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ao? Rhy a VY YV VV VV VV Y Dh UN PONT, a a Ri. ps a Leap WAS li ~~ Sa ‘ on CK \ ZA CNY a CAAA AY AY PO a ~ MEMORIA E PATRIMONIO ENSAIOS CONTEMPORANEOS Prec REGINA ABREU * MARIO CHAGAS i Peay A arena do patriménio cultural no Brasil esta Dien RU Menu: cet feet ei tec Saeed ee Oe re tere nc moe OMSL TT CSCO Td Perea eres ote ge rs eae 200 e cal - igrejas, fortes, pontes, chafarizes, pré- Creetiecnfuleettenremi ieceaet tet Fea eeeetne Mice Cg eeemen steerer Utero Re Terto Leyes OST MeL ee onto 2000, que instituiu 0 inventario e o registro Creare emer ee Murr Reem rau Seon cei Mic Mt ee ceo cou a alteragdo radical da antiga corelacao evra Lette Coe lane tare eM Url) ite-To ieee Waet siete eect Peat semicon sociedade civil (detentores de saberes tradi- cionaise locais) associados a profissionais no reuse eusnensreCORG entice desaberes especificos) poem em marcha um Morente ore ites irene tribuindo social e politicamente para a cons- truco de um acervo amplo e diversificado de expressées culturais em diferentes dreas: linguas, festas, rituais, danas, lendas, mitos, De eee Coe aay ace ecm Pe rea ere eee ee eae Pome uexeU Me Mae ce ate nham um novo cenario. Essa redefinicao pas. sa inclusive pelo campo do biopatriménio Pater Unease tcom ine en Counts olhares para a relagao entre natureza e cul- ura, € facilitando a compreensiio da nogao Pee Cane ty etn r Tine Renter Cen eea rae Uru COMiaeaeNCMe ny 0) tae Tes Nate eee ooo Liat Ue atle Cees Lao Sn aaeie Tee uso cao Fou Eo Coaeectte eee seal eC tanto, nunca se arquivou tanto, nunca tantos Pree Mie rio ECU CUM Mu Petuiulon tenures Dre an eee eo ou ce eee Tura CCN Nok ite Pt GomecU eGR iceiecucnant oa Eres erence oe etary CeCe Memeo ees mem Core PREC een COR Car Moers Pee tere) REGINA ABREU & professora do Programa de Pés- Rete te OR ue rer koe ct to de Filosofia Ciéncias Sociais da Universidade Fee Sn a eum Mon doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pés-Graduacio em Antropolagia Social (PPC Centos ole ene Cir ir RoR de Janeiro (UFRJ). RCS Ne eRe ne ma en ae fete eet a uc Sora Sr Ene eo a oe A lees EC ico CO ee Ree Re ee (UniRio), doutor pelo Programa de Pés-Graduacao em Ciéncias Sociais da Universidade do Estado do ome ue en Ores ee ccm en Dore eee NM estene aeons one Ppa coirek eu ciee Ms cater Tc MEMORIA E PATRIMONIO ENSAIOS CONTEMPORANEOS Meméria e patriménio: ensaios contemportieos Regina Abreu; Mario Chagas (orgs.) 1, ed. (2003). Rio de Janeiro: DP&A © Lamparina editora Revisaio Michelle Strzoda (1. ed.) Angelo Lessa (2. ed.) Projeto grdj Priscila Cardoso co, diagramucito ¢ capa Imagem da capa Pintura corporal ¢ arte gréfica wajapi. Seni Wajapi/20c0. texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortogrdfico da Lingua Portuguesa, assinado em 1990, que comecou a vigorar em + de janeiro de 209. Proibida a reprodugao, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprogra- fico, fotografico, grafico, microfilmagem etc. Estas proibicgdes aplicam-se também as caracteristicas grdficas e/ou editoriais. A violacao dos direitos autorais é punivel co- mo crime (Cédigo Penal, art. 84 ¢ §§; Lei 6.805/80), com busea, apreensfo e inde- nizagées diversas (Lei 9.610/98 ~ Lei dos Direitos Autorais ~ arts. 122, 123, 124 € 126) Catalogagao-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros M487 aed Memoria e patrimnio: ensaios contemporaneos / Regina Abreu, Mario Chagas (orgs.) ed. ~ Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. Tnelui bibliografia ISBN 978-85-98271-59-0 . Patriménio cultural — Protecao — Brasil. 2. Meméria — Aspectos sociais — Brasil. 1 Abreu, Regina. II. Chagas, Mario 98-1519. CDD: 363.692981 CDU: 351.853(81 Lamparina editora Rua Joaquim Silva, 98, 2° andar, sala 201, Lapa Cep 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel./fax: (21) 2232-1768 lamparina@lamparina.com.br lamparina MEMORIA E PATRIMONIO ENSALOS CONTEMPORANEOS ORGANIZADORES REGINA ABREU * MARIO CHAGAS CLAUDIA CRISTINA DE MESQUITA GARCIA DIAS. JAMES CLIFFORD JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES JOSE RIBAMAR BESSA FREIRE LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE MARCIA SANT'ANNA MARIA CECILIA LONDRES FONSECA MYRIAN SEPULVEDA DOS SANTOS. RUBEN GEORGE OLIVENs VERA BEATRIZ SIQUEIRA 2%edicao OS AUTORES CLAUDIA CRISTINA DE MESQUITA GARCIA DIAS Ghefe da divisao de pesquisa da Fundagao do Museu da Imagem e do Som e doutora pelo Programa de P6s-Graduagao em Histéria Social do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais (IFCS) da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). JAMES CLIFFORD Professor do Programa de Histéria da Consciéncia da Universida- de da California (Santa Cruz, Estados Unidos). JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES Professor de Antropologia Cultural do Programa de Pés-Graduagao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor pelo Departamento de Antropologia da Universidade da Virginia (Estados Unidos). Jost RIBAMAR BESSA FREIRE Professor do Programa de Pés-Graduagao em Meméria Social e do Departamento de Filosofia e Ciéncias Sociais da Universidade Fe- deral do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e coordenador do Pro- grama de Estudos dos Povos Indigenas (Pré-{ndio) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE Professor do Programa de Pés-Graduagao em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — e doutor em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional (UFRJ). MARCIA SANT/ANNA Diretora do Departamento de Patriménio Imaterial do Instituto do Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional (Iphan) e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). MARIA CECILIA LONDRES FONSECA Consultora da Secretaria do Patrimonio, Museus e Artes Plasticas do Ministério da Cultura e doutora em Sociologia da Cultura pela Universidade de Brasilia (UnB). MARIO CHAGAS Professor do Programa de Pés-Graduagdo em Memoria Social e do Departamento de Estudos e Processos Museolégicos da Universi- dade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), doutor pelo Programa de Pés-Graduacgao em Ciéncias Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador técnico do Depar- tamento de Museus do Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional (Iphan). MYRIAN SEPULVEDA DOS SANTOS Professora do Departamento de Ciéncias Sociais e do Programa de Pés-Graduagao em Ciéncias Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e Ph.D. em Sociologia pela New School for Social Research (Nova York). REGINA ABREU Professora do Programa de Pés-Graduacéio em Meméria Social e do Departamento de Filosofia e Ciéncias Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) ¢ doutora em Antro- pologia Social pelo Programa de Pds-Graduagao em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional — Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). RUBEN GEORGE OLIVEN Professor titular do Departamento de Antropologia e do Programa de Pés-Graduagao em Antropologia Secial da Universidade Fede- ral do Rio Grande do Sul (UFRGS). VERA BEATRIZ SIQUEIRA Professora de Histéria da Arte do Instituto de Artes da Universi- dade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutora pelo Programa de. Pés-Graduagao em Histéria Social do Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UER]). APRESENTACAO A SEGUNDA EDIGAO Anatureza interdisciplinar, caracterfstica do Programa de Pés-Gra- duagao em Meméria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UniRio), foi um dos vetores que move- ram os professores ¢ pesquisadores Regina Abreu e Mario Chagas a organizar 0 livro Meméria e patriménio: ensaios contempordneos. Muito nos alegra que esta obra, que jé se tornou um classico na campo de estudos da Meméria Social, chegue agora 4 sua segunda edigao. O |eitor encontraré aqui trabalhos de autores consagrados na temdatica especifica de Memoria e Patriménio, uma das linhas de pesquisa de nosso Programa de Pés-Graduagao. A interdisciplinaridade é hoje um espaco privilegiado de criagdo de conhecimentos que nos convoca a articular, transpor e gerar novos conceitos, teorias e métodos. Ultrapassando os limites das tradi¢écs disciplinarcs, sem contudo negar as contribuicdes espe- efficas de cada campo, temos procurado estabelecer pontes entre diferentes formas de producao do conhecimento. E um caminho de construgdo epistemoldgica pleno de tensées e conflitos, mas também repleto de intersegdes e convergéncias. Seis anos se pas- saram desde a primeira edigdo deste livro, mas as reflexdes ncle contidas mantém-se profundamente atuais. Convido, pois, o leitor a nos acompanhar neste percurso. Diana de Souza Pinto Coordenadoru clo Programa de Pés-Graduagdo em Meméria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UniRio) SUMARIO Introducdo. REGINA ABREU E MARIO CHAGAS Kusiwa, atte grafica wajdpi: patriménio cultural do Brasil Certificado 1, PATRIMONIO, NATUREZA E CULTURA QO patriménio como categoria de pensamento JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES Aemergéncia do patrimGnio genético e a nova configuragéo do campo do patrimonio REGINA ABREU A face imaterial do patriménio cultural: 98 novos instrumentos de reconhecimento e valarizagao MARCIA SANTANNA, Para além da pedrae cat: por uma concepcao ampla de patrim6nio cultural MARIA CECILIA LONDRES FONSECA Patrimdnio intangivel: consideragGes iniciais RUBEN GEORGE OLIVEN “Tesouros humanos vivos” ou quando as pessoas transformam-se em patrimdnio cultural - notas sobre a experiéncia francesa de distingdo do “Mestres da Arte” REGINA ABREU O pai de Macunaima e 0 patriménio espiritual MARIO CHAGAS 13 19 35 34 49 39 80 97 1, MEMORIA E NARRATIVAS NACIONAIS, Museu Imperial: a construgao do Império pela Republica MYRIAN SEPULVEDA DOS SANTOS Meméria politica e politica de memoria MARIO CHAGAS Ill. MEMORIA E NARRATIVAS URBANAS Os museus e a cidade JOSE REGINALDO SANTOS GONCALVES, Espelhos urbanos: ordenacao temporal na colecdo Castro Maya VERA BEATRIZ SIQUEIRA Atrajetoria de um “museu de fronteira”: acriagdo do Museu da Imagem e do Som e aspectos da identidade carioca (1960-1965) CLAUDIA CRISTINA DE MESQUITA GARCIA DIAS IV, MEMORIA E ETNICIDADE A descoberta do museu pelos indios JOSE RIBAMAR BESSA FREIRE Museologia e contra-historia: viagens pela Costa Noroeste dos Estados Unidos JAMES CLIFFORD V. MEMORIA E REFLEXIVIDADE Memiéria e reflexividade na cultura ocidental LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE 173 199 27 254 305 INTRODUGAO REGINA ABREU E MARIO CHAGAS A arena do patriménio cultural no Brasil estd vivendo um momento especialmente fértil. Com a aprovacao do Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o inventério e o registro do denomi- nado “patriménio cultural imaterial ou intangfvel’, descortinou-se um panorama que alterou radicalmente a correlacao de forgas até entao vigente. Se durante décadas predominou um tipo de atua- $40 preservacionista, voltada prioritariamente para 0 tombamento dos chamados bens de pedra e cal — igrejas, fortes, pontes, chafari- zes, prédios e conjuntos urbanos representativos de estilos arqui- teténicos especificos ~, o referido decreto pds em cena uma antiga preocupagao de alguns intelectuais brasileiros, entre os quais se destacou Mario de Andrade, qual seja, a de valorizar 0 tema do intangivel, contribuindo social e politicamente para a construgao de um acervo amplo e diversificado de expressées culturais, em diferentes areas: Iinguas, festas, rituais, dangas, lendas, mitos, mii- sicas, saberes, técnicas e fazeres diversificados. Essa antiga preocupagao havia ecoado nos grupos de discuss4o0 da Area cultural durante a Constituinte de 1988, tanto assim que os artigos 215 e 216 da Constituicado Federal referem-se, de modo explicito, as responsabilidades do “poder publico, com a colabo- racdo da comunidade”, na promogao e na protecdo do patriménio cultural brasileiro, compreendido como os “bens de natureza mate- rial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia a identidade, agdo, 4 memoria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. No entanto, entre a lei no pa- pel e sua ago, parecia haver se estabelecido o proverbial fosso de sempre. Por isso mesmo, é com atencHo e vivo interesse que 14 MEMORIA E PATRIMONIO. observamos e acompanhamos a retomada dessas discussées, agora com ancoras no terreno das praticas e com indicagées nitidas de que diferentes grupos sociais esto se mobilizando e se organizan- do, em torno dessa nova agenda patrimonia] Assim, parece-nos justo afirmar que se processa uma revolugao silenciosa, quando segmentos da sociedade civil, detentores de sa- beres tradicionais e locais, associados a profissionais no interior do aparelho de Estado, e possuidores de saberes especificos, colocam em marcha um novo conceito de patriménio cultural. Seminérios regionais, nacionais e internacionais tém sido rea- lizados; antropélogos, educadores, socidlogos, musedlogos e uma gama diversificada de profissionais da area das Ciéncias Sociais € Humanas vém sendo requisitados pelo poder pablico para formu- lar novas metodologias de pesquisa e novas estratégias de aco, capazes de dar conta da recente concepgdo patrimonial; segmen- tos sociais diversos reivindicam lugar de destaque para manifesta- Ses culturais distintas. Os exemplos multiplicam-se nos ambitos federal, estadual e municipal, passando pelos poderes Executivo, Legislativo e Judicidrio. Efeito da disseminagao do conceito antro- poldgico de cultura, no qual a ideia de diversidade consolida-se como forga motriz, em oposicao ao conceito iluminista de cultu- ra como civilizagao e erudigao, lugar a que poucos tém acesso? Talvez. O fato € que, sem desprezar a importancia de dar continuidade a uma atuacdo norteada por politicas piiblicas nas 4reas do tomba- mento e da preservagao dos chamados bens materiais ou tangiveis, as novas forcas desencadeadas pelo debate sobre patriménio cultu- ral intangfvel desenham um cenirio distinto. Essa redefinicao pas- sa, inclusive, pelos campos do “biopatriménio” e do “patriménio genético”, propondo novos olhares para a relagdo entre natureza e cultura e facilitando a compreensdo da nogao de patriménio natu- ral como uma construgdio que se faz a partir do intangivel. No setor dos museus, por sua vez, constata-se a revitalizagao de novas préticas discursivas e de colecionamento, bem como o desenvolvimento de estudos em sintonia com a realidade con- wTRODUGKO temporanea. Nunca se colecionou tanto, nunca se arquivou tanto, nunca tantos grupos se inquietaram tanto com os temas referentes a meméria, patriménio e museus. Paradoxalmente, os gestos de guardar, colecionar, organizar, lembrar ou invocar antigas tradigdes vém convivendo com a era do descartavel, da informagao sempre nova, do culto ao ideal de juventude. Os intelectuais passaram a se preocupar com um tema que an- tes era marginal nas Ciéncias Humanas: os chamados “lugares de meméria’”, na feliz expressfio de Pierre Nora. Uma sindrome de mu- seus € de prdticas de colecionamento estaria expressando o sinto- ma de um mundo sem meméria, rompido com o passado, em que as fronteiras séo cada vez mais fluidas e moveis. O desmapeamento do individuo, que se tornou valor e medida para todas as coisas, vem impulsionando regressdes e buscas por anterioridades. E no espaco constituido a partir da relago entre memoria e pa- triménio que vicejam as praticas de colecionamento e as narrativas museais nacionais, regionais e locais. Observa-se, no entanto, que, gradualmente, as grandes narrativas nacionais e épicas deixam de exercer a primazia de outrora, quando alicercaram as praticas dis- cursivas dos grandes museus, para entrarem em cena novos vetores, expressdes de uma sociedade cada vez mais polifénica. Sao as narra- tivas urbanas, regionais ¢ locais, nas quais esté em jogo a construgdo de uma identidade especifica, capaz de articular outras tantas nar- rativas, em fungao de um cixo arbitrariamente construfdo. Esse eixo ordenador quer também exercer um papel de mediagao em relagao ao local, nacional e global. Ao focalizarmos as chamadas narrativas regionais e urbanas, privilegiamos os estudos que se debrucam sobre praticas colecio- nistas cariocas e, ao tratarmos das narrativas locais, sublinhames o papel das experiéncias museais com acentuado carater étnico, desenvolvidas no Brasil e no Canad por grupos sociais que, tra- dicionalmente situados em lugar de alteridade nas grandes narra- tivas nacionais, assumem o lugar de sujeitos em novas prdticas de colecionamento, desenvolvendo novas experiéncias museograficas e museolégicas, caracterizadas pelo exercfcio do direito 4 voz, a meméria € a constituigao do patriménio cultural. 1% 16 MEMORIA E PATRIMONIO. Mem6ria e patriménio: ensaios contemporaneos redne um con- junto expressivo de capitulos, divididos em cinco blocos temé- ticos: {. Patriménio, natureza e cultura; Il. Memoria e narrati- vas nacionais; Il]. Meméria e narrativas urbanas; TV. Memoria e etnicidade; V. Meméria e reflexividade. O leitor interessado encon- trard neste livro reflexdes instigantes e atualizadas, desenvolvidas por um grupo variado de autores que, jé hé alzum tempo, vém conversando sobre o assunto em semindrios, congressos, bancas e encontros informais. Alzumas dessas ideias foram produzidas em seminérios realizados pelo Programa de Pés-Graduagao em Mem6- ria Social e pelo Centro de Ciéncias Humanas da Universidade Fe- deral do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), cujos corpos docentes os idealizadores e organizadores deste livro, Regina Abreu ¢ Mario Chagas, integram. Outras séo verses de comunicagdes apresen- tadas na 26* Reunido da Associagao Nacional de Pés-Graduagiio em Ciéncias Sociais, especialmente durante a mesa-redonda “Pa- triménios emergentes e novos desafios: do genético ao intangivel”, ocorrida a 23 de outubro de 2002 € coordenada pela professora Re- gina Abreu. O capitulo “Memoria e reflexividade na cultura ociden- tal’, do professor Luiz Fernando Dias Duarte, apresenta, na {ntegra, a aula inaugural do Programa de Pés-Graduacaio em Meméria So- cial do ano de 2000. Com a presente publicagao, reconhecemos a posigado de cen- tralidade ocupada pelo tema “meméria e patriménio” no debate contemporaneo, de modo especifico, no que se refere As Ciéncias Sociais e Humanas. De nossa parte, com esses ensaios, esperamos contribuir para esse debate, que apenas alvorece. Cabe destacar a oportunidade em divulgar algumas belas ima- gens da arte kusiwa — pintura corporal e arte grafica dos indios wajépi do Amapé. A arte kusiwa constitui o primeiro registro no Livro dos saberes do Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional (Iphan), tendo recebido o titulo de “Patriménio cultural do Brasil” nessa mesma obra. E para nés de extrema relevancia contribuir para a valorizagao da linguagem grafica dos indios waja- pi, sistema de representagao que sintetiza seu modo particular de conhecer, conceber e agir sobre 0 universo. KUSIWA, ARTE GRAFICA WAJAPI: PATRIMONIO CULTURAL DO BRASIL Em maio de 2002, a direcdo do Museu do Indio submeteu ao Mi- nistério da Cultura o registro da arte kusiwa — pintura corporal e arte gréfica wajapi como bem cultural de natureza imaterial, nos termos do Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000. A documentagao reunida sobre o kusiwa resultou de mais de quinze anos de pes- quisa desenvolvida junto aos wajapi do Amapa por Dominique T. Gallois, doutora em Antropologia do Niicleo de Histéria Indigena e do Indigenismo da Universidade de Sao Paulo (USP). Em dezembro de 2002, foi conferido o titulo de “Patriménio cul- tural do Brasil” & arte kusiwa, o primeiro bem cultural indigena registrado no Livro dos saberes do patriménio imaterial. A criagdo do novo instrumento de preservagdo de bens de natureza proces- sual e dinamica significou um avango concreto nas relagdes com as sociedades indigenas, ao definit um procedimento que permite reconhecer e valorizar conhecimentos e formas de expressao pré- prios a seus universos culturais. Significou também um avango ao mudar 0 eixo dessas relagdes, resgatando do passado as culturas indfgenas existentes no Brasil e inscrevendo-as no presente, em sua diversidade e especificidade, como participes igualitarios do patriménio cultural nacional. Ao encaminhar a inscrigao dessa forma de expressao wajapi no registro de bens ‘culturais de natureza imaterial, o Museu do [n- dio buscou dar continuidade a um programa voltado diretamente para a preservag3o e difusdo do patriménio cultural indfgena no pais. O programa tem contado com a colaboragao de especialistas e entidades que trabalham diretamente com comunidades indige- nas € com 0 apoio financeiro de instituigdes privadas e ptblicas, 18 MEMORIA E PATRIMONIO entre elas o Ministério da Cultura. O registro kusiwa constituiu 0 resultado de tal colaboragdo, que envolveu principalmente a parti- cipacao direta dos wajépi, por meio de sua associagdo e seu Con- selho de Aldeias — Apina, no preparo de colegdes de artefatos e de desenhos apresentados em exposic¢do a eles dedicada no Museu do {ndio. A publicagao de um catélogo de padrées e composicdes que ilustram a arte gréfica kusiwa ampliou a possibilidade de di- vulgacaa desse acervo cultural. Com essas iniciativas, o Museu do Indio deu os primeiros pas- sos na adogao de uma politica que se pretende de amplo alcance na identificagdo, promo¢ao, preservag&o e protegao dos bens cul- turais de propriedade das sociedades indfgenas. José Carlos Levinho Diretor do Museu do fndio da Fundagéio Nacional do indio Padres graficos. Paku ka’ gwer [espinha de pacul. Miwa Wajapi/igks, vii) LAA \) sil CERTIFICADO cERTIFICO que do Livro de Registro das Formas de Expressdo, volume pri- meiro, do Instituto do Patriménio Eistérico e Artistico Nacional — Iphan, instituido pelo Decreto ntimero trés mil quinhentos e cinquenta e um, de quatro de agosto de dois mil, consta 4 folhas hum, o seguinte: “Registro niimero hum; Bem cultural: Arte Kusiwa — pintura corporal e arte grafica Wajapi; Descrigao: Trata-se de um sistema de representagao, uma lin- guagem grafica dos indios Wajapi do Amapé, que sintetiza seu modo pat- ticular de conhecer, conceber ¢ agir sobre o universo. O sistema grafico kusiwa opera como um catalisador para a expressao de conhecimentos e de praticas que envolvem desde relagoes sociais, crencas religiosas e tec- nologias até valores estéticos e morais. O excepeional valor desta forma de expressdo esté na capacidade de condensar, transmitir e renovar — através da criatividade dos desenhistas e narradores — todos os elementos par- ticulares e unicos de um modo de pensar e de estar no mundo, préprio dos Wajapi do Amapé4. A linguagem kusiwa é uma forma de expressao complementar aos saberes transmitidos oralmente, a cada nova geracao, e compartilhados por todos os membros do grupo. £ um conhecimento que se encontra principalmente nos relatos orais que este grupo indigena, hoje com guinhentos e oitenta individuos, continua a transmitir aos seus filhos e que explicam como surgiram as cores, 0s padrées dos desenhos eas diferencas entre as pessoas. A arte grafica e a arte verbal dos wajapi lhes permite agir sobre miiltiplas dimensées do mundo: sobre o visivel 0 invisivel, sobre 0 concreto e sobre 0 mundo ideal. Nao se trata de um saber abstrato e sim de uma pratica, que é permanentemente interativa, viva e dinamica. A arte Kusiwa se expressa em desenhos e pinturas de cor- pos e objetos, a partir de um repertério definido de padrées grificos e suas variantes, que representam, de forma sintética e abstrata, partes do corpo 19 20 MEMGRIAE PATRIMONIO. ou da ornamentagao de animais, como sucuris, jiboias, ongas, jabotis, peixes, borboletas; e objetos, como limas de ferro e bordunas. Gom deno- minagées proprias, os padrées graficos podem ser combinados de muitas maneiras diferentes, que nao se repctem, mas sao sempre reconhecidos pelos Wajapi como kusiwa. Trata-se de um acervo cultural que se trans- forma de forma dinamica, com a inclusao de novos elementos, enquanto outros podem entrar em desuso ou se modificar através de suas variantes. O livro “Kusiwa: pintura corporal e arte grafica wajapi”, anexo do processo administrativo n° 01450.000678/2002-27, de registro deste bem cultural, apresenta exemplares dos vinte e um padrées utilizados hoje pelos Wajapi do Amapé, com suas variantes mais recorrentes. As pinturas aplicadas no cospo nao sao tatuagens nem decalques, nem s4o marcas €tnicas ou sim- bolos rituais. B tradigao dos Wajéipi decorar corpos e objetos por prazer estético e desafio criativo, Trés tipos de tintas sao utilizadas: o vermelho claro € obtido com sementes de urucum amassadas € misturadas com gordura de macaco ou éleo de andiroba; o preto azulado é obtido com a oxidagdo do suco de jenipapo verde misturado com carvao e o vermelho escuro € uma laca preparada com diversas resinas de cheiro e urucum. Muitas vezes, essas tintas sao aplicadas em justaposigdo, ou ainda sobre- postas, como, por exemplo, quando os padrées graficos sao pintados com jenipapo sobre uma camada uniforme de urucum aplicada no rosto e em todo 0 corpo. Como pincel, utiliza-se finas lascas de bambu — ou de talos de folha de palmeira — sobre as quais saio enrolados fios de algodao. Partes do corpo podem ser decorados diretamente com 0 dedo, ou com chuma- gos de algodao embebidos de tinta. A pintura corporal é uma atividade do cotidiano, realizada no Ambito familiar. Mulheres pintam seus esposos e vice-versa; namorados pintam-se entre si; as mulheres pintam seus fi- Thos pequenos, ap6s cada banho, de manhd e & tarde, sempre renovando as composigées de motivos. Por ocasido das festas, todos exibem uma decoragaio mais farta, quando a pintura é realgada por colares, bandolei- ras e adornos de plumatria. A aplicagao de padrées graficos no corpo néo estd relacionada & posicao social, nem existem desenhos reservados para determinadas ocasiées especificas. No entanto, o uso das tintas varia de acordo com 0 estado de espirito da pessoa: se esta de luto, doente ou sadia —ecom os efeitos pretendidos pelo tipo de tinta e padrées graficos utili- CERTIFICADO zados — para atrair, afastar, seduzir ou evitar, para se esconder ou se mos- trar, e assim por diante. A Arte Kusiwa, antes reservada apenas ao corpo, esté sendo aplicada pelos Wajapi a um conjunto variado de suportes. Fa- zem desenhos nas pecas de ceramica destinada 4 venda, decoram suas cuias com motives incisos, utilizados também na tecelagem de bolsas e tipoias e no trangado de seus cestos. O uso do papel e de canetas colori- das constitui-se num campo novo é muito apreciado para esta expressdo cultural. Esta descrigdo corresponde A sintese do contedde do processo administrativo n° 01450.000678/2002-27 ¢ Anexos, no qual se encontra reunido 0 mais completo conhecimento sobre este bem cultural, contido em documentos textuais, bibliogrsficos e audiovisuais. O presente Re- gistro esté de acordo com a decisao proferida na trigésima oitava reuniao do Gonselho Consultivo do Patriménio Cultural, realizada em onze de dezembro de dois mil ¢ dois. Data do Registro: vinte de dezembro de dois mil e dois”. E por ser verdade, eu, Fatima Liicia Nascimento Cisneiros, Diretora do Departamento de Identificagao e Documentagao do Instituto do Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional — Iphan, lavrei a presente nada em seis vias. Brasflia, Distrito Federal, vinte de dezembro de dois mil e dois. certidao que vai por mim datada e ass Titulagdéo O Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional - Iphan, em decorréncia do registro ne Livro dos Saberes, e, de acordo com 0 artigo quinto do Decreto ntimero trés mil quinhentos e cinquenta e um, de quatro de agosto de dois mil, confere o titulo de Patrimdnio Cultural do Brasil 4 Arte Kusiwa — pintura corporal e arte grafica Wajapi, dos indios Wajapi do Estado do Amapé. Brasflia, Distrito Federal, vinte de dezem- bro de dois mil e dois. Carlos H. Heck Presidente do Iphan 2 I, PNT ILO NO} NATUREZA E CULTURA Mitos. Moju rima ~ Xerimbabos da anaconda. Kasiripina Wajapi/202: O PATRIMONIO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO* JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES Gostaria de elaborar algumas reflexdes sobre as limitagdes ¢ as pos- sibilidades que a nogao de patriménio oferece para o entendimento da vida social e cultural. O estudo das categorias de pensamento é uma contribuigio ori- ginal da tradigdo antropolégica. A histéria da disciplina é marcada pela descoberta e pela anélise de categorias exdticas e aparentemen- te estranhas ao pensamento ocidental: tabu, mana, sacriffcio, ma- gia, feiticaria, bruxaria, mito, ritual, totemismo, reciprocidade etc. No caso, estamos focalizando uma categoria nao exética, mas bastante familiar ao moderno pensamento ocidental. Nossa tare- fa consiste em verificar em que medida ela est4 também presente em sistemas de pensamento nao modernos ou tradicionais e quais os contornos semanticos que cla pode assumir em contextos hist6- ticos e culturais distintos. Como aprendemos a usar a palavra “patriménio”? “Patriménio” esté entre as palavras que usamos com mais fre- quéncia no cotidiano. Falamos dos patriménios econdmicos e fi- nanceiros, dos patriménios imobilidrios; referimo-nos ao patrimé- nio econémico e financeiro de uma empresa, de um pais, de uma familia, de um individuo; usamos também a nogéio de patriménios culturais, arquiteténicos, histéricos, artisticos, etnograficos, ecolé- gicos, genéticos; sem falar nos chamados patriménios intang{veis, de recente ¢ oportuna formulacao no Brasil. Parece nao haver Jimi- te para o processo de qualificagdo dessa palavra. * Comunicagin apresentada na mesa-redonda “Patriménios emergentes © novos desafios do genético ao intangivel”, durante a 26* Reunido Anual da Associag#o Nacional de Pés- Graduacio em Giéncias Sociais, realizada em Caxambu, em 23 de outubro de 2002. 25 26 MEMORIA E PATRIMONIO Muitos so os estudos que afirmam constituir-se essa categoria em fins do século XVIII, juntamente com os processos de formagao dos Estados nacionais, o que é correto. Omite-se, no entanto, seu cardter milenar. Ela nao € simplesmente uma invengio modema. Esté pre- sente no mundo cléssico e na Idade Média. A modernidade ocidental apenas impée os contornos seméanticos especificos assumidos por ela. Podemos dizer que a categoria “patriménio” também se faz presente nas sociedades tribais. O que estou argumentando € que estamos diante de uma cate- goria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana. Sua importancia nao se restringe as modernas sociedades ocidentais. A categoria “colecionamento” traduz, de certo modo, 0 processo de formacao de patrimdnios. Sabemos que esses, em seu sentido moderno, podem ser interpretados como colegées de objetos méveis e iméveis, apropriados e expostos por determinados grupos sociais. Todo e qualquer grupo humano exerce algum tipo de atividade de colecionamento de objetos materiais, cujo efeito é demarcar domi- nio subjetivo em oposigio ao “outro”. O resultado dessa atividade é precisamente a constituic¢ao de um patriménio (Clifford, 1985; Pomian, 1997). No entanto, nem todas as sociedades humanas constituem pa- triménios com o propésito de acumular e reter os bens reunidos. Muitas sao as sociedades cujo processo de acumulagao de bens tem como propésito sua redistribuigdo, ou mesmo sua simples destrui- cao, como é 0 caso do kula trobriandés e do potlatch, no Noroeste americano (Malinowski, 1976; Mauss, 1974). O que se precisa focar nessa discussio, penso, é a possibilidade de transitar analiticamente com essa categoria entre diversos mun- dos sociais e culturais. Em outras palavras: como € possfvel usar essa nogdo comparativamente? Em que medida ela pode nos ser Gtil para entender experiéncias estranhas 4 modernidade? Do ponto de vista dos modernos, a categoria “patriménio” tende a aparecer com delimitagées muito precisas. E uma categoria indivi- dualizada, seja como patriménio econémico e financciro, seja como patriménio cultural, seja como patrimGnio genético etc. © PATRIMONIO COMO CATEGORIA DE PENSAMENTO Nesse sentido, suas qualificagdes acompanham as divisées es- tabelecidas pelas modernas categorias de pensamento: economia, cultura, natureza etc. Sabemos, entretanto, que essas divisdes sao construg6es histéricas. Pensamos que elas sao naturais, que fa- zem parte do mundo. Na verdade, resultam de processos de trans- formagao e continuam em mudanga. A categoria “patriménio”, tal como é usada na atualidade, nem sempre conheceu fronteiras tao bem delimitadas. E possivel transitar de uma a outra cultura com a categoria “pa- triménio”, desde que possamos perceber as diversas dimensées se- ménticas que ela assume e nao naturalizemos nossas representa- ges a seu respeito. Em contextos sociais e culturais nao modernos, ela coincide com categorias magicas, tais como mana e outras, e define-se de modo amplo, com fronteiras imprecisas e com o poder especial de estender-se e propagar-se continuadamente. A nogao de patrim6nio confunde-se com a de propriedade. A li- teratura etnogrdfica esta repleta de exemplos de culturas, nas quais os bens materiais nao sao classificados como objetos separados dos seus proprietérios. Esses bens, por sua vez, nem sempre tém atri- butos estritamente utilitarios. Em muitos casos, servem a propési- tos praticos, mas carregam, ao mesmo tempo, significados magico- religiosos e sociais. Configuram aquilo que Marce] Mauss (1974) denominou “fatos sociais totais”. Tais bens sdo, simultaneamente, de natureza econémica, moral, religiosa, magica, politica, juridica, estética, psicoldgica e fisioldgica. Constituem, de certo modo, exten- sdes morais de seus proprietarios, e estes, por sua vez, sao partes insepardveis de totalidades sociais e césmicas que transcendem sua condigao de individuos. O mesmo autor assinalou: [...] se a nogio de-espirito nos pareceu ligada & de propriedade, in- versamente esta se liga aquela. Propriedade e forga sao dois termos inseparaveis; propriedade e espirito se confundem (id., ib., p. 133)- Nos contextos sociais e culturais modernos, esse aspecto mégi- co nao est ausente das representagées da categoria “patriménio’, embora esta tenda a ser delineada de modo nitido, separadamente 27 28 MEMORIA E PATRIMONIO. de outras totalidades. A exemplo do mana melanésio, discute-se a presenca ou auséncia do patriménio, a necessidade ou nao de preserva-lo, porém nfo se discute sua existéncia. Essa categoria é um dado de nossa consciéncia e de nossa linguagem; um pressu- posto que dirige nossos julgamentos e raciocinios. Ainda que possamos usar a categoria patriménio em contextos muito diversos, € necessério adotar certas precaugdes. E preciso contrastar cuidadosamente as concepgdes do observador e as con- cepgées nativas. Recentemente, construiu-se uma nova qualificagao: o “patrimé- nio imaterial” ou “intangivel”. Opondo-se ao chamado “patriménio de pedrae cal”, aquela concepgio visa a aspectos da vida social e cul- tural dificilmente abrangidos pelas concepgdes mais tradicionais. Nessa nova categoria cstdo lugares, festas, religioes, formas de medicina popular, musica, danga, culinaria, técnicas etc. Como su- gere o préprio termo, a énfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos aspectos ideais ¢ valorativos dessas formas de vida. Di- ferentemente das concepgées tradicionais, nao se propée o tom- bamento dos bens listados nesse patrimdnio. A proposta existe no sentido de registrar essas praticas e representagdes e acompanhé- las para verificar sua permanéncia ¢ suas transformacGes. A iniciativa é bastante louvavel, porque representa uma inovag4o e flexibilizagdo nos usos da categoria “patriménio”, particularmente no Brasil. Ela oferece, também, a oportunidade de aprofundar nossa reflexiio sobre os significados que pode assumir essa categoria. Para isso, gostaria de trazer uma experiéncia recente como pesquisador. Nos tiltimos anos, venho realizando pesquisas sobre as Festas do Divino Espirito Santo entre imigrantes agorianos, nos Estados Uni- dos ¢ no Brasil. Podemos dizer que essas festas constituem um “fato de civilizagao”, no sentido atribuido por Marcel Mauss a esse termo (1981, p. 475-493). Ndo se restringem a uma determinada rea social e cultural, transcendendo fronteiras nacionais e geogrdficas. E, vas- ta sua drea de ocorréncia: Agores, Canada, Estados Unidos (Nova Inglaterra e Califérnia, principalmente) e Brasil (especialmente nas regidcs Sul e Sudeste).

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