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Fernando Pessoa – ortónimo e heterónimo

Fernando Pessoa – ortónimo

Quando se fala de Fernando Pessoa, interessa distinguir o ortónimo dos heterónimos.


O seu universo heterónimo permitiu-lhe criar diferentes personalidades com outros
nomes como Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos.
O texto lírico de pessoa “ele mesmo” é, como afirma, permite exprimir recordações do
que conserva da emoção.

Fernando Pessoa ortónimo considera que só é possível pela conciliação das oposições
entre realidades objetivas e realidades mentalmente construídas. Dai a necessidade de
intelectualizar o que sente ou pensa, reelaborando essa realidade graças à imaginação
criadora.

A consciência de enfermidade, porque o tempo é um fator de desagregação, cria o


desejo de ser criança de novo, a nostalgia da infância, como um bem perdido, leva-o à
desilusão perante a vida real.
Ao não conseguir fruir a vida pode ser consciente e ao não conseguir conciliar o que
deseja ou idealiza com o que realiza, sente-se frustrado, o que traduz o drama de
personalidade do ortónimo que, tal como os heterónimos, apresenta uma identidade
própria diversa do autor Fernando Pessoa, conservando deste apenas o seu nome.

Rutura e continuidade

Em Fernando Pessoa ortónimo coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista.


Nos primeiros tempos escreveu na língua em que foi educado, ou seja, inglês. Depois,
por influência da poesia de Garrett, começou a escrever em português e algumas das
suas composições apresentam a melancolia, a sensibilidade, a suavidade, a linguagem
simples e o ritmo da lírica tradicional.
O fingimento artístico

Como afirma Fernando Pessoa, a sinceridade intelectual ou metafísica é a única que


interessa à poesia. Daí que o fingimento seja a mais autêntica sinceridade intelectual,
pois “fingir é conhecer-se”.
A voz do poeta fingidor é a voz do poeta da modernidade, despersonalizado, que tenta
encontrar a unidade humana. O poeta recorre à ironia para pôr tudo em causa,
inclusive a própria sinceridade que, com o fingimento, possibilita a construção da arte.

O poeta codifica o poema que o recetor descodifica à sua maneira, mas sem
necessidade de encontrar a pessoa real do escritor. O poeta “Finge tão
completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”, enquanto os
recetores “Na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve / Mas só a que eles não
têm.” Isto significa que o ato poético apenas pode comunicar uma dor fingida,
inventada, pois a dor real (sentida) continua no sujeito, que, por palavras e imagens,
tenta uma representação; e os leitores tendem a considerar uma dor que não é sua,
mas que apreendem de acordo com a sua experiencia de dor, a dor real (“que deveras
sente”), a dor fingida e a “dor lida”.

A dor de pensar

O eu lírico tanto aceita a consciência como sente uma verdadeira dor de pensar, que
traduz insatisfação e duvida sobre a utilidade do pensamento. Impedido de ser feliz,
devido à lucidez, procura a realização do paradoxo de ter uma consciência
inconsciente. Mas ao pensar sobre o pensamento, percebe o vazio que não permite
conciliar a consciência e a inconsciência. O pensamento racional não se coaduna com o
verdadeiro sentir.

A nostalgia da infância

Do mundo perdido da infância, Pessoa sente a nostalgia. Um profundo desencanto e


angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e da passagem dos dias. Ao
mesmo tempo que gostava de ter a infância das crianças que brincam, sente a saudade
de uma ternura que lhe passou ao lado.
As características da poesia de Fernando Pessoa

Boiam leves, desatentos,


Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.

Boiam como folhas mortas


À tona de águas paradas.
São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhado nas portas
Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remedio,


Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se para, se flui;
Não sei se existe ou se dói.

O poema evidencia alguns traços representativos da poesia do ortónimo:


 Elementos aquáticos da simbologia pessoana;
 Componente musical aliterações, assonâncias, paralelismo anafórico, ritmo da
estrofe, rima;
 Simplicidade formal: quintilha, verso de redondilha maior;
 Uso do presente do indicativo;
 Oximoro, adjetivação expressiva, comparação, imagens, metáfora, repetições,
paralelismo;
 Drama de personalidade;
 Eu fragmentado;
 Negativismo
 Desagregação do tempo e de tudo.
Temáticas Poemas
Coexistência de duas vertentes: a tradicional e a modernista
Lirismo tradicional:
 Sensibilidade, suavidade, linguagem simples, ritmo  “Leve, breve, suave”
melodioso; delicadeza que se articula perfeitamente com a  “Não sei, ama, onde era”
musicalidade e o ritmo do verso.  “Ó sino da minha aldeia”
 Simplicidade (mesmo que apenas aparente)..  “Ela canta pobre ceifeira”
 Trocadilhos, metáforas, aliterações, sinestesias.
Rutura:
 Experiencias modernas do simbolismo, do Paulismo e do
 “Impressões do Crepúsculo”
Intersecionismo.
 “Chuva Oblíqua”
 Heteronímia: o seu comportamento levou-o criar
personalidades diferentes, que se revelam na heteronímia.
O fingimento artístico
Tensão sinceridade / fingimento:
 Ato poético apenas como comunicação ou representação.
 A mascara e o fingimento como elaboração mental dos
conceitos que exprimem as emoções ou o que quer
comunicar.
 Tradução dos sentimentos na linguagem do leitor, pois o que
 “Autopsicografia”
se sente é incomunicável.
 “Isto”
 Despersonalizações do poeta fingidor que fala e que se
 “Tudo o que faço ou medito”
identifica com a própria criação poética, como impõem a
modernidade.
 Construção da arte pelo recurso á ironia que põe tudo em
causa, inclusive a própria sinceridade.
 A intelectualização das emoções e dos sentimentos para
elaboração da arte.
Consciência / inconsciência:
 Ser múltiplo sem deixar de ser um.
 Capacidade de despersonalização que lhe permite atingir a
finalidade da arte, isto é aumentar a autoconsciência  “Ela canta, pobre ceifeira”
humana.
 “Ó sino da minha aldeia”
 Impendido de ser feliz, devido à lucidez, procura a realização
 “Não sei ser triste a valer”
do paradoxo de ter uma consciência inconsciente.
 “Liberdade”
Sentir / pensar:
 “Abdicação”
 Fragmentação do eu a busca da totalidade que lhe permita
 “Chuva Oblíqua”
conciliar o pensar e o sentir.
 Intersecionismo entre o material e o sonho, a realidade e a
idealidade como tentativa para encontrar a unidade entre a
experiencia sensível e a inteligência.
A dor de pensar:
 “Gato que brincas na rua”
 Poesia marcada pelo conflito entre o pensar e o sentir, ou
 “Ela canta pobre ceifeira”
entre a ambição da felicidade pura e a frustração que a
 “Sol nulo dos dias vãos”
consciência de si implica.
 “Tudo o que faço ou medito”
 Dor que resulta da distancia entre o que se pretendia
atingir e o que se conseguiu realizar (a “dor que se sente”).
 Não consegue fruir instintivamente a vida por ser
consciente e pela própria enfermidade.
 Certeza de que a lucidez impede a felicidade.
 Insatisfação e dúvida sobre a utilidade do pensamento.
A nostalgia da infância
O tempo e a desagregação: o regresso à infância:
 Pessoa sente a nostalgia do mundo perdido da infância. Ele
que foi “criança contente de nada” e que em adolescente
aspirou a tudo, experimenta agora a desagregação do
tempo e de tudo.
 Infância como espaço de felicidade.
 Profundo desencanto e a angústia acompanham o sentido
da brevidade da vida e da passagem dos dias.
 Evasão no tempo e no espaço como forma de procurar a
 “O menino da sua mãe”
felicidade.
 “Não sei ama, onde era”
 Ao encontra-se em conflito consigo próprio e com o
 “Eros e Psique”
mundo, evade-se no tempo e no espaço, regressando à
 “Quando as crianças brincam”
infância feliz.
 “Quando era criança”
 Ao mesmo tempo que gostava de ter a infância das
crianças que brincam, sente a saudade de uma ternura que
lhe passou ao lado.
 Tenta manter vivo o “enigma” e a “visão do que foi”,
restando-lhe a inquietação, a solidão e a ansiedade.
 Desejo de regresso ao paraíso perdido, à infância perdida,
ao passado feliz.
 Angústia existencial e nostalgia (do Eu, de um bem
perdido, das imagens da infância).
Fernando Pessoa – Heterónimos

Alberto Caeiro

Alberto nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a
sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma [….] De estratura
média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como
era […]
Morreram-lhe cedo o pai e a mãe e deixou-se ficar em casa, vivendo de pequenos
rendimentos. Vivia co uma tia velha, tia-avó.

Alberto Caeiro apresenta-se como um simples “guardador de rebanhos”, que só se


importa em ver de formas objetivas e natural a realidade com a qual contacta a todo o
mundo.
Poeta do olhar, procura ver as coisas como elas são, sem lhes atribuir significados ou
sentimentos humanos.

Caeiro constrói uma poesia das sensações, apreciando-as como boas por serem
naturais. Para ele, o pensamento apenas falsifica o que os sentidos captam. É um
sensacionista, que vive aderindo espontaneamente às coisas, tais como são, e procura
gozá-las com despreocupada e alegre sensualidade.

Caeiro afirma-se o poeta da Natureza que está de acordo com ela e a vê na sua
constante renovação.

A nível estico: Caeiro não se preocupou com o trabalho formal do poema, recorrendo
ao verso livre e à métrica irregular. Numa linguagem simples e familiar, os seus
poemas revelam uma pontuação lógica, o predomínio da coordenação e do presente
do indicativo ou das frases simples, marcadas pela pobreza lexical e poucos recursos
estilísticos.

A poesia da Natureza

Pela crença na Natureza, o Mestre revela-se um poeta pagão, que sabe ver o mundo
dos sentidos, ou melhor, sabe ver o mundo sensível em que revela o divino e não
precisa de pensar. Nesta atitude panteísta de que as coisas são divinas, desvaloriza a
categoria conceptual “tempo”. Porque só existe a realidade, o tempo é ausência de
tempo, sem passado, presente ou futuro, pois todos os instantes são a unidade de
tempo.
“Mestre” dos outros

Os ensinamentos de Caeiro quer ao trazer o ser humano ao quotidiano e ao integrá-lo


na simplicidade da Natureza quer ao encarnar a essência do Sensacionismo, tornaram-
no mestre de Pessoa ortónimo, de Reis e de Campos. Ao anular o pensamento
metafísico e ao voltar-se apenas para a visão total e perante o mundo, elimina a dor de
pensar que afeta Pessoa.

Para o ortónimo, para Álvaro de Campos e para Ricardo Reis, Caeiro representa um
regresso às origens, ao paganismo primitivo, à sinceridade plena. Caeiro ensinou-lhes
filosofia do não filosofar.

Fernando pessoa descrê da possibilidade de pela razão, compreender o mundo, tal


como Caeiro, mas enquanto este aceita, tacitamente, a realidade, o ortónimo
decepciona-se e experimente o desespero.
Álvaro de Campos, que, como Caeiro, recorre aos versos livre, é o homem da cidade,
que procura aplicar a lição sensacionista ao mundo da máquina. Mas, ao não conseguir
acompanhar a pressa mecanista e a desordem das sensações, sente uma espécie de
desumanização e frustração. Falta a Campos a tranquilidade olímpica de Caeiro.

Ricardo Reis, que adquiriu a lição de paganismo espontâneo de Caeiro, recorrendo à


mitologia greco-latina, e considera a brevidade da vida, pois sabe que o tempo passa
tudo é efémero; Caeiro vê o mundo sem necessidade de explicações, sem princípios
nem fim, e confessa que existir é um facto maravilhoso. Caeiro aceita a vida sem
pensar; Reis talvez a aceite, apesar de pensar. Reis chega a ser o contrário do mestre.
As características da poesia de Alberto Caeiro

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprimido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

O poema evidencia alguns dos traços representativos da poesia Alberto Caeiro:

 A apologia do realismo sensorial: a única realidade está na consciência da


sensação e o pensamento reduz-se ao puro sentir. Por isso, o sujeito poético
capta apenas o que as sensações lhe oferecem na realidade imediata.
 Depois afirmar que se sente “triste de gozá-lo tanto”, ou seja, até ao limite,
procura recuperar o equilíbrio (“sei a verdade e sou feliz”), sentindo o “corpo
deitado na realidade”.
 Sensacionista, a quem só interessa o que capta pelas sensações.
 O sentindo das coisas, é reduzido à perceção das cores, das formas, dos cheiros
e dos sabores.
 Apresenta uma linguagem poética nova: libertação dos sentidos, das sensações,
das emoções.
 Aparenta simplicidade e natureza argumentativa do discurso poético, visível no
recurso a uma linguagem corrente e a orações coordenadas.
Alberto Caeiro
“Aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive”
(Fernando Pessoa)
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
 O poeta da Natureza
Se falo na Natureza não é porque saiba o que
 Relação de harmonia com a Natureza
ela,
que assume o valor essencial
Mas porque o amo. E amo-a por isso”
 O desejo de se transformar numa coisa
“Quem me dera que a minha vida fosse um
vulgar, natural
carro de bois
 A ruralidade e a simplicidade
Que vem a chiar, manhãzinha cedo pela
 Buscar na simplicidade a capacidade de
estrada”
ser feliz
“Compreendi que as coisas são reais e todas
diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o
pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria
achá-las todas iguais”
 A recusa do pensamento
“O mundo não se fez para pensarmos nele
(O pensamento torna as coisas uniformes)
(Pensar é estar doente nos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de
acordo…”
“Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove
mais.”
“Pensa com os olhos e com os ouvidos
 A apologia dos sentidos E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.”
“Nunca tive um desejo que não pudesse
 A apologia da visão como sentido realizar, porque nunca ceguei.
preferencial Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um
acompanhamento de ver.
“Eu nunca passo para além da realidade
imediata.
 Não passa além do realismo sensorial
Para além da realidade imediata não há
nada.”
“Sinto-me nascido a cada momento
 A eterna novidade das coisas
Para a eterna novidade do mundo…”
Ricardo Reis

Ricardo Reis é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma
lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas.

A filosofia de vida de Ricardo Reis é a de um epicurismo triste, pois defende o prazer


do momento, o carpe diem, como caminho da felicidade, mas sem ceder os impulsos
dos instintos.

Ricardo Reis é um poeta contemplativo que procura a serenidade, livre de afetos e de


tudo o que possa perturbar o seu espirito.

A sua poesia apresenta um estilo rigoroso e denso.

O Neopaganismo

Reis cultiva a mitologia greco-latina e a crença nos deuses antigos. Considera que o
paganismo morreu, sendo substituído pelo cristianismo, o que impede a verdadeira
visão intelectual da verdade que aquele representa.

Reis, aceita o destino com naturalidade, considerando que os deuses estão acima do
homem por uma questão de grau, mas acima dos deuses, no sistema pagão, se
encontra o Fado, a que tudo se submete.

Ricardo Reis procura alcançar a quietude e a perfeição dos deuses, desenhando um


novo mundo à sua medida, que se encontra por detrás das aparências. Os deuses são
uma metáfora do Mundo. Indiferentes, mas omnipresentes, confundem-se connosco
sempre que os imitamos. Não são mais do que homens mais perfeitos ou
aperfeiçoados. “´Só esta liberdade nos concedem / Os deuses: submeterermo-nos / Ao
seu domínio por vontade nossa”.
Pagão por caracter, que resulta da acumulação de experiencias e da sua formação
helénica e latina, há, nos seus poemas, uma postura ética e um constante diálogo
entre o passado e o presente, escrevendo odes inspiradas nas doutrinas epicuristas de
Horácio (poeta latino, 65 a.C. – 8 a.C.).
O Epicurismo e o Estoicismo

Ricardo Reis propõe uma filosofia moral de acordo com os princípios do Epicurismo e
uma filosofia estoica:

 “carpe diem” (aproveitar o dia), ou seja, “aproveitai a via em cada dia”, como
caminho da felicidade;
 Buscar a felicidade com tranquilidade (ataraxia);
 Não ceder ao impulso dos instintos (Estoicismo);
 Procurar a calma ou, pelo menos, a sua ilusão;
 Seguir o ideal ético da apatia que permite a ausência da paixão e a liberdade
(sobre esta apenas pesa o Fado).

Não podemos nem devemos opor-nos ao destino antes aceitá-lo com naturalidade,
como a água que segue o curso do rio, sem lhe resistir. “Seguir o teu destino”,
proclamada por Ricardo Reis. Cada um deve apenas buscar a calma e a
tranquilidade, abstendo-se de todo o esforço e atividade inútil.

A obra de Ricardo Reis apresenta um epicurismo triste, pois na vida, apesar do


prazer e da felicidade que se deve buscar, nunca se encontra a calma e a
tranquilidade.

O Epicurismo consiste na filosofia moral de Epicuro (341 – 270 a.C.), que defendia o
prazer como caminho da felicidade. Mas para a satisfação dos desejos seja estável,
sem desprazer ou dor, é necessário um estado de ataraxia, ou seja, de
tranquilidade e sem qualquer perturbação.

A apatia em Reis, ou a indiferença cética, é um ato de lucidez de quem sabe que


tudo tem o seu fim e de que tudo já está, fatalmente, traçado. Reis, muitas vezes,
considera a inconsciência ou a distração como a melhor forma de gozar o pouco
que nos é dado. Aceita o fatum, de olhos atentos e, com calma lucidez, a
relatividade e a fugacidade de todas as coisas. Procura ignorar tudo
conscientemente, pensando apenas no momento, no gozo do instante. O
sentimento da passagem do tempo leva-o a considerar o instante como a duração
calculada da vivência, mas flui continuamente.
As características da Poesia de Ricardo Reis

Não só quem nos odeia ou nos inveja


Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer
nada.
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

O poema evidencia alguns traços representativos da poesia Ricardo Reis:

 A aceitação da vida na sua simplicidade.


 O Epicurismo como filosofia de vida: a recusa das preocupações com o futuro e
a necessidade de fruir o momento do presente.
 O tom moralista
 A busca da tranquilidade e da abstenção dos desejos aproxima os homens aos
deuses.
 A presença de um destino inexorável e a presença de seres superiores que nos
comandam.
 A ode como modelo estrófico e poema como expressão de uma ideia.
 A busca da perfeição e do equilíbrio.
 O vocabulário selecionado e cuidado.
Ricardo Reis
“A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma
calma qualquer”
(Fernando Pessoa)
“Tão cedo passa tudo quanto passa!
 A fugacidade da vida e a iminência da Morre tão jovem ante os deuses quanto
morte Morre! Tudo é tão pouco!
 A necessidade de aproveitar os momentos Nada se sabe, tudo se imagina.
bons de cada dia (“carpe diem”) Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.”
“Cada dia sem gozo não foi teu
 Saborear o encanto de cada dia Foi só durante nele. Quando vivas
Sem que o gozes, não vives”
 A busca da tranquilidade absoluta “aprendamos na história
 Não ceder ao impulso dos instintos Dos calmos jogadores de xadrez
(estoicismo) Como passar a vida.”
“Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
 O domínio dos deuses
Ao seu domínio por vontade nossa.
 Procurar a calma, ou, pelo menos, a sua
Mais vale assim fazermos
ilusão
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.”
“Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Os mortais devem elevar-se à categoria dos Julgarmo-nos deidades exiladas
deuses e: […]
 Portar-se altivamente Ativamente donos de nós-mesmos,
 Aprender a gerir o seu próprio destino Usemos a existência
 Tornar-se donos de si próprios […]
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário”
 O epicurismo “Logo que a vida me não canse, deixo
Ou a arte de atravessar a existência sem Que a vida por mim passe
preocupações Logo que eu fique o mesmo.”
“O prazer do momento anteponhamos
A absurda cura do futuro”
“Amanhã não existe. Meu somente
 O presente como tempo É o momento”
“Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.”
“Para ser grande, sê inteiro: nada
 Poeta moralista, transmite conselhos sobre Teu exagera ou exclui.
a forma de encarar a vida Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes”
Álvaro de Campos

Álvaro de Campos é o mais moderno dos heterónimos de Fernando Pessoa. Fernando


Pessoa descreve-o como engenheiro naval.

Para Campos, a sensação é tudo. O Sensacionismo torna a sensação a realidade da vida


e a base da arte. O “eu” do poeta tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve
existência ou possibilidade de existir. Álvaro de Campos é quem melhor procura a
totalização das sensações, mas sobretudo das perceções conforme as sente, ou como
ele próprio.

Campos, sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura sentir a


violência e a força de todas as sensações.

Mas, passada a fase eufórica, o desassossego de Campos leva-o a revelar uma fase
disfórica, a ponto de desejar a própria destruição. Há aí a abulia e a experiencia do
tédio, a deceção, o caminho do absurdo.
Depois de exaltar a beleza da força e da máquina por oposição à beleza
tradicionalmente concebida, a poesia de Campos revela um pessimismo agónico, a
dissolução do “eu”, a angústia existencial e uma nostalgia da infância
irremediavelmente perdida.
A obra de Álvaro de Campos passa por três fases: a decadentista - que exprime o
tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações; a futurista e sensacionista – que
se caracteriza pela exaltação da energia, de “todas as dinâmicas” e da velocidade e da
força até situações de paroxismo e a intimista ou da abulia – que, perante a
incapacidade das realizações, traz de volta o abatimento.

A vanguarda e o Sensacionismo

Álvaro de Campos é o poeta vanguardista que, numa linguagem impetuosa, excessiva,


canta o mundo contemporâneo, celebra o triunfo da máquina e da civilização
moderna, da força mecânica e da velocidade.

Canta a civilização e a corrupção na política, os progressos, todas as coisas modernas;


canta a raiva mecânica em contraste com o desejo de sossego e de serenidade.

Futurista, canta a civilização industrial e, estilisticamente, introduz na linguagem


poética a terminologia desse mundo mecânico citadino e cosmopolita, contemporâneo
das máquinas e da luz elétrica. Campos aproxima-se muito de Pessoa ao recusar as
verdades definitivas.
Sensacionismo

Esta fase da obra de Campos, designada por futuristas. Verdadeiro sensacionista,


procura o excesso violento de sensações.

O sensacionismo de Campos começa com a premissa de que a única realidade é a


sensação. Mas a nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna provoca-
lhe a vontade de ultrapassar os limites das próprias sensações, numa vertigem
insaciável.

Campos busca, na linguagem poética, exprimir a energia ou a força que se manifesta


na vida. Daí o surgimento de versos livres, vigorosos, submetidos à expressão de
sensibilidade, dos impulsos, das emoções.

A abulia e o tédio

Campos, atordoado pelo mistério das sensações que busca compreender, procura
mergulhar em si mesmo. É a fase do intimismo ou independente, marcada pela abulia
e pelo tédio.

Nesta fase intimista, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido. Sofre


fechado em si mesmo, angustiado e cansado.

Na fase decadentista, a nostalgia e a expressão do tédio, do cansaço e da saturação da


civilização provocam a necessidade de novas sensações, muitas vezes tentadas na
embriaguez do ópio. Os estupefacientes surgem aí como escape à monotonia e a um
certo horror à vida. São um estimulante que, no entanto, nada resolve.

O decadentismo do “Opiário” não se pode confundir com o intimismo abúlico que se


percebe na terceira fase. Aqui há um profundo vazio existencial, que se revela na
descrença e na inquietação, na desesperança e no aniquilamento.

O poeta recusa as normas, os princípios, os valores, tudo o que dava sentido à


existência. Tem a consciência de que tudo e toda a ordem social perderam sentido e
de que é necessário um mundo novo.
As características da poesia de Álvaro de Campos

Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa.


Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.

O poema evidencia alguns traços representativos da poesia de Álvaro de Campos:

 O êxtase acontece dentro do poeta, adquirindo força e movimento como o do


“giro vivo do volante”
 O girar dentro de si cresce e avança, confundindo-se com a máquina sugerida
pelo volante.
 O ruido da máquina provoca-o e excita-o e a própria Natureza associa-se à sua
excitação.
 O sujeito lírico, sensacionista e futurista, canta a energia e a força da civilização
contemporânea:
- a celebração do triunfo da máquina e da civilização moderna;
- a beleza da força e da máquina por oposição à beleza tradicionalmente
concebida.
 O estilo é impetuoso, torrencial, nervoso e excessivo, expressando o mundo das
sensações e das máquinas, com frases muito curtas, mas expressivas da
emoção;
 O desprezo pela rima e pela métrica regulares: o verso ora curto ora longo vai
fluindo de acordo com as sensações e com as emoções.
Álvaro de Campos
“Campos é Pessoa mais nu deixando correr à solta a torrente da angústia que o sufoca, fazendo o
processo da sua abulia”.

(Eduardo Lourenço)
1ª Fase “É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Decadentista – exprime o tédio, o enfado, a Sentir a vida convalesce e estiola
náusea, o cansaço e a necessidade de novas E eu vou buscar ao ópio que consola
sensações. Um Oriente ao oriente do Oriente.
 A atmosfera de uma vida passiva, […]
dependente de estupefacientes A vida a bordo é uma coisa triste,
 O ópio como refúgio Embora a gente se divirta às vezes.
 O sentimento de “fumar a vida”. Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.
 A inatividade, meditando nos seus sonhos
“de febre”.
Eu acho que não vale a pena ter
 A falta de objetivos na vida.
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
 A busca de novas sensações
A terra é semelhante e pequenina
 A monotonia em oposição ao
E há só uma maneira de viver.
divertimento.
 A resignação, sem energia nem alegria. Por isso eu tomo ópio. É um remédio
 A frustração. Sou um convalescente do Momento.
 O apelo a Deus para que termine com Moro no rés-do-chão do pensamento
tudo. E ver passar a Vida faz-me tédio.
(Ex: “opiário”) […]”
“À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas
da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza
disto,
2ª Fase
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos
Futurista e Sensacionista – caracteriza-se pela
antigos.
exaltação da energia, de “todas as dinâmicas”,
da velocidade e da força.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
 A celebração do triunfo da máquina e da
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
civilização moderna.
Em fúria fora e dentro de mim,
 A beleza da força e da máquina por
Por todos os meus nervos dissecados fora,
oposição à beleza tradicionalmente
Por todas as papilas fora de tudo com que eu
concebida
sinto!
 A sensação como realidade da vida e da
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos
base de toda a arte.
modernos,
 O excesso violento de sensações.
De vos ouvir demasiadamente de perto,
(Ex: “Ode Triunfal”) E arde-me a cabeça de vos querer cantar com
um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó
máquinas!”
3ª Fase “O que há em mim é sobretudo cansaço —
Intimista – perante a incapacidade das Não disto nem daquilo,
realizações, traz de volta o abatimento, a Nem sequer de tudo ou de nada:
abulia, que provoca “Um supremíssimo Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
cansaço/ Íssimo, íssimo / Cansaço…” Cansaço.”
 A frustração, o fracasso.
 A perceção de malogro da existência.
 O distanciamento cada vez maior da
“Esta velha angústia,
realidade.
Esta angústia que trago há séculos em mim,
 A dor de pensar, a sensação de vazio.
Transbordou da vasilha,
 A desesperança e a falta de energia
Em lágrimas, em grandes imaginações,
interior.
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
 A tentativa vã de comunicação do eu com
Em grandes emoções súbitas sem sentido
o real. nenhum.”
 O sentimento de estranheza e da
inutilidade de tudo.
(Ex: “Esta velha angústia”)
Fernando Pessoa e a heteronímia

Alberto Caeiro

“mestre” dos outros

 Paganista existencial
 Poeta da Natureza e da simplicidade
 Interpreta o mundo a partir dos sentidos
 Interessa-lhe a realidade imediata e o real
objetivo que as sensações lhe oferecem
 Nega a utilidade do pensamento; é
antimetafísico

Ricardo Reis Pessoa Ortónimo


 Epicurismo – carpe diem e  Tensão
disciplina estoica Sinceridade/ fingimento,
 Indiferença cética, consciência/ inconsciência
ataraxia Sentir / pensar
 Semipaganismo, Ser múltiplo  Intelectualização dos
classicismo sem deixar de sentimentos
ser um
 Vive o drama da  Intersecionismo entre o
fugacidade da vida e da FERNANDO material e o sonho, a
fatalidade da morte PESSOA realidade e a idealidade
 Uma explicação através
do ocultismo

Álvaro de Campos

 Decadentismo – o tédio, o cansaço e a


necessidade de novas sensações
 Futurismo e sensacionismo – exaltação
da força, da violência, do excesso;
apologia da civilização industrial,
intensidade e velocidade (a euforia
desmedida)
 Intimismo – a depressão, o cansaço e a
melancolia perante a incapacidade das
realizações; as saudades da infância

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