentido de tragédia que ultrapassa
até mesmo o seu sentido moderno, ela-
tempo e lugar. Esta é a definição de borado por Shakespeare”. Para o poeta
Márcia Schuback, filósofa e tradutora alemão, “a tragédia é a experiência de
de Hölderlin para a língua portugue- um paradoxo radical onde o excesso
sa, sobre Hipérion, uma das principais de intimidade do finito com o infinito
obras do autor, em entrevista concedi- é que separa o finito do infinito numa
da por e-mail à IHU On-Line. desmesura irreparável”.
“O Hipérion é tanto uma narrativa Marcia Sá Cavalcante Schuback é fi-
da errância como condição existen- lósofa, tradutora de obras filosóficas e 57
cial quanto uma narrativa sobre o sur- poéticas de língua alemã e autora de
gir e acontecer da narrativa poética”, vários ensaios e livros. Foi professora ad-
acrescenta. E completa: “Hipérion é junta do Instituto de Filosofia e Ciências
uma narrativa do encontro humano não Sociais da Universidade Federal do Rio
com a sua humanidade, seja ela huma- de Janeiro – UFRJ. Trabalha desde 1999
nista ou humanitária, mas com a sua na Södertörn University, em Estocolmo,
intimidade devastadora e inexorável onde é professora titular de Filosofia. É
com a tensão arcaica de vida e morte autora, dentre outros, de Olho a olho:
em tudo que vive e tudo que morre. ensaios de longe (Rio de Janeiro: 7 Le-
É um encontro da existência humana tras, 2011); Being with the without jun-
com o seu encontrar-se sempre no li- tamente com Jean-Luc Nancy (Estocol-
mite da existência”. Para a pesquisa- mo: Axl Books, 2013); e tradutora, entre
dora, nesse romance “nos encontramos outras obras, de Ser e Tempo (São Paulo:
Vozes, 2006) e A Caminho da Linguagem
igualmente na soleira em que filosofia
(São Paulo: Vozes, 2003) de Martin Hei-
torna-se poesia e poesia filosofia”, en-
degger; e Corpo, fora de Jean-Luc Nancy
toando “a canção de um aparecer no
(Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015).
meio do desaparecer, uma flor num
muro de cimento”. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o cerne do existência humana. É uma narrati- questão, e sim uma narrativa sur-
Hipérion? Qual é sua importância va da “via excêntrica”, da errância gida desse acolhimento da errân-
no contexto de obra de Hölderlin? humana como o seu único tempo e cia e da errância como acolhida.
lugar. Digo uma narrativa do aco- Nesse sentido, o Hipérion é tanto
Márcia Schuback – Hipérion é, lhimento da errância e não sobre uma narrativa da errância como
no meu entender, uma das mais o acolhimento da errrância, pois o condição existencial quanto uma
belas e importantes narrativas do Hipérion não é um discurso poético narrativa sobre o surgir e aconte-
acolhimento do fundo nômade da ou literário sobre algum tema ou cer da narrativa poética. Isso sig-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

nifica igualmente que Hipérion não a um esquema de correspondência mento mesmo de tornar-se e não
deve ser entendido, a meu ver, se- entre uma forma arquetípica e as do que aparece como resultado
gundo a categoria poetológica de suas variações, entre uma origem e desse tornar-se.
“romance de formação”, cunhada seu destino, um esquema que pode
pelo filólogo alemão Karl Morgens- ser chamado, como sugeriu Phili- “Poeta dos poetas”
tern1 (1819) e disseminada pelo fi- ppe Lacoue-Labarthe,4 de esquema
lósofo da vida Wilhelm Dilthey.2 mimético. Dizer que Hipérion seria “a obra
mais conhecida de Hölderlin” não
Romance de Formação Movimento de é bem justo. Tudo depende de que
passagem período da recepção de sua obra
Hipérion tem, sem dúvida, uma se tem em mente. Hipérion foi pu-
estrutura similar aos chamados O Hipérion de Hölderlin rompe blicado enquanto Hölderlin vivia
romances de formação, que flores- com esse esquema mimético, pois e teve uma boa repercussão, no
cem na Alemanha no século XVIII: o considera a “origem” não como círculo dos românticos. Vivendo
herói ardente abandona a origem, uma forma arcaica que pode ser tantos anos fechado na torre de
se aventura na errância e luta por perdida e reencontrada, mas como Tübingen, com sua doença mental,
um ideal e retorna transformado uma formação, uma movimenta- que em alemão pode ser descrita
para a origem. Essa estrutura que ção arcaica, uma tensão de vida com a bonita palavra Umnachtung,
encontrou na Fenomenologia do e morte. A existência humana não vida cercada pela noite, Hölderlin
Espírito (Petrópolis: Vozes, 2003) provém e nem retorna a lugar ne- foi já esquecido em vida. Mas não
de Hegel3 a sua forma filosófica nhum, por ser ela mesma o lugar ou totalmente. Karl Marx5 cita uma
exemplar, articulada segundo a ló- a cena da tensão de vida e morte. A longa passagem do final do Hipé-
gica dialética de tese, antítese e existência humana aparece no Hi- rion contra os alemães, nos Anais
síntese, é enganosa, pois assume périon como a cena do drama das Franco-alemães que edita durante
um sentido de existência humana forças arcaicas de vida e morte. Hi- o seu período de exílio em Paris.
como autorrealização. Pensar a périon é uma narrativa do encontro Nietzsche6 reconhece em Hölder-
existência humana como autorrea- humano não com a sua humanida-
lização é admitir que o homem é de, seja ela humanista ou huma- 5 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-
um si-mesmo que precisa apenas nitária, mas com a sua intimidade
1883): filósofo, cientista social, economista,
desenvolver-se e assim alcançar historiador e revolucionário alemão, um dos
58 aquilo que ele já é antes mesmo de
devastadora e inexorável com a
tensão arcaica de vida e morte em
pensadores que exerceram maior influência
sobre o pensamento social e sobre os destinos
ser. Em jogo nessa estrutura está tudo que vive e tudo que morre. É da humanidade no século XX. Leia a edição
uma ideia de identidade como o número 41 dos Cadernos IHU ideias, de
um encontro da existência humana autoria de Leda Maria Paulani, que tem como
que já está dado tal um germe, e
com o seu encontrar-se sempre no título A (anti)filosofia de Karl Marx, dispo-
que precisa apenas de um meio e
limite da existência. Para se per- nível em http://bit.ly/173lFhO. Também
um tempo para alcançar a sua ple- sobre o autor, confira a edição número 278
ceber de que modo o Hipérion de
nitude. Assim, o sentido de movi- da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitula-
Hölderlin rompe com a estrutura, da A financeirização do mundo e sua crise.
mento e transformação fica preso
digamos “clássica”, dos romances Uma leitura a partir de Marx, disponível em
de formação, é preciso lê-lo com http://bit.ly/ihuon278. Leia, igualmente, a
1 Johann Karl Simon Morgenstern entrevista Marx: os homens não são o que
(1770-1852): foi um filólogo alemão em Livo- rigor e vagar, pois é o ritmo poé- pensam e desejam, mas o que fazem, conce-
nia, o primeiro diretor da biblioteca da Uni- tico e a poética rítmica da sua es- dida por Pedro de Alcântara Figueira à edição
versidade Imperial de Tartu. (Nota da IHU crita e leitura que desestruturam 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, dispo-
On-Line) nível em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On-
o esquema mimético desse gênero
2 Wilhelm Dilthey (1833-1911): filósofo -Line preparou uma edição especial sobre
hermenêutico, psicólogo, historiador, so- literário. É de dentro do romance desigualdade inspirada no livro de Thomas
ciólogo e pedagogo alemão. Foi professor que o romance se desconstrói, por Piketty O Capital no Século XXI, que retoma
da Universidade de Berlim. (Nota da IHU assim dizer. Nesse romance nos en- o argumento central da obra de Marx O Capi-
On-Line) tal, disponível em http://bit.ly/IHUOn449.
3 Friedrich Hegel (Georg Wilhelm Frie-
contramos igualmente na soleira (Nota da IHU On-Line)
drich Hegel, 1770-1831): filósofo alemão em que filosofia torna-se poesia e 6 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó-
idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás poesia filosofia. Não se trata nem sofo alemão, conhecido por seus conceitos
de Aquino, tentou desenvolver um sistema de mistura e nem de uma sínte- além-do-homem, transvaloração dos va-
filosófico no qual estivessem integradas todas lores, niilismo, vontade de poder e eterno
as contribuições de seus principais predeces- se de gêneros, estilos e modos de retorno. Entre suas obras figuram como as
sores. Sobre Hegel, confira no link http://bit. pensar. Trata-se bem mais de um mais importantes Assim falou Zaratustra
ly/ihuon217 a edição 217 da IHU On-Line, movimento de passagem, do movi- (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916)
do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich He- e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo:
gel (1807-2007), em comemoração aos 200 4 Philippe Lacoue-Labarthe (1940- Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando
anos de lançamento dessa obra. Veja ainda 2007): foi um filósofo francês. Ele também foi acometido por um colapso nervoso que
a edição 261, de 09-06-2008, Carlos Rober- era um crítico literário e tradutor. Lacoue- nunca o abandonou até o dia de sua morte.
to Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler -Labarthe foi influenciado por e escreveu A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da
Hegel, disponível em http://bit.ly/ihuon261, extensivamente sobre Martin Heidegger, Ja- edição número 127 da IHU On-Line, de
e Hegel. A tradução da história pela razão, cques Derrida, Jacques Lacan, o romantismo 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do
edição 430, disponível em http://bit.ly/ alemão, Paul Celan e Gérard Granel. (Nota da martelo e do crepúsculo, disponível para do-
ihuon430. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) wnload em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15

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DE CAPA IHU EM REVISTA

lin um dos maiores poetas da lín- da nas primeiras décadas do século Márcia Schuback – Hipérion é
gua alemã e cita também trechos XX, ela cedeu lugar aos poemas e uma obra em prosa, por isso cha-
do Hipérion. Foi, porém, com o aos hinos e, posteriormente, à sua mada de “romance”. Mas basta ler
trabalho editorial de Norbert von tragédia A Morte de Empédocles. as primeiras linhas para nos darmos
Hellingrath,7 o primeiro a reunir conta de que se trata de um poema
a obra de Hölderlin de forma sis- em prosa, de poesia pura. Hölderlin
temática que ele foi reconhecido considerou que a marca fundamen-
tal do Hipérion era o seu “caráter
como o “poeta dos poetas” como
elegíaco”. Elegia, do grego ἔλεγος
disse Heidegger.8 Eu possuo uma Hipérion é uma significa lamento, canção de luto
edição de bolso do Hipérion – de
bolso mesmo, quase uma miniatu- obra em prosa, e perda. O que canta Hipérion não
é, porém, propriamente a perda da
ra 9 x 6 cm – impressa para os sol- por isso chama- crença num ideal de harmonia e um
dados da Primeira Guerra Mundial
levarem consigo. Se o Hipérion foi da de “roman- retorno à origem, seja ela históri-
ca ou divina. O caráter elegíaco do
a obra de Hölderlin mais conheci- ce”. Mas basta Hipérion interrompe justamente
essa tonalidade moderna que passa
dos Cadernos IHU em formação é intitu-
lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e
ler as primeiras da nostalgia à utopia e vice-versa.
pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB.
Confira, também, a entrevista concedida por
linhas para nos Hipérion apresenta pela primeira
vez no percurso poético de Hölder-
Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU
On-Line, de 10-05-2010, disponível em
darmos conta lin uma de suas visões mais criado-
ras, a visão do que seja um devir
http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis-
mo radical de Nietzsche não pode ser mini- de que se trata no perecer. O caráter elegíaco do
mizado, na qual discute ideias de sua confe-
rência A crítica de Heidegger ao biologismo de um poema Hipérion expõe o que seja devir
no próprio perecer e assim já en-
de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte
integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da em prosa, de toa uma canção de despedida dos
ideais de ressurreição ou reapro-
poesia pura
diferença – Pré-evento do XI Simpósio Inter-
nacional IHU: O (des)governo biopolítico da
priação, de salvação ou redenção
vida humana. Na edição 330 da revista IHU
On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista que sempre guiaram a história do
Nietzsche, o pensamento trágico e a afirma- Leitura ativa e radical Ocidente europeu. Hipérion entoa 59
ção da totalidade da existência, concedida a canção de um aparecer no meio
pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível Hölderlin é um poeta difícil e
para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na
do desaparecer, uma flor num muro
edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista requer uma leitura não só ativa, de cimento. Esse caráter é de uma
O amor fati como resposta à tirania do senti- mas sobretudo radical, ou seja, proximidade distante e de uma
do, com Danilo Bilate, disponível em http:// de corpo e alma, como dizemos. distância próxima, que não deixa
bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line)
7 Norbert von Hellingrath (1888-1916): A dificuldade encontra-se, sobre- confundir o romance de Hölderlin
foi um estudioso literário alemão, cuja prin- tudo, no fato de Hölderlin ter sido seja com diário de viagem ou com
cipal contribuição para estudos literários é a confissão interior.
o mais radical pensador da poesia,
primeira edição completa das obras do poeta
Friedrich Hölderlin. (Nota da IHU On-Line) não por ter pensado a poesia com Na minha compreensão, Hipérion
8 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo categorias filosóficas ou poetoló- ocupa um lugar central na obra de
alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
(1927). A problemática heideggeriana é am-
gicas, mas por ter pensado a po- Hölderlin que não se deixa avaliar
pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas esia poeticamente, com catego- como um estágio inicial dentro de
sobre o humanismo (1947), Introdução à rias poéticas e não teóricas. Ainda uma evolução poética. O que Hipé-
metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira
as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O
hoje são pouco estudados os seus rion mostra é, na verdade, que na
século de Heidegger, disponível em http:// escritos ditos teóricos, que tra- poesia não há evolução e nem se-
bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, inti- duzi há muitos anos sob o título quer revolução, mas somente expo-
tulada Ser e tempo. A desconstrução da me-
tafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira,
Reflexões(Rio de Janeiro: Relume- sição da experiência do inacabado
ainda, Cadernos IHU em formação nº Dumará, 1994). Hipérion talvez da vida do dizer na busca de dizer o
12, Martin Heidegger. A desconstrução da seja a sua obra mais conhecida por inominável da vida e do viver. É essa
metafísica, que pode ser acessado em http://
parecer mais acessível, mas a con- experiência que Hipérion nos apre-
bit.ly/ihuem12. Confira, também, a entrevis-
ta concedida por Ernildo Stein à edição 328 sidero uma obra ainda hoje pouco senta numa forma que nada mais é
da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, estudada e, sobretudo, ainda não do que essa experiência. Nesse sen-
disponível em http://bit.ly/ihuon328, intitu- tido, o Hipérion é uma chave para a
lada O biologismo radical de Nietzsche não estudada do ponto de vista do pen-
pode ser minimizado, na qual discute ideias samento poético apresentado pelo poética de Hölderlin.
de sua conferência A crítica de Heidegger ao próprio Hölderlin.
biologismo de Nietzsche e a questão da bio-
política, parte integrante do ciclo de estudos
IHU On-Line – Em que consiste o
Filosofias da diferença – pré-evento do XI IHU On-Line – Qual é a impor- conceito de tragédia nesse poeta?
Simpósio Internacional IHU: O (des)gover-
no biopolítico da vida humana. (Nota da tância dessa obra dentro do con- Márcia Schuback – Hölderlin
IHU On-Line) junto da sua poesia? transformou o sentido de tragédia.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

Pode-se dizer que ele elaborou um as Observações sobre Édipo Rei e IHU On-Line – Há uma influência
sentido de tragédia que ultrapassa Antígona – observações oriundas de Heráclito13 que pode ser ob-
até mesmo o seu sentido moder- de seu trabalho de tradução desses servada em seus poemas?
no, elaborado por Shakespeare.9 textos – como e, sobretudo, em sua
Márcia Schuback – Tudo depende
Quem apreendeu bem essa questão tragédia a Morte de Empédocles e
foi Lacoue-Labarthe e também o de que Heráclito, de que poema.
o comentário sobre o Fundamento
cineasta Jean-Marie Straub,10 que Sem dúvida, o Hipérion se concen-
de Empédocles, é de tamanha ra-
filmou a Morte de Empédocles, que tra numa experiência que Hölder-
dicalidade que talvez só hoje, no
é a obra de Hölderlin em que a sua lin reconhece como heraclítica, ao
momento histórico em que nos en-
visão do trágico recebe um extre- citar um fragmento preservado por
contramos, possa ser compreendi-
mo tratamento poético. Para Höl- Platão,14 do uno se diferenciando
do e aprofundado.
derlin, a tragédia é a experiência em si mesmo, como sendo a ex-
de um paradoxo radical onde o ex- periência da beleza, sem a qual a
cesso de intimidade do finito com o IHU On-Line – Como ele se apro- filosofia jamais poderia ter surgido
infinito é que separa o finito do in- pria da tragédia grega enquanto entre os gregos. Mas de maneira
finito numa desmesura irreparável. inspiração para seus escritos? geral, acho que quem exerce a
A dificuldade desse pensamento do Márcia Schuback – A questão da maior influência sobre os poemas
trágico em Hölderlin está em que apropriação dos gregos e da tragé- de Hölderlin é Píndaro.15 Hölderlin
os modelos culturais de que dispo- dia grega recebe um sentido bem traduziu Píndaro e essas traduções
mos para pensar a vida e a história, diverso em Hölderlin. Eu não diria talvez sejam o maior documento
como a oposição entre natureza e tanto apropriação, mas tradução. do que seja uma influência poéti-
cultura, divino e humano, trans- ca, do que seja uma escuta tradu-
E tradução num sentido também
cendência e imanência mostram-se tora como dinâmica de uma poéti-
bem alterado, pois Hölderlin não
insuficientes e obsoletos. A sepa- ca. Pois poesia é escuta.
traduz o grego para o moderno,
ração irreparável entre homem e
mas o grego para o oriental, ele
natureza, consciência e vida, ser IHU On-Line – Qual é o nexo
mesmo inacessível tanto para o
e pensar se mostra tragicamente
grego como para nós. Essa tradu- entre a reciprocidade do apare-
como excesso de intimidade de
ção se perfaz mediante um deixar cer na natureza e da natureza do
ambos.
os sentidos conhecidos e ficar à aparecer, pensando Schelling à
60 O sentido da tragédia não está deriva do sentido. É como deixar luz de Hölderlin?
mais como em Aristóteles11 no efei- uma forma definida, mediante
to catártico do sofrimento e da dor, 13 Heráclito de Éfeso (540 a.C.-470 a.C.):
uma certa dis-formação ou mes- filósofo pré-socrático, considerado o pai da
mas na visão extrema do instante mo de-formação e nesse deixar dialética. Problematiza a questão do devir
extremo em que o excesso da vida entrever um vir à forma, um vir à (mudança). Recebeu a alcunha de “Obs-
aniquila a vida. O sentido de trági- figura. Hölderlin se “apropria” do
curo” principalmente em razão da obra a
ele atribuída por Diógenes Laércio, Sobre a
co apresentado por Hölderlin tan-
grego, da tragédia grega, tradu- Natureza, em estilo obscuro, próximo ao das
to em seus textos teóricos como sentenças oraculares. Na vulgata filosófica,
zindo tudo o que nela é forma, de-
Heráclito é o pensador do “tudo flui” (panta
9 William Shakespeare (1564-1616): finição, determinação para um vir rei) e do fogo, que seria o elemento do qual
dramaturgo inglês. Considerado por muitos à forma, um vir à definição, um vir deriva tudo o que nos circunda. De seus escri-
como o mais importante dos escritores de à determinação. Seria algo como tos restaram poucos fragmentos (encontra-
língua inglesa de todos os tempos. Como dra- dos em obras posteriores), os quais geraram
maturgo, escreveu não só algumas das mais traduzir substantivos por verbos. grande número de obras explicativas. (Nota
marcantes tragédias da cultura ocidental, Nas gravuras de Carlos Rotman, da IHU On-Line)
mas também algumas comédias, 154 sonetos reproduzidas na versão revisada 14 Platão (427-347 a.C.): filósofo ateniense.
e vários poemas de maior dimensão. (Nota da Criador de sistemas filosóficos influentes até
IHU On-Line) de minha tradução editada pela hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética.
10 Jean-Marie Straub (1933): cineasta Forense, encontramos um exem- Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de
que fez duas dezenas de filmes entre 1963 e plo de tradução plástica próxima Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se
2006. Seus filmes são conhecidos por seu es- A República (São Paulo: Editora Edipro,
tilo rigoroso e intelectualmente estimulante. do gesto tradutor de Hölderlin. 2012) e Fédon (São Paulo: Martin Claret,
Trabalhou principalmente na Alemanha e na Nessas gravuras a Grécia é tradu- 2002). Sobre Platão, confira a entrevista As
Itália. (Nota da IHU On-Line) zida para desenhos que se aproxi- implicações éticas da cosmologia de Platão,
11 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 concedida pelo filósofo Marcelo Perine à edi-
a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. mam de um Cézanne.12 ção 194 da revista IHU On-Line, de 04-09-
Suas reflexões filosóficas – por um lado, ori- 2006, disponível em http://bit.ly/pteX8f.
ginais; por outro, reformuladoras da tradição 12 Paul Cézanne (1839-1906): foi um pintor Leia, também, a edição 294 da revista IHU
grega – acabaram por configurar um modo de pós-impressionista francês, cujo trabalho for- On-Line, de 25-05-2009, intitulada Platão.
pensar que se estenderia por séculos. Prestou neceu as bases da transição das concepções A totalidade em movimento, disponível em
significativas contribuições para o pensa- do fazer artístico do século XIX para a arte IHU On-Line)
mento humano, destacando-se nos campos radicalmente inovadora do século XX. Cézan- 15 Píndaro (522 a.C.-443 a.C.): também
da ética, política, física, metafísica, lógica, ne pode ser considerado como a ponte entre conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou
psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia o impressionismo do final do século XIX e o Píndaro de Beozia, foi um poeta grego, autor
e história natural. É considerado, por muitos, cubismo do início do século XX. Matisse e Pi- de “Epinícios” ou “Odes Triunfais”, e autor
o filósofo que mais influenciou o pensamento casso disseram a célebre frase: “Cézanne é o também da célebre frase “Homem, torna-te
ocidental. (Nota da IHU On-Line) pai de todos nós”. (Nota da IHU On-Line) no que és”. (Nota da IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Márcia Schuback – Schelling16 é o seminário de Tübingen e sofreram Hölderlin. Peter Weiss23 escreveu
grande filósofo da natureza, talvez um grande impacto, sobretudo uma peça de teatro sobre e desde
o único depois de Plotino17 e Espi- de sua personalidade e ideias. O Hölderlin. Acredito que a poesia e
nosa.18 A sua visão é impressionante, mesmo acontece com os círculos a filosofia do século XX foi profun-
pois ele percebe que a consciência românticos da época. Como men- damente marcada pela poesia de
humana é uma crise da natureza, cionei anteriormente, Karl Marx e Hölderlin.
é a natureza aparecendo como na- Nietzsche leem e citam Hölderlin,
tureza. A consciência não se opõe à e, para Nietzsche, Hölderlin é um IHU On-Line – E qual é a sua re-
natureza como uma instância fren- dos maiores, senão o maior poeta percussão hoje na Filosofia e na
te à outra, mas como uma irrupção da língua alemã. Com a publicação Literatura?
vulcânica de uma cisão dentro da da sua obra por Norbert von Hellin-
natureza imemorial. Nesse sentido, grath, Hölderlin se torna figura cul- Márcia Schuback – A maior re-
a visão do trágico apresentada por tuada no círculo de Stefan Georg,19 percussão de Hölderlin na filosofia,
Hölderlin está muito próxima da vi- um círculo que exerce uma enorme hoje, está, sem dúvida, permeada
são schelligniana da natureza. Para influência na cultura austríaca e pela interpretação feita por Heide-
ambos, embora eu tenderia a dizer alemã da primeira metade do sé- gger. A questão da técnica discuti-
que Hölderlin é ainda mais radical, a culo XX. da por Heidegger se faz em torno
existência humana é a cena ou o es- de um verso de Hölderlin: “onde
Rilke20 é leitor de Hölderlin e lhe está o perigo, aí cresce também o
pelho dessa cisão arcaica da nature-
dedica um poema célebre. Hölder- que salva”. Heidegger liga a poesia
za, o lugar em que o aparecer da na-
lin passa a ser cultuado pelos na- de Hölderlin à questão da supera-
tureza e a natureza do aparecer se
zistas, em virtude de seus poemas ção do Ocidente, do fim da filoso-
unem e desunem ao mesmo tempo.
considerados “pátrios”. Na déca- fia, dos impasses da Modernidade.
da de trinta, Heidegger começa a Nesse sentido, Hölderlin nunca
IHU On-Line – Quais são os prin- estudar exaustivamente a obra de soou mais atual do que hoje. Por
cipais poetas e filósofos que fo- Hölderlin, que se torna para ele a outro lado, cresce a crítica à lei-
ram impactados pela poesia de única via de superação da metafísi- tura heideggeriana, o que torna
Hölderlin? ca ocidental, a única via para uma Hölderlin um poeta para ser relido
Márcia Schuback – Schelling e superação da própria filosofia que, de outro modo. Acho necessário
Hegel estudaram com Hölderlin no segundo ele, encontrou o seu fim hoje uma leitura mais aprofundada
da era da técnica e maquinação das categorias poéticas do próprio 61
16 Friedrich Schelling (Friedrich Wilhelm
planetárias. Walter Benjamin21 es- Hölderlin, que se distinguem de ca-
Joseph von Schelling, 1775-1854): filósofo creve um importante texto de in- tegorias poetológicas. O interesse
alemão. Suas primeiras obras são geralmente terpretação de Hölderlin. Philippe pela sua teoria do trágico também
vistas como um elo importante entre Kant e Lacoue Labarthe dedica inúmeros
Fichte, de um lado, e Hegel, de outro. Essas é significante para a dramaturgia
obras são representativas do idealismo e do textos a Hölderlin e à critica da contemporânea, mas ainda merece
romantismo alemães. Criticou a filosofia de interpretação tornada canônica ser trazida para a própria filosofia.
Hegel como “filosofia negativa”. Schelling de Heidegger. Paul Celan22 dedi-
tentou desenvolver uma “filosofia positiva”,
ca um poema sofrido e radical a
que influenciou o existencialismo. Entrou IHU On-Line – Quais são os prin-
para o seminário teológico de Tübingen aos
16 anos. (Nota da IHU On-Line) 19 Stefan George (1868-1933): foi um
cipais desafios de traduzir Höl-
17 Plotino (205-270): filósofo egípcio, discí- tradutor e poeta alemão. (Nota da IHU derlin para o português?
pulo de Amônio Sacas e mestre de Porfírio, On-Line)
que nos legou seus ensinamentos em seis li- 20 Rainer Maria Rilke por vezes também Márcia Schuback – Toda tradu-
vros de nove capítulos cada, chamados de As Rainer Maria von Rilke (1875-1926): foi um ção é um grande desafio. Traduzir
Enéadas. Acompanhou uma expedição à Pér- poeta de língua alemã do século XX. Escreveu o alemão para o português é em
sia, onde tomou contato com a filosofia persa também poemas em francês. Rilke fez seus
e indiana. Regressou à Alexandria e, aos 40 estudos nas universidades de Praga, Munique
princípio ainda mais desafiador do
anos, estabeleceu-se em Roma. Desenvolveu e Berlim. Em 1894 fez sua primeira publica- que traduzir uma outra língua lati-
as doutrinas aprendidas de Amônio numa es- ção, uma coleção de versos de amor, intitula- na. Porque Hölderlin é, num certo
cola de filosofia com seleto grupo de alunos. dos Vida e canções (Leben und Lieder). Não sentido, um poeta ainda mais po-
Pretendia fundar uma cidade chamada Plato- exerceu nenhuma profissão, tendo vivido,
nópolis, baseada nos ensinamentos da Repú- sempre, à custa de amigas nobres. (Nota da eta que os poetas, no sentido de
blica de Platão. Plotino dividia o universo em IHU On-Line) inaugurar não só uma língua dentro
três hipóstases: o Uno, o Nous (ou mente) e a 21 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo da língua – o que faz toda poesia
alma. (Nota da IHU On-Line) alemão. Foi refugiado judeu e, diante da pers-
18 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632– pectiva de ser capturado pelos nazistas, pre-
– mas no sentido de inaugurar um
1677): filósofo holandês. Sua filosofia é consi- feriu o suicídio. Um dos principais pensado-
derada uma resposta ao dualismo da filosofia res da Escola de Frankfurt. Sobre Benjamin, modernos da língua alemã. (Nota da IHU
de Descartes. Foi considerado um dos gran- confira a entrevista Walter Benjamin e o On-Line)
des racionalistas do século XVII dentro da império do instante, concedida pelo filó- 23 Peter Ulrich Weiss (1916-1982): foi um
Filosofia Moderna e o fundador do criticismo sofo espanhol José Antonio Zamora à IHU pintor, diretor de cinema e novelista alemão.
bíblico moderno. Confira a edição 397 da IHU On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/ Filho de um militar judeu e de uma atriz cris-
On-Line, de 06-08-2012, intitulada Baruch zamora313. (Nota da IHU On-Line) tã, Peter Weiss viveu a infância em Bremen
Spinoza. Um convite à alegria do pensamen- 22 Paul Celan (1920-1970): poeta romeno e a adolescência no subúrbio de Berlim. Com
to, disponível em http://bit.ly/ihuon397. radicado na França. Sobrevivente do Holo- 18 anos teve de se exilar para escapar da per-
(Nota da IHU On-Line) causto, foi um dos mais importantes poetas seguição nazista. (Nota da IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

novo sentido de inaugurar, traduzir de René Char,25 numa obra chama- Foi um aprendizado possível ape-
Hölderlin é quase impossível. Ten- da Le marteau sans maître (Paris: nas por ter descoberto o pensar-
tei aprender com Hölderlin as suas Poésie/Gallimard, 2002). Descobri sentir da poesia de nossa língua,
lições de tradução, lições muito Heidegger pelas “mãos”, digamos sobretudo nas obras de Guima-
difíceis, pois ele traduz deixando assim, de René Char e foi igual-
rães Rosa29 e Clarice Lispector,30
soar a tensão entre duas línguas, de mente assim que descobri a poesia
onde palavras podem “brotar como esses dois grandes pensadores do
de Hölderlin. Sem dúvida, meus es-
flores”, como ele disse num de tudos de Heidegger me influencia- poético da literatura. Heidegger
seus versos. Essa descrição é, sem ram muito, mas sempre estranhei tinha sensibilidade para essa di-
dúvida, mais metafórica que técni- o fato de Heidegger nunca ter de- ferença entre modos diversos de
ca. Tentei trazer para o português dicado um comentário ao Hipérion pensar, diferença que ele desco-
uma experiência de linguagem pró- e nunca ter mencionado o famoso bre, parece-me, com a poesia de
xima da experiência de linguagem discurso do Hipérion contra os ale- Hölderlin. ■
que consigo perceber na poética de
mães, um discurso que faz apare-
Hölderlin. Esse trazer para o por-
cer o espírito pequeno do grande 29 João Guimarães Rosa (1908-1967): es-
tuguês não é o mesmo que tentar critor, médico e diplomata brasileiro. Como
espírito alemão.
germanizar o português, ou tornar escritor, criou uma técnica de linguagem
narrativa e descritiva pessoal. Sempre con-
o alemão de Hölderlin mais fácil Meu interesse pela poesia me le-
siderou as fontes vivas do falar erudito ou
ou cotidiano. Tentei encontrar a vou para a filosofia e para a ques- sertanejo, mas, sem reproduzi-las num rea-
língua das palavras que surgem do tão da diferença entre o pensa- lismo documental, reutilizou suas estruturas
encontro entre essas duas línguas e e vocábulos, estilizando-os e reinventando-os
mento da poesia e o pensamento
num discurso musical e eficaz de grande be-
de suas tradições poéticas. A maior da filosofia. A leitura de Hölderlin leza plástica. Sua obra parte do regionalismo
dificuldade é a tradução do tom da me levou estranhamente à des- mineiro para o universalismo, oscilando en-
poesia, do tom do Hipérion, os seus coberta da poesia russa, sobretu- tre o realismo épico e o mágico, integrando
o natural, o místico, o fantástico e o infantil.
acentos, as suas respirações e o do de Cvetaeva,26 Achmatova27 e Entre suas obras, citamos: Sagarana, Corpo
seu ritmo, os seus tempos. O gran- Mandelstam,28 que me ensinaram de baile, Grande sertão: veredas, conside-
de desafio é traduzir o ritmo de igualmente como a poesia pensa rada uma das principais obras da literatura
uma língua para outra, as direções brasileira, Primeiras estórias (1962), Tuta-
segundo suas próprias categorias. meia (1967). A edição 178 da IHU On-Line,
de uma língua para outra. É que de 02-05-2006, dedicou ao autor a matéria
62 linguagem é movimento para outra negger). Estudou dodecafonismo com René de capa, sob o título “Sertão é do tamanho
língua, e não um reservatório de Leibowitz e continuou a escrever música ato- do mundo”. 50 anos da obra de João Gui-
nal num estilo serial pós-weberniano. Rapi- marães Rosa, disponível para download em
palavras e frases fechadas dentro
damente se tornou um dos líderes filosóficos http://migre.me/qQX8. De 25 de abril a
de um território. Linguagem está do movimento pós-guerra nas artes, em favor 25-05-2006 o IHU promoveu o Seminário
mais perto dos pássaros do que de de maior abstração e experimentação. (Nota Guimarães Rosa: 50 anos de Grande Ser-
animais terrestres. Como traduzir da IHU On-Line) tão: Veredas. Confira, ainda, a edição 275 da
25 René Char (1907-1988): um dos mais revista IHU On-Line, de 29-09-2008, inti-
cerejeira em alemão para o portu- importantes poetas modernos franceses. Ad- tulada Machado de Assis e Guimarães Rosa:
guês? O mais óbvio seria dizer: ora, mirado por Heidegger pela profundidade de intérpretes do Brasil, disponível em http://
por cerejeira. Mas sabemos o que sua poesia filosófica, foi também um herói da bit.ly/mBZOCe. (Nota da IHU On-Line)
Revolução Francesa e nos anos 60 militou no 30 Clarice Lispector (1920-1977): escri-
é o florear de uma cerejeira? Não
protesto antinuclear. Associado com o movi- tora nascida na Ucrânia. De família judaica,
será uma quaresmeira mais cere- mento surrealista por muitos anos e amigo emigrou para o Brasil quando tinha apenas
jeira em português do que a pala- íntimo de muitos pintores – como Braque, dois meses de idade. Começou a escrever logo
vra cerejeira? Giacometti e Picasso – escreveu uma poesia que aprendeu a ler, na cidade de Recife. Em
que confronta os principais interesses mo- 1944 publicou seu primeiro romance, Perto
rais, políticos e artísticos do século XX, com do coração selvagem. A literatura brasileira
IHU On-Line – Como surgiu seu uma simplicidade de visão e expressão que era nesta altura dominada por uma tendên-
deve aos poetas e filósofos da Grécia antiga. cia essencialmente regionalista, com perso-
interesse pela poesia de Hölder- (Nota do IHU On-Line) nagens contando a difícil realidade social do
lin? Seus estudos sobre Heidegger 26 Marina Ivanovna Cvetaeva (1892– país na época. Lispector surpreendeu a crítica
e a tradução de Ser e Tempo que 1941): foi uma poeta e escritora russa. (Nota com seu romance, quer pela problemática de
você realizou perfazem o cami- da IHU On-Line) caráter existencial, completamente inovado-
27 Anna Achmatova, pseudônimo de ra, quer pelo estilo solto elíptico, e fragmen-
nho inverso em direção ao poeta? Anna Andreevna Gorenko (1889-1966): tário, reminiscente de James Joyce e Virginia
foi uma poetisa russa, mas que não gostava Woolf, ainda mais revolucionário. Seu ro-
Márcia Schuback – Pode pare- deste adjetivo no feminino e por isso preferia mance mais famoso embora menos caracte-
cer estranho, mas o meu interesse ser chamada de “poeta”, como substantivo rístico quer temática quer estilisticamente, é
pelo pensamento de Heidegger sur- masculino. (Nota da IHU On-Line) A hora da estrela, o último publicado antes
28 Osip Mandelstam ou Ossip Mandels- de sua morte. Neste livro a vida de Macabéa,
giu de meu encontro com a música
tam (1891-1938): foi um poeta russo, um dos uma nordestina criada em Alagoas vai morar
de Pierre Boulez24 e com a poesia principais nomes do Acmeísmo. Osip, após no Rio de Janeiro, em uma pensão, tendo sua
um período de afastamento dos agrupamen- vida descrita por um escritor fictício chamado
24 Pierre Boulez (1925): é um maestro e tos literários de então, acabou por falecer Rodrigo S.M. Sobre a autora, confira a edição
compositor francês de música clássica. Ini- num campo de prisioneiros stalinista, em 228 da IHU On-Line, de 16-07-2008, in-
cialmente estudou matemática em Lyon, an- 1938, na Sibéria. Após escrever um poema titulada Clarice Lispector. Uma pomba na
tes de dedicar-se à música no Conservatório anti-stalinista chamado Epigrama de Stalin, busca eterna pelo ninho, disponível para do-
de Paris sob a direção de Olivier Messiaen e foi preso, em 1934. Poucos meses depois, po- wnload em http://migre.me/qQHT. (Nota da
Andrée Vaurabourg (esposa de Arthur Ho- rém, foi solto. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

A exploração do conhecimento
racional até seu limite
Ideias “desafiadoras” de Hölderlin influenciaram Hegel de modo evidente na
“Fenomenologia do Espírito”, destaca Kathrin Rosenfield. Musil tinha apreço
pela seriedade e precisão complexa da poesia hölderliana
Por Márcia Junges e Ricardo Machado

“H ölderlin nos convida a ex-


plorar o conhecimento
racional até o seu limite,
para deixar vir à tona, no limiar do impensá-
vel, uma outra forma de ‘pensar’. O interes-
forma própria do pensamento poético pa-
recem ter exercido seu impacto secreto
sobre a Fenomenologia. Um olhar aguçado
descobrirá na ‘Introdução’ de Hegel ainda
algumas tênues marcas da amizade juve-
se pelo mito, pelas qualidades musicais das nil com Hölderlin – marcas conceituais que
palavras, pelos misteriosos acordes e pelas comprovam a importância filosófica da ‘po-
dissonâncias exige uma postura pouco com- eto-logia’ de Hölderlin”.
patível com um sistemático discurso sobre o
método, que se propõe a controlar as falá- Kathrin Rosenfiled é graduada em Letras
cias da consciência subjetiva.” A reflexão é pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris
da filósofa Kathrin Rosenfield, na entrevista III, França, mestre em Antropologia e Histó-
concedida por e-mail à IHU On-Line. A pes- ria pela Ecole des Hautes Études en Sciences
quisadora observa que esse poeta teve ideias Sociales – EHESS, França, e doutora em Ciên- 63
desafiadoras, “porém escolhe interlocutores cia da Literatura pela Universidade de Salz-
inadequados (Schiller e Goethe) em momen- burg, Áustria, com a tese Historicité et con-
tos inadequados. Isto sem dúvida contribuiu ceptualité de la littérature médiévale: Un
para o seu isolamento, ao passo que Hegel problème d’Esthétique. É pós-doutora pela
deixa suas ideias maturarem, apresentando- Universidade de Massachussetts Amherst
-as apenas como tratados sistemáticos. A (Phd em Literatura Comparada), Estados
precocidade dos insights do poeta acirrou Unidos, e pela Ecole Normale Supérieure,
seu estado de alienação (e permanece du- França. É professora titular do Departa-
rante mais de trinta anos numa loucura qua- mento de Filosofia do Instituto de Filosofia
se hamletiana)”. e Ciências Humanas da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul – UFRGS. Escreveu
Kathrin observa que a influência mais
inúmeros artigos sobre Hölderlin, e de suas
forte de Hölderlin sobre Hegel é evidente
obras destacamos Antígona – De Sófocles a
na Fenomenologia do Espírito (Petrópolis:
Hölderlin (Porto Alegre: L&PM, 2000) e Oe-
Vozes, 2003): “Apesar do silêncio tenaz que
dipus Rex? The Story of a Palace Intrigue
Hegel manteve, a partir de 1804, a respeito
(Colorado: James Davies, 2012).
de seu amigo alienado na torre de Tübin-
gen, as ideias do poeta sobre o ritmo como Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos


de filósofo dos princípios da era moderna, ria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria
compreender a conquista do es- representante do Iluminismo. Kant teve um constituída pelas formas a priori da sensibili-
tético entre o Romantismo e a grande impacto no romantismo alemão e nas dade (espaço e tempo) e pelas categorias do
Modernidade? filosofias idealistas do século XIX, as quais se entendimento. A IHU On-Line número 93,
tornaram um ponto de partida para Hegel. de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa
Kathrin Rosenfield – Talvez seja Kant estabeleceu uma distinção entre os fe- à vida e à obra do pensador com o título Kant:
legítimo dizer que a valorização do nômenos e a coisa-em-si (que chamou nou- razão, liberdade e ética, disponível para do-
menon), isto é, entre o que nos aparece e o wnload em http://bit.ly/ihuon93. Também
estético – já na filosofia de Kant1 que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU
poderia, segundo Kant, ser objeto de conheci- em formação número 2, intitulado Em-
1 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo mento científico, como até então pretendera manuel Kant – Razão, liberdade, lógica e
prussiano, considerado como o último gran- a metafísica clássica. A ciência se restringi- ética, que pode ser acessado em http://bit.

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

– modifica o racionalismo iluminis- cia, mas ele vislumbra mais que e Goethe6) em momentos inade-
ta. Traços da hipervalorização da os outros o horizonte do além da quados. Isto sem dúvida contribuiu
razão entendida como pensamento razão. para o seu isolamento, ao passo que
conceitual encontramos em todos Hegel deixa suas ideias maturarem,
Hölderlin redescobre, ou lembra,
apresentando-as apenas como tra-
os grandes filósofos sistemáticos de um modo de ser, sentir e pensar
tados sistemáticos. A precocidade
pós-Kantianos, Fichte2 e Hegel,3 que escapa ao controle do enten-
dos insights do poeta acirrou seu
em particular. Hölderlin4 também dimento, exigindo outros modos de
estado de alienação (e permanece
valoriza o potencial da consciên- “conhecimento”. Assim, ele opõe
durante mais de trinta anos numa
aos modos formais de pensar com
loucura quase hamletiana).
ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da conceitos e à lógica estrito senso
revista IHU On-Line, de 06-05-2013, inti- a outra lógica das configurações A influência mais forte de Höl-
tulada A autonomia do sujeito, hoje. Impera-
tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/
poéticas. derlin sobre Hegel é evidente na
ihuon417. (Nota da IHU On-Line) Fenomenologia do Espírito. Apesar
2 Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): Fragmentos do silêncio tenaz que Hegel mante-
filósofo alemão. Exerceu forte influência so- ve, a partir de 1804, a respeito de
bre os representantes do nacionalismo ale-
mão, assim como sobre as teorias filosóficas Neste sentido, é lamentável que seu amigo alienado na torre de Tü-
de Schelling, Hegel e Schopenhauer. Fichte os fragmentos teóricos de Hölder- bingen, as ideias do poeta sobre o
decidiu devotar sua vida à filosofia depois de lin tenham suscitado mais interes- ritmo como forma própria do pen-
ler as três Críticas de Immanuel Kant, publi-
cadas em 1781, 1788 e 1790. Sua investigação se que sua poesia, e as Observa- samento poético parecem ter exer-
obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu ções sobre Édipo e Antígona, mais cido seu impacto secreto sobre a
próprio editor que publicasse o manuscrito. comentários que as traduções das Fenomenologia. Um olhar aguçado
O livro surgiu em 1792, sem o nome e o prefá-
tragédias. Hölderlin nos convida a descobrirá na “Introdução” de He-
cio do autor, e foi saudado amplamente como
uma nova obra de Kant. Quando Kant escla- explorar o conhecimento racional gel ainda algumas tênues marcas
receu o equívoco, Fichte tornou-se famoso até o seu limite, para deixar vir da amizade juvenil com Hölderlin
do dia para a noite e foi convidado a lecionar – marcas conceituais que compro-
à tona, no limiar do impensável,
na Universidade de Jena. Fichte foi um con-
ferencista popular, mas suas obras teóricas uma outra forma de ‘pensar’. O in- vam a importância filosófica da
são difíceis. Acusado de ateísmo, perdeu o teresse pelo mito, pelas qualidades “poeto-logia” de Hölderlin.
emprego e mudou-se para Berlim. Seus Dis- musicais das palavras, pelos miste-
cursos à nação alemã são sua obra mais co-
riosos acordes e pelas dissonâncias
64 nhecida. (Nota da IHU On-Line)
3 Friedrich Hegel (Georg Wilhelm Frie- exige uma postura pouco compa-
IHU On-Line – Em que medi-
da se pode atribuir a Hölderlin
drich Hegel, 1770-1831): filósofo alemão tível com um sistemático discurso ser um dos poetas pioneiros da
idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás
de Aquino, tentou desenvolver um sistema
sobre o método, que se propõe a modernidade?
filosófico no qual estivessem integradas todas controlar as falácias da consciên-
as contribuições de seus principais predeces- cia subjetiva. Um pensar que re- Kathrin Rosenfield – Muito antes
sores. Sobre Hegel, confira no link http://bit.
nuncia ao pro-duzir subjetivo, para de a antropologia estrutural legiti-
ly/ihuon217 a edição 217 da IHU On-Line, mar os mitos como “pensamento”
de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia deixar emergir o im-pensável que
do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich He- faísca e desvanece nas constela- no sentido rigoroso de uma lógica
gel (1807-2007), em comemoração aos 200 ções da poesia (e nas técnicas do discursiva própria (e como pensa-
anos de lançamento dessa obra. Veja ainda
tradutor-poeta). mento selvagem), Hölderlin debru-
a edição 261, de 09-06-2008, Carlos Rober-
çou-se sobre os mitos trágicos de
to Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler
Hegel, disponível em http://bit.ly/ihuon261, Sófocles,7 os hinos e fragmentos de
e Hegel. A tradução da história pela razão,
IHU On-Line – Há alguma influ-
edição 430, disponível em http://bit.ly/ ência de Hegel nas poesias de Herder é representante do Romantismo ale-
ihuon430. (Nota da IHU On-Line) Hölderlin, e uma influência do mão e do Classicismo de Weimar. Sua ami-
4 Johann Christian Friedrich Hölder- zade com Goethe rendeu uma longa troca
poeta sobre o filósofo?
lin (1770-1843): poeta lírico e romancista de cartas que se tornou famosa na literatura
alemão. Conseguiu sintetizar na sua obra o Kathrin Rosenfield – Com pou- alemã. Sua poesia também é famosa, como
espírito da Grécia antiga, os pontos de vista por exemplo a “An die Freude”, que inspirou
românticos sobre a natureza e uma forma cas exceções, a obra e os frag- Ludwig van Beethoven a escrever, em 1823,
não ortodoxa de cristianismo, alinhando-se mentos de Hölderlin antecedem a o quarto movimento de sua nona sinfonia.
hoje entre os maiores poetas germânicos. filosofia do amigo-filósofo Hegel. (Nota da IHU On-Line)
Em 1788 iniciou seus estudos em Teologia 6 Johann Wolfgang von Goethe (1749-
na Universidade de Tübingen, como bolsis-
Os fragmentos filosóficos rele- 1832): escritor alemão, cientista e filósofo.
ta. Lá conheceu Hegel e Schelling, que mais vantes de Hölderlin são dos anos Como escritor, Goethe foi uma das mais
tarde se tornariam seus amigos. Devido aos 1790. O poeta tem ideias desa- importantes figuras da literatura alemã e do
recursos limitados da família e de sua recu- Romantismo europeu, nos finais do século
fiadoras, porém escolhe inter-
sa em seguir uma carreira clerical, Hölderlin XVIII e inícios do século XIX. Juntamente
trabalhou como tutor para crianças de famí- locutores inadequados (Schiller5 com Schiller foi um dos líderes do movimento
lias ricas. Em 1796 foi professor particular de literário romântico alemão Sutrm und Drang.
Jacó Gontard, um banqueiro de Frankfurt, 5 Johann Christoph Friedrich von De suas obras, merecem destaque Fausto e
cuja esposa, Susette, viria a ser seu grande Schiller (1759-1805): poeta, filósofo e histo- Os sofrimentos do jovem Werther. (Nota da
amor. Susette Gontard serviu de inspiração riador alemão, tido como o mais importante IHU On-Line)
para a composição de Diotima, protagonista dramaturgo alemão. Schiller foi um dos gran- 7 Sófocles: dramaturgo grego. Viveu em
de seu romance epistolar Hipérion. (Nota da des homens de letras da Alemanha do século Atenas, cerca de 400 anos antes da Era Cris-
IHU On-Line) XVIII, e juntamente com Goethe, Wieland e tã. Considerado um dos mais importantes

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Píndaro8 com o objetivo de situar a sobre os rumos da consciência mo- ponto de anotar no seu diário dos
consciência moderna. Ele não mais derna, sobre o lugar do indivíduo anos 1920: Hölderlin é o modelo
está preso na cega imitação dos an- na sociedade, sua liberdade e res- ético e o paradigma literário da ge-
tigos, mas procura definir melhor ponsabilidade no Estado. ração mais nova. (Musil, Tb I 360,
o lugar do sujeito civil-burguês a 1920). E, quem lê com atenção o
partir das diferenças para com as IHU On-Line – Nesse sentido, Homem sem qualidades (2. ed. Rio
figuras do herói clássico ou dos ci- qual é o fio condutor que perpas- de Janeiro: Nova Fronteira, 1989),
dadãos da polis grega. Para apoiar sa as obras de Hölderlin e Kleist10 não pode deixar de notar que Mu-
seu exame rigoroso das diferen- a Musil11? sil toca na questão das traduções
ças entre os pensamentos, gestos inovadoras que Hölderlin fez de
e ações de homens oriundos de Kathrin Rosenfield – Hölderlin e Píndaro e de Sófocles – é bom lem-
culturas distantes, o poeta confia Kleist são os primeiros poetas que brar que Hölderlin ficou esquecido
na literatura e no mito: a poesia viram o problema da antiga meta- entre 1800 e 1910 e foi redescober-
constitui uma espécie de planta física escolástica. Leram Kant com to por Hellingrath,12 justamente no
baixa das estruturas mentais e o uma intensidade incomum, o que período em que Musil começa a es-
imaginário da Antiguidade, voltado se reflete na sua concepção do po- crever. No grande romance musilia-
que é para as crises da ordenação ético como forma de “pensamen- no, Agathe prefere a dura tradução
da sociedade humana, lhe forne- to” sui generis. No lugar da univo- do aluno de seu marido Hagauer à
ce o ponto de apoio para situar a cidade conceitual, a lógica poética do filólogo pedante:
consciência moderna, presa entre coloca os sentidos estratificados
a experiência despótica das monar- das metáforas polissêmicas, ou as “A Lei da Natureza, rei de to-
quias absolutas e os sonhos de au- figuras que associam sentidos con- dos os mortais e imortais, rei-
tonomia suscitados pela Revolução traditórios num mesmo tecido poé- na e aprova o que há de mais
Francesa – sonhos, porém, que em tico. Esse modo de pensar a poesia cruel, com mão todo-poderosa!”
poucos anos já beiram o pesadelo tornou-se possível graças à Tercei- (Das Gesetz der Natur, der König
e o terror. A empreitada trágica é ra Crítica de Kant (a Crítica da fa- aller Sterblichen und Unsterbli-
para Hölderlin, como para o jovem culdade de Julgar), que concebe o chen, herrscht, das Gewaltsam-
Nietzsche,9 uma reflexão profunda juízo estético puro como livre jogo ste billigend, mit allmächtiger
da imaginação e do entendimento. Hand!)
escritores gregos da tragédia. Édipo Rei, An-
tígona e Electra são as suas peças mais co-
Trata-se de uma forma de pensa- 65
mento que leva em consideração Hagauer, o pedante, corrige e
nhecidas. (Nota da IHU On-Line)
8 Píndaro (522 a.C.-443 a.C.): também tonalidades de sensações e afetos. arredonda:
conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou
Píndaro de Beozia, foi um poeta grego, autor A ligação com Musil é menos ób-
de “Epinícios” ou “Odes Triunfais”, e autor via, embora o romancista tenha A Lei da natureza, que reina em
também da célebre frase “Homem, torna-te uma poetologia que gira em torno tudo sobre mortais e imortais,
no que és”. Chegaram-nos um total de 45 epi-
de articulações kantianas seme- governa com mão onipotente,
nícios, divididos em quatro livros, conforme
lhantes às de Hölderlin e Kleist, aprovando também a violência.
o nome dos jogos que celebravam: Olímpicas,
Píticas, Nemeias e Ístmicas. (Nota da IHU apenas menos elaboradas. Musil (Das Gesetz der Natur, das über
On-Line)
gostava da seriedade e da precisão alle Sterblichen und Unster-
9 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó- blichen herrscht, waltet mit
sofo alemão, conhecido por seus conceitos complexa da poesia de Hölderlin, a
além-do-homem, transvaloração dos va- allmächtiger Hand, auch das
lores, niilismo, vontade de poder e eterno de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte Gewaltsame billigend. HsQ II/5,
retorno. Entre suas obras figuram como as integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da 501; MoE 704)
mais importantes Assim falou Zaratustra diferença – Pré-evento do XI Simpósio Inter-
(9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, nacional IHU: O (des)governo biopolítico da
1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) vida humana. Na edição 330 da revista IHU E depois a graciosa Agathe lem-
e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: On-Line, de 24-05-2010, leia a entrevista bra ainda de uma outra tradução
Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando Nietzsche, o pensamento trágico e a afirma-
interessante – trata-se de um tre-
foi acometido por um colapso nervoso que ção da totalidade da existência, concedida
nunca o abandonou até o dia de sua morte. pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível cho de Shakespeare,13 que Agathe
A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da para download em http://bit.ly/nqUxGO. Na
edição número 127 da IHU On-Line, de edição 388, de 09-04-2012, leia a entrevista 12 Norbert von Hellingrath (1888-1916):
13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do O amor fati como resposta à tirania do sen- foi um estudioso literário alemão, cuja prin-
martelo e do crepúsculo, disponível para do- tido, com Danilo Bilate, disponível em http:// cipal contribuição para estudos literários é a
wnload em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) primeira edição completa das obras do poeta
dos Cadernos IHU em formação é intitu- 10 Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist Friedrich Hölderlin. (Nota da IHU On-Line)
lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e (1777–1811): foi um poeta, romancista, dra- 13 William Shakespeare (1564-1616):
pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. maturgo e contista alemão. É conhecido por dramaturgo inglês. Considerado por muitos
Confira, também, a entrevista concedida por sua comédia O Jarro Quebrado, pela tragédia como o mais importante dos escritores de
Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU Pentesileia bem como por seu conto Michael língua inglesa de todos os tempos. Como dra-
On-Line, de 10-05-2010, disponível em Kohlhaas. (Nota da IHU On-Line) maturgo, escreveu não só algumas das mais
http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis- 11 Robert Musil: escritor austríaco, autor marcantes tragédias da cultura ocidental,
mo radical de Nietzsche não pode ser mini- do célebre O homem sem qualidades (2. ed. mas também algumas comédias, 154 sonetos
mizado, na qual discute ideias de sua confe- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989). (Nota e vários poemas de maior dimensão. (Nota da
rência A crítica de Heidegger ao biologismo da IHU On-Line) IHU On-Line)

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

admira precisamente pela sua du- Cesar: reclusão de 36 anos na torre às


reza modernista. Ela diz: Cowards die many times before margens do Neckar?
their deaths.
E não foi belo que o pequeno alu- Kathrin Rosenfield – Hölderlin
The valiant never taste of death
no, com o qual Hagauer não ficou escreveu pouco nos anos de sua
but once.
nada contente, tenha traduzido reclusão. Mas ele compunha es-
Of all the wonders that I yet
as palavras com um frêmito tão have heard, tranhos poemas assinados sempre
literal e formidável, assim como It seems to me most strange com nomes que parecem debochar
as encontrou?, como um monte that men should fear, de si e do mundo. Desta forma,
de pedras de uma ruína... Seeing that death, a necessary eu sempre fico com a impressão
(Und es war doch schön, dass der end, de que Hölderlin tenha escolhido
Kleine in seiner Schule, mit dem Will come when it will come. a alienação como um refúgio que
Hagauer nicht zufrieden war, die lhe permitiu ficar à distância de um
Julius Cesar, II, ii, 32-7
Worte so wörtlich und schaurig mundo que não queria ouvir suas
übersetzt hat, wie er sie da lie- ideias precoces.
gen fand wie einen Haufen aus- IHU On-Line – Em que sentido
einandergefallener Steine. HsQ pode-se falar na poesia de Höl-
501 s.; MoE II/5, p. 704–) IHU On-Line – Quais são as ra-
derlin como uma poesia “religio-
zões para que, por muitos anos,
sa”, de religação com o todo que
Ulrich admira a irmã como uma sua poesia tenha sido incompre-
parece estar cindido? É correto
“pessoa que não ajeita (arredon- endida na Alemanha?
falar em uma metafísica do artis-
da) um velho poema, mas deixa
ta a partir de sua obra? Kathrin Rosenfield – Em primeiro
ser (aceita) a deterioração de seu
lugar, Hölderlin perdeu a proteção
sentido meio destruído” (HsQ II/5, Kathrin Rosenfield – A religio-
inicial que Schiller lhe concedera
501; MoE 704). Eis os trechos nas sidade peculiar de Hölderlin – o
três línguas: pietismo suabo – recebe impulsos – sem dúvida por causa de alguns
decisivos da religiosidade grega, desacordos pontuais com as con-
Covardes morrem muitas vezes que o poeta conhecia bem através cepções teóricas do grande Mestre
antes de morrer de suas intensas leituras dos clássi- de Weimar. Nessa época, era um
66 (Feige sterben oft- cos. Karl Kerenyi14 disse certa vez risco desafiar os protetores pode-
mal vor ihrem Tod;) que não há outro poeta no mundo rosos, e Hölderlin correu esse risco
que sente e entende tão profunda- muito cedo na sua carreira. Mas há
Os valentes jamais provam do mente o enraizamento das divin- também a fragilidade psicológica
sabor da morte, fora uma vez. dades clássicas na natureza. Disto do poeta, que perdeu o pai mui-
(Die Tapfern kosten niemals resulta o viés quase panteísta do to cedo, fato ao qual Laplanche15
vom Tode ausser einmal.) pensamento hölderliniano, sua to- atribui muitos dos seus problemas
lerância com relação às outras reli- e sua loucura. Depois há o medo
giões e seu esforço de oferecer um que a loucura inspira aos próximos
De todos os milagres que ainda
sistema filosófico universal – uma de uma pessoa. Os mais próximos
ouvi –
concepção do mundo que abran- amigos, Hegel e Schelling, ficaram
(Von all den Wundern, die
ich noch habe gehört,) ja tudo – do físico ao metafísico. constrangidos e angustiados. Hegel
Hölderlin adivinhava em tudo essa nunca mais menciona o nome de
unidade primordial – o Ser anterior Hölderlin. Assim, muitos dos papéis
Parece-me estranho que homens aos juízos (Ur-teil – o termo ale- do poeta devem ter se perdido. E
devam temer – mão significa divisão primordial) e há também a precocidade de suas
(Es scheint für mich sehr raciocínios do indivíduo. ideias. ■
seltsam, dass Menschen
sollten fürchten,) 15 Jean Laplanche (1924-2012): foi um
IHU On-Line – Quais são os refle-
psicanalista francês. Em 1947, começou uma
xos na poesia de Hölderlin de sua cura psicanalítica com Jacques Lacan. Se-
Vendo que a morte é um fim guindo o seu conselho, Laplanche começou
necessário – 14 Károly Kerényi ou simplesmente Karl uma formação médica antes de iniciar sua
(Sehend, dass Tod, ein Kerényi (1897-1973): foi um filólogo clássi- formação analítica. Foi interno dos Hospitais
co e um dos estudiosos mais influentes dos psiquiátricos e defendeu sua tese de medicina
notwendiges Ende,) estudos modernos da mitologia grega e da em 1959, tese que foi publicada em 1961 com
mitologia romana ou da religião antiga em o título que se tornou quase um paradigma:
geral. Viveu a primeira fase da sua vida na “Hölderlin e a questão do pai”. Foi laureado
Que virá quando quiser vir – Hungria antes de se exilar definitivamente na com o doutor honoris causa da Universidade
(Wird kommen, wann er will Suíça em 1943. Momento em que abandona de Lausana, da Universidade de Buenos Aires
o húngaro e adota definitivamente a língua e da Universidade de Atenas, além de ter sido
kommen. – HsQ II/5, 501;
alemã (a língua mais usada pela comunida- eleito cavaleiro das Artes e Letras e laureado
MoE 704 Shakespeare, Ju- de científica no seu tempo). (Nota da IHU do Mary S. Sigourney Award. (Nota da IHU
lius Cesar, II, ii, 32-7) On-Line) On-Line)

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DE CAPA IHU EM REVISTA

O Hölderlin que transcende a literatura


A Johann Kreuzer destaca que a repercussão dos escritos do poeta chegou
a diversos campos, influenciando grandes nomes como Walter Benjamin,
Martin Heidegger e Theodor W. Adorno
Por Márcia Junges e Leslie Chaves | Tradução Luís Sander

C onsiderado um dos maiores poetas


e romancistas alemães, Hölderlin é
consagrado na área da literatura, po-
rém seu trabalho também assume destaque
em outros campos, recebendo prestígio e se
estava publicada. Além disso, a lenda sobre
o ‘poeta doido na torre’ não foi benéfica
para sua recepção no século XIX caracteri-
zado pela crença na ciência. Foi só com a
edição de Norbert von Hellingrath, que fazia
refletindo no pensamento de outros estudio- parte do círculo reunido em torno de Stefan
sos admiradores de sua obra. De acordo com George, que se cumpriram as condições edi-
Johann Kreuzer, a produção de Hölderlin é o toriais que possibilitaram um conhecimento
critério que define a poesia na modernida- adequado de Hölderlin”, conta.
de, dentro e fora do âmbito da língua alemã.
Johann Kreuzer estudou Filosofia, Estudos
“Essa repercussão e ressonância não se res-
Alemães e Religião Comparada na Universida-
tringem à esfera literária. Há um compromis-
de de Tübingen e na Freie Universität, ambas
so profundo – e admitido – com Hölderlin (na
na Alemanha, onde em 1984 obteve o título
filosofia) por parte de Walter Benjamin, de
de doutor com uma tese sobre Hölderlin. De
Martin Heidegger e Theodor W. Adorno – que
1987 a 1992 foi o primeiro pesquisador e en-
se entendia como curador do Hölderlin des-
tre 1992 e 1996 foi professor de Filosofia na
coberto por Benjamin e destacou particular-
mente a afinidade existente entre a lingua-
Universidade de Wuppertal. Depois de lecio-
nar nas Universidades de Münster, de Colônia
67
gem de Hölderlin e a música do Beethoven
e de Humboldt de Berlim, foi professor visi-
tardio e de Schubert”, explica.
tante na Universidade Charles, em Praga. Em
Apesar de sua relevância, a obra de Hölder- 2002 foi nomeado coordenador de História
lin só tornou-se conhecida a partir do sécu- da Filosofia na Universidade Carl von Ossiet-
lo XX. Segundo Kreuzer, além da dificuldade zky Oldenburg na Alemanha, onde em 2013
de acesso aos escritos do poeta, os mitos em tornou-se decano da Faculdade de Ciências
torno de seu modo de vida também não favo- Humanas e Sociais e desde 2014 é diretor do
receram a difusão do trabalho dele na época. Instituto de Filosofia.
“No século XIX, sua poesia praticamente não
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que medi- dele. Essa repercussão e ressonân- Hölderlin e a música do Beethoven
da se pode atribuir a Hölderlin cia não se restringem à esfera lite- tardio e de Schubert.
ser um dos poetas pioneiros da rária. Há um compromisso profun-
do — e admitido — com Hölderlin Depois, a confrontação de Ben-
modernidade?
(na filosofia) por parte de Walter jamin e de Adorno com Hölderlin
Johann Kreuzer - A repercussão Benjamin (que, no século XX, foi o teve um grande impacto também
de Hölderlin só começou no sécu- primeiro a reagir à poesia “tardia” na ciência literária, a partir de me-
lo XX, particularmente a partir da que von Hellingrath tornou acessí- ados dos anos 60, por meio de Peter
edição de Norbert von Hellingrath1. vel — mas esses trabalhos só foram Szondi2 — em termos de conteúdo,
Neste sentido, ele não é um “pio- publicados após 1950); de Martin
neiro” da poesia da modernidade Heidegger (cujas interpretações de 2 Peter Szondi (1929-1971): Nasceu em
ou da atualidade, e sim, a rigor, o Hölderlin dominaram a confronta- 1929, em Budapeste, na Hungria, numa fa-
mília de origem judaica. Em 1944, foi depor-
critério para ela, o é tanto no âm- ção com ele na década de 50 até tado para o campo de concentração Bergen-
bito da língua alemã quanto fora meados dos anos 60 do século XX); -Belsen, de onde conseguiu sair, e depois
e de Theodor W. Adorno — que se refugiou-se na Suíça. Foi professor universi-
1 Norbert von Hellingrath (1888-1916): entendia como curador do Hölder- tário na Universidade Livre de Berlim, onde
foi um estudioso literário alemão, cujo prin- fundou o Instituto de Teoria Literária e de Li-
cipal contribuição para estudos literários é a
lin descoberto por Benjamin e des- teratura Comparada, em Göttingen e Heidel-
primeira edição completa das obras do poeta tacou particularmente a afinidade berg. Tem extensa obra publicada em vários
Friedrich Hölderlin. (Nota da IHU On-Line) existente entre a linguagem de países, destacando-se seus ensaios dedicados

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

essa influência se ampliou enor- pensamento promovida por Kant5, IHU On-Line - Em que consiste o
memente através de Jacques Der- particularmente daquilo que Kant paradoxo de Sófocles e a Antígona
rida3 e da fenomenologia francesa expõe, na “Crítica da faculdade do de Hölderlin?
(mesmo que a referência originária
juízo”, sobre a capacidade cogni- Johann Kreuzer - Posso respon-
a Hölderlin nem sempre fosse men-
tiva e o sensus communis. O outro der essa pergunta com os comentá-
cionada). Para além da filosofia, da
rios que fiz na introdução à minha
teoria da estética e da ciência lite- referencial doxográfico para a con-
edição dos “Escritos teóricos” de
rária, o mais importante lírico da cepção de Hölderlin acerca da po-
língua alemã do século XX, Paul Ce- Hölderlin: a história é o processo do
esia é platônico, particularmente modo temporal de aparição da pró-
lan4, também tem um compromisso
profundo com Hölderlin. o “Banquete” e o “Fedro”. Se fala- pria natureza. A tríade “fechada”
-se da existência de uma metafísi- da consciência formada por “unida-
ca em Hölderlin, então trata-se de de-ruptura-unificação” é substituí-
IHU On-Line - Qual era a con- da pela dialética “aberta” de fun-
cepção de Hölderlin sobre os po- uma metafísica da linguagem: é a
damento e aparição, de “originário
etas e a poesia, em si? É correto linguagem que vai além dos dados e sinal”. Na tragédia se expressa
falar em uma metafísica do artis- da dimensão empírica e, com isso, linguisticamente e se compreende o
ta a partir de sua obra? paradoxo originário da natureza da
torna-se, ela própria, experiência
Johann Kreuzer - Isso depende (um modelo para essa metafísica é história. O que se mostra como trá-
do que se entende por “metafísi- gico é o que destrói a permanência
representado por Píndaro6, por um
ca”. Decisivo com vistas a Hölderlin na história. Justamente com isso,
lado, e, por outro, pelo processo de porém, tornam-se conscientes as
e à linguagem poética realizada em
sua obra ou à realidade linguística expressão linguística saturado de condições de possibilidade da his-
apresentada através de sua obra é história que se apresenta particu- tória vivida individualmente. “Tudo
que ela tem razões filosóficas que larmente na tragédia de Sófocles7). que é originário” aparece “a rigor”
Hölderlin entendeu como forma de em sua debilidade: “como luz da
procedimento do espírito poético. 5 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo vida e aparição” na esfera dos “si-
Ele expressou da forma mais lapidar prussiano, considerado como o último grande nais”. No trágico ocorre o sacrifício
filósofo dos princípios da era moderna, repre-
a pretensão dessa forma de proce- do “sinal” (finito, em cada caso),
sentante do Iluminismo. Kant teve um grande
dimento na afirmação de que a ta- impacto no romantismo alemão e nas filoso- na medida em que o “originário”,
refa do poeta ou da linguagem da fias idealistas do século XIX, as quais se tor- em sua “mais forte dádiva”, faz o
68 individualidade poética é “ter uma naram um ponto de partida para Hegel. Kant mundo dos sinais aparecer como
estabeleceu uma distinção entre os fenômenos “sem importância = 0”. O mundo
lembrança”. Expôs essa pretensão
e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto
de modo um pouco mais extenso é, entre o que nos aparece e o que existiria em dos sinais, porém, é o mundo da in-
na seguinte fórmula: “Assim como si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo dividualidade e da história. Por con-
o conhecimento vinga a linguagem, Kant, ser objeto de conhecimento científico, seguinte, o significado das tragédias
da mesma maneira a linguagem se como até então pretendera a metafísica clássi- pode ser entendido como experiên-
ca. A ciência se restringiria, assim, ao mundo
lembra do conhecimento.” Se isso é dos fenômenos, e seria constituída pelas for-
cia das condições de possibilidade
compreendido como “metafísica”, mas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) da história na ameaça radical ou
então é a metafísica que se expres- e pelas categorias do entendimento. A IHU original (= originária) dessas mes-
sa linguisticamente na obra de Höl- On-Line número 93, de 22-03-2004, dedicou mas condições.
sua matéria de capa à vida e à obra do pensa-
derlin. Trata-se de uma metafísica dor com o título Kant: razão, liberdade e ética, Isso leva a um conceito purificado
que parte da revolução da forma do disponível para download em http://bit.ly/ da natureza paradoxal da história
ihuon93. Também sobre Kant foi publicado o
ao teatro e à poesia lírica. Faleceu em 1971. Cadernos IHU em Formação número 2, inti- e da linguagem. O “originário” é o
(Nota da IHU On-Line) tulado Emmanuel Kant - Razão, liberdade, ló- “fundamento oculto de toda natu-
3 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo gica e ética, que pode ser acessado em http:// reza” (conforme a observação de
francês, criador do método chamado des- bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 Heráclito de que a “physis gosta de
construção. Seu trabalho é associado, com da revista IHU On-Line, de 06-05-2013, inti-
frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós- tulada A autonomia do sujeito, hoje. Impera-
se ocultar”), que não deve ser des-
-modernismo. Entre as principais influências tivos e desafios, disponível em http://bit.ly/ vendado, mas compreendido em
de Derrida encontram-se Sigmund Freud ihuon417. (Nota da IHU On-Line) sua aparição. A história significa a
e Martin Heidegger. Entre sua extensa pro- 6 Píndaro (522 a.C. — 443 a.C.): também totalidade de uma interação entre
dução, figuram os livros Gramatologia (São conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou
Paulo: Perspectiva, 1973), A farmácia de Píndaro de Beozia, foi um poeta grego, autor
o “originário” e a “luz da vida”. É
Platão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O ani- de “Epinícios” ou “Odes Triunfais”, e autor nos sinais que a natureza se mos-
mal que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002), também da célebre frase “Homem, torna-te tra, em sua “mais fraca dádiva”,
Papel-máquina (São Paulo: Estação Liber- no que és”. Chegaram-nos um total de 45 epi- como princípio vivo da distinção.
dade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF nícios, divididos em quatro livros, conforme O ato de remontar ao “fundamento
Martins Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida o nome dos jogos que celebravam: Olímpicas,
a editoria Memória da IHU On-Line nº 119, Píticas, Neméias e Ístmicas. (Nota da IHU oculto da natureza” é a tarefa do
de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ On-Line) individualmente distinto, a qual,
ihuon119. (Nota da IHU On-Line) 7 Sófocles: dramaturgo grego. Viveu em tragicamente, significa o sacrifício
4 Paul Celan (1920-1970): poeta romeno Atenas, cerca de 400 anos antes da Era deste. Frente à tendência a essa
radicado na França. Sobrevivente do Holo- Cristã. Considerado um dos mais importantes
causto, foi um dos mais importantes poetas escritores gregos da tragédia. Édipo Rei,
unificação trágica (o factual que é
modernos da língua alemã. (Nota da IHU Antígona e Electra são as suas peças mais mortal e mata), Hölderlin observa
On-Line) conhecidas (Nota da IHU On-Line) no Homburger Folioheft: “O distin-

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DE CAPA IHU EM REVISTA

to é bom” A natureza se apresenta to da tragédia a partir da “singe- tido concreto e, neste sentido, “an-
“a rigor” na consciência da indivi- leza fiel da natureza original da ticlássico” em termos empírico-ba-
dualidade como história de sinais. Antiguidade” e, na “Antígona”10, sais, isto é, histórico-constitutivos.
Nos sinais, aquilo que é concebido seu resultado na passagem para a
É que no limite extremo do sofri-
como fundamento oculto da natu- forma republicana da razão que aí
mento não existe nada mais do que
reza se relaciona consigo mesmo. se forma tragicamente. Na forma
as condições do tempo ou do espaço.
Ele aparece na linguagem. Nas artística da tragédia se documenta
a passagem histórica em que, sob Nele o ser humano se esquece por-
formas da manifestação que sig-
nificam linguagem, a natureza em peste e perturbação dos sentidos, que é inteiramente no momento; o
sua debilidade encontra expressão a contraposição ao curso eterna- deus, porque não é nada mais do que
linguística como “luz da vida”. No mente misantrópico da natureza se tempo. É preciso ligar a ausência de
trágico, por outro lado, tem-se “o torna consciente e, assim, a pró- relações do temporalmente distinto
sinal = 0”. Portanto, na tragédia (p. pria consciência é constituída. (“expirante”) com o poder natu-
ex., na “Antígona”, talvez mais ex- ral “tempo”, que se mostra como
No “espírito livre” Édipo mostra- fundamento e forma de seu passar
plicitamente no “Édipo”) se apre-
-se, como acontecimento origina- e declinar. O tempo dilacerante do
senta ex negativo a condição de
riamente trágico, a luta desespe- curso eternamente misantrópico da
possibilidade da consciência que se
radora para chegar a si mesmo, o natureza não faz isso. Sua experiên-
mantém individualmente. Nisso se
esforço espezinhador quase desa- cia originária se transforma na tra-
fundamenta o paradoxo dela.
vergonhado de dominar a si mesmo, gédia no permanecer firme diante da
a busca doida e selvagem por uma mudança do tempo. A “infidelidade
IHU On-Line - Quais são as ra- consciência. A consciência se forma divina” é “a melhor de conservar”
zões para que, por muitos anos, como consciente de si mesma, isto porque nos faz entender a neces-
sua poesia não tenha sido devida- é, como distinção consciente de sua sidade da ligação do temporal por
mente reconhecida na Alemanha? impotência física em relação à na- nós. Com isso, Hölderlin concretiza
Johann Kreuzer - No século XIX, tureza como poder. Ela se compre- nas “Observações sobre Sófocles”,
sua poesia praticamente não esta- ende à diferença da equivocidade na perspectiva de uma teoria do
va publicada. Além disso, a lenda desta. O entendimento humano se tempo, o que explicou como signi-
sobre o “poeta doido na torre” não objetiva movendo-se sob um incon- ficado da lembrança no fragmento
foi benéfica para sua recepção no cebível. O que está em questão aí intitulado “A pátria em declínio...”:
século XIX caracterizado pela cren- – que a possibilidade sagrada viva a fundamentação tragédica (trágico-
ça na ciência. Foi só com a edição do espírito se conserva – é mostrado
pelo processo agonal da tragédia.
-original) do sentido histórico da 69
de Norbert von Hellingrath, que lembrança, que Hölderlin concebeu,
fazia parte do círculo reunido em Nele se forma, na musa terrível de em “A pátria em declínio...”, como
torno de Stefan George8, que se uma época trágica [...] [a forma necessidade e determinação inte-
cumpriram as condições editoriais da razão que,] mais tarde, em uma rior da livre imitação da arte. Ela
que possibilitaram um conheci- época humana, é tida como opinião fundamenta a necessidade da lem-
mento adequado de Hölderlin. firme nascida de um destino divino. brança individual, pela qual o ser
Entre a época trágica (= grega) e a humano chega até a reflexão e a lin-
humana (hespérica, isto é, a nossa) guagem e a consciência se conserva
IHU On-Line - Por que o modelo existe uma relação de sequência
trágico grego era tão caro à po- individualmente.
histórica. Por isso Hölderlin acentua
esia de Hölderlin? E por que ele as “características anticlássicas da
enfatiza as características anti- cultura grega”: o próprio devir his- IHU On-Line - Pode-se dizer que
clássicas da cultura grega? tórico dela já acontecido. a obra de Hölderlin é uma cons-
tante interrogação metafísica,
Johann Kreuzer - Também nes- Isso não quer dizer que a distân- uma tentativa de diálogo com o
te caso preciso remeter à introdu- cia histórica excluísse a recaída na transcendente? Por quê?
ção que fiz para minha edição dos imediatez trágica – mais para trás
“Escritos teóricos” de Hölderlin: da “forma republicana da razão” Johann Kreuzer - Para Hölder-
na forma artística da tragédia se que parece ser alcançada na An- lin, o transcendente (formulado
apresenta a “índole” historica- tígona. Que na tragédia o tempo em termos neutros: o divino – ou de
mente singular, decerto não mutá- (assim como o espaço) seja exposto modo incisivo: o deus) não é algo
vel, que passa do elemento grego não só como forma da intuição e do além da experiência, e sim o centro
para o hespérico. Neste sentido, sentido interior, mas também como dela ou, do ponto de vista da teoria
no “Édipo”9 se mostra o nascimen- condição de possibilidade de que da consciência, seu fundamento.
a consciência conserve a si na dis- Em sua compreensão, a pretensão
8 Stefan George (1868 –1933) foi um tradu- da expressão poética da linguagem
tor e poeta alemão. (Nota da IHU On-Line)
tinção para com a natureza – isso é
9 Édipo: personagem da mitologia grega, entendido por Hölderlin em um sen- é reproduzir o divino (os momen-
famoso por matar o pai e casar-se com a pró- tos de entusiasmo divino), isto é,
pria mãe. Filho de Laio e Jocasta. A história 10 Antígona: figura da mitologia grega, filha torná-lo capaz de lembrança (“ter
está recolhida em Édipo Rei e Édipo em Colo- de Édipo e Jocasta. A versão clássica do mito sua lembrança” – conforme respos-
no, de Sófocles. Vários escritores retomaram sobre Antígona é descrita na obra Antígona,
o tema, que também inspirou Igor Stravinsky do dramaturgo grego Sófocles, um dos mais
ta à primeira pergunta) ou trazer o
para a composição de um oratório. (Nota da importantes escritores gregos da Antiguida- deus / o divino pelo ato e em atos
IHU On-Line) de. (Nota da IHU On-Line) da expressão linguística.■

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IHU
ON-LINE

IHU em
Revista
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Agenda de Eventos
Confira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU de
19-10-2015 até 26-10-2015

Ciclo de Estudos em EAD – Repensando os Clássicos da Economia


O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA VISÃO DE JOSEPH SCHUMPETER – 19 a 25
de outubro
02/09 a Ministrante: Prof. MS Gilberto Antonio Faggion – UNISINOS
04/11 Carga horária: 37h
Saiba mais em: http://bit.ly/1fLf14t

Oficina: Realidades da Segurança alimentar e nutricional


Ministrante: Angélica Cristina da Siqueira – Nutricionista e pesquisadora do NESAN
Horário: 14h às 17h 20/10
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em: http://bit.ly/1OGecYB

Ciclo de Estudos O Capital no Século XXI


– uma discussão sobre a desigualdade no Brasil
72 Conferência: Mérito e herança na estrutura das desigualdades brasileiras
20/10 Conferencista: MS Antônio Albano de Freitas – Fundação de Economia e Estatística –
FEE e Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Horário: 19h30 às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em: http://bit.ly/1Lwiq4d

IHU Ideias – Cais Mauá: duas visões em disputa sobre


qual o projeto de cidade
Conferencista: Milton Cruz – UFRGS e Observatório das Metrópoles
Horário: 17h30min às 19h 22/10
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em: http://bit.ly/1jrl019

2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e


Tecnologias de Governo. Territórios, governamento
da vida e o comum

22/10 Conferência: Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças
Conferencista: Prof. Dr. Mário Leal Lahorgue – UFRGS
Horário: 19h30min às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Saiba mais em: http://bit.ly/1Lwjghi

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TEOLOGIA PÚBLICA

Olhar e discernir, confrontar e


responder: questões urgentes no
Sínodo dos Bispos sobre as Famílias
Por Cesar Kuzma

“S im, ao acesso à Eucaristia pelos casais em segunda união e/ou se-


parados/divorciados que contraíram um novo casamento: este é um
ponto polêmico e que vem acalorando o debate sinodal até aqui. De
acordo com o Papa, deveríamos ir mais além e não reduzir o Sínodo a este ponto,
que parece tão óbvio, mas tendo em vista a recusa e o fechamento de muitas
partes, a argumentação se faz sempre necessária”, escreve Cesar Kuzma, teólogo
leigo, casado e pai de dois filhos.
Segundo ele, há uma “contradição nos discursos que dizem que tais casais
não estão excluídos da Igreja, mas ao mesmo tempo negam o acesso deles à
Eucaristia e a outros sacramentos. Esta ideia de exclusão do sacramento e não-
exclusão da Igreja revela-se totalmente excludente e não abre espaço para a
misericórdia, que é a grande tecla que bate Francisco e que tem sim caráter
evangélico.
73
Cesar Kuzma é doutor em Teologia e professor do Departamento de Teologia da
PUC-Rio. Autor de livros e artigos em teologia, dentre eles: “O Futuro de Deus na
Missão da Esperança” (Paulinas); “Leigos e Leigas” (Paulus); “Age Deus no mun-
do?” (PUC-Rio e Reflexão).
Eis o artigo.

Nas reflexões que seguem nós procuraremos enal- Discursos variados e alguns desentendimentos entre
tecer aspectos teológicos que favoreçam a nossa in- os padres sinodais (e também extra Sínodo), cartas e
tenção para que, na sequência, as mesmas reflexões entrevistas ali e acolá nos levam a perceber esse fenô-
e intenções possam balizar as diversas questões levan- meno. Poderíamos aqui perguntar como Paulo: estaria
tadas e, com isso, oferecer à Igreja, que se debruça Cristo dividido? (cf. 1Cor 1,13). Ou será que nós o esta-
já no estágio final de um Sínodo sobre a Família, uma mos dividindo?... E com quais argumentos reforçamos
resposta pastoral segura, diante de um confronto e en- os lados que se opõem, será que estamos pautados no
amor, ou simplesmente em tradições e doutrinas? Seria
tendimento que se fazem justos e necessários.
o Evangelho algo ainda vivo, ou apenas uma herança
Este Sínodo, em particular, tem levantado questões que nos foi passada e que devemos proteger a qual-
que vão além do que se compreende das famílias e do quer custo?...
sacramento do Matrimônio, ou mesmo do sacramento
Muros como esses, quando se levantam de ambos os
da Eucaristia e da Reconciliação, quando relacionados lados, não deixam transparecer o Evangelho que pulsa
com o Matrimônio, mas tem demonstrado a reação de sempre novo e que quer avançar para águas mais pro-
uma parte da Igreja que passa a se incomodar com fundas. A liberdade em dizer o que pensa, garantida
uma postura nova trazida por Francisco, que felizmen- por Francisco, traz em si uma novidade e um resgate
te encontra eco em muitos bispos, teólogos e, princi- de discursos abertos; mas também aguça mais aqueles
palmente, no povo de Deus; o que provoca do outro que se aprisionam em cargos e estruturas firmes, cuja
lado uma reação agressiva. profecia evangélica parece incomodar. Resta-nos sa-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

ber se o discurso final deste Sínodo será mesmo sobre seu medo (é bem verdade) e a sua confiança (que deve
as famílias ou será sobre posturas eclesiológicas que ser conquistada).
se queiram sustentar a qualquer custo e em qualquer
Nós encontramos este gesto também na prática de
tempo.
Jesus, pelo seu anúncio do Reino, em gestos e pala-
Desta forma, tentando somar e fazer voltar o nosso vras que edificam e criam uma nova realidade, uma
olhar para a proposta do Sínodo e encorajados pela boa nova, capaz de incluir a todos, sobretudo, os mais
perspectiva que Francisco nos abriu, pretendemos vulneráveis. Mas vai ainda além, já que queremos com
olhar e discernir, confrontar e responder algumas isso chamar a atenção para as diversas situações que
questões urgentes que tocam a todos nós. reclamam às nossas famílias e que exigem de nós – te-
ológica e pastoralmente – uma atitude concreta. Aci-
1. Olhar e discernir teologicamente ma falamos de Deus que por amor se fez humano e
assumiu todo o nosso existir. Isso é fato e verdade de
Faremos as reflexões seguintes em forma de teses fé. Com efeito, Jesus não se fez um humano qualquer,
(T), descrevendo-as de modo prático e objetivo, ali- mas o fez em uma determinada realidade, marcada
nhando-as na intenção da fé e prática cristãs. por fortes traços culturais e também por uma vida fa-
miliar [!].
T1 – O amor de Deus que nos toca por inteiro e que
nos conduz à plenitude: desde o início do seu Pontifi- Pintar um quadro no qual a família de Nazaré e
cado, o Papa Francisco tem nos convidado a refletir tudo o que a circulava era algo amplamente perfeito,
e conviver, melhor dizendo, a fazer crescer em nós fere de todas as maneiras a realidade em si mesma
o sentimento e a percepção da misericórdia, aponta- e nega algo particular da própria ação de Deus. Eis
da claramente como parte central do Evangelho (cf. um ponto que gostaríamos de chamar a atenção: Em
Francisco, Misericordiae Vultus). Deste modo, falamos Cristo, Deus assume os nossos limites, assume as nos-
aqui a respeito deste amor, afirmando que não se trata sas fraquezas e vive a nossa vulnerabilidade. A famí-
de qualquer amor, mas de um amor que em si mesmo lia de Nazaré em si mesma também passa por esta
já é pleno e que é a essência e a natureza do próprio questão e em seu relato (cf. Mt 1,18-25), seguindo
Deus (cf. 1Jo 4,8), que nos ama, e, no amor, vem ao aqui um aporte canônico dos Evangelhos da infância,
nosso encontro, como um ato in-clusivo e em gesto de sem entrar nas questões exegéticas atuais, é possível
extrema misericórdia conduz a nós todos à plenitude perceber uma realidade hostil e insegura. Sabemos
74 do seu amor. Ele nos amou por primeiro (cf. 1Jo 4,19) pouco a respeito de José, o pai de Jesus, apenas nos
e nos ama até o fim (cf. Jo 13,1); e isso marca todas é dito que era um homem justo (cf. Mt 1,19). A situ-
as consequências desta relação – entre Deus e o ser ação de Maria também nos é oculta, a não ser pelo
humano – e esse amor não conhece limites. fato de que esta jovem, antes de contrair o casamen-
to, observa-se grávida. Qual seria o destino para uma
O sacramento do Matrimônio, que toca às famílias
jovem nesta condição? Por certo, nada acolhedor, o
em particular, e que é um aspecto presente e acalo-
que colocava em risco a sua própria vida e da criança
rado nas discussões deste Sínodo está fundamentado
em seu ventre.
neste amor, neste gesto de amar. Deus, em Cristo, se
doa por inteiro à humanidade, caracterizada pela sua Aí vem a beleza do relato, às vezes, não perceptível
Igreja (cf. Ef 5,32); tem a sua kénosis (cf. Fl 2,6) e vem e ignorada, pois somos tentados a ler de modo român-
ao encontro do ser humano, unindo-se a ele de modo tico, projetando no casal José e Maria condições con-
inseparável, indissolúvel, visto que o amor de Deus é temporâneas nossas, que tampouco poderiam existir.
eterno. Essa é a união resultante entre seres humanos O que acontece? José, o carpinteiro da vila, tido no
que se amam e se entregam e que se confirma no sa- relato como homem justo, faz em Maria a sua justiça
cramento do Matrimônio, sendo sinal desta graça, com e acolhe ela e seu filho em sua casa, e perante todos,
consequência a eles e a todos que cercam esta união. José assume a paternidade de Jesus, dando a ele um
Trata-se de uma entrega total, uma doação por intei- nome e uma identidade (cf. Mt 1,25). Será que nós nos
ro, capaz de fazer de duas vidas, uma só vida, uma só percebemos desta interrogação, por certo, mais próxi-
carne (cf. Mt 10,8); e eclesialmente: um só coração e ma às nossas famílias – também vulneráveis?
uma só alma (cf. At 4,32).
Também no que toca ao filho, Jesus, que perante a
T2 – Deus que se faz humano, em Cristo, assume as sua comunidade e seus irmãos era tido como louco e
nossas dores e tristezas, alegrias e esperanças, e, em foi preso e morto como um criminoso. Perguntamos:
família, assume também a nossa vulnerabilidade: O Será que esta família, hoje, teria acesso às nossas co-
Concílio Vaticano II, pela Gaudium et Spes, já fez esta munidades, teria acesso aos sacramentos?... Teríamos,
afirmação (GS 1), e diz ainda que nada que ocorre no como José, uma justiça pautada no amor de Deus, na
mundo, nada que o mundo possa sentir fica sem en- misericórdia, ou não? Acreditamos que uma nova per-
contrar eco no coração de quem crê. É isso que nos faz cepção da imagem da sagrada família de Nazaré pode
humanos, pois por uma atitude de amor, colocamos em nos oferecer novas pistas de reflexão (cf. KUZMA, Ce-
nossas vidas e em nossas responsabilidades a vida do sar. O sentir da ternura: o Sínodo sobre a família e
outro, entregamos a ele o nosso gesto e acolhemos o suas implicações teológicas e pastorais. Perspectiva

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Teológica, Belo Horizonte, v. 47, n. 131, p. 13-36, jan/ cepções e/ou configurações estruturais. Não se pode
abr. 2015.). excluir, pois tal postura não seria evangélica e coe-
rente. Não se pode imaginar também que a realidade
T3 – Em Cristo, uma realidade que se transforma e
vivida em muitas famílias de hoje já seja um estado
que faz novas todas as coisas: O Evangelho narrado
pleno, da mesma forma que não se pode dizer que elas
por João apresenta a pregação de Jesus em sinais.
não atendem ao projeto de Deus. Não! A(s) família(s),
Gostaríamos, para este momento, de resgatar duas
como todas as pessoas que pertencem a elas ou não,
imagens que nos são preciosas e que podem trazer
mas que compõem a Igreja, estão em constante estado
frutos condizentes com a nossa proposta.
de peregrinos (Lumen Gentium n. 48), andam ainda
1) A primeira delas diz respeito ao primeiro sinal, a em marcha, no caminho e rumo ao encontro definiti-
narrativa das Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12), uma festa vo, onde Cristo, somente ele, fará novas todas as coi-
de casamento. Não entramos no detalhe exegético e sas (cf. Ap 21,5), onde somente ele trará a tudo e a
histórico do relato, mas, a partir de uma leitura canô- todos a plenitude (cf. 1Cor 15,28).
nica, queremos nos firmar em alguns pontos:
Não nos cabe separar, nem mesmo excluir qualquer
a) Jesus é convidado para uma festa de casamento; pessoa ou família (seria anti-evangélico). Podemos
sim orientar o caminho dentro da ótica do Reino e dos
b) sua presença não é em vão, ele atua ali, a sua
passos de Jesus, mas jamais excluir qualquer pessoa
ação modifica e transforma;
do convívio fraterno e da harmonia entre os irmãos,
c) Jesus traz vinho novo à festa, traz alegria e pleni- seja por sua situação de crise, seja por casamentos
tude; em Cristo tudo se consome e se realiza. rompidos ou novos, seja pela questão sexual e afeti-
Acho que estes elementos traduzem, de certa for- va, sobretudo, aos casos que envolvem recasados, ho-
ma, a intenção do relato. A presença de Jesus em meio moafetivos e as diversas famílias em vulnerabilidade.
às pessoas, neste caso específico, em um casamento, A Igreja é mãe (cf. Francisco, Evangelii Gaudium,
gera transformação, vida nova e alegria. Ele é o vinho n. 46-47), e como mãe acolhe a todos; no acolher, ela
novo que anima os corações e acalenta à espera de um educa; e no educar, transforma; sempre, porém, no
novo tempo. amor, um amor-misericórdia. Pede-se aqui, um exercí-
2) A segunda imagem que trazemos é a do diálogo de cio contínuo para a inclusão de famílias em situações
Jesus com a samaritana (cf. Jo 4,1-42), uma mulher, de conflito e da ajuda que se faz necessária para a
que na situação de sua época, de acordo com o relato, caminhada gradual da experiência cristã, que deve ser
buscada por cada um, mas, também, favorecida pela
75
também estava em vulnerabilidade, excluída. Jesus se
aproxima dela e lhe pede algo; sabe que todos temos Igreja toda.
um pouco a oferecer e a servir, não importa a condi- RP2 – Sim, ao acesso à Eucaristia pelos casais em se-
ção, temos algo que pode saciar a sede de quem está gunda união e/ou separados/divorciados que contra-
ao nosso lado, até mesmo pela nossa dor e sofrimento. íram um novo casamento: este é um ponto polêmico
Mas o destaque desta passagem é que Jesus se apre- e que vem acalorando o debate sinodal até aqui. De
senta como água viva, a única capaz de saciar a nossa acordo com o Papa, deveríamos ir mais além e não
sede e de tornar pleno tudo o que existe. Por certo, reduzir o Sínodo a este ponto, que parece tão óbvio,
necessitamos desta água viva! mas tendo em vista a recusa e o fechamento de muitas
partes, a argumentação se faz sempre necessária. A
2. Confrontar e responder nossa opinião a este respeito já ficou clara nas linhas
pastoralmente anteriores e já nos expressamos abertamente sobre
isso em outros escritos.
O confronto e as respostas sucessivas, que terão por
Também achamos que a mesma intenção tem fun-
base as situações apresentadas e as teses acima apon-
damento garantido na própria essência do sacra-
tadas, aparecerão aqui como respostas pastorais (RP).
mento da Eucaristia, cuja riqueza inesgotável ainda
RP1 – Sim, à acolhida às famílias em suas diversas não nos permitiu ver a tal ponto. Uma vez que a
realidades estruturais: levando em consideração a Igreja afirma que a Eucaristia é o que constitui a
proposta desta reflexão, que se coloca a sentir com Igreja e que ela é necessária para a edificação dos
ternura, tendo em conta também a prática de Je- fiéis e para a sua caminhada rumo a Cristo, negá-
sus e o conteúdo do Evangelho que se faz conhecer -la para aqueles e aquelas que, mesmo machucados
no amor (misericórdia) e que nos acolhe em todas as e feridos, muitas vezes sem culpa, seguem, perse-
circunstâncias, sem julgamento, mas em gesto sal- guem e persistem no seu amor a Cristo e a Igreja
vífico, afirmamos que a Igreja, como sacramento de seria uma negação do próprio conteúdo que sustenta
salvação (e de reconciliação), deve valer-se por esta este sacramento, que é amor, que é misericórdia.
prática.
Na Evangelii Gaudium (n. 47) o Papa Francisco dis-
As reflexões acima e tudo o que se debateu no Sí- se claramente que este sacramento não é um prêmio
nodo até agora deixaram evidente as diversas marcas para pessoas santas, mas remédio e alimento para
que avançam sobre nossas famílias e suas novas con- todas as pessoas. E faz isso se baseando na rica tra-

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

dição eclesial, em especial em Santo Ambrósio, que discussão no Sínodo, mas tais reflexões deveriam aca-
diz que se deve comungar sempre, e em São Cirilo lentar os debates teológicos e pastorais, pois se que-
de Alexandria, que diz que se o pecado nos torna rem urgentes. Respeitamos as razões que levaram o
indignos, como poderemos nos separar daquele que Papa Paulo VI a assumir tais posturas na publicação da
nos santifica para a eternidade? Em se tratando da Encíclica, mas acreditamos que hoje (quase 50 anos
Eucaristia, nós não chegamos plenos a ela, mas ela depois e com todos os avanços biomédicos e da teo-
nos plenifica; nós não chegamos santos a ela, mas logia moral) se faz necessário dar um passo além das
ela nos plenifica. É necessário discernir o que o Es- resoluções da Humanae Vitae, pois trata-se de uma
pírito nos sopra hoje! Sabemos que ações pastorais realidade comum a maioria das famílias e casais. Vale
que aderiram a esta nova práxis, de modo consen- lembrar aqui que Paulo VI não encerrou a questão!
sual, equilibrado, gradual, maduro e respeitoso, lo-
Fechar-se a este tema é fechar-se na mesma in-
graram bom êxito e esta nova realidade tampouco
diferença que muitos casais e famílias têm e vivem
causou escândalo ou induziu ao erro outros fiéis. Ao
em relação a este assunto. Dado concreto de muitos
contrário, aproximou a Igreja dessas realidades e
casais. Não queremos fechar o debate, mas abri-lo e
ofereceu aos que estavam caídos alimento e remé-
dio para a vida concreta. Não entraria aqui o pedido pedir, que com coração de ternura, a Igreja acolha
do Papa Francisco para que sejamos facilitadores da estas novas realidades e se coloque em diálogo, na
graça e não seus reguladores, ou mais enfático: po- consulta de especialistas e das próprias famílias. Isso
demos segurar o Espírito? convida a uma nova compreensão do ser humano e de
suas relações, bem como uma nova indagação sobre a
Vale trazer aqui o pensamento clássico de Santo Am- sexualidade humana. Muitos casais, hoje, vivem isso
brósio, que diz que onde atua a graça, Cristo ali está, como um peso, ou na indiferença. É como se tudo
onde se vale a severidade, apenas os seus ministros. chegasse a um meio termo, o que não é produtivo. O
Refazemos aqui a pergunta feita pelo Cardeal Walter nosso sim aqui, é para esta atitude madura e respon-
Kasper em sessão do Sínodo de 2014 e que na ocasião sável que já se previu no Vaticano II, com a Gaudium
foi apoiada pelo Papa Francisco: se uma pessoa nessas et Spes, n. 51; já ali existe uma grande abertura que
condições, acompanhada e amparada pela sua comu- poderia ser revisitada.
nidade, e que se mantém fiel a Cristo, pode comungar
espiritualmente (como se costuma dizer), por qual ra- 3. Não esquecer da ternura
zão ela não poderia também comungar sacramental-
76 mente, já que esta realidade visível e sensível se faz O breve artigo que aqui apresentamos quer oferecer
favorável e aproxima o fiel do próprio Cristo, que por à Igreja, à teologia e às pastorais algumas perguntas a
ele deu a sua vida e foi fiel até o fim? mais, pois entendemos que o tempo é oportuno e de-
É onde encontramos a contradição dos discursos cisivo, e talvez por esta razão tenha despertado tantos
que dizem que tais casais não estão excluídos da debates e opiniões divergentes. Ressaltamos também
Igreja, mas ao mesmo tempo negam o acesso deles que existem muitos pensamentos comuns e que há um
à Eucaristia e a outros sacramentos. Esta ideia de grande número de bispos e teólogos que se somam a
exclusão do sacramento e não-exclusão da Igreja estas aberturas.
revela-se totalmente excludente e não abre espaço O Sínodo sobre as Famílias, convocado pelo Papa
para a misericórdia, que é a grande tecla que bate Francisco, trouxe à Igreja e às famílias a possibilidade
Francisco e que tem sim caráter evangélico. de rever alguns posicionamentos e implicações inter-
Seria até vantajoso propor a estes que insistem em nos e externos às realidades, destacando os desafios
se manter contrários a esta abertura que passem a que atingem as famílias na atualidade, a fim de favo-
exercitar a não-comunhão Eucarística solidária, dei- recer um melhor entendimento da sua vocação e mis-
xando de comungar o sacramento e se fazendo solidá- são, que é o grande objetivo. Diante dessas situações,
rio (espiritualmente) aos que dele são impedidos, pois muitas delas, em torno a crises e dificuldades, gosta-
é bem verdade, somos todos pecadores!... ríamos de propor um novo olhar a partir da ternura,
um novo sentir, com base na proposta de Cristo, da
Valeria a pena pensar. Não se trata de mudar a dou-
sua sensibilidade e da sua prática do Reino; por isso
trina dos sacramentos, mas de compreendê-los na sua
expressamos: não esquecer da ternura.
máxima essência e, neste caso, mudar a disciplina de
se celebrar e vivê-los. Enfim, na liberdade de refle- Sabemos, de antemão, que o atual contexto eclesial
xão que Francisco nos concedeu, queremos aqui firmar se tornou favorável a estas reflexões, o que exige da
como sim a nossa decisão e reflexão conclusiva a este Igreja e de todos nós uma postura crítica e sensível a
respeito. estas questões, a fim de destacar, de forma ousada e
madura, a partir do Sínodo e além dele, possíveis im-
RP3 – Sim, à uma recepção madura e responsável dos
plicações teológicas e pastorais.
novos métodos de planejamento familiar e de repro-
dução humana: este talvez seja um ponto ainda mais Durante a sua homilia, na missa de abertura da III
polêmico e que exige uma atitude de maior estudo Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo, em 2014, o
e discernimento pastoral. Não está sendo objeto de Papa Francisco disse claramente que haveria liberdade

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no falar e no expressar de novas questões. Esta inten- estabelecer um vínculo tão forte (e ao mesmo tempo
ção se repete no Sínodo de 2015. É o momento que se tão sensível); contudo,
pede tal postura, a fim de se fazer ouvir, discernir e,
3) o caminhar humano é limitado e finito diante do
de modo criativo e seguro, buscar uma resposta pasto-
amor de Deus que é eterno. Este sentimento tão forte,
ral coerente e condizente com a proposta do Evange-
às vezes (e não poucas) torna-se frágil e por mais que
lho, que se sustenta no amor.
se queira não chega ao seu destino.
Quando a urgência humana e pastoral nos obriga a
Por essa razão que a Igreja, comunidade firmada no
um desprendimento, a um despojamento, a uma en-
amor, e todos aqueles e aquelas que no amor se encon-
trega total em favor do outro, em uma saída baseada
tram, devem ter este gesto de ternura, fazendo sentir
no amor e em busca do amor, tem-se aí algo carac-
a ação de Deus, onde sempre há espaço para a vida e
terístico e fundamental para a fé cristã. Esta fé está
onde a alegria sempre faz o novo ressurgir. Nunca é
alicerçada na entrega total de Deus-criador à sua cria-
tarde, sempre há tempo. Nós acreditamos que este é o
ção-criatura, com total afeição e ternura, num jeito
pano de fundo, a espinha dorsal que acalenta o Sínodo
próprio e único, sendo para todos nós a medida do
sobre as Famílias, que já partiu numa intenção, aten-
verdadeiro amor, o qual devemos contemplar, sentir
to às urgências humanas e pastorais e buscou, para
e seguir, entregando e repousando naquele que nos
tanto, um olhar de amor em misericórdia, na acolhida
amou por primeiro e que nos ama até o fim.
e no afeto, no sentir da ternura. Se a fé da Igreja se
Deus se doa por inteiro e o faz porque isso é parte de sustenta no amor de Deus para com todos, e se é nesse
seu ser – amor. A maneira como nós nos relacionamos, amor que se vive, por certo, é nele que saímos e va-
o modo como nós nos encontramos e formamos laços, mos ao encontro do outro, fazendo-se próximo, para
laços estes que perpassam uma vida, a forma como acolhê-lo e, se preciso for, para reerguê-lo no mesmo
isso se dá baseia-se nesta mesma intenção – amor. Isso amor. Não se trata de qualquer amor, mas daquele que
é o que nos torna: se faz sentir na ternura do ser, na misericórdia, pois foi
assim que Deus se fez conhecer e é assim que se pode
1) discípulos e cristãos, pois por essa razão o segui-
encontrá-lo, e é assim que devemos fazer.
mos e antecipamos na fé e na esperança este sentir da
ternura, onde Deus-amor se faz presente; mas, No Sínodo o Papa insiste para não esquecermos a mi-
2) é também o que torna plena a relação entre duas
sericórdia. E aqui, nós nos somamos a ele pedindo para 77
não se esquecer também da ternura, que é o gesto que
pessoas que se amam e que se doam totalmente, pois
torna possível este amor misericordioso.
só o amor verdadeiro, como dom maior, é capaz de
transcender todos os limites da nossa compreensão e Na esperança, sempre! ■

LEIA MAIS...
—— O nome dele era Aylan Kurdi e tinha apenas 3 anos de idade. Artigo de Cesar Kuzma publica-
do nas Notícias do Dia, de 03-09-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Ly1t5L;
—— Sínodo: a tentativa de um olhar pastoral sobre as famílias. Entrevista com Cesar Kuzma
publicada nas Notícias do Dia, de 11-05-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/1Nk3KVc;
—— Minha experiência como Leigo na Igreja. Artigo de Cesar Kuzma publicado na revista IHU
On-Line, nº 442, de 05-05-2014, disponível em http://bit.ly/1MOHLam;
—— Clodovis Boff celebra 70 anos! Uma singela e sincera homenagem. Artigo de Cesar Kuzma
publicado nas Notícias do Dia, de 13-01-2014, no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/1ODqwKE;
—— O adeus de Bento XVI e o futuro da Igreja: o que esperamos agora? Artigo de Cesar Kuzma
publicado nas Notícias do Dia, de 01-03-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/1W2mIXL.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

EVENTOS

A perversa ideologia meritocrática


na contemporaneidade
Antônio Albano de Freitas alerta que um dos perigos da concentração de renda é
o imobilismo social, que é onde mora a perversidade da meritocracia
Por João Vitor Santos

N a modernidade, compramos
a ideia de que “se nos esfor-
çarmos” conquistaremos um
espaço. Logo, com trabalho, estudo
e capacitação poderemos nos tornar
paciência, trabalho, esforço, etc.”,
destaca Freitas.
O entrevistado é palestrante do Ciclo
de Estudos O Capital no Século XXI –
uma discussão sobre a desigualdade
trabalhadores mais qualificados e com
no Brasil. Na entrevista a seguir, con-
mais capacidade de geração de renda.
cedida por e-mail à IHU On-Line, ele
Entretanto, como alerta o economista
antecipa os assuntos que serão abor-
Antônio Albano de Freitas, esse modelo
dados em sua conferência “Mérito e
tem limites. A concentração de renda é
herança na estrutura das desigualda-
o primeiro. “Um dos perigos de tama-
des brasileiras”. A palestra ocorre no
nha concentração de rendimentos é a
dia 20-10-2015, às 19h30min, na Sala
reprodução do status quo ao longo do
Ignacio Ellacuría e Companheiros –
tempo. Isto é, o perigo de agravamento
78 da desigualdade de oportunidades e da
IHU. Mais informações em http://bit.
ly/1GhJSlQ.
imobilidade intergeracional, tendo em
vista que heranças de patrimônio, por Antônio Albano de Freitas possui
exemplo, têm um papel proeminente graduação em Ciências Econômicas
na transmissão de vantagens entre ge- pela Pontifícia Universidade Católica
rações para as classes mais afortuna- do Rio Grande do Sul – PUC-RS e mes-
das”, explica. trado em Desenvolvimento Econômico
pela Universidade Federal do Paraná –
Ou seja, o filho do “nobre” sem-
UFPR. Atualmente, cursa doutorado no
pre terá mais oportunidade que o
Programa de Pós-Graduação em Eco-
do “plebeu”, embora esse “plebeu”
nomia da Universidade Federal do Rio
se “esforce” e “mereça” mais. “Daí
de Janeiro – UFRJ. Em 2012, recebeu
decorre a perversidade da ideologia
o primeiro lugar no XVIII Prêmio Brasil
meritocrática na sociedade contem-
de Economia pela sua dissertação, inti-
porânea, pois as condições iniciais
tulada “Distribuição e Acumulação de
de vida são completamente distintas
capital: a economia brasileira no capi-
entre os indivíduos. E, no entanto,
talismo contemporâneo”.
depositam-se apenas sobre as elites
as virtudes morais pessoais, tais como Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o papel, o Unidos. Após um período, ao longo sociedades aristocratas dos séculos
peso, do mérito e da herança na dos anos 1914-1945, em que os pa- XVIII e XIX, em que os 10% mais ri-
equação da desigualdade? trimônios foram abalados por cho- cos possuíam 9/10 da riqueza, atu-
ques como destruições, inflação, almente estes últimos possuem 2/3
Antônio Albano de Freitas – Des-
falências e expropriações, a impor- do bolo.
de os anos 1970, tem ocorrido um
aumento da participação dos patri- tância da herança tem crescido re- Um dos perigos de tamanha
mônios herdados na riqueza total, gularmente. Ainda que a situação concentração de rendimentos é a
tanto na Europa como nos Estados não esteja no nível alcançado nas reprodução do status quo ao lon-

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lação é cerca de 2,8 vezes maior do


que o indicado pela PNAD.
Já no caso do fluxo fiscal de he-
rança anual expresso em porcenta-
Um dos perigos de tamanha gem da renda disponível, no Brasil,
não se pode estimar séries longas
concentração de rendimentos em virtude da insuficiência e robus-
é a reprodução do status tez de dados. Porém, para o curto
período que vai de 2001 a 2011, é
quo ao longo do tempo possível estimar que o peso da he-
rança cresce 1,5 ponto percentual
em relação às fontes monetárias de
go do tempo. Isto é, o perigo de além da dispersão salarial em sua que as famílias dispõem. O perigo
agravamento da desigualdade de análise. Vai além das diferenças na dessa tendência se acentuar, como
oportunidades e da imobilidade hierarquia dos salários e do mer- dito anteriormente, localiza-se
intergeracional, tendo em vista cado de trabalho, ainda que estas na reprodução das desigualdades
que heranças de patrimônio, por sejam importantes e estejam se temporalmente e na manutenção
exemplo, têm um papel proemi- acentuando por conta da elevação do status quo, num cenário em que
nente na transmissão de vantagens na razão dos rendimentos dos su- a herança de patrimônios domina
entre gerações para as classes mais perexecutivos sobre o do trabalha- o efeito marginal dos estudos e do
afortunadas. Daí decorre a perver- dor médio. trabalho.
sidade da ideologia meritocrática
na sociedade contemporânea, pois Piketty aponta, em síntese, que
quando a taxa de rendimento do IHU On-Line – Sobre o atual ce-
as condições iniciais de vida são
capital é muito mais alta do que a nário nacional, como atravessar a
completamente distintas entre os
taxa de crescimento da economia, turbulência de crise econômica e
indivíduos. E, no entanto, depo-
é quase inevitável que a herança política de modo a não retroceder
sitam-se apenas sobre as elites as
(o patrimônio herdado no passado) em políticas públicas que visam
virtudes morais pessoais, tais como
paciência, trabalho, esforço, etc. predomine em relação à poupança diminuir a desigualdade? E como 79
(o patrimônio originado no presen- evitar que esses cenários de crise
te). De modo que o empreendedor amplifiquem as desigualdades?
IHU On-Line – Quais as contri-
tenda a se transformar em rentis- Antônio Albano de Freitas – Do
buições da obra O capital no sé-
culo XXI, de Thomas Piketty1 para ta e as riquezas vindas do passado ponto de vista de política econô-
entender a desigualdade no mun- progridam automaticamente de mica é preciso colocar em pauta
do? Que perspectivas abre acerca forma mais rápida – sem ser neces- propostas progressivas tais como
da realidade brasileira? sário trabalhar – do que as riquezas a tributação dos lucros e dividen-
produzidas pelo trabalho, a partir dos na Pessoa Física na tabela do
Antônio Albano de Freitas – A das quais é possível poupar. IRPF, que poderia gerar mais de R$
obra O capital no século XXI, de 50 bilhões; elevar a progressivida-
Piketty, nos ajuda a entender a Brasil de e a alíquota máxima do imposto
desigualdade no mundo, pois vai sobre heranças e doações. Exem-
No caso do Brasil, em particular, plo: caso a alíquota efetiva média
1 Thomas Piketty (1971): economista fran-
cês, concentra seus estudos no acúmulo e é preciso lembrar que apenas após do Imposto de Transmissão Causa
desigualdade de renda. É diretor de pesqui- o impacto do livro a Receita Federal Mortis e Doação – ITCMD no Brasil
sas da École des hautes études en sciences
disponibilizou a base de dados das (3,73%) se igualasse àquela dos
sociales (EHESS) e professor da Escola de
Economia de Paris. Seu livro best-seller, O declarações de imposto de renda. EUA (29%), estimo que a arrecada-
Capital no Século XXI, enfatiza as questões A partir daí começam a surgir es- ção adicional poderia chegar a R$
do acúmulo de renda nos últimos 250 anos,
e argumenta que o acúmulo de capital cresce tudos que evidenciam que pesqui- 31,9 bilhões anuais, passando dos
mais rápido que a economia, o que gera de- sas domiciliares, como a Pesquisa atuais R$ 4,7 bilhões para R$ 36,6
sigualdade. A edição 449 da IHU On-Line, Nacional por Amostra de Domicílios
intitulada A desigualdade no século XXI.
bilhões; reavaliar a política de ex-
A desconstrução do mito da meritocracia, – PNAD, subestimam o rendimento cessiva renúncia fiscal concedida
inspira-se na obra O Capital no Século XXI dos mais ricos e, principalmente, a ao setor privado (que serviu para
e foi publicada meses antes de a obra ser pu-
blicada traduzida no Brasil. O IHU realiza no
renda da propriedade. No Brasil, a elevar suas margens de lucro, mas
segundo semestre de 2015 o Ciclo de Estudos partir das Declarações do Imposto não resultou em maior investimen-
O Capital no Século XXI – uma discussão de Renda Pessoa Física – DIRPF, é to). E seria mais interessante que o
sobre a desigualdade no Brasil. Mais infor-
mações em http://bit.ly/1P04PS2. (Nota da possível inferir que a renda média governo investisse diretamente em
IHU On-Line) do segmento 1% mais rico da popu- serviços públicos e infraestrutura;

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reavaliar as contrapartidas dos fi- imobiliários, etc. A partir dessa presentantes do poder legislativo.
nanciamentos do BNDES, etc. perspectiva, não se pode assegurar É triste notar que, independente
que a distribuição de rendimentos do Partido, ainda ocorra nessa es-
Do ponto de vista estritamente
do Brasil tenha melhorado na últi- fera muitos votos ao estilo “voto
político, porém, é bastante com-
ma década, a despeito de um avan- nele, pois é conhecido da minha
plicado, pois a coalizão que gover-
ço na formalização do mercado de família”, “é conhecido do fulano
na está em tensão. De maneira um
trabalho. De fato, o Brasil ainda é e ele recomendou”. Parece não
tanto previsível, em virtude das
um país de extrema concentração haver muita autonomia no voto e
alianças realizadas para se che-
gar ao poder, a presidente Dilma pouca percepção de sujeito ativo
Rousseff e seus representantes do no processo de mudança.
PT perderam qualquer tipo de au-
tonomia programática. O governo, IHU On-Line – Quais os limites
voluntariamente ou não, cedeu às A renda média em se pensar na redução de de-
pressões dos mercados e, agora,
implementa uma política recessiva do segmento sigualdades em sociedades basea-
das no consumo?
em que a variável de ajuste é o sa- 1% mais rico Antônio Albano de Freitas – Uma
lário real.
Nesse cenário, dificilmente ocor-
da população estratégia de inclusão social base-

rerão melhoras substanciais na é cerca de 2,8 ada exclusivamente no consumo


dificilmente pode ser sustentável.
nossa desigualdade socioeconômi-
ca, sobretudo pelo término da bo-
vezes maior do Em sociedades em que há um es-
nança externa que permitiu um alí- que o indica- tímulo à emulação pecuniária e ao
consumo conspícuo, como alertou
vio fiscal à época. Num panorama
em que há excedente, e todos os do pela PNAD Veblen3, não existem limites. Este
estratos de renda têm ganhos ab- tipo de sociedade, ademais, é mais
solutos, os conflitos de classe são patrimonial e de rendimentos de suscetível ao ciclo econômico, na
amenizados, ainda que os ganhos propriedade. medida em não existam garantias
80 relativos dos de baixo sejam maio-
No universo da DIRPF para o ano
constitucionais e exista um confli-
res. Porém, quando se interrompe to de classes no interior do Esta-
de 2013, apenas para ilustrar, a do Nacional. Isto é, em períodos
o crescimento, o “jogo” se torna
ocupação declarante mais rica foi a
de soma zero (o que um ganha é o de crises, em geral, cortam-se as
de titulares de cartório, que ganha-
que o outro perde). E, assim, pron- transferências monetárias daque-
ram R$ 71.802 mensais em média –
tamente rompe-se o pacto estabe- les mais necessitados e não os be-
função esta que apenas na década
lecido implicitamente. nefícios concedidos às elites.
de 1990 passou a exigir concurso
público e que, ainda hoje, con- Um projeto de igualdade de
IHU On-Line – No Brasil, a renda ta com um terço de titulares não oportunidades de uma sociedade,
média doméstica triplicou entre concursados. Ainda no universo da portanto, deve estar assentado não
2000 e 2014, aumentando de 8 DIRPF, temos que a metade mais apenas na renda monetária, mas
mil dólares por adulto para 23,4 pobre dos declarantes apresenta também na efetivação de direi-
mil, segundo o relatório da Credit um rendimento total (tributáveis, tos substantivos, acesso a serviços
Suisse2. A desigualdade, no entan- mais exclusivos, mais isentos) per
to, ainda persiste no país. Como públicos e moradia adequada. Ou
capita líquido mensal de R$ 1.810, seja, na capacitação do indivíduo
compreender essa realidade? enquanto o segmento 1% mais rico
Como atacar essa desigualdade para exercer autonomamente sua
apresenta um rendimento de apro- cidadania.■
no Brasil? ximadamente R$ 120.881.
Antônio Albano de Freitas – Para combater essa desigualda-
3 Thorstein Bunde Veblen (1857-1929):
Para compreender essa realidade foi um economista e sociólogo estaduni-
de é preciso radicalizar a demo- dense, filho de imigrantes noruegueses. Em
é preciso observar não apenas as cracia e enfrentar as mudanças economia, o efeito Veblen ou bens de Veblen
rendas do trabalho, mas aquelas estruturais que o país teima em
referem-se àqueles bens em que, à medida
derivadas da propriedade e do ca- que o preço aumenta, aumenta também o in-
não estabelecer, tais como a des- teresse pela sua compra, uma vez que o preço
pital, tais como ativos financeiros, alto significaria mais status, e não necessa-
concentração da propriedade da
riamente uma melhor qualidade do bem em
2 Credit Suisse Group: é um banco suíço terra, a regulação dos meios de si. O fenômeno é o oposto da lei da oferta e
de investimento e provedor de outros servi- comunicação e o financiamento de da procura. Veblen foi o economista que pri-
ços financeiros sediado em Zurique, Suíça. campanhas eleitorais. A sociedade, meiro identificou os conceitos do consumis-
No Brasil, é uma das maiores instituições de mo conspícuo e da busca por status social
Private Banking, Asset Management e Corre- ademais, deve ter mais consciência através do dinheiro em 1899. (Nota da IHU
tora de Valores. (Nota da IHU On-Line) crítica na hora de eleger os seus re- On-Line)

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EVENTOS

A politização do combate à pobreza e


o precipício da desigualdade
Para Flavio Comim, o enfrentamento da pobreza não pode ser bandeira
política. Assim,pensa-se somente no curto prazo e não se efetiva um
combate às desigualdades do País
Por João Vitor Santos

É preciso ter em perspectiva que


a busca da redução das desi-
gualdades tenha no combate
à pobreza um de seus vértices. Mas
pel propositivo no debate sobre a re-
gulação internacional do capital, como
uma das formas de reduzir a desigual-
dade. “Talvez a tributação de grandes
o que fez o Brasil, já que investiu no fortunas não seja viável se somente o
combate à miséria e não viu o enco-
Brasil fizer isso, mas o Brasil pode li-
lhimento do precipício da desigualda-
derar um esforço na América Latina e
de? O economista e professor da Uni-
participar de esforços internacionais
versidade Federal do Rio Grande do
para a tributação de riqueza”, aponta.
Sul – UFRGS Flavio Comim aponta: “o
Brasil politizou o combate à pobreza. Flavio Comim é graduado em Econo-
As políticas públicas do Governo Fede- mia pela Universidade Federal do Rio 81
ral são importantes para a diminuição Grande do Sul – UFRGS, mestrado em
do sofrimento dos pobres, mas não Economia pela Universidade de São
têm alcance nem profundidade para a Paulo – USP e pela Universidade de
redução efetiva da pobreza enquanto Cambridge, doutorado em Economia
não tivermos investimentos pesados na pela Universidade de Cambridge e Pós-
educação brasileira”. Comim entende -doutorado pela Universidade de Cam-
que o problema não é a transferência bridge e pela Universidade de Harvard.
de renda, mas a falta de complemen- Trabalhou para o Programa das Nações
taridade de programas que possam se Unidas para o Desenvolvimento (2008-
articular com a transferência de ren- 2010). Atualmente é professor adjunto
da enquanto política pública de longo da UFRGS e professor visitante da Uni-
prazo. “O problema da nossa política versidade de Cambridge. Tem experi-
pública de combate à pobreza é sua ir- ência na área de Economia, com ênfase
regularidade e falta de planejamento”, em Economia da Pobreza.
completa.
O Ciclo de Estudos O Capital no Sécu-
Comim é um dos palestrantes do Ci- lo XXI – uma discussão sobre a desigual-
clo de Estudos O Capital no Século XXI dade no Brasil é realizado pelo Institu-
– uma discussão sobre a desigualdade to Humanitas Unisinos – IHU.
no Brasil. No dia 29 de outubro, pro-
Além da conferência de Comim, es-
ferirá a conferência “Políticas públicas
tão programadas mais duas palestras
de regulação do capital e possibilida-
até o final do Ciclo, em 11 de novem-
des para um Estado social no Brasil”.
bro. Para mais detalhes, acesse http://
Na entrevista a seguir, concedida por
bit.ly/1LQFzAq.
e-mail à IHU On-Line, o professor su-
gere como o Brasil pode assumir o pa- Confira a entrevista.

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


DESTAQUES DA SEMANA TEMA

riquezas em fundações, hospitais,


universidades, etc., como aconte-
ce em outros países.
A obra de Piketty traz a econo-
A teoria de Piketty nos mostra que mia política de volta à economia.
Ao destacar o poder e influência
o problema da desigualdade eco- do 1% mais rico do mundo, seu tra-
nômica no Brasil é muito maior balho sugere que podemos ser es-
cravos de uma elite internacional
do que normalmente pensamos e nacional. Ele critica nossa baixa
autocrítica e como nos contenta-
mos com migalhas.
IHU On-Line – Como entender a já dispomos de recursos suficientes
desigualdade brasileira num con- para a promoção de políticas so- IHU On-Line – Como equali-
texto histórico? ciais, se assim o desejarmos. zar crescimento econômico e
Flavio Comim – A desigualdade desenvolvimento?
brasileira não é apenas uma desi- IHU On-Line – De que forma a
discussão proposta por Thomas Flavio Comim – Precisamos su-
gualdade de renda, ou de riqueza, perar o mito de que o crescimento
ou de níveis educacionais. A desi- Piketty1 pode influenciar o deba-
te acerca da tributação de gran- econômico importa pelo seu tama-
gualdade brasileira é estruturante, nho e quantidade e focar na quali-
com uma persistência intertempo- des fortunas no Brasil? E quais as
demais contribuições da obra que dade do crescimento. Mais especifi-
ral significativa e multidimensio- camente, crescimento para quem?
nal. Poderíamos voltar à origem podem ser, imediatamente, trans-
postas para a realidade brasileira? Precisamos pensar em como o cres-
de nossos problemas, examinando cimento reduz pobreza, em manei-
o tipo de colônia que fomos, mas Flavio Comim – O primeiro ponto ras inovadoras de ter crescimento
acredito que esse tipo de contex- é reconhecer que temos uma de- com baixo nível de desigualdade e,
to histórico poderia explicar, mas sigualdade que talvez seja muito principalmente, em pensar cresci-
não justificar por que continuamos maior na riqueza do que na renda mento com desenvolvimento tec-
com níveis de desigualdade tão al-
82 tos na nossa vida econômica, social
(que já é muito alta). Ou seja, a
teoria de Piketty nos mostra que
nológico e capacitação de mão de
obra no longo prazo. O crescimen-
e pública. A questão chave é: por o problema da desigualdade eco- to econômico precisa ser inclusivo
que não mudamos? Por que conti- nômica no Brasil é muito maior do para promover o desenvolvimento.
nuamos com níveis tão altos de de- que normalmente pensamos. Tal-
sigualdade? As respostas estão nas vez a tributação de grandes fortu-
estruturas de poder da sociedade IHU On-Line – De que forma a
nas não seja viável se somente o geração de renda impacta no
brasileira, é isso que precisamos Brasil fizer isso, mas o Brasil pode
discutir. desenvolvimento? Em que me-
liderar um esforço na América La- dida as políticas de transferên-
tina e participar de esforços in- cia de renda podem fomentar o
IHU On-Line – Como pensar em ternacionais para a tributação de desenvolvimento?
políticas públicas de regulação do riqueza, ou de um conjunto de in-
capital? Em que medida esse con- centivos para que os milionários e Flavio Comim – Não se pode cons-
trole contribui para um Estado so- bilionários brasileiros invistam suas truir desenvolvimento sem renda.
cial no Brasil? Mas a renda não esgota o que pode
1 Thomas Piketty (1971): economista fran- ser feito para o desenvolvimento.
Flavio Comim – Para fazer um cês, concentra seus estudos no acúmulo e Nas políticas de transferência de
omelete são necessários ovos. Não desigualdade de renda. É diretor de pesqui-
renda condicionada, como o Bolsa
se faz omelete de pão. Do mesmo sas da École des hautes études en sciences
Família, o importante é o impacto
sociales (EHESS) e professor da Escola de
modo, para um problema global é Economia de Paris. Seu livro best-seller, O de longo prazo na redução inter-
necessário o desenvolvimento de Capital no Século XXI, enfatiza as questões geracional de pobreza. Cabe, no
instrumentos de política pública do acúmulo de renda nos últimos 250 anos,
entanto, ver que esses programas
que tenham alcance global. Não e argumenta que o acúmulo de capital cresce
mais rápido que a economia, o que gera de- de transferência de renda fazem
acredito, portanto, na eficácia de sigualdade. A edição 449 da IHU On-Line, muito pouco para a criação de um
políticas nacionais de regulação do intitulada A desigualdade no século XXI. ambiente de igualdade de oportu-
capital. No entanto, isso não quer A desconstrução do mito da meritocracia,
nidades, por isso o investimento
inspira-se na obra O Capital no Século XXI
dizer que não se possa ter contro- em uma educação de qualidade se
e foi publicada meses antes de a obra ser pu-
les internacionais, principalmente blicada traduzida no Brasil. O IHU realiza no faz tão necessário.
de capital especulativo. Não há, segundo semestre de 2015 o Ciclo de Estudos
no entanto, relação direta entre O Capital no Século XXI – uma discussão
regulação do capital e a promoção
sobre a desigualdade no Brasil. Mais infor- IHU On-Line – Conhecemos a
mações em http://bit.ly/1P04PS2. (Nota da pobreza no Brasil? Que pobreza
de um Estado social no Brasil, pois IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


DE CAPA IHU EM REVISTA

é essa? Em que medida as políti- que por um lado inclui as pessoas quistas sustentáveis e logo veremos
cas públicas do Governo Federal mais pobres no sistema bancário, que o ‘rei estava nu’ e não tínha-
atendem a esses pobres? mas por outro pode forçá-las a mos nos dado conta. As políticas
comprar produtos financeiros que de combate à pobreza monetária
Flavio Comim – O Brasil politizou
não necessitam. foram feitas de modo curto-prazis-
o combate à pobreza. As políticas
ta, sem perspectiva estruturante,
públicas do Governo Federal são
IHU On-Line – Como avalia o baseadas em consumo e valores
importantes para a diminuição do
sofrimento dos pobres, mas não atual cenário brasileiro de arroxo muito baixos de renda. Vamos ver
têm alcance nem profundidade e ajuste fiscal? Qual a sua opinião nos próximos anos um retrocesso,
para a redução efetiva da pobreza sobre a necessidade de um equilí- prova da falta de sustentabilidade
enquanto não tivermos investimen- brio fiscal como forma de superar na nossa política pública.
tos pesados na educação brasileira. uma crise econômica?
O problema não é da transferência Flavio Comim – Um ajuste fiscal IHU On-Line – Como pensar um
de renda por si, mas da falta de era necessário, mas não esse ajus- projeto de nação a longo prazo,
complementaridade e articulação te fiscal míope, voltado a resulta- aliando desenvolvimento e redu-
da política pública. A politização dos de curto prazo, preservador ção das desigualdades?
da pobreza jogou a classe média de interesses menores da nação e Flavio Comim – Precisamos
contra o Bolsa Família, estigmati- feito de maneira tão brusca e tão pensar o desenvolvimento de uma
zando seus beneficiários. gentil com o capital financeiro, forma humana e inclusiva. Preci-
deixando desprotegidos milhões de samos investir pesadamente em
IHU On-Line – Em que medida trabalhadores com mudanças em bens públicos, na saúde, na edu-
a lógica da financeirização impe- programas sociais, como o Farmá- cação, no transporte coletivo, no
de o desenvolvimento pleno das cia Popular, o seguro-desemprego, saneamento, na construção de
pessoas através das políticas pú- etc. O governo deveria ter prepa-
áreas públicas e infraestrutura,
blicas? Como compreender que as rado um plano de ajuste de médio
como bibliotecas, telecomunica-
políticas de transferência de ren- prazo, evitando cortes na educa-
ções, e fazer tudo isso chegar aos
da tenham relação tão estreita ção principalmente, aumentando
mais pobres. Precisamos pensar o
com o sistema financeiro? os juros, mas nem tanto, fazendo
desenvolvimento além do cresci-
Flavio Comim – O problema da
um corte mais agressivo em áreas
não sociais como infraestrutura e
mento econômico. Mas isso difi- 83
nossa política pública de combate cilmente vai acontecer se a po-
gastos militares. Estamos fazendo
à pobreza é sua irregularidade e pulação brasileira não demandar
um ajuste que compromete o futu-
falta de planejamento. Os recen- esses serviços e se nossa política
ro do país, no modo que é feito.
tes cortes em bolsas, salários de pública não for mais decentrali-
professores, financiamento para zada. Precisamos reconhecer no
IHU On-Line – Como, hoje, su- Brasil várias nações para o res-
a educação, etc., promovem um
perar um cenário de crise no Bra- gate da razão pública e do sen-
ajuste fiscal curto-prazista que
sil, sem perder conquistas, com
desestabiliza o planejamento das tido da coisa pública no desen-
políticas que contribuem para di-
pessoas pobres e investimento na volvimento nacional. Isso passa
minuir a desigualdade?
sua educação ou de seus filhos. Ou- por resgatar valores humanos na
tro problema diferente seria a ban- Flavio Comim – Não há como su- formação de nossas crianças e na
carização de várias transferências, perar. As conquistas não foram con- política pública.■

LEIA MAIS...
—— O consequente casamento entre a desigualdade e a pobreza. Entrevista com Flávio Co-
mim publicada na revista IHU On-Line, nº 449, de 04-08-2014, disponível em http://bit.
ly/1Gm44Tx;
—— Sem miséria, mas com fome. Artigo de Flávio Comin reproduzido nas Notícias do Dia, de
15-05-2014, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/UQ2P7S;
—— O IDH e o conto do imperador sem roupa. Artigo de Flávio Comin reproduzido nas Notícias
do Dia, de 17-03-2013, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1m5a1o9;
—— Amartya Sen, o ser humano e a alternativa do diferente. Entrevista com Flávio Comin pu-
blicada na revista IHU On-Line, nº 379, disponível em http://bit.ly/1AH1i5e.

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

#Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos

Os filhos de todas as bombas


Por Camila Alves da Costa

“Apenas na última década, autoridades afegãs apreenderam mais de 250 crian-


ças que estavam sendo treinadas para o suicídio, escolhidas simplesmente por se-
rem mais vulneráveis e por não levantarem maiores suspeitas das autoridades ao
circular pelos populosos centros onde conduzem os ataques. As madrassas, escolas
religiosas, servem como campos de recrutamento. Apenas no Paquistão, mais de
2 mil delas funcionam na doutrinação e treinamento de crianças e adolescentes
entre os 5 e os 16 anos de idade”, afirma Camila Alves da Costa.
Camila Alves da Costa é mestre em Estudos Estratégicos de Defesa. Graduada
em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, é pesquisadora do
Observatório das Nacionalidades/UECE e membro do Comitê Editorial da revista
Tensões Mundiais.
Eis o artigo.

Em 2003, prestes a invadir o Iraque, os Estados Uni- sudaneses, sírios e iranianos, dentre tantos outros po-
dos iniciaram testes de uma bomba não nuclear de 9,5 vos eurasianos, médio-orientais e africanos, não impe-
toneladas, capaz de causar destruição no raio de até diu a ostentação dos destroços que a nova bomba seria
1 quilômetro em redor de seu ponto zero. Compos-
84 ta por 80% de TNT, foi complementada com 20% de
capaz de deixar pelo caminho.
A Rússia, então, desenvolveu o Aviation Thermobaric
alumínio, aumentando sua capacidade de destruição
Bomb of Increased Power, uma bomba termobárica, a
em pelo menos 18%. Era a “Mãe de Todas as Bombas”
que deu a alcunha “Pai de Todas as Bombas” (FOAB,
– ou MOAB, sigla para “Massive Ordnance Air Blast”
sigla para “Father of All Bombs”), em clara resposta à
(“Explosão Maciça de Munição Aérea”) –, desenvolvida
MOAB. Um primogênito com capacidade de destruição
pelos Estados Unidos para utilização no Iraque. Ima-
gens dos dois testes realizados com o artefato foram quatro vezes maior que sua “mãe”: 44 toneladas de
amplamente divulgadas pela mídia global logo antes dinamite. Seu primeiro teste bem-sucedido foi realiza-
da invasão, com o claro propósito de desencorajar na- do em setembro de 2007. A criação russa passava a ser
cionais iraquianos e qualquer país disposto a se juntar a arma convencional (não nuclear) com maior poder
em sua defesa no enfrentamento aos Estados Unidos de destruição do mundo, surpassando a capacidade de
e seus aliados da OTAN. Além dos dois artefatos tes- sua predecessora. O “Pai de Todas as Bombas”, embora
tados, foram produzidos outros 15. Declaradamente, menor que a MOAB (pesa cerca de 7 toneladas) é ainda
nenhum foi utilizado. mais mortal: a temperatura que gera em seu centro de
explosão é tão elevada que sua capacidade de destrui-
O epíteto “Mãe de Todas as Bombas” antecipava ção é comparada à de uma bomba atômica de peque-
as consequências da explosão de um dispositivo cujo no porte, multiplicando a destruição em redor de seu
poder de destruição equivale ao de 11 toneladas de ponto zero; porém, sem as consequentes nuvens radio-
dinamite. A comunidade internacional conjeturava ativas deixadas pela arma nuclear. De acordo com as
quanta desgraça se alimentaria e surgiria a partir do
autoridades russas, foram produzidas 100 unidades da
ódio, medo e insegurança causados pelo uso da MOAB;
bomba, que deveria servir à renovação de seu arsenal,
quantos novos extremistas, homens-bomba, mujahe-
substituindo diversas armas nucleares de menor porte
deens se juntariam à resistência ao ver seus pais, fi-
e capacidade de destruição.
lhos, irmãos e primos transformados em meros núme-
ros contabilizados como “danos colaterais”. A certeza Há, contudo, efeitos menos discutidos e mais da-
de que a utilização da MOAB geraria uma prole com nosos da MOAB: seus filhos não tomam necessaria-
capacidade e disposição de buscar uma justiça que a mente forma de um novo artefato explosivo capaz de
comunidade internacional lhes negava ao ignorar o as- multiplicar o dano causado por ela. Nas duas últimas
sassinato de milhares de iraquianos, afegãos, somalis, décadas, sobretudo nos últimos cinco anos, um novo

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Não era apenas uma bomba. Era o bater das asas


de uma borboleta cujas ondas geraram meninos-
soldados, crianças-bomba, o extermínio sudanês,
os escombros afegãos, o caos paquistanês, as
agitações iranianas, a sangria síria, a crise
dos refugiados que agora atinge a Europa
fenômeno, mais cruel e aterrador, emergiu nos con- agindo por uma causa religiosa, facilmente iludidas
flitos do Oriente Médio e da Eurásia e da África. Não pela promessa de uma recompensa por seu sacrifício.
tratamos mais de homens-bomba. As vítimas inocen-
Apenas na última década, autoridades afegãs apre-
tes do conflito, crias da MOAB, são meninos-soldados
enderam mais de 250 crianças que estavam sendo trei-
e crianças-bomba.
nadas para o suicídio, escolhidas simplesmente por
Crianças de até 5 anos de idade têm sido doutri- serem mais vulneráveis e por não levantarem maiores
nadas, pelo menos desde 2005, para o suicídio em suspeitas das autoridades ao circular pelos populosos
explosões de mercados, praças, masjids e shopping centros onde conduzem os ataques. As madrassas,
centers. Aproximadamente 90% dos ataques suicidas escolas religiosas, servem como campos de recruta-
ocorridos no Paquistão desde 2007 são creditados a mento. Apenas no Paquistão, mais de 2 mil delas fun-
adolescentes entre 12 e 18 anos. Esta estratégia sur- cionam na doutrinação e treinamento de crianças e
giu no conflito no Iraque, onde o emprego de crianças adolescentes entre os 5 e os 16 anos de idade.
como instrumentos de guerra logrou atingir os alvos
pretendidos. Convencidas por seus recrutadores de Como resultado dessa estratégia, militares estaduni-
que, como a explosão vai matar estadunidenses e seus denses admitiram alvejar crianças em suas ações, ten-
aliados, os “infiéis”, Alá lhes poupará a vida. Agem do executado três crianças e adolescentes entre 8 e 14
convencidas de que não morrerão com a explosão, anos em apenas uma investida na tentativa de barrar 85
certas de que não sentirão dor, ou tementes de que um suposto atentado suicida.
seus familiares sejam sacrificados no caso de fracas- Em 2013, os Estados Unidos ameaçaram lançar uma
so ou desobediência. Acreditam-se heróis. Seus pais versão atualizada da “Mãe de Todas as Bombas” contra
sabem-lhes vítimas, mas nada podem fazer frente às o Irã. Agora com 14 toneladas, caso a ameaça tivesse
ameaçadoras tropas ocidentais ou aos insurgentes. sido cumprida, o resultado seria o extermínio de mi-
No primeiro semestre de 2015, o Boko Haram uti- lhares de civis, os quais seriam, certamente, contados
lizou crianças-bomba em pelo menos duas ocasiões como casualidades.
comprovadas na Nigéria: em junho, uma garota de 17 A “Mãe de Todas as Bombas” exibe agora orgulhosa,
anos se explodiu em uma estação de ônibus, em Madi- embora dissimulada, sua prole. Não era apenas uma
guri, assassinando 20 e deixando outros 50 feridos; no bomba. Era o bater das asas de uma borboleta cujas
dia seguinte, um garoto de 12 anos, em um mercado ondas geraram meninos-soldados, crianças-bomba,
na Vila de Wagir, deixou 30 feridos e 10 mortos. Ambos o extermínio sudanês, os escombros afegãos, o caos
morreram nos atentados.
paquistanês, as agitações iranianas, a sangria síria, a
O recrutamento de crianças atende a duas especifi- crise dos refugiados que agora atinge a Europa. Im-
cidades que aumentam enormemente o sucesso de sua possível pensar estes eventos isoladamente. Apenas
doutrinação e dos atentados que executam: isolados reconhecendo e encarando a origem da atrocidade se-
de suas famílias, tornam-se mais suscetíveis à autori- remos capazes de começar a discutir a solução para a
dade de líderes religiosos, são convencidas de estarem crise nossa de todos os dias. ■

Expediente
Coordenadora do curso: professora doutora Gabriela Mezzanotti

Editor da coluna: professor doutor Bruno Lima Rocha

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DESTAQUES DA SEMANA TEMA

PUBLICAÇÕES

A vida, o trabalho, a linguagem.


Biopolítica e biocapitalismo

O Cadernos IHU Ideias em sua 228ª edição publica o artigo de Sandro Chignola,
doutor em História do Pensamento Político, com pós-doutorado na École des Hau-
te Études en Sciences Sociales e na École Normale Supérieure de Lettres et Sci-
necs Humaines. Integrante do Conselho Editorial
de diversas revistas, incluindo: Filosofia Política,
Contributions to the History of Concepts, Politica
& Società, Materiali foucaultiani, Res Publica: Re-
vista de Filosofia Política. Atualmente é professor
de Filosofia Política na Universidade de Pádua, na
Itália.
O artigo traz o resgate da memória de como o
termo biopolítica foi cunhado e utilizado, mui-
to antes de Foucault, fazendo referência a uma
implementação da ciência política. De acordo
86 com o autor, o trabalho busca apresentar uma
relação contextual dentro da qual os saberes e
poderes evoluem se sustentando mutuamente e
se apoiam sobre a relevância dos processos que
se combinam para estabelecer como segmentos
para a valorização do capital e para as atividades
das empresas. “O que me proponho a fazer nes-
ta ocasião é especialmente mapear os processos
dentro dos quais os saberes e os poderes agem
uns sobre os outros em um processo de copro-
dução circular sobredeterminada pela axiomática
do capital e por algumas formas contemporâneas
de acumulação”, explica.
Chignola esclarece que neste trabalho não se
refere a uma transformação do capital, ou a uma
fase particular que marcaria uma “época”, mas sim às relações encadeadas em
um cenário mais amplo. “Devemos nos abrir para o mundo e não nos colocarmos
dentro do cânone filosófico”, defende.
O autor ressalta que o mapa conceitual que constrói no artigo não tem a pre-
tensão de ter um caráter definitivo nem de objetividade. A ideia é apresentar uma
sistematização e discussão de problemas, tendências e linhas de evolução sobre
o tema. “Tento desvendar os fios de uma meada. Consciente de que é impossível
encontrar a pista; o elemento que permite esclarecer o problema”, ressalta.
Confira a edição digital do artigo em http://bit.ly/1OigHle
Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias têm suas versões digitais disponí-
veis no link http://bit.ly/1GjHqak e também podem ser adquiridas diretamente
no Instituto Humanitas Unisinos – IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@
unisinos.br. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8213.■

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DE CAPA IHU EM REVISTA

Retrovisor
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Gerard Manley Hopkins: poeta e místico. Do cotidiano


imediato ao plano cósmico
Edição 282 – Ano VIII – 17-11-2008
Disponível em http://bit.ly/1snQt1C
Gerard Manley Hopkins, poeta e místico inglês, é o tema de capa da revista
IHU On-Line de número 282. Considerado um dos maiores autores da literatura
universal, jesuíta, sua obra é analisada e discutida por alguns poetas, tradutores
e professores de Literatura. Contribuem para a discussão Alípio Correia de Franca
Neto, Paulo Henriques Britto, Claudio Daniel, Aníbal Gil Lopes, Aurora Bernardini,
John Milton, Wiliam Alves Biserra, Thomas Burns, Dirceu Villa, Marcus Motta e
Thiago Ponce de Moraes. A revista ainda traz uma antologia de poemas de Gerard
Manley Hopkins. Há traduções do poeta e tradutor Augusto de Campos, que gen-
tilmente permitiu a republicação, pois elas já foram publicadas no livro “Hopkins:
a beleza difícil”.

Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm Friedrich


Hegel. 1807-2007 87
Edição 217 – Ano VII – 30-04-2007
Disponível em http://bit.ly/1jzHRXF
Em 1807, Georg Wilhelm Friedrich Hegel publicava a Fenomenologia do espí-
rito. Para avaliar a importância dessa obra 200 anos após seu lançamento, con-
tribuem na edição 217 da IHU On-Line os seguintes estudiosos de Hegel: José
Henrique Santos, ex-reitor da UFMG; Walter Jaeschke, diretor do Hegel-Archiv,
na Ruhr-Universität Bochum, Alemanha; Pierre-Jean Labarrière, do Centro Sèvres
de Paris e Eduardo Luft, professor de filosofia da PUC-RS. Outros entrevistados
são Carlos Roberto Velho Cirne Lima, um dos maiores estudiosos e especialistas
brasileiros de Hegel, professor do PPG em Filosofia da Unisinos; Prof. Dr. Marcelo Fernandes de Aquino, reitor da
Unisinos, e Paulo Gaspar de Meneses, tradutor da Fenomenologia do espírito para a língua portuguesa.

Nietzsche Filósofo do martelo e do crepúsculo 


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Edição 127 – Ano IV – 13-12-2004


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Disponível em http://bit.ly/1ZDw8bA                   
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A edição 127 da revista IHU On-Line comemora os 160 anos do nascimento de
Nietzsche. O número discute o legado desse filósofo que, ao lado de Freud e Marx,
INDICE
EDITORIAL ......................................................................................................................... 2

MATÉRIA DE CAPA .......................................................................................................... 3

é apontado como um dos responsáveis pela revolução das técnicas de interpre- Nietzsche - Vida e obra................................................................................................... 3
Investidas contra o Deus moral obsessivo ..................................................................... 4
Entrevista com Paul Valadier ................................................................................. 4

tação. Ele rompe com as interpretações morais da História e condena a Filosofia


Buscando o critério de avaliação das avaliações .......................................................... 7
Entrevista com Scarlett Marton .............................................................................. 7
A obsolescência do sujeito unitário................................................................................ 9
Entrevista com Alberto Onate ................................................................................ 9

tradicional, acusando-a de apenas dominar o passado. Do martelo de Nietzsche Uma revolução na forma de pensar ............................................................................. 16
Entrevista com Vânia Dutra de Azeredo .............................................................. 16
DESTAQUES DA SEMANA............................................................................................. 20

nasce uma crítica impiedosa da modernidade. De tudo suspeita. Seu pensamento LIVRO DA SEMANA ............................................................................................................ 20
Éthique, La Méthode, tomo 6, de Edgar Morin. Paris: Seuil, 2004. 256 p. ............. 20
Morin, questão de método ........................................................................................ 20

denuncia preconceitos, demonstra estratégias, critica os valores vigentes. Seus


“A medicina é amor, todo amor é medicina” ........................................................... 22
O mestre estudante.................................................................................................... 25
TEOLOGIA PÚBLICA ........................................................................................................... 26
A Igreja vestida somente de evangelho e sandálias.................................................. 26

escritos repercutiram na literatura, nas artes plásticas, na música, na psicanálise,


Entrevista com Jose Ignácio González Faus......................................................... 26
ENTREVISTA DA SEMANA ................................................................................................... 30
Socialibilidade e moralidade se tornaram adversárias.............................................. 30
ARTIGO DA SEMANA .......................................................................................................... 33

nas ciências humanas. Contribuem para os debates Scarlett Marton, Paul Valadier, 

Alberto Onate e Vânia Dutra de Azeredo.

SÃO LEOPOLDO, 19 DE OUTUBRO DE 2015 | EDIÇÃO 475


IHU Ideias
Data: 22-10-2015 às 17h30min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU
Mais informações em
http://bit.ly/1LFPyq6

Guerra dos lugares:


a colonização da terra
e da moradia na era das finanças
Data: 22-10-2015 às 19h30min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU
2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas
Públicas e Tecnologias de Governo. Ter-
ritórios, governamento da vida e o comum
Mais informações em http://bit.ly/1GKdAuz

Data: 20-10-2015
Horário: Das 14h às 17h30min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU
Mais informações em
http://bit.ly/1LZzXNS

ihu.unisinos.br bit.ly/ihuon twitter.com/_ihu

youtube.com/ihucomunica medium.com/@_ihu

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