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Resenha
Fabrício Silveira
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-00, São Leopoldo, RS, Brasil.
fabricios@unisinos.br
GUMBRECHT, H.U. 2010. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro,
Ed. Contraponto/Ed. PUC-Rio, 206 p.
1
Cf. Araújo (2006) e Gumbrecht (2005, 2008, 2009).
Além da atribuição de sentido
Gumbrecht aglutina seus interesses (lhes dá or- nados acima, assinados pelo próprio Gum-
dem e sistematicidade) em torno da rubrica das brecht, que sugeriam, que aludiam, rápidos,
“materialidades da comunicação”. direta ou indiretamente, às vezes de modo er-
Para o autor, em síntese, importam as condi- rático, ao tema das materialidades da comuni-
ções materiais que possibilitam a emergência do cação. De outro lado, tínhamos uma nuvem de
sentido. Ou seja: trata-se de problematizar (e, no dados, uma relativamente extensa literatura
extremo, evitar) o ato interpretativo. Movido con- secundária (composta por artigos de comen-
tra os excessos hermenêuticos, o livro, aliás, faz tadores, capítulos isolados em livros, papers
uma interessante crítica ao que chama de “cultura produzidos para congressos, marcados por in-
do sentido”, assumindo, de saída, o compromisso tenções de pesquisa e viéses muito próprios).
Recuperando esses escritos todos, lidando
de lutar contra a tendência da cultura contem- com eles, poderíamos apenas depreender (ou
porânea de abandonar, e até esquecer, a possibi- supor) as linhas de força, o campo de aplica-
lidade de uma relação com o mundo fundada na bilidade, os ângulos e os temas preferenciais,
presença. Mais especificamente, assume o compro- as heranças teóricas e os modos de operação
misso de lutar contra a diminuição sistemática da das Materialidades da Comunicação. De todo
presença e contra a centralidade incontestada da modo, se trataria sempre de uma síntese. Tal-
interpretação nas disciplinas do que chamamos
vez uma projeção ou a montagem de um que-
‘Artes’ e ‘Humanidades’ (Gumbrecht, 2010, p.15).
bra-cabeças. Ou seja: é como se tivéssemos, até
aqui, na maior parte, textos escritos ou antes
Nesse contexto, trata-se de focalizar (ou de
ou depois das formulações nucleares da Teoria
tentar focalizar, na medida do possível) o sig-
das Materialidades. É como se tivéssemos es-
nificante (“as coisas do mundo”) independen-
critos mais ou menos (ora mais ora menos) de-
temente de seus significados. Há, em Gumbre-
dicados à fundação mesma dessa perspectiva.
cht, uma certa fascinação com as formas (os Agora, Produção de Presença refaz esse quadro,
materiais, os suportes, a corporeidade bruta) insere-se justamente nesse hiato, cobrindo essa
da expressão. Apreender a “produção de pre- lacuna, dedicando-se exatamente à apresenta-
sença” é apreender “todos os tipos de eventos ção desse núcleo conceitual, à apresentação
e processos nos quais se inicia ou se intensifica do histórico e dos bastidores desse processo
o impacto dos objetos ‘presentes’ sobre corpos investigativo (logicamente, nos últimos vinte
humanos” (p. 13). Para o autor, uma “presen- anos, Gumbrecht não esteve só no amadureci-
ça” é algo tangível, com o qual mantenho uma mento da proposta; ao lado dele, encontram-
relação no espaço e que tem algum tipo de im- se vários outros, como Friedrich Kiler, Karl
pacto sobre o meu corpo e os meus sentidos. Ludwig Pfeiffer e Paul Zumthor).
Entre a “substancialidade do ser” e a “univer- A maior contribuição do livro, portanto, é
salidade da interpretação”, Gumbrecht opta pela reinstaurar com mais solidez esse debate, é cir-
primeira. Propõe uma espécie de ajuste de contas, cunscrevê-lo, dando-lhe a voz, a internalidade
um equilíbrio de ênfases entre os efeitos de senti- e o foco apropriados. Pavimenta-se assim uma
do e os efeitos de presença, uma reequalização das via de entendimento do mundo para além da
tensões entre ambos. Historicamente, tais tensões “metafísica do sentido”. Aqui, desconfia-se
foram silenciadas, acarretando uma preponde- da suposição de que a verdade (o verdadei-
rância excessiva do paradigma do sentido sobre ro sentido, a felicidade, a “boa vida”, enfim,
o paradigma da presença. A empreitada, como como quisermos chamar) é algo que se encon-
vemos, não é modesta. Um dos maiores méritos tra “oculto”, é sempre “profundo” e “transce-
da publicação é delimitar esse debate, dando-lhe dental”. Ao contrário, Gumbrecht defende um
uma conformação que ainda não dispúnhamos tipo de aderência às “coisas do mundo”, à pre-
(embora pudéssemos intui-la). sença no instante e à “intensidade do momen-
Até agora, em língua portuguesa, ao me- to”. Este é o campo “não-hermenêutico” que o
nos, tínhamos, de um lado, os textos mencio- autor quer sondar2.
2
Aqueles que forjam o “campo hermenêutico”, para Gumbrecht, são Dilthey, Heidegger e Gadamer. Mesmo Saussure e Hjelmslev se
encontrariam também aí. Ressalte-se que Gumbrecht não faz uma discussão sobre teorias específicas (de cada um dos autores citados,
por exemplo – dentre eles apenas Heidegger é mais largamente comentado), mas tenta, fazendo alguns rápidos recorridos teóricos,
evidenciar justamente a emergência de um “campo”, um amplo paradigma ou um amplo posicionamento epistêmico que tem sido
dominante, nos últimos anos, na área das Ciências Humanas (chamadas também, muito curiosamente, “ciências do espírito”). O
autor alega que o “campo não-hermenêutico” deveria equiparar-se ao “campo hermenêutico”, seja enquanto prática acadêmica, seja
enquanto objeto de reconhecimento institucional.
No campo dos estudos de comunicação, au- sobre a necessidade de que uma hermenêuti-
tores como João Cézar de Castro Rocha (1998), ca da arte fosse substituída pelo que chamava,
Simone Sá (2004), Michael Hanke (2006) e Eri- na época, de uma “erótica da arte”. Para ela,
ck Felinto (2007) vêm há alguns anos chaman- os discursos explicativos e exegéticos, esclare-
do atenção para a Teoria das Materialidades cedores dos múltiplos sentidos da obra artís-
da Comunicação. Nesses casos, Gumbrecht é tica não deveriam implicar num afastamento
sempre citado como um dos principais formu- da obra, mas deveriam ser, ao contrário, um
ladores e um dos mais notáveis propagadores modo de obtermos maior proximidade com a
dessa perspectiva teórica que, se não inventa a obra de arte.
roda, se não traz uma novidade inaudita para Gumbrecht aceita essa perspectiva. De
os estudos de mídia, ao menos atualiza e dá fato, Sontag também é citada. No entanto, ao
renovado fôlego para abordagens e modos de seu modo, Produção de Presença dá atenção às
entendimento que, embora houvessem estado medialidades – e os próprios fenômenos estéti-
um tanto adormecidos, mostram ainda muita cos são assim redefinidos, sem restringirem-
pertinência para a pesquisa em Comunicação se mais aos produtos artísticos específicos4.
e, sobretudo, para o estudo de determinados O trecho a seguir é bastante direto, pessoal
fenômenos sociais e objetos midiáticos confi- e esclarecedor:
gurados (e afetados, sobremaneira) pelos últi-
mos avanços tecnológicos. O passo em direção às “materialidades da comu-
Dentre os estudos de mídia, Gumbre- nicação” abrira nossos olhos para uma multipli-
cht insere-se numa tradição que remonta cidade de temas fascinantes, que poderiam ser
a Walter Benjamin e Marshall McLuhan. É resumidos (pelo menos, aproximadamente) nos
McLuhan quem irá dizer, por exemplo, que conceitos de “história dos media” e “cultura do
a principal conseqüência ou repercussão corpo”. Nosso fascínio fundamental surgiu da
questão de saber como os diferentes meios – as
dos meios de comunicação tem muito pouco
diferentes “materialidades” – de comunicação
a ver com o nível das opiniões e dos juízos afetariam o sentido que transportavam. Já não
emitidos e muito mais a ver com o nível das acreditávamos que um complexo de sentido
experiências sensíveis e das estruturas de pudesse estar separado da sua medialidade, isto
percepção que eles tipificam. é, da diferença de aspecto entre uma página im-
Salienta-se assim que há algo que poderí- pressa, a tela de um computador ou uma men-
amos chamar, na esteira do filósofo italiano sagem eletrônica. Mas ainda não sabíamos muito
Mario Perniola (2005), de “sensualismo técno- bem como lidar com essa interface de sentido e
corpóreo” da experiência comunicacional con- materialidade (Gumbrecht, 2010, p.32).
temporânea. Gumbrecht recoloca a questão,
com provocativa radicalidade, com maiores Esse registro remonta ao início da década
pretensões de sistematização e/ou numa linha- de 1970 e ao ambiente universitário em que
gem genealógica também muito própria da germinam os primeiros esboços (os “primei-
área. Mesmo antes de McLuhan, diversos tex- ros passos”) em torno das materialidades.
tos de Benjamin também seriam perfeitamente Hoje, passados mais de vinte anos, ainda não
cabíveis para discutirmos as materialidades se pode atribuir às Materialidades da Comu-
da comunicação e o particular “sex appeal do nicação o estatuto de uma teoria em bom ní-
inorgânico” de que elas se revestem (e com o vel de formulação, sólida e consistente, sufi-
qual nos interpelam). Não surpreende, por- cientemente testada. Antes, trata-se ainda de
tanto, que Benjamin seja citado em Produção de um fértil campo de estudos, uma perspectiva
Presença, num momento importante da obra, de trabalho em função da qual alguns concei-
quando Gumbrecht refere ao período histórico tos vem sendo formulados e discutidos (além
e ao contexto intelectual em que floresce a tese de “presença”, “presentificação”, “forma”,
das “materialidades da comunicação”3. “acoplagem”, “simultaneidade”, “epifania”,
A própria Susan Sontag, num artigo de “medialidade”, “corporificação” [ou embodie-
1964, intitulado “Contra a interpretação” (reu- ment] e “sensorialidade” são alguns dos con-
nido no volume homônimo), também falava ceitos propostos).
3
Sobre Benjamin, aliás, Gumbrecht (2003) colaborou também na organização do volume Mapping Benjamin. The work of art in the
digital age.
4
É na situação da experiência estética que podemos perceber, mais facilmente, o jogo tenso entre presença e sentido. Gumbrecht dá
assim importantes subsídios para a compreensão das estéticas da comunicação. Cf. Guimarães et al. (2006).
O melhor acabamento textual que a teo- GUMBRECHT, H.U. 1998. Corpo e Forma. Ensaios
rização das materialidades ganhou, até aqui, para uma crítica não-hermenêutica. Rio de Janeiro,
ocorreu em 2004, justamente com a publica- Ed. UERJ, 175 p.
GUMBRECHT, H.U. 1999. Em 1926. Vivendo no limi-
ção da primeira edição de Production of Pre-
te do tempo. Rio de Janeiro, Record, 560 p.
sence (2004), agora finalmente disponível ao GUMBRECHT, H.U. 2003. As Funções da Retórica
leitor brasileiro. Mesmo o volume Materiali- Parlamentar na Revolução Francesa. Belo Horizon-
ties of Communication (2004), resultado de um te, Ed. UFMG, 220 p.
importante colóquio realizado em Dubrov- GUMBRECHT, H.U. 2004. Production of Presence.
nik, na Croácia, em 1987, não é uma obra que What meaning cannot convey. Stanford, Stanford
procure algum acabamento ou ordenação University Press, 200 p.
GUMBRECHT, H.U. 2005. Hans Ulrich Gumbrecht.
formal, sistematização de categorias, meto-
Número especial da revista Floema – Caderno de
dologias, definição de objetos e campos de Teoria e História Literária, 1A, Vitória da Conquis-
aplicação, etc. ta (BA), Edições UESB, 105 p.
Como tal, a edição brasileira de Produção de GUMBRECHT, H.U. 2007. Elogio da Beleza Atlética.
Presença. O que o sentido não consegue transmitir São Paulo, Cia. das Letras, 184 p.
deve ser saudada. Trata-se de um texto corajo- GUMBRECHT, H.U. 2008. Kleist por H. U. Gum-
so, arrojado, irônico e auto-reflexivo. Dono de brecht. Número especial da revista Floema – Ca-
uma escrita densa e fluente, até comovedora derno de Teoria e História Literária, 4A, Vitória da
Conquista (BA), Edições UESB, 100 p.
em determinadas passagens, Gumbrecht nos
GUMBRECHT, H.U. 2009. A presença realizada na
desvela um amplo conjunto de questões, um linguagem: com atenção especial para a presen-
amplo panorama intelectual, por certo, bastan- ça do passado. História da Historiografia, 3:10-22.
te úteis à área da Comunicação e, no extremo, GUMBRECHT, H.U.; PFEIFFER, K.L. (orgs). 1994.
capazes, inclusive, de apresentar novos desa- Materialities of Communication. Stanford, Stan-
fios, dar novo impulso e novos direcionamen- ford University Press, 447 p.
tos aos estudos que fizemos. Trata-se de um GUMBRECHT, H.U.; ROCHA, J.C. (orgs.). 1999.
Máscaras da Mímesis. A obra de Luiz Costa Lima.
livro voltado para o futuro.
Rio de Janeiro, Record, 378 p.
GUMBRECHT, H.U.; MARRINAN, M. 2003. Map-
Referências ping Benjamin. The work of art in the digital age.
Stanford, Stanford University Press, 268 p.
ARAÚJO, V.L. 2006. Para além da autoconsciência HANKE, M. 2006. A Materialidade da Comunica-
moderna: a historiografia de Hans Ulrich Gum- ção: um conceito para a ciência da comunica-
brecht. Vária História, 22(36):314-328. ção? Interin, 1:1-8.
FELINTO, E. 2007. Passeando no Labirinto. Ensaios PERNIOLA, M. 2005. O Sex Appeal do Inorgânico. São
sobre as tecnologias e as materialidades da co- Paulo, Studio Nobel, 152 p.
municação. Porto Alegre, Ed.PUCRS, 116 p. ROCHA, J.C. (org.). 1998. Interseções: a materialidade
GUIMARÃES, C.; LEAL, B.; MENDONÇA, C.C. da comunicação. Rio de Janeiro, Ed.UFRJ, 368 p.
(orgs.). 2007. Comunicação e Experiência Estética. SÁ, S. 2004. Explorações da noção de materialidade da
Belo Horizonte, Ed. UFMG, 208 p. comunicação. Revista Contracampo, 10/11:31-44.
GUMBRECHT, H.U. 1998. Modernização dos Senti- SONTAG, S. 1987. Contra a Interpretação. Porto Ale-
dos. São Paulo, Ed.34, 318 p. gre, LP&M, 352 p.