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4.1. Introdução
Uma primeira referência a integrais de funções complexas e a algumas das suas
aplicações aparece num trabalho de L. Euler apresentado à Academia das Ciências de S.
Petersburgo em 1777, embora sem tornar rigorosa a definição do integral nem mencionar
que se trata de integrais sobre caminhos no plano complexo. Na verdade, a identificação
dos números complexos com pontos de um plano ainda não se encontrava disponível
nessa altura.
A primeira menção a uma noção rigorosa de integrais de funções complexas sobre
caminhos aparece numa carta enviada por C. Gauss a F.W. Bessel em 1811. A mesma
carta refere um resultado de independência do integral em relação a caminhos de
integração com as mesmas extremidades. Estes resultados nunca foram publicados, mas
Gauss usou integrais complexos em 1816 numa das suas demonstrações do célebre
Teorema Fundamental da Álgebra que é considerado em detalhe no capítulo seguinte.
Em 1814, A.L. Cauchy apresentou à Academia das Ciências de Paris uma memória
que referia integrais de funções complexas de forma análoga à de L. Euler em 1777. Esta
memória só foi publicada em 1825 e nessa altura incluía uma nota, adicionada por
Cauchy em 1822, onde se referia que os integrais sobre a fronteira de um rectângulo de
lados paralelos aos eixos coordenados são nulos para funções complexas continuamente
diferenciáveis no fecho do rectângulo. Este resultado, que nas condições referidas pode
ser obtido do Teorema de Green1 para funções reais definidas em conjuntos de ℝ 2 (ver
secção 4.4), é um caso particular do célebre Teorema de Cauchy, embora com a hipótese
excessivamente forte de continuidade das derivadas da função integranda.
47
48 Integrais de funções complexas
função holomorfa num conjunto de pontos fora de uma curva fechada em termos de
integrais que envolvem apenas os valores da função sobre essa curva. Para o caso de
circunferências, esta fórmula foi estabelecida em 1831 pelo próprio Cauchy, numa
memória dedicada à mecânica celeste. Uma consequência da Fórmula de Cauchy é a
Propriedade de Valor Médio de funções holomorfas que estabelece a igualdade do valor
de uma função no centro de um círculo fechado onde é holomorfa à média dos seus
valores na fronteira do círculo.
A Fórmula de Cauchy envolve a consideração do sentido e do número de voltas
que um caminho percorre em torno de um ponto, o que é expresso em termos da noção
de índice, ou número de rotação, de um caminho em relação a um ponto. Esta noção foi
introduzida por L. Kronecker4 em 1869 e redescoberta mais tarde por H. Poincaré que
não a conhecia dos trabalhos de Kronecker. É conveniente saber que estes índices são
invariantes sob deformações contínuas dos caminhos na região complementar ao ponto
considerado, ideia que é tornada rigorosa com a noção de homotopia entre caminhos
introduzida por C. Jordan5 em 1866 e desenvolvida por H. Poincaré6, passando a
constituir um dos elementos de base da Topologia Algébrica.
γ
3
γ γ1
−γ γ
γ
4
π γ
= ∫ [u ( X (t ), Y (t ) ) X ′(t ) − v( X (t ), Y (t ) )Y ′(t )] dt
b
Portanto, o integral tem partes real e imaginária dadas por integrais de linha em ℝ 2
calculados sobre o caminho α : [a, b] → ℝ 2 , com α (t ) = ( X (t ), Y (t )) ,
(4.1) ∫γ f ( z ) dz = ∫ u dx − v dy + i ∫ v dx + u dy = ∫ (u,−v) ⋅ dα + i ∫ (v, u) ⋅ dα .
Tal como para caminhos em ℝ 2 , dois caminhos em ℂ, γ 1 : [a1 , b1 ] → ℂ e
γ 2 : [a 2 , b2 ] → ℂ, dizem-se equivalentes se diferem apenas por uma reparametrização
que preserva o sentido, isto é, se existe uma bijecção continuamente diferenciável
ϕ : [a 2 , b2 ] → [a1 ,b1 ] , com ϕ ′ > 0 em todos os pontos, tal que γ 2 = γ 1 οϕ . Os integrais
de funções complexas são invariantes sob reparametrizações, isto é, os integrais sobre
caminhos equivalentes são iguais.
Obtêm-se facilmente propriedades gerais destes integrais a partir das propriedades
de integrais de funções reais de variável real. Contudo, convém chamar a atenção para as
quatro propriedades seguintes:
1) Linearidade do integral
∫γ (c f + c 2 f 2 )( z) dz = c1 ∫ f 1 ( z ) dz + c 2 ∫ f 2 ( z ) dz , com c1 , c 2 ∈ ℂ .
1 1 γ γ
∫ γ f ( z ) dz = −∫γ f ( z) dz ,
−
7 Esta noção de comprimento foi adoptada em 1866, por Jean Marie Duhamel (1797-1872), na sequência
de uma definição semelhante de Enno Heeren Dirksen (1788-1850) em 1833.
8 O leitor pode usar o integral de Cauchy, Riemann ou Lebesgue, conforme prefira. Naturalmente, os
caminhos que podem ser considerados e as funções integráveis são diferentes nos três casos, mas tal é, em
geral, indiferente para os resultados que vamos considerar, visto que, em geral, as funções a integrar são
contínuas e podem-se usar caminhos regulares, seccionalmente regulares ou rectificáveis, conforme a
noção de integral adoptada. Para funções limitadas, ou funções ilimitadas sem mudança de sinal, o
conjunto das funções integráveis é consideravelmente mais amplo para o integral de Lebesgue do que para
o de Riemann. O conjunto das funções integráveis também é mais amplo para este integral do que para o
integral de Cauchy, para o qual só são integráveis as funções contínuas.
52 Integrais de funções complexas
∫γ 1 +γ 2
f ( z ) dz = ∫ f ( z ) dz + ∫ f ( z ) dz ,
γ1 γ2
∫γ f ( z ) dz = F (γ (b)) − F (γ (a)) .
Se o caminho γ é fechado, então
∫γ f ( z ) dz = 0 .
Dem. Seja {a 0 , Κ , a n } uma partição do intervalo [a, b] tal que a restrição de γ a cada um
dos subintervalos [a k −1 , a k ] , k = 1, 2, Κ , n , é regular. Como F é uma primitiva de f em
A continuidade de f garante, então, que qualquer que seja ε > 0 existe δ > 0 tal que
| f ( z ) − f ( z 0 ) |< ε desde que | z − z 0 |< δ . Portanto,
F ( z) − F ( z0 ) 1
− f ( z0 ) ≤ z − z 0 ε = ε , para | z − z 0 |< δ ,
z − z0 z − z0
pelo que f = F′ e F ∈ H (Ω) , o que mostra que F é uma primitiva de f em Ω . Q.E.D.
Ω
γ
1
−αz
αz
γ z
2
α z0 βz
a z0
−γ
2
O valor absoluto de pelo menos um dos integrais na direita é maior ou igual a | J / 4| . Seja
∆1 um dos quatro triângulos com esta propriedade. Repetindo o argumento com ∆1 no
lugar de ∆ , e assim sucessivamente, obtém-se uma sucessão de triângulos ∆ n tal que
∆ ⊃ ∆1 ⊃ ∆ 2 ⊃ Κ , existe um único ponto z 0 ∈ ∩ ∞n =1 ∆ n , o comprimento de ∂∆ n é L 2 − n ,
onde L é o comprimento de ∂∆ , e verifica-se
| J |≤ 4n ∫
∂∆ n
f ( z ) dz , para n ∈ ℕ .
11 Ver-se-á mais tarde que estas funções são necessariamente holomorfas em todo o conjunto Ω , mas a
demonstração nas presentes condições é usada na prova da Fórmula de Cauchy que se apresenta neste
capítulo.
56 Integrais de funções complexas
Como f é holomorfa em ∆ , qualquer que seja ε > 0 existe r > 0 tal que
f ( z ) − f ( z 0 ) − f ′( z 0 )( z − z 0 ) ≤ ε | z − z 0 | , para z ∈ Br ( z 0 ) .
Para n suficientemente grande tem-se ∆n ⊂ Br (z0 ) e | z − z0 |< L2−n , para todo z ∈ ∆n . Como
∫
∂∆ n
f ( z ) dz = ∫
∂∆ n
[ f ( z ) − f ( z 0 ) − f ′( z 0 )( z − z 0 )] dz
Portanto, para n ∈ ℕ suficientemente grande verifica-se
| J | ≤ 4 n ∫∂∆ n f ( z ) dz ≤ 4 n ε (L2 − n ) 2 = ε L2 .
Como ε > 0 é arbitrário, segue-se que J = 0 se p ∉ ∆ , como se pretendia provar.
Supõe-se agora que p é um vértice de ∆ , sem perda de generalidade p = a .
Observe-se que o integral sobre ∂∆ é a soma dos integrais sobre as fronteiras dos
triângulos de vértices ordenados (a, x, y ) , ( x, b, y ) , (b, c, y ) , onde x e y são,
respectivamente, pontos dos lados ab e ca do triângulo ∆ (Figura 4.9). Os integrais
sobre as fronteiras dos dois últimos triângulos são nulos em resultado da aplicação do
caso já demonstrado, em que p não pertence ao triângulo sobre o qual se considera a
integração. Portanto, o integral sobre ∂∆ é igual ao integral sobre o triângulo de vértices
(a, x, y ) . Como o perímetro deste triângulo pode ser tomado arbitrariamente pequeno à
custa de tomar os pontos x e y suficientemente próximos do ponto a , e a função f é
contínua neste ponto, logo limitada numa sua vizinhança, também se obtém para este
caso ∫ f ( z ) dz = 0 .
∂∆
Finalmente, se p é um ponto arbitrário no triângulo ∆ , pode-se aplicar o resultado
precedente aos triângulos de vértices ordenados (a, b, p ) , (b, c, p ) , (c, a, p ) (Figura
4.10), pelo que também neste caso se obtém ∫ f ( z ) dz = 0 . Q.E.D.
∂∆
b b b
p
a’
c’
x p
c c c
y
a b’ p=a a
Figura 4.8 Figura 4.9 Figura 4.10
O resultado seguinte estabelece a existência de primitivas (locais) de funções
contínuas em conjuntos convexos onde são holomorfas excepto possivelmente num
ponto.
Ω
αz a
z
βz αz 0
z0
Esta situação engloba conjuntos que não são convexos, mas o facto de exigir que f é C 1
é excessivamente forte, pelo que se prefere generalizar para um resultado global a
formulação local em conjuntos convexos anterior, como é feito no capítulo 7. De
qualquer modo, este resultado estabelecido com base no Teorema de Green tem a
vantagem de tornar directamente visível a ligação entre a anulação dos integrais sobre
caminhos fechados e as equações de Cauchy-Riemann e, portanto, evidencia que a
anulação dos integrais sobre caminhos fechados é uma expressão integral das restrições
impostas pela diferenciabilidade de funções complexas. Do ponto de vista histórico, é de
assinalar que todas as versões do Teorema de Cauchy consideradas desde a primeira
proposta em 1822 até 1900 consideravam a hipótese adicional de f ser C 1 . Só em 1900,
com a contribuição de Goursat, é que esta hipótese pôde ser dispensada.
Com base no Teorema de Cauchy local em conjuntos convexos é possível
estabelecer a Fórmula de Cauchy, a qual dá os valores de uma função holomorfa num
conjunto de pontos fora de uma curva fechada seccionalmente regular em termos de
integrais que envolvem apenas os valores da função sobre essa curva. Como os valores
destes integrais dependem do sentido e do número de voltas em que o caminho percorre a
curva, é necessário tornar precisa e quantificar esta dependência. Para isso, introduz-se
na secção seguinte o índice ou número de rotação de um caminho fechado
seccionalmente regular em relação a um ponto fora da curva que ele descreve.
12 Um domínio regular com cantos D ⊂ ℝ2 é um conjunto aberto que é o interior do seu fecho cuja
fronteira é uma curva seccionalmente regular fechada. O Teorema da Curva de Jordan assegura que toda a
curva de Jordan separa o plano em dois conjuntos conexos abertos, um ilimitado e outro limitado, e pode-
se mostrar que este conjunto limitado é um domínio regular cuja fronteira é a curva de Jordan considerada.
A existência de pelo menos duas componentes conexas no complementar de uma curva de Jordan
seccionalmente regular em que uma e só uma delas é ilimitada é uma consequência dos resultados da
secção seguinte, mas a parte mais difícil é que só há uma componente conexa limitada. Embora o Teorema
da Curva de Jordan não seja explicitamente usado nos vários capítulos deste texto, dá-se uma
demonstração deste importante resultado no apêndice III.
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 59
(4.10) Proposição: Seja γ o caminho regular que dá n voltas com sentido positivo na
circunferência de raio r > 0 e centro no ponto a ∈ ℂ definido por γ : [0, 2π n] → ℂ com
γ (θ ) = a + r e iθ . Então
n , se z ∈ Br (a)
Ind γ ( z ) =
0 , se z ∉ Br (a) .
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 61
γ γ
1 2
σ1
σ2
13 Tal como é usual, considera-se uma relação de equivalência num conjunto uma relação binária nesse
conjunto com as três propriedades: reflexividade, simetria e transitividade.
62 Integrais de funções complexas
Dem. Seja γ1, γ 2 : [a, b] → Ω . Sabe-se que os integrais de funções complexas (u, v) = f sobre
caminhos γ j têm partes real e imaginária dadas por integrais de linha em ℝ 2 , na forma
∫γ j
f ( w) dw = ∫ (u,−v) ⋅ dα j + i ∫ (v, u ) ⋅ dα j ,
∫ (u,−v) ⋅ dα = ∫ (u,−v) ⋅ dα
1 2 e ∫ (v,u) ⋅ dα = ∫ (v,u) ⋅ dα
1 2 , pelo que ∫γ
1
f (w) dw= ∫ f (w) dw.
γ2
14 Para detalhes pode ser consultado, por exemplo, o livro do autor com título Integrais em Variedades e
Aplicações, referido na bibliografia final.
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 63
de onde
1 f ( w)
2π i ∫γ w− z
dw = f ( z ) . Ind γ (z ) . Q.E.D.
A Fórmula de Cauchy é uma outra expressão integral das fortes restrições impostas
pela diferenciabilidade de funções complexas, dado que, nas condições do teorema
anterior, se obtêm os valores de f em todos os pontos de um conjunto onde é holomorfa
fora de um caminho fechado seccionalmente regular γ e Ind γ ( z ) ≠ 0 apenas em função
dos valores de f na curva γ * e dos valores de Ind γ . Em particular, os valores de uma
função complexa f numa curva γ * (um conjunto de medida nula no plano) num
conjunto convexo Ω onde é holomorfa determinam os valores de f em todas as
componentes conexas de Ω \ γ * onde Ind γ ≠ 0 .
Uma consequência útil do teorema anterior é que o valor de uma função no centro
de um círculo fechado onde é holomorfa é igual à média dos seus valores na fronteira do
círculo.
Mais uma vez, verifica-se da propriedade de valor médio que os valores de funções
holomorfas satisfazem fortes restrições de interligação. Veremos no capítulo 9 que as
funções complexas contínuas que satisfazem a propriedade de valor médio em todos os
círculos fechados contidos num conjunto aberto Ω ⊂ ℂ são necessariamente holomorfas,
pelo que esta propriedade para funções complexas contínuas caracteriza as funções
holomorfas.
Exercícios
4.1. Com ( x, y ) = z ∈ ℂ, calcule ∫γ x dz , onde γ é um caminho regular simples que percorre:
a) o segmento de recta orientado de 0 a 1 + i ,
b) a circunferência de raio r > 0 e centro na origem no sentido positivo (calcule de duas formas:
directamente e observando que x = ( z + z ) / 2 = ( z + r 2 / z ) / 2 na circunferência).
4.2. Com ( x, y ) = z ∈ ℂ, calcule ∫γ x dz , onde γ circunferência de raio r > 0 e centro na origem no
sentido positivo.
4.3. Calcule ∫γ dz /( z 2 − 1) , onde γ é um caminho regular simples que percorre circunferência de centro
na origem e raio r ∈ [0,+∞[ \ {1} .
4.4. Calcule uma primitiva da função complexa f ( x + iy ) = 2 x (1 − y ) + i ( x 2 + 2 y − y 2 ) , com x, y ∈ ℝ.
4.5. Mostre que ∫γ f ( z ) f ′( z ) dz é um imaginário puro, para todo o caminho fechado seccionalmente
regular γ e toda a função f C 1 numa região que contém γ * .
4.6. Mostre que ∫γ f ′( z ) / f ( z ) dz = 0 , para todo o caminho fechado seccionalmente regular γ numa
região onde a função f é C 1 e satisfaz | f − 1 |< 1 .
4.7. Descreva condições em que se verifica ∫γ ln z dz = 0 .
4.8. Calcule os integrais seguintes, onde γ r é um caminho regular simples que percorre circunferência de
raio r > 0 e centro na origem:
a) ∫γ 1
e z / z dz , b) ∫γ 2
1 /(1 + z 2 ) dz , c) ∫γ 1
e z / z n dz , d) ∫γ 1
sin z / z 3 dz , e) ∫γ 1
sin z / z dz .