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Celso Prudente: para entender o

que é o cinema negro


Antropólogo, cineasta e professor, Celso Prudente organiza, desde 2004, a Mostra Internacional do Cinema Negro. Em
novembro, mês da Consciência Negra, a quinta edição da mostra destaca o tema “Música Religiosidade e Ontologia” e
busca a autonomia da afric

O que é o Cinema Negro? Qual foi sua motivação inicial para organizar uma mostra com esse
tema?
O Cinema Negro não é só uma questão de preocupação temática, pois existem demandas de sintaxe. No
livro Reflexões sobre o Racismo, Sartre estuda, entre outras coisas, os poetas negros das colônias
francesas. Ele sugere o seguinte: os poetas negros têm um discurso que é longo; e esse verso longo não
fere a linguagem poética, porque os negros têm o direito de ter um discurso longo, na medida em que
eles têm uma história longa.

Ao meu quase cego ver, esse fenômeno se repete em outras demandas artísticas e é possível localizar
no cinema que surge no início da década de 80 a valorização do primeiro plano na figura do negro. Nessa
época, alguns jovens cineastas do Brasil vão para a África, totalmente motivados pelo comportamento do
Glauber Rocha, quando ele faz o Leão de Sete Cabeças, rodado no Congo-Brazaville, com músicas da
Clementina de Jesus

O Glauber vai trabalhar com essa essência histórica dentro de um plexo cultural africano para sugerir que
o discurso irreverente de uma estética emergente se dá com a presença histórica africana. É possível
fazer uma observação fílmica — e não cinematográfica - em que o primeiro plano se coloca como um
elemento norteador das relações de planos. Percebemos este mesmo fenômeno, por exemplo, com Ari
Cândido, em Por que Eritréia?.

A gente vai percebendo que esta questão do primeiro plano é importante, porque quando você coloca no
centro aquele que foi desarticulado para a margem, você coloca a expressão de um resgate da sua
história. Então você tem, sim, uma sintaxe do Cinema Negro. O Cinema Negro é o cinema que mostra, na
estrutura do primeiro e do primeiríssimo plano, toda a expressão de conjunto cultural que traz relações do
ser africano, que é furtado num processo de massificação, na qual lhe é negada a sua condição humana.

Esse processo de retratar o negro de uma maneira positiva a partir da década de 80 ocorre
também no resto do mundo, ou é um fenômeno brasileiro?
Aqui no Brasil, o Cinema Negro aparece com o Cinema Novo, que nasce como crítica ao cinema dos
grandes estúdios. Mas o Cinema Novo é um fenômeno brasileiro, dentro de um ascenso cultural,
internacional, de uma estética que se contrapõe às redes de dominação. Então, na mesma época, nós
temos o Neo-realismo na Itália, a Nouvelle Vague na França e o Undergound nos Estados Unidos. A
maior expressão mundial do cinema negro é o Spike Lee, nos Estados Unidos.

Como está a produção do Cinema Negro hoje?


O Cinema Negro é muito novo, ele é uma estética emergente, que nasce no seio do Cinema Novo,
porque a estrutura que permitiu o nascedouro do cinema negro entre nós, brasileiros, foi o Cinema Novo
do Glauber. Barravento já é um testemunho do Cinema Negro. Mas nós temos esse ascenso na década
de 80, a partir de um acúmulo de outras experiências.

Na década de 70, nós tivemos o processo de descolonização da África, as lutas pelos direitos civis nos
Estados Unidos e, aqui no Brasil, surge o Movimento Negro Unificado. Evidentemente, o Movimento
Negro Unificado acabou sendo o grande elemento político de referência, tanto que os jovens realizadores
que fazem Cinema Negro passaram por ele. O Zózimo Bubul, o Ari Cândido, eu, todos nós passamos
pelo movimento, que conseguiu mostrar para o mundo que o Brasil não era o paraíso da democracia
racial.

Nessa perspectiva, o jovem negro já não se contentava mais de se ver discutido, ele passa a querer
pautar a discussão, ele quer ser o protagonista e o grande escritor. É este o momento em que, no início
da década de 80, esses jovens negros começam a pegar nas câmeras para escrever um Brasil a partir de
um olhar também africanista.

O cinema —pelo menos a obra de alguns diretores — teve este papel de trazer o negro para o
primeiro plano. E a televisão?
É evidente que os negros, os ibéricos, os ameríndios, os asiáticos não estão na TV, mas essa luta em
favor do direito à personalidade existe. O negro se sente torturado diante de uma televisão em que ele só
assiste ao outro e não consegue se ver. Nas poucas expressões —que são rarefeitas mesmo —, ele é
posto num processo de boçalidade, do inferior, do hilário, do desnaturado. Ele vai aparecer como o
excessivamente engraçado, como aquele que não é, que não ama.

É muito recente a presença das famílias negras na televisão. Quando o negro aparece numa novela, ele
não ama, não tem amigo, não tem mãe, não tem pai, não tem irmão, ele não vai à quitanda e, mais grave
que não ir à quitanda, é um personagem que não conhece o supermercado. Não conhecer o
supermercado numa sociedade degenerada significa você não andar, você estar preso. A liberdade de
uma sociedade degenerada, com relações meramente de mercado, é você consumir, porque quem vai
pautar a televisão é o mercado e só agora é que a gente começa a ouvir falar dos produtos étnicos.
Qual é o norte da Quinta Mostra Internacional do Cinema Negro?
A Quinta Mostra está vivendo um momento muito interessante. Nós fechamos um processo, porque nós
mostramos que ela veio para ficar, porque nós temos acúmulos que permitem que exista uma mostra. Os
filmes estão dialogando com outros. Por exemplo, nós já passamos Rio, Zona Norte, porque o Nelson
Pereira dos Santos, nesse filme, conta a história do Zé Ketti. Esse ano entra Doces Bárbaros, que fala do
encontro entre o Gil e o Caetano. Entra também o filme Partido Alto. Então, esse encontro, que é musical,
acontece agora num processo totalmente imagético.

Essa mostra tem uma costura, é o tempo que dialoga com o lugar. Essa possibilidade de o tempo dialogar
com o lugar é o alternativo, é o horizontal. Na sociedade de mercado, o tempo não dialoga com o lugar.
Quem tem história não tem lugar e quem tem lugar não tem história. A nossa mostra é diferente: nós não
estamos mais falando de uma resistência da cultura negra — nós estamos falando numa autonomia da
africanidade.

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