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MICHEL FOUCAULT A VERDADE E AS FORMAS JURIDICAS 3 edigio MAU (©Copyright 1973 by Deparaments de Leva da PUC Rio Aeditora utiliza aeads30 ea supesiio Final do teat cooedenada pelo Departamento de Lsran x PUC Rio para pubicagio nos Cader: da PUCHiono16, 1974, trad eliza por Rebert Cabral de Melo Macade Edward Jain Monies sper ial do texto fi wabalho| tke Edu Poe de Aen Nove, Cleanice Berardinelli, Roberto Basi, Vera ‘Maria Palmeie de Paulo, Kita Chabica Mastar, Maria Tra Hora Sampaio Fernandes Cape Drvga Ava Lopes CIP-BRASIL. Catogasio-ne-fone Sindicato Nasional dos Editors de Livros, I Fier Foucault, Michel, 1926-1984 ‘Aver eat fora uiicas/ Michel Foucault, (uadugo Rober Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Moras supevisio final do texto Léa Port de Are Novas. e¢ -].— Rio de Janczo = NAU Eto, 2002, 160p. Trad de: La wi t es formes juridiques Confess de Mickel Fouesult na PUC-Rio de 29 228 de mito de 1973 ISBN 85.85936-48-7 |. Dineito — Filosofia, Tilo 96.0291 cpu 3401 ego «1996 1 reimpreo + 1998 2wediio 19991 eimpresio «2000 2 empress» 2001 edigo « 2002 SAY) eliors Taepa Lda ‘Av Now Sen Eng Pao de Froatia — R} — CEP 26650.000 Tilefa: 21-2542 4272 — email nau@alernex.com br de Pima, 155 — Cento [io encontran een lira ped via fx ou ema ‘Esa obra foi compora pela Elnora Trarepa Leda ern Agramond empresa na {Grain Vous em mata de 2002 cm pelo se 0 gh pars. ils ape fare supreme 250 gn! pura ap 1. Conferéncia 1 TL Conferéncia 2 IL. Conferéncia3.. IV, Conferéncia 4. V. Conferéncia 5 VI. Mesa redonda Sumario 29 33 103 7 © que gostaria de dizerthes nestas conferéncias sto «coisas passivelmente inexatas, alas, errdneas, que apresentarci a titulo de hipétese de trabalho; hipéeese de trabalho para um trabalho futuro. Pedira, para tanto, sua indulgénciae, mais do «queisto, sua maldade. Ist ¢, ostaria muito que, aofim de cada conferéncia, me fizessem perguntas,crticas e objeges para que, na medida do possvel na medida em que meu espicito rio € ainda rigido demas, possa pouco a pouco adaptar-me a clas; e que possamos assim, a0 final dessas cinco conferéncias, «er fico, em conjunto, um trabalho ou eventualmentealgam progres. Apresentarei hoje uma reflexio. merodolégica para introduzir ese problema, que sob o titulo de A Verdede ¢ at Formas Juridicas, pode-thes parecer um tanto enigmstico. ‘Tentarei apresenta-Ihes 0 que no fundo é 0 ponto de conver- géncia de tés ou quateo séries de pesquisas existentes, jé exploradas,jéinvencariadas, para confronti-ls ereuni-las em una pide pags. no digo egal mas plo menos, Em primeiro lugar, uma pesquisa propriamente histé- rica, ou seja: como se puderam formar dominios de saber a partir de pritcas sciais? A questio é a seguinte: existe uma tendéncia que poderfamos chamar, um tanto ironicamente, de ‘marxismoacadémico, que consisteem procurarde que manciea as condigées econdmicas de exsténcia podem encontrar na consciéncia dos homens 0 seu rflexo ¢ expresso. Parece-me que ssa forma de ands, tradicional no marxismo univers to da Franga e da Europa, presenta um defeito muito grave: © de supor, no fundo, que o sujeito humano, o sujeito de conhecimento, as proprias formas do conhecimento sio de certo modo dads préva e definitivamente, eque as condigées ‘onémicas, sociais poitcas da existencia nao fazem mais do ‘que depositar-se ou imprimir-se neste sujito definitivamente dado. Meu objetivo sed mostrar-thes como as priticas socials podem chegar a engendrat dominio de saber que nfo somente fazem aparecer novos objetos, novos concetos, novasténicas, ‘mas também fazem nasez formas totalmente nova de sujiros ede sjetos de conhecimento. O préprio sujito de conheci- mento tem una histi, a reagao do sueito com 0 objeto, 04 mais claramente a propria verdade tem uma histria, ‘Assim, gostaria particularmente de mostrar como se pide formar, no século XIX, um certo saber do homem, da individualidae, do individuo normal ou anormal, dentro ou fora da rege, saber este que, na verdade, nasceu das pitas, socisis, das priticassocais do controle eda vgilanca. como, de certa manera, esse saber no se impos a um sujeto de conhecimento, no se propésa cle, nem seimprimiu nle, mas fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conheci- mento, Podemos dizer que histria dos dominios do saber em rclago com as pritcas socais, exclulda a preemingncia de um sujeito de conhecimento dado defniivamente, é um dos Primeros exos de pesquisa que agora Ihes proponho, (© segundo cixo de pesquisa é um eixo metodolégico, «que poderiamos chamar de andlise dos dscursos. Ainda aqui ‘existe, parece-me, em uma tradigio recente mas jéaceta nas universidades européias, uma tendéncia a eratar 0 discurso ‘como um conjunto de ftos linguisticos ligados entre si por regras sintéticas de construgio, Hi alguns anos foi original ¢ importante dizer ¢ mostrar que 0 que era feito com a linguagem — poesia, literatura, filosofia,discurso em geral — obedecia a um certo -iimero de les ou regularidades internas — as lise regulari- dades da inguagem. O cariter linguistic dos fatos de ingua- gem foi uma descoberta que teveimportinciaem determinada epoca etia entéo chegado 0 momento de considerar esses fatos de discurso, néo mais simplesmente sob seu aspecto| lingu‘stico, mas, de cera forma — ¢ aqui me inspito nas pesquisasrealizadas pelos anglo-americanos — como jogos (games), jogos estrarégicos, de ago e de reacio, de pergunta e de resposta, de dominacio ede esquiva, como também de uta, O discurso ¢ esse conjunto regular de fatos linguisticos em determinado nivel, polémicos eestratégicos em outro. Essa anise do discurso como jogo estraégicae polémico é,a mew ver, um segundo eixo de pesquisa. Enfim,oterceito eixo de pesquisa que lhes proponho, « que vai defini, por seu encontro com os dois primiros, 0 Ponto de convergéncia em que me stuo, consisteia em uma reelabora¢io da teoria do sujeito. Essa eora foi profundamen- te modifcada erenovada, a longo dos élkimos anos, por um ‘certo niimero de teorias ou, ainda mais sriamente, por um certo nimero de priticas, entre as quais € claro a psicandlise se situa em primeiro plano. A psicandlise foi ceramente a pritica a reoria que reavaliouda maneira mais fundamental 4 prioridade um tanto sagrada conferida 20 sujcto, que se estabeleceta no pensamento ocidental desde Descartes Ha dois ou és séculos, a flosofia ocidental postulava, explicia ou impliciamente, 0 sujeito como fundamento, como nico central de todo conhecimento, como aquilo em que a partie de que a liberdade se revelava ea verdade podia cxplodir. Ora, parece-me que a psicandlise pds em questo, de maneira enftica, essa posigo absoluta do sujeito. Mas se a psicaniliseo fez, em compensagio, no dominio do que pode- amos chamar teria do conhecimento, ou no da epistemolo- a, ou no da histria das ciéncias ou ainda no da histria das ideas, parece-me que a teoria do sujeito permaneceu ainda muito filoséfica, muito caresiana e kantiana, pois a0 nivel de _generaidadeem quemesituo, no ago, porenquanto, dferen- aentre as concepgées catesiana e kantiana ‘Acualmente, quando se faz historia — histria das idéias, do conhecimento ou simplesmente histéria — atemo- 1s a esse sujeiro de conhecimento, a este sujeto da represen- ‘aso, como ponto de origem a parte do qual oconhecimento é possvel ea verdade aparece. Seria interesante tentar ver como sli através istéra,aconsticuigio de um sueito que rio é dado definiivamente, que nio éaquiloa partir do quea vetdade sed nahistéria, mas de um sujeito quese constitu no interior mesmo da histia,e que € cada instante Fandado e refundado pela histéria. E na diesto desta critica radical do sujeto humano pela histéria que devemos nos dirgi. Para reromar mew pono de patida, podemos ver ‘como, em uma certa wadigio universitéia ou académica do rmarsismo, esta concepgio filosoficamente tradicional dosujei- tonto foiaindasustada, Ora, ameu versso€ que deve ser feito: Aconstiruigio hiseérica de um sujeito de conhecimento através de um discurso omado como um conjunto de estatégias que fazem parce das priticassociais. Esse ¢ 0 fundo teérico dos problemas que gostaria de levanta. Pareceume que entreas priticas sociaisem que andlise histrica peemite localizar a emergéncia de novas formas de subjetividade, as pritcasjuridicas, ou mais precsamente, as privicasjudicirias, estio entre as mais imporcantes, ‘A hipérese que gostria de propor é que, no fundo, hé dduas histérias da verdade, A primeira éuma espécie de historia interna da verdade, a histéria de uma verdade que se corte a partir de seus proprios prineipios de tegulacio: é histria da verdade tal como se faz na ou a partir da historia das ciéncias. or outro lado, parece-me que existem, na sociedad, ou pelo menos, em nossas sociedades, vitios outros lugares onde a verdade se forma, onde um certo niimero de regras de jogo sio definidas —rograsdejogo.apartirdas quais vernosnascerceras formas de subjetividade, certos dominios de objeto, certos tipos de saber — por conseguinte podemos,a partir dat fazer uma histéria externa, exterior, da verdade. ‘As pritica judicirias — a maneira pela qual, entre os homens, se atbitram os danos ea responsabilidades, 0 modo pelo qual, na hstéria do Ocidente, se concebeu ese defini 2 ‘mancira como os homens podiam ser julgados em funcio dos crros que haviam cometido, 2 maneira como se impos a determinadosindividuos areparacio de algumas de suas ages ea punigio de outras, todas esas tegras ou, se quiserem, todas sas priticas regulres & claro, mas também modificadas sem cessar através da historia — me parecem uma das formas plas ua nossa sociedade defini pos de subjetividade, Formas de saber e, por conseguinte,relagdes entre @ homem e a verdade aque merecem ser estudadas. 1 Eisai visio geral do rema que pretendo desenvolver: 3s formas uridicase, por conseguinte, sua evolugio no campo do direito penal como lugar de origem de um determinado rximero de formas de verdade. Tentarei mostrar-thes como cstrita das relagdes entre os conflitos de conhecimento ¢ as determinasies enonémico-politicas. 78 Naconferéncia anterior procurei mostrar quais foram os rmecanismose os efeitos da estatizagio da justiga penal na Idade Média. Gostaria que nos stuissemos, agora, em fins do séeulo XVIII cinicio do século XIX, no momento.em que sconstitui © que tentarei analisar nesta e na préxima conferéncia sob 0 some de “sociedade disciplinar’. A sociedade contemporinea, por razées que explcatei, merece o nome de “sociedade disci- plinar.” Gostaria de mostrar quais sio as formas de préticas penais que caracterizam essa sociedade; quais as relagées de poder subjacences a esss pritcas penais; quas as formas de saber, 0 tpos de conhecimento, 0s tipos de sujeito de conhe- cimento que emergem, que aparecem a partir no espago desta sociedade disciplinar que € a sociedade conterporsinea, ‘Aformagio da sociedade dsciplinar pode ser caracteriza~ dla pelo aparecimento, no final do século XVIII e inicio do século XIX, dedois fats contraditrios, ou melhor, de um fato {que tem dois aspectos, dos lados aparentemente contraditéri- ‘os: 2 reforma, a teorganizagao do sistema judicario e penal nos diferentes pases da Europa e do mundo. Esta tansformacio nfo apresenta as mesmas formas, a mesma amplitude, mesma cronologia nos diferentes paises ” [Na Inglaterra, por exemplo, as formas de justiga perma- neceram relativamente estaves, enquanto que o contetido das leis, conjunco de condutas penalmence repreensiveis se mo- dificou profundamence, No século XVIII havia na Inglaterra 313 ou 315 condutas capazes de levar alguém 3 forca, 20 cadafalso, 315 casos punides com a morte [sso tomava 0 cédigo penal, lei penal, o sistema penal inglés do século XVII uum dos mais selvagense sangrentos que a histria das civiliza- «Ges conheceu. Estasituagao foi profundamente modifcada no comego do séeulo XIX sem que as formas einstiuigées judici- fas inglesas se modificassem profundamente. Na Franga, 20 contriio, ocorreram modifcagBes muito profundas nas insti- tuigées penais sem que o contetido da lei penal se tenha modificado, Em que consistem essas transformagées dos sistemas penais? Por um lado em uma reelaboracio térica da ei penal Ela pode ser encontrada em Beccaria, Bentham, Brissot e em legisladores que sio os autores do 1° e do 2° Cédigo Penal francés da época revolucionatia (O principio fundamental do sistema te6rico da lei penal definido por eses autores é que o crime, no sentido penal do termo, ou, mais tenicamente, a infragio nio deve ter mais nenhuma rlacio com a falta moral ou relgiosa. A falta é uma infragio 3 lei natural, let religiosa, a lei mora. O crime ou a infiagio penal €a rupeura com a lei, lei civil explicitamente cstabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislative do poder politic. Para que haja infacio € preciso haver um poder politico, uma lei e que essa lei tenha sido efetivamente formulada, Antes da lei existr, no pode haver infragio. Segundo esses tebricos, sé podem sofrer penalidade ascondutas cletivamente definidas como repreensiveis pela lei 80 Um segundo principio é que ests leis postiva formula das pelo poder politico no interior de uma sociedade, para Serer boas leis, nd devem retanscreverem termos postivos a lei natural, a lei religiosa ou a lei moral. Uma lei penal deve simplesmente representar o que ¢ itil para a sociedade. A lei define como repreensivel o que é nocivo sociedade, definindo assim negativamente o que é Gt. ‘terceizo principio se deduz naturalmente dos dois primeiros: uma definigo clara simples do crime, Ocxime no € algo aparentado com o pecado e com a falta; €algo que danifica a sociedade; € um dano social, uma perturbacio, um incbmodo para toda a sociedade. Hi, por conseguinte, também, uma nova definigio do criminoso. O criminoso € aquele que danifica, percurba a sociedad. O criminoso ¢ 0 inimigo social. Encontramos isso muito claramente em todos esses te6ricos como também em Rousseau, que afirma que o criminoso é aquele que rompeu o pacto socal. Hi identidade entre o crime ea ruptura do pacto social. © criminoso é um inimigo interno. Esta idéia do criminoso como inimigo interno, como individuo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido, éumadefinigéo novaecapital nahistriada teoria do crime e da penalidade. Seo crime é um dano socal eo criminoso €o inimigo da sociedade, como a lei penal deve tratar esse criminoso ou deve reagir a esse crime? Se o crime é uma perturbagio para a sociedad; seo crime nfo tem mais nada aver com a falta, com ali natural, divina,rligiosa, etc. & claro que a lei penal nfo pode prescrever uma vinganga, a redencio de um pecado. Alei penal deve apenas permitirareparacio da perturbagio causada Asociedade. A lei penal deve ser feita de tal mancira que o dano at causado pelo individuosociedade sea apagados se isso no for possvel, ¢ preciso que o dano nio possa mais ser recomegado pelo individuo em questio ou por outro. A lei penal deve reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser

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