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1997 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Gabinete do Senador Abdias Nascimento
Thoth
nº 2 maio/agosto 1997
v.; 25 cm
ISSN: 1415-0182
CDD 301.45196081
Abdias Nascimento, então secretário de Estado de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras, com Nelson Mandela.
Palácio da Guanabara, Rio de Janeiro, 1991.
APRESENTAÇÃO
Thoth atinge o nº 2. Motivo de alegria e regozijo para todos nós que o produzimos.
Não é tarefa fácil, e a melhor prova é a morte prematura, ou a descontinuidade no tempo
programado, que estigmatiza quase sempre as publicações do gênero. Graças, porém, ao
esforço da equipe do meu gabinete e à ajuda de voluntários externos ao Senado, consegui-
mos superar as previsíveis ‘imobilização elou inanição.
Mesmo porque muita coisa vem acontecendo na área de nossas preocupações. Um
fato que não poderia passar despercebido, por exemplo, foi a declaração do arcebispo da
Bahia, D. Lucas Moreira Neves. Referindo-se à Igreja Católica, o ilustre presidente da
CNBB disse ao JB de 26-9-97:
“Não estamos abertos aos cultos afros, mas para a cultura africana.”
Tal abertura significaria que “os corais católicos poderão utilizar os instrumentos
musicais de origem africana, como o berimbau e o atabaque, e os paramentos dos sacer-
dotes poderão ter estampas afros.” Além disso, a cultura africana também fará parte da
catequese. Com esse fim, foi criada uma comissão para a “integração da cultura africana
na liturgia católica”. Quanto à ideia de alguma influência africana sobre aquela liturgia,
base do movimento da chamada inculturação em outras igrejas cristãs, o arcebispo foi
categórico ao negar-lhe qualquer validade. Preferindo aderir à antiga e há muito superada
ideia de que a religião africana carece de valores espirituais, a Igreja reduz nossa religião
à categoria de mero “culto” e descarta sua inclusão no intercâmbio ecumênico.
Pena que, quando o mundo evolui e aprende a modificar sua postura, a posição
ecumênica da Igreja Católica acabe nisto: em mera catequese assimilacionista. Pois outra
não foi também a pregação do piedoso padre Antônio Vieira; já nos séculos passados,
pregava em seus famosos sermões a lavagem cerebral católica dos africanos escravizados,
por meio do batismo, como a única ação capaz de limpar os negros por dentro e por fora,
assim exorcizando neles o pecado do paganismo.
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Apresentação
Abdias Nascimento
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Ci-
dadania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âm-
bito nacional e internacional em todo o País, verificamos
que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio.
Setores da sociedade convencional reconhecem o caráter
discriminatório desta sociedade, e o debate passa a foca-
lizar as formas de ação para combater o racismo, ultra-
passando o patamar que marcou a elaboração da Cons-
tituição de 1988: a declaração de intenção do legislador
Thoth dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de
fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Sena-
do Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve soli-
dário com a luta antirracista. O mandato do senador Ab-
dias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla de
luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à ques-
tão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
encontrou sua melhor expressão nas cial, acabou se entranhando – como não
páginas que relatam a epopeia de Pal- poderia deixar de ser – na própria alma
mares, o maior dos quilombos, assim de cada brasileiro, transformando-se no
saudado por Castro Alves: metro e no padrão com que se encaram
entre nós as questões de natureza social.
Salve! Região dos valentes Se quisermos realmente enten-
Onde os ecos estridentes der, para enfrentar e resolver, proble-
Mandam aos plainos trementes mas como a violência institucional, os
menores carentes e de rua, a prostitui-
Os gritos do caçador!
ção infantil, o tratamento dispensado
E ao longe os latidos soam ... aos idosos e as questões trabalhistas em
E as trompas da caça atroam ... geral – sem falar na ética do trabalho e
E os corvos negros revoam na rapinagem do Estado pelas elites –,
Sobre o campo abrasador! ... devemos estudar seriamente a escravi-
dão a que foram submetidos, durante
quase quatro séculos, os africanos e seus
Palmares! a ti meu grito!
descendentes no Brasil. E se quiser-
A ti, barca de granito, mos ingressar no próximo milênio com
chances reais de concretizar o imenso
Que no soçobro infinito potencial deste país, devemos combater
Abriste a vela ao trovão. a causa última de todas essas mazelas.
E provocaste a rajada, cancro que corrói a própria essência de
Solta a flâmula agitada cada brasileiro e o impede de desatar
as amarras de nosso atraso e subdesen-
Aos uivos da marujada volvimento, originados principalmente
Nas ondas da escravidão! no sentimento de inferioridade que nos
acomete quando nos comparamos com
Defensor intransigente da causa a Europa ou os Estados Unidos. Esse
dos afro-brasileiros, ocupo hoje esta tri- cancro é o cancro do racismo, fatídica
buna não apenas para denunciar os so- herança da escravidão que o 13 de Maio
frimentos impostos ao meu grupo étnico também não aboliu.
nestes quase 500 anos de escravidão e O sonho libertário de Castro Al-
racismo que constituem a História do ves ainda não se materializou. Daí a
Brasil. É meu principal propósito no dia oportunidade e atualidade da sua bela e
de hoje mostrar como o tratamento dis- forte poesia.
pensado aos afro-brasileiros ao longo do
período escravista, além de excluí-los e
marginalizá-los de nosso processo so-
Axé!
A Comissão de Assuntos Sociais,
presidida pelo senador Ademir Andrade
(PSB-PA), aprovou ontem – por unani-
Titulação das midade – parecer favorável, do senador
Nabor Júnior (PMDB – AC), a projeto da
Terras dos senadora Benedita da Silva (PT – RJ) que
disciplina o procedimento de titulação
Quilombos* imobiliária aos remanescentes das anti-
gas comunidades negras dos quilombos.
Os senadores Abdias Nascimento (PDT –
RJ) e Valmir Campelo (PTB – DF) desta-
caram, ao votar, o mérito da proposição.
O senador Abdias Nascimento
disse que a iniciativa da senadora Bene-
dita da Silva atende a antigo clamor da
comunidade afro-brasileira, e, com ela, a
Nação brasileira terá oportunidade única
de oferecer cidadania plena à comunida-
de negra injustiçada. Ele apresentou re-
querimento, também aprovado, pedindo
a imediata apreciação da matéria.
Benedita da Silva expressou seu
agradecimento ao povo Kalunga, que,
conforme afirmou, deu, durante a Assem-
bleia Nacional Constituinte, sustentação
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Atuação Parlamentar
para que fosse inserido nas Disposições exaltando a extensão e o alcance da ma-
Transitórias o artigo que o projeto de téria para a comunidade negra.
agora regulamenta.
Também se manifestaram os se- * Transcrição de nota publicada no Jor-
nadores Mauro Miranda (PMDB – GO) nal do Senado em 15 de maio de 1997.
e José Roberto Arruda (PSDB – DF),
Foto: Célio Azevedo
rativa: “Age de forma que trates a hu- trema pobreza. Nesta última incluem-se
manidade, tanto na tua pessoa como na os negros, discriminados na raça para,
pessoa de qualquer outro, sempre tam- posteriormente e em consequência, se-
bém como um fim e nunca unicamente rem eles os discriminados sociais.
como um meio”. Esse princípio de or- E nessa discriminação, que se-
dem moral indica a condição humana para da minoria próspera a maior parte
na relação de que todo homem possni da população brasileira, de maioria ne-
um valor não relativo como fim em si gra, são negados os direitos essenciais
mesmo, próprio, inerente: a dignidade. à pessoa humana. O Direito é universal.
O que se caracteriza substituível na re- Deve ser compreensível para todos os
lação pressupõe sempre equivalência e homens, qual seja a raça, qual seja a cor,
traz em si de maneira permanente a no- qual seja a condição social.
ção de preço, não restritamente de valor. O Brasil é o maior país negro
O que não permite qualquer equivalên- fora da África. Entretanto, com os ex-
cia é a dignidade, superior a tudo, pois tremos bem desiguais, minoria muito
não dispõe o homem a obediência à lei próspera de um lado e a grande maioria
que não seja instituída por ele próprio. muito pobre de outro, tantos em estado
Como forma desse princípio, dessa in- de completa miséria, pondo o país na
dependência, é a moralidade a condição liderança em concentração de rendas,
da dignidade do homem. Sendo a digni- é o negro a maior vítima. Da moradia
flade absoluta, cumpre ao homem esse das favelas para as ruas, aumentando dia
valor moral, do que se conclui a relação a dia as moradas debaixo das pontes e
silógica dignidade do homem–dignida- dos viadutos. O acesso às escolas é qua-
de da lei–dignidade da sociedade. Com se que inevitavelmente impossível, são
respeito a todos os homens, independen- proporcionalmente raras as exceções.
te de raça, cor, religião e outros. Sempre vítimas do preconceito e da dis-
Na resposta preceituai a essa nor- criminação racial, não se lhe permitindo
ma, considera-se que a lei, assim ins- a devida integração na sociedade. É a
tituída, deverá obedecer princípios de preexistência do racismo o fato gera-
equidade social para o cometimento de dor da divisão social imposta ao negro
justiça, na relação mais ampla entre in- brasileiro. Contudo, a legislação ainda
divíduo e sociedade, pertença ele a qual- peca pela precariedade sobre a matéria,
quer classe ou condição econômica. até mesmo carente da tipificação crimi-
No Brasil, o exemplo é totalmen- nal da “prática do racismo”, definida na
te diverso. O desequilíbrio na sociedade Carta Política como inafiançável e im-
que vivemos nos revela uma sociedade prescritível.
desigual. De um lado, a extrema mino- A Lei nº 7.347, de 24 de julho
ria próspera, como bem adverte Noam de 1985, veio disciplinar a ação civil
Chomsky em uma de suas obras sobre o pública como instrumento processual
injusto: de outro, a vasta maioria de ex- adequado para reprimir ou impedir da-
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Atuação Parlamentar
EMENDA N 1-PLEN
JUSTIFICAÇÃO
Do Senador ABDIAS NASCIMENTO
Tanto o parágrafo 1º quanto o
Altere-se a redação do art. 1º parágrafo 2º do artigo 33, como estão
do Projeto de Lei da Câmara nº 25, de redigidos no Projeto da Câmara, falam
1997, para se dar aos parágrafos 1º e 2º em “definição dos conteúdos do ensino
do art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de de- religioso”.
zembro de 1996, a seguinte redação: Trata-se, portanto, de um deslize
que pode passar despercebido por quem
“Parágrafo único. Os sistemas de
não é especialista em educação, mas que
ensino estabelecerão:
salta aos olhos dos pedagogos, pois, de
I – os objetivos do ensino religio- acordo com a moderna Pedagogia e as
so e seus respectivos conteúdos progra- Ciências da Educação, em primeiro lu-
máticos; gar, devem ser definidos os objetivos
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar
Abdias Nascimento, então secretário de Estado de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Governo
do Estado do Rio de Janeiro, e Mwalimu Julius Nyerere, ex-presidente da Tanzânia e dirigente da Comissão Sul-Sul,
brincam com Osiris, filho do secretário, na ocasião da visita do histórico líder ao Rio de Janeiro em 1991. O ex-ministro
Celso Furtado está à esquerda de Mwalimu Nyerere, na escada.
Discurso proferido no Senado
Federal em 8 de maio de 1997
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob as bênçãos de Olorum, inicio
meu pronunciamento.
Ocupo hoje esta tribuna para ho-
menagear dois brasileiros ilustres que,
cada um à sua maneira e no seu campo
de atuação, deram importantes contribui-
ções à nossa cultura, ajudando o Brasil
a se tomar conhecido no exterior como
algo mais que o país apenas do samba e
do futebol. Dois brasileiros que jamais
se envergonharam de sua terra ou de sua
gente. Que jamais se sentiram inferiores
perante a cultura de outros povos, mas,
ao contrário, sempre reafirmaram e de-
fenderam a riqueza de nossa diversidade
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar
produto nacional feito com qualidade e uma espécie de Copa do Mundo do cine-
técnica. ma. Curiosamente, porém – como mui-
Quis o destino que este momen- tas vezes acontece em nosso país –, o
to em que renasce o cinema brasileiro troféu obtido não lhe escancarou, como
fosse marcado pela homenagem que o seria de esperar, as portas dos subsídios
famoso Festival de Cannes estará fa- e financiamentos para outras produções.
zendo no próximo dia 11 de maio, em Pelo contrário. Polêmico e afirmativo,
sua quinquagésima edição, ao ator e di- Anselmo cultivou calorosamente suas
retor Anselmo Duarte – de quem tenho desavenças com alguns segmentos do
a honra de me considerar um amigo –, cinema, os quais, por sua vez, graças
o único brasileiro laureado com a Pal- à ocasionaI influência de que desfruta-
ma de Ouro, o prêmio máximo desse vam, sempre procuraram interpor todos
festival, pelo filme O pagador de pro- os obstáculos possíveis à sua atividade
messas. Nessa homenagem, Anselmo de criador cinematográfico. Tratava-se,
sem dúvida, de uma controvérsia a res-
Duarte estará na companhia de alguns
peito de concepções artísticas antagôni-
dos mais consagrados diretores de todos
cas, saudável ao processo criativo.
os tempos, como o sueco Ingmar Berg-
man. Fato que se torna ainda mais no- Depois de passar da Atlântida, do
tável quando se sabe que nomes como Rio de Janeiro – onde ganhava mais que
Alan Resnais, Milos Forman, Bernardo Oscarito e Grande Otelo, os grandes su-
Bertolucci, Jean-Luc Goddard. Woody cessos de bilheteria da época –, à Vera
Allen e Peter Greenway não obtiveram Cruz, de São Paulo, que o contratou a
tal indicação. peso de ouro, Anselmo Duarte resol-
veu, aos 37 anos, dedicar-se à carreira
Rodado em 1962, com Leonardo
de diretor. Nessa qualidade, realizou em
Villar e Glória Menezes nos principais
1957, aos 37 anos, seu primeiro filme,
papéis, O pagador de promessas rendeu Absolutamente certo, uma comédia sim-
a Anselmo Duarte todas as alegrias, mas pática e bem narrada, tendo como tema
também a incompreensão e – para faIar os programas de perguntas e respostas,
a verdade com todas as letras – a inveja sucesso de nossa incipiente televisão da
profunda de setores do cinema e da crí- época. Seguiram-se O pagador de pro-
tica que jamais o perdoaram por ter che- messas (1962), Quelé do Pajeú (1969),
gado antes aonde todos queriam chegar. Um certo capitão Rodrigo (1970), O
Impecável do ponto de vista téc- descarte (1973), O crime do Zé Bigor-
nico e artístico, O pagador de promessas na (1977) e Os trombadinhas (1978).
foi exibido em todas as partes do mun- Além dos episódios “O reimplante”, de
do, sempre com a melhor repercussão. O impossível acontece (1970), “Oh! dú-
Isso valeu a Anselmo, em seu retorno ao vida cruel”, de Já não se faz amor como
Brasil após receber o prêmio em Can- antigamente, e “Marido que volta deve
nes, uma recepção calorosa por parte do avisar”, de Ninguém segura essas mu-
público, para o qual a Palma de Ouro era lheres, os dois últimos de 1975.
Pronunciamentos
Homenagem a Paulo Freire e Anselmo Duarte 1
o apoio de seus aliados nas arenas aca- Nessa ordem, o que menos pesou
dêmica e política, tem-se alterado subs- foram as necessidades dos africanos e
tancialmente a visão dos brasileiros so- afro-brasileiros escravizados. Do con-
bre a significação e a importância dessa trário, não teriam sido sumariamente re-
data, com as previsíveis consequências jeitadas as propostas, como a do ilustre
no caráter das manifestações que sobre engenheiro negro André Rebouças, que
ela se organizam: no lugar da festa, a de- postulavam realizar-se, simultaneamen-
núncia; em vez de louvações à Princesa te com a Abolição, uma reforma agrá-
Isabel, reflexões críticas sobre o tipo de ria. Esta não foi feita então – e acabou
sociedade moldado pela escravidão e a não sendo feita até hoje, gerando graves
pesada herança legada pela forma como problemas no campo, ao lado do incha-
se deu a Abolição e a quem, na verdade, ço de nossas grandes cidades, origem de
ela beneficiou. mazelas como o alto índice de crimina-
lidade urbana, os menores abandona-
Diferentemente da versão edulco-
dos, as favelas e assim por diante. E não
rada da História até pouco tempo atrás
foi feita por um motivo muito simples:
predominante em nossos livros didáti-
desejava-se garantir a existência de uma
cos – e na qual muita gente ainda acre-
reserva de mão de obra barata, o que não
dita, ou finge acreditar –, os motivos
seria possível se os negros libertos se
que levaram à Abolição se encontram transformassem em pequenos proprietá-
no terreno da política e da economia. rios rurais. Desse modo, o 13 de maio
Nada têm a ver com a proclamada bene- de 1888 significou uma grande farsa,
volência da família imperial, obrigada a na verdade a maior de nossa História.
extinguir a instituição escravista sob a Uma farsa que jogou a população afro-
pressão de forças históricas irresistíveis. -brasileira na rua da amargura, de onde,
Dentre elas se destacam a Revolução cem anos depois, ela continua tentando
lndustrial – que provocou a obsolescên- desesperadamente escapar.
cia do modo de produção escravista –,
Quis o destino que exatamente
mas, principalmente, a resistência dos
num 13 de maio, no ano de 1881 – sete
próprios negros, que com o tempo foi
anos, portanto, antes de se pôr fim à es-
ganhando mais e mais aliados e simpa- cravidão –, viesse à luz na cidade do
tizantes entre os segmentos mais sensí- Rio de Janeiro, se não o maior escritor
veis de nossas elites intelectual e polí- afro-brasileiro de todos os tempos, cer-
tica. tamente uma das maiores expressões de
Realizada, bem ao gosto dos nossa literatura, independente de origem
poderosos deste país, num ritmo lento étnica, e talvez o crítico mais contun-
muito lento, na verdade –, gradual e “se- dente das mazelas de nossa sociedade,
guro”, a Abolição acabou resguardando sobretudo de nossas elites. Refiro-me a
os interesses dos grandes fazendeiros e Afonso Henriques de Lima Barreto, a
senhores de escravos, e também de nos- quem convido a todos a render nossas
sa então incipiente burguesia industrial. homenagens no dia de hoje.
Afonso Henriques de Lima Barreto. Foto reproduzida do livro A mão afro-brasileira.
Pronunciamentos
Homenagem a Lima Barreto
ve ela perderá seus horizontes originais ferante a força reacionária que impedia,
(...),” Apesar das advertências de Lima entre nós, as reformas tornadas inadiá-
Barreto, dia a dia o Rio de Janeiro vai veis pelos novos tempos, desmascarou
perdendo seus encantos em favor da es- sua aliança com os plutocratas e latifun-
peculação imobiliária e de outras espe- diários da aristocracia rural, e por diver-
culações, sas vezes se manifestou favorável a uma
Em outro artigo, publicado em revolução no Estatuto da Terra, Também
1921, Lima Barreto fornece uma som- se interessou pelos Estados Unidos, de-
bria e precisa antevisão do futuro da- vido ao tratamento desumano de que
quela e de outras cidades brasileiras: “A então eram vítimas os afro-americanos,
megalomania dos melhoramentos atraiu Censurou duramente o expansionismo
para a cidade milhares e milhares de tra- imperialista daquele país que, por meio
balhadores rurais, E com o aumento da da “diplomacia do dólar”, ia, em sua
população, outros problemas se acres- perspectiva, convertendo o Brasil num
centam: o da água, o dos esgotos, o dos autêntico protetorado,
transportes”. Pode-se constatar, assim, Outro alvo predileto dos ataques
que os problemas hoje enfrentados pela do grande escritor era o futebol, que ele
antiga capital, envolvendo o bem-estar ridicularizava em suas crônicas com
social, o planejamento urbano e a pre- todo o sarcasmo de que era capaz. An-
servação da natureza, foram anunciados tes que alguém aponte nisso uma con-
nos primeiros decênios deste século tradição, por ser ele tão ligado às coisas
pela visão profética de Lima Barreto. do povo, deve-se ter em conta que esse
Muito antes de esses mesmos problemas esporte não era então absolutamente po-
desqualificarem essa cidade em suas pular, Pelo contrário: tratava-se de um
pretensões de sediar os primeiros Jogos esporte de elite, cujo acesso tentava-se
Olímpicos do século XXI. vedar aos pobres, em geral, e aos ne-
Embora não chegasse a ser pro- gros, em particular. Daí a sagrada fú-
priamente um marxista – foi mais in- ria com que Lima Barreto tratava seus
fluenciado pelo liberalismo spenceriano praticantes, fúria essa que só fez crescer
e pelo anarquismo de Kropotkin –, pou- quando o Presidente Epitácio Pessoa to-
cos souberam em sua época reconhecer a mou a iniciativa de proibir a convoca-
significação política da Revolução Rus- ção de jogadores negros para a seleção
sa de 1917. Assim como poucos tiveram brasileira que participaria de um torneio
tanta lucidez ao analisar os problemas internacional.
sociais do período imediatamente sub- A polícia de então, precursora da
sequente à Primeira Guerra Mundial. instituição que hoje nos acostumamos
Seus escritos sempre manifestavam a a ver associada à tortura e ao massacre
sincera intenção de libertar as massas, o de pessoas indefesas, não poderia esca-
que acabaria por torná-lo partidário do par ao garrote de sua pena: “A polícia
maximalismo, Vendo na burguesia legi- da República” – escreveu Lima Barreto
Pronunciamentos
Homenagem a Lima Barreto 1
no conto “Como o ‘homem’ chegou” – é te pelos amantes das letras, mas também
paternal e compassiva no tratamento das pelos simpatizantes de todas as causas
pessoas humildes que dela necessitam; e libertárias neste país, a vida de Lima
sempre, quer se trate de humildes, quer Barreto foi uma verdadeira síntese das
de poderosos, a velha instituição cum- injustiças e sofrimentos que marcam até
pre religiosamente a lei. Vem-lhe daí o hoje a existência do povo afro-brasilei-
respeito que aos políticos os seus em- ro. Sua mãe morreu em 1887, vítima de
pregados tributam e a procura que ela tuberculose galopante, doença que gras-
merece desses homens, quase sempre sava nos cortiços do Rio e cujo comba-
interessados no cumprimento das leis te as autoridades sanitárias preteriram
que discutam e votam”. Atualíssimo, em favor da luta contra a febre amare-
como se vê, inclusive na referência à la. Explica-se: enquanto esta vitimava
classe política. os brancos, sobretudo imigrantes, que
não haviam desenvolvido os anticorpos
República dos Bruzundangas –
correspondentes, aquela atacava prefe-
esse o termo cunhado pelo sarcasmo de
rencialmente os negros, cuja condição
Lima Barreto para cognominar o Brasil
financeira não favorecia os cuidados hi-
de então, que desafortunadamente conti-
giênicos e alimentares capazes de prote-
nua a ser o Brasil de hoje: república das
gê-los. Com todas as dificuldades, Lima
falcatruas, das trapalhadas, dos concha- Barreto ingressa, em 1897, na prestigio-
vos. Enquanto nos tempos coloniais os sa Escola Politécnica do Rio de Janeiro,
poetas comparavam o Brasil, por seus em busca de um diploma de Engenharia
contornos geográficos, a uma harpa, que jamais conseguiria obter: como se
Lima Barreto o via como um presunto, e não bastasse a perseguição declarada
assim explicava sua alegoria: “Até aqui de professores confessadamente racis-
não tinha sido comido. Mas tem sido ro- tas, em 1903 seu pai fica louco, o que
ído. Roem-no os de fora. Roem-no os de o obriga a abandonar os estudos para
dentro. Mas não há meio, quer uns, quer sustentar a família. É quando começa a
outros, de o deglutirem completamente. trabalhar no Ministério da Guerra como
O diabo da perna de porco resiste à vo- simples amanuense, função humilde
racidade interna e externa de uma ma- que desempenhará – a despeito de sua
neira perfeitamente milagrosa”. Vivesse cultura – até ser aposentado em 1918,
em nossos dias, decerto que Lima Bar- como “inválido para o serviço público”,
reto iria juntar-se, em sua indignação, às em razão do alcoolismo. O mesmo vício
fileiras da luta contra o entreguismo dos que já o levara algumas vezes ao hospí-
que, em sua fúria globalizante e supos- cio e que acabaria contribuindo para sua
tamente modernizadora, exercitam os morte prematura, em 1922, por colapso
dentes roendo, sem muito pudor, o pa- cardíaco.
trimônio nacional. Sobre esse talentoso e sofrido
Se toda essa competência e co·· escritor, o renomado crítico Jackson de
ragem o tornariam admirado não somen- Figueiredo emitiu esta opinião: “Lima
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar
Barreto é, entre nós, na verdade o tipo Lima Barreto, essa é uma história trági-
perfeito de analista social, mas um ana- ca, de sofrimento e revolta, de cruelda-
lista que combate, que não ficou como de, desespero e ódio. Mas também – e
Machado de Assis, por exemplo, no talvez mais que tudo – de imenso amor
Círculo de uma timidez intelectual es- por uma terra que nós inventamos com
quiva ao julgamento. Ele não se limita trabalho e sangue, que nós construímos
a mostrar todos os fundos da cena, o com nossos bagos de esperma e lágri-
que vai pelos bastidores da vida; toma mas e esperanças, mas que, em troca, só
partido, assinala os autores que falam a nos tem dado odesprezo, a humilhação,
linguagem da verdade, mostra o que há a exclusão. Graças, porém, à luta tenaz
de falso, de mentiroso na linguagem dos de homens como Lima Barreto, compe-
outros ( ... ). Não tem as delicadezas, tentes desmistificadores das verdades
as intenções filosóficas de Machado de oficiais, o Brasil vem pouco a pouco
Assis, veladas pelo sorriso cético. Antes tomando consciência de seus problemas
é um forte, chicoteia os vendilhões da mais graves – o racismo dentre eles –
dignidade nacional”. e procurando maneiras de resolvê-los.
A prolífica obra de Lima Barre- Nossa homenagem, pois, neste 13 de
to inclui os romances Recordações do maio, a esse grande negro, a esse gran-
escrivão Isaías Caminha, Triste fim de de escritor, a esse grande brasi1eiro, na
Policarpo Quaresma, Numa e a ninfa, certeza de que, onde quer que ele esteja,
Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá e há de estar feliz vendo crescer o número
Clara dos Anjos, além da sátira Os Bru- de brasileiros em geral, e de afro-brasi-
zundangas e de numerosos contos e crô- leiros em particular, engajados de corpo
nicas reunidos em diversas coletâneas. e alma na busca de cura para as mazelas
que sua pena magistral acuradamente
A melhor versão da nossa histó-
apontava, há tantas e tantas décadas.
ria de africanos e de afro-brasileiros,
só nós mesmos, com nossas razões de
vida, podemos contar. Na versão de
Axé!
Foto: Elisa Larkin Nascimento
Mãe Hilda, sacerdotisa baiana (montada), sobe com Tosta Passarinho (esquerda), Abdias Nascimento (centro)
e outros companheiros a serra da Barriga para executar as primeiras cerimônias religiosas lá realizadas em
homenagem aos ancestrais, em 20 de novembro de 1982.
Pronunciamentos
Dia Internacional de Solidariedade aos
Povos da África Austral
das eram as vozes que ousavam erguer- ram as oportunidades em que Machado
-se pela liberdade dos africanos e seus de Assis demonstrou simpatia pela cau-
descendentes escravizados que, não sa de seus irmãos escravizados. Não por
fosse por eles próprios, não se sabe por acaso, ao endossar as palavras elogiosas
quanto tempo mais se estenderia aquela com que o “mulato” Machado fora ho-
tragédia que então parecia infindável. menageado na imprensa após sua morte,
Dois modos, dois olhares e dois conhecido intelectual da época fez uma
afro-brasileiros que marcariam de forma única ressalva: não se deveria chamá-lo
definitiva a vida nacional, influenciando de mulato, pois ele preferiria ser consi-
as gerações vindouras com o exemplo de derado um grego e não um negro. Sua
genialidade, que mais tarde lhe gran-
suas trajetórias de vida – apesar de tão
jearia o reconhecimento como um dos
díspares – e de suas realizações. Refiro-
mestres da literatura universal, nunca se
-me, em primeiro lugar, a Luís Gama,
somou ao legado Iibertário de um José
poeta satírico, precursor do abolicionis-
do Patrocínio, de um Cruz e Sousa ou de
mo, nascido em Salvador, Bahia, no dia
um Luís Gama. Assim, foi praticamente
21 de junho de 1830, sobre quem me
à sua revelia que a História, persuasiva
deterei mais adiante. E a Joaquim Maria
como só ela sabe ser, acabou incorpo-
Machado de Assis, nascido na mesma
rando o menino franzino do morro ca-
data, oito anos depois, no Rio de Janeiro rioca do Livramento, que um dia iria
– um afro-brasileiro que iria destacar- fundar e presidir a Academia Brasileira
-se, no campo das letras, como poeta, de Letras, à galeria dos grandes gênios
romancista, crítico e cronista, enrique- afro-brasileiros.
cendo a literatura brasileira de páginas
Bem diversa foi a trajetória de
primorosas, como as de Dom Casmurro
Luís Gama, marcada por fatos que pode-
e Memórias póstumas de Brás Cubas.
riam ter-lhe afetado a humanidade, tê-lo
A importância da obra de Ma- embrutecido, fazendo-o fraquejar diante
chado de Assis para a cultura brasilei- do drama da escravidão e das possibili-
ra, ninguém pretende – nem poderia – dades de que dispunha para sobreviver.
ofuscar. Não foram poucas, porém, as Sua mãe, uma mulher africana de nome
críticas que lhe fizeram alguns de seus Luísa Mahin, é hoje considerada um
contemporâneos, homens que viviam a referencial mítico da identidade e das
plenitude da causa abolicionista, quan- lutas dos afro-brasileiros contra o racis-
to à sua postura de aparente indiferença mo. Descrita pelo próprio Luís Gama
por aquele movimento. Embora se im- como “muito altiva, geniosa. insofrida e
pusesse com todo o talento às exigên- vingativa”, Luísa Mahin foi, na verdade,
cias intelectuais da época, e demonstras- uma revolucionária cuja frequente parti-
se uma singular habilidade em driblar as cipação em projetos insurrecionais – in-
futricas e maledicências dos círculos clusive as famosas Revoltas dos Malês
intelectuais – pelo que merece todo o na Bahia – acabaria por levá-Ia várias
nosso respeito e admiração –, raras fo- vezes à prisão, até sua viagem sem re-
Luiz Gama. Foto reproduzida do livro A mão afro-brasileira.
Pronunciamentos
Homenagem a Luís Gama e Machado de Assis
a afronta à norma culta do idioma são na maioria das agruras, dentre as quais o
pulsantes nos versos de Luís Gama. sofrimento do cárcere, pelas razões de-
Como se ele estivesse falando para siguais da justiça em nosso país, a qual
uma cultura sobre as idiossincrasias de pune aqueles que lutam para fazer valer
outra, o que ressalta nos versos do poe- os princípios fundamentais da cidadania
ma “Quem sou eu”, conhecido popular- e do direito.
mente como “Bodarrada”: Mas o grande feito de Luís Gama,
Bodes há de toda casta abolicionista desde a década de 1850,
Pois que a espécie é muito vasta (...) foi ter conseguido, com sua atividade
Bodes ricos, bodes pobres como prático de advocacia, mesmo sem
o diploma acadêmico, a alforria para
Bodes sábios, importantes
mais de 500 de seus irmãos em cativei-
E também alguns tratantes ... ro. Conhecido e respeitado como gran-
Aqui nesta boa terra, de tribuno pela eloquência na defesa da
Marram todos, tudo berra ( ... ) causa dos humildes, seus brilhantes dis-
Tão rico é o nosso passado que cursos – como aponta seu biógraío Sud
decerto Olorum nos há de guiar para que Menucci – infelizmente se perderam,
não percamos – pois este é um iminente pois não foram registrados.
perigo – as riquezas do nosso presente. Alvo de uma perseguição política
Quanto mais explícita, mais surpreen- que o levou a perder o emprego público,
dente – e às vezes cruel – se faz a His- Luís Gama participou de partidos políti-
tória. Quantas de nossas crianças hoje, cos, quase sempre se desiludindo ante a
com o simples acesso a uma escola e al- predominância, entre os “progressistas”
guma alimentação, não mudariam suas de então, da ideia de uma república es-
vidas, seus destinos, como ocorreu com cravocrata. Raul Pompeia, em artigo in-
Luís Gama – em condições ainda mais titulado “A última página de um grande
difíceis que as atuais. homem”, publicado na Gazeta de Notí-
Quero evitar recorrências, mas cias, do Rio de Janeiro, em 12 de setem-
não posso. Luís Gama é ainda um sím- bro de 1882, assim o descreveu:
bolo de moral e dignidade. Foi um afro- ( ... ) Luís Gama fazia de
-brasileiro que, como Gregório de Matos tudo: literatura, consolava, dava
dois séculos antes, ironizou os ridículos conselhos, demandava, sacrifica-
da Corte e das elites, que tanto influí- va-se, lutava, exauria-se no pró-
ram e ainda influem em nossas vidas, prio ardor, como uma candeia ilu-
até mesmo na forma como nos tratamos minando à custa da própria vida
no quotidiano. Não posso, assim, deixar as trevas de desespero daquele
de celebrá-lo. Não falo do louvor for- povo de infelizes, sem auferir
mal, insosso, das homenagens vazias. uma sombra de lucro, entendendo
Falo da vibração de meu espírito por que advogado não significa o in-
um ancestral com quem me identifico divíduo que vive dos jantares que
Machado de Assis quando jovem. Foto reproduzida do livro A mão afro-brasileira.
Pronunciamentos
Homenagem a Luís Gama e Machado de Assis
que padece não apenas a África mesma, época e lugar em que tem sido travada,
mas igualmente boa parte das Américas, mas igualmente a palavra e o pensa-
sem esquecer a própria Europa. Ques- mento, tendo por meta a derradeira
tões como o racismo e a xenofobia, que conquista das consciências e mentes
têm nos descendentes de africanos no de europeus, africanos e seus descen-
Novo e no Velho Mundo seus alvos pre- dentes. Objetivo último dessa luta: a
ferenciais, encontram-se nas raízes de supremacia final, para uns, ou a plena
problemas como a violência urbana, as liberdade, para outros.
crianças de rua, a favelização das me- Uma das noções mais antigas en-
trópoles. Ao mesmo tempo, as sequelas tre os povos africanos escravizados nas
do colonialismo se espelham com clare- Américas é a de que sua liberdade não
za no empobrecimento e nas sangrentas
se resgataria com simples apelos emo-
lutas fratricidas que nos acostumamos a
tivos ao coração do dominador. Mais
associar a determinadas regiões da Áfri-
do que isso, a percepção de que uma
ca, frutos da atomização e do artificia-
África unida, livre da hegemonia eu-
lismo que presidiram à imposição das
ropeia, constituiria uma fonte de força
atuais fronteiras dos países africanos
e apoio aos negros em todo o mundo.
pelos centros político-militares euro-
Essa visão, raiz mais profunda daquilo
peus de força.
que viria a ser conhecido como pan-afri-
Com todo o sofrimento e toda a canismo, encontra-se presente, mesmo
dor que constituíram parte integrante que de forma incipiente, no ideário dos
desse processo cruel, a história da resis- principais movimentos de luta organi-
tência africana na própria África e nas
zada contra a escravidão nas Américas.
Américas é também uma saga repleta de
Estava presente em Palmares, que con-
heroísmo, bravura, determinação e cria-
gregava africanos de todas as origens,
tividade. Qualidades que possibilitaram
assim como seus descendentes, em bus-
que um povo dominado pelo poder das
ca da mesma liberdade por que lutaram
armas, reforçado por toda espécie de
os maroons do Caribe, os revoltosos da
ideologia mistificadora, conseguisse
Centro-América e os revolucionários li-
impor boa parte de sua cultura, de seus
bertadores do Haiti.
valores, de sua arte, de sua religião aos
seus dominadores, a despeito da suposta O pan-africanismo é a teoria e a
superioridade por estes autoproclamada. prática da unidade essencial do mundo
Tudo isso não aconteceu de graça, mas africano. Não há nenhuma conotação
em resultado de uma luta tão multiface- racista nessa unidade, que se baseia, não
tada quanto as próprias estratégias de em critérios superficiais, como a cor da
dominação elaboradas. pelos escravi- pele, mas na comunidade dos fatos his-
zadores europeus e seus descendentes. tóricos, na comunidade da herança cul-
Uma luta a um tempo nos planos ma- tural e na identidade de destino em face
terial e ideológico, envolvendo não so- do capitalismo, do imperialismo e do
mente as armas convencionais de cada colonialismo. O pan-africanismo reivin-
Pronunciamentos
Homenagem a Marcus Garvey 1
com sucesso – a ordem colonial britâni- intelectual e política que marcou o pe-
ca na Jamaica e em todo o Caribe. cedo ríodo imediatamente anterior à Primei-
demonstrou uma aguda inteligência e ra Guerra Mundial. Um ano antes, em
uma inquietação em face de problemas 1911, a cidade abrigara um Congresso
sociais e raciais que iria acompanhá-lo Mundial sobre Raça, organizado sob
até a morte. Já aos 16 anos. como apren- os auspícios do Movimento Inglês de
diz de gráfico, seu primeiro emprego, Cultura Ética – o mesmo Congresso em
o jovem Garvey iniciava sua atuação que o representante brasileiro declarou
como ativista político, participando de candidamente estar o Brasil resolvendo
uma greve de sua categoria. Pouco de- seu problema racial por meio da mis-
pois, publicou seu primeiro jornal. The cigenação, que acabaria com os negros
Watchman (O Vigilante), em que expu- dentro de um século. À miscigenação,
nha suas ideias e preocupações sobre te- acrescente-se, devemos somar as péssi-
mas vinculados a raça e classe. mas condições de vida que ajudariam a
liquidar o povo afrodescendente neste
Essas preocupações o levariam
país. A literatura. as atitudes e os de-
em frequentes viagens ao exterior. nas
bates relativos a esse Congresso ainda
quais a visão dos descendentes de afri-
eram motivo de acesas polêmicas quan-
canos ocupando em toda parte a base da
do Marcus Garvey chegou a Londres.
pirâmide social acabaria consolidando Igualmente importante era a nova litera-
suas posições ideológicas e forjando os tura anticolonialista produzida na África
elementos essenciais de sua plataforma Ocidental.
antirracista. anti-imperialista e antico-
As ideias do jovem Garvey sobre
lonialista. Assim foi no Panamá, porto
a redenção africana ganharam contor-
de destino de milhares de jamaicanos
nos definitivos quando se associou ao
atraídos pelos empregos oferecidos com
intelectual nacionalista Duse Moham-
a construção do Canal, mas discrimi-
med Ali, um egípcio de ascendência
nados em favor dos operários brancos.
sudanesa que publicava o jornal men-
Também no Equador, na Nicarágua, em
sal The African Times and Orient Re-
Honduras, na Colômbia e na Venezuela,
view. O período londrino completou a
onde os negros. empregados na mine- educação política de Marcus Garvey.
ração ou nas plantações de tabaco, pa- Ele estava pronto para a sua tarefa. Em
reciam incapazes de melhorar as humi- 1914, retornou à Jamaica e fundou uma
lhantes condições em que viviam. organização, que denominou Associa-
Em 1912, Marcus Garvey, aos 25 ção Universal para o Avanço Negro e
anos de idade, chega a Londres, onde Liga das Comunidades Africanas. Dois
vai trabalhar. estudar e desenvolver-se anos depois, encorajado pelo líder afro-
na percepção de novas dimensões da -americano Booker T. Washington, de-
luta negra. A capital do Império Britâni- sembarca em Nova York. No Harlem,
co. ainda nos picos de seu poderio, era toma contato com as especificidades da
o ponto focal da efervescente atividade questão racial nos Estados Unidos. Os
Marcus Garvey. Foto reproduzida do livro Garvey and Garveyism, de A. Jacques Garvey,
organizadora e publicadora. Kingston, Jamaica, 1963.
Pronunciamentos
Homenagem a Marcus Garvey
tária evitava que essa correspondência Marcus Garvey. Para ele, Garvey está na
chegasse a suas mãos, mas ele acabou vanguarda do grupo de negros radicais
tendo acesso a ela. As manchetes falando do século XX cujas ideias e programas
de sua morte causaram-lhe um choque do ainda reverberam nos movimentos de
qual não se recuperou, vindo a falecer no libertação de nossos dias. Isso se deve,
dia 10 de junho de 1940. Hoje, decorri- em grande medida, ao trabalho incansá-
dos 57 anos de sua morte, sua mensagem vel daquela que por décadas o acompa-
ao mundo continua válida: nhou na luta e que, depois de sua mor-
Ó África, acorda te, dedicou a existência à preservação
de sua memória e à divulgação de suas
A aurora está chegando
ideias. Estou falando de sua viúva, Amy
Não mais és maldita Jacques Garvey, por quem tive a hon-
Ó bondosa Terra-Mãe ra de ser recebido em minha passagem
De longe teus filhos e filhas pela Jamaica, em 1973.
Se dirigem de volta a ti O garveísmo inspirou muitos
Sobre as águas ressoam seus gritos líderes africanos, como o ganês Kwa-
me Nkrumah, apóstolo do pan-africa-
De que a África será livre.
nismo, bem como a jovem liderança
A filosofia de Garvey não é per- que, nos anos 60, faria avançar a um
feita, nem fornece uma base adequada ponto sem precedentes a luta dos afro-
para a moderna teoria e prática da luta -americanos. Sua preocupação com a
africana. Em consequência, é fácil e le- auto-imagem dos negros, com o valor
gítimo levantar críticas construtivas às do ensino da História Africana, com a
suas ideias e ao seu movimento. Mas unidade dos povos da África e da diás-
não se pode negar o legado que ele dei- pora, mas sobretudo sua disposição de
xou como fundamento essencial à orga- homem simples e prático, capaz de tra-
nização política do negro. Seu espírito duzir para as massas negras despossu-
continua vivo, apesar dos incansáveis ídas a mensagem do pan-africanismo, e
esforços de seus adversários em destruí- de tomar medidas práticas para concreti-
-lo. Em seu livro The Black Jacobins zá-la – tudo isso fez de Marcus Garvey
(Os jacobinos negros), o intelectual an- um homem que merece a admiração e
tilhano C.L.R. James – que em vida foi o respeito, não apenas dos africanos e
meu amigo e apoiou as reivindicações seus descendentes, mas de todos aque-
do Movimento Negro brasileiro ao VI les comprometidos de coração com a
Congresso Pan-Africano, realizado em mudança efetiva das relações sociais e
1974 na Tanzânia – observa que dois raciais.
caribenhos, “usando a tinta da Negritu-
de, inscreveram seus nomes de maneira
indelével na história de nosso tempo”.
Axé, Marcus Garvey!
James está se referindo a Aimé Césaire e
Pronunciamentos
Encontro na Baixada Fluminense
exclusão social, bem como nas diversas étnica, apresenta níveis de desigualdade
propostas que vêm sendo elaboradas e racial mais elevados do que nações até
implementadas com vistas à valorização recentemente caracterizadas pela prática
dos afrodescendentes. Na ocasião, em do racismo oficial.
que tive a honra de ser homenageado, Primeiros europeus a escravizar
ao lado da figura histórica do marinhei- africanos, os portugueses desenvolve-
ro João Cândido, herói da Revolta da ram toda uma “ciência” da dominação,
Chibata, acabei não tendo a oportunida- alicerçada em fundamentos amplamen-
de de ler meu discurso, em que faço um te encontráveis sobretudo nos textos da
breve balanço de minha atuação nesta autoria de sacerdotes, mas também em
Casa. Felicitando os organizadores des- documentos oficiais. Neles se percebe
se importante Encontro, passo agora à
a preocupação com a cultura africana,
leitura do discurso que deveria ter feito
que deveria ser destruída, quando ne-
naquela oportunidade.
cessário, ou domesticada, sempre que
Desenvolvida desde a chegada possível. A religião, ponto focal da iden-
a estas terras dos primeiros africanos tidade dos africanos e seus descenden-
escravizados, em principios do sécu- tes, sempre ocupou um papel central nas
lo XVI, a luta dos afro-brasileiros por preocupações desses políticos e intelec-
igualdade e justiça é uma saga de cruel- tuais, incansáveis nas suas tentativas
dade e revolta, sofrimento e redenção, de suprimi-la ou cooptá-la. Outra arma
que se estende pela História deste país ideológica foi a negação da contribuição
e se confunde com a luta pela liberda- negro-africana à História da Humanida-
de do povo brasileiro. Maioria absoluta
de, alterando-se a identidade racial de
da população nos tempos da Colônia e
povos como os egípcios ou ignorando-
do Império, e ainda maioria neste fi-
-se intencionalmente o registro histórico
nal de milênio apesar das tentativas de
de nações ricas e poderosas cuja negri-
embranquecer o Brasil estimulando-se
tude não poderia ser apagada.
a imigração europeia –, os africanos e
seus descendentes têm sido desde sem- A questão racial, assim, não é pro-
pre os verdadeiros responsáveis pela blema que se possa descartar de maneira
construção deste País. Em troca, o que leviana, como é tão comum fazer-se no
sempre recebemos foi a discriminação, Brasil. Não é, tampouco, um problema
a humilhação e o desprezo, edulcora- “dos negros”. Trata-se, isto sim, não de
dos por uma ideologia terrível na sua uma, mas da questão central, do nó gór-
capacidade de amortecer a consciência dio a ser cortado para que a sociedade
dos oprimidos e subjugados: o mito da brasileira possa definitivamente cor-
“democracia racial”, instrumento que se tar os laços da dependência, romper as
revelou extraordinariamente eficaz em amarras do atraso, livrar-se do comple-
manter os negros no “seu” lugar – o da xo que a faz sentir-se inferior diante de
subaltemidade absoluta em uma socie- europeus e norte-americanos, dos bran-
dade que, apesar de multirracial e pluri- cos verdadeiros que nossos mestiços de
Pronunciamentos
Encontro na Baixada Fluminense 101
tória, ciência, cultura e religião, elimi- pudesse ser adquirida por um consór-
nando ao mesmo tempo as referências cio de que participava a multinacional
preconceituosas e estereotipadas aos ne- Anglo American, que apoiou ostensiva-
gros nos livros didáticos, bem como sua mente o regime do apartheid na África
invisibilização. do Sul, é acusada de ter financiado a
A preocupação com a precarie- guerrilha contrarrevolucionária em An-
dade de acesso dos afro-btasileiros aos gola e Moçambique e foi condenada em
instrumentos de defesa legal orientou a diversos países por infringir a legislação
elaboração do Projeto de Lei do Senado antitruste – trata-se, aqui, de impedir
nº 114, de 1997, que tem como propósi- que a fúria privatizacionista abra espaço
às aves de rapina dos negócios interna-
to facilitar o recurso à chamada ação ci-
cionais, permitindo que empresas iden-
vil pública, a qual, atualmente, só pode
tificadas com a face mais cruel e imoral
ser iniciada pelo Ministério Público. Por
do capitalismo venham a se apossar de
esse projeto, indivíduos ou entidades da
um patrimônio acumulado graças ao tra-
sociedade civil organizada também po-
balho do povo brasileiro.
derão instaurar ação civil pública com
as finalidades de evitar ou interromper Esses quatro projetos sintetizam
atos danosos à honra ou dignidade de meu trabalho no Senado no primeiro se-
grupos raciais, étnicos ou religiosos, e mestre deste ano. Seu objetivo comum
de obter a reparação de tais atos, quando é concretizar a pauta consensual do
não seja possível evitá-los. Objetiva-se, Movimento Negro, criando não apenas
leis isoladas, mas um conjunto coerente
assim, dotar esses grupos de um instru-
e integrado de peças legislativas capaz
mento ágil e eficaz que lhes possibilite
de reforçar os afro-brasileiros, indivi-
enfrentar as manifestações de racismo
dualmente e como grupo, em seus em-
e discriminação, quer sejam de caráter
bates na arena jurídica. No entanto te-
individual ou coletivo. Outro aspecto
nho profunda consciência de que, para
importante desse projeto de lei é a cria-
que esses projetos sejam aprovados e
ção de um fundo de defesa e combate
depois, como leis, implementados, faz-
ao racismo, sustentado pelas indeniza-
-se necessário que os setores organiza-
ções a que possam fazer jus os autores dos de nossa comunidade acompanhem
das ações, a ser instituído, até 12 meses nosso trabalho, tomem conhecimento
após a aprovação e publicação desta dessas iniciativas e as debatam em suas
lei, pela Secretaria Nacional de Direitos organizações, e que mantenham conta-
Humanos. to conosco para que possamos manter
O Projeto de Lei do Senado nº 73, sempre o elo com o movimento que re-
de 1997, completa esta breve exposição presentamos. Tenho dito muitas vezes
de meu trabalho até o momento. Apre- que este é um momento extraordinaria-
sentado em função de uma necessidade mente favorável. A questão racial dei-
do momento – impedir que a Vale do xou de ser tabu, sendo agora reconheci-
Rio Doce, e depois dela outras estatais, da pelo próprio presidente da República,
Pronunciamentos
Encontro na Baixada Fluminense 10
que criou o Grupo de Trabalho Intermi- para um novo tempo de conquista, para
nisterial para a Valorização da Popula- a luta negra, dos corações e consciên-
ção Negra. Outros fatos recentes, como cias de todos os brasileiros identificados
a inédita decisão do Supremo Tribunal com as causas da justiça e da liberdade.
do Trabalho dando ganho de causa a É responsabilidade de todos nós apro-
um negro discriminado na Eletrosul, a veitar a conjuntura favorável para esta-
atuação conjunta e eficaz de organiza- belecer, de uma vez por todas, a agenda
ções negras nos casos de Tiririca e do afro-brasileira como item prioritário na
ministro Padilha, o sucesso de publi- pauta das grandes questões nacionais.
cações de boa qualidade destinadas ao
público negro, sem esquecer a organiza-
ção de uma bancada afro-brasileira no Axé!
Congresso Nacional – tudo isso aponta
Pronunciamentos
Visita do presidente da Guiné-Bissau 10
Nacional dos Artistas e Escritores da rações na África de hoje que por sinal o
Guiné-Bissau foi a primeira entidade condenou de forma quase unânime. Isso
cultural africana a lançar manifesto em se soma a uma conjuntura francamente
prol dessa iniciativa, conclamando suas favorável, com colheitas abundantes e
congêneres a fazerem o mesmo. preços estáveis para os seus produtos
Acostumados a olhar a África no mercado internacional, para gerar
com uma visão estereotipada e precon- desempenhos econômicos como o de
ceituosa, alimentada por um noticiário Uganda, que tem crescido desde 1992 a
que enfatiza tragédias, crises e massa- uma taxa de oito por cento ao ano digna,
cres, a ponto de nos fazer acreditar que portanto, de um “Tigre Asiático”.
estes são tão característicos do Conti- A África está mudando. E o Bra-
nente Africano quanto a rica fauna das sil, mais que qualquer outro país, pode
savanas ou os eloquentes vazios do de- ajudar nesse processo e se beneficiar
serto, a maioria de nós não está perce- com ele, estabelecendo uma sólida co-
bendo os sinais de mudança emitidos de operação nas áreas do comércio, educa-
vários países da África Subsaariana. O ção, cultura, ciência e tecnologia. Por
autoritarismo e a instabilidade política, tudo isso, e pelos indissolúveis laços
antes regras quase gerais, vêm sendo etno-históricos que indiscutivelmente
substituídos por regimes democráticos nos unem, saúdo desta tribuna o presi-
cada vez mais sólidos. A ponto de gol- dente João Bernardo Vieira, almejando
pes de Estado, como o que recentemente pleno êxito à missão que o trouxe ao
depôs o Governo eleito de Serra Leoa, nosso país.
estarem gradualmente se tornando aber- Axé, presidente Nino Vieira!
Pronunciamentos
Defesa de maior aproximação do Brasil com a África 11
ridos em favor de outros grupos étnicos, Mas é a partir dos anos 1950,
uns chegados cedo apenas para explo- quando ganha corpo na África a luta
rar e oprimir africanos e índios, outros anticolonialista, que o racismo passa a
chegados mais tarde e cuja contribuição ser um elemento de maior importância
foi incomparavelmente menor que a dos na orientação da política formulada pelo
africanos. Itamaraty. Embora defendendo os prin-
Herança de séculos de escravi- cípios gerais da liberdade e do que então
dão, atualizada na sociedade pós-1888 se denominava “o direito de autodeter-
minação dos povos”, o Brasil atrelou
em função das necessidades de uma nas-
sua política “africana” aos interesses de
cente sociedade capitalista, que precisa-
Portugal, à época sob a ditadura salaza-
va de mão de obra barata na lavoura e na
rista. O que significou, na prática, uma
indústria, o racismo é uma das marcas
série de votos e abstenções nas Nações
características das relações sociais no
Unidas em favor da manutenção do
Brasil, ainda que por aqui se mostre tra-
domínio luso na chamada África Por-
vestido de seu exato oposto, graças a vá-
tuguesa, que compreendia Angola, Mo-
rias estratégias de dominação, inclusive çambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde
o mito da “democracia racial”. Com- e São Tomé e Príncipe, sem qualquer
parado a um monstro de mil faces, que preocupação de caráter humanitário ou
interfere em variados aspectos da vida com as implicações geopolíticas dessa
em nosso país, o racismo também tem posição. Em suma, sem a consciência do
se imiscuído há muito tempo na própria que tal postura poderia representar para
formulação de nossa política externa. Na um país com pretensões a um papel de
década de 1920, por exemplo, quando liderança no Hemisfério Sul. Eu mesmo
a perspectiva da vinda de afro-america- sofri na própria pele os reflexos dessa
nos para colonizar os vazios de nosso política, perseguido em meu próprio
Centro-Oeste, atraídos por anúncios pu- país por obra e graça da PIDE, a terrível
blicados na imprensa dos Estados Uni- polícia política de Salazar, então com
dos, provocou acaloradas discussões no livre trânsito para defender, no Brasil,
Congresso, as posições dos que viam os interesses escusos da atrasada classe
nisso uma ameaça à nossa “harmonia ra- dominante portuguesa.
cial” consubstanciaram-se numa ordem Infelizmente, foram os interesses
sigilosa enviada aos consulados brasi- materiais – disfarçados por um discur-
leiros naquele país, mandando-os negar so hipócrita que apelava às afinidades
vistos a esses “indesejáveis” candidatos etno-históricas – os responsáveis pela
a imigrantes. Temia-se que os negros radical transformação da política afri-
norte-americanos, mais acostumados ao cana do Itamaraty, em meados da dé-
confronto racial num país que então não cada de 70. Não por coincidência, no
escondia o seu racismo, viessem “conta- justo momento em que os portugueses
minar” os afro-brasileiros com exóticas eram expulsos, pela força das armas, de
ideias de democracia e igualdade. suas “colônias” africanas, que eles – tal
Pronunciamentos
Defesa de maior aproximação do Brasil com a África 11
descendência africana neste País, que lhores de outras raças porque to-
é, aliás, a que forma a maioria do povo dos os seus talentos ainda não lhe
brasileiro. garantiram o status de detentor de
S. Exª pertence ao Governo do plena humanidade.
excelentíssimo senhor Fernando Henri- Por isso ele só seria com-
que, que, ainda há pouco tempo, abrindo parável a um derivado de petró-
um seminário internacional sobre a ação leo, uma das poucas coisas pretas
afirmativa em favor da população negra, valorizadas no mundo.
declarou-se contra o racismo, dizendo Essas são as honras reser-
mesmo que tinha um pé na cozinha, vadas a um rei negro no Brasil.
como uma metáfora da sua ascendência
Para os demais negros,
africana.
como Jorge Paulo, mendigo, 48
Não se trata apenas de um bra- anos, queimado enquanto dormia
sileiro qualquer que manifestou esse
na Cinelândia, resta o extermínio.
racismo, mas de um ministro de Esta-
Talvez como forma de punição
do. Não sei como esse ministro pode
por não ter conseguido ser Pelé,
pertencer a um governo que combate o
nem asfalto.
racismo e falar contra o povo negro, de
ascendência africana. Talvez pela expectativa de
que, como uma fênix, de suas cin-
Queria, desta tribuna, assumir o
zas misturadas ao asfalto resulte
raciocínio do grupo das mulheres negras
mais um “ser” que possa ser “ad-
de São Paulo, do Instituto da Mulher
mirado” pelo Brasil como Pelé ...
Negra Geledés. Diz o documento:
Talvez renascer com o tipo
Que comparação possível
de “humanidade” pretendida pela
pode haver entre Pelé, um homem
professora negra Eliane Alves da
negro, o maior atleta do século, e
o asfalto? A cor? Nem Pelé é pre- Silva, para quem deveriam ter
to, nem o asfalto é negro; nem morrido 20 milhões de judeus aos
Pelé é coisa, nem asfalto é gente. invés de seis candidatando-se as-
sim a uma vaga de membro hono-
O que autoriza alguém a
rário do próximo Reich, para de-
comparar gente a coisa é a de-
sespero dos discípulos de Hitler.
sumanização e a coisificação de
seres humanos que o racismo e a Três dimensões perver-
discriminação produzem. Para o sas e assustadoras do racismo no
ministro Eliseu Padilha, Pelé não Brasil: a coisificação/desumani-
é comparável a nenhum outro ser zação, a eliminação física pura e
de sua raça porque é considerado simples ou a opção de tornar-se o
uma exceção dentro dela, já que outro, o racista opressor.
é o único admirável. E também Esse documento dá uma demons-
não pode ser comparado aos me- tração da isenção das organizações ne-
Pronunciamentos
Ministro de Estado racista 11
gras que combatem o racismo. Ele não Eram essas minhas considerações
somente combate o racismo do ministro de repúdio e de lamentação ao proce-
de Estado, mas também combate o ra- dimento desse ministro de Estado do
cismo de uma mulher negra, professo- Governo do senhor Fernando Henrique
ra da Universidade Federal Fluminen- Cardoso.
se, que se manifestou de forma racista Muito obrigado.
numa sala de aula.
Pronunciamentos
Do sistema penitenciário 1 1
dos serem pobres e de dois terços dessa ocupação comum com os descaminhos
população serem compostos de afro- do sistema penal brasileiro e a falta de
-brasileiros – ou “pretos” e “pardos” –, perspectiva dos encarcerados.
segundo o censo penitenciário de 1994 e Todos sabemos que, por princí-
dados da CPI do Sistema Penitenciário pio, as penas que privam os indivíduos
de 1993. da liberdade têm como fundamentos
Esses números, que representam a justiça e a defesa social. Mas não se
pessoas, mais uma vez expõem a face pode perder a perspectiva de que é fun-
perversa do racismo brasileiro. A pobre- ção do Estado a reeducação e o preparo
za e a criminalização de negros consti- do apenado para que ele volte ao conví-
tuem um dos princípios que permeiam a vio social. O Estado, porém, além de ser
interpretação do direito e a aplicação da negligente com a sua missão, propicia e
justiça em nosso país. promove os meios que impedem a recu-
Não se trata aqui de choramin- peração do encarcerado, como indiví-
gas e lamentos. Pesquisas quantitativas duo capaz de ter uma função social, ao
denunciam que, quando se trata de um mesmo tempo em que agrava o processo
afro-brasileiro envolvido em ilícitos, a de marginalização desse indivíduo du-
polícia é persecutória e voraz no cum- rante o período em que está cumprindo
primento da sua missão, a Defensoria a pena.
Pública, não raro, vagueia nos limites A violência sem proporções, que
da burocracia e a justiça, na sua ceguei- se instalou nos grandes centros brasilei-
ra plena, avança sem limites até o mais ros praticamente impõe uma sobrepena
alto grau de parcialidade. aos condenados, principalmente pela
Durante o início da Campanha da violação generalizada dos direitos hu-
Fraternidade deste ano, que tem como manos. Uma vez condenado, o indiví-
lema A Fraternidade e os Encarcerados, duo perde o direito à liberdade, mas não
tive a oportunidade, juntamente com a os direitos fundamentais da pessoa hu-
ilustríssima senadora Benedita da Sil- mana. São imensos os ultrajes por que
va e os ilustríssimos deputados Luís passam os familiares dos presos durante
Alberto, Paulo Paim e Chico Vigilan- as visitas nas delegacias e nos presídios
te, de visitar o Excelentíssimo Senhor em termos de angústia e de humilha-
Dom Lucas Moreira Neves, presidente ção. É como se a pena se estendesse à
da CNBB, ocasião em que lhe foi en- família, atingindo mães, filhos, avós de
tregue o documento intitulado Situação forma autoritária e impiedosa. Somem-
da População Afro-Brasileira e Segmen- -se a isso as centenas, talvez milhares
tos Excluídos do Sistema Penitenciário de presos que já cumpriram suas penas
Brasileiro e Propostas de Garantia do e continuam encarcerados, por falta de
Princípio da Dignidade da Pessoa Hu- uma assistência jurídica adequada.
mana. Foi um encontro bastante alvis- O abuso de autoridade, a corrup-
sareiro, em que se evidenciou nossa pre- ção, a tortura como prática cotidiana
Pronunciamentos
Do sistema penitenciário 1
Vista da Escola Professor Abdias Nascimento, criada pela Associação Cultural Akomabu.
Pronunciamentos
Livro sobre São Luís do Maranhão 1 1
cos, mas de pouco mais de 20%, em mé- enorme de fracasso escolar e abandono
dia, para os descendentes de africanos. da escola entre os alunos negros, situ-
Por esse e outros fatores, o Brasil, que ação reforçada pela inserção social da
ocupa um razoável 63º lugar segundo população afro-brasileira, que, mostram
o Índice de Desenvolvimento Humano os números, sofre em dobro os efeitos
das Nações Unidas, desceria para a 120ª da pobreza, dentre eles a dificuldade de
posição, ficando entre as nações mais manter os filhos estudando, dada a ne-
pobres do mundo, caso se levasse em cessidade de que estes contribuam para
conta exclusivamente a população ne- a minguada renda familiar.
gra. Isso dá uma ideia bastante precisa Nessas condições, é com imensa
da distância entre negros e brancos neste tristeza que assistimos à criminosa des-
pais, assim como do esforço necessário
montagem do programa dos CIEPs, as
para superarmos essa desigualdade.
escolas de tempo integral criadas nos
No caso específico da educação, dois governos de Leonel Brizola no Rio
embora não haja discriminação no aces- de Janeiro, sob a orientação e supervi-
so à escola pública, o racismo está pre- são do saudoso professor Darcy Ribei-
sente como importante fator a explicar ro, uma das maiores autoridades em
essas disparidades. Estudo realizado educação que este país já produziu. O
pela prestigiosa Fundação Carlos Cha- ponto-chave da concepção dos CIEPs –
gas, vinculada ao Governo do Estado não por coincidência, alvo central dos
de Minas Gerais, mostra claramente o ataques de seus detratores – é a ideia
modo como a escola fabrica o fracasso de manter o aluno na escola pelo tem-
do aluno negro, para depois atribuir esse
po máximo possível, fornecendo-lhe
mesmo fracasso a uma suposta incapa-
uma educação de qualidade, integrada
cidade desse aluno em aprender ou em
ao esporte e ao lazer, com alimenta-
se adaptar ao meio e às exigências do
ção, assistência médico-odontológica e
ambiente de ensino. Sem referências
orientação higiênica, incluindo o banho.
positivas nos textos de História, sem
De modo não só a prepará-lo adequada-
sequer se ver representado nas ilustra-
mente para o sucesso em uma socieda-
ções dos livros em geral – para não falar
de cada vez mais competitiva, o que é
na imposição de uma cultura totalmen-
te europeia, desvinculada dos valores fundamental, mas também a lhe ocupar
da cultura afro-brasileira, tão louvada ao máximo o tempo livre, evitando os
quando se pretende provar a suposta to- desvios da violência e das drogas.
lerância do brasileiro à diversidade –, o Evidentemente, uma proposta tão
jovem afro-brasileiro acaba encarando avançada e generosa não poderia agra-
a escola como um ambiente estranho e dar aos que têm na ignorância do povo
hostil. Como se vivêssemos num pais um dos principais instrumentos de sua
ocupado e fôssemos obrigados a absor- manutenção no poder. Em resultado
ver uma cultura alienígena, imposta por disso, uma das primeiras ações do atu-
conquistadores. O resultado é um índice al Governo do Estado do Rio de Janeiro
O primeiro traço do CIEP por Niemeyer
O CIEP construído. Foto reproduzida da revista Carta 15, 1995, publicação de Darcy Ribeiro.
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar
Escadaria e Galeria Heitor dos Prazeres, Centro Cultural José Bonifácio, Rio de Janeiro (foto reproduzida do folheto
informativo do Centro).
Pronunciamentos
Centro Cultural José Bonifácio 1
grande brasileiro de igual status huma- sorar o Alvarado. Essa mania que
no recentemente falecido, o também nós, brasileiros, temos: pensar
querido Senador Darcy Ribeiro, Beti- que somos deuses. E no entanto
nho mostrou claramente a alma de artis- tudo isso se deu. Fui trabalhar
ta que animava seu ofício de sociólogo com Joan Garcez, assessor pes-
e político. Referindo-se a uma polêmica soal de Allende. Você foi embora
menor em que Darcy se metera, movi- para descobrir lá longe o próprio
do por um gênio que não lhe permitia câncer e montado nele voltar para
esquivar-se a qualquer provocação, Be- o Brasil. Da morte para a vida.
tinho assim se expressou: Enfim, nossa história é
Darcy, aquele abraço uma permanente disputa pelo ab-
Você é de Montes Claros, surdo, até que eu te venci: criei
eu sou de Bocaiúva. Sou mais a Grande Bocaiúva e incluí nela
importante que você por razão de Montes Claros, Belo Horizonte,
nascimento, mas você não tem Rio e uma parte de Paris, sem fa-
culpa. Você tem câncer e eu, além lar em Nova Iorque.
de hemofílico, tenho Aids. Ganhei Mas agora estou triste com
mais uma vez. Você não pode co- esse debate pelos jornais que
migo. Mas isso é entre nós. você fez com gente do tempo da
Vivemos mais ou menos a ditadura. Esse debate não merece
mesma época, você tem alguns ser feito por você. Que importa
anos mais que eu, você viveu o passado? Os títulos, os currí-
mais perto do poder e eu mais culos? Essa gente tem o passado
perto da planície, da sociedade. da ditadura, você tem a luta pela
Não é virtude, é destino. democracia! Eles são doutores da
Você conheceu a morte ditadura, você é um eterno aluno
mais tarde, eu já nasci com ela. da democracia, às vezes perigosa-
Vantagem minha? Não sei. Você mente perto do poder. Mas não há
foi mais livre que eu, ousou mais nenhuma dúvida sobre o seu lado:
em muitos campos. Em outros o do oprimido, do segregado, do
você foi poder, com Jango e tan- danado, o da maioria. E isso é que
tos outros. Não importa. Somos é o saber.
grandes amigos e irmãos, apesar Pelo amor de Deus, não
de não nos vermos como se de- perca seu tempo com esse tipo de
veria. E vivemos no mesmo Rio. debate! Com esse tipo de gente! A
Quando cheguei no Chile vida é mais importante.
escapando da ditadura no Brasil Discutir títulos é discutir
você foi logo me dizendo que eu bestage, como se diz em Minas.
deveria assessorar Allende. Por- Discutir diplomas é discutir ordem.
que você iria para o Peru asses- Pare com isso. Continue a discutir
Pronunciamentos
Dia da Arte e do Sociólogo Betinho 1 1
çam a melhor forma de se prover as es- aos alunos, servindo, sobretudo, como
colas dos professores necessários para o contribuição para a construção da sua
ensino religioso, nas várias confissões. personalidade, dos princípios da ética e
Portanto, parabenizo V. Exª pela análise da moral, da cidadania e assim por dian-
que acaba de fazer. A nossa preocupação te. Portanto, fiquei muito feliz em ouvir
não foi, de forma alguma, no sentido de o pronunciamento de V. Exª e o cumpri-
impor qualquer religião aos nossos alu- mento pela forma precisa e competente
nos nas escolas públicas. Não houve a como abordou essa importante questão
intenção em estabelecer conflito entre o que, por certo, irá dar uma contribuição
Estado e a Igreja nem em atender pleitos muito importante à educação do nosso
da religião a, b ou c. Preocupamo-nos, país.
sim, como educadores, que o ensino O SR. ABDIAS NASCIMEN-
religioso possa ser viabilizado, porque, TO – Agradeço o seu aparte. V. Exª, na
se não houver ônus para o setor públi- qualidade de presidente da Comissão de
co com relação ao pagamento desses Educação desta Casa e tàmbém de rela-
professores, assistiremos ao desapareci- tor da matéria, ajudou a esclarecer, a dar
mento do ensino religioso das nossas es- mais amplitude aos conceitos e à análise
colas por falta de professores ou, então, que vinha fazendo a respeito dessa lei.
essas aulas se transformarão em proseli- Assim, agradeço muito a V. Exª e peço
tismo, em propagandas de determinadas ao Senhor Presidente que integre o seu
religiões; não seriam aulas onde os con- aparte como essência do meu discurso.
ceitos religiosos seriam apresentados
Muito agradecido a V. Exª.
Pronunciamentos
Homenagem a Getúlio Vargas 1
nista Brasileiro, que retoma à clandes- Foi nessa altura do processo po-
tinidade. Enquanto isso, Getúlio Vargas lítico que me identifiquei com Getúlio
preparava cautelosamente a sua volta ao Vargas. Ajudei a fundar, no Rio de Ja-
Palácio do Catete. Aos 67 anos, havia neiro, o Partido Trabalhista Brasileiro –
compreendido profundamente as trans- o PTB, ao lado de Segadas Viana, Bení-
formações socioeconômicas por que cio Fontenelle e muitos outros.
passava o País, apresentando-se muito A imensa habilidade na arte da
próximo às reais aspirações da classe conciliação não impediu que Getúlio
trabalhadora. Seu grande adversário Vargas fosse sendo paulatinamente si-
político, a UDN, apresentava a candida- tiado. Enquanto suas iniciativas sociais
tura do Brigadeiro Eduardo Gomes, re- e trabalhistas eram bombardeadas pe-
presentando um liberalismo antipopular las forças conservadoras, sua decidida
e bacharelesco que prenunciava seu fu- atuação em favor de um desenvolvi-
turo de partido golpista e conspiratório. mento de base encontrava forte resis-
Eleitoralmente inconsistente, Cristiano tência dos setores políticos ligados ao
Machado, candidato do PSD, não cons- capital externo. Destes seriam alvos
tituía obstáculo. preferenciais importantes criações de
Getúlio, como o Plano do Carvão, o
Assim, depois de seis anos afasta-
Banco Nacional de Desenvolvimento
do do Catete, Getúlio Vargas conquistou
Econômico, o projeto da Eletrobras e,
novamente, pela força do voto e com o principalmente, a Petrobras.
aval das massas trabalhadoras, a cadeira
Em fins de 1951, Getúlio Vargas
presidencial, arrasando seus adversá-
enviou ao Congresso o projeto de lei que
rios com quase 4 milhões de votos, ou
criava o monopólio estatal do petróleo,
cerca de 49% do total. Sem maioria no
por meio de uma empresa de economia
Congresso, contudo, teria de se impor
mista sob controle acionário do Estado.
mediante uma administração vibrante e Esse projeto foi talvez o mais sério divi-
vigorosa. Getúlio soube compreender as sor de águas entre “nacionalistas” e “en-
necessidades de um Brasil muito dife- treguistas”, e fator de desgaste de Vargas
rente daquele da década de 30, um país perante muitos setores – inclusive mili-
cuja expansão capitalista e urbana fize- tares. No plano parlamentar, o projeto
ra crescer, em número e importáncia, as gerou acirrados debates, polarizados
massas trabalhadoras. Estas lhe dariam entre, de um lado, a bancada do PTB e
seu apoio fundamental numa política seus aliados nacionalistas e, de outro, os
que, além de levar a conquistas práticas políticos da UDN, apoiados por forças
de interesse popular, também permitia, articuladas ao capital estrangeiro. A es-’
com o estímulo à sindicalização, bem tes últimos se juntavam, contra a tese do
como às greves e manifestações nacio- monopólio, entidades representativas
nalistas, um sensível salto organizativo das classes patronais. Mas a campanha,
dos trabalhadores. da qual pude participar ativamente, não
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar
mática, embora sua finalidade seja susci- breve duração daquela nossa primeira
tar questões e dúvidas que extrapolam os república, mas um estudo, cuidadoso e
limites de seu campo. Não pretende ser isento, da vasta documentação existen-
este, tampouco, um estudo exaustivo, mas te sobre a Revolução demonstraria, sem
principalmente sequer provocador. dúvida, a rota que trilharia um eventual
Revoltas de escravos houve mui- poder republicano sedimentado revolu-
tas antes do 6 de março de 1817 e muitas cionariamente – a exemplo dos demais
depois, pelo Brasil afora. O que ocorreu na América Espanhola – e imbuído da
quando daquela Revolução, entretanto, ideia radical de liberdade em um país
estando bem vivos, na memória de todos, com o grau de escravidão do Brasil e
os sucessos surpreendentes do Haiti, foi por meio de um movimento que incor-
inaudito, pois representou não apenas a porou, como a Revolução de 1817, os
participação de negros e mulatos, ao lado negros em todos os seus principais pas-
dos brancos, no poder que se institucio- sos. Não enveredarei por aquele cami-
nalizou, mas sobretudo porque significou, nho, que foge a meu escopo aqui, mas
em um dado momento, a criação da pos- que está a merecer um estudo amplo e
sibilidade política de um levante geral no aprofundado; apenas, sugerindo, aqui e
Brasil, com uma ampla reestruturação do ali, por onde ele poderia passar, tentarei
panorama social. E essa percepção foi com mostrar, por meio de aspectos diplomá-
muita clareza expressa pelos observadores ticos da Revolução de 1817, o quanto
internacionais daquela Revolução. impressionou a todos os observadores o
extraordinário relacionamento da Revo-
A realidade não foi tão drástica
lução com a problemática da escravidão
quanto aquela possibilidade pode dei-
no Brasil e como aquela percepção in-
xar parecer, tanto em vista sobretudo a
fluiu no desenrolar de nossa história1.
1 Embora, como disse, não esteja no âmbito deste estudo discutir o assunto em seu aspecto mais amplo, não me posso
furtar a um comentário sobre esse tema, suscitado por duas passagens de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil,
sobretudo em virtude da importância que adquiriu aquele livro nos estudos sobre o processo político brasileiro. A primeira
passagem estava já em sua primeira edição, de 1936 (Rio de Janeiro, José Olympio, p. 157, Capítulo VII), e ali Sérgio Bu-
arque de Holanda, rendendo perfeita justiça a aspectos da Revolução de 1817 (“aqueles pioneiros de nossa independência e
da república (...) foram de uma sinceridade que nunca mais se repetiu no decurso de nossa vida de nação”), comete o equí-
voco de afirmar que os revolucionários “não desejavam em nada modificar a situação dos negros escravos”, repetindo uma
percepção apressada, quando não facciosa, mas de resto compreensível em 1936, quando os Documentos históricos da Re-
volução de 1817 na Biblioteca Nacional não haviam sido ainda publicados. A segunda passagem consta do volumoso texto
acrescentado, na edição de 1948, ao Capítulo III do livro, intitulado “Herança rural”, e ali, mais uma vez, aquela percepção
errônea é brandida, e de maneira mais ampliada (cito em espanhol pois apenas pude compulsar a tradução de 1955 do Fundo
de Cultura Econômica do México): “(...) la misma Revolución Pernambucana de 1817 (...) puede decirse que fue en gran
parte una repetición de la lucha secular del indígena contra el advenedizo, del dueno del ingenio contra el comerciante. Es
poco probable que de haber triunfado hubiese introducido alguna transformación verdaderamente substancial en nuestra
estructura político-económica.” Tampouco em 1948 aqueles Documentos históricos estavam publicados, e isso justificaria
o julgamento generalizado de Sérgio Buarque de Holanda. A importância de seu livro, entretanto, é razão suficiente para
que atenção seja chamada aqui sobre a necessidade de uma reavaliação daquela percepção. Não é, como disse, meu tema
aqui essa reavaliação, mas em alguns de seus aspectos espero que aquela antiga percepção apareça claramente questionada
nos poucos parágrafos a seguir neste estudo. Incidentemente, assinale-se que da Revolução participaram tanto donos de
engenho quanto comerciantes, ao contrário do que sugere Sérgio Buarque de Holanda, que também nisso deve ser revisto.
A Revolução Haitiana no Brasil
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão 1
2 O Halti foi o segundo país, depois dos Estados Unidos. a se tornar independente nas Américas, fato que ainda hoje não
é tão lembrado.
3 Impressionante e bem-documentada história do Haiti é o livro de Robert Debs Heinl, Jr, e Nancy Gordon Heinl, Written
in blood. lhe story of lhe Haitian people. 1492-1971 (Boston, Houghton Mifflin. 1978). Nele se encontram os seguintes
dados, que informam minimamente o que venho de asseverar: por volta de 1783 o comércio do Haiti significava mais de
um terço do comércio exterior da França e em 1790 era o Haiti, depois da Grã-Bretanha, o segundo parceiro comercial dos
Estados Unidos; em 1791 exportava mais de 35 mil toneladas de açúcar refinado, em 1789. mais de 375 toneladas de anil;
em 1801, entretanto, dez anos depois do início das guerras de independência, a exportação de açúcar refinado fora de oito
toneladas, a de café caíra 55%, a de anil fora de 804 libras e a de algodão caíra a cerca de um terço. Isso quanto à economia.
Quanto à crueldade daquelas guerras. dizem aqueles mesmos autores que a população do Haiti, que em 1789 andava por
volta de pelo menos 700 mil pessoas, sem contar os poucos brancos, em 1824, por ocasião do primeiro censo demográfico.
totalizara 351.819: mais da metade teria desaparecido naquelas lutas.
4 Ofício número 22, de Henry Chamberlain ao secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, lorde Castlereagh. de
28 de março de 1817 (“the negroes fortunately have remained entirely neutral”).
5 Oficio número 29, de Henry Chamberlain a lorde Castlereagh, de 5 de abril de 1817 (“So long as the negroes take no part
in the dispute the danger will be comparatively small; but if these men join in it. either from a feeling of their own strength,
or a wish to regain their freedom: – or are called to arms by the despair of lhe rebels, ir is useless to attempt to calculate
the ruin that will inevitably follow: the Ministry is so well aware of this danger that the Governor of Minas Geraes, who had
been ordered to town to be present at the Acclamation, has been sent off again at an hours notice”).
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
6 Oficio do comodoro William Bowles para lorde Fitzharris, no Almirantado em Londres, desde Buenos Aires. em 26 de
maio de 1817, transcrito por Gerald S. Graham e R. Humphreys. orgs., em The Navy and South America 1807-1823 (Lon-
dres, The Navy Records Society, p. 200) (“I heartly wish for my own sake, but much more for that of humanity. some means
could be devised for terminating hostilities which, if they continue and extend, as the insurrection at Pernambuco gives us
but too much reason to fear that they will, may end in the expulsion of all whites from this continent and the establishment
of a second St. Domingo in the Brazilian territories”).
7 Transcrita por Mello Moraes em História do Brasil-Reino e do Brasil-Império, Belo Horizonte, Itatiaia, 1982. Tomo I.
p. 477-80
8 Dominique de Pradt, Des trois derniers mois de l’Amérique Méridionale et du Brésil. Paris. F. Bechet. 1817, p.(“et si par
le plus grand des mulheurs, ils venaient à mettre en mouvement les esclaves, que deviendrait le Brésil?”).
A Revolução Haitiana no Brasil
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão 1
Apenas liquidada a Revolução, co- na, o inimigo maior seria o espírito re-
meçou a ser posta em prática aquela cons- publicano, a que era então convenien-
tante ameaça dos horrores do Haiti como temente ajuntada sempre a ameaça da
arma contra o republicanismo, da qual já sublevação dos escravos; o enviado es-
falara sem rodeios Alfredo Varela9. Assim panhol na Corte do Rio, José Delavaty
é que no próprio Manifesto de D. Pedro Rincón, informando sua Secretaria de
às nações amigas, de 6 de agosto de 1822, Estado do término da Confederação do
já se usa daquela ameaça das “cenas hor- Equador, em 10 de dezembro de 1824
rorosas do Haiti, que nossos furiosos ini- congratula-se com o fato de que em
migos muito desejam reviver”10. Nas dis- meio àqueles acontecimentos “se há
cussões acaloradas sobre a conveniência conservado tranquilo [sic] la numerosa
da manutenção da unidade da monarquia escravatura que existe en dichas pro-
portuguesa, defendida desesperadamente vincias”, “acrescentando, entretanto,
às portas do 7 de Setembro e até mesmo cauteloso: “pero no porque hasta aho-
depois dele, aquele fantasma seria tam- ra este mal no se haya verificado dexan
bém constantemente lembrado11. de estar en inminente peligro de que se
Lutando o Império nascente por realicen”12.
sua consolidação internacional e inter-
9 Alfredo Varela, Duas grandes intrigas, Porto. Renascença Portuguesa, 1919, volume I, p. 729-30, nota 44: “Era com esta
criação dos pretos antilhanos, apresentada como horripilante espantalho, que nossos maiores, reiteradamente, buscavam
dissipar os sonhos do idealismo político indígena. A menção da Republiqueta é constante em todos os artigos de imprensa
ou livros de polêmica, da autoria dos legitimistas ou monárquicos, desde os albores do Império, até o período regencial.”
10 “Manifesto do Príncipe Regente do Brasil aos Governos e Nações Amigas”, in Mello Moraes, op.cit., tomo II, p. 416-25:
“À vista de tudo isto já não é mais possível que o Brasil lance um véu de eterno esquecimento sobre tantos insultos e atroci-
dades; nem é igualmente possível que ele possa jamais ter confiança nas cortes de Lisboa, vendo-se a cada passo ludibriado,
já dilacerado por uma guerra civil, começada por essa iníqua gente, e até ameaçado com as cenas horrorosas do Haiti, que
nossos furiosos inimigos muito desejam reviver.”
11 Veja.-se, apenas como exemplo, um dos seis folhetos publicados em O debate político no processo da Independência,
Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1973: Reflexões sobre a necessidade de promover a união dos Estados de que
consta o Reino-Unido de Portugal. Brasil e Algarves nas quatro partes do mundo. Lisboa, Antônio Rodrigues Galhardo,
1822, onde, na reflexão 8ª, p. 14, diz-se: “Se algum partido republicano se levanta, e toma corpo, veremos reproduzidos no
Brasil os espantosos estragos da América Espanhola; e se os negros se sublevam, veremos renovadas as horríveis cenas da
Ilha de S. Domingos.”
12 Ofício número 58, de 10 de dezembro de 1824. de José Delavat y Rincón a Francisco Zea Bermudez, primeiro secretário
de Estado em Madri. em Documentos para a história da Independência. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1923, volume I,
Lisboa – Rio de Janeiro, p. 471-2. É interessante transcrever a passagem pertinente: “Afortunadamente para este Gabinete
en medio de estas convulsiones políticas se há conservado tranquilo la numerosa esclavatura que existe em dichas provin-
cias pera no porque hasta ahora este mal no se haya verificado dexan de estar em inminente peligro de que se realice. Si
desgraciadamente para la humanidad aconteciese tal evento es incalculable los resultados políticos que tendría: pues es
um territorio tan extenso. de tantos recursos para la guerra defensiva, si llegase a poner en el estado que hoy tiene la Isla
de Santo Domingo es imposible prever la fuerza que seria necesario emplear para pacificarlo. y aun algunos inteligentes
en el pays lo jusgan impraticable. Por tanto. parece que el Portugal se halla en el caso de accelerar la conclusión de sus
diferencias com este pays, del modo que jusgue mas conveniente a sus intereses, pero sin perder de vista que la situación
política del Brasil exige para que no se pierda para todos, que se consolide un Gobierno que tenga recursos de que echar
mano si llegase a poner en practica tan terrible suceso.”
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
13 Domingos Borges de Barros, por exemplo, representante do Império em Paris, de lá oficia ao ministro de Estrangeiros
no Brasil, Luís José de Carvalho e Mello, em 18 de março de 1824, informando (Arquivo diplomático da Independência,
Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 1972, edição fac-similada da edição comemorativa de 1922, vol. III, p. 115):
“Apresso-me também a comunicar que a um francês de Bordeaux, Capitão de navio, chegado de S. Domingos com quem
concorri ontem, ouvi o que muitas outras vezes tenho sabido, que de S. Domingos partem constantemente emissários para
revoltarem escravos onde os há, e que para a Bahia o cabra Perrier sujeito capaz de grandes coisas, e quando outros dados
não tivéssemos para que este negócio mereça particular atenção basta ler-se o que se passou naquela Ilha por ocasião do
aniversário de sua emancipação (Constitutionel de 12 do corrente)” (o trecho em destaque estava cifrado no original). A
cooperação do Haiti, aliás, nas lutas de independência era conhecida na época. Não somente promoviam aqueles envios
de emissários a que se refere Borges de Barros, como tinham já apoiado Miranda em sua primeira tentativa de sublevação
da Venezuela, assim como Bolívar por duas vezes (Heinl, Jr. e Heinl, op.cit., p. 157 a 159, contam como o presidente Pé-
tion, ao lhe perguntar Bolívar como lhe poderia agradecer pela ajuda que lhe dava, disse-lhe com grandeza que o melhor
agradecimento seria a libertação de todos os escravos das colônias espanholas). A fama da disponibilidade do Haiti para o
auxílio aos que procuravam a própria liberdade era tamanha que, contam aqueles mesmos autores, os insurgentes gregos
procuraram o presidente Boyer atrás daquela ajuda e obtiveram, se não homens, de que não podia dispor, 25 mil libras de
café, e com café haitiano foi regada a independência da Grécia.
14 José Murilo de Carvalho, A construção da ordem, a elite política imperial, Brasília, Universidade de Brasília, Coleção
Temas Brasileiros, volume 4, p. 145, logo após concluir que “a rebelião mineira [1789] apresenta-se como feita por ricos,
a baiana [1798] por pobres e a pernambucana [1817] por ambos”.
15 Amaro Quintas, A Revolução de 1817, Rio de Janeiro-Recife, José Olympio/Fundarpe. 1985. p. 124-7.
A Revolução Haitiana no Brasil
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão 1
l6 Enumero. a seguir, algum poucos exemplos tomados aleatoriamente que creio contundentes o bastante para servirem de
embasamento mínimo ao que venho de afirmar: a) dentre os 17 cidadãos que, segundo o padre Dias Martins (Joaquim Dias
Martins. Os mártires republicanos vítimas da liberdade nas duas revoluções ensaiadas em 1710 e 1817. Pernambuco. Tip.
de F. C. de Lemos e Silva. 1853. p. 48-9), se trancaram no Erário no Recife e subscreveram a ata de eleição do Governo
Provisório em 7 de março, dois eram negros: Joaquim Ramos de Almeida e Tomás Ferreira Vila-Nova (note-se. entretanto.
que o “Bando” emitido quando da eleição, e transcrito por Muniz Tavares em sua História da Revolução de Pernambuco
em 1817, terceira edição comemorativa do primeiro centenário, revista e anotada por Oliveira Lima, Recife, Imprensa
Industrial, 1917, p. CVI-CVII, lista apenas 16 signatários, omitindo o nome de José Xavier de Mendonça); b) Domingos
Teotônio Jorge, membro do Governo Provisório e general das Annas da República, estabelecera para si um corpo de aju-
dantes de ordens de dez membros, sendo quatro brancos, três mulatos e três pretos (Documentos históricos da Revoluçdo
de 1817 na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Ministério da Educação e Saúde, vol. CI, p. 128);
c) a primeiro ultimátum dos revolucionários, levado pelo advogado José Luís de Mendonça, depois membro do Governo
Provisório, ao governador Caetano Pinto, refugiado na Fortaleza do Brum, ia assinado por oito pessoas, duas das quais eram
negras, (idem. vol. CVI. p. 78); d) o comando da Fortaleza das Cinco Pontas fora entregue a um negro (idem, vol. CI, p.
39); e) os dois regimentos de Henriques, o velho e o novo, foram extremamente ativos desde a primeira hora da Revolução
(Amaro Quintas, A Revolução de 1817, op.cit., p. 121); f) O ministro britânico no Rio, Henry Chamberlain, em sua carta
ao representante de Londres em Lisboa, Ward, dizia que os revolucionários “estão atentamente ocupados em juntar tropa
e há informações de que oito regimentos estavam quase completos por volta de meados do mês passado: dois deles são de
negros livres (terrível!) [sic]; dois, mulatos: e quatro, brancos” (“are intently occupied in raising troops, and report says
that eight regiments were nearly completed by the middle of last month: two of these are free black, (terrible!) [sic] two.
mullatoes; and four. whites” – Publlic Record Office, doc.cit.); g) finalmente, nunca é demais repetir o célebre trecho da
importante proclamação que a respeito transcreve Muniz Tavares (op.cit.. p. CCV), com as palavras com que a apresenta,
e que tem sido apreciada quase que universalmente sob a ótica de valores atuais que lhe descaracterizam a pureza histórica
e o valor político (mas este já não é mais meu tema aqui): “O Governo Provisório pareceu assim pensar; um como nunca
havia divulgado os seus sentimentos respectivamente à liberdade dos escravos, e a acusação sobre este ponto [acusação de
que decretaria a liberdade tota1 e imediata dos escravos] não era menos forte, julgou oportuno manifestá-los com clareza
na seguinte Proclamação: Patriotas Pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado nos proprietários rurais: eles creem que
a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor, e escravos. O
Governo lhes perdoa uma suspeita, que o honra. Nutridos em sentimentos generosos não podem jamais acreditar que os
homens por mais, ou menos tostados degenerassem do original tipo de igualdade: mas está igualmente convencido que a
base de toda a sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade. Impelido destas duas forças opostas
deseja uma emancipação, que não permita mais lavrar entre eles o cancro da escravidão: mas deseja-a lenta, regular e legal.
O Governo não engana ninguém, o coração se lhe sangra ao ver tão longínqua uma época tão interessante: mas não a quer
prepóstera. Patriotas, vossas propriedades ainda as mais opugnantes ao ideal da justiça serão sagradas; o Governo porá
meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela força. Crede na palavra do Governo, ela é inviolável, ela é santa.”
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
original tipo de igualdade”, não pode- mente, para o fortalecimento das hostes
ria indicar, naquela época, aos que não monarquistas com a caracterização do
lhe eram simpáticos, senão um caminho espírito republicano como perigosa-
acelerado em direção ao haitianismo. Os mente abolicionista, extremista e con-
partidários da monarquia rapidamente dutor à desestruturação social, política e
compreenderam essa lição e a república econômica.
foi imediata e exaustivamente associa-
da àquela noção de barbárie igualitária. * Gonçalo de Barros Carvalho e Mello
Desse modo, a revolta haitiana, filtrada Mourão é poeta, pesquisador e diplo-
pelos acontecimentos de 1817, interferi- mata, atualmente ministro-conselhei-
ria profundamente na História do Brasil, ro da Embaixada do Brasil em Paris.
contribuindo, ainda que involuntaria-
É muito dificil para um artista fa-
lar, sobre si próprio, que amadureceu, ou
que encontrou um caminho definitivo.
Sebastião Januário: Ainda mais quando se trata de um artis-
ta plástico, um pintor, que, não satisfeito
um mundo que se com os labirintos das telas, atende aos
chamados da criação em outros desafios,
pinta por aqui como a poesia e a música.
As dezenas de exposições já reali-
zadas, os prêmios recebidos, a presença
obrigatória nas enciclopédias e dicioná-
rios de artes plásticas fazem de Sebastião
Januário um artista requintado, precioso,
com uma obra desde o início carregada
de maturidade, mas que ao longo do tem-
po foi moldando uma identidade própria,
com a consciência da impossibilidade de
que se pudessem alterar as impressões
digitais.
Nascido em 1939 no Município
de Dores de Guanhães, Minas Gerais,
Sebastião Januário tem vivas lembran-
Éle Semog ças da infância, da mãe, dos avós e das
outras crianças de quem destoava, pois
conta que caía em devaneios desenhando
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
figuras no chão de terra, com pedaços dros de alguns dos nossos melhores ar-
de carvão e gravetos. Descendente de tistas. Um belo acervo que as constantes
africanos Watusis, em Minas chamados mudanças e a falta de condições de ma-
vitus, os familiares e vizinhos não com- nutenção estão destruindo lentamente.
preendiam, não aceitavam, que o peque- O menino triste e solitário, por-
no Tião não se envolvesse, com a mesma causa do acontecido com o pai, não se
responsabilidade que as outras crianças adaptava ao trabalho com o gado, ou na
se envolviam, no trabalho infantil coti- lavoura. A casa espaçosa, com chão de
diano da fazenda. Por isso era chamado terra coberto por uma fina camada de
de lesma, molenga e outros ditos. esterco de boi – que servia para afastar
Desenhar, rabiscar o chão era os escorpiões e refrescar o ambiente –,
uma coisa instintiva no meio da inocên- era varrida diariamente com vassoura
cia da idade e à revelia das obrigações de alecrim, ou vassourinha de cigano,
que lhe eram delegadas. Como a anun- como eles chamam por lá. E a cada var-
ciar um mistério, Sebastião Januário re- rida a poeira fina levava os desenhos de
lata, depois de algum silêncio reflexivo, carvão do pequeno Tião, que ali vivia os
que quando tinha quatro para cinco anos conflitos de crer ou não crer em Deus, o
a mãe, por ordem do pai, foi obrigada medo do inferno e a angústia para não
a dá-lo a parentes para que o criassem. se tornar um pecador. Tudo sob a rigoro-
Ainda não compreende ... Por que ele? sa crendice católica de uma avó – índia
Mais tarde, já adulto, insistindo para que guarani –, casada com o avô negro, da
a mãe falasse sobre o ocorrido, ela foi corte africana. Aquele povo, a maioria
lacônica e triste: “Quando eu estava grá- era da corte africana, como se diz.
vida de você, seu pai tentou enfiar uma Sempre que chegavam os jornais,
faca na minha barriga para lhe matar. trazidos por fazendeiros vizinhos, o ra-
Eu protegi você escondendo a barriga pazola se enfurnava em algum canto,
[e a si própria embaixo da cama.” Com ávido por saber das notícias do mundo;
certeza, essa não é a melhor história que pois tudo era mundo para além das fron-
alguém pode contar sobre si mesma. teiras de Dores de Guanhães. Inspirado
Ainda mais que as conversas com o pai por um ‘’tio’’ artista e escritor – Orlando
sempre foram muito reticentes, mesmo Djogh Horid, que escreveu o livro A mu-
depois de adulto, e sem justificativas lher e o anjo –, de quem lia as cartas en-
para aquele ato desvairado, talvez uma viadas do Rio de Janeiro lá para a roça,
cisma. Naquele tempo existiam muitas Sebastião Januário recorda com vívida
cismas. ternura imagens, quase materializáveis,
O apartamento, como que surpre- da margem do ribeirão, da beleza das sa-
so com esse caso revelado tão abrup- racuras, o canto dos pássaros, as cauãs e
tamente, parece uma galeria de arte, as tardes ensolaradas; o sol das almas,
misturando em espaço reduzido uma in- como era chamado. Lembra-se também
finidade de estilos, entre objetos e qua- da despedida dos trabalhadores e suas
Pintor Sebastião Januário
Éle Semog 1 1
Sebastião Januário, com suas mais novas obras. Rio de Janeiro, outubro de 1997.
1 Diversos trabalhos importantes sobre os afro-latino-americanos têm sido publicados em inglês nos últimos anos; ver. em
especial, Paulo de Carvalho Neto, “The folklore of the black struggle in Latin America”, Lattin American Perspectives 5,
nº 2 (1978); Antonio Olliz-Boyd, “The black protagonist in Latin American literature: a study in ethnic and cultural assi-
milation”, Secolas Annals: Journal of the South Eastern Conference on Latin American Studies 9 (março de 1978); David
Brookshaw, “Black writers in Brazil”, Index on Censorship 6, nº 4 (julho-agosto de 1977); Leslie Rout, The African expe-
rience in Spanish America (Nova York: Cambridge University Press, 1966); Richard Jackson, the black image in Hispanic
American literature (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1976).
2 Ver Hermanus Hoetink, Caribbean race relations: the two variants (Nova York: Oxford University Press, 1967); e Mar-
vin Harris. Patterns of race in the Americas (Nova York: Walker, 1964).
3 Ver Rhett Jones e Anani Dzidzienyo, “Africanity, structural isolation, and black politics in the Americas”, Studia Afri-
cana 1, nº I (1977).
Relações raciais no Brasil: uma visão alternativa
Anani Dzidzienyo 1
4 Ver este recente artigo em inglês sobre Freyre: “Afro·Brazilian experiment”, The UNESCO Courier (agosto-setembro de
1977). No mesmo número, ver também, de Jorge Amado, “Where gods and men have mingled”.
5 As organizações religiosas afro-brasileiras têm tido sua quota de constrangimentos oficiais. Até janeiro de 1977, os ter-
reiros de candomblé precisavam de licença da polícia para funcionar; o governador Roberto Santos, da Bahia, suspendeu
essa exigência.
6 Entre os intelectuais, Florestan Fernandes tem sido de há muito o mais avançado no esforço de desmistificar a “demo-
cracia racial”. Seu trabalho tem recebido o reconhecimento nos círculos acadêmicos de todo o mundo. Embora o grosso
de seus escritos esteja em português, seu clássioo estudo dos negros em São Paulo é disponível em inglês, embora numa
versão ligeiramente resumida: The negro in Brazilian society (Nova York: Columbia University Press, 1969). Ver também,
do mesmo autor, “The weight of the past”, in Color and race, org. por John Hope Franklin (Boston: Beacon Press, 1969).
Nascimento dedicou Racial democracy a Florestan Fernandes.
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
Nos últimos 15 anos, uma nova e afetivas, ele propõe um padrão de in-
onda de acadêmicos norte-americanos sidiosa e sutil “violência” cujo objetivo
tem publicado trabalhos que enfatizam final é equivalente ao que ele denomina
as similitudes das relações raciais no “linchamento étnico”, que promove a
Brasil e nos Estados Unidos, em vez assimilação como exigência e não como
de assumir a posição convencional de opção8. Efetivamente, a “democracia
que as duas situações constituem polos racial” oculta uma realidade de opres-
opostos. E, assim fazendo, esses autores são dos negros; e, o que é ainda mais
têm trazido uma nova dimensão à litera- sério, ao negar a própria existência do
tura sobre o tema em inglês7. Nesse con- problema, nega também o imperativo da
texto, deve-se enfatizar que o Brasil não adoção de medidas corretivas. Assim,
é absolutamente singular, de vez que os a sociedade pode acusar as vítimas do
argumentos em defesa das relações ra- racismo – um grupo já fragmentado a
ciais no Brasil são, em grande medida, tal ponto que qualquer ação conjunta se
aplicáveis à América Hispânica como tem mostrado extremamente difícil de
um todo. conseguir – que ousam protestar de se-
É contra esse pano de fundo que rem elas próprias culpadas de racismo 9.
se deve avaliar a importância de Abdias Abdias afirma que a mais louvada
Nascimento. Talvez mais do que qual- peça antidiscriminatória – a Lei Afonso
quer outro afro-brasileiro vivo, Abdias Arinos – constitui mera peça de retórica
tem desafiado, de modo vigoroso e em vista das enormes dificuldades em
consistente, a imagem popular das re- abrir processo judiciário contra os indi-
lações raciais no Brasil, fornecendo-nos víduos ou instituições que a infringem.
uma visão alternativa da realidade que De fato, desde sua aprovação, em 1951,
caracteriza a vida dos afro-brasileiros. não houve nenhum caso importante que
Em lugar de relações raciais pacíficas pudesse demonstrar sua eficácia 10.
7 Ver Thomas Skidmore. Black into. white: race and nationality in Brazilian thought (Nova York: Oxford University Press,
1974), bem como, de sua autoria. “Toward a Comparative analysis of race relations since Abolition in Beazil”, Journal of
Latin American Studies 4, nº I (1972); Carl Degler, Neither black nor white (Nova York: Macmillan, 1971); Leslie Rout,
“Brazil: study in black, brown and beige”, Negro Digest 19, 4 (fevereiro de 1970); Robert Brent Toplin. “The problem
of double identity: black Brazilians on the issue of race conciousness”, Journal of Ruman Relations (primeiro e segundo
trimestres, 1972).
8 Nascimento usou a expressão linchamento étnico já em 1968, durante uma mesa-redonda por ocasião do octogésimo
aniversário da abolição da escravatura no Brasil.
9 Na última década têm ocorrido vários eventos que apontam para um renascimento da luta afro-brasileira; o mais simbó-
lico destes talvez seja o ato realizado em agosto de 1978 pelo Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial.
10 A lei ganhou o nome de Afonso Arinos de Mello Franco, advogado, professor universitário, senador e ministro de Rela-
ções Exteriores durante o curto Governo Jânio Quadros (1961), também destacado por ter nomeado o primeiro embaixador
negro em todos os tempos a representar o Brasil no exterior. Este foi Raimundo Souza Dantas, que serviu em Gana.
Relações raciais no Brasil: uma visão alternativa
Anani Dzidzienyo 1 1
11 Em busca desses laços, Abdias participou do VI Congresso Pan-Africano, realizado em 1975 na Tanzânia, e trabalhou
como professsor-visitante na Universidade de Ifé, Nigéria (1977).
12 Ver, de sua autoria, “Palaver: open letter to the First World Festival of Black Arts”, Présence Africaine 30, nº 58 (l966).
13 Infelizmente para o leitor de língua inglesa, a maior parte das publicações dos jovens afro-brasileiros de hoje só se
encontra em português.
14 Para uma profunda discussão do tratamento reservado à religião afro na literatura brasileira, ver Doris Turner, “Sym-
bols in two Afro-Brazilian literary works: Jubiabá and Sortilégio”, in Teaching Latin American Studies, org. por Miriam
Williford (Latin American Sludies Association, 1977). Turner efetivamente desafia a imagem da caracterização, por Jorge
Amado, da cultura africana, que alguns autores têm visto como uma forma de preservação (e portanto positiva), visão com-
partilhada por Maria Luísa Nunes em “The preservation of African culture in the novels of Jorge Amado”, Luso-Brazilian
Review 10 (1973): 86-101.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
realidade
São muito poucos os livros que
conseguiram abalar totalmente a minha
sensibilidade – Crime e castigo, O filho
nativo, O homem invisível, Os conde-
nados da terra, Da próxima vez o fogo,
Black boy, Os filhos do pai Tomás, So-
ledad brother. Pouquíssimos consegui-
ram alargar os parâmetros de meu Wel-
tanschuung para poder seguir adiante.
Agora, com Democracia racial no Brasil
(mito ou realidade), Abdias Nascimento
dá uma generosa contribuição ao seleto
conjunto de obras destinadas a nos sacudir
os sentidos. Concebido originalamente
como um texto a ser apresentado sob a
Sterling Plumpp* forma de palestra ao colóquio do Segun-
do Festival Mundial de Artes e Cultura
Negras e Africanas (Festac), Democracia
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Depoimentos
valores africanos, a restauração dos sis- sil contra os africanos. O principal foco
temas de pensamento africanos como de sua vingança contra o establishment
pré-requisito para a sobrevivência dos nigeriano por recusá-lo e reconhecer o
negros – embora estes vivam hoje em Dr. George Alakija como “representante
um estado modernizado, Essa perspec- permanente” do Brasil não foi uma ati-
tiva nacionalista cultural coloca-o em tude do tipo “a raposa e as uvas”, mas
pé de igualdade com Karenga, Gay- algo substancioso. Ele viu Alakija como
le, Madhubuti, Fuller, tal como com o perpetuando perigosos mitos a respeito
Baraka de fins dos anos 60. Todos eles da inferioridade dos afro-brasileiros,
veem a ressurreição de um sistema de mitos gerados e alimentarias por Nina
valores africano como base essencial na Rodrigues por volta da virada do século.
busca da autonomia cultural necessária Tanto Alakija quanto Rodrigues usam
para guiar os negros em sua luta pela suas ferramentas psiquiátricas de análi-
conquista de uma sociedade fundamen- se para mostrar a religião africana como
tada em valores africanos que, embora uma patologia negra; enquanto se permi-
idealista, seja mais humana do que a te que essas ideias prevaleçam, aquelas
sociedade capitalista em que vivemos. de intelectuais e cientistas esclarecidos,
Deve-se ter em mente, contudo, que os tais como Anani Dzidzienyo, Guerrei-
nacionalistas culturais combatem com ro Ramos, Álvaro Bomílcar, Thales de
maior veemência a “brancura” (aliena- Azevedo, A. da Silva Mello, Fernando
ção) do capitalismo, seu caráter racista, Henrique Cardoso, Clóvis Moura, Tho-
do que sua natureza exploradora, de- mas Skidmore, Doris Turner, Angela
monstrada pelo domínio desumano que Gillian, Flora Mancuse Edwards e Carl
exerce sobre o proletariado... O que er- Degler, permanecem pouco divulgadas.
gue a visão de Abdias acima da de qual- Mesmo que seja difícil culpar
quer outro irmão idealista, chauvinista e entidades como estados por agirem na
oportunista da Diáspora é sua inteligên- base daquilo que percebem como suas
cia aguda e sua ampla perspectiva. Pois necessidades, o fato de haverem recusa-
ele está genuinamente preocupado com do o paper de Abdias, combinado com
a situação dos afro-brasileiros, e seu tra- o fato de a Nigéria e o Brasil terem ín-
balho mostra essa preocupação com um timas relações econômicas, demonstra
raro sentido de urgência. cabalmente como é impossível. na pre-
Democracia racial no Brasil faz sente era do imperialismo, falar de um
três coisas: 1) dilacera o Governo nige- encontro negro internacional que não
riano por negar Abdias como “represen- seja influenciado pelo imperialismo.
tante oficial” do Brasil; 2) fornece uma O livro é organizado em 15 capítulos.
análise muito clara dos mecanismos mais três documentos que servem como
usados para destruir os afro-brasileiros; apêndice. O eloquente “Prefácio” foi
e 3) oferece sugestões quanto às alter- escrito por Wole Soyinka, e o Prólogo
nativas que devem ser úteis em reverter faz a crônica da rejeição do paper de
as práticas genocidas exercidas no Bra- Abdias, No Capítulo l, “Introdução”, o
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
autor expõe principalmente as sinistras africanos no Brasil: (1) por ter entusias-
teorias de Gilberto Freyre, o inventor de ticamente defendido o bestial comércio
termos como “lusotropicalismo”, “mo- de escravos, como se evidencia por este
renidade” e “colonização”. Com o pri- excerto de uma homilia jesuítica: “Vo-
meiro termo, Freyre sustentava que os cês deveriam agradecer infinitamente
seres humanos haviam fracassado em a Deus por lhes dar o conhecimento
desenvolver grandes civilizações nos de si mesmos, e por tê-los retirado de
trópicos antes de os portugueses obte- suas terras de origem, onde vocês e seus
rem sucesso em erigir tanto civilizações pais viviam como pagãos (...)”; e por
avançadas quanto “paraísos raciais” na ter endossado a formação de “nações”
África e no Brasil; o tenno “co-coloni- (“agrupamentos constituídos sobre uma
zação” acusa os africanos escravizados frouxa base étnica que funcionavam
de co-colonizar o Brasil ao lado dos por- como organizações sociais, culturais
tugueses, e assim os implica, na qualida- e religiosas”) entre os escravos; com
de de cúmplices, no genocídio praticado esse esquema de “nações”, as autorida-
contra os indígenas; e o termo “more- des permitiam a realização de batuques
nidade” está ligado a “metarraça” para (comemorações periódicas que termina-
formar um “morenismo metarracial”, vam com música e dança africanas), os
indicando que a cultura brasileira foi quais tornavam possível reforçar as di-
produzida por uma “além-raça” – a raça ferenças tribais entre os escravos e, por
responsável pela base da consciência conseguinte, eram vantajosos para os
brasileira. O “morenismo metarracial” senhores. A Igreja Católica também per-
é contrastado com o arianismo e com a mitiu a instituição de “fraternidades re-
negritude, ambos rotulados de racistas; ligiosas” entre os escravos africanos, as
mas Abdias habilmente demole as ridí- quais se tornaram “irmandades” – uma
culas ideias de Freyre com citações de notável função de tais “irmandades” era
Thomas Skidmore, Florestan Fernandes açoitar escravos delinquentes.
e Anani Dzidzienyo. No Capítulo III, “Exploração se-
O Capítulo lI, “Escravidão: o xual da mulher africana”, o autor rapi·
mito do senhor benevolente”, faz um damente rejeita como absurda a ideia
resumo do desenvolvimento da escrava- de que as relações inter-raciais no Bra-
tura no Brasil e refuta vários mitos po- sil seriam superiores àquelas prevale-
pulares com respeito à sua suposta sua- centes na América anglófona: elas são
vidade. Dentre as distorções corrigidas igualmente infernais para os negros em
está a falsa noção de que “havia um grau ambas as sociedades. Isso é particular-
significativo de humanidade e benevo- mente válido para a mulher africana,
lência no caráter da escravidão [prati- pois esta precisa submeter-se à dupla
cada] na América Latina Católica – as opressão do trabalho forçado e da luxú-
colônias portuguesa e espanhola”. Além ria europeia. Apresentando as atitudes e
disso, a Igreja Católica é objeto de duas mitos brasileiros com relação ao mulato,
acusações de agressão cultural contra os Abdias enfatiza, a base da duplicidade
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 1
boa e progressista; assim, esse esquema uma “suposta superioridade racial ne-
infame, combinado com a baixa ferti- gra”. Nesse tipo de inferno, onde não há
lidade dos homens africanos em razão distinções oficiais com relação a raça,
dos números desproporcionais relativos mas onde, não obstante, toda a história
às mulheres africanas, bem como às al- mostra como a raça influencia quem é
tas taxas de mortalidade, criou condi- discriminado, ou quem enfrenta o ter-
ções favoráveis ao desaparecimento da ror do genocídio, é fácil compreender
“mancha negra”. O autor mostra como a porque Abdias, o quilombola, defende
política brasileira de imigração teve his- o retorno às coisas africanas e a preser-
toricamente uma orientação racista: os vação destas – sua marca registrada de
não europeus eram excluídos. Essa polí- nacionalismo tem os dentes fincados no
tica vil chega ao ponto de dar boas-vin- solo da realidade afro-brasileira.
das aos emigrantes brancos que fogem No Capítulo VII, “Discrimina-
de áreas recém-libertadas na Guiné-Bis- ção: realidade racial”, somos apresen-
sau, Rodésia, Angola e Moçambique. tados às táticas desenvolvidas pelos
Com uma história tão racista, não sur- negros para acabar com as práticas de
preende que a categoria raça tenha sido emprego racistas; obtemos uma análise
retirada do censo brasileiro desde 1950; adicional de como a “democracia ra-
com efeito, essa gritante negligência ga- cial” coloca os africanos nos buracos do
rante a redução do número de “cabeças próprio inferno, os guetos, lá chamados
pretas”, tornando impossível chegar aos mocambos e favelas; e recebemos uma
fatos inegáveis. chocante revelação estatística – de que
O Capítulo VI, “Discussão racial “cerca de 80% (...) [da] população de
proibida”, reitera, agora com voz ampli- 110 milhões de habitantes encontra-se
ficada, o tema da “democracia racial” no definitivamente contaminada pelo san-
Brasil como um genocídio mascarado, e gue de origem africana”. Abdias afir-
esclarece como é possível que os brasi- ma que a Lei Afonso Arinos, de 1951,
leiros se apeguem àquilo que Florestan “que pretensamente proibiu a discrimi-
Fernandes chama “o preconceito de não nação”, só foi promulgada depois de
ter preconceito”. Desde que, em 1889, uma intensa luta travada pelos negros,
Rui Barbosa, na qualidade de ministro sob a liderança da Convenção Nacional
da Fazenda, destruiu os registros sobre do Negro; entretanto, acrescenta ele, até
o tráfico de escravos e sobre a escrava- hoje ela permanece “ineficaz e não cum-
tura, tem sido difícil reconstruir as expe- prida”. Quando se revela a realidade de
riências dos africanos no Brasil. O que a que a maioria dos guetos – chamados
negativa oficial da discussão de relações mocambos no Nordeste e favelas em
raciais no Brasil faz é impedir qualquer São Paulo e no Rio de Janeiro – é habi-
tentativa de se criar uma consciência tada por negros, a resposta brasileira é
negra, pois isso seria interpretado como que estes moram nesses lugares porque
“agressão retaliatória” ou como tenta- preferem, ou porque não têm dinheiro;
tiva, da parte dos africanos, de impor em suma, eles moram em tais lugares
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 01
por numerosas razões, exceto por serem a prosperidade da elite branca dominan-
negros, Finalmente, o autor conclui o te no Brasil – numa época como esta, os
capítulo com a observação de que, no representantes oficiais do Brasil vêm a
Brasil, “nós estamos lidando com uma Lagos para reforçar sua presença e pro-
nação cuja maioria negra é governada mover uma vez mais a notória imagem
por uma minoria branca: uma versão racial de seu país.
sul-americana da África do Sul. Portanto, o Festac 77, um encon-
No Capítulo VIII, “Imagem racial tro negro internacional de proporções
internacional”, o foco é sobre como os épicas, tornou-se a plataforma a partir
propagandistas alimentam o mito de o da qual o Brasil racista lançou suas fal-
Brasil ser uma nação “nascida da fusão sas declarações a respeito da história e
harmoniosa de várias raças que apren- condições dos africanos que vivem den-
deram a viver e a trabalhar juntas, numa tro de suas fronteiras.
comunidade exemplar”. Essa gritante No Capítulo IX, “O embranque-
mentira é promovida apesar de não ha- cimento da cultura: outras estratégias do
ver negros no corpo diplomático brasi- genocídio”, uma definição mais clara da
leiro; o autor vê a participação do Brasil “democracia racial” mostra-a como um
no Festac 77 como reforçando sua du- “racismo à brasileira”, em que:
plicidade em distorcer as realidades da o racismo (...) é institucionaliza-
vida do negro. do nas políticas oficiais do país,
A participação oficial brasileira assim como no tecido social, psi-
no colóquio do Segundo Festival Mun- cológico e cultural da socieda-
dial de Artes e Cultura Negras e Afri- de. Da classificação dos negros
canas, realizado em Lagos, em janeiro como selvagens e inferiores à
de 1977, representou a continuidade louvação das virtudes da mistura
da propagação dessa imagem racial in- racial como tentativa de erradicar
ternacional. Os motivos? Numa época a “mancha negra”, às simultâneas
em que o Brasil está realizando um co- operações de transculturação, ao
mércio de automóveis altamente lucra- linchamento jurídico dos negros
tivo com a Nigéria, em que empresas por meio da “segurança nacio-
brasileiras de telecomunicações estão nal” e das proibições da censura
ampliando seus já grandes interesses – por todos esses meios, a histó-
naquele país, em que empresários brasi- ria brasileira registra o genocídio
leiros estão competindo por um contra- dos negros. A ideologia racial
to, altamente desejável, para construir a brasileira, dessa forma, tornou-
nova capital nigeriana – em suma, numa -se conhecida como “democracia
época em que os interesses brasileiros racial”.
na África em geral, e na Nigéria em par- Também somos presenteados
ticular, se tornam cada vez mais transpa- com análises concretas de como o “im-
rentes e cada vez mais importantes para perialismo da brancura” opera em ter-
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
nos mercados, competindo pelas belas tura africana de seu status folclórico,
moedas dos turistas. pitoresco e marginal ( ...)”; 2) “erradicar
O Capítulo XIII, “A estética da dos palcos brasileiros os atores brancos
brancura nos artistas negros acultura- pintados de preto que eram usados nos
dos”, apresenta um levantamento de papéis de negros quando estes exigiam
como “o negro brasileiro se vê forçado qualidade artística”; 3) “pôr fim ao cos-
a se tornar física e culturalmente bran- tume de usar atores negros apenas em
co”. Entre os afro-brasileiros proemi- papéis grotescos, tais como moleques
nentes que sucumbiram à crueldade de sorridentes recebendo pontapés (...)”; e
virar branco por dentro estão Raimun- 4) “desmascarar como inautêntica toda
a literatura pseudocientífica puramente
do Sousa Dantas, o único negro jamais
descritiva – histórica, etnográfica, an-
nomeado embaixador, e Diegues Júnior,
tropológica, sociológica, psiquiátrica
um mulato que foi membro do Conse-
( ...)”. Além de preparar os primeiros
lho Federal de Cultura e diretor, no Rio
atores negros e organizar, em 1950, o I
de Janeiro, do organismo da UNESCO
Congresso do Negro Brasileiro, o TEN
para pesquisa social na Ámérica Lati-
realizou o seguinte: compilou uma co-
na. Historicamente, Abdias vê os artis-
letânea, O negro revoltado; publicou
tas afro-brasileiros como “alienados de
uma antologia do teatro afro-brasileiro,
suas origens raciais e sociais por força Drama para negros e prólogo para
da pressão social”; isso é verdade em re- brancos; e publicou Teatro Experimen-
lação aos poetas negros Domingos Cal- tal do Negro: Testemunhos. Todos esses
das Barbosa e Manuel Inácio da Silva trabalhos foram organizados por Abdias
Alvarenga, é confirmado na sátira por Nascimento e publicados no Brasil em
Gregório de Matos e exemplificado na português.
música pelo padre José Maurício e na
O Capítulo XV, “Conclusão”, é
pintura por Manuel da Cunha. A notá-
um resumo final das análises de Abdias,
vel exceção à síndrome do negro-que-
somado a um fortíssimo desafio, diri-
-vira-branco-por-dentro é Luís Gama,
gido ao Colóquio do Segundo Festival
político, intelectual e poeta, precursor
Mundial de Arte Negra, no sentido de
distante dos poetas da Negritude, Sen- que este apresentasse, como uma voz
ghor, Césaire e Damas, pois era “a voz unificada, 17 recomendações ao Go-
vingadora do povo negro”. verno brasileiro a fim de provocar o
No Capítulo XIV, “Uma reação tipo de mudança pelu qual “possam
à brancura: o Teatro Experimental do assumir seu lugar o pensamento e a
Negro”, temos a descrição de como se ação negro-africanos, baseados nos
formulou um plano de luta institucional valores negro-africanos, criticamente
organizada contra o genocídio dos afro- atualizados e/ou adicionando valores
brasileiros. Fundado no Rio de Janeiro de outras origens, adequadamente mo-
em 1944, o TEN se propõe quatro ob- dificados para se ajustar aos interesses
jetivos: 1) “resgatar os valores da cul- e necessidades dos africanos (. ..) [que)
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 0
1 Conforme Cuti (Luiz da Silva. no texto “Um louco de História”, publicado no Cadernos negros 8 (arg. Quilombhoje).
São Paulo: Ed. dos Autores, 1985.
2 Id. Ibid.
3 Bernd, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 0
4 Alves, Miriam. “Axé Ogum” in Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. São Paulo: Quilombhoje: Conselho de Par-
ticipação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985.
5 Minka, Jamu. “Literatura e consciência” in Reflexões. Op. Cit.
10 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
6 Ver Romero, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949.
7 Ver Marotti, Giorgio. Black characters in the Brazilian novel. Center for Afro-American Studies. University of Califo-
mia. 1987.
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 11
conquistaram, pelo mérito da sua obra, são características genéticas, pois estas
um lugar ao sol na história da litera- apresentam maior variação dentro de
tura brasileira sofreram, por parte dos uma assim considerada raça do que en-
meios de transmissão do conhecimen- tre raças diferentes. Características físi-
to e informação (como escolas, acade- cas como cor da pele, formato da cabeça
mias e mídia), um perverso processo de e traços fenotípicos têm sido os índices
branqueamento, Machado de Assis é o mais usados para se definir uma raça,
exemplo mais atual. Sua condição de Mas mesmo essas características variam
afrodescendente foi resgatada contem- muito dentro de um mesmo grupo racial.
poraneamente, depois de permanecer Além disso, Otto Klineberg mostra que
sublimada durante muito tempo. a “raça” das pessoas não tem influência
Os autores mais marginalizados sobre coisas como inteligência, cria-
como o genial Cruz e Souza ou o grande tividade, etc. Mesmo padrões de com-
Lima Barreto – são os escritores identi- portamento estão muito mais sujeitos à
ficados como negros pelo establishment. influência de variáveis como ambiente
Vale lembrar que Cruz e Souza dirigiu familiar e condição socioeconômica,
um jornal abolicionista e Lima Barre- Nesse caso, a herança genética conta
to sempre afirmou (ao contrário de um pouco9, Mas, se não basta ao poema a
Mário de Andrade, por exemplo) a sua cor da minha pele, tampouco ela é indi-
condição de mulato. Significativamen- ferente. A literatura negra evidencia um
te, esses escritores morreram pobres e modo de estar no mundo e atualiza uma
sem o prestígio que mereciam na época. herança cujas raízes estão no continente
que deu origem ao homem moderno: a
Nesse contexto, fazer literatura
África, África onírica, África ancestral,
negra é assumir uma posição existen-
África que gerou em nosso inconscien-
cial e uma postura étnica muito bem
te coletivo uma forma singular (embora
definidas. Ramatis Jacino diz que “não
dinâmica e aberta) de nos relacionarmos
basta ser negro, é necessário também
com a natureza e com as outras pessoas,
se entender enquanto negro”8, Obvia-
mente, a literatura tem pouco a ver com Em 78, a proposta dos Cadernos
raça. Aliás, o próprio conceito de raça foi levada adiante por Cuti e Hugo Fer-
é nebuloso. O que define uma raça? reira, com a participação de Jamu Minka,
Os cientistas têm demonstrado que não Outros escritores vieram juntar-se a eles,
8 Jacino, Ramatis. “O escritor enquanto trabalhador intelectual” in Criação crioula nu elefante branco. São Paulo: Secre-
taria de Estado da Cultura, 1987.
9 Cf. Klineberg, Otto. As diferenças raciais.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
10 Cuti (Luiz Silva). “Fundo de quintal das umbigadas”, in Criação crioula nu elefante branco. Op. Cit.
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 1
conjunto. Questões básicas, que já de- uma transformação que não diz respeito
veriam estar tranquilamente resolvidas, somente aos afro-brasileiros. Na verda-
tornam-se obstáculos sérios. Exemplo: de, essa transformação implica também
horário. Qualquer grupo negro que ten- a modificação do branco. É uma tarefa
te se organizar conhece as dificuldades demasiado complexa – exige muito tra-
para se fazer uma reunião começar no balho e paciência – e são poucas as pes-
horário. Os atrasos já vêm acompanha- soas que se dispõem a enfrentá-la, sub-
dos das desculpas mais inverossímeis: metendo-se às renúncias que ela exige.
resquícios da opressão a que fomos Embora nos dedicássemos bas-
submetidos, da desorganização que nos tante, os resultados sempre foram mui-
foi imposta. Ora, nós não queríamos to poucos. A expectativa de ver o texto
aceitar essa situação, fazer o papel de
causar impacto, ser lido por muitos, não
vítima, por isso resolvemos levar a sé-
se concretizava no curto prazo. De com-
rio o aspecto disciplina. Uma das reso-
pensações financeiras, é bom nem falar.
luções tomadas dizia que cada membro
Os desgastes passaram a minar a resis-
teria direito a um determinado número
tência dos quilombhojeiros. Muita dedi·
de faltas e atrasos. Quem excedesse tal
cação e pouco retorno são ingredientes
número seria desligado do grupo. Tal
fatais. O grupo não tinha dívidas, mas
regra, colocada em prática, acabou re-
também nunca teve dinheiro suficiente
sultando – dentro de um curto intervalo
de tempo – na saída de dois escritores: para contratar profissionais. Todo traba-
Jamu Minka e Miriam Alves. Difícil de- lho era voluntário. As discussões entre
finir a sensação de ver dois importantes os membros do grupo sempre ocorre-
companheiros deixarem o Quilombhoje. ram. Mas elas se situavam no terreno
Com pesar e dúvidas, a regra foi cum- do con· flito de ideias e não dos ataques
prida, o coração apertava-se, mas a so- pessoais. Mais de uma vez algum dos
brevivência do grupo dependia de res- componentes saiu da casa de Sônia ba-
peitarmos as nossas próprias decisões. tendo a porta, jurando não voltar. E vol-
Esse ato significava respeitarmos a nós tava. Casamento difícil de administrar,
mesmos. egos e vaidades acendendo-se a todo
instante. Mas o trabalho a ser desenvol-
É lógico que o Quilombhoje fos-
se visto com desconfiança por quem vido impunha um ótimo aprendizado:
estava fora. Essa busca de organização conviver com as diferenças, respeitar a
e disciplina tornava-se incompreensí- personalidade do próximo, fazer de cada
vel para muitas pessoas, afigurava-se discordância não um ponto de parada e
como rigidez, como limitação. De fato, sim de continuidade.
a inexistência de perspectivas concretas Com a motivação, mas sem o re-
para o futuro faz com que a maioria dos torno necessário, a desesperança ia der-
grupos tenha a tendência de ser indul- rubando ânimos. Num certo momento, o
gente. É um erro. Estamos comprome- trabalho do Quilombhoje veio dar numa
tidos com uma transformação profunda, encruzilhada. Embora soubéssemos da
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
anos depois se tornou quase uma heresia que grande parte dos militantes vem das
chegar nos salões e falar sobre negritu- camadas “plebeias”, sabemos também
de. Havia a preocupação dos empresá- que grande parte dos negros “letrados”
rios de bailes com a repressão. E, para procura fugir da discussão étnica. Sem
a maioria das pessoas, o orgulho étni- dúvida, a história mostra que universitá-
co não havia resultado em consciência rios e agregados têm sido os mais ativos
política. A população ainda estava dis- nessa tarefa de levantar o véu e expor
tante do Movimento Negro. Sobre esse as vergonhas do racismo nacional. Mas,
distanciamento, é bom lembrar aanálise se isso denota uma determinação socio-
que faz o historiador Clóvis Moura a econômica, é precisó adicionar outro
respeito do universo afro-brasileiro13. ingrediente a essa receita: a questão da
Moura identifica dois segmentos: mentalidade. A forma como cada indiví-
o “letrado” e o “plebeu”. O universo duo afro-brasileiro responde às solicita-
“plebeu”, proletário e marginal, estaria ções da ideologia dominante é também
preso a uma luta cotidiana pela sobre- definidora.
vivência econômica, social e biológica. Quando saíamos para panfletear
Em tal situação, perderia sua consci- (a partir de uma certa época e durante
ência étnica. O universo “letrado”, de um curto período de tempo, todo o Qui-
classe média, é que estaria sensibilizado lombhoje passou a saír junto), o que en-
com a questão étnica e com suas mani- contrávamos era um certo interesse dos
festações imediatas: a afirmação de uma jovens negros e uma indiferença dos
cultura e uma ancestralidade africanas, a mais velhos. No entanto, nas ruas de
luta contra a discriminação no mercado samba da Barra Funda e da Bela Vista
de trabalho, particularmente em áreas de ou na porta dos salões de baile, a mensa-
prestígio social ou privilégio econômi- gem negra era, na maioria das vezes, re-
co, como a televisão e o teatro. A grande cebida com ar de desconfiança e temor,
massa não teria lugar para preocupações como se tocássemos num ponto muito
desse tipo. delicado, num problema que aquelas
A análise de Moura lança luz so- pessoas apaixonadas pelo Camisa Ver-
bre diversos pontos, explica por que é de, pela Vai Vai, pela Nenê de Vila Ma-
tão difícil a mensagem do Movimento tilde – pessoas também produtoras e
Negro chegar até a grande população, já consumidoras de cultura afro-brasileira
que esta não conceberia seus problemas – fizessem questão de esquecer.
imediatos em termos raciais e tampou- Qualquer grupo negro militante
co estaria preocupada em classificar sua se deparará com problemas desse tipo.
cultura, apenas em vivê-la. Mas restam Se, como Clóvis Moura afirma, o seg-
muitas dúvidas: sabemos, por exemplo, mento negro “letrado” está preocupa-
13 No livro Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita. 1994.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
14 In Cadernos Negros 9 (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1986.
15 Ribeiro, Esmeralda. “A escritora negra e seu ato de escrever participando”, in Criação crioula nu elefante branco. Op. Cit.
Comunicação apresentada ao seminário
internacional Superando o Racismo/
Consulta ao Brasil, África do Sul e
Estados Unidos, promovido pela Inicia-
Raça, classe e tiva Relações Humanas Comparadas,
identidade nacional da Southen Education Fundation, Rio
de Janeiro, 2 a 4 de setembro de 1997.
Reproduzido com permissão da autora.
Lélia González, militante amefricana e antropóloga. Reunião de fundação do Movimento Negro Unificado, Salvador, 1978.
Falecidas em 1994, Lélia González e Beatriz Nascimento – historiadora e militante do Movimento Negro –, simbolizam o
legado de valentia na luta da mulher afro-brasileira.
Raça, classe e identidade nacional
Sueli Carneiro
entre machos portugueses (leia-se a raça que hoje habitam as franjas vulneráveis
forte branca, para o discurso) e mulhe- do sistema de produção e da cidadania
res negras e indígenas. No auge da imi- fragmentada?
gração europeia e masculina, a literatura Mas, a despeito de todas as estra-
nacional não deixou de fora a alusão ao tégias racistas de eliminação da mancha
potencial de aclimatação das mulheres negra presente neste país, o imaginário
de ascendência africana em relação a es- social assimilou a versão romântica das
ses recém-chegados aos trópicos. relações raciais no Brasil.
Na redefinição sobre o lugar da Então, como diria Nelson do Val-
população negra após a Abolição, temos le Silva: “Era uma vez um país chama-
nesse período, final do século passado do Brasil, que era conhecido como um
e início deste, um momentum único de paraíso racial.” A partir dessa visão da
análise e, consequentemente, visão so- democracia racial, desenvolveu-se no
bre o que temos a administrar hoje. O Brasil uma forma sofisticada, perversa
Brasil republicano, cioso de sua inser- e competente de racismo, por meio da
ção na ordem capitalista, vinculado ao qual a intolerância racial se mascarou
pensamento europeu e a teorias racistas, em igualdade de direitos no plano legal
alimentava uma perspectiva em que a e na absoluta desigualdade de oportuni-
política de imigração se tornava central dades no plano das relações sociais con-
ao desejo da elite em recuperar seu pas- cretas. Está instituída na nossa cultura
sado europeu. política a eliminação da dimensão racial
São esses aspectos históricos que das nossas contradições sociais, políti-
tornam tão curioso o fato de estarmos cas e econômicas, até porque a história
aqui exercitando a possibilidade de ver brasileira é também marcada pelo temor
o Brasil de uma outra maneira. Vê-lo do potencial explosivo dessa questão.
comparativamente e a partir de nossa Tem-se buscado, historicamente,
perspectiva responsabilizar apenas a dimensão so-
Qual o significado de identidade cial dos nossos problemas, escamotean-
nacional para nós, negros brasileiros? do-se a íntima relação entre raça/etnia
A três anos do final do século, em um e exclusão social em nossa sociedade.
momento de transformações velozes, o E, diga-se de passagem, com absolu-
que existe de comum ou diferente em to sucesso e a colaboração de impor-
relação àquele período? Se a nós foi im- tantes expoentes negros, intelectuais e
posta a impossibilidade de definir um políticos, inclusive alguns considera-
lugar possível e de desenvolvimento dos progressistas. De modo geral, vale
naquele momento, que podemos e de- dizer que a forma com que o conceito
vemos sugerir hoje? Se naquele período de classe social vem sendo utilizado
de reordenamento político e econômico pela ciência e por cientistas políticos no
parecia não haver espaço para os ex- Brasil tem contribuído para neutralizar a
-escravos, qual o caminho possível aos problemática racial.
THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos
lho, tenham sido vetados pelo então • Em relaç o ao combate discrimi-
presidente José Sarney. nação no mercado de trabalho, duas
• pesar dos vetos inscriç o do antir- importantes iniciativas. Uma, do Mi-
racismo na Constituição, a Lei Caó nistério da Justiça, visa a sensibiliza-
foi saudada pela militância negra ção da máquina governamental para a
como uma vitória política, identifi- adoção de propostas de promoção da
cando-se nessas conquistas legais a igualdade: – o Seminário Internacio-
possibilidade de enfrentamento do nal Multiculturalismo e Racismo: O
problema racial do ponto de vista Papel da Ação Afirmativa nos Esta-
jurídico. Tanto é que os serviços de dos Democráticos Contemporâneos,
assistência legal para casos de racis- em julho de 96, cuja abertura contou
mo e discriminação racial se multipli- com a presença do presidente Fer-
cam pelo país, fomentando inclusive nando Henrique Cardoso. E outra, do
a proposta de criação de uma rede Ministério do Trabalho: o Seminá-
de SOSs Racismo. E, mais além do rio Nacional Tripartite Promoção da
âmbito da organização e fruto da sua Igualdade no Emprego – Implemen-
pressão, inicia-se o estabelecimento/ tação da Convenção nº 111 da OIT,
criação de Delegacias de Crimes Ra- ocorrido de 16 a 18 de julho de 97.
ciais. • o ue diz respeito política de di-
• o tricentenário da morte do líder reitos humanos, os movimentos ne-
negro Zumbi dos Palmares, 20 de gros garantiram a introdução de dois
Novembro de 1995, o Movimento pontos relativos à questão racial no
Negro realizou em Brasília a Marcha Programa Nacional de Direitos Hu-
Zumbi dos Palmares pela Cidadania manos, lançado em 13 de maio de 96.
e a Vida. Sua comissão executiva, Concomitantemente a todo
recebida pelo precial”. Nessa mesma esse processo, destaca-se a orga-
oportunidade, o presidente assinou o nização das mulheres negras con-
decreto de criação do Grupo de Tra- tra a opressão de gênero e raça.
balho Interministerial para a Valori- Essa luta vem desenhando novos
zação da População Negra. contornos para a ação política fe-
• ara um país ue construiu a mais minista e antirracista, enriquecen-
bem-sucedida fábula de relações ra- do a discussão tanto da questão
ciais harmônicas, consagrando inter- racial, como também da questão
nacionalmente o mito da “democra- de gênero na sociedade brasileira.
cia racial”, é significativo o que vem Esse olhar feminista e antirracis-
sendo promovido em nível federal em ta, ao integrar em si tanto a tradição do
ternos de reconhecimento da proble- Movimento Negro quanto a do Movi-
mática racial, ainda que, na maioria mento de Mulheres, afirma essa nova
das vezes, não ultrapasse os gestos identidade política decorrente da condi-
simbólicos. ção específica do ser mulher e negra. O
Foto: Carlos Moura / CB PRESS
mentos negros desses três países, es- delo gerado pelo movimento de di-
tudos comparativos como os que agora reitos civis; e os sul-africanos têm a
realizamos sobre Brasil, Estados Uni- missão e o desafio de superar uma
dos e África do Sul devem contribuir sociedade racial e etnicamente divi-
para o aprofundamento das seguintes dida.
questões: 4. O papel que os negros de cada um
1. O processo político de encaminha- destes países podem cumprir num
mento da questão racial nos nossos processo de desenvolvimento da
países. Exemplos: o movimento de consciência e da organização na
direitos civis nos Estados Unidos; a África e na diáspora. Ou seja, que
luta contra o apartheid na África do aportes a esse processo podem ser
Sul; a desmistificação da “democra- dados pelos afro-americanos, que
cia racial” no Brasil. são os que experimentaram maior
2. A necessidade de organização polí- grau de desenvolvimento político,
tica global e regional para o enfren- econômico e social. E os sul-afri-
tamento das contradições colocadas canos, tendo resgatado o poder e
nesta nova etapa do desenvolvi- derrotado o apartheid no país mais
mento capitalista, o neoliberalis- importante, economicamente, da
mo, bem como o enfrentamento África Austral. Os afro-brasileiros,
das novas contradições que estão a maior população negra fora da
colocadas: o crescimento do pro- África e o maior patrimônio cultural
cesso de feminização da pobreza; negro-africano da diáspora.
a ampliação dos níveis de exclusão 5. Sendo Brasil, Estados Unidos e Áfri-
social; o desemprego estrutural; a ca do Sul sociedades multirraciais,
flexibilização do mercado de traba- com absoluta hegemonia dos bran-
lho; a xenofobia, entre outros pro- cos, e sendo o racismo, nesse con-
blemas. E mensurar o impacto des- texto, um instrumento de manuten-
sas questões sobre as populações ção de privilégios, em que bases se
negras dos três países. pode dar um pacto entre negros e
3. Os estágios diferentes em que o com- brancos para a superação das desi-
bate ao racismo se encontra nos três gualdades raciais?
países e as prioridades políticas co- A análise crítica desses pontos
locadas para cada um deles. Os afro- deve apontar caminhos de intervenção
brasileiros têm o desafio de criar política que permitam a construção de
organizações e representações polí- uma poderosa frente antirracista capaz
ticas fortes que possam representar de defender os afrodescendentes das
e defender os seus interesses coleti- práticas de racismo, exclusão e xenofo-
vos; os afro-americanos vivem, tal- bia em todo o mundo.
vez, um momento de esgotamento A importância que cada um des-
de uma perspectiva política, o mo- ses países tem em suas regiões e no con-
Raça, classe e identidade nacional
Sueli Carneiro
texto internacional pode ser colocada que diz respeito ao povo africano e sua
a serviço de um processo de promoção diáspora.
dos negros em toda parte. Muito obrigado.
Do que Brasil, África do Sul e
Estados Unidos forem capazes de fazer * Sueli Carneiro é advogada e militante
depende o futuro das relações raciais, no afro-brasileira, fundadora e líder do Ge-
ledés. organizaçào de mulheres negras de
São Paulo.
Este ensaio, um dos textos básicos do
curso de extensão universitária Cons-
cientização da Cultura Afro-brasileira,
realizado pelo Ipeafro, de 1984 a 1995,
Introdução às na PVC-SP e na VERJ, foi publicado
antigas civilizações como capítulo do livro Sankofa: matri-
zes africanas da cultura brasileira (Rio
africanas de Janeiro: Ed. CIERJ, 1997).
À esquerda, a Vênus ou Vênus Aurignaciana, uma estatueta esculpida em tempos pré-históricos. À direita, uma mulher afri-
cana (bosquímana, hotentote ou twa), que poderia ter sido o modelo perfeito para o artista. Encontradas na Itália, na França,
na Europa Central, na Rússia e até na Sibéria, essas estatuetas estão entre as mais antigas obras de escultura criadas pelo
ser humano. Fotos reproduzidas do livro The African presence in early Europe, organizado por Ivan van Sertima (1985:26).
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento 1
1 Inscrita com hieróglifos e outras línguas antigas conhecidas, a pedra Rose foi a chave do conhecimento dos antigos textos
egípcios.
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento
Desenho, em escala, da curva cuja definição está indicada no diagrama antigo abaixo.
Diagrama de um arquiteto egípcio, provavelmente da terceira dinastia. Este desenho estabelece o uso de coordenadas re-
tangulares para desenhar uma curva. Os egípcios trabalhavam com ângulos a uma precisão de 0,07° Fonte: Van Serthima,
1983:77.
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento
Narmer, ou Menés, soberano responsável pela unificação Tutamés III, fundador da XVIII dinastia e responsável
do Egito (3.200 a.C.) e seu primeiro faraó. Foto reproduzi- pela expansão territorial do Egito, conhecido como o
da de Diop, 1974:13. “Napoleão da Antiguidade”. Fonte: Diop, 1974:20.
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
Acima, o faraó Ramsés II (XIXª dinastia). Abaixo, um tutsi moderno. A cabeleira tutsi é viável apenas em cabelos tipica-
mente africanos. Os pequenos círculos na imagem do faraó representam o cabelo em encarapinhado. Fonte: Diop, 1974: 19
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento
branca (a Grécia). Essa falsa atri- analisado quinze anos depois, revelando
buição à Grécia dos valores de na Núbia a existência de um reino cha-
um Egito chamado branco revela mado Ta-Seti. Antecedendo por treze
uma profunda contradição, que gerações a unificação do Egito em 3.200
não é a menos importante prova a.C., essa cultura já trazia na sua cerâmi-
da origem negra do Egito. ca as imagens de Osíris, Ísis e Hórus, as
Não nos cabe no presente texto marcas simbólicas da filosofia religio-
apresentar as provas da origem africana sa e da estrutura de Estado do Egito. O
da civilização egípcia. Entretanto, me- povo desse reino chamava-se Anu-Seti,
recem registro alguns aspectos. Há, por o que significa “povo negro do reino
exemplo, o testemunho dos escritores Seti” (Williams, ‘’The lost pharaohs of
antigos, como o já citado Heródoto, “Pai Nubia”, in Van Sertima, 1985 a: 29-43).
da História”. que repetiu muitas vezes a Como veremos adiante, o vocábulo anu
observação. Diodorus Siculus e vários adquire uma importância central no pro-
outros historiadores gregos e romanos cesso das civilizações africanas no mun-
confirmam esse testemunho. Na Bíblia, do antigo. Com efeito, não é coincidên-
o Egito aparece como o povo de Ham, cia o anu ser um pássaro preto.
negro e irmão de Cush, o etíope. A descoberta do reino de Ta-Seti
Talvez mais importante seja a confirmava a pista assinalada por Cheikh
própria autodefinição dos egípcios: na Anta Diop desde a década dos 50. A par-
sua língua, se denominavam Kmt ou tir de estudos da escrita meroítica, esses
Kemet, o que quer dizer “cidade negra” são as obras de Edward Wilmot Blyden
ou “comunidade negra”. Na escultura, (Lynch 1967), Martin R. Delany e W.E.B.
os egípicios se retratavam claramente DuBois. Mais recentemente, Chancellor
como africanos. A esfinge, os faraós e Williams, Ivan van Sertima, Yusef Ben-
suas rainhas, além das pessoas comuns, -Jochannen, Molefi K. Asante, Maulana
emergem na arte egípcia retratados Karenga, Jacob Carruthers e outros es-
como africanos clássicos. tudiosos vêm contribuindo ao enriqueci-
Em 1977, surgiu a evidência ar- mento dessa linha de pesquisa.
queológica que confirmou de uma vez Mais uma vez, vamos verificar
por todas a falsidade das teorias euro- historicamente que a afirmação da an-
peias negadoras da origem africana da terioridade da civilização africana re-
civilização egípcia. Nas escavações que sultante desses estudos não contradiz
se realizaram em 1962, para preservar os conceitos que os próprios antigos
os dados arqueológicos do local em que alimentavam sobre os africanos. Citan-
se construiria a represa de Assuã, o Dr. do Heródoto e outros escritores gregos,
Keith Seele resolveu levar à frente o le- o historiador Brasil Davidson, que figu-
vantamento de um sítio chamado Qus- ra atualmente entre as mais respeitadas
tul, na antiga Núbia, ao sul do Egito. O autoridades sobre a África no mundo,
material ali colhido só foi organizado e observa (1974: 28) que:
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
A confirmação das fontes núbias da cultura dinástica do Egito, a partir das pesquisas realizadas em Qustul, indica que a
origem de sua civilização é africana, e não uma contribuição de povos estrangeiros, semitas ou arianos, vindos do norte.
A proximidade da Etiópia com o Egito na época da unificação (3.500 a.C.), com a fronteira próxima ao Cairo, reforça as
conclusões da pesquisa em Qustul.
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento
Sebastião
Os livros de caráter sociológico e
Rodrigues Alves e de assunto antropológico de Sebastião
a inquietação social Rodrigues Alves têm de causar pânico,
escândalo e estupefação nos arraiais do
do negro brasileiro racismo branco mais arraigado. Ele é
daqueles estudiosos negros que, depois
de muitos anos enfronlando-se com as
camadas mais humildes e laboriosas das
massas negras, dos guetos miseráveis das
cidades e das favelas, foi levar o resul-
tado de suas buscas científicas para os
seus notáveis livros de teor pedagógico
e doutrinário. Mal podia imaginar esse
pesquisador incansável dos assuntos
afro-brasileiros, que os dados, os moti-
vos dessa busca fascinante e os resulta-
dos a que chegou, após meio século de
sério e laborioso métier, em que todo se
Ironides Rodrigues* entregou, de corpo e alma, à luta pela
emancipação do negro, que essa sua
obra fosse agora reconhecida e respeita-
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
vulgado todo o pensamento socialista e Que o Brasil, com seus 110 milhões e
de união de todos os homens de cor do tantos de habitantes mestiçados, conta
mundo, apregoado por Léopold Sédar com mais da metade de sua população
Senghor. Em seu Orfeu negro, analisa de raça negra, que representa cerca de
com muito tirocínio político e literário, 75 por cento do total, a maior concen-
em 1950, a Negritude que aparecerá. Já tração ocorrendo na Bahia, Maranhão,
sentia o romancista do existencialismo Pernambuco, Rio de Janeiro, São Pau-
francês que os negros que escreviam lo e Minas Gerais. Toda essa população
romances e poesias nesse movimento pertence às classes pobres. “Não havia
reivindicatório estavam fazendo a litera- para ela as mesmas oportunidades que
tura mais avançada e revolucionária do para o branco. Não havia as condições
mundo. Que, quando tirassem as morda- de promoção social que qualquer cida-
ças que silenciavam as vozes dos pretos, dão perante a lei possui. Com certa pro-
estes gritariam, impetuosamente, todas teção, consegue-se chegar a um status
as suas aspirações e desesperos de sua humilde. A igualdade ilusória perante a
alma agrilhoada. Que agora os negros lei não garante o acesso aos altos pos-
é que expressariam sua própria dor e tos da administração, das Forças Arma-
desassossego interior, sem que os auto- das, do Itamarati, do empresariado, da
res brancos, erradamente, falassem dos medicina, da engenharia, do direito, da
problemas negros, sem o conhecimento economia, do teatro, que lhe estavam
básico e preciso que tais assuntos reque- proibidos, em sua imprudente ascensão.
rem. Que só o negro, em pleno conheci- O positivo disso tudo é que o
mento de sua própria causa, pode falar negro, para os donos da vida, tem me-
no assunto, sem que o mesmo, feito por nos valia cultural, social e econômica.
brancos, nos soasse com a maior falsi- Como um doutorado exímio em Ser-
dade temática e autenticidade duvidosa. viço Social, qual defendeu uma tese
E é graças a esse acontecimento bem abonada, de fartos conhecimentos
da Negritude que a floração sensível de bibliográficos e da matéria, Sebastião
autores negros tem aparecido em todos Rodrigues Alves, durante anos, subia e
os continentes onde a opressão branca descia os morros cariocas, estudando,
exija a presença desses paladinos indô- como sociólogo respeitável, a situação
mitos. Sebastião Rodrigues Alves, que miserável e caótica dos negros habitan-
foi muito aquinhoado com esse movi- tes das favelas. Todos aí vivem como
mento negrista revolucionário, acen- lixo humano, jogados fora nos montu-
tua os levantes da raça ocorridos, nes- ros da vida, sem registro civil, sem as-
sa mesma época, na África e América sistência, sem escola. Aí o investigador
Latina, contra “outras discriminações social tem amplo campo de estudo das
sofridas pelos negros remanescentes da condições miseráveis desses párias que
abolição: a discriminação educacional, os próprios governos esqueceram, só se
a discriminação econômica, a discrimi- lembrando deles na hora da cobrança
nação social e a discriminação cultural”. dos impostos, como eleitores em pleitos
Três figuras históricas do Movimento Negro. Da esquerda para a direita: José Correia Leite, líder da Frente Negra Brasileira e diretor do jornal Clarim d’Alvorada;
Ironides Rodrigues, coordenador pedagógico do Teatro Experimental do Negro; e Marietta Campos Damas, técnica de administração pública, militante afro-brasileira
e esposa do poeta guianense e co-fundador do movimento poético da Negritude, Léon Damas. 3º Congresso de Cultura Negra das Américas, São Paulo, 1982.
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues
dido, Carocango, os negros destemidos dendo essa mistura étnica uma intenção
das revoltas dos Malês, da Balaiada ou recôndita daquele que se envergonha da
da Rebelião dos Alfaiates são mais que convivência diária com o descenden-
suficientes para nos engrandecerem em te de africano. Uma luta que pede uma
face da negritude universal. É o que afir- igualdade real, que se identifica com a
mou uma estudiosa séria e respeitável ação redentora dos negros africanos, em
desses fatos notórios de nossa raça: Eli- batalhas sangrentas contra os últimos
sa Larkin Nascimento, em Pan-africa- resquícios de um colonialismo nefasto
nismo na América do Sul, quando afir- e odioso.
mou que o Brasil nada tem a invejar dos O que se nota antes de tudo,
pretos lutadores de outros países, pois numa análise minuciosa e atenta da
que temos um gigante idealista nesse obra de Sebastião Rodrigues Alves, é
setor marcial de nossas reivindicações a perfeita consonância de ideias, méto-
libertárias: Zumbi dos Palmares. do e estilo polêmico entre o texto que
Acho que, por meio desta exege- acabei de examinar, Somos todos iguais
se de Somos todos iguais perante a lei, perante a lei, e seu outro trabalho tam-
tento alertar a suspicácia do leitor para bém de forte conteúdo polêmico, dentro
uma obra que, em suas discussões so- de uma temática que até então não ha-
bre problemas antropológicos e socio- via sido ventilada nos estudos sobre o
lógicos, abre um caminho alvissareiro negro brasileiro: A ecologia do grupo
para debates polêmicos de ideias efer- afro-brasileiro. É um trabalho de fôle-
vescentes e de pragmatismo benfazejo. go, resultado de suas pesquisas demora-
Com razão, o sociólogo, nessas páginas das, de conclusões reais a que chegou,
vibrantes e sensíveis, abomina um léxi- após estudos e árduas buscas sobre as
co que o branco pronuncia, com senti- condições sociais do negro no Brasil. O
do pejorativo, “negro”, que os racistas prolongamento, o epílogo admirável de
camuflados pronunciam como sinônimo um sociólogo consciente de sua missão
“de escravo, de servil e de marginal”. regeneradora da raça, após a conclusão
Quer devolver a espiritualização semân- de seu curso de Serviço Social. O mé-
tica que o vocábulo “negro” deve pos- todo expositivo desse seu livro modelar
suir, numa acepção mais sutil e profun- é baseado nos seguintes itens: 1º – Das
da. Só pela valorização da gente de cor, teorias raciais e seus efeitos através dos
pela conscientização crescente do ne- séculos. 2º – O elemento afro-brasileiro.
gro, na luta em busca da afirmação dos A proclamação e o reconhecimento dos
nossos direitos e nossos valores, é que direitos fundamentais da pessoa huma-
chegaremos a transpor a muralha gigan- na, em face do Serviço Social. 3º – Ao
tesca do preconceito racial. Estou, como Serviço Social compete solucionar o
Sebastião Rodrigues Alves, divergente “caso” Afro-Brasileiro. No capítulo 1º,
com o conceito racista de miscigenação, discute a eficácia das teorias racistas de
querendo anular a raça negra, quando Gobineau e Darwin, com suas polêmi-
cruzada com o elemento branco, escon- cas concepções biológicas, antropoló-
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues
do negro e do mestiço, e afirmando que tempos que correm, com o engodo con-
esse tipo de produto humano, feito por tínuo para a maior prostituição da mu-
cruzamento étnico, não resistiria à força lher negra, que são os eternos festivais e
implacável do meio ambiente e acaba- shows das mulatas mais belas, atraindo
ria sendo vencido pelo clima implacá- com dinheiro e um falso brilho de estre-
vel. Isso era renomada tolice, porque o las fanadas as mais atraentes azeviches
tipo mestiço foi o único que resistiu às que, incautamente, são atraídas pelo
ardências de nosso clima tropical. pois canto da sereia de empresários inescru-
que “seu cruzamento era de bom san- pulosos, dublês de proxenetas e gigolôs
gue, dadas as grandes nações eugênicas profissionais. O Teatro Experimental do
de negros que vieram para o Brasil” (op. Negro, quando, nos anos 40, instituiu
Cit. p. 18). Buckle, que também nos es- aquela louvação estética da sagração da
tudou, era bem agourento em suas outras Rainha das Mulatas, o fez com o propó-
profecias, pois achava que o homem, sito louvável de prestigiar os atributos
neste imenso país dos trópicos, não era físicos mais belos e fascinantes da mu-
digno de sua opulenta natureza. Para es- lher colored. Rodrigues Alves frisa bem
ses detratores arbitrários é que uma au- o motivo pelo qual Gobineau denegrira
toridade nesses assuntos, como o doutor o negro brasileiro, já que a lembrança do
Silva Melo, escreveu seu livro de im- visconde de Saboia, espalmando-lhe a
pressionante atualidade, A superiorida- cara racista por causa de uma brasileira
de do homem tropical, onde, exaltando a que esse cientista faccioso tratara com
nossa “morenidade”, vai tocar em outro certa grossura maliciosa, pensando que
ponto sensível da pregação de Gilberto fosse a duquesa de Chevreuse; tal humi-
Freyre, que tanto exalta a miscigenação lhação de apanhar de um descendente de
racial brasileira. Só que o sociólogo africanos não poderia deixar o roman-
pernambucano divulga aí seus concei- cista de Adelaide sereno e tranquilo.
tos discutíveis de mescla de raças, pois Nos capítulos seguintes, Rodri-
que na Casa grande e senzala descre- gues Alves explana, em páginas bem
ve a mancebia escandalosa dos senho- pensadas e escritas, a função superior e
res com suas escravas, das servas mais espiritual do Serviço Social, que cuida
bem aquinhoadas pela natureza fazendo da pessoa humana assegurando os seus
prostituição paga com estrangeiros que mais lídimos direitos e apontando os
nos visitavam e levando o dinheiro des- seus deveres essenciais. Daí a ênfase e
se comércio vergonhoso aos cúpidos e o entono com que repete os artigos de
insaciáveis senhores de escravos. E Gil- magnífica expressão da Declaração dos
berto Freyre acha maravilhoso esse tipo Direitos do Homem, quando proclama
baixo de miscigenação do negro com o “que todo indivíduo tem acesso a todos
branco, esquecendo que esse conúbio os direitos e liberdades, sem distinção
carnal não era uma ligação justa e legal, alguma de raça, cor, sexo, idioma, credo
que valorizasse com dignidade a mulher político ou religioso, origem nacional ou
de cor, situação que nada mudou nos social, fortuna, nascimento ou qualquer
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
e afirmam, peremptórios, que essa ques- vetusto casarão da rua Moncorvo Filho,
tão de racismo é abstrata, inexistente templo sagrado do nosso direito mais
em nosso país, e que nós negros é que a puro, foi o já famoso catedrático de Di-
criamos, com todas essas intempestivas reito Civil Arnaldo Medeiros, de quem
consequências. E esse discurso, de tanta tive o desprazer de sentir a ojeriza pela
importância social para a nossa Negri- minha raça num longínquo vestibular de
tude, datado de 14 de março de 1946 na 1946. Dr. Pompílio estava bem munido
Assembleia Constituinte, teve a força de cultura jurídica, ampla e abalizada,
emocional para sacudir as consciências para ser derrotado no rumoroso concur-
reacionárias. so para mestre de Direito Civil naquela
Depois do impasse dessa denún- faculdade, onde outrora ficava o velho
cia antirracista, o mesmo notável sena- Senado da rua do Areal, palco de tantas
dor faria outras declarações, no justo arengas tribunícias, de muitas parlendas
momento em que a Convenção Nacional oratórias, que o sisudo Machado de As-
do Negro agitava tão palpitante proble- sis imortalizou na página clássica de O
ma político e social: “Os pretos não es- velho Senado.
tão em absoluto criando uma questão. A Para que seu livro tivesse maior
questão de fato existe já suficientemen- autenticidade sociológica, maior rigor
te registrada pelos sociólogos e, mais do de pesquisa e de informações importan-
que isso, denunciada pelos próprios pre- tes dentro do setor do Serviço Social,
judicados, os negros, cujos direitos de servindo de ampla cobertura nas indaga-
cidadãos brasileiros são frequentemente ções do modus vivendi do proletariado
sonegados” (pronunciado em 30-4-46). negro, vêm, em páginas de flagrante re-
Conclui Rodrigues Alves, à mesma pá- alidade informativa, vários depoimentos
gina 31: “E isso é uma grande verdade. de expressivas figuras negras, como o
Ninguém melhor que o próprio negro próprio Dr. Laurindo Pompílio da Hora;
pode sentir o preconceito de cor.” Cita o o Dr. Guerreiro Ramos, eminente soció-
caso do advogado negro Dr. José Pom- logo da Cartilha de um aprendiz de so-
pílio da Hora, formado em Nápoles e ciologia; Raimundo de Sousa Dantas, o
professor de Grego e Latim no Instituto nosso primeiro embaixador negro, que
Lafaiete e outros colégios, que recebeu serviu na Embaixada de Gana; profes-
na própria carne a sanha do racismo fe- sor Luís Lobato, orador e líder negro de
roz de nossa sociedade cristã e demo- alto merecimento; Arinda Serafim, atriz
crática (?). A revalidação, no Brasil, de dramática de muito talento e sensibili-
seu título de bacharel em direito na Itá- dade; Aladir Custódio, poeta sensível e
lia, por influência de certos mestres na inspirado; Solano Trindade, poeta que
Faculdade Nacional de Direito do Rio, celebrizou os temas eternos do universo
trouxe à baila o quanto o preconceito ra- afro-brasileiro; Izaltino Veiga dos San-
cial é forte em certos setores de nossa tos, lutador sincero, figura histórica de
cultura. O mais encarniçado adversário nosso movimento pela emancipação so-
do ingresso do Dr. Pompílio naquele cial e cultural do negro. Isso sem contar
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Sankofa: Memória e Resgate
O novel sociólogo é bem analisa- Urbano VIII, Bento XIV, Pio VII, Gre-
do na bibliografia de excelentes autores gório XVI, todos combatendo a escra-
dos estudos negros que ora vai citando, vidão dos neófitos da África. E sobre
ou cujos nomes providenciais inscreve todos esses papas que mencionou Perilo
no final do volume, quando se sabe ser está a luminosa personalidade do papa
mais na prática das ruas e dos morros, Leão XIII, que tanta influência teve no
por meio do serviço social, que sua aná- espírito católico da princesa Isabel, em
lise é mais direta e desconcertante. Sua sua atuação no 13 de maio de 1888,
militância na vida cotidiana da turba Após a Lei Áurea, o sumo pontífice
das urbes citadinas, principalmente da lhe ofertou até a significativa “Rosa de
gente negra, é o que de maior realce se Ouro”, pelo gesto magnânimo daquela
nota nessa obra de interesse crescente que a História consagrou como “A Re-
e de amplas discussões sociais e políti- dentora”, Pode-se discordar destas ou
cas. Capítulos de fina argúcia exegética, daquelas facetas, que culminaram na li-
como quando comenta os sábios padres bertação desenfreada, sem estudos, sem
da Igreja justificando a Escravidão, e os a preparação cultural e psicológica dos
papas humanos e de certa luz espiritual, negros, que desde 1888 estão colocados
como Pio 11, censurando a escravidão à margem de uma sociedade desumana
lusa na Guiné, em 1492; um Pio VII, e insensível. Mas isso já é sair do campo
que interveio, já muito depois de a Fran- teórico da História e penetrar na realida-
ça libertar seus escravos nas colônias de trágica da antropologia social de um
numerosas, e Gregório XVI, em 1839, povo imprevidente... Já outros lumina-
empenhando-se, com todos os países res da Igreja defenderam a escravidão
escravocratas, para darem um termo ao como compatível com as leis divinas e
nefando tráfico de escravos, não esque- humanas e, infelizmente, tais padres são
cendo nem Santo Tomás de Aquino, de de reconhecimento universal em sua au-
Suma teológica. Que a maior parte do toridade teológica e conceitos filosófi-
nosso clero, incluindo bispos, padres e cos: São Cipriano, bispo de Cartago; são
membros de várias ordens religiosas, foi Basílio; São João Crisóstomo, orador de
omissa à sorte dos escravos africanos. grande voga; Santo Agostinho, de ori-
Já o brilhante pensador católico gem africana, alto escritor das Confis-
Perilo Gomes, em sua obra de tanto in- sões; São Gregório Magno; Santo Iná-
teresse para os debates sociais e teoló- cio, bispo de Antioquia, sem esquecer
gicos, Polêmica e doutrina, ostenta, em Santo Tomás de Aquino, que conciliou,
carta a Lima Barreto, a indiferença da em filosofia, o pensamento filosófico de
Igreja em face do elemento servil. Isto Aristóteles com a doutrina rígida e teo-
na página 164 desse seu livro de tanta lógica da Igreja.
atualidade doutrinária, A Igreja e a es- Os capítulos finais de A ecologia
cravidão, em que desfilam vários nomes do grupo afro-brasileiro são minucio-
de pontífices que atuaram em defesa do sos em informações sobre como”Ao
negro marginalizado: Pio lI, Paulo III, Serviço Social, compete solucionar o
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues
teorias racistas contra o nosso mulato, branco voluptuoso, e concede uma con-
principalmente em Fruta do mato, Mes- clusão pragmática para dirimir o segre-
mo nessas circunstâncias extremas, Ro- gacionismo e a marginalização de nossa
drigues Alves, não perde a serenidade raça. O negro aí tem de assumir de cara,
expositiva do verdadeiro sociólogo. Ab- de frente, esse embate terrível contra
dias já é um Dom Quixote irado, terçan- opressões deprimentes, em vez de ser O
do armas com todos os inimigos visíveis homem invisível, de Ralph Ellison, que
ou ocultos desta negrada maravilhosa e preferiu esconder dos outros a sua cor
sofredora, que ele defende há mais de negra, talvez porque ela lhe trazia várias
seis décadas. Em outras obras do real restrições na sociedade, perseguições
negro Abdias, há a mesma tônica do sem conta e até odiosas discriminações.
ardoroso combatente que não descansa
Abdias conclui, no Negro revol-
enquanto não fulmina o adversário com
tado, que ninguém existe só e isolado na
a sua dialética absorvente: O negro re-
sua comunidade. Que devemos nos mi-
voltado, falando das teses debatidas em
rar na batalha sem quartel dos quilom-
anteriores congressos negros, o título
bolas, precursores de nossos embates de
da obra lembra incontinenti um pensa-
agora, nas guerras que os negros norte-
dor da Argélia francesa, existencialista,
-americanos e os africanos travam com
marxista. Albert Camus, que tem um li-
racistas poderosos e organizados. Cada
vro com o nome sugestivo de L’homme
revolté. Aqui aborda, com exposição volume assinado por este grande vulto
eloquente, os problemas da democra- de toda a Negritude revela um espaço
cia racial, o pretenso supremacismo em que defronta com as potências pode-
branco no Brasil, seu cerrado combate rosas do preconceito racial, escondidas
ao capital estrangeiro, transformando o no âmago mais fortalecido dos governos
nosso país num poder subimperialista, discriminatórios e racistas
expandindo-se em busca das economias Sitiado em Lagos tem como sub-
mais fracas da África e alguma parte da título “Autodefesa de um negro acossa-
América Latina. Reúne, nesse livro de do pelo racismo”, e é toda a trajetória de
palpitantes debates sociais, as inúmeras um líder afro-brasileiro que foi impedi-
teses do I Congresso do Negro Brasi- do de participar do II Festival Mundial
leiro, em 1950, promovido pelo Teatro das Artes e Culturas Negras e Africanas,
Experimental do Negro. o Festac 77. Com a intromissão indevida
O Quilombismo é outra obra de de nosso ltamarati, que enviou para esse
importância fundamental, quando co- festival indivíduos pouco credenciados
loca em plano uuiversal as lutas que e sem nenhuma expressão nos assuntos
travamos para tirar o negro deste ma- da cultura comum da África e do Brasil,
rasmo vergonhoso que nos acabrunha e nosso governo democrático (?) tentou
envergonha. Preocupa-se com o futuro obstar a participação de Abdias naquele
sombrio da mulher negra, sempre explo- badalado conclave. Temiam que este ali
rada até a mancebia e prostituição pelo chamasse a atenção para a nossa abstra-
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
em questão, ele discute se a data de 13 me escura. Abdias até quer que haja na
de maio deve continuar, para nós, com Constituição brasileira artigos explíci-
o seu valor histórico de nossa emanci- tos e com declaração bem visível, con-
pação servil. Pergunta onde estão os denando essas práticas segregacionistas
negros de cultura e competência que desta nossa incorrigível e malfadada
não preenchem os quadros ou cargos democracia cristã. Daí Abdias estam-
de generais, almirantes, brigadeiros ou par, como preâmbulo do segundo volu-
juízes e ministros do Supremo Tribunal me desse Combate ao racismo, aquela
Federal, do Tribunal de Contas ou do missiva de grande decência e edificação
Supremo Tribunal Militar. O nosso ra- moral de um grande e histórico guerrei-
cismo disfarçado e hipócrita impede o ro da Negritude brasileira, José Correia
nosso negro de ascender a essas posi- Leite, o qual, em sua análise da atuação
ções honoríficas, feitas só para o branco parlamentar do deputado negro, expri-
privilegiado. Temos de esperar por mui- me o pensamento positivo de todos os
to tempo ainda, ou pode acontecer que negros deste país: “São Paulo, 17-11-83.
Exu, que é tão forte em abrir os itinerá- Prezado Abdias. Saúde. Recebi o cader-
rios mais intrincados, nos propicie um no com as separatas de seu trabalho na
milagre supremo e que possamos ven- Câmara dos Deputados e a sua coragem
cer todos os ardis e insídias racistas que e postura de um legítimo parlamentar
os brancos, donos da vida, coloquem à negro. Deputados negros já houve mui-
nossa frente para impedir nossa vitória tos e ainda há, mas pela primeira vez um
inadiável e meritória assume compromisso com os ideais de
Trechos para profunda medita- sua gente, dando com isso um exemplo
ção, aqueles em que Abdias se congra- histórico. Parabéns, obrigado pela lem-
tula com o nosso infortunado irmão brança do meu nome. Abraços do velho
indio, ou quando fala do racismo do Leite, José Correia Leite.”
ltamarati, sempre em ligação amigável Nesta análise da obra de sociolo-
com a África do Sul, ou da solidarieda- gia e antropologia social de Sebastião
de do povo brasileiro para com a luta de Rodrigues Alves, é oportuno abordar as
libertação dos povos da África Austral. questões tão complexas e dificeis desses
Fala, com convicção, que a Lei Afonso estudos de etnia negra que se fazem en-
Arinos, ou Lei nº 1.390/51, não teve efi- tre nós. Rodrigues Alves enveredou por
cácia alguma, pois jamais castigou ou campos sociológicos sobre os quais ne-
prendeu quem quer que proibisse um nhum estudioso antes havia feito qual-
negro de se hospedar num hotel de luxo, quer menção ou ensaio analítico. Cha-
bastasse a sua incursão num edifício, ou mo a atenção para o fato de ser ele um
o segregasse em clubes de diversões, autêntico desbravador de caminhos dos
entidades que vedam a entrada de ho- estudos afro-brasileiros, quando nos dá
mens de cor, barbearias, certos bancos, um alentado volume de conceitos origi-
casas comerciais e até hotéis ou cinemas nais e de profunda perspicácia exegéti-
que não aceitam empregados de epider- ca, no Somos todos iguais perante a lei e
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Sankofa: Memória e Resgate
lano Trindade estará presente para lou- Canto à amada, Sebastião Rodrigues
var seu irmão poeta, de tantos poemas Alves compreendeu que o poeta do trem
da mais velada e sutil beleza espiritual. da Leopoldina e dos bumbas-meu-boi
E então Solano Trindade lerá todos os do Recife fez a mais calorosa e respeitá-
poemas desse livro de palpitante bele- vel consideração para seus versos amar-
za mística e contemplativa e ficará re- gurados, sofridos, em que a gente negra
citando, para os orixás enternecidos, o aparece em toda a luminosidade estelar
poema de mais homenagem, o de mais de seus prantos, alegrias e desespero por
profundas e sentidas imagens, que um uma vida mais tranquila, sem tropeços.
outro poeta representativo da raça negra Onde nunca mais o negro encontrará
lhe ofertara: “Quem está gemendo? / É os obstáculos dos racistas malditos, em
o poeta na sua dor! / Não é negro, nem preconceitos ultrapassados, onde, enfim,
carro de boi. / Mas daqui, poeta amigo, o negro resolverá todos os conflitos que
ouço teu gemido, / O abandono, os teus lutou para derrubar. E que, finalmente,
sofrimentos, / Poeta, é o gemido e a dor a oportunidade sonhada chegará para o
da tua raça. Quem tá gemendo?” Sola- negro, que verá, para sempre, o racismo,
no, após declamar o poema, fará um si- a intolerância humana e as muralhas da
lêncio mais profundo do que aquele que segregação entre os povos eternamente
se passou após a criação do mundo, das banidas da face da terra.
nebulosas e das estrelas do firmamento.
Mal pode soltar um comentário sequer
sobre a feliz inspiração de um poeta pe- * Ironides Rodrigues, originário do Estado
de Minas Gerais, era advogado, escritor,
regrino, em plena criação de tantos poe-
crítico literário e militante afro-brasilei-
mas de invejável sutileza poética e bele- ro. Coordenou os cursos de alfabetização
za de conceitos tão humanos e sentidos, para os integrantes do Teatro Experimen-
ao falar nesses seres isolados e carentes, tal do Negro e participou, como profes-
no torvelinho indiferente da existência sor, do curso de extensão universitária
implacável. Conscientização da Cultura Afro-Brasi-
Pelo profundo e significativo si- leira (Ipeafro/ UERJ, 1985-1987)
lêncio de Solano Trindade, em face do
Ironides Rodrigues profere aula de alfabetização no curso de formação de atores e atrizes do Teatro Experimental do Negro. Sede da UNE – União Nacional de Estu-
dantes, Rio de Janeiro, 1944.
– Meus velhos companheiros de
guerra, estamos numa guerra por liberda-
de e justiça, e nesta guerra nós não temos
que ter nenhuma condescendência com
Concentração os racistas que ainda hoje pensam poder
negra em impedir que este país seja finalmente de-
mocrático. Pois democracia não é isso
Cabo Frio que vemos por aí: um poder branco que
concede migalhas, uma justiça branca e
racista, um Congresso em que não temos
nem cinco por cento de representantes,
quando a população negra, os africanos
que construíram este país, somam mais
de 70 por cento.
Com essas palavras inflamadas
que acabaram dando o tom do evento
–, o senador Abdias Nascimento iniciou
seu discurso perante as quase 500 pes-
soas que lotaram a Câmara Municipal
de Cabo Frio na cerimônia de abertura
Maturidade política marca do XXII Encontro de Entidades Negras
XXII Encontro do CENIERJ do Interior do Estado do Rio de Janeiro.
Realizado de 19 a 21 de setembro último,
o Encontro, que reuniu representantes de
56 organizações de 44 municípios, foi
THOTH 2/ agosto de 1997
Movimento negro hoje
Vista parcial da assistência, sessão de abertura do XXII Encontro de Entidades Negras do Interior do Estado do Rio de
Janeiro. Câmara Municipal de Cabo Frio, setembro de 1997.
Concentração negra em Cabo Frio
1
ra, Vol. 1, por ela organizado e lançado homem e de uma mulher negros – que
pela Editora da Universidade do Estado constitui o símbolo do CENIERJ – foi
do Rio de janeiro – Eduelj em agosto entregue à professora Magna de Sou-
passado. za, representante de Volta Redonda, ci-
O encerramento do Encontro teve dade escolhida para sediar o próximo
a presença marcante da senadora Bene- Encontro, que deverá realizar-se na
dita da Silva, acompanhada de seu es- segunda quinzena de março de 1998.
poso, o vereador e ator Antônio Pitanga. Por proposta do senador Abdias Nas-
Em seu discurso, a senadora chamou a cimento, foi elaborada e encaminhada
atenção para a necessidade de reforçar ao secretário nacional dos Direitos Hu-
os laços de solidariedade no interior da manos, José Gregori, uma moção com
comunidade negra, assim como de tra- segninte texto:
balharmos com vistas a elevar o padrão Os participantes do XXII Encon-
da educação pública. A senadora desta- tro de Entidades Negras do Interior do
cou também que é preciso promover a Estado do Rio de Janeiro cumprimen-
tolerância religiosa no seio da comuni- tam Vossa Excelência pela constituição
dade, questão importante num momento do Grupo de Trabalho Interministerial
em que membros de grupos evangélicos para a Valorização da População Negra
fundamentalistas – muitos deles negros e, neste ensejo, solicitam o seu apoio
chegam a agredir fisicamente pessoas li- (com recursos humanos e materiais)
gadas às religiões afro-brasileiras. para a realização de um encontro de tra-
– Nós cultuamos vários líderes balho entre as lideranças do Movimento
disse a senadora – sem questionar sua Negro dos Estados do Rio de Janeiro,
religiosidade. Não interessa a religião de Maranhão e Paraná.
Zumbi, nem a de Martin Luther King, se Trata-se de uma iniciativa que
foram evangélicos ou candomblecistas. tem por objeto aumentar o intercâmbio
Se podemos aceitá-los como heróis, por entre as entidades da comunidade negra
que não aceitar nossos irmãos de outros do Sudeste, do Nordeste e do Sul brasi-
credos? Vamos trabalhar esse tema, pois leiros.
a religião não pode nos separar. Cordialmente, receba a saudação
Ao final das atividades, um en- dos abaixo assinados.
talhe em madeira com os perfis de um [Seguem-se 150 assinaturas.]
EXU E TRÊS TEMPOS DE ROXO
Óleo s/ tela - 76 x 61 cm, de Abdias Nascimento, Buffalo, USA, 1980