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vrgc UUNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS TRerTon Jame Astaro Ramos vyce-Rerrona Sandra Negi Goulart Aleta (ota) EDITORA UEMG Dunston Wander Melo Miranda Vice-Diseton Roberto Alexandre do Camo Sad ‘CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Mien resi) Ana Marla Cretano de Fare Danielle Cadaso de Menezes Flasode Lemos Castle ‘sls Mara Murgel Sing Mario Gomes Sear Mata elena Damasceno e Ske Megale bert Aone do Carmo Sid ose UNIVERSIDADE DE SKO PAULO Rerran Marea Antonio Zago Vice-Rervon YahanAgopyan rm EDITORA DASE. Dneron-PuesiDeSTe, Pini Maras Fitho Eorrons-ASiSTENTE Cala Fernand Fontan (COMISSKO EDITORIAL Rubens Bieapero (Reso) atlas lesa Batons Dana cesses) (Chester Lia Gaba Cor MayanaZat Sod Hieebo “TinisTné Matas de Cato eri De Masco SERGE GRUZINSKI AS QUATRO PARTES DO MUNDO HiIsTORIA DE UMA MUNDIALIZACAO Cleonice Paes Barreto Mourdo Consuelo Fortes Santiago Taapugio, 7 a ‘eprroraulim, jusp mse) te 1 2004, Latins de La Martine | Tle orginal: Las quatre pater de monde: hutore Zune ‘mondiaation © 201, Serge Grins (© 2014, Editors UFMG| Eduap Esteio cups dele io pe so eeredur or qualquer melo rm autora eet ds Etre ‘Goidq Grane Serge. ‘As quito partes do undo hitéra d ura mundilingto/ Serge Grunael ‘Ceonie Pact Barto Moura, Consuelo Fores Santgo, teduso,- Belo Horizonte Ediora UEMG ; Sio Paulo Edusp, 2014 ‘6p. ‘Tadog de: Les quate partis du monde isoice dune mondilsation Tcl ibigraa, ISBN. 975 95.7011.9068 (Eators UFMG) ISBN: 974-5-914-1978.0(Edusp) 1 Amésca Latina - Hstéela. 2. Europa Hist, 8. Asia Hise 4 Afi Hina, I MourS, Clenice Paes Barcto. I Santiago, ConsuloFotes, 1, Tilo, pp: 008 cpu: sa09 [luborada pela DITTH -Setr de Tstmento da Iaforoagéo da Bibllotca Unvesiia da UFMG CCoonprxacio rorronta PREPARAGKO DE TEXTOS ASHSTENCHA EOFTONIAL Dinerros auras Coonesngio oi TEXTOS osisfeedentcn Pager cnivicn, rmMstgho EDITORA UMC Aaa Clos, 6627 CAD H- as Cans Panputhe_ 91270901 DeloHtonsoat. MC. Bra Tod 98501 3400-4650 Fax 5501 2400-4765 swreionulngeombs edtar@aingte Fei feito a dept legal Michel Gannam ane Sous e Euclid Macedo Mara Margceth de Line Renato Femandex Maric do Carmo Leite Ribeiro ‘Camila Figured, Clive Rocha Cabrio, ulana Santos, Kéis Ove Michel Gannam e Simone Pereira Roberto Sad Alexandre Rodriges Dibgo Olvera» Ednardo Fersiza Lunportant Culturl Property, Western Kings (on Horeback, Morena peried etry 17th entry, & Suntory Museuarof Art, Telyo [EDUSP- EDITORA DA UNIVERSIDADE ‘os da Prag do Helen, 100-8 Cidade Universi 0858-050 Sto Pasle-SP Bra Divo Comers al. 35 1 280-40085001-4150, eweduip.com be elurpensptc Para Décio de Alencar Guzmdén Carituo | Ventos do leste, ventos do oeste Um fndio pode ser moderno? modemo aqule que 6 forgado ase perguntar o que fazem hoje os chineses os isandeses Pete Sloordik, Lheure du vine ole empe de onwore rt, 2001, “Axean miercoles ye tia metal setiembre de 1610afos,y uaenican Mexico...” Na quartafeira, 8 de setembro de 1610, « noticia chegou da Espanha ao México: soube-se que haviam assassinedo ore da Franga, Henrique LY, e quem o asassinou foium vassalo, um de seus servdores e de seus pajens:ndo foi um cavalo nem um nobre, mas um homem do povo, Soube-se que oestrangulou em plena nva, quando 6 ei ia em sua carruagem em companhia do bispo minclo, Para estrangulé-lo, 0 servidor Ihe remeteu uma carta em sua carruagem, «fim de que o rei se inclinasse paravé-la Foi entfo que estrangulou sem que se sb por qué. O rei crculava na cidade; percorria uma naa a im de verse estava convenientemente decorada pare. as celebragSes em honra de sua exposs, que ia ser coroad rainha da Franga.! Por mais que o assassinato de Henrique IV tena sido um dos mais eélebres episédios da historia da Franga, € surpreendente descobrir seu relato a amithares de quilémetros do reino das iris, em casa de um morador da Cidade do México e, mais ainda, na pena de um cronista indigena e na lingua dos astecas. Foi, entretanto, Domingo Francisco de San Antén Mufién ‘Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin, nobre chalea,? que teve o trabalho de ‘consignar 0 acontecimento em set Didrio, na data de 6 de setembio de 1610. vspenr ea ae te GE as Sg yee GOP as pula ta paren ap ma match igs REE Regn? ono da Cidade do México, Juan Gea de Tasso, 1625, ‘Mey dae dl Meson Meco. Dur Ps, A morte do rei da Franca {As circunstincias do atentado sio bem conhecidas. Em 14 de maio de 1610, no inicio da tarde, o rei da France pega sua carruagem para visitar Sully, seu superintendente das Finangas. Sai do Louvre acompanhado dos * (Os moradores da Cidacle do México as melhores intengdes a respeito do rei da Espanha~ nfo The propunham, sem descanso, “nio fizer guerra, mas estimarem-se"? As perspectvas esprituals ¢ ‘omercials que se abriam aos doi reinos os encantavan. A paz nfo permitiria, 208 “Japoneses virem & Cidade do México vender e fazer comércio"?™ Enquanto se espera, em 9 de abril de 1614, 20 japoneses fizeram-se ‘Datizar na Igreja de Sao Francisco, menos de um século depois dos primeiros_ Datismos eth terra mexicana. Quem podia entio imaginar que as vias do Céu e do comércio se fechariam a0 mesmo tempo, e que, isolando-se do mundo ocidental, 0 Japto dos Tokugawa voltara as costas para Deus e para Nova Io ar arate mundo segundo Chimalpahin v Q universo de nosso cronista assemelha-se ao dos letrados europeus,_ revisto por um olho indigona razoavelmente hispanizado, Um mundo que se ‘compte de quatro partes, como ele faz lembrar em seu Segundo relatério, quando interrompe 0 relato da origem de Azilan, a cidade mitiea de onde vieram os astecas: “Digamos um pou; para trinquilizar os coragdes, qual & a grandeza dos mares e das terras.” As explicagies que ele oferece s20 quase literalmente retomadas de uma obra publicada na Cidade do México, em 1606, 0 Repertorio de los tiempos ¢ historia natural dea Nueva Espana, de Heinrich Martin “Todas as ters do mundo, que foram descobertas até hoje, divden-se em quatro partes. Que o suibam aqueles que verao este papel eserto: a primeira é Europa, a segunda 6a Asia, teria 6 Alia a quarta 0 Novo Mundo." Roma.eum “soberano universal”,orei da Espanha. Sua cartagrafa mental honda Portugal priilegina Epanla e Roma e, por razdes eminentemente pessoais, a Italia ele mesmo esti ligado, porque se ocupa de sua capela.” Conduzindé-a pelo caminho tragado por esses reliioxos, sua Pana pIO|HE- em direco a terras sempre sais langinguas, “no Oriente, na Grécia, nas duas Arménias, a Grande e a Pequena, em Moscou e na Etiépia, que ¢ reino do que se chama o ‘Padre Jean’ és - wo México ao Peru, pasando. pela California, Florida, Cuba, Santo Domingo, Guatemala, Honduras.° Sua Asia abarea as Filipinas, Cebu, as Molucas, 0 Japfo, a China, Sobre esse mapa do mundo, reconstituido a partir das anotagdes de seu Didrio, chamam a atengio algumas auséncias importantes, como a Africa ocidental, fo Maghereb ou a {ndia, Mas outros eseritos do eronista corrigem essas lacunas, descrevendo uma Africa que corre " de Fez, do Marrocos, de Tiinis fe Tlemcen” ao Cabo da Boa Esperanga via Libia, Cabo Verde e a “Terra dos Newias" Af se reoresenta uma Asia forte da“ din de Portugal” o da “Grande China”, da “Pérsia do Sofi”, do império dos Tirtaros e o do Grio- Turco." A quantidade de referéncias livrescas, indiferentemente regis tradas, mistura-se aos verdadeiros interesses pessoais em cortas partes do “Tundo - Os pates estrangeiros que enumera nfo sto Forgosamente nomes ‘ya7ios em lstas que ele recopia. Bi testemunho disso sua breve histéria dos pafses europeus no século XVI, retragada através dos grandes casamentos: de principes do Renascimento, que nfo tém nenbum segredo para ele, Mas no nos deixemos enganar quanto a iss0: so as rogras da sucesso, ¢ nko 0s segredos de alcova, que cativam 0 cronista chalea.® Chimalpahin seria um caso excepeional? Nascido em 1579,no vale da ‘Cidade do Mésico. pertence 3 pequena nobreza indigena de provincia. Tendo chegado cedo capital da Nova Espanha, recebe uma edueagto de qualidade, provavelmente junto wos franciscanos, ¢ frequenta efrculos eclesidsticas Em 1593, na qualidade de converso, ele tem a seu cargo a ermida extramuros de San Antonio Abad, em Xoloco, ao sul da cidade. Essa capela 6 ligada & cordem dos Antonios, das cnegos regulares, que Chimalpahin sonha em ver implantar-se na Nova Espanha. Suas obrigaedies deisam-lhe bastante tempo leitura e escrita, Sis origens socais so honordveis, sem ser prestigiosas, ¢ as fungdes que ocupa parecem relativamente modestas, Chimalpahia nio pertence que distri todas as riz urstocracia mexica, nem mesmo ao meio dos notiveis indigenas nem entre sio governo dos indios da Cidade do México, ¢ témm s «le serem melhor informados que ele sobre os negécios da cidade, da Espanha ¢ do mundo, Muitos dentre eles tém oportunidade de viajar entre a Espanha ¢ 0 Mésico.Mas Chimalpabin tem o.seu fvoros nigncias de cronisla ¢ seu gosto imoderado pela escrita, Eles explicam 1 Fiqueza de suas refer ncias, a diversidade de seus interesses, a extenstio 0s limites de sens conhec também seu testemunho oriundo de fontes indigenas, que ele explora com imiios de mestre: é menos um historiador que um compilador de informaghes, recolhendo incansavelmente tudo o que ciroula na Cidade do México, lias, "mailiScritos- conversas, rimores. Donde uma chuva de referéncias cléssicas Platio, Didgenes Laéreio, Safocles, Lactance, Santo Agostinho... - que ele usa com a mesma seguranga que seus colegas europeus, mestigos ou crioulos, ‘ecom 0 habito, nos entos mais rotineiros, de pilhar os conten: porineos. Uma de suas fontes favoritas € 0 Repertorio de los tempos. (1606), nentos. Mas esses mesmos limites valorizam um tratado de astronomia que oferecia grande quantidade de dados sabre a historia e a geograia universal £ por isso que 1 nagem bastante ficl da maneira pela qual um habitante da capital, curioso ¢ bem informado das coisas de seu tempo, representava o mundo, Chimalpahin esté longe de dispor das informagies politicas guardadas pelo efrculo do vice-rei, pelo alto elero, pelos inquisidores ou pelos jutzes de audiéneia, tampouco tem acesso aos conhecimentos que circulam entre os comereiantes portugueses, italianos e espanbdis, Mas, fora dos assuntos que o tocam diretamente ~ a histéria de seu senborio, a histéria universal e a ordem de Santo Antonio -, cle capta tudo 0 que interessa dos meios abastados, sem negligenciar nada © que diverte ou apavora as multidées da capital mexicana: mexericos Tocais.® festa, “alegres entradas”, tremores de terra,” inundagies, eclipses, até as tempestades de neve sobre os grandes vuledes que dominain o vale “Um reino universal” © indio Chimalpahin 6 um escritor mestigo. Seu espftito e sua pena rmisturam tradigoes,idelas © palavras que vem pelo menos de dois universos ‘a.sociedade amerindia e a Europa ocdental. Até mesmo de um teroein ‘quando se interroga sobre as reagies dos negros do México, ou de win quarto, quando introduz no seu relato termos japoneses e especula sobre o sentido jas costumes nipdnicos. A maneira como designa o rei da Espanha é reveladofa dessas misturas. Em seu Didrio, Felipe If aparece com 0 nome de Cemanahuac Tlahtohuani, 0 “Soberano Universal”. Ao sabor de uma jessis Oparagies costumeitas” do pensamento mestico, Gerona Mdigene ‘combina e recicla termos de sua lingua, o névatle, emprestados do passado eda cosmologia pré-hispfnica para designar uma forma inédita de poder: _agucle de que dispde o rei da Espanha desde que governa o “reino universal” (altepetl cemanahuac)*, isto 6, a monarquia catélica, Jem 1566, em uma carta em lati, dirigida ao rei Felipe TL, um aris tocrata mexicano, dom Pablo Nazareo, enriquecia a titulagio do saberano, gratifieando-o com um exético e grandiloquente Chinae Novi Mundi Regi ®® Os titulos asbuidos pela orstocrucia mexicana a Felipe de Castela nfo 520, ‘no entanto, elucubragies indigenas. No mesmo ano, 0 agostiniano Andrés de Urdaneta nao se constrange em afirmar que a Espanha possufa “a maior e a ‘melhor parte da China, assim como asilhas de Rit-Kiu e dos japoneses".* 0 que, uma boa dezena de anos mais tarde, confirma o galego Bernardino de Escalante: “Este grande reino [a China] depende de distrto da conquista de nosso Rei Catélico."* AS mestigagens sto indissocidveis dos contextos em que se desenvoluem, fveis, Chimalpahin veage primeiro as expecta tivas do iieio no qual viveu e que poderiam se cireunserever ii Cidade do Mésico, até mesmo a sua capela de San Antonio Abad, a este cireulo confor- tvel e refinado de monges e de curas, entre os quals passard a maior parte de seus dias. Homem da cidade, Chimalpahin ¢ igualmente muito ligado & sua regitio d [Por muito tempo ‘dominada pelo senhorio indigena de onde veio, Chaleo-Amecameca. O que rio o impede de transpor em pensamento os oceanos. Tento porque se preocupa em inserever a histéria de seu senhorio e do México em uma his- ria universal e divina,® quanto porque 6 s u tempo. Na nota que consagea A morte de Felipe I, traduzindo em néuatle a ideia de “senhorio universal . Chimalpahin exprime claramente a consciéneia que tem de pertencer & monarquia catélica, isto é, a umm sistema politico que reunia entio us possessées da Espanha e as de Portugal, sob o cetro do rei Felipe Il. Na verdade, desde 1580, a mesma dinastia reinava sobre uma parte da Europa, sobre as costas da Aftica,"Goa, Macau, Filipinas; ela domi- nava a América, da Terra do Fogo 20 Novo Mésico. Seus navios eram os senhores do Atlintco; ingravam 6 oceano Indico; atravessavamn 0 Pactico Antecipando novas extensdes gabando sous feitos, sditos da monarguia tinham realmente tondéncia a teansformar esses avancos, nas “quatro partes rio universal ou em supremacia mundial. E 0 que faz sm sta nota sobre o desaparecimento de Felipe II, e ele nfo ‘Encontra-se a mesma affrmagio na Espanha —ou na Ita, na pena de um ilustre contemporineo, Tommaso Campanella, a seu modo também um ‘bservador periférico da minaiuia, Na aurora do século XVI, o monge cala- brés exalta-se evocando a imensido da “monarquia da Espanha [que] suseita admiragio e mostra-se de uma grande audiota, (... na medida em que subjugou tantos mares, fez volta completa do mun pouco tempo, com mais arte ‘e-mndcia do que: as que mostraram os tiros, cartagineses e Salomto."* Se Chimalpahin possui uma percepeio livresca do planeta que se molda ‘ng_esquema europeu das “quatro partes do mundo”, 05 outros continentes so para elé muito mais que um quadro imaginério, Sua experincia pessoal sua existéncia do.dia a dia imergem-no em uma cidade com cerca de 100 ail habitantes, México, onde coexistem espanhéis, portngueses, flamengos, {ndios, mestigos, mulatés e negros da Africa, sem contar franceses, ita lianos mesmo algumas centenas, até mesnio wn milhar de asidticos desembarcados das Filipinas, da China ou do Japao: Uma sociedade colonial nna qual as relagdes entre os grupos étnicos eram probleméticas e sempre suscetiveis de serem questionadas, como quase foi 0 ¢as0, em 1609 ou em 1612, quando, tomados de pinico, os espanhdis temeram ser massacrados, até 0 timo, por seus escravos africanos.* ‘Nifo se poderia, pois, falar de Chimalpahin ¢ da Nova Espanha sem levar em conta essas dimensOes planetarias, Estas nl sfo, ails, tao inespe- iadas, uma vez que 9 estido ds Tendmenos de aculturaclo, dos sineretismos religiosos e das imagens mesticas, no México espanhol, nfio cessou de. confrontar-nos com 0 choque € 0 cruzamento dos mundos.® Nos textos, | gens urtsew coin a intensidace das ciroulagies e projetacnos através das espacos e dos tempos, desvendando paisagens misturadas, muitas vezes —_/ deiorientadors, sempreimprevisteis. 5, fp Lew “Histérias conectadas”* ood & Como conceber as circulagées e as relagdes entre mundos ¢ histérias riltiplas, seo eurocentrismo, se nio for o provincialismo, com seu gosto elo exotismo e o primitivo, entrava ou parasitava a leitura dos passados no europeus? Os trabalhos dos historiadores da Europa ocidental néo nos ‘ajudam a olhar para além dos limites dessa porgo do mundo, ¢ seus colegas amerieanos, ainda muitas vezes presos a fronteiras herdadas do século XIX, niio nos trazem mais ar fresco.® Quanto aos especialistas da histéria mun- dial, ou world history, se 0 exemplo deles nos encoraja a ultrapassar os velhos horizontes nacionais, seu provedimento nem sempre é despojado de etnocentrismo.* Julgado intelectualmente redutor € suspeito de intengoes ‘etnagentrismo europeu foi objeto ultra-Atlantico de atagues hegem#nicas, jemétions' Pssas evftioas prestam-se tanta mais a reflextes quanto so, pitas vezes, em grande parte merecidas. Mas uma outra razio, diferente- mente mais poderosa, milita hoje pelo alargamento de noss0s imagindrios. ‘A progressio da mundializagio esté a ponto de modificar as estruturas habituais de nosso pensamento. So nossos mados de revisitar 0 passado. ‘que se-acham inexaravehnente ahalaclas, Intercambios de todos 0s tipos desenvolvem-se entre as diferentes partes do globo e questionam radical. mente a centralidade de nosso Velho Mundo e de suas concepedes A qvolugio das téenicas, a aceleragio das comunicagées, mas também ‘a criaglo artistica, em todas as suas formas, nflo cessam de remeternos, ia aps dia, a esses questionamentos. A produgio cinematografiea asitica esses iltimos anos, para nao dar sendo um exernplo, desorganiza todas as nossas nogdes de tradigzo e de modernidade, “Que o mundo chinés moder- niizado, sem renegar suas origens e suas singularidades, possa ser por tador ‘naturalmente’ dos valores formals, aos quais tende a modernidade cinematogrfica, & uma estranha promessa, iio somente para o cinema." Semelhante desafio implica que se desconfie das historiografias nacionais que se esforgaram, por muito tempo, em escamotear essas circulagdes, impermeabilizando suas fronteiras. So testemunhas disso as que separam que levaram esses bloqueios até a caricatura”™ dois patses théricos, explicam que temos dificuldade em compreender, hoje, ‘que grandes textos espanhdis® tenham podido ser publicados em Lisboa ‘com “Ticengas” portuguesas, antes de o serem em Castela, ou que portugueses ftenham exercido responsabilidades na América espanhola.® Esses confins- rmentos repercutem-se nas divisdes da América Latina, cortando 0 Brasil ~¥ de uma América hispanica, por sua vez fragmentada ent uma tadarntia de hhistérias nacionais nascidas das independéncias do século XIX. Mais recentes ‘€ mais capciosas ainda, as retGricas da alteridade — o discurso ou 0 olhar sobr. reo Outro, a visio d = levantam obstéculos tio temiveis quanto as falas de penetragio e as estreitezas das historografias locas. Diferengas @ distincias muitas vezes exageradas, reificadas, ¢ as vezes até imaginadas em todos os detalhes acabam por enterrar as continuidades, escamotear as coincidéncias ou as passagens que tornavam vidveis, no dia.a dia, a coesis- téncia entre os serese.as sociedades.” Quanto & voga da micro-histéria ~ ou da microetno-hist6ria-, ela quase nao contribuiu para alargar nossos horizontes, Mpa do muro, Bimbo japon nc do lo XVI need Cie de abe on Como conseguir repor junto elementos aprentemcots to dispar quanto 0 assassinato do rel Henrique IV, a esorita mdigena na Cidade do ‘Tokugawa? Em outras palavras, como retomar o estudo dos “desencantor are oe (Femand Braudel)?? Em seu Méditerranée, Fernand Braudel j4 havia colocado o “problema fundamental do contato das civilizagdes e das culturas”,” quando se intertoava sobre os winulos entre a Europ cristo 0 lt Tbérica quanto na dos Balcis.” Para compreender por que o indio chalea Domingo Chimalpahin interessa-se pelo Japfio dos Tokugawa e pela Franca proveito, por exemplo, das lig6es de uma world history, tio salutar em tempo de retragio, mas sem dela utlizar maquinalmente as vias, de tanto que (), Hentos planetirios” (Pierre Chaunu} ssas aproximagBes_macro-histOrieas sacrMoam em profundidade o estudo las situagfes e dos seres que nos interessam.” As pistas de uma histOria cultural descentrada, atenta ao grau de permeabilidade dos mundos e aos crizamentos de civilizagées, podem igualmente revelarse fecundas, corm a condigdo de escapar as caréncias habituais dessa disciplina. Ancorada na esfera da arte ¢ da cultura, essa histéria cultural ampliada nfo adguire todo seu sentido sendo em um quadro mais vasto, capaz de explicar, para além das “hst6rias partithadas”® como e a que prego os mundos se articulamm,— Os Tages que tunem um Gronista mexicano aos continentes europeu, asiftico ou africana most ‘e limita & Buropa e a seu vizinho otomano. A questio é, pois, planetria A presenga de um retibulo barroca em uma capela indigena do Novo Métco_ ou a insergiio de um termo japonés no néuatle de Chimalpahin sio dados ue modo de acoplamento de um mundo em outro, sem limitar-se aos lagos | atados pela Europa ocidental com o resto do globo. As relagées entreas artes, "earopets ¢ ¢ amerindias, entre as mitologias do Velho € do Novo Mundo, dependem de uma mecinica complexa. Hsses fendmenos desenvolvem-se “Te to no sein de um campo maisamplo, ode uma ist6ria ainda a construir ce que se apolaria em,connected histories, para retomar a {érmula do historiador da Asia e de Portugal, Sanjay Subrahmany: cexumagio dessas “cone- bes” histicas pode serif pa abolir as aproximagbes ov OF prion” Ga ‘bistéria comnarada mas cla chriga também o admitir que as histérias so « auiliplas. mesmo se muitas vezes tém interesses comuns ou comunieam-se mitre st Os uni ‘que a ronicerde Chimalpahin rete @ ANia japonesa, Europa de Roma e de Paris, o Mérico profundo de Chalco-Amecameca esto implicados em process0s histricos de grande envergadura, que vio muuito além das preacupagées do autor e ullrapassam 0 dominio da historia, tal comi6 @ Gompreendemos habitualmente, isto 6, a histdria ocidental. A primeira vista, a tarefa 6 simples: tats-se de aprender ou restabelecer as conexées surgidas entre os mundos ¢ as s60iedades, um pouco a maneira de um eletricista que viria reparar 0 que o tempo eos historiadores desuniram. Um teatro de observagio: a monarquia catélica (1580-1640) Resta definir emqueescala com qualcegistra.e eon qualespaga intervie ‘para analisar esses “contatos” ou esses “cruzamentos". Analisando os afrescos e vsitando 0s ateliés dos pintores indigenas do México, na segunda metade do século XVI" descobrimos Fibula antiga, o rista, a moda ¢ a técnica dos protescos serviam de liames ¢ até de atratores nite crenpas amerindias ¢ crencas exists. Entre os pintores tlacuilos, 08 nobres indigenas e os monges espanhéis, através dos motivos, das formas e das cores, detectamos uma dessas inumerivels,"histries conectadas", que csclarecem a construgio das sociedades colonais'nt América Latina. & tempo agora de abrir outras investigagbes sobre horizontes mais vastos. definidos menos em fung2o de recortes que seriam os nossos atuais ~ Europa ocidental, a América Latina, o México, o Peru, o mundo hispa ico... = do que a partir dos gonjuntospolticos de visto planetéria que ‘existiram em cerlas épocas do passado-—— ‘As curiosidades do cronista Chimalpahin nos ensinaram como um letrado indfgena podia representar um desses conjuntos planetirios, vivé-lo e des- cxevé-lo/O conjunto que nos interessa aqui associa quatro continentes © constitu uma configuragio politica que os contemporineos chamavam de “monarquia cat6liea”, A monarquia reunia imensos territrios sob o cetro de las coroas" acrescentou Portugal e suas ar 8 heranga de Carlos Quinto, diminufda do império reinos tio dstantes quanto Népoles, Nover Espana, Peru, cidades tio disse- rminadas sobre o globo quanto Goa, Manila, Salvador da Bahia, Lima, Potost, Antuérpia, Madri, Millio, Népoles eneontraram-se assim sob 0 mesmo soberano, Depois de Felipe II, seus sucessores Felipe IIL e Felipe IV domni- narlio esse gigantesco espago até 1640 possessoes de Durante esse longo meio século, a Peninsula Ibéricaem sua integralidade, ‘uma boa parte da Itdlia, os Pafses Baixos meridionais, as Américas espanhola, e portuguesa, da Califérnia & Terra do Fogo, as costas da Africa ocidental, regides da {ndia ¢ do Japao, oceanos e mares longinquos compuseram 0 “planeta filipino” sobre o qual, a cada meia hora, a missa era celebrada. Esse ‘aglomerado planetério apresenta-se primeiro como uma construcio dinéstica, pellicao MeoTgic,cujas orgens © consequEncias foram Trequenterente. _catélia 6um “personagem (...)compleso, embaracador fora de série, [que]. _~cscapa As nossas medidas ¢ 2s nossas cateyorias’ Nao somente & um mosaico-— planetério, tonstituido de pecas importadas, cujo niimero, diversidade e articulagdes desafiam a explorago, mas esse conjunto, que merece o eptteto de efémero, talvez tanto quanto o império de Carlos Quinto, nfo se insereve em nenhuma longa duragio. Esse conglomerado nao sobrevivers & revolta de Portugal em 1640. dissecadas. A heranga do império romano e das experiéncias medieval, os| ‘rroubos da “conquistaespiritual” a sombra perturbadora dos messianismos af ocupam tanto espago quanto as aliangas matrimoniais, que aconteceram a favor dos reiscat6licos, antes de ser proveitosa aos Habsbourgos. 0 acaso atou e desatou as combinagées matrimoniais que, no fim do século XV, punham a untio das trés coroas — Castela, Aragio e Portugal ~ na ordem das coisas vindouras.” Nao podendo inscrever-se na tradicio imperial da Europa medieval ~ Felipe II nfo é imperador -, a dominagao filipina buscou fundar suas pretensdes universais sobre sua extensfo geogréfica ~“os reinos mais extensos..."® Os historiadores das instituigdes ensinaram-nos muito sobre essas questées. Os da economia nfo ficaram para tris, mostrando {que a monarquia catélica havia sido o bergo de uma primeira economia mundo." Mas esses trabalhos nfo poderiam fazer esquecer outras facetas {gualmente universais, a comecar pelo desdobramento planetério das buro- ‘cracias e das instituigSes que serviam, todas, & Coroa e & Igreja." As redes ‘rangadas pelas ordens mendicantes, a Companhia de Jesus, os banqueiros italianos ou ainda os homens de negécio marranos* ligavam igualmente as quatro partes do mundo sem confundir-se com a monarquia. A exploraglo de dominios aparentemente menos estratégicos, que sejam manifestagoes literérias, plisticas, arquiteturais ou musicais do dominio filipino, revela-sé igualmente rica. Ela descobre o brilho internacional do manetrismo, a prit meira arte a expandir-se em varios continentes ao mesmo tempo.) (1 ‘A monarquia catdlica singulariza-se também pelo espaco plaretirio que a constitu, Fragmentado demais e disperso demais sobre o globo, para deixar-se facilmente abarear, esse espago foi habitualmente escamoteado ‘em proveito de abordagens centradas em Castela ou no Mediterraneo ocidental® Estudos italianos,frequentemente muito sugestives, egligenciam {gualmente o peso das Américas tbéncas; de Portugal da Asis Porgy nos desenvolvimentos que dedicam ao sistema imperiale. A tarefa, 6 ver dade, niio 6 facil. Como o Mediterrinen de Fernand Braudel, a monarguia ‘Sem passado e sem precedente, desprovida darmenor unidade geogralica, a monarquia esté ao mesmo tempo enraizada em continentes ~-2s-{ndias ‘ocidentais ~e instalada sobre os mares ~ 0 oceano fndico dos portuguesed®. Ela apresenta uma outra singularidade: multiplica o face a face com as coutras grandes civilizagées do mundo; na América com os antigos impérios do México e dos Andes; na Asia com a Turquia dos otomanos, a {ndia dos Griios-Mogtis, a China dos Ming, o Japio da era Momoyama e dos Tokugawa; na Africa com os reinos de Guiné, o império do Mandimansa, o-império do Mali e o império da Etidpia. Por toda parte, salvo'na América, das Filipinas &s costas da Africa, ela enfrenta um de seus inimigos mais irreda- tiveis:o isla 0 espago da monarquia distingue-se, antes de tudo, pelas ciroulagtes jlanetarias que af se desenrolam e que a irrigam através da “brassagem” dos homens. das sociedades ¢ das civilizagies” Em todas as partes do mundo, 1 dominagio ibériea aproxima, poe em relagio ou interpenetra formas de governo, de exploracio econémica e de organizagio social. Temporalidades sio, de repente, ligadas entre si. Por toda parte, confrontam-se brutalmente instituigdes religiosas e sistemas de crengas, que nada os dispunha a coctistirem, Q cristianismo romano opde-se nfo somente 0 islt, mas, também ao que os ibéricos chamavam de “idolatrias", designando por esse asiéticas" AC se acrescenta a Tuta contra 0s Judaizantes e oF protestantes, ‘que por toda parte acompanham a monarquia na sua mobilizagao planeta, Em Goa, México ou Lima, o Santo Oficio da Inquisiglo teve que aprender a medirse com meios e imensiddes que, por sua vez, transformaram inexo- ravelmente as modalidades ¢ 0 aleance de sua agzo.* Mestigagens e dominagio planetéria af onipresentes. Sdio fenémenos de ordem social, econ cultural nao poderia dar conta da mulkiplicidade dos dominios no seio dos. uais eles se desenvolvern, Espectalmente, como dissociar as mestigagens das reads de orga em que elas surgen? Os empreendimentos de Tom hago que preciptam as mestigagens, ou que € n certos momentos, lisam-nas e apagam-nas, exereem-se em escalas muito diversas, Fles podem ser laeais (Cidade do México), regionais (a Nova Espanha), coloniais (as relagdes com a metrépole), mas também globais (a monarquia). A monar- quia catdlica e seus mundos mesclados sfo assim percorridos por mirfades de interagées, que remetem a formas miiltiplas ¢ méveis de dominago."" 2 roja. a Coroa, as administeagies The _rigas_nutririam um grande projeto globel ao qual se oporia wma infinidade _ de “hist ‘complenas? E nesse contexto histérico © retomando uma reflextoesbogada ‘em mous trabalhos precedentes que me interrogarei sobre a proliferagio das rmestigagens—mas também sobre sualimitagio —em sociedades submetidas a uma as locals” Ou estarfamos em presenga de realidades muito mais dorninagao de ambigdes universais.® Hoje, a questio talver seja ainda mais crucial. Sq_pusermos em relacio generalizada, “choque das civilizagbes", ‘mistura das sociedades, os temas remetem invariavelmente & cena contem- porlinea, quer se identifique mundializagio com “império americano”, quer se interrogue sobre a homogeneizagio das sociedades e dos modos de vida sobre o planeta.” Nada assogura que os processos atuantes na monarguia tenham estado diretamente ng origem das transformagdes que acompanharam 0 fim do século XX, -A/busea das origens ¢ uma velha obsessio da historiograia limites. O exemplo do fndio Domingo Chimalpahin encoraja-nos a visitar as x partes do mundo” preferencialmente com as ferramentas do histo- imagens ¢ dos tertos um outro passado, Ploqueado entre as paginas que ‘conectadas”, se nio é mais revelador ou mais auténtico que as verses que nossas, com a distincia eritica que impéem os séculos e os oceanos. E essas ‘questées ultrapassamn amplamente o campo da economia, das tecnologias € dda comunicagao, no qual se fecham habitualimente os experts da mundia- lizagio contomporines,

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