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Capítulo 4

Integrais de funções complexas

4.1. Introdução
Uma primeira referência a integrais de funções complexas e a algumas das suas
aplicações aparece num trabalho de L. Euler apresentado à Academia das Ciências de S.
Petersburgo em 1777, embora sem tornar rigorosa a definição do integral nem mencionar
que se trata de integrais sobre caminhos no plano complexo. Na verdade, a identificação
dos números complexos com pontos de um plano ainda não se encontrava disponível
nessa altura.
A primeira menção a uma noção rigorosa de integrais de funções complexas sobre
caminhos aparece numa carta enviada por C. Gauss a F.W. Bessel em 1811. A mesma
carta refere um resultado de independência do integral em relação a caminhos de
integração com as mesmas extremidades. Estes resultados nunca foram publicados, mas
Gauss usou integrais complexos em 1816 numa das suas demonstrações do célebre
Teorema Fundamental da Álgebra que é considerado em detalhe no capítulo seguinte.
Em 1814, A.L. Cauchy apresentou à Academia das Ciências de Paris uma memória
que referia integrais de funções complexas de forma análoga à de L. Euler em 1777. Esta
memória só foi publicada em 1825 e nessa altura incluía uma nota, adicionada por
Cauchy em 1822, onde se referia que os integrais sobre a fronteira de um rectângulo de
lados paralelos aos eixos coordenados são nulos para funções complexas continuamente
diferenciáveis no fecho do rectângulo. Este resultado, que nas condições referidas pode
ser obtido do Teorema de Green1 para funções reais definidas em conjuntos de ℝ 2 (ver
secção 4.4), é um caso particular do célebre Teorema de Cauchy, embora com a hipótese
excessivamente forte de continuidade das derivadas da função integranda.

1 George Green (1793-1841).

47
48 Integrais de funções complexas

É de notar que a definição rigorosa de integral, mesmo no caso de funções reais


contínuas num intervalo limitado e fechado, só apareceu em 1823, também pela mão de
Cauchy. Em 1854, B. Riemann estendeu esta noção de integral a funções reais limitadas
num intervalo limitado e fechado sem a exigência de continuidade e, em 1902, H.
Lebesgue2 estendeu de forma geral o conceito de integral de funções reais na sua tese de
doutoramento com o título Intégrale, Longeur, Aire.
O Teorema de Cauchy estabelece que integrais de funções holomorfas num
conjunto sobre caminhos fechados nesse conjunto são nulos, sob certas condições
topológicas ou geométricas relativas ao conjunto e aos caminhos γ considerados. Note-
se que esta propriedade é equivalente à igualdade dos integrais entre qualquer par
ordenado de pontos da curva fechada γ * sobre os diferentes caminhos que unem os
pontos ao longo da curva γ * . Em consequência, a validade do Teorema de Cauchy para
os caminhos fechados de um certo conjunto é equivalente à invariância do integral em
classes de caminhos com as mesmas extremidades que se obtêm uns dos outros por
deformações contínuas realizadas sem deixar o conjunto e, portanto, à propriedade
referida na carta de Gauss a Bessel acima mencionada. É, aliás, esta propriedade que
Cauchy estabelece na Mémoire sur les intégrales définies prises entre des limites
imaginaires, também publicada em 1825, para caminhos bem mais gerais do que as
fronteiras de rectângulos mas também com a hipótese de continuidade das derivadas das
funções integrandas. O mesmo trabalho também incluiu uma definição rigorosa de
integrais complexos que, embora correspondam aos integrais sobre caminhos, são aí
definidos sem qualquer referência geométrica. Na verdade, Cauchy considera-os
relativamente a funções auxiliares que se viu forçado a introduzir para poder tornar
consistente a definição de integral. Aliás, parece claro que Cauchy desconhecia na altura
a própria interpretação geométrica dos números complexos como pontos de um plano,
que foi estabelecida mais tarde num artigo de C. Gauss publicado em 1831.
Em 1900, E. Goursat3 provou uma versão do Teorema de Cauchy sem exigir a
hipótese de continuidade da derivada da função integranda e abriu o caminho para
estabelecer que as derivadas de funções holomorfas num conjunto aberto arbitrário são
sempre indefinidamente diferenciáveis. Portanto, basta existir a primeira derivada de
uma função complexa num tal conjunto para existirem nesse conjunto todas as derivadas
de ordem superior, e, em consequência, para que a função seja indefinidamente
continuamente diferenciável. Uma outra consequência interessante é que a existência de
primitiva de uma função complexa contínua num conjunto aberto implica que esta
função é holomorfa e, portanto, indefinidamente continuamente diferenciável.
Neste capítulo estabelece-se o Teorema de Cauchy localmente em conjuntos
convexos e no capítulo 7 estabelece-se uma versão global deste teorema. Com base no
Teorema de Cauchy é possível obter a Fórmula de Cauchy, a qual dá os valores de uma

2 Henri Lebesgue (1875-1941).


3 Édouard Goursat (1850-1936).
4.2. Integrais sobre caminhos 49

função holomorfa num conjunto de pontos fora de uma curva fechada em termos de
integrais que envolvem apenas os valores da função sobre essa curva. Para o caso de
circunferências, esta fórmula foi estabelecida em 1831 pelo próprio Cauchy, numa
memória dedicada à mecânica celeste. Uma consequência da Fórmula de Cauchy é a
Propriedade de Valor Médio de funções holomorfas que estabelece a igualdade do valor
de uma função no centro de um círculo fechado onde é holomorfa à média dos seus
valores na fronteira do círculo.
A Fórmula de Cauchy envolve a consideração do sentido e do número de voltas
que um caminho percorre em torno de um ponto, o que é expresso em termos da noção
de índice, ou número de rotação, de um caminho em relação a um ponto. Esta noção foi
introduzida por L. Kronecker4 em 1869 e redescoberta mais tarde por H. Poincaré que
não a conhecia dos trabalhos de Kronecker. É conveniente saber que estes índices são
invariantes sob deformações contínuas dos caminhos na região complementar ao ponto
considerado, ideia que é tornada rigorosa com a noção de homotopia entre caminhos
introduzida por C. Jordan5 em 1866 e desenvolvida por H. Poincaré6, passando a
constituir um dos elementos de base da Topologia Algébrica.

4.2. Integrais sobre caminhos


As noções de caminho em ℂ e em ℝ 2 são idênticas, pelo que há apenas que
clarificar e relembrar a terminologia e a notação adoptadas. Tal como para subconjuntos
de ℝ 2 um caminho em S ⊂ ℂ é uma função contínua γ de um intervalo limitado e
fechado de ℝ em S . Uma curva em S é um subconjunto de S que é o contradomínio
de um caminho γ em S , designado por γ * . Diz-se que γ representa ou percorre a
curva γ * e que esta curva corresponde ao caminho γ .

γ
3
γ γ1

−γ γ
γ
4

Figura 4.1: Simétrico de um caminho Figura 4.2: Concatenação de caminhos


O simétrico de um caminho γ : [a, b] → ℂ é o caminho − γ , definido em [a, b]
por (−γ )(t ) = γ (b − (t − a )) , que representa a mesma curva mas em sentido contrário
(Figura 4.1). Chama-se concatenação dos caminhos γ 1 , γ 2 ,Κ , γ n , cada um com ponto
final igual ao ponto inicial do seguinte, ao caminho γ = γ 1 + γ 2 + Λ + γ n que percorre
sucessivamente as curvas correspondentes pela ordem indicada, γ : [a, b] → ℂ tal que,

4 Leopold Kronecker (1823-1891).


5 Camille Jordan (1838-1922).
6 Henri Poincaré (1854-1912).
50 Integrais de funções complexas

sendo [a k , bk ] os domínios dos caminhos γ k para k = 1, Κ , n , verifica-se a = t 0 = a1 ,


b = t n , com t j = a1 + ∑k =1 (bk − a k ) para j = 1, 2, Κ , n , e a restrição de γ a cada um dos
j

intervalos [ t j −1 , t j ] é o caminho t α γ j (t − t j −1 + a j ) para j = 1, 2,Κ , n (Figura 4.2).


Um caminho regular é um caminho C 1 com derivada diferente de zero em todos
os pontos. Diz-se que um caminho é seccionalmente regular se existe uma partição do
seu domínio num número finito de subintervalos tal que a restrição do caminho a cada
um dos subintervalos fechados definidos pela partição é um caminho regular.

Figura 4.3: Caminhos fechados Figura 4.4: Curva de Jordan


Um caminho fechado é um caminho γ : [a, b] → ℂ com γ (a ) = γ (b) (Figura 4.3).
Diz-se que um caminho que não é fechado é um caminho simples se é uma função
injectiva, e diz-se que um caminho fechado γ é um caminho simples se é uma função
injectiva no intervalo semifechado obtido excluindo um dos extremos do intervalo do
domínio de γ . A um caminho fechado simples chama-se caminho de Jordan e diz-se
que a curva correspondente é uma curva de Jordan (Figura 4.4).

π γ

Figura 4.5: Caminho poligonal inscrito num caminho


Um caminho poligonal é uma concatenação π = γ 1 + Λ + γ n de um número finito
de caminhos regulares simples que descrevem segmentos de recta. O comprimento do
caminho poligonal π é a soma dos comprimentos dos segmentos de recta que o
compõem, mais precisamente, se os domínios dos caminhos γ k são os intervalos [a k , bk ]
para k = 1,Κ , n , o comprimento de π é Lπ = ∑k =1| π (bk ) −π (ak ) | . Um caminho poligonal
n

inscrito num caminho γ é um caminho poligonal π = γ 1 + Λ + γ n tal que as


extremidades dos caminhos regulares simples γ k que descrevem segmentos de recta,
consideradas na ordem k = 1, Κ , n , são pontos da curva γ * , ordenados de acordo com o
sentido de percurso do caminho γ . Um caminho γ é rectificável se o conjunto dos
comprimentos de todos os caminhos poligonais inscritos no caminho é majorado e
4.2. Integrais sobre caminhos 51

chama-se ao supremo deste conjunto comprimento do caminho7 γ , o qual se designa


por Lγ . Se um caminho γ : [a, b] → ℂ é seccionalmente regular, então é rectificável e o
b
seu comprimento é Lγ = ∫ | γ ′(t ) | dt , mas há caminhos rectificáveis que não são
a
seccionalmente regulares.
Se γ : [a, b] → ℂ é um caminho, γ * a correspondente curva e f uma função
complexa definida em γ * , define-se o integral de f sobre o caminho γ por

f = ∫ f ( z ) dz = ∫ f (γ (t ) )γ ′(t ) dt = ∫ Re ( f (γ (t ) )γ ′(t ) ) dt + i Im ( f (γ (t ) )γ ′(t ) ) dt


b b b
∫γ γ a a ∫a

quando os integrais das funções reais no lado direito da fórmula existem8.


Com ( X (t ), Y (t )) = γ (t ) e (u, v) = f , obtém-se

f ( z ) dz = ∫ [u ( X (t ), Y (t) ) + i v( X (t ), Y (t ) )] [ X ′(t ) + i Y ′(t )] dt


b
∫γ a

= ∫ [u ( X (t ), Y (t ) ) X ′(t ) − v( X (t ), Y (t ) )Y ′(t )] dt
b

[v( X (t ), Y (t ) ) X ′(t ) + u ( X (t ), Y (t ) )Y ′(t )] dt .


b
+i ∫
a

Portanto, o integral tem partes real e imaginária dadas por integrais de linha em ℝ 2
calculados sobre o caminho α : [a, b] → ℝ 2 , com α (t ) = ( X (t ), Y (t )) ,
(4.1) ∫γ f ( z ) dz = ∫ u dx − v dy + i ∫ v dx + u dy = ∫ (u,−v) ⋅ dα + i ∫ (v, u) ⋅ dα .
Tal como para caminhos em ℝ 2 , dois caminhos em ℂ, γ 1 : [a1 , b1 ] → ℂ e
γ 2 : [a 2 , b2 ] → ℂ, dizem-se equivalentes se diferem apenas por uma reparametrização
que preserva o sentido, isto é, se existe uma bijecção continuamente diferenciável
ϕ : [a 2 , b2 ] → [a1 ,b1 ] , com ϕ ′ > 0 em todos os pontos, tal que γ 2 = γ 1 οϕ . Os integrais
de funções complexas são invariantes sob reparametrizações, isto é, os integrais sobre
caminhos equivalentes são iguais.
Obtêm-se facilmente propriedades gerais destes integrais a partir das propriedades
de integrais de funções reais de variável real. Contudo, convém chamar a atenção para as
quatro propriedades seguintes:
1) Linearidade do integral

∫γ (c f + c 2 f 2 )( z) dz = c1 ∫ f 1 ( z ) dz + c 2 ∫ f 2 ( z ) dz , com c1 , c 2 ∈ ℂ .
1 1 γ γ

2) Simetria do integral de caminhos simétricos

∫ γ f ( z ) dz = −∫γ f ( z) dz ,

7 Esta noção de comprimento foi adoptada em 1866, por Jean Marie Duhamel (1797-1872), na sequência
de uma definição semelhante de Enno Heeren Dirksen (1788-1850) em 1833.
8 O leitor pode usar o integral de Cauchy, Riemann ou Lebesgue, conforme prefira. Naturalmente, os
caminhos que podem ser considerados e as funções integráveis são diferentes nos três casos, mas tal é, em
geral, indiferente para os resultados que vamos considerar, visto que, em geral, as funções a integrar são
contínuas e podem-se usar caminhos regulares, seccionalmente regulares ou rectificáveis, conforme a
noção de integral adoptada. Para funções limitadas, ou funções ilimitadas sem mudança de sinal, o
conjunto das funções integráveis é consideravelmente mais amplo para o integral de Lebesgue do que para
o de Riemann. O conjunto das funções integráveis também é mais amplo para este integral do que para o
integral de Cauchy, para o qual só são integráveis as funções contínuas.
52 Integrais de funções complexas

3) Aditividade do integral em relação à concatenação de caminhos

∫γ 1 +γ 2
f ( z ) dz = ∫ f ( z ) dz + ∫ f ( z ) dz ,
γ1 γ2

4) Majoração do integral de funções limitadas


b
∫γ f ( z ) dz ≤ f ∞ a ∫ γ ′(t ) dt = f ∞
Lγ ,
onde f ∞
é o supremo de | f | em γ * e Lγ é o comprimento do caminho γ .

4.3. Primitivas de funções complexas


Diz-se que uma função F é uma primitiva de uma função f num conjunto aberto
Ω ⊂ ℂ se F ∈ H (Ω) e F ′ = f em Ω . É claro que todas as funções que se obtêm
somando constantes a uma primitiva de uma função f também são primitivas de f . Em
regiões de ℂ a recíproca também é verdadeira.

(4.2) Teorema: Se F é uma primitiva de uma função f numa região Ω ⊂ ℂ, então o


conjunto de todas as primitivas de f é o conjunto das funções que se obtêm de F
adicionando-lhe constantes.
Dem. Já se viu que qualquer função obtida de F por adição de uma constante é uma
primitiva de f em Ω . Supõe-se agora que F1 e F2 são primitivas de f em Ω . Então a
função G = F1 − F2 é holomorfa e satisfaz G ′ = 0 em Ω . Resulta do teorema (3.12) que
G é constante em Ω , pelo que a diferença de duas primitivas de f em Ω é
necessariamente constante neste conjunto. Q.E.D.

Quando se conhece uma primitiva de uma função f num conjunto aberto Ω ⊂ ℂ,


os integrais sobre caminhos neste conjunto podem ser simplesmente calculados pelas
diferenças dos valores da primitiva nos extremos dos caminhos, como no caso da regra
de Barrow9 para funções reais.

(4.3) Teorema: Seja Ω ⊂ ℂ, f uma função contínua em Ω com primitiva F neste


conjunto e γ : [a, b] → ℂ um caminho seccionalmente regular10 em Ω . Então

∫γ f ( z ) dz = F (γ (b)) − F (γ (a)) .
Se o caminho γ é fechado, então
∫γ f ( z ) dz = 0 .
Dem. Seja {a 0 , Κ , a n } uma partição do intervalo [a, b] tal que a restrição de γ a cada um
dos subintervalos [a k −1 , a k ] , k = 1, 2, Κ , n , é regular. Como F é uma primitiva de f em

9 Isaac Barrow (1630-1677).


10 Com integrais de Cauchy o resultado é válido para caminhos regulares e com integrais de Lebesgue para
caminhos rectificáveis. O mesmo acontece para a generalidade dos resultados seguintes que envolvem
integrais de funções contínuas em caminhos seccionalmente regulares.
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 53

Ω , verifica-se F ′ = f em Ω , e dado que f é contínua em Ω resulta que F é


continuamente diferenciável em Ω . Da regra da derivação da função composta e da regra
de Barrow para funções reais obtém-se
F ′( z ) dz = ∫ F ′(γ (t ) )γ ′(t ) dt = ∫ ( F ογ )′
b b
∫γ a a
n n
( F ογ )′ = ∑ [F (γ (a k ) ) − F (γ (a k −1 ) )] = F (γ (b) ) − F (γ (a ) ) .
ak
= ∑∫
a k −1
k =1 k =1

Se γ é fechado verifica-se γ (b) = γ (a ) , pelo que, nas condições indicadas, a fórmula


precedente dá ∫ F ′( z ) dz = 0 . Q.E.D.
γ

Uma das consequências deste teorema é o resultado seguinte.

(4.4) Corolário: Para todo o caminho fechado seccionalmente regular γ em ℂ \ {0} e


k ∈ ℤ \ {−1} verifica-se ∫γ z dz = 0 .
k

Dem. Como z k = ( z k +1 /(k + 1))′ e z k é contínua em ℂ \ {0} , pode-se aplicar o teorema


precedente para obter o resultado. Q.E.D.

Como, em condições relativamente gerais, as derivadas de integrais indefinidos de


funções reais contínuas coincidem com a função integranda (Teorema Fundamental do
Cálculo para funções reais), uma ideia natural para provar a existência de primitiva de
uma função num conjunto é construir uma candidata a primitiva por integração da função
dada a partir de um ponto fixo e até cada ponto do conjunto. No caso de funções
complexas, com integrais sobre caminhos, esta construção exige que todos os pontos do
conjunto possam ser ligados entre si por caminhos nele contidos (o que para um conjunto
aberto corresponde ao conjunto ser conexo), e que os integrais sobre caminhos diferentes
que liguem o mesmo par ordenado de pontos sejam iguais (o que é equivalente à
anulação dos integrais da função sobre todos os caminhos seccionalmente regulares
fechados). O resultado seguinte concretiza estas ideias.

(4.5) Teorema: Seja f uma função complexa contínua numa região Ω ⊂ ℂ. As


seguintes afirmações são equivalentes:
1) f tem uma primitiva em Ω .
2) ∫γ f ( z ) dz = 0 para todo o caminho fechado seccionalmente regular γ em Ω .
3) Integrais de f sobre caminhos seccionalmente regulares em Ω com o mesmo par
ordenado de pontos inicial e final são iguais.
Dem. A equivalência entre 2) e 3) é imediata. Na verdade, se γ 1 e γ 2 são caminhos
seccionalmente regulares em Ω com o mesmo par ordenado de pontos inicial e final,
então a concatenação γ 1 + (−γ 2 ) é um caminho fechado seccionalmente regular (Figura
54 Integrais de funções complexas

4.6). O integral sobre a concatenação considerada é a soma dos integrais sobre os


caminhos γ 1 e − γ 2 e, como o integral sobre − γ 2 é o simétrico do integral sobre γ 2 , é
igual à diferença entre os integrais sobre os caminhos γ 1 e γ 2 . Portanto, os integrais
sobre γ 1 e γ 2 são iguais se e só se o integral sobre o caminho fechado que é a
concatenação referida é zero.
Do teorema (4.3) sabe-se que a existência de primitiva de uma função contínua
num conjunto Ω implica a anulação dos integrais sobre caminhos seccionalmente
regulares fechados em Ω . Resta provar o recíproco. Dado que os integrais de f sobre
caminhos seccionalmente regulares fechados em Ω são nulos, os integrais desta função
sobre caminhos seccionalmente regulares em Ω com o mesmo ponto inicial e o mesmo
ponto final são iguais. Toma-se um ponto arbitrário a ∈ Ω e define-se a função
F ( z ) = ∫ f (ς ) dς , para z ∈ Ω ,
αz

onde α z é um caminho seccionalmente regular em Ω que liga a a z . Como Ω é um


conjunto aberto conexo, existem caminhos com as propriedades indicadas para todo
z ∈ Ω , pelo que a função F fica definida em Ω .
Como Ω é aberto, para cada z 0 ∈ Ω existe r > 0 tal que o círculo aberto
Br ( z 0 ) ⊂ Ω . Com z 0 fixo, como os círculos são conjuntos convexos, obtém-se para
qualquer z ∈ Br ( z 0 ) que β z : [0,1] → ℂ, com β z (t ) = (1 − t ) z0 + t z , é um caminho regular
em Br ( z 0 ) ⊂ Ω que percorre o segmento de recta de z 0 para z . A concatenação de
caminhos α z0 + β z + (−α z ) é um caminho seccionalmente regular fechado em Ω (Figura
4.7), pelo que o integral de f sobre este caminho é nulo e, em consequência, a diferença
dos integrais de f sobre α z e α z 0 é igual ao integral de f sobre β z . Assim, o valor de
F(z) − F(z0 ) é o integral de f sobre o segmento de recta de z 0 para z e obtém-se
F ( z) − F ( z0 ) 1
z − z0
− f ( z0 ) =
z − z0 ∫β [ f (ς ) − f ( z )]dς
z
0 .

A continuidade de f garante, então, que qualquer que seja ε > 0 existe δ > 0 tal que
| f ( z ) − f ( z 0 ) |< ε desde que | z − z 0 |< δ . Portanto,
F ( z) − F ( z0 ) 1
− f ( z0 ) ≤ z − z 0 ε = ε , para | z − z 0 |< δ ,
z − z0 z − z0
pelo que f = F′ e F ∈ H (Ω) , o que mostra que F é uma primitiva de f em Ω . Q.E.D.


γ
1
−αz
αz
γ z
2
α z0 βz
a z0
−γ
2

Figura 4.6 Figura 4.7


4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 55

Consideramos agora a questão da existência de primitivas de funções holomorfas.


Viu-se no resultado anterior que uma ideia natural para provar a existência de primitiva
de uma função num conjunto é construir uma candidata a primitiva por integração da
função a partir de um ponto fixo e até cada ponto do conjunto, o que exige que todos os
pontos do conjunto possam ser ligados entre si por caminhos seccionalmente regulares
nesse conjunto e que os integrais sobre caminhos seccionalmente regulares fechados
sejam nulos. Na verdade, para obter uma candidata a primitiva basta que as duas
propriedades mencionadas se verifiquem para uma classe particular de caminhos para os
quais os cálculos sejam simples. Os caminhos mais simples que ligam pares de pontos
correspondem a segmentos de recta, pelo que é mais fácil tratar as questões levantadas
em conjuntos convexos e com caminhos que percorrem segmentos de recta. Em
conjuntos convexos fica automaticamente garantida a primeira propriedade mencionada
de qualquer par de pontos poder ser ligado por segmentos de recta. Contudo, é ainda
necessário assegurar a validade da segunda propriedade que, neste caso, é a igualdade
dos integrais sobre caminhos poligonais resultantes da concatenação de segmentos de
recta que liguem o mesmo par ordenado de pontos. Esta última propriedade é equivalente
à anulação dos integrais sobre as fronteiras de triângulos fechados contidos no conjunto
considerado. O resultado seguinte, que é uma pequena variação de um resultado de E.
Goursat publicado em 1900, estabelece esta propriedade para funções holomorfas num
conjunto aberto convexo, excepto possivelmente num dos seus pontos11.

(4.6) Teorema: Seja Ω ⊂ ℂ um conjunto aberto, ∆ ⊂ Ω um triângulo fechado, p ∈ Ω ,


f contínua em Ω e f ∈ H (Ω \ { p}) . Então ∫ ∂∆
f ( z ) dz = 0 , onde ∂∆ designa a
fronteira de ∆ e o integral é sobre um caminho seccionalmente regular simples que
percorre ∂∆ .
Dem. Designam-se por a, b, c os vértices ordenados de ∆ .
Supõe-se primeiro que p ∉ ∆ . Designa-se por a ' , b' , c' os pontos a meio dos lados
bc , ac , ab , respectivamente. Consideram-se os quatro triângulos ∆ j , j = 1, 2, 3, 4 , com
vértices ordenados (a, c' , b' ) , (b, a ' , c' ) , (c, b' , a ' ) , (a ' , b' , c' ) (Figura 4.8). Verifica-se
def 4
J = ∫ f ( z ) dz = ∑ ∫ f ( z ) dz .
∂∆ ∂∆ j
j =1

O valor absoluto de pelo menos um dos integrais na direita é maior ou igual a | J / 4| . Seja
∆1 um dos quatro triângulos com esta propriedade. Repetindo o argumento com ∆1 no
lugar de ∆ , e assim sucessivamente, obtém-se uma sucessão de triângulos ∆ n tal que
∆ ⊃ ∆1 ⊃ ∆ 2 ⊃ Κ , existe um único ponto z 0 ∈ ∩ ∞n =1 ∆ n , o comprimento de ∂∆ n é L 2 − n ,
onde L é o comprimento de ∂∆ , e verifica-se
| J |≤ 4n ∫
∂∆ n
f ( z ) dz , para n ∈ ℕ .

11 Ver-se-á mais tarde que estas funções são necessariamente holomorfas em todo o conjunto Ω , mas a
demonstração nas presentes condições é usada na prova da Fórmula de Cauchy que se apresenta neste
capítulo.
56 Integrais de funções complexas

Como f é holomorfa em ∆ , qualquer que seja ε > 0 existe r > 0 tal que
f ( z ) − f ( z 0 ) − f ′( z 0 )( z − z 0 ) ≤ ε | z − z 0 | , para z ∈ Br ( z 0 ) .
Para n suficientemente grande tem-se ∆n ⊂ Br (z0 ) e | z − z0 |< L2−n , para todo z ∈ ∆n . Como

∫ [ f (z) − f (z ) − f ′(z )(z − z )] dz = ∫


∂∆n
0 0 0
∂∆n
f ( z) dz − f ( z0 )∫ 1 dz − f ′( z0 )∫ z dz + f ′( z0 )∫ 1 dz ,
∂∆n ∂∆n ∂∆n

com o corolário (4.4) obtém-se


∂∆ n
f ( z ) dz = ∫
∂∆ n
[ f ( z ) − f ( z 0 ) − f ′( z 0 )( z − z 0 )] dz
Portanto, para n ∈ ℕ suficientemente grande verifica-se
| J | ≤ 4 n ∫∂∆ n f ( z ) dz ≤ 4 n ε (L2 − n ) 2 = ε L2 .
Como ε > 0 é arbitrário, segue-se que J = 0 se p ∉ ∆ , como se pretendia provar.
Supõe-se agora que p é um vértice de ∆ , sem perda de generalidade p = a .
Observe-se que o integral sobre ∂∆ é a soma dos integrais sobre as fronteiras dos
triângulos de vértices ordenados (a, x, y ) , ( x, b, y ) , (b, c, y ) , onde x e y são,
respectivamente, pontos dos lados ab e ca do triângulo ∆ (Figura 4.9). Os integrais
sobre as fronteiras dos dois últimos triângulos são nulos em resultado da aplicação do
caso já demonstrado, em que p não pertence ao triângulo sobre o qual se considera a
integração. Portanto, o integral sobre ∂∆ é igual ao integral sobre o triângulo de vértices
(a, x, y ) . Como o perímetro deste triângulo pode ser tomado arbitrariamente pequeno à
custa de tomar os pontos x e y suficientemente próximos do ponto a , e a função f é
contínua neste ponto, logo limitada numa sua vizinhança, também se obtém para este
caso ∫ f ( z ) dz = 0 .
∂∆
Finalmente, se p é um ponto arbitrário no triângulo ∆ , pode-se aplicar o resultado
precedente aos triângulos de vértices ordenados (a, b, p ) , (b, c, p ) , (c, a, p ) (Figura
4.10), pelo que também neste caso se obtém ∫ f ( z ) dz = 0 . Q.E.D.
∂∆

b b b

p
a’
c’
x p
c c c
y
a b’ p=a a
Figura 4.8 Figura 4.9 Figura 4.10
O resultado seguinte estabelece a existência de primitivas (locais) de funções
contínuas em conjuntos convexos onde são holomorfas excepto possivelmente num
ponto.

(4.7) Teorema: Se Ω ⊂ ℂ é um conjunto aberto convexo e p ∈ Ω , então toda a função


f contínua em Ω com f ∈ H (Ω \ { p}) tem primitiva em Ω .
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 57

Dem. Seja a ∈ Ω um ponto arbitrário. Como Ω é convexo, para cada z ∈ Ω o segmento


de recta az está contido em Ω . O caminho α z : [0,1] → ℂ, α z (t ) = (1 − t )a + tz , percorre
este segmento de recta. Define-se
F ( z ) = ∫ f (ς ) dς , para z ∈ Ω .
αz

Para cada z 0 ∈ Ω , o triângulo fechado de vértices a, z , z 0 está contido em Ω . Do


teorema anterior, resulta que F ( z ) − F ( z 0 ) é o integral de f sobre o segmento de recta
de z 0 para z (Figura 4.11). Agora procede-se exactamente como na parte final da
demonstração do teorema (4.5) para obter f = F ′ em Ω . Q.E.D.


αz a
z
βz αz 0
z0

Figura 4.11: Ilustração para a construção de primitivas de


funções holomorfas em conjuntos convexos

4.4. Teorema de Cauchy local


Os resultados anteriores permitem estabelecer a seguinte versão local do Teorema
de Cauchy em conjuntos convexos. Este resultado é utilizado no capítulo 6 para provar
que as funções holomorfas são sempre indefinidamente diferenciáveis e representáveis
por séries de potências. Como consequência destes resultados é estabelecida no capítulo
7 uma versão global do Teorema de Cauchy.

(4.8) Teorema de Cauchy local em conjuntos convexos: Seja Ω ⊂ ℂ um conjunto


aberto convexo, γ um caminho fechado seccionalmente regular em Ω , p ∈ Ω , f
contínua em Ω e f ∈ H (Ω \ { p}) . Então ∫γ f ( z ) dz = 0 .
Dem. O teorema anterior garante que f tem uma primitiva F em Ω . A anulação do
integral resulta do teorema (4.3). Q.E.D.

Como se referiu na introdução a este capítulo, o Teorema de Cauchy começou por


ser obtido por este matemático em rectângulos, com a hipótese excessivamente forte da
função integranda ser C 1 , situação em que o resultado é consequência directa do
Teorema de Green para funções reais definidas em conjuntos de ℝ 2 . Na verdade, mesmo
considerando um domínio regular com cantos D ⊂ ℝ 2 arbitrário, e não apenas
rectângulos, o Teorema de Green estabelece ∫ ( P, Q ) ⋅ dα = ∫∫ (∂Q / ∂x − ∂P / ∂y) dx dy ,
D
para um campo vectorial ( P, Q ) C 1 no fecho de D , onde α = ( X , Y ) é um caminho
58 Integrais de funções complexas

seccionalmente regular fechado simples que descreve a fronteira12. Sabe-se da fórmula


(4.1) que, para uma função f ∈ H ( D ) , com (u , v) = f e γ = X + i Y , é
∫γ f ( z ) dz = ∫ (u,−v) ⋅ dα + i ∫ (v, u ) ⋅ dα , pelo que, supondo adicionalmente que f é C
1

em D , a aplicação da fórmula anterior do Teorema de Green aos dois integrais no lado


direito e as equações de Cauchy-Riemann para f dão
 ∂v ∂u   ∂u ∂v 
∫γ f ( z ) dz = ∫∫  − ∂x − ∂y  dx dy + ∫∫  ∂x − ∂y  dx dy = ∫∫
D D D
0 dx dy + ∫∫ 0 dx dy = 0 .
D

Esta situação engloba conjuntos que não são convexos, mas o facto de exigir que f é C 1
é excessivamente forte, pelo que se prefere generalizar para um resultado global a
formulação local em conjuntos convexos anterior, como é feito no capítulo 7. De
qualquer modo, este resultado estabelecido com base no Teorema de Green tem a
vantagem de tornar directamente visível a ligação entre a anulação dos integrais sobre
caminhos fechados e as equações de Cauchy-Riemann e, portanto, evidencia que a
anulação dos integrais sobre caminhos fechados é uma expressão integral das restrições
impostas pela diferenciabilidade de funções complexas. Do ponto de vista histórico, é de
assinalar que todas as versões do Teorema de Cauchy consideradas desde a primeira
proposta em 1822 até 1900 consideravam a hipótese adicional de f ser C 1 . Só em 1900,
com a contribuição de Goursat, é que esta hipótese pôde ser dispensada.
Com base no Teorema de Cauchy local em conjuntos convexos é possível
estabelecer a Fórmula de Cauchy, a qual dá os valores de uma função holomorfa num
conjunto de pontos fora de uma curva fechada seccionalmente regular em termos de
integrais que envolvem apenas os valores da função sobre essa curva. Como os valores
destes integrais dependem do sentido e do número de voltas em que o caminho percorre a
curva, é necessário tornar precisa e quantificar esta dependência. Para isso, introduz-se
na secção seguinte o índice ou número de rotação de um caminho fechado
seccionalmente regular em relação a um ponto fora da curva que ele descreve.

4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos


O resultado seguinte permite definir o índice ou número de rotação de um
caminho fechado seccionalmente regular γ em relação a um ponto z fora da curva γ *
que representa. Este índice, que se designa por Ind γ ( z ) é um número inteiro que dá
informação sobre o sentido e o número de voltas que o caminho γ dá na curva γ * em
torno do ponto z .

12 Um domínio regular com cantos D ⊂ ℝ2 é um conjunto aberto que é o interior do seu fecho cuja
fronteira é uma curva seccionalmente regular fechada. O Teorema da Curva de Jordan assegura que toda a
curva de Jordan separa o plano em dois conjuntos conexos abertos, um ilimitado e outro limitado, e pode-
se mostrar que este conjunto limitado é um domínio regular cuja fronteira é a curva de Jordan considerada.
A existência de pelo menos duas componentes conexas no complementar de uma curva de Jordan
seccionalmente regular em que uma e só uma delas é ilimitada é uma consequência dos resultados da
secção seguinte, mas a parte mais difícil é que só há uma componente conexa limitada. Embora o Teorema
da Curva de Jordan não seja explicitamente usado nos vários capítulos deste texto, dá-se uma
demonstração deste importante resultado no apêndice III.
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 59

É útil entender geometricamente como se pode calcular um número com o


objectivo indicado por integração de uma função apropriada sobre o caminho γ . É claro
que definindo argumentos de pontos ao longo do caminho em relação a um sistema de
eixos coordenados centrado no ponto z , com os argumentos a variarem continuamente
ao longo do caminho, a diferença entre o valor dos argumentos no final e no início de um
caminho fechado é um múltiplo inteiro de 2π , 2π n com n ∈ ℤ, em que n é a diferença
entre o número de voltas que o caminho percorre em torno de z no sentido positivo e no
sentido negativo (Figura 4.12). Assim, para obter 2π n por integração sobre o caminho
convém usar uma função integranda cujo integral dê a variação total do argumento.
Recordando que a parte imaginária do logaritmo complexo de um número é um
argumento do número, obtém-se um argumento w ∈ γ * relativamente a z como parte
imaginária de um ln( w − z ) . Sabe-se que nenhum logaritmo pode ser definido como
função contínua em todo o plano complexo, mas é possível definir continuamente
t α ln(γ (t ) − z) à custa de considerar a passagem entre ramos apropriados do logaritmo
de forma a assegurar a continuidade. Como d (ln(w − z)) / dw= 1/(w − z) , é natural
considerar como função integranda sobre o caminho a função w α 1 /( w − z ) . A
argumentação anterior indica que a parte imaginária do integral dá 2π n como se
pretendia. Por outro lado, a parte real dá a diferença entre o logaritmo do módulo dos
pontos inicial e final do caminho e, como estes coincidem, esta diferença é zero.
Concluiu-se que convém definir Ind γ ( z ) = (1 /(2π i )) ∫ 1 /( w − z ) dw .
γ

Figura 4.12: Ilustração geométrica da ideia de índice ou número de rotação


de um caminho γ em relação a um ponto z ∈ ℂ \ γ *

(4.9) Teorema: Seja γ um caminho fechado seccionalmente regular em ℂ e Ω = ℂ \ γ * .


Então
1 dw
Ind γ ( z ) = ∫
2π i γ w − z
,

define uma função de Ω em ℤ que é constante em cada componente conexa de Ω e é


nula na componente conexa ilimitada de Ω .
60 Integrais de funções complexas

Dem. Seja γ : [a, b] → ℂ e fixe-se z ∈ Ω . Então


1 b γ ′(t )
2π i ∫a γ (t ) − z
Ind γ ( z ) = dt .

Como, para ς ∈ ℂ, se verifica ς /(2π i ) ∈ ℤ se e só se e ς = 1 , a condição Ind γ ( z ) ∈ ℤ é


equivalente a ϕ (b) = 1 , onde ϕ : [a, b] → ℂ é definida por
 t γ ′( s ) 
ϕ (t ) = exp  ∫ ds  .
 a γ (s) − z 
Note-se que ϕ ′(t ) = ϕ (t ) γ ′(t ) /(γ (t ) − z ) , excepto possivelmente num conjunto finito de
pontos S ⊂ [a, b] onde γ não é regular. Para t ∈ [a, b] \ S verifica-se

 ϕ (t )  ϕ ′(t ) ϕ (t ) γ ′(t )
  = − =0 ,
 γ (t ) − z  γ (t ) − z (γ (t ) − z )
2

pelo que a função t α ϕ (t ) /(γ (t ) − z ) é contínua em [a, b] e tem derivada nula em


[a, b] \ S . Em consequência, esta função é constante em cada subintervalo de [a, b] \ S e a
sua continuidade no número finito de pontos de S implica que é constante em todo o
intervalo [a, b] . Como ϕ(a) = 1, verifica-se ϕ(t) = (γ (t ) − z) /(γ (a) − z) . Como γ é fechado,
é γ (b) = γ (a ) e, portanto, ϕ (b) = 1 , o que prova que Ind γ : Ω → ℤ.
A função Ind γ : Ω → ℤ é contínua. Na verdade,

| Ind γ (z) − Ind γ (w) = 1 ∫γ  1 − 1  dς = 1 z−w


∫γ (ς − z )(ς − w) dς
2π i  ς − z ς − w  2π
| z − w | Lγ
≤ max{ 1 / (ς − z )(ς − w ) : ς ∈ γ * } ,

onde Lγ designa o comprimento do caminho γ , pelo que | Ind γ (z ) − Ind γ ( w) → 0
quando | z − w |→ 0 . A imagem de um conjunto conexo por uma função contínua é um
conjunto conexo. Como Ind γ (Ω) ⊂ ℤ, conclui-se que a função Ind γ tem de ser constante
em cada componente conexa de Ω .
Finalmente, para | z | suficientemente grande, tem-se
1 b γ ′(t )
2π i ∫a γ (t ) − z
| Ind γ ( z ) | = dt < 1 .

Portanto, Ind γ (z) = 0 para z pertencente à componente conexa ilimitada de Ω . Q.E.D.

O sinal de Ind γ (z ) e o seu valor absoluto dão, respectivamente, o sentido e o


número de voltas que o caminho γ dá na curva γ * em torno de z como se ilustra no
resultado seguinte para o caso particular em que γ * é uma circunferência.

(4.10) Proposição: Seja γ o caminho regular que dá n voltas com sentido positivo na
circunferência de raio r > 0 e centro no ponto a ∈ ℂ definido por γ : [0, 2π n] → ℂ com
γ (θ ) = a + r e iθ . Então
n , se z ∈ Br (a)
Ind γ ( z ) = 
0 , se z ∉ Br (a) .
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 61

Dem. Resulta do teorema anterior que basta calcular


1 dw 1 2π n r i e iθ 1 2π n
Ind γ (a) =
2π i ∫γ =
w − a 2π i ∫0 re iθ
dθ =
2π ∫0
dθ = n . Q.E.D.

É útil observar que os índices de dois caminhos fechados seccionalmente regulares


que podem ser continuamente deformados de um para o outro num conjunto Ω ⊂ ℂ são
necessariamente iguais em pontos de ℂ \ Ω .
Tal como em ℝ 2 , o conceito apropriado para traduzir a noção de deformação
contínua de caminhos num conjunto Ω ⊂ ℂ é a homotopia. Diz-se que dois caminhos
γ 1 , γ 2 : [a, b] → Ω fechados (respectivamente, não fechados mas com o mesmo par
ordenado de pontos inicial e final, γ 1 (a) = γ 2 (a) = A e γ 1 (b) = γ 2 (b) = B ) são homotópicos
em Ω se existe uma função contínua, a que se chama homotopia entre γ 1 e γ 2 ,
H : [a, b] × [0,1] → Ω tal que H (t ,0) = γ 1 (t ) , H (t ,1) = γ 2 (t ) para todo t ∈ [a, b] , e
H (a, s ) = H (b, s ) (respectivamente, H (a, s ) = A , H (b, s ) = B ) para todo s ∈ [0,1] (ver
Figura 4.12). É fácil verificar que a homotopia é uma relação de equivalência13, pelo que
estabelece no conjunto de todos os caminhos seccionalmente regulares fechados em Ω ,
ou não fechados mas com o mesmo par ordenado de pontos inicial e final em Ω , classes
de equivalência, chamadas classes de homotopia.

γ γ
1 2

σ1
σ2

Figura 4.13: Caminhos homotópicos num conjunto Ω ⊂ ℂ


O resultado seguinte mostra que o índice em relação a um ponto no complementar
de Ω é invariante em cada uma dessas classes de homotopia de caminhos fechados, e
que, para dois caminhos não fechados homotópicos em Ω , o índice do caminho fechado
que é a concatenação de um dos caminhos com o simétrico do outro, em relação a pontos
no complementar de Ω , é nulo.

(4.11) Proposição: Seja Ω ⊂ ℂ, z ∈ ℂ \ Ω e γ 1 , γ 2 caminhos seccionalmente regulares


em Ω .
1) Se γ 1 , γ 2 são caminhos fechados homotópicos em Ω , então Ind γ 1 ( z ) = Ind γ 2 ( z ) .
2) Se γ 1 , γ 2 são caminhos não fechados (com o mesmo par ordenado de pontos inicial e
final) homotópicos, então o caminho γ = γ 1 + (−γ 2 ) é fechado e Ind γ ( z ) = 0 .

13 Tal como é usual, considera-se uma relação de equivalência num conjunto uma relação binária nesse
conjunto com as três propriedades: reflexividade, simetria e transitividade.
62 Integrais de funções complexas

Dem. Seja γ1, γ 2 : [a, b] → Ω . Sabe-se que os integrais de funções complexas (u, v) = f sobre
caminhos γ j têm partes real e imaginária dadas por integrais de linha em ℝ 2 , na forma

∫γ j
f ( w) dw = ∫ (u,−v) ⋅ dα j + i ∫ (v, u ) ⋅ dα j ,

onde αj designa os caminhos em ℝ 2 correspondentes aos caminhos γ j em ℂ, com j =1,2.


Verifica-se Ind γ j (z ) = ∫ f ( w) dw , com f ( w) = 1 /(2π i ( w − z )) . Esta função é
γj
holomorfa em ℂ \ {z} , pelo que se verificam as equações de Cauchy-Riemann em Ω ,
∂u / ∂x = ∂v / ∂y e ∂v / ∂x = −∂u / ∂y . É fácil ver que estas derivadas parciais são
contínuas em Ω . As equações de Cauchy-Riemann anteriores garantem que os campos
vectoriais em ℝ 2 (u ,−v), (v, u ) são fechados no conjunto Ω . Os caminhos em ℝ 2 α 1 , α 2
são caminhos seccionalmente regulares homotópicos em Ω . Da invariância de integrais
de linha de campos vectoriais fechados sobre caminhos seccionalmente regulares
homotópicos (quando não fechados têm necessariamente o mesmo par ordenado de
pontos inicial e final) num conjunto onde os campos são continuamente diferenciáveis,
que pode ser estabelecida como consequência do Teorema de Green14 em ℝ 2 , obtém-se

∫ (u,−v) ⋅ dα = ∫ (u,−v) ⋅ dα
1 2 e ∫ (v,u) ⋅ dα = ∫ (v,u) ⋅ dα
1 2 , pelo que ∫γ
1
f (w) dw= ∫ f (w) dw.
γ2

Se γ 1 ,γ 2 são caminhos fechados a última igualdade é Ind γ1 (z) = Ind γ2 (z) . Se γ 1 ,γ 2


não são fechados, o caminho γ = γ 1 + (−γ 2 ) é fechado e a mesma igualdade dá Ind γ (z) = 0 .
Q.E.D.

4.6. Fórmula de Cauchy local em conjuntos convexos


A Fórmula de Cauchy dá os valores que uma função holomorfa num conjunto
assume em pontos fora de uma curva fechada seccionalmente regular nesse conjunto, em
termos de integrais que envolvem apenas os valores da função sobre a curva. A
demonstração desta fórmula baseia-se no Teorema de Cauchy, pelo que se estabelece
agora para conjuntos convexos, situação em que ficou estabelecida acima a validade
deste teorema. No capítulo 7, juntamente com o Teorema de Cauchy Global, estabelece-
se a Fórmula de Cauchy em condições gerais.

(4.12) Teorema (Fórmula de Cauchy local em conjuntos convexos): Seja Ω ⊂ ℂ um


conjunto aberto convexo, γ um caminho fechado seccionalmente regular em Ω ,
z ∈ Ω \ γ * e f ∈ H (Ω) . Então
1 f ( w)
f (z ) . Ind γ ( z ) = ∫
2π i γ w − z
dw .

14 Para detalhes pode ser consultado, por exemplo, o livro do autor com título Integrais em Variedades e
Aplicações, referido na bibliografia final.
4.5. Índice de um caminho fechado e homotopia de caminhos 63

Dem. Fixa-se z ∈ Ω \ γ * e define-se a função


 f ( w) − f ( z )
 , se w ∈ Ω \ {z}
g ( w) =  w− z
 f ′( z ) , se w = z .

Então g satisfaz as hipóteses do Teorema de Cauchy em conjuntos convexos (4.8), pelo
que ∫ g ( w) dw = 0 , ou seja,
γ
1 f ( w) f (z) 1
2π i ∫γ w− z
dw −
2π i ∫γ w− z
dw = 0 ,

de onde
1 f ( w)
2π i ∫γ w− z
dw = f ( z ) . Ind γ (z ) . Q.E.D.

A Fórmula de Cauchy é uma outra expressão integral das fortes restrições impostas
pela diferenciabilidade de funções complexas, dado que, nas condições do teorema
anterior, se obtêm os valores de f em todos os pontos de um conjunto onde é holomorfa
fora de um caminho fechado seccionalmente regular γ e Ind γ ( z ) ≠ 0 apenas em função
dos valores de f na curva γ * e dos valores de Ind γ . Em particular, os valores de uma
função complexa f numa curva γ * (um conjunto de medida nula no plano) num
conjunto convexo Ω onde é holomorfa determinam os valores de f em todas as
componentes conexas de Ω \ γ * onde Ind γ ≠ 0 .
Uma consequência útil do teorema anterior é que o valor de uma função no centro
de um círculo fechado onde é holomorfa é igual à média dos seus valores na fronteira do
círculo.

(4.13) Propriedade de Valor Médio de Funções Holomorfas: Se f é uma função


holomorfa num círculo fechado Br (a ) ⊂ ℂ, então o seu valor f (a ) no centro do círculo
é igual à média dos valores na circunferência que o delimita, isto é
1 2π
f (a ) =
2π ∫0
f ( a + re iθ ) dθ .

Dem. Como f é holomorfa no círculo fechado Br (a ) , é holomorfa num conjunto aberto


que o contém, pelo que existe ε > 0 tal que o círculo aberto Ω = Br +ε (a ) está contido no
conjunto aberto referido. Seja γ o caminho regular simples que percorre a circunferência
que delimita Br (a ) tal que γ : [0, 2π ] → ℂ com γ (θ ) = a + re iθ . Verificam-se as
condições da hipótese do teorema anterior, pelo que a Fórmula de Cauchy dá
1 f (w) 1 2π f (a + re iθ ) 1 2π
f (a ) . Ind γ (a) =
2π i ∫γ w−a
dw =
2π i ∫0 re iθ
i r e iθ dθ =
2π ∫
0
f (a + re iθ ) dθ ,

Da Proposição (4.10) obtém-se Ind γ ( a ) = 1 , o que termina a demonstração. Q.E.D.


64 Integrais de funções complexas

Mais uma vez, verifica-se da propriedade de valor médio que os valores de funções
holomorfas satisfazem fortes restrições de interligação. Veremos no capítulo 9 que as
funções complexas contínuas que satisfazem a propriedade de valor médio em todos os
círculos fechados contidos num conjunto aberto Ω ⊂ ℂ são necessariamente holomorfas,
pelo que esta propriedade para funções complexas contínuas caracteriza as funções
holomorfas.

Exercícios
4.1. Com ( x, y ) = z ∈ ℂ, calcule ∫γ x dz , onde γ é um caminho regular simples que percorre:
a) o segmento de recta orientado de 0 a 1 + i ,
b) a circunferência de raio r > 0 e centro na origem no sentido positivo (calcule de duas formas:
directamente e observando que x = ( z + z ) / 2 = ( z + r 2 / z ) / 2 na circunferência).
4.2. Com ( x, y ) = z ∈ ℂ, calcule ∫γ x dz , onde γ circunferência de raio r > 0 e centro na origem no
sentido positivo.
4.3. Calcule ∫γ dz /( z 2 − 1) , onde γ é um caminho regular simples que percorre circunferência de centro
na origem e raio r ∈ [0,+∞[ \ {1} .
4.4. Calcule uma primitiva da função complexa f ( x + iy ) = 2 x (1 − y ) + i ( x 2 + 2 y − y 2 ) , com x, y ∈ ℝ.
4.5. Mostre que ∫γ f ( z ) f ′( z ) dz é um imaginário puro, para todo o caminho fechado seccionalmente
regular γ e toda a função f C 1 numa região que contém γ * .
4.6. Mostre que ∫γ f ′( z ) / f ( z ) dz = 0 , para todo o caminho fechado seccionalmente regular γ numa
região onde a função f é C 1 e satisfaz | f − 1 |< 1 .
4.7. Descreva condições em que se verifica ∫γ ln z dz = 0 .
4.8. Calcule os integrais seguintes, onde γ r é um caminho regular simples que percorre circunferência de
raio r > 0 e centro na origem:
a) ∫γ 1
e z / z dz , b) ∫γ 2
1 /(1 + z 2 ) dz , c) ∫γ 1
e z / z n dz , d) ∫γ 1
sin z / z 3 dz , e) ∫γ 1
sin z / z dz .

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