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GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO

Senador ABDIAS NASCIMENTO

2
1997 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Gabinete do Senador Abdias Nascimento

Thoth

nº 2 maio/agosto 1997

Secretaria Especial de Editoração e Publicações

Thoth, Brasília, nº 2, p. 1 – 299, maio/ago. 1997


Thoth

Informe de distribuição restrita do Senador Abdias Nascimento


2/1997
Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nasci-
mento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações
e debates sobre temas de interesse à população afrodescendente, ressaltando-se que os temas emergentes
dessa população interessam ao país como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância.
Thoth quer o debate, a convergência e a divergência de ideias, permitindo a expressão das diversas correntes
de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.

Responsável: Abdias Nascimento

Editores: Elisa Larkin Nascimento


Carlos Alberto Medeiros
Theresa Martha de Sá Teixeira

Redatores: Celso Luiz Ramos de Medeiros


Éle Semog
Paulo Roberto dos Santos
Oswaldo Barbosa Silva

Computação: Denise Teresinha Resende


Honorato da Silva Soares Neto
Thais Caruso Amazonas da Silva

Impresso na Secretaria Especial de Editoração e Publicações


Diretor Executivo: Claudionor Moura Nunes
Capa: Theresa Martha de Sá Teixeira sobre desenho do deus Thoth do livro de Campollion – Le Panthéon
Égyptien
Contracapa: deusa Ma’at do livro de E.A Wallis Budge – The Gods of the Egyptions.

Endereço para correspondência: Tels: (61) 3311-4229 3311-1021


Revista Thoth 3311-1121
Gabinete do Senador Abdias Nascimento Telex: (61) 3311-1357 3311-3964
Senado Federal – Anexo II – Gabinete 11 Fax: (61) 3323-4340
Brasília – DF – Brasil E-mail: abdias@senado.gov.br
CEP: 70165-900

Thoth informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento / Abdias Nascimento

n. 2 (1997) – Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1997

Quadrimestral (maio - junho - julho - agosto)

v.; 25 cm

ISSN: 1415-0182

1. Negros, Brasil. I. Nascimento. Abdias.

CDD 301.45196081
Abdias Nascimento, então secretário de Estado de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras, com Nelson Mandela.
Palácio da Guanabara, Rio de Janeiro, 1991.
APRESENTAÇÃO

Thoth atinge o nº 2. Motivo de alegria e regozijo para todos nós que o produzimos.
Não é tarefa fácil, e a melhor prova é a morte prematura, ou a descontinuidade no tempo
programado, que estigmatiza quase sempre as publicações do gênero. Graças, porém, ao
esforço da equipe do meu gabinete e à ajuda de voluntários externos ao Senado, consegui-
mos superar as previsíveis ‘imobilização elou inanição.
Mesmo porque muita coisa vem acontecendo na área de nossas preocupações. Um
fato que não poderia passar despercebido, por exemplo, foi a declaração do arcebispo da
Bahia, D. Lucas Moreira Neves. Referindo-se à Igreja Católica, o ilustre presidente da
CNBB disse ao JB de 26-9-97:
“Não estamos abertos aos cultos afros, mas para a cultura africana.”
Tal abertura significaria que “os corais católicos poderão utilizar os instrumentos
musicais de origem africana, como o berimbau e o atabaque, e os paramentos dos sacer-
dotes poderão ter estampas afros.” Além disso, a cultura africana também fará parte da
catequese. Com esse fim, foi criada uma comissão para a “integração da cultura africana
na liturgia católica”. Quanto à ideia de alguma influência africana sobre aquela liturgia,
base do movimento da chamada inculturação em outras igrejas cristãs, o arcebispo foi
categórico ao negar-lhe qualquer validade. Preferindo aderir à antiga e há muito superada
ideia de que a religião africana carece de valores espirituais, a Igreja reduz nossa religião
à categoria de mero “culto” e descarta sua inclusão no intercâmbio ecumênico.
Pena que, quando o mundo evolui e aprende a modificar sua postura, a posição
ecumênica da Igreja Católica acabe nisto: em mera catequese assimilacionista. Pois outra
não foi também a pregação do piedoso padre Antônio Vieira; já nos séculos passados,
pregava em seus famosos sermões a lavagem cerebral católica dos africanos escravizados,
por meio do batismo, como a única ação capaz de limpar os negros por dentro e por fora,
assim exorcizando neles o pecado do paganismo.
10 THOTH 2/ agosto de 1997
Apresentação

Falando nos tempos coloniais, não devemos esquecer as humilhações impostas ao


negro José Maurício Nunes Garcia ao pretender se tornar um sacerdote na Igreja Católica.
A Constituição da Bahia, adotada pelo Bispado, não admitia “descendentes de pretos”, e
foi-lhe imposta a necessidade de implorar a graça de lhe ser relevado o “defeito da cor”. Foi
preciso uma sentença do deão da Sé, assinada a 14 de junho de 1791, no Rio de Janeiro, por
Francisco Gomes Vi1las Boas, para que José Maurício, em 3 de março de 1792, pudesse
celebrar sua primeira missa no palácio do bispo, o palácio da Conceição. O talento e a alta
competência musical fizeram do padre José Maurício uma figura eminente na corte de D.
João VI.
Mas toda a peripécia dos africanos no Brasil, sob o guante da Igreja Católica, cul-
minou agora na visita do papa João Paulo Il ao Rio de Janeiro. Logo na chegada, no pri-
meiro discurso, Sua Santidade evocou os povos indígenas, “descendentes dos primeiros
habitantes desta terra ( ... )”, acentuando que “Eles merecem toda a atenção para que
vivam com dignidade esta cultura”.
Em seguida, o papa exprimiu “os mesmos sentimentos à porção afro-brasileira – nume-
rosa e altamente significativa – da população desta terra (...) estes brasileiros’ de origem
africana merecem, têm o direito e podem, com razão, pedir e esperar o máximo respeito
aos traços fundamentais da sua cultura a fim de que, com esses traços, continuem a enri-
quecer a cultura da nação, na qual estão perfeitamente integrados como cidadãos a pleno
título”.
Vimos anteriormente como D. Lucas Moreira Neves definiu a cultura africana:
berimbau, atabaque e estampas afros – puro folclore. E o papa arremata o conceito sa-
lientando o único direito que reconhece aos africanos no Brasil: o de continuar enrique-
cendo a cultura da nação com “traços” da cultura afro-brasileira. Mais grave, o papa nega
a legitimidade de nossa luta por direitos de cidadania alegando que já os exercemos “a
pleno título”! Desmente assim a principal afirmação do Movimento Negro, fundamento
de nossa ação, já endossada até pelo presidente da República: a discriminação racial no
Brasil é uma questão nacional, de cidadania, e não apenas de traços culturais. E a supre-
ma ironia do incidente é que essas declarações do papa tenham sido recebidas pela mídia
como apoio às reivindicações da população afro-brasileira.
Os sacerdotes das religiões afro-brasileiras e os militantes do Movimento Negro
têm ainda um longo e árduo caminho à frente até que conquistemos uma verdadeira igual-
dade, com o resgate da nossa dignidade plena e o respeito a nossos valores de origem
africana.

Abdias Nascimento
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Ci-
dadania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âm-
bito nacional e internacional em todo o País, verificamos
que a questão racial no Brasil atinge um novo estágio.
Setores da sociedade convencional reconhecem o caráter
discriminatório desta sociedade, e o debate passa a foca-
lizar as formas de ação para combater o racismo, ultra-
passando o patamar que marcou a elaboração da Cons-
tituição de 1988: a declaração de intenção do legislador
Thoth dá lugar à discussão de medidas concretas no sentido de
fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Sena-
do Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve soli-
dário com a luta antirracista. O mandato do senador Ab-
dias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla de
luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à ques-
tão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
1 THOTH 2/ agosto de 1997

Além de representar o veículo de comunicação


do mandato do senador Abdias Nascimento com sua
comunidade e seu país, a revista Thoth surge como
fórum do pensamento afro-brasileiro, na sua íntima e
inexorável relação com aquele que se desenvolve no
restante do mundo. Seu conteúdo pretende refletir as
novas dimensões que a discussão e elaboração da ques-
tão racial vêm ganhando nesta nova etapa, inclusive o
aprofundamento da reflexão sobre as dimensões histó-
ricas e epistemológicas da nossa herança africana, para
além dos tradicionais parâmetros de samba, futebol e
culinária que caracterizam a fórmula simplista e pre-
conceituosa elaborada pelos arautos da chamada demo-
cracia racial.
Nesse sentido, cabe um esclarecimento do signi-
ficado do título da revista, que remete às origens dessa
herança civilizatória no antigo Egito, matriz primordial
da própria civilização ocidental da qual o Brasil sem-
pre se declara filho e herdeiro. Os avanços egípcios e
as conquistas africanas no campo do conhecimento hu-
mano formam as bases da cultura greco-romana. Entre-
tanto as suas origens no Egito ficaram escamoteadas em
função da própria distorção racista que nega aos povos
africanos a capacidade de realização humana no campo
do conhecimento.
Nada mais apropriado para expressar a meta de
contribuir para a recuperação dessa herança africana
que a referência, no nome da revista, ao deus Thoth. Na
tradição africana, o nome constitui mais que a simples
denominação: carrega dentro dele o poder de imple-
mentar as ideias que simboliza. Thoth está entre os pri-
meiros deuses a surgir no contexto do desenvolvimento
da filosofia religiosa egípcia: autoprocriado e autopro-
duzido, ele é Uno. Autor dos cálculos que regem as re-
lações entre o céu, as estrelas e a terra, Thoth incorpora
o conhecimento que faz mover o universo. O inventor
e deus de todas as artes e ciências, Senhor dos Livros
e escriba dos deuses, Thoth registra o conhecimento
divino para benefício do ser humano. Sobretudo, é po-
deroso na sua fala; tem o conhecimento da linguagem
Thoth 1

divina. As palavras de Thoth têm o dom da vida eterna;


foi ele que ensinou a Ísis as palavras divinas capazes de
fazer reviver Osíris, após sua morte. Assim, esperamos
que a revista Thoth ajude a fazer reviver para os afro-
descendentes a grandeza da herança civilizatória de
seus antepassados, vilipendiada, distorcida e reduzida
ao ridículo ao longo de dois mil anos de esmagamento
discriminatório.
Tendo uma cabeça do ibis, pássaro que repre-
senta na grafia egípcia a figura do coração, Thoth era
cantado como coração de Rá, deus do sol (vida, força, e
saúde). Na mitologia egípcia, o coração era o peso a ser
medido na contrabalança da vida do homem, no mo-
mento de sua morte, medindo sua correspondência em
vida aos princípios morais e éticos de Ma’ at, filoso-
fia prática de vida da civilização egípcia. Thoth assim
constitui-se no mestre da lei, tanto nos seus aspectos
físicos como morais.
A deusa Ma’at encarna essa filosofia de vida mo-
ral e ética, o caminho do direito e da verdade. Consti-
tuindo uma espécie de contraparte feminina de Thoth,
ela representa uma característica relevante da civiliza-
ção egípcia: a partilha do poder, tanto no plano espiritual
como material, entre a autoridade masculina e a femini-
na. Os faraós tinham o seu poder temporal complemen-
tado por um poder feminino exercido por soberanas e
sacerdotisas, assim seguindo o primordial e simbólico
exemplo de Osíris e Ísis. Sem ser compartilhado entre
feminino e masculino, entre homem e mulher, o poder
careceria de fecundidade, seria estéril.
Ma’at e Thoth acompanhavam o deus-sol Rá, na
sua embarcação, quando ele surgiu pela primeira vez
sobre as águas do abismo primordial de Nu. Era Ma’at
quem regulava o ritmo do movimento da embarcação de
Rá, ou seja, o seu ciclo de nascer e se pôr sobre o hori-
zonte, bem como sua trajetória diária do leste ao ociden-
te. Ela corporificava a justiça, premiando cada homem
com sua justa recompensa, e encarnava o mais alto con-
ceito da lei e da verdade dos egípcios.
1 THOTH 2/ agosto de 1997

Os gregos denominavam Thoth de Hermes Tris-


megisrus (Thoth, Três Vezes Grande), nome também
dado aos livros que registravam a sabedoria metafísica
herdada do antigo Egito, centrada na ideia da comuni-
dade entre todos os seres e objetos, e cuja autoria era
atribuída a Thoth’. Assim, Thoth se identificava com
Hermes, mensageiro dos deuses gregos e aquele que
conduzia as almas a Hades. Hermes, para os gregos, era
o deus das estradas e dos viajantes, da sorte, do comér-
cio, da música e dos ladrões e trapaceiros. Os romanos o
chamaram de Mercúrio.
Tais atributos de Thoth e de Hermes nos remetem
nitidamente à figura de Exu na cosmologia africano-
-brasileira. Conhecido popularmente como mensageiro
dos deuses, Exu constitui o princípio dinâmico que pos-
sibilita o fluxo e intercâmbio de energia cósmica entre
os domínios do mundo espiritual (orum) e o mundo ma-
terial (aiyê). Conhecedor das línguas humanas e divinas,
Exu é a comunicação em si, além de se apresentar como
o deus das estradas, da sorte, da brincadeira e da malan-
dragem.
Os paralelos e as semelhanças entre Thoth, Her-
mes e Exu não se reduzem a identidades absolutas, mas
as linhas gerais de suas características apontam para
uma unidade básica de significação simbólica. Por isso,
nada mais adequado, tratando-se de uma revista Thoth
lançada no Brasil, que uma primeira invocação a Exu, de
acordo com a tradição religiosa afro-brasileira, que abre
todos os trabalhos espirituais com o padê, a oferenda a
Exu de uma prece digna de todo o peso milenar da arte
africana da oratória.
Thoth representa, junto com Ma’at, o conheci-
mento, a ciência e a filosofia, a religiosidade e a ética
na mais antiga civilização africana. Assim, constituem
referência básica para o resgate de uma tradição africa-
na escamoteada à população brasileira enquanto ver-
dadeira matriz de nossa civilização, e também para o
resgate da ética na política, questão emergente no Bra-
sil de hoje.
Thoth 1

Assumindo o nome Thoth, dentro da postura afri-


cana em que o nome ultrapassa a denominação, esta re-
vista tem o objetivo de contribuir. de alguma forma, para
os dois resgates, afirmando ainda que o primeiro faz par-
te imprescindível do segundo.
Abdias Nascimento é empossado pelo governador Leonel Brizola como secretário extraordinário
de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Palácio da Guanabara, Rio de Janeiro, abril de 1991.
Artigo publicado no jornal Gazeta
de Notícias, do Rio de Janeiro, em 6
de dezembro de 1981, em resposta a
afirmações preconceituosas sobre a
Drummond: figura de Exu do poeta Carlos
Drummond de Andrade.
que Exu
te salve, poeta
Os negros deste país, tanto indivi-
dual como coletivamente, são o alvo pre-
dileto de agressões constantes e diversas.
Adquiriu mesmo a forma de verdadeiro
estereótipo a prática sistemática da polí-
cia de prender negros sem qualquer razão
ou justificativa, a não ser a razão do puro
arbítrio. Não ter um cartão de identidade
já constitui para o cidadão negro motivo
de agressão policial; também a ausência
de uma carteira de trabalho assinada é
outra pedra no caminho do descendente
de africano. Ora, sabemos todos – inclu-
sive os órgãos públicos especializados
no assunto – que, em geral, emprego é
Abdias Nascimento sempre dado de preferência ao candidato
branco. Até mesmo trabalho desqualifi-
cado, de salário inferior. Por isso, o de-
THOTH 2/ agosto de 1997
Debates

semprego atinge brutalmente o negro, e Porém há mais, e coisa muito mais


não por culpa dele, mas do racismo que grave. Tive ocasião de comentar nesta
impregna a classe dos empregadores. E coluna (l5-11-81) um artigo publicado
isso ocorre desde a chamada abolição de pelo Jornal do Commercio, de Recife,
1888... profundamente ofensivo aos bispos D.
Pedro Casaldáliga e D. José Maria Pi-
Quando um raro negro consegue
res, oficiantes da Missa dos Quilombos.
a duras penas furar o cerco, elevar-se
O referido artigo, mera agressão racista,
cultural e socialmente, os leões de chá- não surpreende, originário que é da pena
cara da elite dominante não perdoam: de um jomalista a serviço da extrema-
caem em cima do infeliz, agredindo-o -direita e dos órgãos de repressão. Um
de todos os modos. E, nessas circunstân- homem que não pretende demonstrar
cias, surgem os “mulatos pernósticos”, nenhuma sutileza, ao tratar o assunto em
“negro que não sabe o seu lugar”, ou o tons policiais. O que surpreende e entris-
“negro atrevido”, etc. Eminente cientis- tece são as afirmações de um homem de
ta negro foi, certa vez, designado “soci- cultura e poeta da estatura de um Carlos
ólogo de Angola”. No caso, Angola sig- Drummond·de Andrade. Comentando
nificando pejorativamente tudo o que é uma sugestão do humorista Ziraldo, que
africano e, por extensão, tudo o que é in- sugere resolver os problemas de uma ci-
ferior, feio ou desprezível. Exemplo re- dade cheia de conflitos, trocando o seu
cente podemos encontrar em certa ocor- nome africano – Exu – por um outro eu-
rência noticiada pelo Jornal do Brasil ropeu, Drummond se revela, talvez in-
de 5-1l-81, página 2, Caderno B: por conscientemente, tão etnocentrista e tão
ocasião do julgamento de Doca Street, carente de sutileza, nesse assunto espe-
cífico, quanto o colunista policial.
as mulheres feministas compareceram
ao tribunal vestidas de preto – porque “a Vejamos as analogias e os de-
cor simboliza nossa opressão”, diziam, talhes: ambos os autores – o jornalista
“e a revolta contra um assassino torna- do Recife e o poeta do Rio – tratam de
matéria referente à religiosidade negra
do herói”. Observemos, de saída, que
no Brasil. O primeiro se propõe execrar
no contexto daquele crime a cor negra
tal religiosidade no âmbito católico, in-
foi literalmente uma vítima, quando em
vestindo contra a Missa dos Quilombos,
Minas Gerais assassinaram o jardineiro celebrada na serra da Barriga, dia 20 de
pretinho de Angela Diniz. Estamos com novembro, à qual assisti, e no dia 22 no-
o protesto das mulheres, mas não pode- vamente celebrada em Recife. No caso
mos concordar que um grupo que luta de Drummond, trata-se de um aspecto
por libertação e justiça, numa sociedade mais esotérico (para o euro-brasileiro,
injusta, assuma os instrumentos de infe- naturalmente): a religiosidade africana
riorização e opressão que essa mesma e afro-brasileira de origem nagô ou io-
sociedade repressiva (branca) utiliza rubá. Vale destacar, no entanto, a quase
contra as populações afro-brasileiras. identidade de linguagem utilizada pe-
Drummond x Exu
Abdias Nascimento

los dois escritores, semelhança verbal uma tradição filosófica e epistemológi-


consignada em repetidas palavras e fra- ca milenar, anterior à greco-romana, e
ses. Por exemplo, o cronista do Jornal de tanta ou talvez muito mais sofistica-
do Commercio denomina a cerimônia ção e sabedoria do que essa? Sabedoria
católica aos quilombos de “Missa do e sofisticação essas, seja dito, não reco-
Diabo”; para Drummond, a divindade nhecidas pelo mundo ocidental, do qual
iorubana da contradição dialética, Exu, o poeta se revela porta-voz; por motivos
evoca uma “Igreja do Diabo”. Enquan- puramente etnocêntricos. E a folcloriza-
to o policial de Pernambuco denuncia ção, a coisificação e a comercialização
a “missa negra do terror”, Drummond da nossa espiritualidade às mãos do tu-
atribui ao nome, para ele diabólico, de rismo oficial e dos interesses da espe-
Exu uma “atmosfera de terror infernal”. culação imobiliária, sobretudo na Bahia.
E, da mesma forma que o furioso direi- que aumenta suas margens de lucro à
tista identifica a missa negra com o der- custa da exploração venal até mesmo
ramamento de sangue, porque “Belze- de nossa própria alma? Não acha, poeta,
bu gosta de receber oferendas assim”, carga bastante pesada para um povo su-
o poeta liberal atribui a Exu (através de portar? Além disso tudo, teremos ainda
seu “efeito psicológico maligno”) a cul- de carregar em nossas costas a culpa do
pa pelo derramamento de sangue na ci- sangue cotidianamente derramado nos
dade que ostenta o seu nome. Pior ainda: crimes que se cometem no triste muni-
ele o faz com a seguinte frase realmente cípio pernambucano? Olorum nos livre!
espantosa: “O diabo manda matar, e os A personagem divina de Exu tem
possessos obedecem ao mandamento”. sido assemelhada ao diabo unicamente
Poeta ilustre: já não bastam aos na imaginação perversa e manipuladora
africanos e seus descendentes em nos- da Igreja Católica, ainda cúmplice da es-
sa terra as calúnias da suposta ciência cravidão. Conforme assinala o estudioso
darwinista que classifica os transes reli- e compositor negro Nei Lopes, em carta
giosos da espiritualidade africana como ao Jornal do Brasil de 24-11-81, Exu
“histerias coletivas”, “manifestações é, certamente, a divindade mais com-
patológicas”, outras formas de “doen- plexa, em nível filosófico e religioso,
ça mental” e “estado sofrológico?” Já da espiritualidade nagô. Espiritualidade
não é bastante a repressão policial que, essa que não simplifica a vida cósmica
através de nossa história. ataca violenta numa divisão maniqueísta tipo branco
e permanentemente os nossos templos e preto, ou Deus e diabo. Os africanos
(terreiros), confisca objetos sagrados e concebem e definem sua transcendência
os encaminha para museu de psiquiatria com mais refinamento e sutileza. Espe-
ou de criminologia, e atira as mães e ramos que nossa elite intelectual, tão an-
pais de santo na cadeia ou na penitenci- gustiada na busca de uma originalidade
ária? Não é suficiente a ridicularização nacional. também tenha o refinamento
e a escamoteação dos nossos conceitos e a sutileza de parar e pensar: por que
religiosos, oriundos e expressivos de um nome africano tem que ser neces-
THOTH 2/ agosto de 1997
Debates

sariamente maldito, enquanto somente Depois de quatro séculos de abuso e hu-


os nomes “que os portugueses nos lega- milhação, merecíamos estar a salvo das
ram” (nas palavras do poeta) seriam no- banalidades de um Ziraldo e das negati-
mes “sagrados”, “celestes” ou “agradá- vidades de um poeta, normalmente tão
veis?” Mesmo na hipótese equivocada positivo, como Drummond.
da inconveniência de Exu, por que não Quanto a mim, continuo negro,
Oxum, Oxóssi, Iemanjá ou Obatalá, no- de alma negra mesmo, e nem por isso
mes tão sagrados quanto o de Exu, em sou criminoso ou maldito. Tampouco
lugar de qualquer santo católico de no- maldigo a ninguém. Que Exu te salve,
menclatura portuguesa? Os africanos e poeta.
os índios também nos legaram toda uma
cultura que merece respeito e serieda-
de ao ser tratada por nossa inteligência. Laroiê!
Reunião da Frente Negra Brasileira. São Paulo, cerca de 1935. Foto cedida por Francisco Lucrécio, um dos integrantes da Frente Negra,
que aparece na foto de terno escuro, na primeira fileira de adultos, segundo da esquerda para a direita.
Discurso proferido em Sessão
Especial do Congresso Nacional
realizada em 13 de maio de 1997
Tributo ao
sesquicentenário Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Congressistas
de Castro Alves Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Um dos acontecimentos mais im-


portantes de nossa história política – a
extinção, por decreto, de toda uma cate-
goria social –, a Abolição da Escravatura
continua a repercutir sobre a realidade
social do Brasil às vésperas da virada
do milênio. Como tem sido demonstra-
do à exaustão, sobretudo pela Sociologia
e pela História, os principais problemas
sociais enfrentados pelo Brasil de hoje
têm origem na forma como se fez a pas-
sagem de uma economia baseada no tra-
balho servil a uma incipiente economia
capitalista de base inicialmente agrária,
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

mas que continuava tendo na explora- Mas a insistência na divulgação desses


ção da mão de obra negra, agora supos- mitos, erigidos em verdades oficiais do
tamente “livre”, sua principal fonte de Estado, é também reveladora dos desíg-
sustentação. nios e dos medos das elites brancas, cujo
Maior país escravista das Amé- poder se mantém intocado mais de cem
ricas, o que mais importou africanos anos depois da chamada “libertação”.
escravizados nos três séculos e meio Na realidade, no Brasil de hoje,
que durou o tráfico negreiro e o último não é apenas a situação dos negros que
a abolir a escravidão, o Brasil figura resulta diretamente da escravidão e da
hoje entre os campeões mundiais de de- forma como esta foi extinta. O crime da
sequilíbrio social. Só um ingênuo – ou escravidão foi a base a partir da qual se
um cínico – poderia ver nisso uma sim- fundou aquilo que alguns chamam de
ples coincidência. E no entanto ainda “civilização brasileira”: um projeto de
há muitos brasileiros que acreditam nos caráter excludente em que o propósito
contos da carochinha engenhosamente das elites é manter, a qualquer custo, os
formulados pelos ideólogos das elites. privilégios que a diferenciam do res-
Para estes, no Brasil, atual paraíso da tante da população. Durante quase 400
“democracia racial”, a escravidão teria anos, esses privilégios foram preserva-
sido de caráter “benevolente”, embalada dos pela violência institucional, acos-
por idílicas relações entre a casa-grande tumando os mais afortunados à noção
e a senzala. Do que teria resultado uma perversa de que os “outros” podem ser
sociedade virtualmente cega à cor da humilhados, vilipendiados, torturados e
pele, traço físico – afirmam os propa- usurpados nos seus direitos e na sua ci-
gandistas dessa empulhação – sem mui- dadania plena.
ta influência sobre a vida das pessoas. Nesse período, o Brasil “impor-
Segundo essa visão mistificado- tou”, pelos dados oficiais, cerca de qua-
ra, que até pouco tempo atrás era ensi- tro milhões de africanos escravizados
nada nas escolas como História oficial, – o que responde por 40% do total tra-
a Abolição teria sido resultado da bon- zido à força para as Américas. É óbvio
dade e do espírito humanitário da prin- que essa é uma avaliação por baixo. Se
cesa Isabel, condoída com a sorte dos levarmos em conta que, para cada es-
negros. Tal posição, evidentemente, não cravo chegado às plantações ou às mi-
tem qualquer sustentação histórica: a nas, entre cinco e dez africanos foram
Abolição se deu porque era preciso mo- sacrificados na travessia das distâncias
dernizar o Brasil ante os imperativos da africanas, nos navios negreiros e nos en-
Revolução Industrial. E também porque trepostos de leilão de escravos, teremos
a crescente resistência dos negros, quei- um número mais próximo à realidade:
mando fazendas, sabotando engenhos e de 20 a 40 milhões.
organizando quilombos, tornava cada Forjou-se assim entre nós a con-
vez mais elevado o custo da escravidão. cepção de que trabalho não dignifica
Clélia Brasília Alves, mãe de Castro Alves. Foto reproduzida da revista Antônio de Antônio de Castro Alves. Foto reproduzida do livro A mão afro-brasi-
Castro Alves, 150 Anos (Banco do Brasil/Fundação Odebrecht, 1997). leira (São Paulo: Tenenge, 1988).
Pronunciamentos
Tributo ao sesquicentenário de Castro Alves

nem enobrece. Trabalho é coisa que se onipresentes. Maioria absoluta da popu-


obriga outra pessoa a fazer. Se necessá- lação, estavam na lavoura, nas cidades,
rio, por meio da força ou da tortura. Tra- dentro de casa, nas senzalas, fugidos no
balho é coisa de escravo, é escravidão. mato e organizados em quilombos. Nas
Se o impacto da escravidão no grandes cidades, prestavam serviços,
Brasil, em termos sociais, econômicos vendendo água, comida e artesanato.
e políticos, pode ser verificado pelo es- Exerciam ofícios especializados, como
tudo científico da História ou da Socio- os de barbeiro ou alfaiate, e eram respon-
logia suas dimensões humanas e psico- sáveis por toda e qualquer espécie de car-
lógicas devem ser buscadas também no ga, num país onde “homens de qualidade
terreno da arte. Nas artes plásticas e na se recusavam a levar o mais ínfimo pa-
literatura, sobretudo, vamos encontrar cote”. Como manter tanta gente sob tra-
um retrato fiel da sociedade brasileira balhos forçados sem o uso abundante da
no período escravista, capaz de trazer às violência? Uma violência presente desde
nossas consciênciàs os sentimentos que a captura desses homens e mulheres em
animavam homens e mulheres situados solo africano, multiplicada na travessia
nos diferentes extratos sociais e o que do Atlântico em navios cujo nome, “tum-
significava viver numa sociedade con- beiros”, bem dá a dimensão da tragédia
taminada – “gangrenada”, como já se que significou o tráfico de negros. Com
disse – pela escravidão. tintas pungentes, Castro Alves descre-
veu essas embarcações da morte;
Uma das melhores vias de acesso
a essa realidade social é a leitura dos po-
Era um sonho dantesco ...
emas do baiano Antônio de Castro Al-
ves, cuja preocupação com a causa dos O tombadilho,
cativos lhe valeu o título de “Poeta dos Que das luzernas avermelha o
Escravos”. Em sua poesia, inflada pelos brilho,
nobres sentimentos da compaixão e da Em sangue a se banhar.
solidariedade, e animada pela indigna- Tinir de ferros... estalar do açoite..
ção característica dos paladinos de todas Legiões de homens negros como
as causas sociais, encontramos não ape- a noite
nas um retrato da violência e das humi-
lhações sofridas pelos africanos escravi- Horrendos a dançar...
zados no Brasil. Encontramos também Presa nos elos de uma só cadeia
a fala oculta e revoltada dos próprios
A multidão faminta cambaleia
negros, materializada nas fugas, rebeli-
ões e revoltas que pontilharam este país E chora e dança ali...
desde a chegada dos primeiros africa- Um de raiva delira, outro enlou-
nos, no início do século XVI. quece ..
Na sociedade em que viveu Cas- Outro, que de martírios embrutece,
tro Alves, os negros eram praticamente Cantando geme e ri...
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

Uma sociedade fundada em tal peito dos princípios igualitários consa-


violência não pode espantar-se quan- grados em nossas tantas Constituições.
do esta irrompe, oculta sob as sombras Além de desempenhar todas as
da noite nos becos e desvãos de nossas funções produtivas na sociedade bra-
favelas, pelas mãos de uma polícia que sileira, os africanos e afro-brasileiros
traz em si a marca do feitor ou capitão- escravizados também contribuíam de
-do-mato. Imaginar que isso começou outras maneiras para aumentar o ren-
no regime militar ou na ditadura do Es- dimento das famílias brancas. A men-
tado Novo. é assumir a visão míope de dicância era uma dessas atividades.
uma sociedade elitizada que só enxerga envolvendo principalmente escravos
o sofrimento quando este se abate sobre idosos e doentes. Estes se viam muitas
sua própria pele. vezes contemplados com uma alforria
Considerado peça ou mercadoria. cujo objetivo era na verdade libertar os
um escravo podia ser objeto de compra, senhores da obrigação de sustentá-los.
venda, empréstimo, doação, penhor, se- A pena indignada de Castro Alves assim
questro, transmissão por herança, em- descreveu essa crueldade:
bargo, depósito, arremate e adjudicação
– tal como qualquer outra mercadoria. É ele o velho maldito
Mas era, ainda assim, uma mercadoria
O escravo desamparado
especial. Cometesse um crime, seria
punido com todos os rigores do Código Bem como o cedro lascado
Penal. Como escreveu um historiador. Bem como o cedro no chão
o primeiro ato humano do escravo era Tem por leito de agonia
o crime – era quando ele “virava gen- As lágeas do pavimento
te”. Nasceu aí o tratamento “especial”
E como único lamento
de que os afro-brasileiros continuam
sendo objeto quando se veem diante de Passa rugindo o tufão.
policiais, delegados ou juízes – daqueles
que constituem, nas várias instâncias, os Será que evoluímos alguma coisa
agentes da lei. Se os negros são réus. desde então? Como explicar o tratamen-
a cor de sua pele funciona como agra- to desumano que ainda hoje dispensa-
vante das penas que recebem, conforme mos aos idosos. obrigados a sobreviver
mostram as pesquisas; se os negros são com aposentadorias ridículas após te-
vítimas, sua filiação étnica serve de ate- rem exaurido suas energias num traba-
nuante para os acusados, cujas penas. lho árduo e miseravelmente remunera-
ainda segundo as pesquisas, tendem a do? Como explicar que, ainda por cima,
ser menores do que nos casos em que sejam os idosos as primeiras vítimas de
as vítimas são brancas. Assim, os negros uma reforma da Previdência que, am-
continuam experimentando no Brasil de pliando o tempo de serviço exigido para
hoje o tratamento discriminatório a que a aposentadoria, condena a maioria a
eram sujeitos seus antepassados, a des- trabalhar até a morte?
Pronunciamentos
Tributo ao sesquicentenário de Castro Alves

Encerrada na morte lenta e cruel, Além de forçar os velhos e doen-


pela doença ou pela fome, a existência tes a mendigar, famílias consideradas
de um escravo tinha início igualmente respeitáveis também tinham como fon-
doloroso. Desde a perspectiva sombria te de renda a prostituição – não de suas
de mães que, conscientes daquilo que mulheres e filhas, é claro, mas das filhas
aguardava seus filhos, chegavam a co- e mulheres dos escravos. Obrigadas a
meter o infanticídio para que estes não vender o corpo nas ruas das grandes ci-
crescessem como escravos, o que Cas- dades em troca de um parco dinheiro que
tro Alves nos relata no belo poema in- sequer podiam reter para si, essas jovens
titulado “Mater dolorosa”. No instante constituem a raiz da prostituição infan-
da mãe mata o próprio filho, registra o tojuvenil, que infelizmente não foi trazi-
poema: da para cá pelo turismo sexual – como
quer fazer crer uma recente campanha
Não me maldigas... Num amor do Governo –, mas constituiu mais uma
sem termo das chagas de nossa tradição social a ter
início na longa noite da escravidão. A
Bebi a força de matar-te... a mim ...
mentalidade que a tolera e que dela se
Viva eu cativa a soluçar num ermo beneficia, para ganhar dinheiro ou obter
Filho, sê livre... Sou feliz assim ... prazer, é exatamente a mesma que usu-
fruía esses mesmos benefícios, há mais
Crianças obrigadas pela vida a de cem anos, com o corpo das jovens
“chorar antes de rir”, esses meninos e negras forçadamente prostituídas.
meninas, cujo sofrimento não sensibi- Oriundos de diferentes regiões da
lizava a sociedade escravista, eram a África, com graus diversos de desenvol-
antecipação concreta de nossas crianças vimento e sofisticação tecnológica, os
carentes e abandonadas. Dessa chaga africanos escravizados no Brasil jamais
social que o Brasil não conseguiu ex- corresponderam à caricatura grosseira
tirpar e que, ao contrário, prossegue em que deles se desenhou no propósito de,
sua expansão, obrigando as elites a se desumanizando-os, justificar a escra-
refugiarem em verdadeiros bunkers e vidão. Traço característico nesse tipo
fortalezas, conhecidos pelo eufemismo de caricatura era a afirmação de que o
de “condomínios fechados”. Os núme- negro, naturalmente “submisso”, aceita-
ros dolorosos do abandono de nossa ju- ra “docilmente” a situação de escravo.
ventude, brandidos com insistência por Nesse caso, caberia indagar a função
organizações humanitárias nacionais e dos abundantes instrumentos de tortura
internacionais, resultam principalmente encontrados em nossos museus, ferra-
do descaso que a sociedade dominante mentas indispensáveis à manutenção de
se acostumara a cultivar para com os fi- um regime que tinha no medo da morte
lhos dos africanos, os filhos dos negros, o seu maior sustentáculo. Mas a crônica
ampliando mais tarde essa visão para da escravidão é também o copioso diá-
nela incluir os filhos dos pobres. rio da resistência negra, que no Brasil
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

encontrou sua melhor expressão nas cial, acabou se entranhando – como não
páginas que relatam a epopeia de Pal- poderia deixar de ser – na própria alma
mares, o maior dos quilombos, assim de cada brasileiro, transformando-se no
saudado por Castro Alves: metro e no padrão com que se encaram
entre nós as questões de natureza social.
Salve! Região dos valentes Se quisermos realmente enten-
Onde os ecos estridentes der, para enfrentar e resolver, proble-
Mandam aos plainos trementes mas como a violência institucional, os
menores carentes e de rua, a prostitui-
Os gritos do caçador!
ção infantil, o tratamento dispensado
E ao longe os latidos soam ... aos idosos e as questões trabalhistas em
E as trompas da caça atroam ... geral – sem falar na ética do trabalho e
E os corvos negros revoam na rapinagem do Estado pelas elites –,
Sobre o campo abrasador! ... devemos estudar seriamente a escravi-
dão a que foram submetidos, durante
quase quatro séculos, os africanos e seus
Palmares! a ti meu grito!
descendentes no Brasil. E se quiser-
A ti, barca de granito, mos ingressar no próximo milênio com
chances reais de concretizar o imenso
Que no soçobro infinito potencial deste país, devemos combater
Abriste a vela ao trovão. a causa última de todas essas mazelas.
E provocaste a rajada, cancro que corrói a própria essência de
Solta a flâmula agitada cada brasileiro e o impede de desatar
as amarras de nosso atraso e subdesen-
Aos uivos da marujada volvimento, originados principalmente
Nas ondas da escravidão! no sentimento de inferioridade que nos
acomete quando nos comparamos com
Defensor intransigente da causa a Europa ou os Estados Unidos. Esse
dos afro-brasileiros, ocupo hoje esta tri- cancro é o cancro do racismo, fatídica
buna não apenas para denunciar os so- herança da escravidão que o 13 de Maio
frimentos impostos ao meu grupo étnico também não aboliu.
nestes quase 500 anos de escravidão e O sonho libertário de Castro Al-
racismo que constituem a História do ves ainda não se materializou. Daí a
Brasil. É meu principal propósito no dia oportunidade e atualidade da sua bela e
de hoje mostrar como o tratamento dis- forte poesia.
pensado aos afro-brasileiros ao longo do
período escravista, além de excluí-los e
marginalizá-los de nosso processo so-
Axé!
A Comissão de Assuntos Sociais,
presidida pelo senador Ademir Andrade
(PSB-PA), aprovou ontem – por unani-
Titulação das midade – parecer favorável, do senador
Nabor Júnior (PMDB – AC), a projeto da
Terras dos senadora Benedita da Silva (PT – RJ) que
disciplina o procedimento de titulação
Quilombos* imobiliária aos remanescentes das anti-
gas comunidades negras dos quilombos.
Os senadores Abdias Nascimento (PDT –
RJ) e Valmir Campelo (PTB – DF) desta-
caram, ao votar, o mérito da proposição.
O senador Abdias Nascimento
disse que a iniciativa da senadora Bene-
dita da Silva atende a antigo clamor da
comunidade afro-brasileira, e, com ela, a
Nação brasileira terá oportunidade única
de oferecer cidadania plena à comunida-
de negra injustiçada. Ele apresentou re-
querimento, também aprovado, pedindo
a imediata apreciação da matéria.
Benedita da Silva expressou seu
agradecimento ao povo Kalunga, que,
conforme afirmou, deu, durante a Assem-
bleia Nacional Constituinte, sustentação
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

para que fosse inserido nas Disposições exaltando a extensão e o alcance da ma-
Transitórias o artigo que o projeto de téria para a comunidade negra.
agora regulamenta.
Também se manifestaram os se- * Transcrição de nota publicada no Jor-
nadores Mauro Miranda (PMDB – GO) nal do Senado em 15 de maio de 1997.
e José Roberto Arruda (PSDB – DF),
Foto: Célio Azevedo

Senador Abdias Nascimento e Senador Quintanilha em reunião na Comissão de Assuntos Sociais,


presidida pelo Senador Ademir Andrade
Projeto de Lei do Senado nº 114,
de 1997
Projetos de Lei Dispõe sobre a ação civil destinada ao
cumprimento da obrigação de fazer ou
de não fazer, para a preservação da hon-
ra e dignidade de grupos raciais, étnicos
e religiosos.

O Congresso Nacional decreta:


Art. 1º O Ministério Público pro-
moverá ação civil com o objetivo de im-
por obrigação de fazer, ou de não fazer,
com as finalidades de:
I – evitar ou interromper atos da-
nosos à honra ou à dignidade de grupos
raciais, étnicos ou religiosos; e
II – obter a reparação dos mesmos
atos, quando não evitados.
Parágrafo único. Confere-se legi-
timidade subsidiária, ém caso de omis-
são do Ministério Público, à sociedade
civil que:
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

I – esteja constituída há pelo me- minação de multa diária, independente-


nos um ano nos termos da lei civil; ou mente de requerimento do autor.
II – inclua entre as suas finalida- § 1º A multa será devida a partir
des institucionais a proteção ou defesa do dia em que se configurar o descum-
dos interesses de grupos raciais, étnicos primento da determinação judicial.
ou religiosos; § 2º O valor da multa poderá ser
§ 1º O Ministério Público, se não elevado até ao triplo se, fixado pelo má-
intervier no processo como parte, atuará ximo, não se alterar o comportamento
obrigatoriamente como fiscal da lei. do réu.
§ 2º É facultado a outras sociedades Art. 6º O juiz, ao examinar o mé-
civis ou associações, de mesma natureza rito, fixará o valor da reparação, consi-
das legitimadas, habilitarem se como litis- derada a extensão dos danos, desde que
consortes de qualquer das partes. requerido na inicial da ação civil.
§ 3º Em caso de desistência ou Art. 7º Os créditos favoráveis ao
abandono da ação por sociedade ou as- autor, decorrentes de sucumbência, ex-
sociação legitimada, o Ministério Públi- cetuados os honorários advocatícios e
co a substituirá processualmente. de peritos, reverterão a fundo de defesa
Art. 2º Convencendo-se o juiz da e combate ao racismo, a ser criado pela
Secretaria Nacional de Direitos Huma-
procedência da ação, concedem a ante-
nos.
cipação total ou parcial da tutela, antes
de ouvir a outra parte. Parágrafo único. O fundo de de-
fesa e combate ao racismo será instituído
Art. 3º Qualquer pessoa poderá,
em até doze meses a contar da data de
e o servidor público deverá, provocar a
publicação desta Lei.
iniciativa do Ministério Público, minis-
trando-lhe informações sobre os fatos Art. 8º Aplicam-se, subsidiaria-
objeto da ação civil prevista nesta lei e mente ao disposto nesta Lei, o Código
indicando-lhe os respectivos elementos Penal, o Código de Processo Penal e a
de convicção. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.
Art. 4º Para instruir a petição Art. 9º Esta Lei entra em vigor na
iniciai da ação civil, o autor poderá re- data de sua publicação.
querer às autoridades competentes as Art. 10. Revogam-se as disposi-
certidões e informações que julgar ne- ções em contrário.
cessárias, que lhe serão fornecidas no
prazo máximo de quinze dias.
Art. 5º Na ação civil que tenha JUSTIFICAÇÃO
por objeto a obrigação de fazer ou de
não fazer, o juiz determinará o cumpri- O preceito da dignidade huma-
mento da prestação de atividade, ou da na define-se na exigência expressa por
cessação da atividade nociva, sob co- Kant como princípio de máxima impe-
Projetos de Lei
Ação civil pela dignidade dos grupos raciais 1

rativa: “Age de forma que trates a hu- trema pobreza. Nesta última incluem-se
manidade, tanto na tua pessoa como na os negros, discriminados na raça para,
pessoa de qualquer outro, sempre tam- posteriormente e em consequência, se-
bém como um fim e nunca unicamente rem eles os discriminados sociais.
como um meio”. Esse princípio de or- E nessa discriminação, que se-
dem moral indica a condição humana para da minoria próspera a maior parte
na relação de que todo homem possni da população brasileira, de maioria ne-
um valor não relativo como fim em si gra, são negados os direitos essenciais
mesmo, próprio, inerente: a dignidade. à pessoa humana. O Direito é universal.
O que se caracteriza substituível na re- Deve ser compreensível para todos os
lação pressupõe sempre equivalência e homens, qual seja a raça, qual seja a cor,
traz em si de maneira permanente a no- qual seja a condição social.
ção de preço, não restritamente de valor. O Brasil é o maior país negro
O que não permite qualquer equivalên- fora da África. Entretanto, com os ex-
cia é a dignidade, superior a tudo, pois tremos bem desiguais, minoria muito
não dispõe o homem a obediência à lei próspera de um lado e a grande maioria
que não seja instituída por ele próprio. muito pobre de outro, tantos em estado
Como forma desse princípio, dessa in- de completa miséria, pondo o país na
dependência, é a moralidade a condição liderança em concentração de rendas,
da dignidade do homem. Sendo a digni- é o negro a maior vítima. Da moradia
flade absoluta, cumpre ao homem esse das favelas para as ruas, aumentando dia
valor moral, do que se conclui a relação a dia as moradas debaixo das pontes e
silógica dignidade do homem–dignida- dos viadutos. O acesso às escolas é qua-
de da lei–dignidade da sociedade. Com se que inevitavelmente impossível, são
respeito a todos os homens, independen- proporcionalmente raras as exceções.
te de raça, cor, religião e outros. Sempre vítimas do preconceito e da dis-
Na resposta preceituai a essa nor- criminação racial, não se lhe permitindo
ma, considera-se que a lei, assim ins- a devida integração na sociedade. É a
tituída, deverá obedecer princípios de preexistência do racismo o fato gera-
equidade social para o cometimento de dor da divisão social imposta ao negro
justiça, na relação mais ampla entre in- brasileiro. Contudo, a legislação ainda
divíduo e sociedade, pertença ele a qual- peca pela precariedade sobre a matéria,
quer classe ou condição econômica. até mesmo carente da tipificação crimi-
No Brasil, o exemplo é totalmen- nal da “prática do racismo”, definida na
te diverso. O desequilíbrio na sociedade Carta Política como inafiançável e im-
que vivemos nos revela uma sociedade prescritível.
desigual. De um lado, a extrema mino- A Lei nº 7.347, de 24 de julho
ria próspera, como bem adverte Noam de 1985, veio disciplinar a ação civil
Chomsky em uma de suas obras sobre o pública como instrumento processual
injusto: de outro, a vasta maioria de ex- adequado para reprimir ou impedir da-
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

nos ao meio ambiente, ao consumidor, a ali definido só se configura se cometido


bens e direitos de valor artístico, estéti- “pelos meios de comunicação social ou
co, histórico, turístico e paisagístico. O por publicação de qualquer natureza”.
preceito constante do art. 10 da prefala- Inegável, portanto, a dispersão e preca-
da lei visou, pois, proteger os interesses riedade da legislação atual sobre a ma-
difusos da sociedade. A Constituição da téria, a qual exige imediato aperfeiçoa-
República. no seu art. 129, inciso III, mento para uma aplicação eficaz.
estendeu essa proteção aos interesses O presente projeto destina-se à
difusos e coletivos, incluindo aí os bens instituição de ação civil que pode ser
jurídicos a serem tutelados pelo Estado, instaurada pelo Ministério Público ou
quando existente o dano praticado con- por entidades da sociedade civil orga-
tra a integridade física ou moral de al- nizada com as finalidades de evitar ou
guém, em ofensa ao direito, decorrente interromper atos danosos à honra ou
de preconceito e discriminação racial. dignidade de grupos raciais, étnicos ou
Três meses após promulgada a religiosos, e de obter a reparação de tais
atual Constituição da República, surge atos, quando não seja possível evitá-
a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, -los. Objetiva, assim, dotar os grupos
de autoria do Deputado Carlos Alberto em questão de um instrumento ágil e
Caó. que prevê punição para “os crimes eficaz que lhes possibilite enfrentar as
resultantes de preconceitos de raça ou manifestações de racismo e discrimina-
de cor”, mas tão somente no que se refe- ção que, infelizmente, ocorrem em nos-
re a recusa ou impedimentos de acesso sa sociedade em vergonhosa proporção.
a serviços, locais públicos e privados, a Sala das Sessões, 17 de junho de
empregos e transportes. A Lei nº 8.081, 1997
de 21 de setembro de 1990, autor o en-
tão deputado Ibsen Pinheiro, acrescen- Senador ABDIAS NASCIMENTO
tou o art. 20 à Lei nº 7.716/89, mas o
ato discriminatório ou preconceituoso Publicado no Diário do Senado Federal de 18-6-97.
Projetos de Lei
Ensino religioso nas escolas públicas

EMENDA AO PROJETO DE LEI II – as normas para a habilitação e


DA CÂMARA Nº 25, DE 1997 admissão dos professores;
III – a regulamentação dos proce-
Dá nova redação ao art. 33 da dimentos para a definição dos objetivos
Lei nº 9.394, de 20-12-96, que estabe- e conteúdos previstos no inciso I deste
lece as diretrizes e bases da educação parágrafo, incluindo sempre mecanis-
nacional mos para se ouvir as diferentes denomi-
nações religiosas.”

EMENDA N 1-PLEN
JUSTIFICAÇÃO
Do Senador ABDIAS NASCIMENTO
Tanto o parágrafo 1º quanto o
Altere-se a redação do art. 1º parágrafo 2º do artigo 33, como estão
do Projeto de Lei da Câmara nº 25, de redigidos no Projeto da Câmara, falam
1997, para se dar aos parágrafos 1º e 2º em “definição dos conteúdos do ensino
do art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de de- religioso”.
zembro de 1996, a seguinte redação: Trata-se, portanto, de um deslize
que pode passar despercebido por quem
“Parágrafo único. Os sistemas de
não é especialista em educação, mas que
ensino estabelecerão:
salta aos olhos dos pedagogos, pois, de
I – os objetivos do ensino religio- acordo com a moderna Pedagogia e as
so e seus respectivos conteúdos progra- Ciências da Educação, em primeiro lu-
máticos; gar, devem ser definidos os objetivos
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

educacionais, ou seja, os comportamen- Além disso, a redação do Projeto


tos que devem ser adquiridos, mudados dá a entender que haveria apenas uma
ou reafirmados pelo educando. Só então entidade civil para todo o território na-
é que se selecionam os conteúdos pro- cional, a qual deveria ser ouvida por
gramáticos pois estes são meios para as quaisquer sistemas de ensino, federal,
mudanças comportarnentais. estadual ou municipal, que fosse regu-
Consideramos, portanto, que de- lamenda a matéria, o que dificultaria as
vem ser definidos, primeiro os fins que decisões, sobrecarregaria a citada enti-
se tem em vista, para, só então, tratar dade e inviabilizaria a imediata regula-
dos meios para se atingi-los, o que justi- mentação da matéria pelos sistemas de
fica a aprovação desta Emenda. ensino.
Quando ao parágrafo segundo Analisando-se esta matéria pelo
temos outra observação, pois ele man- lado constitucional, acreditamos que a
da os sistemas de ensino ouvirem “en- aprovação da redação dada pelo Projeto
tidade civil, constituída pelas diferentes poderia gerar questionamentos no Poder
denominações religiosas”. Judiciário, pois a obrigatoriedade das
instituições e grupos religiosos de cria-
A prática da criação, em algumas
rem uma entidade civil para representá-
unidades da Federação, de comissões,
-los pode ser interpretada como uma
formadas com a participação de repre-
intromissão indevida no Estado na vida
sentantes das diferentes denominações
das instituições privadas.
religiosas, para opinarem em relação a
assuntos relacionados com o ensino re- Os dois parágrafos referem-se
ligioso, tem sido uma experiência posi- a incumbências que são estabelecidas
tiva pois todas elas cumpriram bem suas como responsabilidades dos sistemas de
funções. ensino, e, portanto, as regras da boa téc-
nica legislativa aconselham uma agluti-
Tal fato nos parece um indica-
nação dos dois dispositivos.
dor seguro de que seria desnecessária
a constituição de uma entidade civil Assim sendo, justifica-se a apro-
permanente, quando comissões tempo- vação desta Emenda Aglutinativa e de
rárias regulamentadas e criadas pelos Redação.
próprios sistemas de ensino oferecem Sala das Sessões, 8 de julho de
maior flexibilidade e mais facilidade 1997. – Senador ABDIAS NASCI-
para o diálogo e o trabalho conjunto das MENTO
denominações religiosas, além de se en-
Publicado no Diário do Senado Federal de 09-07-97
quadrarem dentro do espírito descentra-
lizador da LDB.
Foto: Vantoen Pereira Jr.

Abdias Nascimento, então secretário de Estado de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Governo
do Estado do Rio de Janeiro, e Mwalimu Julius Nyerere, ex-presidente da Tanzânia e dirigente da Comissão Sul-Sul,
brincam com Osiris, filho do secretário, na ocasião da visita do histórico líder ao Rio de Janeiro em 1991. O ex-ministro
Celso Furtado está à esquerda de Mwalimu Nyerere, na escada.
Discurso proferido no Senado
Federal em 8 de maio de 1997

Pronunciamentos Em homenagem póstuma ao educador


Paulo Freire e ao ator Anselmo Duarle.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob as bênçãos de Olorum, inicio
meu pronunciamento.
Ocupo hoje esta tribuna para ho-
menagear dois brasileiros ilustres que,
cada um à sua maneira e no seu campo
de atuação, deram importantes contribui-
ções à nossa cultura, ajudando o Brasil
a se tomar conhecido no exterior como
algo mais que o país apenas do samba e
do futebol. Dois brasileiros que jamais
se envergonharam de sua terra ou de sua
gente. Que jamais se sentiram inferiores
perante a cultura de outros povos, mas,
ao contrário, sempre reafirmaram e de-
fenderam a riqueza de nossa diversidade
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

cultural, inesgotável manancial de pos- convidou-o para ser o coordenador do


sibilidades em todos os campos do sa- projeto de educação de adultos, que in-
ber, infelizmente ainda subestimado por tegrava o Movimento de Cultura Popu-
tantos brasileiros. lar. O período em que dirigiu o projeto
Minha primeira homenagem é, – de 1961 a 1963 – serviu para que ele
infelizmente, uma homenagem póstuma aperfeiçoasse o seu método, que acabou
a um homem que sempre admirei e de sendo aplicado integralmente, pela pri-
quem o destino teve o capricho de me meira vez, na cidade de Angicos, no Rio
aproximar, não no Brasil, mas em terra Grande do Norte. O êxito da experiên-
estrangeira, nos tempos do exílio for- cia atraiu as atenções de Paulo de Tarso,
çado pelo regime militar. Refiro-me ao então ministro da Educação, que o cha-
grande educador Paulo Freire, falecido mou para coordenar o Programa Nacio-
no último dia 2, em São Paulo, vítima de nal de Alfabetização. Por pouco tempo,
enfarte, que o mundo inteiro reverencia porém. Logo entraríamos no período
sombrio da ditadura militar. Preso como
como o criador do revolucionário méto-
“subversivo”, Paulo Freire ficou 75 dias
do de alfabetização que leva o seu nome
numa cela do quartel do Exército em
– o método Paulo Freire.
Olinda. Enviado para o Rio de Janeiro,
Nascido em Recife, a 19 de se- onde foi solto, asilou-se na Embaixa-
tembro de 1921, em uma família peque- da da Bolívia, de onde partiu para um
no-burguesa que, segundo ele próprio, exílio de mais de 15 anos, que incluiu
“lutava fanaticamente para não perder Chile, Estados Unidos – onde lecionou
sua posição de classe” – o que não o im- na prestigiosa Universidade Harvard –,
pediu de viver em primeira mão a dolo- Suíça e Guiné-Bissau. Na África, em
rosa experiência da fome –, Paulo Frei- particular, onde me encontrei com ele
re não via como missão da educação o duas vezes, suas teses inspiraram cam-
mero adestramento da mão de obra para panhas de alfabetização em vários paí-
o mercado de trabalho. Para ele, que ses, particularmente na Guiné-Bissau e
considerava o fenômeno educativo um na Tanzânia.
ato político, cabia à educação desenvol- Dos mais de 50 livros que Paulo
ver o senso crítico de cada aluno com Freire escreveu, o mais famoso é, com
respeito à verdadeira cidadania. toda a certeza, Pedagogia do oprimido,
Formado em Direito e livre-do- publicado em 1970 e traduzido em de-
cente em História e Filosofia da Educa- zenas de idiomas. Essa e outras obras,
ção, foi na década de 40 que Paulo Freire como A educação como prática da li-
iniciou suas experiências com educação berdade, Cartas a Guiné-Bissau, Ação
de adultos em áreas proletárias urbanas cultural para a liberdade, Extensão ou
e rurais, começando a formular o méto- comunicação, Educação e mudança,
do que um dia o tornaria internacional- Medo e ousadia e Pedagogia da pergun-
mente conhecido. No início dos anos 60, ta, valeram-lhe o Prêmio Internacional
Miguel Arraes, então Prefeito de Recife, de Educação, concedido pela UNESCO
Pronunciamentos
Homenagem a Paulo Freire e Anselmo Duarte

em 1975. E também, evidentemente, Paulo Freire, o sociólogo Guerreiro


muita incompreensão. Em 1978, por Ramos e este orador. E a conversa foi
exemplo, seus livros foram proibidos sobre nosso Brasil e seu povo sofrido.
pelos ditadores de plantão na Argenti- Suas palavras ainda hoje estão vivas de
na, acusados de servir como “meio de ensinamentos, numa experiência pedes-
penetração do marxismo nos âmbitos tre e pedagógica que ele generosamen-
educativos” . te distribuiu com outros povos. Foi na
Ao retornar ao nosso país, em Tanzânia, no campus da Universidade
1979, Paulo Freire começa a, como di- de Dar-es-Salaam, que presenciei sua
zia, “reaprender o Brasil”. Longe, po- preocupação espontânea e afetiva com
rém, de renegar suas ideias, reitera sua os necessitados de seu auxílio. Coerente
opção pela educação libertadora, a seu e fiel a seus princípios, ele ensinou tam-
ver a única alternativa à “educação que bém em Guiné-Bissau, onde pude várias
domestica”. Vai lecionar na PUC de São vezes testemunhar sua figura debruçada
sobre estudantes reunidos debaixo de
Paulo e em 1989, aos 67 anos, assume
árvores nas ruas da cidade, recém-saida
seu último cargo público: o de secretário
do colonialismo português. O país ain-
Municipal de Educação de São Paulo no
da não possuía um sistema de educação.
Governo Luísa Erundina.
Paulo Freire trabalhava na organização
Infelizmente, Paulo Freire mor- desse ensino, expandindo a consciência
reu sem que o Brasil sequer tivesse en- de que só a educação liberta. Faço este
frentado com um mínimo de eficácia o registro com o orgulho e a emoção de
desafio de montar um programa sólido render a homenagem e gratidão a um
e abrangente de alfabetização de adul- brasileiro de singular competência pe-
tos das camadas desprivilegiadas de dagógica e de incomparável sentimento
nossa população. Cabe-nos aproveitar de solidariedade humana.
seu legado não apenas como ponto de Depois de um período de baixa,
reflexão, mas sobretudo como ponto de ocasionado pelas dificuldades econô-
partida na abertura de novos caminhos micas geradas com o Plano Collor e o
que nos levem a superar, de uma vez por verdadeiro desmonte das instituiçôes de
todas, esse problema tão grave e tão tí- apoio à cultura ocorrido na gestão da-
pico de nosso subdesenvolvimento. E, quele presidente, o cinema brasileiro co-
nesse processo, construir uma cidadania meça a dar sinais de franca recuperação.
sólida e responsável, ferramenta indis- Sucessos de público e de crítica, filmes
pensável à consolidação da democracia como Pequeno dicionário amoroso ou O
e à concretização do sonho de um Brasil que é isso, companheiro? demonstram
desenvolvido e socialmente justo. cabalmente que as plateias brasileiras,
Pois foi esse sonho que o ilu- embora massacradas por uma produção
minou enquanto caminhava no exílio internacional de gosto muitas vezes du-
injusto que lhe impuseram. Todos exi- vidoso, são capazes de responder com
lados, nos encontramos em Nova York, generosidade quando expostas a um
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

produto nacional feito com qualidade e uma espécie de Copa do Mundo do cine-
técnica. ma. Curiosamente, porém – como mui-
Quis o destino que este momen- tas vezes acontece em nosso país –, o
to em que renasce o cinema brasileiro troféu obtido não lhe escancarou, como
fosse marcado pela homenagem que o seria de esperar, as portas dos subsídios
famoso Festival de Cannes estará fa- e financiamentos para outras produções.
zendo no próximo dia 11 de maio, em Pelo contrário. Polêmico e afirmativo,
sua quinquagésima edição, ao ator e di- Anselmo cultivou calorosamente suas
retor Anselmo Duarte – de quem tenho desavenças com alguns segmentos do
a honra de me considerar um amigo –, cinema, os quais, por sua vez, graças
o único brasileiro laureado com a Pal- à ocasionaI influência de que desfruta-
ma de Ouro, o prêmio máximo desse vam, sempre procuraram interpor todos
festival, pelo filme O pagador de pro- os obstáculos possíveis à sua atividade
messas. Nessa homenagem, Anselmo de criador cinematográfico. Tratava-se,
sem dúvida, de uma controvérsia a res-
Duarte estará na companhia de alguns
peito de concepções artísticas antagôni-
dos mais consagrados diretores de todos
cas, saudável ao processo criativo.
os tempos, como o sueco Ingmar Berg-
man. Fato que se torna ainda mais no- Depois de passar da Atlântida, do
tável quando se sabe que nomes como Rio de Janeiro – onde ganhava mais que
Alan Resnais, Milos Forman, Bernardo Oscarito e Grande Otelo, os grandes su-
Bertolucci, Jean-Luc Goddard. Woody cessos de bilheteria da época –, à Vera
Allen e Peter Greenway não obtiveram Cruz, de São Paulo, que o contratou a
tal indicação. peso de ouro, Anselmo Duarte resol-
veu, aos 37 anos, dedicar-se à carreira
Rodado em 1962, com Leonardo
de diretor. Nessa qualidade, realizou em
Villar e Glória Menezes nos principais
1957, aos 37 anos, seu primeiro filme,
papéis, O pagador de promessas rendeu Absolutamente certo, uma comédia sim-
a Anselmo Duarte todas as alegrias, mas pática e bem narrada, tendo como tema
também a incompreensão e – para faIar os programas de perguntas e respostas,
a verdade com todas as letras – a inveja sucesso de nossa incipiente televisão da
profunda de setores do cinema e da crí- época. Seguiram-se O pagador de pro-
tica que jamais o perdoaram por ter che- messas (1962), Quelé do Pajeú (1969),
gado antes aonde todos queriam chegar. Um certo capitão Rodrigo (1970), O
Impecável do ponto de vista téc- descarte (1973), O crime do Zé Bigor-
nico e artístico, O pagador de promessas na (1977) e Os trombadinhas (1978).
foi exibido em todas as partes do mun- Além dos episódios “O reimplante”, de
do, sempre com a melhor repercussão. O impossível acontece (1970), “Oh! dú-
Isso valeu a Anselmo, em seu retorno ao vida cruel”, de Já não se faz amor como
Brasil após receber o prêmio em Can- antigamente, e “Marido que volta deve
nes, uma recepção calorosa por parte do avisar”, de Ninguém segura essas mu-
público, para o qual a Palma de Ouro era lheres, os dois últimos de 1975.
Pronunciamentos
Homenagem a Paulo Freire e Anselmo Duarte 1

Uma filmografia irregular, sem lhe propiciaram não capitular, mesmo


dúvida alguma, mas com inequívocos diante do criticismo mais cruel e irra-
lampejos de genialidade. Que com cer- cional possam servir de exemplo aos jo-
teza teriam sido muito mais abundantes, vens cineastas que hoje se propõem a ta-
não fosse a disputa menor um traço tão refa, árdua mas compensadora, de criar
característico de nosso provincianismo um cinema nacional ao mesmo tempo
cultural. Resta-nos agora saudar esse popular e de qualidade. Um cinema do
verdadeiro herói do cinema brasileiro e, qual O pagador de promessas constitui,
ao mesmo tempo, desculpar-nos, mes- sem favor algum, o mais acabado para-
mo que tardiamente, pela incompreen- digma.
são de que foi vítima em nossos meios
artísticos. Esperamos que o talento e a
determinação de Anselmo Duarte – que Axé!
O grande ator Aguinaldo Camargo, no papel de Brutus Jones, na peça O imperador Jones, de
Eugene O’Neill, produção de estreia do Teatro Experimental do Negro, Teatro Municipal do
Rio de Janeiro, 1945.
Pronunciamentos
Homenagem a Lima Barreto

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 13 de maio de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Aniversário de Lima Barreto este pronunciamento.

A passagem do dia 13 de maio


tem sido motivo de manifestações diver-
sificadas, tanto na forma quanto no con-
teúdo, ao longo destes quase 110 anos
desde a assinatura, em 1888, da chama-
da Lei Áurea, que pôs fim a mais de 450
anos de escravidão dos africanos e seus
descendentes neste país. Por muito tem-
po essa data foi saudada como um mar-
co da luta pela liberdade em nosso país.
símbolo da pretensa superação, no Bra-
sil, das odiosas barreiras que separam
os diferentes grupos étnicos em todas
as sociedades multirraciais. Nas últimas
décadas, porém, por força da pressão
exercida pelo Movimento Negro, com
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

o apoio de seus aliados nas arenas aca- Nessa ordem, o que menos pesou
dêmica e política, tem-se alterado subs- foram as necessidades dos africanos e
tancialmente a visão dos brasileiros so- afro-brasileiros escravizados. Do con-
bre a significação e a importância dessa trário, não teriam sido sumariamente re-
data, com as previsíveis consequências jeitadas as propostas, como a do ilustre
no caráter das manifestações que sobre engenheiro negro André Rebouças, que
ela se organizam: no lugar da festa, a de- postulavam realizar-se, simultaneamen-
núncia; em vez de louvações à Princesa te com a Abolição, uma reforma agrá-
Isabel, reflexões críticas sobre o tipo de ria. Esta não foi feita então – e acabou
sociedade moldado pela escravidão e a não sendo feita até hoje, gerando graves
pesada herança legada pela forma como problemas no campo, ao lado do incha-
se deu a Abolição e a quem, na verdade, ço de nossas grandes cidades, origem de
ela beneficiou. mazelas como o alto índice de crimina-
lidade urbana, os menores abandona-
Diferentemente da versão edulco-
dos, as favelas e assim por diante. E não
rada da História até pouco tempo atrás
foi feita por um motivo muito simples:
predominante em nossos livros didáti-
desejava-se garantir a existência de uma
cos – e na qual muita gente ainda acre-
reserva de mão de obra barata, o que não
dita, ou finge acreditar –, os motivos
seria possível se os negros libertos se
que levaram à Abolição se encontram transformassem em pequenos proprietá-
no terreno da política e da economia. rios rurais. Desse modo, o 13 de maio
Nada têm a ver com a proclamada bene- de 1888 significou uma grande farsa,
volência da família imperial, obrigada a na verdade a maior de nossa História.
extinguir a instituição escravista sob a Uma farsa que jogou a população afro-
pressão de forças históricas irresistíveis. -brasileira na rua da amargura, de onde,
Dentre elas se destacam a Revolução cem anos depois, ela continua tentando
lndustrial – que provocou a obsolescên- desesperadamente escapar.
cia do modo de produção escravista –,
Quis o destino que exatamente
mas, principalmente, a resistência dos
num 13 de maio, no ano de 1881 – sete
próprios negros, que com o tempo foi
anos, portanto, antes de se pôr fim à es-
ganhando mais e mais aliados e simpa- cravidão –, viesse à luz na cidade do
tizantes entre os segmentos mais sensí- Rio de Janeiro, se não o maior escritor
veis de nossas elites intelectual e polí- afro-brasileiro de todos os tempos, cer-
tica. tamente uma das maiores expressões de
Realizada, bem ao gosto dos nossa literatura, independente de origem
poderosos deste país, num ritmo lento étnica, e talvez o crítico mais contun-
muito lento, na verdade –, gradual e “se- dente das mazelas de nossa sociedade,
guro”, a Abolição acabou resguardando sobretudo de nossas elites. Refiro-me a
os interesses dos grandes fazendeiros e Afonso Henriques de Lima Barreto, a
senhores de escravos, e também de nos- quem convido a todos a render nossas
sa então incipiente burguesia industrial. homenagens no dia de hoje.
Afonso Henriques de Lima Barreto. Foto reproduzida do livro A mão afro-brasileira.
Pronunciamentos
Homenagem a Lima Barreto

Homem de grande cultura, adqui- Com efeito, para Lima Barreto, a


rida fundamentalmente como autodida- função da literatura e do jornalismo era
ta, humilde funcionário público que se “tentar reformar certas usanças, suge-
tomou jornalista e escritor, a vida de rir dúvidas, levantar julgamentos ador-
Lima Barreto foi uma constante batalha mecidos, difundir as nossas grandes e
contra as condições adversas impostas à altas emoções em face do mundo e do
população afro-brasileira em sua época. sofrimento dos homens, para soldar, li-
Situação que, infelizmente, não mudou gar a humanidade em uma maior”. Tais
preocupações fizeram dele um homem
substancialmente nas sete décadas que
antenado não apenas com o seu tempo,
nos separam de sua morte prematura,
mas também com o futuro. Capaz de an-
aos 41 anos de idade. Dono de uma obra
tever, por exemplo, os problemas eco-
extensa e variada, que o levou a se can- lógicos que o Rio de Janeiro enfrentaria
didatar, sem êxito, à Academia Brasilei- muitas décadas depois, prenunciados
ra de Letras, seu talento e valor literário em artigos em que apontava a desfigu-
só seriam reconhecidos muito tempo ração da cidade por obra da especulação
depois, consagrando-o, apesar de tudo, imobiliária, com o indispensável apoio
como um vencedor. das autoridades municipais. Que, no afã
Nascido antes da Abolição e tendo de “remodelar” a então capital federal,
vivido as incertezas que caracterizaram derrubavam florestas, aterravam a baía
os primórdios de uma República que, de Guanabara, especulavam com os ter-
em certos aspectos, se mostrava ainda renos então pantanosos de Copacabana,
mais reacionária do que a Monarquia Ipanema e Leblon, dando início a um
que viera substituir, Lima Barreto não processo de ocupação desordenada do
solo urbano que responde por grande
só testemunhou como deu ressonância
parte dos problemas mais sérios que o
aos conflitos e dissabores do seu tempo.
Rio enfrenta em nossos dias.
Inconformado com a podridão do mun-
do que o cercava, fez do jornalismo e da Voz solitária em seus ataques
contra os especuladores e a degradação
literatura suas armas na luta sem tréguas
do meio ambiente, Lima Barreto foi um
que travou diuturnamente contra a elite
crítico feroz da macaqueação arquitetô-
encastelada nas posições de poder deste
nica que pretendia fazer do Rio de Ja-
país. Ao mesmo tempo, como afirmou neiro uma cópia de Nova York e seus
Monteiro Lobato, com tanta ou mais arranha-céus: “Por mera imitação da-
maestria do que Machado de Assis – ou- quela aglomeração humana, enchemos
tro afro-brasileiro guindado pelo talento o Rio de Janeiro de descabelados sobra-
aos píncaros de nossa literatura –, Lima dos insolentes de cinco, seis andares (...)
Barreto foi o cronista da gente simples Uma cidade como a nossa, semeada de
como ele, pois fugia da literatura mera- colinas pitorescas, arborizadas ou não,
mente contemplativa, bem como à ino- que formam seu verdadeiro encanto, se
perância social do texto. se seguirem essas construções, em bre-
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

ve ela perderá seus horizontes originais ferante a força reacionária que impedia,
(...),” Apesar das advertências de Lima entre nós, as reformas tornadas inadiá-
Barreto, dia a dia o Rio de Janeiro vai veis pelos novos tempos, desmascarou
perdendo seus encantos em favor da es- sua aliança com os plutocratas e latifun-
peculação imobiliária e de outras espe- diários da aristocracia rural, e por diver-
culações, sas vezes se manifestou favorável a uma
Em outro artigo, publicado em revolução no Estatuto da Terra, Também
1921, Lima Barreto fornece uma som- se interessou pelos Estados Unidos, de-
bria e precisa antevisão do futuro da- vido ao tratamento desumano de que
quela e de outras cidades brasileiras: “A então eram vítimas os afro-americanos,
megalomania dos melhoramentos atraiu Censurou duramente o expansionismo
para a cidade milhares e milhares de tra- imperialista daquele país que, por meio
balhadores rurais, E com o aumento da da “diplomacia do dólar”, ia, em sua
população, outros problemas se acres- perspectiva, convertendo o Brasil num
centam: o da água, o dos esgotos, o dos autêntico protetorado,
transportes”. Pode-se constatar, assim, Outro alvo predileto dos ataques
que os problemas hoje enfrentados pela do grande escritor era o futebol, que ele
antiga capital, envolvendo o bem-estar ridicularizava em suas crônicas com
social, o planejamento urbano e a pre- todo o sarcasmo de que era capaz. An-
servação da natureza, foram anunciados tes que alguém aponte nisso uma con-
nos primeiros decênios deste século tradição, por ser ele tão ligado às coisas
pela visão profética de Lima Barreto. do povo, deve-se ter em conta que esse
Muito antes de esses mesmos problemas esporte não era então absolutamente po-
desqualificarem essa cidade em suas pular, Pelo contrário: tratava-se de um
pretensões de sediar os primeiros Jogos esporte de elite, cujo acesso tentava-se
Olímpicos do século XXI. vedar aos pobres, em geral, e aos ne-
Embora não chegasse a ser pro- gros, em particular. Daí a sagrada fú-
priamente um marxista – foi mais in- ria com que Lima Barreto tratava seus
fluenciado pelo liberalismo spenceriano praticantes, fúria essa que só fez crescer
e pelo anarquismo de Kropotkin –, pou- quando o Presidente Epitácio Pessoa to-
cos souberam em sua época reconhecer a mou a iniciativa de proibir a convoca-
significação política da Revolução Rus- ção de jogadores negros para a seleção
sa de 1917. Assim como poucos tiveram brasileira que participaria de um torneio
tanta lucidez ao analisar os problemas internacional.
sociais do período imediatamente sub- A polícia de então, precursora da
sequente à Primeira Guerra Mundial. instituição que hoje nos acostumamos
Seus escritos sempre manifestavam a a ver associada à tortura e ao massacre
sincera intenção de libertar as massas, o de pessoas indefesas, não poderia esca-
que acabaria por torná-lo partidário do par ao garrote de sua pena: “A polícia
maximalismo, Vendo na burguesia legi- da República” – escreveu Lima Barreto
Pronunciamentos
Homenagem a Lima Barreto 1

no conto “Como o ‘homem’ chegou” – é te pelos amantes das letras, mas também
paternal e compassiva no tratamento das pelos simpatizantes de todas as causas
pessoas humildes que dela necessitam; e libertárias neste país, a vida de Lima
sempre, quer se trate de humildes, quer Barreto foi uma verdadeira síntese das
de poderosos, a velha instituição cum- injustiças e sofrimentos que marcam até
pre religiosamente a lei. Vem-lhe daí o hoje a existência do povo afro-brasilei-
respeito que aos políticos os seus em- ro. Sua mãe morreu em 1887, vítima de
pregados tributam e a procura que ela tuberculose galopante, doença que gras-
merece desses homens, quase sempre sava nos cortiços do Rio e cujo comba-
interessados no cumprimento das leis te as autoridades sanitárias preteriram
que discutam e votam”. Atualíssimo, em favor da luta contra a febre amare-
como se vê, inclusive na referência à la. Explica-se: enquanto esta vitimava
classe política. os brancos, sobretudo imigrantes, que
não haviam desenvolvido os anticorpos
República dos Bruzundangas –
correspondentes, aquela atacava prefe-
esse o termo cunhado pelo sarcasmo de
rencialmente os negros, cuja condição
Lima Barreto para cognominar o Brasil
financeira não favorecia os cuidados hi-
de então, que desafortunadamente conti-
giênicos e alimentares capazes de prote-
nua a ser o Brasil de hoje: república das
gê-los. Com todas as dificuldades, Lima
falcatruas, das trapalhadas, dos concha- Barreto ingressa, em 1897, na prestigio-
vos. Enquanto nos tempos coloniais os sa Escola Politécnica do Rio de Janeiro,
poetas comparavam o Brasil, por seus em busca de um diploma de Engenharia
contornos geográficos, a uma harpa, que jamais conseguiria obter: como se
Lima Barreto o via como um presunto, e não bastasse a perseguição declarada
assim explicava sua alegoria: “Até aqui de professores confessadamente racis-
não tinha sido comido. Mas tem sido ro- tas, em 1903 seu pai fica louco, o que
ído. Roem-no os de fora. Roem-no os de o obriga a abandonar os estudos para
dentro. Mas não há meio, quer uns, quer sustentar a família. É quando começa a
outros, de o deglutirem completamente. trabalhar no Ministério da Guerra como
O diabo da perna de porco resiste à vo- simples amanuense, função humilde
racidade interna e externa de uma ma- que desempenhará – a despeito de sua
neira perfeitamente milagrosa”. Vivesse cultura – até ser aposentado em 1918,
em nossos dias, decerto que Lima Bar- como “inválido para o serviço público”,
reto iria juntar-se, em sua indignação, às em razão do alcoolismo. O mesmo vício
fileiras da luta contra o entreguismo dos que já o levara algumas vezes ao hospí-
que, em sua fúria globalizante e supos- cio e que acabaria contribuindo para sua
tamente modernizadora, exercitam os morte prematura, em 1922, por colapso
dentes roendo, sem muito pudor, o pa- cardíaco.
trimônio nacional. Sobre esse talentoso e sofrido
Se toda essa competência e co·· escritor, o renomado crítico Jackson de
ragem o tornariam admirado não somen- Figueiredo emitiu esta opinião: “Lima
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

Barreto é, entre nós, na verdade o tipo Lima Barreto, essa é uma história trági-
perfeito de analista social, mas um ana- ca, de sofrimento e revolta, de cruelda-
lista que combate, que não ficou como de, desespero e ódio. Mas também – e
Machado de Assis, por exemplo, no talvez mais que tudo – de imenso amor
Círculo de uma timidez intelectual es- por uma terra que nós inventamos com
quiva ao julgamento. Ele não se limita trabalho e sangue, que nós construímos
a mostrar todos os fundos da cena, o com nossos bagos de esperma e lágri-
que vai pelos bastidores da vida; toma mas e esperanças, mas que, em troca, só
partido, assinala os autores que falam a nos tem dado odesprezo, a humilhação,
linguagem da verdade, mostra o que há a exclusão. Graças, porém, à luta tenaz
de falso, de mentiroso na linguagem dos de homens como Lima Barreto, compe-
outros ( ... ). Não tem as delicadezas, tentes desmistificadores das verdades
as intenções filosóficas de Machado de oficiais, o Brasil vem pouco a pouco
Assis, veladas pelo sorriso cético. Antes tomando consciência de seus problemas
é um forte, chicoteia os vendilhões da mais graves – o racismo dentre eles –
dignidade nacional”. e procurando maneiras de resolvê-los.
A prolífica obra de Lima Barre- Nossa homenagem, pois, neste 13 de
to inclui os romances Recordações do maio, a esse grande negro, a esse gran-
escrivão Isaías Caminha, Triste fim de de escritor, a esse grande brasi1eiro, na
Policarpo Quaresma, Numa e a ninfa, certeza de que, onde quer que ele esteja,
Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá e há de estar feliz vendo crescer o número
Clara dos Anjos, além da sátira Os Bru- de brasileiros em geral, e de afro-brasi-
zundangas e de numerosos contos e crô- leiros em particular, engajados de corpo
nicas reunidos em diversas coletâneas. e alma na busca de cura para as mazelas
que sua pena magistral acuradamente
A melhor versão da nossa histó-
apontava, há tantas e tantas décadas.
ria de africanos e de afro-brasileiros,
só nós mesmos, com nossas razões de
vida, podemos contar. Na versão de
Axé!
Foto: Elisa Larkin Nascimento

Mãe Hilda, sacerdotisa baiana (montada), sobe com Tosta Passarinho (esquerda), Abdias Nascimento (centro)
e outros companheiros a serra da Barriga para executar as primeiras cerimônias religiosas lá realizadas em
homenagem aos ancestrais, em 20 de novembro de 1982.
Pronunciamentos
Dia Internacional de Solidariedade aos
Povos da África Austral

Discurso lido no Senado Federal Senhor Presidente,


em 22 de maio de 1997 pelo senador Senhoras e Senhores Senadores,
Sebastião Rocha a pedido do
Sob a proteção de Olorum, inicio
senador Abdias Nascimento
este meu pronunciamento.

Dia Internacional de Solidariedade Nos últimos anos, os meios de


aos Povos da África Austral comunicação tornaram tragicamente
comuns imagens que retratam um Con-
tinente Africano afligido pelo extremo
sofrimento humano e por agudas difi-
culdades nos planos político e econô-
mico. Imagens de fato tão comuns que
acabaram por sedimentar uma percep-
ção distorcida daquele Continente, ali-
mentando os preconceitos desenvol-
vidos durante a longa noite de cinco
séculos que tem como marco inicial a
captura e escravização de africanos por
portugueses na costa do atual Senegal,
em fins do século XV, ponto de partida
de um cruel processo de exploração que
iria drenar a África de seus maiores re-
cursos materiais e humanos. Espoliado
por mais de 500 anos, não surpreende
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

que os insucessos do Continente Afri- traçados artificialmente pela pena do


cano acabassem justificando a visão colonizador, que obrigou a conviver sob
racista que considera os africanos in- a mesma bandeira grupos étnicos cuja
capazes de constituir Estados viáveis e rivalidade remonta à aurora dos tempos.
prósperos. Mesmo que tal capacidade Com o fim da Guerra Fria e a
tenha sido sobejamente demonstrada queda do regime do apartheid na África
pela História das grandes civilizações do Sul, o Continente Africano perdeu o
que se desenvolveram ao norte e ao sul papel estratégico que exercia no conflito
do Saara, como o Antigo Egito, os Rei- de interesses entre os blocos comunista
nos de Axum e de Gana, os Impérios do e capitalista. Some-se a isso o proces-
Mali e de Songhai, brilhantes exemplos so de reordenação econômica do Oci-
da capacidade criativa e de organização
dente, com o estabelecimento de novas
dos povos africanos. Uma História, in-
prioridades pelos Estados Unidos e pela
felizmente, apagada da memória dos
Comunidade Econômica Europeia” e a
europeus e dos africanos na Diáspora,
implementação da famigerada “globali-
substituída por uma visão estática e uni-
zação”, cujos efeitos adversos estamos
formizadora, que enxerga na África um
sentindo na própria pele neste país, e
Continente das Sombras, um Continente
teremos um quadro sombrio que, para
sem História.
ser revertido, demandará os esforços
Na verdade, a situação adversa concentrados de gerações e gerações de
em que se encontra a virtual totalidade africanos, bem como o apoio concreto
do Continente Africano tem raízes exa- de organismos internacionais dedicados
tamente na invasão europeia, iniciada
à superação da pobreza e dos males a ela
cinco séculos atrás, e na “colonização”
associados.
empreendida pelos europeus. Sob o pre-
texto de “civilizar” povos pretensamente Assim, para nós africano-brasi-
bárbaros – o “fardo do homem branco”, leiros, este 25 de maio, Dia Internacio-
na formulação do escritor anglo-indiano nal de Solidariedade aos Povos da Áfri-
Rudyard Kipling –, pôs-se em marcha ca Austral, ou Dia da África, instituído
um processo cruel de dominação e ex- pela ONU em 1972, assume um especial
clusão, responsável pela maioria dos significado, ligados que estamos àquela
males de que a África hoje padece. O to- região pelos laços da cultura e do espí-
tal desrespeito à cultura autóctone, cuja rito, transmitidos por nossos antepassa-
própria existência se chegou a negar, e dos de lá provenientes. Ao longo destes
a tradições milenarmente estabelecidas últimos 30 anos, venho acompanhando
levaria à criação de unidades territoriais os esforços da maioria dos países afri-
descompromissadas com a realidade canos na tentativa de construir os alicer-
étnica de cada região. O que explica ces de um desenvolvimento econômico
conflitos como o de Biafra, na Nigéria e social capaz de superar a devastação
dos anos 70, ou a atual tragédia que se causada pelo colonialismo. A luta pela
abate sobre Ruanda e o Burundi, países libertação da África constituiu-se, na
Senador Sebastião Rocha no Plenário do Senado Federal lendo o discurso do senador Abdias Nascimento que, encontran-
do-se em Paris, não pode estar presente para homenagear os povos da África, e também os africano-brasileiros, em função
do dia 25 de maio, considerado o Dia Internacional de Solidariedade aos Povos da África Austral. O dia 25 de maio é
reconhecido pela ONU desde 1972 como o Dia da África.
Pronunciamentos
Dia Internacional de Solidariedade aos
Povos da África Austral

verdade, num processo continental de Nós brasileiros, mais que qual-


marginalização, pois, ao mesmo tem- quer outro povo, não podemos ficar in-
po em que se assinavam os tratados de diferentes aos problemas que afligem o
independência, e em que os povos e Continente Africano. Pois foram africa-
líderes africanos eram tomados de es- nos os que, com sangue, suor e sêmen,
perança, na perspectiva de recuperar a construíram este país que chamamos
condução de seus próprios destinos e de Brasil, fazendo dele a maior nação afri-
reconstruir um passado de glórias, os pa- cana fora da África. Africanos oriundos,
íses colonialistas europeus, em conjunto em sua maioria, exatamente da África
com os Estados Unidos e a África do Austral, onde hoje se situam Angola,
Sul do apartheid, estimulavam os con- Moçambique e África do Sul, além da-
flitos internos, visando a preservação queles provenientes da Costa do Ouro,
de interesses nem sempre explicitados. onde ficam atualmente Nigéria e Gana,
Os mesmos interesses que não hesita- É tempo, assim, não só de reconhecer e
riam em eliminar, até mesmo fisicamen- valorizar plenamente o legado africa-
te, lideranças plenamente engajadas na no, por muito tempo oculto e negado,
autêntica luta do povo africano – como mas de reavivar os laços históricos que
Patrice Lumumba, no ex-Congo Belga, nos ligam ao continente de origem de
Eduardo Mondlane e Samora Machel, mais de metade da população brasileira.
em Moçambique, ou Amílcar Cabral, na Numa época em que solidariedade e co-
Guiné-Bissau –, substituídas muitas ve- operação são termos consolidados pela
zes por títeres a serviço do imperialismo agenda internacional, nosso país tem se
europeu ou norte-americano. mostrado tímido – para dizer o mínimo
Em 1977 o saudoso e ilustre re- – em matéria de iniciativas dessa nature-
volucionário e então presidente Samo- za em relação à África Austral.
ra Machel, em discurso durante uma Com o fim do apartheid na África
reunião do Conselho de Ministros da do Sul – regime cuja condenação, pelo
República Popular de Moçambique, Brasil, nunca ultrapassou o terreno da
manifestou com clarividente objetivi- retórica –, nossa diplomacia tem campo
dade sua preocupação com os destinos aberto para se mostrar mais engajada,
de seu país e da África como um todo aproveitando as imensas e variadas pos-
ao afirmar que os africanos se recusa- sibilidades em termos econômicos, tec-
vam a serem os eternos fornecedores nológicos, pedagógicos e culturais em
de matérias-primas, a serem as eternas relação àquela parcela do Continente
vítimas de um pacto colonial sob novas Africano. Se temos uma economia rela-
roupagens. E que não poderiam continu- tivamente privilegiada no contexto dos
ar pagando preços mais elevados pelos países do Sul, é exatamente nesses pa-
produtos acabados que compravam, ao íses que devemos potencializar nossas
mesmo tempo em que eram obrigados relações e capacidade de influência. Ao
a vender cada vez mais barato sua força contrário dos países do Norte, para os
de trabalho. quais a África Austral é meramente um
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

terreno minado de incertezas, devemos ticular, e da África de maneira geral,


buscar ali parcerias estratégicas para a manifestando-lhes a amizade dos afro-
concretização de amplas e promissoras -brasileiros e nosso compromisso com a
possibilidades, num processo que sem redenção do Continente Africano. É mi-
dúvida contribuirá para reformularmos nha convicção que, para o nosso povo
em conjunto as bases de nosso desen- e para o nosso país, o reencontro com a
volvimento econômico recíproco. África vai proporcionar, para além dos
Desse modo, neste Dia Interna- lucros possíveis numa relação econô-
cional de Solidariedade aos Povos da mica, a retomada da solidariedade de
África Austral, o Dia da África, quan- povos que a História irmanou e que ela
do se avizinham as passagens de século hoje reaproxima, na luta comum contra
e de milênio, quero homenagear, por a pobreza e pelo desenvolvimento.
meio de seus representantes diplomá-
ticos, os países dessa região, em par-
Axé!
Pronunciamentos
Reunião do Conselho de Ministros da Comunidade 1
dos Países de Língua Portuguesa

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 24 de julho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
Reunião do Conselho de Ministros
da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa
Acostumado a assumir esta tribu-
na para criticar com veemência as polí-
ticas historicamente adotadas pelo Go-
verno brasileiro em suas relações com
os africanos e seus descendentes, dos
dois lados do Atlântico, é com satisfa-
ção que hoje faço uso da palavra para
saudar o que parece ser o início de uma
nova postura oficial de nosso país no
que diz respeito à África
Semana passada, nos dias 17 e
18, por designação do·presidente Antô-
nio Carlos Magalhães, tive a honra de
representar esta Casa, na qualidade de
observador, na Reunião do Conselho
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

de Ministros da Comunidade dos Paí- A reunião de Salvador, contu-


ses de Língua Portuguesa (CPLP), rea- do, atesta, se não a radical mudança de
lizada em Salvador, com a presença de orientação que temos por tanto tempo
representantes de Angola, Cabo Verde, reclamado, ao menos um sinal significa-
Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e tivo de que novos ventos estão soprando
São Tomé e Príncipe, além do Brasil, o sobre as cabeças dos formuladores da
anfitrião. O principal objetivo do encon- política externa deste País. Em seu dis-
tro foi avaliar as ações até aqui desen- curso de boas-vindas, nosso ministro das
volvidas pela organização, cuja finalida- Relações Exteriores, embaixador Luiz
de precípua é consolidar, desenvolver e Felipe Lampreia – eleito para ocupar o
valorizar os laços históricos entre os pa- cargo de presidente do Conselho de Mi-
íses-membros, com base nos princípios nistros da CPLP –, fez questão de enfati-
compartilhados de paz, democracia, jus- zar o papel que se espera da Comunida-
tiça social e progresso econômico. de dos Países de Língua Portuguesa: um
instrumento eficaz de ação diplomática,
Como tenho afirmado reiteradas
no âmbito dos países-membros e entre
vezes, não apenas nos discursos aqui estes e o resto do mundo, de modo a se
proferidos, mas ao longo da minha ex- transformar, de maneira gradual mas
tensa carreira de militante pela causa ne- efetiva, numa força em favor de seus
gra, o Brasil tem para com a África um componentes, ajudando-os a melhor
débito tão grande que se pode conside- projetar e defender, na base do consen-
rá-lo irresgatável. Pois, embora os afri- so, seus interesses comuns na arena in-
canos e seus descendentes tenham sido, ternacional.
quer na situação de escravizados ou de
Na verdade, a cooperação entre o
homens livres, os verdadeiros responsá- Brasil e a África lusófona não está co-
veis pela construção deste país, o Brasil meçando agora, mas teve início nos anos
jamais se preocupou em procurar retri- 70, em pleno governo militar, sob a égi-
buir-lhes, de forma concreta ou simbó- de da política oportunista denominada
lica, pelo sangue, suor e sêmen com que “pragmatismo responsável”. Centrada
fertilizaram esta nossa terra. Ao contrá- numa perspectiva mercantilista, que via
rio: enquanto aos afro-brasileiros se tem a África como potencial mercado para
reservado uma humilhante posição de os produtos brasileiros, essa política
subalternidade, alicerçada no precon- deu espaço a algumas iniciativas posi-
ceito e na discriminação, a política afri- tivas no campo da cooperação cultural,
cana do ltamaraty se tem caracterizado embora excessivamente tímidas e frag-
historicamente, ora pelo alinhamento às mentárias para serem vistas como parte
forças reacionárias do colonialismo, ora de um esforço sério e consequente. As
por um maldisfarçado oportunismo que novas nações africanas, especialmente
utiliza os liames etno-históricos como as de língua portuguesa, sempre alimen-
instrumentos de abordagem de uma po- taram uma enorme espectativa quanto à
lítica predatória e irresponsável. contribuição do Brasil em seu processo
Pronunciamentos
Reunião do Conselho de Ministros da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa

de reconstrução e desenvolvimento. Um profissional. Com Cabo Verde, será de-


dos principais fatores a alimentar essa senvolvido um projeto de modernização
expectativa é o fato de o Brasil haver administrativa no serviço público, além
desenvolvido uma tecnologia dita “in- de sistemas informatizados de recursos
termediária”, mais adaptada às condi- humanos. Trata-se, aqui, de reativar
ções humanas, climáticas e infraestru- uma área de cooperação que já demons-
turais do chamado Terceiro Mundo do trou sua oportunidade e viabilidade.
que a tecnologia de ponta elaborada nos Com a Guiné-Bissau, será realizado um
Estados Unidos ou na Europa. projeto-piloto de cooperação no âmbito
Assim, uma das boas novidades do programa especial de segurança ali-
mentar da FAO – um projeto inovador,
do encontro de Salvador foi a apre-
que pela primeira vez o Brasil tenta im-
sentação, pelo Brasil, de uma pauta de
plementar em parceria com outro país.
propostas concretas de cooperação em
A formação de recursos humanos em
áreas sensíveis e consequentes para o
mineração constitui o objeto do projeto
desenvolvimento de nossos parceiros
de cooperação com Moçambique, en-
africanos. Dela constam dez projetos a
volvendo um setor que apresenta não
serem desenvolvidos nas áreas de saú-
apenas uma importância central para
de, educação, agricultura, formação de
a economia daquele país, mas também
recursos humanos, modernização admi- um bom potencial de intercâmbio com
nistrativa e segurança alimentar. Desses o Brasil. Por fim, mas não menos im-
projetos, três são multilaterais, envol- portante, o projeto a ser desenvolvido
vendo o Brasil, de um lado, e, de outro, com São Tomé e Príncipe está voltado
todos os países africanos de língua ofi- à melhoria do sistema de ensino básico
cial portuguesa – os chamados PALOPs: daquele país, com o propósito de con-
um projeto de desenvolvimento integra- tribuir para aperfeiçoar a qualidade do
do da mandioca, um projeto na área de ensino e, ao mesmo tempo, valorizar a
prevenção e profilaxia da AIDS e um língua portuguesa como instrumento de
projeto de cooperação em treinamento educação e de formação.
e desenvolvimento de tecnologia para
A ideia é que esses projetos, cujo
apoio em políticas de saúde e cuidados orçamento total é da ordem de 3 milhões
primários. Os sete projetos restantes de- de dólares, constituam o ponto de parti-
verão ser desenvolvidos em bases bila- da de um grande programa de coopera-
terais com cada um dos PALOPs. ção, ao qual se deseja trazer o aporte de
Três deles envolvem Angola, nas outros países ou instituições internacio-
áreas de atendimento a crianças e adoles- nais que deles desejem participar dentro
centes em circunstâncias particularmente do espírito de solidariedade construtiva
difíceis, desenvolvimento de políticas que inspira a Comunidade dos Países
sociais destinadas à reinserção dos des- de Língua Portuguesa. Comprovando
locados, repatriados e desmobilizados e que essa cooperação é politicamente
criação de um centro móvel de formação desejável e tecnicamente factível, esses
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

projetos deverão lançar, nas palavras do balhos, os ministros assinaram o Acordo


ministro Lampreia, as bases de uma con- de Cooperação entre os Governos Inte-
tinuada e crescente cooperação futura. grantes da Comunidade dos Países de
Num mundo que cada vez mais se Língua Portuguesa para a Redução da
organiza em blocos cimentados pela po- Demanda, Prevenção do Uso Indevido e
lítica e a economia, a Comunidade dos Combate à Produção e ao Tráfico Ilícito
Países de Língua Portuguesa tem, sem de Entorpecentes e Substâncias Psico-
dúvida alguma, um importante papel trópicas.
a exercer. Temas globais como o meio Embora alvissareiras, as boas-no-
ambiente, o crime organizado, os direi- vas da reunião de Salvador representam,
tos humanos, a reforma das Nações Uni- em nossa visão de afro-brasileiro, ape-
das, a integração econômica, o impac- nas um início, ainda úmido e hesitante,
to da globalização sobre as economias no rumo de uma política africana capaz
emergentes, o reforço das instituições de fazer jus às expectativas acumuladas
financeiras internacionais demandam em décadas de omissão, oportunismo e
não apenas posições concertadas, mas irresponsabilidade. Sabemos também
igualmente uma identidade comunitá- que, no próprio seio do Governo e, mais
ria que fortaleça a posição individual de especificamente, do ltamaraty, setores
cada país na mesa de negociações. inconformados trabalham na surdina
Além dessa pauta específica, a para boicotar essa iniciativa, na visão
reunião de Salvador discutiu também a estreita de que ela implicaria o desper-
grave situação política de Angola, onde dício de recursos físicos e humanos em
as forças da UNITA teimam em desobe- projetos que beneficiariam unilateral-
decer o Protocolo de Lusaka e as resolu- mente nossos parceiros africanos. Os
ções pertinentes do Conselho de Segu- adeptos dessa postura ignoram – ou
rança da ONU. Fez-se um apelo ao líder fingem ignorar – os ganhos, sobretu-
da UNITA para que apresente à Missão do políticos, a serem obtidos por nosso
de Observação das Nações Unidas em País com a consolidação desse bloco de
Angola todos os efetivos militares que nações. Como, por exemplo, a concre-
escaparam ao controle da ONU com vis- tização do desejo do Brasil de integrar,
tas a serem desmobilizados, permitindo como membro permanente, o Conselho
dessa forma a extensão, sem sobressal- de Segurança das Nações Unidas, que
tos, da administração do Estado a todo tem o pleno apoio dos países-membros
o território nacional, bem como a livre da nova organização. Ao mesmo tempo,
circulação de bens e de pessoas. Foi a inevitável superação dos problemas
também reafirmado o apoio à autodeter- mais graves que afetam os PALOPs tra-
minação do povo do Timor Leste, com rá como consequência a abertura de no-
votos de congratulações ao Dr. Ramos vas oportunidades na área econômica,
Horta e ao bispo D. Ximenes Belo pelo oportunidades essas que o Brasil estará
Prêmio Nobel da Paz. Ao final dos tra- em condições privilegiadas de usufruir.
Pronunciamentos
Reunião do Conselho de Ministros da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa

Resta também assinalar a eficien- [ANEXO]


te organização do evento, sob a compe-
tente responsabilidade do embaixador COMUNICADO FINAL
Ivan Cannabrava. O governador Paulo DA REUNIÃO DO CONSELHO
Souto deu aos participantes da reunião DE MINISTROS DA
o acolhimento proverbial do povo baia- COMUNIDADE DOS PAÍSES
no: gentileza e afeto tão de acordo com DE LÍNGUA PORTUGUESA
a beleza e a poesia daquela cidade ver-
dadeiramente africana. 1. Os Ministros das Relações Ex-
Assim, embora muito reste a ser teriores e dos Negócios Estrangeiros
feito, quero exprimir uma vez mais mi- de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-
nha satisfação pelo papel que o Brasil -Bissau, Moçambique, Portugal e São
começa a exercer em suas relações com Tomé e Príncipe reuniram-se na cidade
os países africanos de língua portugue- de. Salvador, Brasil, em 17 e 18 de julho
sa. Que a reunião de Salvador possa ser de 1997, com a presença do Secretário
saudada, num futuro próximo, como o Executivo da CPLP. Na ocasião foi elei-
marco inicial de uma nova era de coope- to o Ministro das Relações Exteriores
ração e intercâmbio entre esses povos, do Brasil para ocupar a Presidência do
unidos pela língua e pela história Conselho de Ministros.
Antes de encerrar, quero solici- 2. Os Ministros registraram com
tar ao Senhor Presidente que se inclua, apreço o relatório apresentado pela Pre-
como parte deste meu discurso, o Co- sidência cessante portuguesa, designa-
municado Final da Reunião do Conse- damente no que se refere à instalação do
lho de Ministros da Comunidade dos Secretariado Executivo, inauguração da
Países de Língua Portuguesa, para que respectiva sede e montagem da arquite-
este possa constar dos Anais desta Casa. tura jurídica e financeira da Organiza-
ção, que permitiu a institucionalização
e o arranque das atividades da Comuni-
Axé! dade.
3. Os Ministros passaram em re-
vista as atividades desenvolvidas no
âmbito da CPLP e, em particular, o pla-
no de atividades do Secretariado Exe-
cutivo aprovado pela reunião Ministe-
rial de Nova York, aos 26 de setembro
de 1996, e reafirmaram a sua confiança
na Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa como instrumento privile-
giado para consolidar, desenvolver e
valorizar os laços históricos comuns,
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

com base nos princípios compartilhados 6. Os Ministros registraram com


de paz, democracia, justiça social e pro- satisfação a eleição de Portugal para
gresso econômico. o Conselho de Segurança das Nações
4. Os Ministros tomaram conhe- Unidas, que mereceu o apoio dos Es-
cimento das ações levadas a cabo pe- tados-Membros. A presença de Portugal
los órgãos da Comunidade para imple- naquele órgão da ONU, juntamente com
mentar as decisões e recomendações o segundo ano do mandato da Guiné-Bis-
emanadas da Conferência de Chefes sau, reforça a visibilidade internacional
de Estado e de Governo e do Conselho da CPLP e a sua capacidade de interven-
de Ministros no âmbito das orientações ção no sistema das Nações Unidas.
gerais expressas na Declaração Consti- 7. Os Ministros escutaram a in-
tutiva e nos Estatutos, designadamente formação prestada pelo Ministro das
para incrementar a cooperação em todos Relações Exteriores de Angola e mani-
os níveis – cultural, econômico, social, festaram a sua preocupação pela grave
científico e jurídico-institucional –, bem situação que põe em causa a implemen-
como a concertação político-diplomáti- tação integral do Protocolo de Lusaka.
ca. Assim, os Ministros registraram com Nesse contexto, reiteraram o seu apoio
agrado a realização de diversas reuniões às Resoluções pertinentes do Conse-
setoriais, tendo instruído o Comitê de lho de Segurança das Nações Unidas,
Concertação Permanente e o Secretaria- nomeadamente a Resolução nº 864 e a
do Executivo para acompanharem a im- nº 1.118/97, que enunciaram um con-
plementação das resoluções pertinentes. junto de medidas, em particular contra
5. Os Ministros reiteraram a ne- a UNITA, e a declaração da mediação
cessidade de reforçar os mecanismos de e da Troika de 14 de julho de 1997, em
concertação político-diplomática entre que são condenados com a maior ener-
os Estados-Membros no sentido de pre- gia atos negativos recentemente pratica-
servar os seus legítimos interesses no dos por aquele movimento. Com efeito,
cenário internacional, em particular no apelaram ao líder da UNITA para que
processo de reforma em curso no siste- apresente à Missão de Observação das
ma das Nações Unidas e nas organiza- Nações Unidas em Angola (MONUA)
ções regionais de que são membros. Na todos os efetivos militares que escapa-
perspectiva do alargamento do número ram ao controle das Nações Unidas com
de membros permanentes do Conselho vistas a serem desmobilizados, permi-
de Segurança das Nações Unidas, de tindo, desta forma, a extensão sem so-
forma a assegurar a integração de três bressaltos da Administração do Estado a
países em desenvolvimento e mais dois todo território nacional e a livre circula-
países desenvolvidos, os Ministros rea- ção de pessoas e bens.
firmaram o seu desejo de apoiar a inclu- 8. Os Ministros reafirmaram seu
são do Brasil como membro permanente apoio à autodeterminação do Povo Ti-
daquele órgão. morense e congratularam-se pela atri-
Pronunciamentos
Reunião do Conselho de Ministros da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa

buição do Prêmio Nobel da Paz ao Executivo de convocar uma reunião


Bispo D. Ximenes Belo e ao Doutor com responsáveis governamentais e
Ramos Horta. Neste quadro, os Mi- outras entidades competentes para apro-
nistros registraram com satisfação o fundar a discussão sobre o Instituto In-
novo formato negocial proposto pelo ternacional da Língua Portuguesa.
Secretário-Geral das Nações Unidas, 12. Os Ministros registraram com
com vista ao relançamento do diálogo satisfação a aprovação pela Assembleia
tripartite e do diálogo intratimoren- Nacional de Cabo Verde do Estatuto do
se, para encontrar uma solução justa, Cidadão Lusófono, que estabelece um
global e internacionalmente aceitável tratamento específico e privilegiado
da questão do Timor Leste, no pleno aos cidadãos dos Estados-Membros da
respeito pelos legítimos direitos e as- CPLP em Cabo Verde, facilitando, des-
pirações do seu povo, em conformida· se modo, a livre circulação de pessoas e
de com o Direito Internacional. Expri- bens e promovendo a integração, o que
miram preocupação pelo agravamento
se revela como uma contribuição impor-
das violações de Direitos Humanos e
tante para a consolidação e o desenvol-
liberdades fundamentais recentemente
vimento da CPLP.
ocorridas no Território e apelaram ao
cumprimento integral das resoluções 13. O Conselho de Mínistros
da Comissão dos Direitos Humanos deferiu à apreciação do Conselho de
aprovadas sobre a matéria. Concertação Permanente a avaliação
da proposta de regimento do Fundo Es-
9. Os Ministros tomaram nota
pecial apresentada pela Secretaria do
igualmente dos projetos aprovados e
Executivo.
dos implementados com o apoio finan-
ceiro do Fundo Especial. Neste contex- 14. Os Ministros aprovaram reso-
to, congratularam-se pelas importantes luções relativas ao Regimento Interno e
iniciativas e apoios de organizações da ao Orçamento.
sociedade civil, fundamentalmente atra- 15. Os Ministros aprovaram uma
vés da realização de eventos e projetos resolução sobre o Estatuto de Observa-
que muito contribuíram para a materia- dor, e decidiram propô-Ia à adoção da
lização dos objetivos fixados na Decla- próxima Conferência de Chefes de Es-
ração Constitutiva da CPLP. tado e de Governo.
10. Os Ministros decidiram ado- 16. Ao final dos trabalhos, os Mi-
tar as recomendações emanadas da 1ª nistros assinaram o Acordo de Coope-
Reunião dos Responsáveis Políticos ração entre os Governos Integrantes da
pela Cooperação da CPLP, realizada em Comunidade dos Países de Língua Por-
Lisboa nos dias 16 e 17 de abril de 1997. tuguesa para a Redução da Demanda,
11. Os Ministros, examinando a Prevenção do Uso Indevido e Combate
questão da valorização da Língua Por- à Produção e ao Tráfico Ilícito de En-
tuguesa, encarregaram o Secretariado torpecentes e Substâncias Psicotrópicas,
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

17. Os Ministros aceitaram com Conferência dos Chefes de Estado e de


satisfação o convite para que a próxima Governo em Praia.
reunião do Conselho de Ministros se 18. Os Ministros expressaram ao
realize em Cabo Verde e tomaram boa Brasil, ao Estado da Bahia e à cidade de
nota do apelo de Cabo Verde aos demais Salvador o seu agradecimento pelo aco-
Estados-Membros e ao Secretariado no lhimento caloroso e pela hospitalidade
sentido de apoiarem os seus esforços de fraterna dispensados a todos os partici-
organização desse evento e da próxima pantes da reunião do Conselho de Mi-
nistros da CPLP.
Pronunciamentos
Homenagem a Luís Gama e Machado de Assis

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 19 de junho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Tributo a Luís Gama e Machado de este pronunciamento.
Assis
É com grata satisfação que subo a
esta tribuna para compartilhar com meus
ilustres colegas desta Casa a oportuni-
dade de reverenciannos as memórias de
dois homens de magna importãncia para
a História e para a cultura deste País.
Quis o destino, com a riqueza que
sempre nos reserva, apontar dois modos
e dois tempos para olharmos um só fato
dos anos de 1800. Falo de uma época
de mudanças, de fervuras no caldeirão
da liberdade, que por aqui era levado em
fogo brando pelas elites, pois a escravi-
dão se colocava como princípio motor
da vida em terras brasileiras. Tão tími-
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

das eram as vozes que ousavam erguer- ram as oportunidades em que Machado
-se pela liberdade dos africanos e seus de Assis demonstrou simpatia pela cau-
descendentes escravizados que, não sa de seus irmãos escravizados. Não por
fosse por eles próprios, não se sabe por acaso, ao endossar as palavras elogiosas
quanto tempo mais se estenderia aquela com que o “mulato” Machado fora ho-
tragédia que então parecia infindável. menageado na imprensa após sua morte,
Dois modos, dois olhares e dois conhecido intelectual da época fez uma
afro-brasileiros que marcariam de forma única ressalva: não se deveria chamá-lo
definitiva a vida nacional, influenciando de mulato, pois ele preferiria ser consi-
as gerações vindouras com o exemplo de derado um grego e não um negro. Sua
genialidade, que mais tarde lhe gran-
suas trajetórias de vida – apesar de tão
jearia o reconhecimento como um dos
díspares – e de suas realizações. Refiro-
mestres da literatura universal, nunca se
-me, em primeiro lugar, a Luís Gama,
somou ao legado Iibertário de um José
poeta satírico, precursor do abolicionis-
do Patrocínio, de um Cruz e Sousa ou de
mo, nascido em Salvador, Bahia, no dia
um Luís Gama. Assim, foi praticamente
21 de junho de 1830, sobre quem me
à sua revelia que a História, persuasiva
deterei mais adiante. E a Joaquim Maria
como só ela sabe ser, acabou incorpo-
Machado de Assis, nascido na mesma
rando o menino franzino do morro ca-
data, oito anos depois, no Rio de Janeiro rioca do Livramento, que um dia iria
– um afro-brasileiro que iria destacar- fundar e presidir a Academia Brasileira
-se, no campo das letras, como poeta, de Letras, à galeria dos grandes gênios
romancista, crítico e cronista, enrique- afro-brasileiros.
cendo a literatura brasileira de páginas
Bem diversa foi a trajetória de
primorosas, como as de Dom Casmurro
Luís Gama, marcada por fatos que pode-
e Memórias póstumas de Brás Cubas.
riam ter-lhe afetado a humanidade, tê-lo
A importância da obra de Ma- embrutecido, fazendo-o fraquejar diante
chado de Assis para a cultura brasilei- do drama da escravidão e das possibili-
ra, ninguém pretende – nem poderia – dades de que dispunha para sobreviver.
ofuscar. Não foram poucas, porém, as Sua mãe, uma mulher africana de nome
críticas que lhe fizeram alguns de seus Luísa Mahin, é hoje considerada um
contemporâneos, homens que viviam a referencial mítico da identidade e das
plenitude da causa abolicionista, quan- lutas dos afro-brasileiros contra o racis-
to à sua postura de aparente indiferença mo. Descrita pelo próprio Luís Gama
por aquele movimento. Embora se im- como “muito altiva, geniosa. insofrida e
pusesse com todo o talento às exigên- vingativa”, Luísa Mahin foi, na verdade,
cias intelectuais da época, e demonstras- uma revolucionária cuja frequente parti-
se uma singular habilidade em driblar as cipação em projetos insurrecionais – in-
futricas e maledicências dos círculos clusive as famosas Revoltas dos Malês
intelectuais – pelo que merece todo o na Bahia – acabaria por levá-Ia várias
nosso respeito e admiração –, raras fo- vezes à prisão, até sua viagem sem re-
Luiz Gama. Foto reproduzida do livro A mão afro-brasileira.
Pronunciamentos
Homenagem a Luís Gama e Machado de Assis

torno ao Rio de Janeiro, em 1837. Foi seu amigo inseparável e hospe-


na personalidade, na figura emblemáti- deiro, que vivia dos proventos de
ca de sua mãe, de quem se viu separado uma casa de tavolagem na cidade
desde os sete anos de idade, que Luís da Bahia, estabelecida em um so-
Gama construiu sua própria identidade, brado de quina. ao largo da praça,
sua moral e seus valores libertários, que vendeu-me, como seu escravo, a
tanto contribuíram para o entendimento bordo do patacho “Saraiva”.
e a construção da luta pela abolição da Outra contradição viveria Luís
escravatura no Brasil. Gama. Embora tivesse apenas dez anos
Sobre o pai, um abastado fidal- de idade, sua naturalidade era a Bahia,
go cujo nome sempre ocultou – talvez terra de escravos famosos pela rebeldia.
como forma de bani-lo da lembrança Por sua origem, viu-se seguidamente es-
–, Luís Gama, em carta ao amigo Lú- colhido e rejeitado em diversos pontos
cio Mendonça, datada de 25 de julho de de venda de escravos, antes de ser com-
1880, contou o seguinte: prado. Passou o restante da infância vi-
Meu pai, não ouso afirmar vendo na periferia de uma casa-grande,
que fosse branco, porque tais afir- em São Paulo, envolvido em funções
mativas, neste país, constituem como as de copeiro, sapateiro e alfaiate.
grave perigo perante a verdade, Só aos 17 anos aprendeu a ler e contar.
no que concerne à melindrosa graças à amizade e ajuda do jovem An-
presunção das cores humanas: tônio Rodrigues do Prado Júnior, estu-
era fidalgo; e pertencia a uma das dante de humanidades que mais tarde
principais famílias da Bahia, de viria a ser juiz.
origem portuguesa. Devo poupar Tão logo domina as letras, Luís
à sua infeliz memória uma injú- Gama trata de reunir provas de que nas-
ria dolorosa, e o faço ocultando o cera livre, e vai “assentar praça”. Entre
seu nome. (...) Ele foi rico; e, nes- 1848 e 1854, chega ao posto de cabo.
se tempo, muito extremoso para Mas sua carreira militar é interrompida
mim: criou-me em seus braços. depois de submetido a conselho por su-
Foi revolucionário em 1837. Era posta insubordinação, por ameaçar um
apaixonado pela diversão da pes- oficial que o havia insultado.
ca e da caça; muito apreciador de Embora, como poeta, tenha pu-
bons cavalos; jogava bem as ar- blicado apenas um livro – Primeiras
mas, e muito melhor de baralho, trovas burlescas de Getulino –, Luís
amava as súcias e os divertimen- Gama conseguiu, com sua verve satí-
tos: esbanjou uma boa herança, rica, em plena escravidão e em pleno
obtida de uma tia em 1836; e, romantismo, abalar a unanimidade em
reduzido à pobreza extrema, a 10 torno dos rígidos cânones literários eu-
de novembro de 1840, em com- ropeus vigentes naquele tempo. A orali-
panhia de Luís Cândido Quintela, dade africana, o olhar do afro-brasileiro,
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

a afronta à norma culta do idioma são na maioria das agruras, dentre as quais o
pulsantes nos versos de Luís Gama. sofrimento do cárcere, pelas razões de-
Como se ele estivesse falando para siguais da justiça em nosso país, a qual
uma cultura sobre as idiossincrasias de pune aqueles que lutam para fazer valer
outra, o que ressalta nos versos do poe- os princípios fundamentais da cidadania
ma “Quem sou eu”, conhecido popular- e do direito.
mente como “Bodarrada”: Mas o grande feito de Luís Gama,
Bodes há de toda casta abolicionista desde a década de 1850,
Pois que a espécie é muito vasta (...) foi ter conseguido, com sua atividade
Bodes ricos, bodes pobres como prático de advocacia, mesmo sem
o diploma acadêmico, a alforria para
Bodes sábios, importantes
mais de 500 de seus irmãos em cativei-
E também alguns tratantes ... ro. Conhecido e respeitado como gran-
Aqui nesta boa terra, de tribuno pela eloquência na defesa da
Marram todos, tudo berra ( ... ) causa dos humildes, seus brilhantes dis-
Tão rico é o nosso passado que cursos – como aponta seu biógraío Sud
decerto Olorum nos há de guiar para que Menucci – infelizmente se perderam,
não percamos – pois este é um iminente pois não foram registrados.
perigo – as riquezas do nosso presente. Alvo de uma perseguição política
Quanto mais explícita, mais surpreen- que o levou a perder o emprego público,
dente – e às vezes cruel – se faz a His- Luís Gama participou de partidos políti-
tória. Quantas de nossas crianças hoje, cos, quase sempre se desiludindo ante a
com o simples acesso a uma escola e al- predominância, entre os “progressistas”
guma alimentação, não mudariam suas de então, da ideia de uma república es-
vidas, seus destinos, como ocorreu com cravocrata. Raul Pompeia, em artigo in-
Luís Gama – em condições ainda mais titulado “A última página de um grande
difíceis que as atuais. homem”, publicado na Gazeta de Notí-
Quero evitar recorrências, mas cias, do Rio de Janeiro, em 12 de setem-
não posso. Luís Gama é ainda um sím- bro de 1882, assim o descreveu:
bolo de moral e dignidade. Foi um afro- ( ... ) Luís Gama fazia de
-brasileiro que, como Gregório de Matos tudo: literatura, consolava, dava
dois séculos antes, ironizou os ridículos conselhos, demandava, sacrifica-
da Corte e das elites, que tanto influí- va-se, lutava, exauria-se no pró-
ram e ainda influem em nossas vidas, prio ardor, como uma candeia ilu-
até mesmo na forma como nos tratamos minando à custa da própria vida
no quotidiano. Não posso, assim, deixar as trevas de desespero daquele
de celebrá-lo. Não falo do louvor for- povo de infelizes, sem auferir
mal, insosso, das homenagens vazias. uma sombra de lucro, entendendo
Falo da vibração de meu espírito por que advogado não significa o in-
um ancestral com quem me identifico divíduo que vive dos jantares que
Machado de Assis quando jovem. Foto reproduzida do livro A mão afro-brasileira.
Pronunciamentos
Homenagem a Luís Gama e Machado de Assis

lhe paga Têmis; entendendo que afro-brasileiros contra o racismo e a dis-


se deve fazer um pouco de justi- criminação em nosso país, E por mais
ça grátis, E, com essa filosofia, que o Brasil avance em direção à plena
empenhava-se de corpo e alma, justiça e à igualdade para todos, sonho
fazia-se matar pelo bem, de todos nós, teremos sempre em Luís
Luís Gama faleceu, vítima de dia- Gama um referencial de luta e sacrifício
betes, em 24 de agosto de 1882, sem ver pela causa da liberdade,
uma Abolição da qual decerto discorda-
ria na forma como foi feita, Seu legado,
porém, permanece presente na luta dos Axé!
Pronunciamentos
Homenagem a Marcus Garvey

Discurso proferido no Senhor Presidente, Senhoras e


Senado Federal Senhores Senadores,
em 5 de junho de 1997 Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
Marcus Garvey
e a causa pan-africana Acontecimento mais relevante
da história deste milênio, a invasão do
Continente Africano por europeus a par-
tir do século XVI, com a escravização e
migração forçada de milhões de seus fi-
lhos e a transformação dos restantes em
súditos coloniais, alterou para sempre a
face do planeta. Pode-se afirmar, sem
medo de exagero, que o transplante de
enormes contingentes de africanos para
o outro lado do Atlântico não apenas
moldou a face das sociedades america-
nas, mas constituiu o principal motor de
processos fundamentais, como a Revo-
lução Industrial e a ascensão do capita-
lismo, responsáveis pela configuração
do mundo, tal como hoje o conhecemos.
Dentre as consequências negati-
vas desse fato histórico, encontram-se
os principais vetores da instabilidade de
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

que padece não apenas a África mesma, época e lugar em que tem sido travada,
mas igualmente boa parte das Américas, mas igualmente a palavra e o pensa-
sem esquecer a própria Europa. Ques- mento, tendo por meta a derradeira
tões como o racismo e a xenofobia, que conquista das consciências e mentes
têm nos descendentes de africanos no de europeus, africanos e seus descen-
Novo e no Velho Mundo seus alvos pre- dentes. Objetivo último dessa luta: a
ferenciais, encontram-se nas raízes de supremacia final, para uns, ou a plena
problemas como a violência urbana, as liberdade, para outros.
crianças de rua, a favelização das me- Uma das noções mais antigas en-
trópoles. Ao mesmo tempo, as sequelas tre os povos africanos escravizados nas
do colonialismo se espelham com clare- Américas é a de que sua liberdade não
za no empobrecimento e nas sangrentas
se resgataria com simples apelos emo-
lutas fratricidas que nos acostumamos a
tivos ao coração do dominador. Mais
associar a determinadas regiões da Áfri-
do que isso, a percepção de que uma
ca, frutos da atomização e do artificia-
África unida, livre da hegemonia eu-
lismo que presidiram à imposição das
ropeia, constituiria uma fonte de força
atuais fronteiras dos países africanos
e apoio aos negros em todo o mundo.
pelos centros político-militares euro-
Essa visão, raiz mais profunda daquilo
peus de força.
que viria a ser conhecido como pan-afri-
Com todo o sofrimento e toda a canismo, encontra-se presente, mesmo
dor que constituíram parte integrante que de forma incipiente, no ideário dos
desse processo cruel, a história da resis- principais movimentos de luta organi-
tência africana na própria África e nas
zada contra a escravidão nas Américas.
Américas é também uma saga repleta de
Estava presente em Palmares, que con-
heroísmo, bravura, determinação e cria-
gregava africanos de todas as origens,
tividade. Qualidades que possibilitaram
assim como seus descendentes, em bus-
que um povo dominado pelo poder das
ca da mesma liberdade por que lutaram
armas, reforçado por toda espécie de
os maroons do Caribe, os revoltosos da
ideologia mistificadora, conseguisse
Centro-América e os revolucionários li-
impor boa parte de sua cultura, de seus
bertadores do Haiti.
valores, de sua arte, de sua religião aos
seus dominadores, a despeito da suposta O pan-africanismo é a teoria e a
superioridade por estes autoproclamada. prática da unidade essencial do mundo
Tudo isso não aconteceu de graça, mas africano. Não há nenhuma conotação
em resultado de uma luta tão multiface- racista nessa unidade, que se baseia, não
tada quanto as próprias estratégias de em critérios superficiais, como a cor da
dominação elaboradas. pelos escravi- pele, mas na comunidade dos fatos his-
zadores europeus e seus descendentes. tóricos, na comunidade da herança cul-
Uma luta a um tempo nos planos ma- tural e na identidade de destino em face
terial e ideológico, envolvendo não so- do capitalismo, do imperialismo e do
mente as armas convencionais de cada colonialismo. O pan-africanismo reivin-
Pronunciamentos
Homenagem a Marcus Garvey 1

dica a unidade do Continente Africano cadas mais tarde concretizaria o sonho


e a aliança concreta e progressista com aparentemente utópico de um governo
a diáspora unida, que incorpora popu- de maioria negra, incorporou integral-
lações asiáticas, como os dravídicos da mente ao seu programa o ideal pan-
Índia e os aborígines australianos, saí- -africano. Como se percebe no proféti-
dos do Continente Africano há dezenas co discurso do nacionalista sul-africano
de milhares de anos. E também a nova Isaka Seme, proferido em 1905 na Co-
diáspora negra na Europa, constituída, lumbia University:.
fundamentalmente nos últimos 30 anos, O gigante está acordando!
pela migração procedente da África e do Dos quatro cantos da terra os fi-
Caribe. lhos da África marcham em di-
O primeiro registro histórico de reção à porta dourada do futuro,
uma reivindicação de caráter tipica- carregando o registro de proezas
mente pan-africano data de meados do de valor realizadas.
século XVIII, na forma de uma petição Dentre os inúmeros intelectuais
em que escravos da colônia inglesa que e ativistas dedicados à causa pan-afri-
um dia se transformaria nos Estados cana nestes últimos dois séculos, um
Unidos da América pleiteavam a volta nome se destaca: o de Marcus Garvey,
à África depois de libertados. A mesma responsável pela fundação do principal
ideia presidiu à fundação em 1787, por movimento internacional negro em toda
um grupo de afro-americanos, da cida- a história – a UNIA (Universal Negro
de de Freetown – que mais tarde viria a Improvement Association, Associação
ser a capital da Serra Leoa –, revertendo Universal para o Avanço Negro), or-
um projeto originalmente racista e pa- ganização que chegou a ter 35 mil mi-
ternalista que só ganhou força quando litantes inscritos nos Estados Unidos,
ressuscitado e recuperado por africanos 52 filiais em Cuba, oito em Honduras,
e descendentes oriundos do Caribe e da oito na África do Sul, 47 no Panamá e
América do Norte. 25 na Costa Rica – onde tive a oportu-
O século XIX assistiu ao cres- nidade de visitar o casarão histórico em
cimento e consolidação do ideal pan- que funcionou seu quartel-general para
-africano, impulsionado, nos Estados a região, ainda preservado na Província
Unidos, por nomes como Prince Hall, de Limón. Além de sucursais no Brasil,
John Russworm, o bispo McNeil Tur- Equador, Nigéria, Porto Rico, Austrália,
ner e o grande ativista Edward·Blyden. Nicarágua, México, Barbados, Serra
O mesmo ideal que, sob diferentes fon- Leoa, Inglaterra e Venezuela.
nulações, propelia ao mesmo tempo os Marcus Garvey nasceu em St.
movimentos anticoloniais africanos. Ann’s Bay, na Jamaica, a 17 de agosto
Na África do Sul, por exemplo, desde de 1887. Filho de um pedreiro do mes-
a sua criação, no início deste século, o mo nome, descendente dos aguerridos
Congresso Nacional Africano, que dé- maroons, que desafiaram – por vezes
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

com sucesso – a ordem colonial britâni- intelectual e política que marcou o pe-
ca na Jamaica e em todo o Caribe. cedo ríodo imediatamente anterior à Primei-
demonstrou uma aguda inteligência e ra Guerra Mundial. Um ano antes, em
uma inquietação em face de problemas 1911, a cidade abrigara um Congresso
sociais e raciais que iria acompanhá-lo Mundial sobre Raça, organizado sob
até a morte. Já aos 16 anos. como apren- os auspícios do Movimento Inglês de
diz de gráfico, seu primeiro emprego, Cultura Ética – o mesmo Congresso em
o jovem Garvey iniciava sua atuação que o representante brasileiro declarou
como ativista político, participando de candidamente estar o Brasil resolvendo
uma greve de sua categoria. Pouco de- seu problema racial por meio da mis-
pois, publicou seu primeiro jornal. The cigenação, que acabaria com os negros
Watchman (O Vigilante), em que expu- dentro de um século. À miscigenação,
nha suas ideias e preocupações sobre te- acrescente-se, devemos somar as péssi-
mas vinculados a raça e classe. mas condições de vida que ajudariam a
liquidar o povo afrodescendente neste
Essas preocupações o levariam
país. A literatura. as atitudes e os de-
em frequentes viagens ao exterior. nas
bates relativos a esse Congresso ainda
quais a visão dos descendentes de afri-
eram motivo de acesas polêmicas quan-
canos ocupando em toda parte a base da
do Marcus Garvey chegou a Londres.
pirâmide social acabaria consolidando Igualmente importante era a nova litera-
suas posições ideológicas e forjando os tura anticolonialista produzida na África
elementos essenciais de sua plataforma Ocidental.
antirracista. anti-imperialista e antico-
As ideias do jovem Garvey sobre
lonialista. Assim foi no Panamá, porto
a redenção africana ganharam contor-
de destino de milhares de jamaicanos
nos definitivos quando se associou ao
atraídos pelos empregos oferecidos com
intelectual nacionalista Duse Moham-
a construção do Canal, mas discrimi-
med Ali, um egípcio de ascendência
nados em favor dos operários brancos.
sudanesa que publicava o jornal men-
Também no Equador, na Nicarágua, em
sal The African Times and Orient Re-
Honduras, na Colômbia e na Venezuela,
view. O período londrino completou a
onde os negros. empregados na mine- educação política de Marcus Garvey.
ração ou nas plantações de tabaco, pa- Ele estava pronto para a sua tarefa. Em
reciam incapazes de melhorar as humi- 1914, retornou à Jamaica e fundou uma
lhantes condições em que viviam. organização, que denominou Associa-
Em 1912, Marcus Garvey, aos 25 ção Universal para o Avanço Negro e
anos de idade, chega a Londres, onde Liga das Comunidades Africanas. Dois
vai trabalhar. estudar e desenvolver-se anos depois, encorajado pelo líder afro-
na percepção de novas dimensões da -americano Booker T. Washington, de-
luta negra. A capital do Império Britâni- sembarca em Nova York. No Harlem,
co. ainda nos picos de seu poderio, era toma contato com as especificidades da
o ponto focal da efervescente atividade questão racial nos Estados Unidos. Os
Marcus Garvey. Foto reproduzida do livro Garvey and Garveyism, de A. Jacques Garvey,
organizadora e publicadora. Kingston, Jamaica, 1963.
Pronunciamentos
Homenagem a Marcus Garvey

negros do Sul fugiam para o Norte, dei- um patamar superior ao do integracio-


xando atrás de si o sistema aparteísta do nismo liberal.
Jim Crow, os linchamentos, a falta de Garvey compreendeu três ne-
direitos políticos, a servidão e a miséria. cessidades básicas do negro em todo o
No Norte, ganhavam melhores salários mundo: a de dignidade e autorrespeito
nas fábricas, que agora tinham de ali- como povo unido: a de uma África in-
mentar a máquina de guerra, mas eram dependente e unida como base de força
obrigados a viver em casas caindo aos central: e a de instituições autônomas
pedaços, em bairros miseráveis, e seus para impulsionar a vida das comunida-
filhos frequentavam escolas precárias, des negras. Além disso, como nenhum
tanto nas instalações quanto no ensino. outro, antes ou depois dele, Marcus Gar-
Os poucos que ousavam usar estratage- vey percebeu a importância das comu-
mas para comprar residências em bair- nidades negras das Américas Central e
ros de brancos viviam apavorados pela do Sul para a luta pan-africanista inter-
possibilidade de bombas racistas explo- nacional, inspirada no lema “A África
direm em suas casas ou de suas famílias para os africanos, na própria pátria e no
serem ameaçadas na rua. exterior”.
Não existia nessa época uma or- Em 1920, no auge do prestígio
ganização verdadeiramente negra em de Garvey, a UNIA organizou a I Con-
Nova York. As que havia eram multir- venção dos Povos Africanos do Mundo,
raciais, dirigidas por brancos e mesti- com a presença de 25 mil representan-
ços de pele clara. Garvey começou sua tes e delegados de todos os continen-
pregação discursando nas esquinas do tes. O produto mais importante dessa
Harlem. Logo precisou ocupar espaços Convenção foi a Declaração de Direi-
maiores, na medida em que crescia o tos dos Povos Negros do Mundo, que
público interessado em sua mensagem condenava o colonialismo, afirmava o
positiva, que falava de uma ação inter- “direito inerente do negro de governar
nacional em favor do negro. Essa reação a África”, instituía o vermelho, o preto
estimulou Garvey a instalar nos Estados e o verde como as cores simbólicas do
Unidos a sua UNIA, que se distinguia pan-africanismo, e exigia o fim dos lin-
das demais organizações por ser exclu- chamentos e da discriminação racial nos
sivamente negra e defender um progra- países da diáspora africana, bem como o
ma ousado e radical. Categorizando a ensino da História Africana nas escolas
luta negra como de direitos humanos, públicas.
e não somente de direitos civis, o que A independência econômica era
implicitamente estabeleceria seu caráter outro fator enfatizado no programa da
internacional, já em 1920 Marcus Gar- UNIA. Garvey exortava seus seguidores
vey articulava a distinção fundamentaI a “comprar de negros”, a preferir nego-
assinalada por Malcolm X nos anos 60, ciantes de sua própria raça. Atendendo
contribuindo para elevar a luta negra a ao apelo de Booker T. Washington à au-
THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

tossuficiência, a UNIA iniciou diversos sações, o que causou uma gigantesca


projetos na área empresarial, incluindo passeata de protesto, que reuniu 150
a Corporação de Fábricas Negras, des- mil pessoas, de várias nacionalidades,
tinada a ajudar empresários da comuni- nas ruas do Harlem. Deportado para a
dade. O que é mais importante, Garvey Jamaica em 1927, Garvey foi recebido
fundou a Black Star Steamship Line, pelo povo de Kingston, a capital, como
para funcionar como laço comerciai e um verdadeiro chefe de estado – mas
espiritual entre os negros de todos os lu- como uma ameaça pela elite, branca e
gares que seus navios alcançassem. Para negra. Essa oposição, materializada sob
surpresa de seus críticos, entre 1919 e a forma de dificuldades jurídicas, não o
1925 Garvey juntou dinheiro suficiente impediu de se eleger, na capital, para um
para adquirir quatro navios e estabelecer cargo correspondente ao de vereador,
ligações comerciais com o Caribe. nem de publicar um novo jornal, The
New Jamaican (O Novo Jamaicano).’
Embora os navios da Black Star
Line transportassem tanto carga quanto Em 1935, ano em que a Itália
passageiros, o objetivo não era um re- de Mussolini invade a Etiópia, então
torno físico de todos os negros à África, a única nação independente da África,
que ele sabia ser impossível, mas antes provocando um acirramento das dis-
um retorno de caráter simbólico e espiri- cussões sobre colonialismo e racismo,
tual. Garvey acreditava, contudo, ser de- Garvey retoma à Inglaterra, onde passa-
ver dos descendentes de africanos con- rá seus últimos anos. Seu propósito era
cobrar diretamente do Império Britâni-
tribuir, com seu trabalho, conhecimento
co a redenção do Continente Africano.
e tecnologia, para o fortalecimento do
Os ingleses não se preocuparam muito.
Continente-Mãe, tendo em vista uma fu-
O Império vivia seu último período de
tura derrubada de fronteiras e a criação
esplendor, dominação e arrogância. Não
de uma nação unificada. Nesse sentido,
estava, assim, inclinado a dar ouvidos
chegou a estabelecer negociações com o
a esse súdito da Coroa que agia como
Governo da Libéria.
um cidadão, exigindo os direitos básicos
Se granjearam uma legião de se- da cidadania. Era também a época da
guidores, as ideias de Garvey também Grande Depressão, cujas consequências
o fizeram colecionar desafetos, entre se abatiam com maior impacto sobre os
brancos e negros, à direita e à esquer- descendentes de africanos. Garvey vi-
da do espectro político. Creio não ser veu seus últimos anos na pobreza, em-
preciso enfatizar o perigo que ele re- bora sem perder o orgulho de maroon
presentava para o establishment, com que o projetara mundialmente nas dé-
suas ideias de autonomia, dignidade e cadas precedentes. Em janeiro de 1940,
autorrespeito. Problemas com a admi- um ataque de paralisia o pôs de cama, e
nistração da Black Star Line acabaram alguns jornais publicaram que ele havia
fornecendo o pretexto para que o FBI morrido na miséria. Cartas e telegramas
o prendesse, em 1923, sob falsas acu- choveram sobre seu escritório. A secre-
Pronunciamentos
Homenagem a Marcus Garvey

tária evitava que essa correspondência Marcus Garvey. Para ele, Garvey está na
chegasse a suas mãos, mas ele acabou vanguarda do grupo de negros radicais
tendo acesso a ela. As manchetes falando do século XX cujas ideias e programas
de sua morte causaram-lhe um choque do ainda reverberam nos movimentos de
qual não se recuperou, vindo a falecer no libertação de nossos dias. Isso se deve,
dia 10 de junho de 1940. Hoje, decorri- em grande medida, ao trabalho incansá-
dos 57 anos de sua morte, sua mensagem vel daquela que por décadas o acompa-
ao mundo continua válida: nhou na luta e que, depois de sua mor-
Ó África, acorda te, dedicou a existência à preservação
de sua memória e à divulgação de suas
A aurora está chegando
ideias. Estou falando de sua viúva, Amy
Não mais és maldita Jacques Garvey, por quem tive a hon-
Ó bondosa Terra-Mãe ra de ser recebido em minha passagem
De longe teus filhos e filhas pela Jamaica, em 1973.
Se dirigem de volta a ti O garveísmo inspirou muitos
Sobre as águas ressoam seus gritos líderes africanos, como o ganês Kwa-
me Nkrumah, apóstolo do pan-africa-
De que a África será livre.
nismo, bem como a jovem liderança
A filosofia de Garvey não é per- que, nos anos 60, faria avançar a um
feita, nem fornece uma base adequada ponto sem precedentes a luta dos afro-
para a moderna teoria e prática da luta -americanos. Sua preocupação com a
africana. Em consequência, é fácil e le- auto-imagem dos negros, com o valor
gítimo levantar críticas construtivas às do ensino da História Africana, com a
suas ideias e ao seu movimento. Mas unidade dos povos da África e da diás-
não se pode negar o legado que ele dei- pora, mas sobretudo sua disposição de
xou como fundamento essencial à orga- homem simples e prático, capaz de tra-
nização política do negro. Seu espírito duzir para as massas negras despossu-
continua vivo, apesar dos incansáveis ídas a mensagem do pan-africanismo, e
esforços de seus adversários em destruí- de tomar medidas práticas para concreti-
-lo. Em seu livro The Black Jacobins zá-la – tudo isso fez de Marcus Garvey
(Os jacobinos negros), o intelectual an- um homem que merece a admiração e
tilhano C.L.R. James – que em vida foi o respeito, não apenas dos africanos e
meu amigo e apoiou as reivindicações seus descendentes, mas de todos aque-
do Movimento Negro brasileiro ao VI les comprometidos de coração com a
Congresso Pan-Africano, realizado em mudança efetiva das relações sociais e
1974 na Tanzânia – observa que dois raciais.
caribenhos, “usando a tinta da Negritu-
de, inscreveram seus nomes de maneira
indelével na história de nosso tempo”.
Axé, Marcus Garvey!
James está se referindo a Aimé Césaire e
Pronunciamentos
Encontro na Baixada Fluminense

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 7 de agosto de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Pela dignidade do afrodescendente este pronunciamento.

Com o propósito de discutir no-


vas formulações apresentadas para o
enfrentamento da discriminação e das
desigualdades raciais em nosso país, re-
alizou-se a 2 de agosto último o I Encon-
tro da Comunidade Negra e Cidadania
na Baixada Fluminense. Organizado por
três entidades afro-brasileiras – Centro
de Estudos da Cultura e Teologia Negra,
Centro de Articulação das Populações
Marginalizadas e Grupo União e Cons-
ciência Negra –, o encontro reuniu lide-
ranças, dentre as quais a ilustre senadora
Benedita da Silva, e pessoas da comuni-
dade interessadas em temas como pers-
pectivas e papel do Estado, violência e
100 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

exclusão social, bem como nas diversas étnica, apresenta níveis de desigualdade
propostas que vêm sendo elaboradas e racial mais elevados do que nações até
implementadas com vistas à valorização recentemente caracterizadas pela prática
dos afrodescendentes. Na ocasião, em do racismo oficial.
que tive a honra de ser homenageado, Primeiros europeus a escravizar
ao lado da figura histórica do marinhei- africanos, os portugueses desenvolve-
ro João Cândido, herói da Revolta da ram toda uma “ciência” da dominação,
Chibata, acabei não tendo a oportunida- alicerçada em fundamentos amplamen-
de de ler meu discurso, em que faço um te encontráveis sobretudo nos textos da
breve balanço de minha atuação nesta autoria de sacerdotes, mas também em
Casa. Felicitando os organizadores des- documentos oficiais. Neles se percebe
se importante Encontro, passo agora à
a preocupação com a cultura africana,
leitura do discurso que deveria ter feito
que deveria ser destruída, quando ne-
naquela oportunidade.
cessário, ou domesticada, sempre que
Desenvolvida desde a chegada possível. A religião, ponto focal da iden-
a estas terras dos primeiros africanos tidade dos africanos e seus descenden-
escravizados, em principios do sécu- tes, sempre ocupou um papel central nas
lo XVI, a luta dos afro-brasileiros por preocupações desses políticos e intelec-
igualdade e justiça é uma saga de cruel- tuais, incansáveis nas suas tentativas
dade e revolta, sofrimento e redenção, de suprimi-la ou cooptá-la. Outra arma
que se estende pela História deste país ideológica foi a negação da contribuição
e se confunde com a luta pela liberda- negro-africana à História da Humanida-
de do povo brasileiro. Maioria absoluta
de, alterando-se a identidade racial de
da população nos tempos da Colônia e
povos como os egípcios ou ignorando-
do Império, e ainda maioria neste fi-
-se intencionalmente o registro histórico
nal de milênio apesar das tentativas de
de nações ricas e poderosas cuja negri-
embranquecer o Brasil estimulando-se
tude não poderia ser apagada.
a imigração europeia –, os africanos e
seus descendentes têm sido desde sem- A questão racial, assim, não é pro-
pre os verdadeiros responsáveis pela blema que se possa descartar de maneira
construção deste País. Em troca, o que leviana, como é tão comum fazer-se no
sempre recebemos foi a discriminação, Brasil. Não é, tampouco, um problema
a humilhação e o desprezo, edulcora- “dos negros”. Trata-se, isto sim, não de
dos por uma ideologia terrível na sua uma, mas da questão central, do nó gór-
capacidade de amortecer a consciência dio a ser cortado para que a sociedade
dos oprimidos e subjugados: o mito da brasileira possa definitivamente cor-
“democracia racial”, instrumento que se tar os laços da dependência, romper as
revelou extraordinariamente eficaz em amarras do atraso, livrar-se do comple-
manter os negros no “seu” lugar – o da xo que a faz sentir-se inferior diante de
subaltemidade absoluta em uma socie- europeus e norte-americanos, dos bran-
dade que, apesar de multirracial e pluri- cos verdadeiros que nossos mestiços de
Pronunciamentos
Encontro na Baixada Fluminense 101

pele clara pretendem ingenuamente to- O principal resultado da I Convenção


mar como modelo. E um dos caminhos Nacional do Negro, realizada em São
para a solução dessa questão é a luta no Paulo, no ano de 1945, sob o patrocí-
campo jurídico. nio do Teatro Experimental do Negro,
Embora a questão racial não pos- foi a aprovação de uma sugestão dessa
sa ser resolvida apenas com leis, pois natureza, a qual acabaria sendo trans-
envolve fundamentalmente a cultura e formada, no ano seguinte, em propos-
a ideologia, a constituição de um arca- ta apresentada à Assembleia Nacional
bouço jurídico a que possam recorrer os Constituinte pelo senador Hamilton
afro-brasileiros com vistas a se prote- Nogueira (UDN-RJ). Essa proposta,
ger da discriminação ou a implementar que definia o racismo e a discriminação
ações de valorização do grupo a que per- como crimes de lesa-humanidade, aca-
tencem é primordial para concretizar os bou rejeitada sob a ridícula alegação da
anseios e reivindicações de nossa comu- inexistência de um fato concreto que pu-
desse demonstrar sua necessidade. Esse
nidade. Nesse sentido, faz-se necessário
fato acabou acontecendo: num incidente
não somente aperfeiçoar a legislação
de grande repercussão, a famosa core-
atual, mas também criar novos instru-
ógrafa afro-norte-americana Katherine
mentos que acompanhem a dinâmica
Dunham foi discriminada num hotel de
de nossa sociedade e atendam a novos
São Paulo. O então deputado Afonso
anseios nascidos de uma consciência
Arinos aproveitou a oportunidade para
antirracista mais atualizada e exigente.
propor projeto que se transformou na
Diferentemente do que se costu- Lei nº 1.390, de 1951, que ganhou o
ma afirmar, a lei brasileira não é, nem seu nome, distorcendo radicalmente a
nunca foi, cega à cor. Diversos meca- proposta de 1945 ao definir os delitos
nismos nela embutidos, implícita ou resultantes de racismo como contraven-
explicitamente, operam no sentido de ção penal, e não como crime, e ao esta-
manter inalterado o status relativo dos belecer, para os infratores, penalidades
grupos raciais em nossa sociedade. Pes- absolutamente irrisórias.
quisa recente revela, por exemplo, que Em 1983, ao assumir uma cadeira
negros tendem a receber penas maiores na Câmara Federal, apresentei o Projeto
que brancos para iguais delitos; quando, de Lei nº 1.661, que recuperava o espíri-
porém, as vítimas são negras, as penas to da proposta de 1945. Embora aprova-
costumam ser menores. Em resultado do na Comissão de Constituição e Justi-
desse processo perverso, a participação ça, não chegou a ser votado em plenário.
dos afro-brasileiros na população carce- Somente 42 anos depois da primeira
rária é muito superior à sua presença na tentativa, a prática do racismo passou
população como um todo. a ser definida, na Constituição de 1988,
As primeiras tentativas de criar como crime inafiançável e imprescritível.
uma legislação para coibir a prática da Em 1989, com a Lei nº 7.716, que regu-
discriminação racial datam dos anos 40. lamentou esse princípio constitucional,
10 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

pretendeu-se aperfeiçoar a legislação criminação historicamente sofrida por


anterior, mas, em que pese a boa inten- determinados grupos de pessoas, como
ção de seus autores, nada se avançou de mulheres, negros e índios. Convenções
concreto. Em primeiro lugar, embora pre- internacionais de que o Brasil é signa-
tenda punir o racismo e a discriminação, tário – como a Convenção Internacio-
ela não define o que eles sejam. Tão grave nal pela Eliminação da Discriminação
quanto isso é o fato de essa Lei nº 7.716 Racial, das Nações Unidas e a Conven-
manter a visão casuística de enumerar ção 111 da Organização Internacional
exaustivamente as possíveis circunstân- do Trabalho (OIT), também vinculada
cias da prática de discriminação, com à ONU, que trata da discriminação de
o que abre grandes espaços pelos quais raça e gênero no mercado de trabalho
escapam os agentes do crime – numa – preveem a adoção dessas medidas. A
sociedade dinâmica como a nossa, é exemplo do que se tem feito em países
simplesmente impossível prever todas tão diversos, do ponto de vista político,
as possibilidades dessa ação criminosa. social, econômico e cultural. como Es-
Por tudo isso, minha primeira tados Unidos. Índia, Israel, Canadá, Ni-
iniciativa ao assumir no Senado a vaga géria, Alemanha, África do Sul e Malá-
deixada pelo saudoso professor Darcy sia, sem esquecer as antigas Iugoslávia
Ribeiro foi apresentar o Projeto de Lei e União Soviética. Em seu art. 4º, nos-
do Senado nº 52, de 1997, que define e so projeto afirma que essa prática não
tipifica a prática do racismo e da discri- é crime, abrindo a possibilidade de sua
minação e pune os.crimes dela resultan- adoção em nosso País – que com isso,
tes. As orientações básicas desse projeto entre outras coisas, ficaria em dia com
são de caráter constitucional: primeira- as obrigações assumidas na arena inter-
mente, porque esses crimes constituem nacional.
a forma mais insidiosa de violação do Como se vê, não se trata de revo-
princípio da liberdade (art. 5º, caput, da gar simplesmente um instrumento legal
Constituição) e, depois, pelo fato de ser que, com as falhas que nele percebemos.
específica a condenação do racismo (art. ainda é o único de que atualmente dispo-
5º XLII). Além de estabelecer os tipos mos. Trata-se, isto sim, de aperfeiçoá-lo
genéricos para racismo e discriminação, e de ampliá-lo, para que possa cumprir
o projeto ainda determina circunstâncias adequadamente o objetivo de proteger
agravantes genéricas – por exemplo, no os afro-brasileiros do racismo em to-
caso de o agente do crime ser funcioná- das as suas implicações, abrindo espaço
rio público. também a medidas que possibilitem a
Outra inovação desse proje- sua promoção e valorização.
to é que ele abre a possibilidade de se Pois é exatamente da promoção e
vir a adotar no Brasil a chamada ação valorização da população afro-brasileira
compensatória, ou “ação afirmativa” – que trata o Projeto de Lei do Senado
medidas destinadas a compensar a dis- nº 75, de 1997, utilizando para isso o
Pronunciamentos
Encontro na Baixada Fluminense 10

mecanismo da ação compensatória, ou e aos novos parâmetros impostos pela


ação afirmativa. Tal como os descreve- Revolução Industrial, cortaram-se as
mos acima, esses termos englobam uma amarras, abolindo-se a escravidão, mas
série de políticas públicas, adotadas em os afro-brasileiros se encontravam atro-
diferentes países, com o objetivo de fiados por séculos de dominação física
compensar grupos historicamente des- e espiritual. Em resultado dessa atrofia,
privilegiados pelos efeitos, no presente, e também dos persistentes mecanismos
da discriminação sofrida no passado. discriminatórios que permeiam cada
Trata-se de um tema que tem sido mui- faceta da vida brasileira, homens e mu-
to discutido nos últimos tempos, mas, lheres negros estão virtualmente alija-
em geral, por pessoas desinformadas ou dos dos escalões mais importantes de
comprometidas – embora nunca o decla- nossa sociedade, praticamente confina-
rem – com os interesses do status quo. dos à base de uma das pirâmides sociais
Vamos imaginar dois corredores, um mais injustas do planeta. Dados do IBGE,
amarrado, o outro solto. Este, evidente- obtidos por meio do censo e das PNADs
mente, ganha sempre, até que a plateia – Pesquisas Nacionais por Amostra de
se conscientiza da injustiça e exige que Domicílios –, mostram claramente o
se instaure a igualdade. Será que, para verdadeiro abismo que separa brancos
isso, bastaria libertar o corredor que es- e negros (que o IBGE tradicionalmente
tava preso? Ele está com os membros divide em “pretos” e “pardos”), segundo
atrofiados, precisa de um treinamento indicadores sociais como mortalidade
infantil, expectativa de vida, salários e
especial ou, no limite, de alguma van-
escolaridade.
tagem para competir com o outro em pé
de igualdade. Mas isso seria discrimi- Esse quadro de desigualdades
nação, reagem alguns. Discriminação, com certeza não existiria caso se tives-
sim, mas positiva – outro sinônimo de se implementado o direito à isonomia
ação compensatória –, pois que visa a garantido pela Constituição. Por isso, o
promoção da igualdade. projeto de lei que apresentei ao Senado
visa justamente à aplicação desse prin-
Os africanos chegaram a este país
cípio constitucional na área do mercado
acorrentados pela escravidão. Aqui, de trabalho e da educação, obrigando
como em toda parte das Américas onde empresas públicas e privadas a reser-
existiu escravidão, eles e seus descen- varem 20% das vagas em seus quadros
dentes foram vítimas de toda espécie funcionais para homens negros e 20%
de atrocidades, torturas e degradações, para mulheres negras; reservando para
o que não os impediu de trabalhar por alunos negros 40% das bolsas de estudo
mais de quatro séculos na construção em todos os níveis de ensino; e alteran-
deste País. do os currículos escolares, em todos os
Quando a escravidão deixou de graus, para que estes incorporem expli-
ser economicamente viável, devido ao citamente as contribuições dos africanos
recrudescimento da resistência negra e seus descendentes em termos de his-
10 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

tória, ciência, cultura e religião, elimi- pudesse ser adquirida por um consór-
nando ao mesmo tempo as referências cio de que participava a multinacional
preconceituosas e estereotipadas aos ne- Anglo American, que apoiou ostensiva-
gros nos livros didáticos, bem como sua mente o regime do apartheid na África
invisibilização. do Sul, é acusada de ter financiado a
A preocupação com a precarie- guerrilha contrarrevolucionária em An-
dade de acesso dos afro-btasileiros aos gola e Moçambique e foi condenada em
instrumentos de defesa legal orientou a diversos países por infringir a legislação
elaboração do Projeto de Lei do Senado antitruste – trata-se, aqui, de impedir
nº 114, de 1997, que tem como propósi- que a fúria privatizacionista abra espaço
às aves de rapina dos negócios interna-
to facilitar o recurso à chamada ação ci-
cionais, permitindo que empresas iden-
vil pública, a qual, atualmente, só pode
tificadas com a face mais cruel e imoral
ser iniciada pelo Ministério Público. Por
do capitalismo venham a se apossar de
esse projeto, indivíduos ou entidades da
um patrimônio acumulado graças ao tra-
sociedade civil organizada também po-
balho do povo brasileiro.
derão instaurar ação civil pública com
as finalidades de evitar ou interromper Esses quatro projetos sintetizam
atos danosos à honra ou dignidade de meu trabalho no Senado no primeiro se-
grupos raciais, étnicos ou religiosos, e mestre deste ano. Seu objetivo comum
de obter a reparação de tais atos, quando é concretizar a pauta consensual do
não seja possível evitá-los. Objetiva-se, Movimento Negro, criando não apenas
leis isoladas, mas um conjunto coerente
assim, dotar esses grupos de um instru-
e integrado de peças legislativas capaz
mento ágil e eficaz que lhes possibilite
de reforçar os afro-brasileiros, indivi-
enfrentar as manifestações de racismo
dualmente e como grupo, em seus em-
e discriminação, quer sejam de caráter
bates na arena jurídica. No entanto te-
individual ou coletivo. Outro aspecto
nho profunda consciência de que, para
importante desse projeto de lei é a cria-
que esses projetos sejam aprovados e
ção de um fundo de defesa e combate
depois, como leis, implementados, faz-
ao racismo, sustentado pelas indeniza-
-se necessário que os setores organiza-
ções a que possam fazer jus os autores dos de nossa comunidade acompanhem
das ações, a ser instituído, até 12 meses nosso trabalho, tomem conhecimento
após a aprovação e publicação desta dessas iniciativas e as debatam em suas
lei, pela Secretaria Nacional de Direitos organizações, e que mantenham conta-
Humanos. to conosco para que possamos manter
O Projeto de Lei do Senado nº 73, sempre o elo com o movimento que re-
de 1997, completa esta breve exposição presentamos. Tenho dito muitas vezes
de meu trabalho até o momento. Apre- que este é um momento extraordinaria-
sentado em função de uma necessidade mente favorável. A questão racial dei-
do momento – impedir que a Vale do xou de ser tabu, sendo agora reconheci-
Rio Doce, e depois dela outras estatais, da pelo próprio presidente da República,
Pronunciamentos
Encontro na Baixada Fluminense 10

que criou o Grupo de Trabalho Intermi- para um novo tempo de conquista, para
nisterial para a Valorização da Popula- a luta negra, dos corações e consciên-
ção Negra. Outros fatos recentes, como cias de todos os brasileiros identificados
a inédita decisão do Supremo Tribunal com as causas da justiça e da liberdade.
do Trabalho dando ganho de causa a É responsabilidade de todos nós apro-
um negro discriminado na Eletrosul, a veitar a conjuntura favorável para esta-
atuação conjunta e eficaz de organiza- belecer, de uma vez por todas, a agenda
ções negras nos casos de Tiririca e do afro-brasileira como item prioritário na
ministro Padilha, o sucesso de publi- pauta das grandes questões nacionais.
cações de boa qualidade destinadas ao
público negro, sem esquecer a organiza-
ção de uma bancada afro-brasileira no Axé!
Congresso Nacional – tudo isso aponta
Pronunciamentos
Visita do presidente da Guiné-Bissau 10

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 10 de julho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Visita do presidente de Guiné-Bissau este pronunciamento.

País construído pelos africanos


e seus descendentes, que constituíram,
durante mais de quatro séculos, a esma-
gadora maioria de sua força de trabalho,
o Brasil tem para com a África uma dí-
vida tão grande que se pode considerá-la
irresgatável. Tão marcante é a presença
africana neste país que se pode afirmar,
sem medo de exagero, que tudo aquilo
que se considera genuinamente brasi-
leiro tem, na verdade, o forte tempero
das coisas africanas. Um tempero pre-
sente não apenas na música, na dança
e na culinária, como pretende um certo
reducionismo enviesado, mas também
na religiosidade, nas artes plásticas, na
literatura, no próprio modo de ser e es-
tar no mundo que caracteriza todos os
brasileiros.
10 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

Negada ou diminuída por muito a Guiné-Bissau foi a pátria do grande


tempo, em função de uma ideologia pre- comandante e poeta Amílcar Cabral,
conceituosa formulada, primeiro, para que em 1956 fundou o PAIGC – Par-
justificar a escravização de africanos e, tido Africano para a Independência da
mais tarde, para garantir uma reserva de Guiné-Bissau e Cabo Verde. O sonho de
mão de obra barata para a agricultura e constituir um país independente, unido
para a indústria, a seminal participação ao arquipélago de Cabo Verde – o que
africana em nossa história e em nossa infelizmente acabaria não se concreti-
cultura começa agora a ser reconhecida. zando –, levou o PAIGC primeiro a ten-
Para isso, tem sido fundamental a pres- tar negociar com Lisboa e depois a ini-
são exercida pelo Movimento Negro, ciar, em 1961, uma guerra de guerrilhas
por meio das centenas de organizações contra o exército colonial português que
que o compõem, cobrando das escolas e só teria fim com a proclamação unila-
dos meios de comunicação a veiculação teral de independência, em setembro de
de uma imagem mais adequada de um 1973. Um ano depois, Portugal assinou
continente que não foi somente o berço a paz com o PAIGC e o país conquistou
da humanidade, como apontam as pes- a liberdade política.
quisas das últimas quatro décadas, mas Irmão de Amílcar Cabral, as-
o berço da própria civilização. sassinado em 1973, Luís Cabral foi o
Assim, é com muita satisfação primeiro presidente da nova república,
que registramos a visita oficial a esta eleito no próprio dia da independência e
capital do presidente de uma nação afri- reeleito em 1977. Acusado de favorecer
cana a que estamos ligados pelos laços a minoria cabo-verdiana. Cabral foi de-
do sangue e da cultura. Refiro-me a posto, em 1980, pelo então primeiro-mi-
João Bernardo Vieira, ou Nino Vieira, nistro João Bernardo Vieira, antigo che-
chefe de Estado da Guiné-Bissau, país fe guerrilheiro e prestigiado porta-voz
que tive a oportunidade de visitar ainda da maioria negro-africana, que assumiu
nos anos 70, logo após ter-se livrado, ao o poder como presidente do Conselho
custo de uma guerra sangrenta, do colo- da Revolução, mais tarde transformado
nialismo português. Lembro-me muito em Conselho de Estado. Estava então
bem do clima de alegria e esperança, e definitivamente sepultado o sonho de
fico comovido ao recordar o encontro união com Cabo Verde.
que lá tive com o grande educador Pau- No princípio desta década, os
lo Freire, recentemente falecido, quan- ventos liberalizantes propagados com
do este, sentado à sombra de uma árvore a queda do Muro de Berlim atingiram
frondosa, transmitia generosamente a esse pequeno país africano, dando iní-
estudantes guineenses os fundamentos cio a um processo que culminou com a
do seu método de educação libertadora. extinção do modelo de partido único e a
Primeiro país da chamada África revisão da Constituição, tendo em vista
“Portuguesa” a se tornar independente, adaptar o país às novas condições da co-
Foto: Elisa Larkin Nascimento

Mulher com seu filho no mercado de Bissau, 1976.


Foto: Elisa Larkin Nascimento

Soldado do exército revolucionário conversa com uma criança. Bissau, 1976.


Pronunciamentos
Visita do presidente da Guiné-Bissau 111

munidade internacional. Criaram-se en- que tem caracterizado a Guiné-Bissau


tão novas agremiações, como o Partido desde a sua independência.
da Renovação e do Desenvolvimento, o As relações diplomáticas entre
Partido Democrático para o Progresso, Brasil e Guiné-Bissau foram estabele-
o Partido de Renovação Social, o Mo- cidas em 17 de junho de 1974, quando
vimento para a Unidade e a Democracia nosso país reconheceu a independência
e o Movimento Bafatá – este último, o do novo Estado. Foi uma das primeiras
principal partido de oposição. Em julho ações da política oportunista batizada de
de 1994, a Guiné-Bissau teve suas pri- “pragmatismo responsável”, com a qual
meiras eleições livres, num pleito consi- u Brasil dava uma guinada de 180 graus
derado justo pelos observadores interna- em suas relações com a África, em es-
cionais, com a vitória de João Bernardo pecial a chamada África “Portuguesa”,
Vieira, que tomou posse em setembro depois de décadas de atrelamento aos
daquele ano. Seu mandato vai até o ano interesses do colonialismo português.
que vem, quando estão marcadas novas Em que pese às razões que presidiram
eleições. tal iniciativa – situadas muito mais no
As precárias condições econômi- âmbito das motivações geopolíticas do
cas da Guiné-Bissau – uma das nações que na esfera da ética e do humanitaris-
mais pobres do mundo e a que recebe mo –, essa aproximação tem tido conse-
maior ajuda externa per capita – não quências positivas. Carente não apenas
impediram esse pequeno país de apoiar de recursos materiais, mas também de
a maioria dos movimentos de liberta- recursos humanos, têm sido proveito-
ção no Terceiro Mundo, de combater o sos para a Guiné-Bissau os programas
apartheid e de defender a Namíbia em de cooperação educacional e técnica
diversos foros internacionais. Com uma com o Brasil, com a concessão de bol-
política externa pragmática e não ali- sas de estudo em nível de graduação e
nhada, a Guiné-Bissau tem mantido um pós-graduação e a assistência técnico-
relacionamento estreito com o Ocidente -educacional por intermédio da Marinha
– em especial, com sua antiga metrópo- Mercante, da Aeronáutica, dos estabele-
le, Portugal, cuja presença se dá tanto no cimentos agrícolas e da administração
comércio quanto na cooperação, o que pública. É esperança do Governo guine-
inclui a difusão da língua portuguesa. ense o estreitamento dos laços entre os
Segundo especialistas, os ajustes estru- dois países nas áreas de saúde e educa-
turais recentemente introduzidos em sua ção. Em contrapartida, as propostas bra-
economia – que já começam a dar frutos sileiras, no âmbito das Nações Unidas,
positivos –, somados ao fato de o país têm recebido o invariável apoio da Gui-
ter ingressado na União Econômica e né-Bissau. Da mesma forma, a iniciati-
Monetária da África Ocidental, com a va brasileira de se criar a Comunidade
consequente substituição do peso guine- dos Povos de Língua Portuguesa teve
ense pelo franco CFA, deverão redundar pronta aceitação por parte do Governo e
na redução da instabilidade econômica da intelectualidade guineenses. A União
11 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

Nacional dos Artistas e Escritores da rações na África de hoje que por sinal o
Guiné-Bissau foi a primeira entidade condenou de forma quase unânime. Isso
cultural africana a lançar manifesto em se soma a uma conjuntura francamente
prol dessa iniciativa, conclamando suas favorável, com colheitas abundantes e
congêneres a fazerem o mesmo. preços estáveis para os seus produtos
Acostumados a olhar a África no mercado internacional, para gerar
com uma visão estereotipada e precon- desempenhos econômicos como o de
ceituosa, alimentada por um noticiário Uganda, que tem crescido desde 1992 a
que enfatiza tragédias, crises e massa- uma taxa de oito por cento ao ano digna,
cres, a ponto de nos fazer acreditar que portanto, de um “Tigre Asiático”.
estes são tão característicos do Conti- A África está mudando. E o Bra-
nente Africano quanto a rica fauna das sil, mais que qualquer outro país, pode
savanas ou os eloquentes vazios do de- ajudar nesse processo e se beneficiar
serto, a maioria de nós não está perce- com ele, estabelecendo uma sólida co-
bendo os sinais de mudança emitidos de operação nas áreas do comércio, educa-
vários países da África Subsaariana. O ção, cultura, ciência e tecnologia. Por
autoritarismo e a instabilidade política, tudo isso, e pelos indissolúveis laços
antes regras quase gerais, vêm sendo etno-históricos que indiscutivelmente
substituídos por regimes democráticos nos unem, saúdo desta tribuna o presi-
cada vez mais sólidos. A ponto de gol- dente João Bernardo Vieira, almejando
pes de Estado, como o que recentemente pleno êxito à missão que o trouxe ao
depôs o Governo eleito de Serra Leoa, nosso país.
estarem gradualmente se tornando aber- Axé, presidente Nino Vieira!
Pronunciamentos
Defesa de maior aproximação do Brasil com a África 11

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 25 de junho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Em defesa da aproximação do este pronunciamento.
Brasil com a África nas áreas
cultural e política
Maior país negro fora da África,
que recebeu o maior número de africa-
nos escravizados e um dos que mais lu-
craram com o tráfico transatlântico e a
exploração da mão de obra africana, o
Brasil tem para com a África uma dívida
tão grande que seria impossível resgatá-
-la, mesmo que houvesse uma irresistí-
vel vontade de fazê-lo. Responsáveis,
durante a maior parte de nossa História,
pela produção em quase todos os setores
da economia, africanos e afro-brasilei-
ros, mulheres e homens, deram literal-
mente o seu sangue e o seu suor – para
não falar no seu esperma e no seu leite
– na construção deste país, embora, na
famosa hora de dividir o bolo, sempre
tenham sido, e continuem sendo, prete-
11 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

ridos em favor de outros grupos étnicos, Mas é a partir dos anos 1950,
uns chegados cedo apenas para explo- quando ganha corpo na África a luta
rar e oprimir africanos e índios, outros anticolonialista, que o racismo passa a
chegados mais tarde e cuja contribuição ser um elemento de maior importância
foi incomparavelmente menor que a dos na orientação da política formulada pelo
africanos. Itamaraty. Embora defendendo os prin-
Herança de séculos de escravi- cípios gerais da liberdade e do que então
dão, atualizada na sociedade pós-1888 se denominava “o direito de autodeter-
minação dos povos”, o Brasil atrelou
em função das necessidades de uma nas-
sua política “africana” aos interesses de
cente sociedade capitalista, que precisa-
Portugal, à época sob a ditadura salaza-
va de mão de obra barata na lavoura e na
rista. O que significou, na prática, uma
indústria, o racismo é uma das marcas
série de votos e abstenções nas Nações
características das relações sociais no
Unidas em favor da manutenção do
Brasil, ainda que por aqui se mostre tra-
domínio luso na chamada África Por-
vestido de seu exato oposto, graças a vá-
tuguesa, que compreendia Angola, Mo-
rias estratégias de dominação, inclusive çambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde
o mito da “democracia racial”. Com- e São Tomé e Príncipe, sem qualquer
parado a um monstro de mil faces, que preocupação de caráter humanitário ou
interfere em variados aspectos da vida com as implicações geopolíticas dessa
em nosso país, o racismo também tem posição. Em suma, sem a consciência do
se imiscuído há muito tempo na própria que tal postura poderia representar para
formulação de nossa política externa. Na um país com pretensões a um papel de
década de 1920, por exemplo, quando liderança no Hemisfério Sul. Eu mesmo
a perspectiva da vinda de afro-america- sofri na própria pele os reflexos dessa
nos para colonizar os vazios de nosso política, perseguido em meu próprio
Centro-Oeste, atraídos por anúncios pu- país por obra e graça da PIDE, a terrível
blicados na imprensa dos Estados Uni- polícia política de Salazar, então com
dos, provocou acaloradas discussões no livre trânsito para defender, no Brasil,
Congresso, as posições dos que viam os interesses escusos da atrasada classe
nisso uma ameaça à nossa “harmonia ra- dominante portuguesa.
cial” consubstanciaram-se numa ordem Infelizmente, foram os interesses
sigilosa enviada aos consulados brasi- materiais – disfarçados por um discur-
leiros naquele país, mandando-os negar so hipócrita que apelava às afinidades
vistos a esses “indesejáveis” candidatos etno-históricas – os responsáveis pela
a imigrantes. Temia-se que os negros radical transformação da política afri-
norte-americanos, mais acostumados ao cana do Itamaraty, em meados da dé-
confronto racial num país que então não cada de 70. Não por coincidência, no
escondia o seu racismo, viessem “conta- justo momento em que os portugueses
minar” os afro-brasileiros com exóticas eram expulsos, pela força das armas, de
ideias de democracia e igualdade. suas “colônias” africanas, que eles – tal
Pronunciamentos
Defesa de maior aproximação do Brasil com a África 11

como todos os “colonizadores” euro- dignas de nota resultam muito mais do


peus – haviam ajudado, de todas as for- interesse espontâneo de artistas e enti-
mas, a subdesenvolver. Com o esperto dades privadas do que de um esforço
reconhecimento, pelo Brasil, do gover- do nosso Governo no sentido de uma
no revolucionário de Angola, nascia o aproximação e de um intercâmbio que,
“pragmatismo responsável”, termo que com toda a certeza, se mostrariam muito
expressa, com toda a eloquência, a ver- proveitosos, tanto para africanos quan-
dadeira motivação dessa guinada de 180 to para brasileiros de todas as origens.
graus que teve, pelo menos, o mérito de Festivais como os Kizomba, organiza-
atualizar a política externa do país, colo- dos em meados dos anos 80, no Rio de
cando-a em dia com as modernas tendên- Janeiro, sem nenhum apoio oficial, pelo
cias da política internacional e abrindo as cantor/compositor Martinho da Vila,
portas a uma aproximação menos oportu- com a participação de grupos artísticos
nista com o Continente Africano. de diversos países africanos e da diás-
pora, ao lado de seus correlativos afro-
Desde então, o Brasil tem am-
-brasileiros, comprovaram claramente
pliado bastante as suas relações com
o interesse do público brasileiro, inde-
os países africanos de maneira geral, e
pendente da ascendência, por iniciativas
em particular com os de língua oficial
dessa natureza, apontando um caminho
portuguesa, favorecido pela posição ge- possível a ser seguido, com proveitosos
ográfica e pelo grau de desenvolvimen- retornos para todos os envolvidos.
to de sua economia, que o coloca, nesse
Na arena política, parece que
sentido, em posição vantajosa até mes-
nossa secular miopia em relação à Áfri-
mo quando comparado com os Estados
ca continua afetando seriamente a visão
Unidos ou as nações da Europa. Expli-
dos policy makers do ltamaraty. Caso
ca-se: os produtos elaborados ou aper-
exemplar é o atual conflito no ex-Zaire e
feiçoados no Brasil, país tropical ainda
no Congo-Brazaville, nações unidas ao
em vias de desenvolvimento, atendem
Brasil por laços étnicos indissolúveis,
muito melhor às necessidades dos afri-
pois que dessa região proveio um signi-
canos do que os produtos “de ponta”,
ficativo percentual dos africanos escra-
oriundos do mundo desenvolvido, pla- vizados que construíram este país. Em
nejados para um mercado muito dife- vez de assumir o ativo papel de media-
rente daquele que caracteriza a maior dor, amparado em sua herança histórica,
parte da África. É a chamada “tecnolo- que lhe granjearia a simpatia e o respei-
gia intermediária”, o grande trunfo do to na África e em todo o mundo – com
Brasil nas suas relações comerciais com todos os reflexos positivos que daí advi-
o chamado Terceiro Mundo. riam, inclusive do ponto de vista geopo-
O avanço na área comercial ainda lítico –, o Brasil permanece ancorado na
não teve, contudo, reflexos proporcio- cômoda mas inútil posição de observa-
nais nas áreas da cultura e da política. dor, indiferente às ricas possibilidades
No campo cultural, as poucas ações que a situação lhe oferece. Nesse vácuo,
11 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

a nova África do Sul de Nelson Mandela te de um hemisfério de que somos, pelo


emerge para reafirmar seu status de po- peso dos números, os líderes naturais.
tência regional, atenta ao seu papel his- Se pusermos de lado as viseiras do eu-
tórico e ajudada pela popularidade inter- rocentrismo, veremos que nossa aproxi-
nacional obtida com o desmantelamento mação com a África – que já começa a
do apartheid e a assunção de um regime despertar do secular torpor trazido pela
identificado com os interesses da maio- escravidão e o colonialismo, como mos-
ria negra. Entretanto o Brasil poderia tram os inéditos índices de crescimento
dar um sentido pragmático à sua estreita de algumas nações ao sul do Saara – não
e amistosa relação com Angola para, tal- é apenas uma opção entre muitas. Trata-
vez numa ação conjunta, colaborar para -se, antes, de um imperativo que o Bra-
a sua estabilização e para a democrati- sil, cedo ou tarde, terá de reconhecer e
zação do novo Governo da República enfrentar. É nossa esperança, como bra-
Democrática do Congo. sileiros de origem africana, que o faça
Nem tudo, porém, está perdido. logo. Em benefício dos africanos e de
Ainda é tempo de o Brasil assumir um todos os brasileiros.
papel mais positivo em suas relações
com o mundo africano, parte integran-
Axé!
Pronunciamentos
Ministro de Estado racista 11

Discurso proferido no Senado Sr. Presidente,


Federal em 1º de julho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Manifestação contra o meu pronunciamento.
ministro Eliseu Padilha
Tenho insistido, desde que tomei
posse nesta Casa, na questão do comba-
te ao racismo. Tenho apresentado pro-
jetos de lei e feito pronunciamentos,
talvez até com excessiva insistência,
condenando essa verdadeira chaga, esse
câncer que corrói a sociedade brasileira.
Ainda agora, houve outra de-
monstração lamentável de racismo no
Brasil. Declarou o senhor ministro dos
Transportes, Eliseu Padilha, que “exis-
tem dois pretos que são admirados por
todo o Brasil. Um é o Pelé, que é o nos-
so rei sempre. O outro é o rei asfalto,
todo mundo gosta do asfalto. É o preto
que todo mundo gosta”. Essas declara-
ções foram reproduzidas pela Imprensa
de todo o País.
Ora, S. Exª não atingiu apenas o
ministro Pelé, mas toda a população de
11 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

descendência africana neste País, que lhores de outras raças porque to-
é, aliás, a que forma a maioria do povo dos os seus talentos ainda não lhe
brasileiro. garantiram o status de detentor de
S. Exª pertence ao Governo do plena humanidade.
excelentíssimo senhor Fernando Henri- Por isso ele só seria com-
que, que, ainda há pouco tempo, abrindo parável a um derivado de petró-
um seminário internacional sobre a ação leo, uma das poucas coisas pretas
afirmativa em favor da população negra, valorizadas no mundo.
declarou-se contra o racismo, dizendo Essas são as honras reser-
mesmo que tinha um pé na cozinha, vadas a um rei negro no Brasil.
como uma metáfora da sua ascendência
Para os demais negros,
africana.
como Jorge Paulo, mendigo, 48
Não se trata apenas de um bra- anos, queimado enquanto dormia
sileiro qualquer que manifestou esse
na Cinelândia, resta o extermínio.
racismo, mas de um ministro de Esta-
Talvez como forma de punição
do. Não sei como esse ministro pode
por não ter conseguido ser Pelé,
pertencer a um governo que combate o
nem asfalto.
racismo e falar contra o povo negro, de
ascendência africana. Talvez pela expectativa de
que, como uma fênix, de suas cin-
Queria, desta tribuna, assumir o
zas misturadas ao asfalto resulte
raciocínio do grupo das mulheres negras
mais um “ser” que possa ser “ad-
de São Paulo, do Instituto da Mulher
mirado” pelo Brasil como Pelé ...
Negra Geledés. Diz o documento:
Talvez renascer com o tipo
Que comparação possível
de “humanidade” pretendida pela
pode haver entre Pelé, um homem
professora negra Eliane Alves da
negro, o maior atleta do século, e
o asfalto? A cor? Nem Pelé é pre- Silva, para quem deveriam ter
to, nem o asfalto é negro; nem morrido 20 milhões de judeus aos
Pelé é coisa, nem asfalto é gente. invés de seis candidatando-se as-
sim a uma vaga de membro hono-
O que autoriza alguém a
rário do próximo Reich, para de-
comparar gente a coisa é a de-
sespero dos discípulos de Hitler.
sumanização e a coisificação de
seres humanos que o racismo e a Três dimensões perver-
discriminação produzem. Para o sas e assustadoras do racismo no
ministro Eliseu Padilha, Pelé não Brasil: a coisificação/desumani-
é comparável a nenhum outro ser zação, a eliminação física pura e
de sua raça porque é considerado simples ou a opção de tornar-se o
uma exceção dentro dela, já que outro, o racista opressor.
é o único admirável. E também Esse documento dá uma demons-
não pode ser comparado aos me- tração da isenção das organizações ne-
Pronunciamentos
Ministro de Estado racista 11

gras que combatem o racismo. Ele não Eram essas minhas considerações
somente combate o racismo do ministro de repúdio e de lamentação ao proce-
de Estado, mas também combate o ra- dimento desse ministro de Estado do
cismo de uma mulher negra, professo- Governo do senhor Fernando Henrique
ra da Universidade Federal Fluminen- Cardoso.
se, que se manifestou de forma racista Muito obrigado.
numa sala de aula.
Pronunciamentos
Do sistema penitenciário 1 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente, Senhoras e


Federal em 3 de julho de 1997 Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
Vítimas da violência da polícia
brasileira
Durante os últimos meses vem
ocorrendo uma série de conflitos no
sistema penitenciário, permitindo-nos
prever uma tragédia anunciada, com ce-
nas tão macabras e desumanas quanto as
ocorridas no presídio de Carandiru.
A passividade do Poder Executi-
vo quanto a essa questão faz-nos refletir
sobre o elevado grau de incompetên-
cia na gestão do sistema penitenciário,
disfarçada pela esfarrapada crítica à
falta de vontade política, tão ao gosto
do palavreado liberal, que sempre sur-
ge depois das tragédias provocadas ou
permitidas pelo Poder Público contra os
brasileiros pobres e miseráveis.
Os problemas que assolam o sis-
tema penitenciário são múltiplos e de
diversas naturezas. Mas não se pode
ignorar o fato de 95% dos encarcera-
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

dos serem pobres e de dois terços dessa ocupação comum com os descaminhos
população serem compostos de afro- do sistema penal brasileiro e a falta de
-brasileiros – ou “pretos” e “pardos” –, perspectiva dos encarcerados.
segundo o censo penitenciário de 1994 e Todos sabemos que, por princí-
dados da CPI do Sistema Penitenciário pio, as penas que privam os indivíduos
de 1993. da liberdade têm como fundamentos
Esses números, que representam a justiça e a defesa social. Mas não se
pessoas, mais uma vez expõem a face pode perder a perspectiva de que é fun-
perversa do racismo brasileiro. A pobre- ção do Estado a reeducação e o preparo
za e a criminalização de negros consti- do apenado para que ele volte ao conví-
tuem um dos princípios que permeiam a vio social. O Estado, porém, além de ser
interpretação do direito e a aplicação da negligente com a sua missão, propicia e
justiça em nosso país. promove os meios que impedem a recu-
Não se trata aqui de choramin- peração do encarcerado, como indiví-
gas e lamentos. Pesquisas quantitativas duo capaz de ter uma função social, ao
denunciam que, quando se trata de um mesmo tempo em que agrava o processo
afro-brasileiro envolvido em ilícitos, a de marginalização desse indivíduo du-
polícia é persecutória e voraz no cum- rante o período em que está cumprindo
primento da sua missão, a Defensoria a pena.
Pública, não raro, vagueia nos limites A violência sem proporções, que
da burocracia e a justiça, na sua ceguei- se instalou nos grandes centros brasilei-
ra plena, avança sem limites até o mais ros praticamente impõe uma sobrepena
alto grau de parcialidade. aos condenados, principalmente pela
Durante o início da Campanha da violação generalizada dos direitos hu-
Fraternidade deste ano, que tem como manos. Uma vez condenado, o indiví-
lema A Fraternidade e os Encarcerados, duo perde o direito à liberdade, mas não
tive a oportunidade, juntamente com a os direitos fundamentais da pessoa hu-
ilustríssima senadora Benedita da Sil- mana. São imensos os ultrajes por que
va e os ilustríssimos deputados Luís passam os familiares dos presos durante
Alberto, Paulo Paim e Chico Vigilan- as visitas nas delegacias e nos presídios
te, de visitar o Excelentíssimo Senhor em termos de angústia e de humilha-
Dom Lucas Moreira Neves, presidente ção. É como se a pena se estendesse à
da CNBB, ocasião em que lhe foi en- família, atingindo mães, filhos, avós de
tregue o documento intitulado Situação forma autoritária e impiedosa. Somem-
da População Afro-Brasileira e Segmen- -se a isso as centenas, talvez milhares
tos Excluídos do Sistema Penitenciário de presos que já cumpriram suas penas
Brasileiro e Propostas de Garantia do e continuam encarcerados, por falta de
Princípio da Dignidade da Pessoa Hu- uma assistência jurídica adequada.
mana. Foi um encontro bastante alvis- O abuso de autoridade, a corrup-
sareiro, em que se evidenciou nossa pre- ção, a tortura como prática cotidiana
Pronunciamentos
Do sistema penitenciário 1

da vida prisional, o ócio diuturno e a ticou um delito leve tenha de conviver


própria criminalidade interna são fato- com elementos de alta periculosidade.
res mais que conhecidos das autorida- No início do mês de maio, o Ins-
des e constituem as principais causas tituto de Cultura e Consciência Negra
das rebeliões que vêm ocorrendo nos Nelson Mandela, entidade que teve ori-
presídios brasileiros. A proliferação de gem no Complexo Frei Caneca, no Rio
doenças como a AIDS e a tuberculose de Janeiro, realizou o seminário Ques-
faz parte da rotina insalubre das casas de tões Penitenciárias – O Presidiário Pede
detenção. Quando o preso consegue es- Socorro, cujo documento de apresenta-
capar da morte e recuperar a liberdade, ção afirmava o seguinte:
leva consigo uma capacidade incontro- Cientes de que o siste-
lável de contaminação. ma penal, da forma como vem
Numa sociedade como a nossa, funcionando, não recupera, mas
que incorpora de forma acelerada a alta contribui para marginalizar ainda
tecnologia ao sistema produtivo, redu- mais os detentos, faz-se urgente a
zindo sobremaneira os postos de empre- mobilização e a atuação conjun-
go para os trabalhadores pouco qualifi- ta dos vários segmentos da nossa
cados, as oportunidades oferecidas para sociedade, de forma que aos ho-
um ex-presidiário são praticamente nu- mens e mulheres que foram con-
las, para o que concorre o fato de 89% denados a pagar por seus erros
dos presos, segundo o censo de 1994, com o confinamento sejam res-
não exercerem nenhum tipo de trabalho tituídos os direitos de cidadania.
ou atividade produtiva. a dignidade humana e oferecidas
Outra questão que temos que con- reais oportunidades de reintegra-
siderar, apontada em recente artigo da ção social através da qualificação
socióloga Julita Lemgruber, publicado profissional e do trabalho.
no jornal O Globo, é que 45 mil presos Em outro trecho, o documento
– aproximadamente um terço da popula- afirma:
ção carcerária – praticaram crimes sem Garantir a ressocialização
violência. O que nos permite avaliar que é um dever do Estado brasileiro e
seria perfeitamente razoável a aplicação uma necessidade social que, lon-
de penas alternativas. ge de ater-se aos interesses dos
Nesse sentido, os benefícios se- indivíduos punidos pela Justiça
riam significativos, tanto em relação ao do país, é fator de enorme im-
sistema penitenciário, quanto em rela- portãncia na construção de uma
ção ao condenado. Por um lado, a redu- sociedade menos violenta, que se
ção dos custos operacionais e de manu- estruture a partir de ideais mais
tenção; por outro, a punição fundada na justos e igualitários, que não acir-
defesa da cidadania e com o benefício rem ainda mais as profundas de-
de impedir que um indivíduo que pra- sigualdades sociais nela vigentes.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

Considerando que as rebeliões exploradas por organizações internacio-


nos presídios têm sido a única forma de nais. Além disso, quase todas se quei-
os apenados chamarem a atenção das xam de terem sido extorquidas por po-
autoridades e da sociedade em geral, e liciais após a prisão em flagrante. Não
ainda que existe um déficit de 80 mil va- tendo vínculos com o país, são obriga-
gas no sistema penitenciário, é mais do das a aceitar os serviços de advogados
que evidente que estamos diante de uma dativos – defensores pagos pelo Estado
iminente tragédia. Assim que esta Casa –, que terminam cobrando, sem recibo,
pode e deve contribuir, dentro dos seus altos honorários em dólares. Some-se a
limites, para a solução desse quadro isso a frequente ausência de intérpretes
aterrador. Nesse sentido, faço um ape- nas audiências na justiça, contrariando o
lo aos colegas congressistas para, num artigo 71 do Estatuto do Estrangeiro, e
empenho conjunto, avaliarmos o mais teremos uma ideia da situação kafkiana
breve possível as propostas da socieda- por que passam essas infelizes.
de sobre a matéria em questão, de forma Recentemente, tive oportunida-
a que possamos fornecer uma resposta de de visitar, no presídio Talavera Bru-
do Legislativo a esse grave problema ce, no Rio de Janeiro, uma jovem sul-
Quero aproveitar o ensejo para -africana, de nome Carol Portia Taulse,
denunciar, fazendo eco a reportagem que, enganada por uma pretensa amiga,
publicada no dia 22 de junho último foi presa no Aeroporto do Galeão com
pelo Jornal do Brasil, a situação cruel cocaína e agora terá de passar anos na
a que se veem submetidas as mulheres cadeia. Sensibilizado por sua evidente
estrangeiras encarceradas em nosso país inocência, estou trabalhando, em con-
por suposta participação no tráfico de junto com outros defensores dos direi-
drogas as chamadas “mulas”. Seduzi- tos humanos, para obter a revisão do
das pela promessa de dinheiro “fácil” processo. Um processo cheio de falhas,
ou simplesmente enganadas pelos tra- incluindo a falta de sustentação no tri-
ficantes, que se utilizam dos mais di- bunal. Não se trata, aqui, de defender
versos expedientes para fazê-las trans- traficantes, mas, em primeiro lugar, de
portar entorpecentes – principalmente garantir a essas pessoas o direito de am-
cocaína – sem ter conhecimento do que pla defesa, consagrado em nossa Cons-
carregam, muito menos dos perigos que tituição. E de tornar mais proporcional a
correm, essas mulheres acabam vítimas lei que pune o tráfico, distinguindo entre
de um conjunto de fatores perversos os verdadeiros responsáveis – que quase
que contribuem para que sejam desres- sempre se mantêm impunes – e aqueles
peitados seus direitos humanos. O prin- que lhes servem, consciente ou incons-
cipal deles é o próprio enquadramento cientemente, de simples instrumentos.
na Lei de Crimes Hediondos, feita para
coibir sequestros e considerada exces-
siva quando se trata de punir mulheres Axé!
Pronunciamentos
Comemoração da Revolução Constitucionalista de 1932 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 9 de julho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Comemoração da Revolução este pronunciamento.
Constitucionalista de 1932
A história da luta pela liberdade
e a democracia em nosso país registra
um sem-número de páginas gloriosas,
exemplos de tenacidade, sacrifício e ab-
negação protagonizados por brasileiros
de todas as épocas e de todas as origens.
Diferentemente da imagem passiva e
conformista que mitos como o do “ho-
mem cordial” tentam inculcar no povo
brasileiro, este soube sempre manifestar
os seus anseios e reivindicações por to-
dos os meios necessários, defendendo –
até mesmo com o próprio sangue – seus
direitos ultrajados.
No dia de hoje comemora-se o
65º aniversário de um movimento que
se insere, de pleno direito, entre os be-
los exemplos da luta do povo brasileiro
em defesa dos ideais democráticos. Es-
tou me referindo à Revolução Constitu-
cionalista de 1932, iniciada a 9 de julho
daquele ano, em protesto contra a demo-
ra do Governo central, instaurado dois
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

anos antes, em implementar a reforma rando sua presença na vida política de


da vida política brasileira e promulgar a nosso país. Lidas por César Ladeira, as
nova Constituição. crônicas diárias de Rubens Amaral, di-
De início, foram manifestações de retor do jornal O Correio de São Paulo
protesto, que ganharam pouco a pouco a e porta-voz da ação revolucionária, in-
adesão da população e alvoroçaram os suflavam os corações generosos daquela
meios universitários. em especial os es- juventude disposta a sacrificar a própria
tudantes da famosa Faculdade de Direito vida em defesa de seus ideais.
do Largo São Francisco. No dia 23 de Queluz, Lorena, Taubaté, Cunha,
maio, uma dessas manifestações culmi- Guaratinguetá, Silveira, Cruzeiro: as ci-
nou com o assassinato a tiros, no centro dades do vale do Paraíba se encheram
de São Paulo, de quatro estudantes: Má- de trincheiras, transformadas em pontos
rio Martins de Almeida, Euclides Bueno estratégicos em que revolucionários e
Miragaia, Dráusio Marcondes de Sousa governistas se enfrentavam em comba-
e Américo Camargo de Andrade. As ini- tes sangrentos. Cabo do 4º Regimento
ciais dos nomes por que eram conhecidos de Infantaria, participei dessas batalhas,
– MMDC, de Martins, Miragaia, Dráusio em que pude constatar a bravura de co-
e Camargo – passaram a denominar uma legas de armas cujos nomes o tempo
nova entidade, criada para cuidar, entre não pôde apagar: general José Ribamar
outras coisas, do abastecimento e comu- de Miranda, capitão Giusepe Amado, te-
nicações dos revoltosos. A 9 de julho, co- nente Jacy Iguatemy da Fonseca, tenen-
meçava a Revolução. te Aeming ... Eu mesmo fui ferido, mas
Foram organizados exércitos de consegui me recuperar, ao contrário de
voluntários, recrutados em todas as clas- tantos outros, que pagaram seu tributo
ses sociais. reunindo operários, aristocra- de sangue pela liberdade.
tas e intelectuais, que saíam para as fren- A tomada do porto de Santos pe-
tes de combate contra as tropas federais. las tropas federais cortou aos paulistas o
Damas da sociedade integravam grupos suprimento de armas e munições, bem
de assistência e socorro, confeccionavam como o acesso ao Rio de Janeiro. Final-
uniformes e providenciavam alimenta- mente, a 29 de setembro, o chefe revo-
ção. Os negros paulistas, evidentemente, lucionário Bertoldo Klinger anunciou o
não recusaram o chamado, movidos pela cessar-fogo, pondo fim a três meses de
esperança de que uma nova ordem políti- conflito. Mas a derrota militar não sig-
ca lhes pudesse trazer a concretização da nificou, absolutamente, uma derrota po-
sua condição de cidadãos, que a Abolição lítica. Pelo contrário. Em maio do ano
da Escravatura, ocorrida pouco mais de seguinte, realizaram-se eleições para
40 anos antes, prometera mas não pude- o Congresso, e a Constituinte de 1934
ra, por si mesma, garantir. elegeu Getúlio Vargas presidente da Re-
Uma das novidades do movimen- pública, encerrando quatro anos de arbí-
to foi a participação do rádio, inaugu- trio, Foi estabelecido o sufrágio secreto
Pronunciamentos
Comemoração da Revolução Constitucionalista de 1932 1

e obrigatório e concedido às mulheres te deste país, exemplo de determinação


o direito de voto, além de promulgadas e desprendimento de brasileiros para
as leis trabalhistas, A Revolução de 32 quem a justiça e a liberdade justifica-
fora, por fim, vitoriosa, vam qualquer sacrifício, Como os de
Assim, quero conclamar todos os Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo,
democratas a comemorar comigo esta
data tão significativa na história recen-
Axé!
Inauguração da Escola Professor Abdias Nascimento, São Luís do Maranhão, 1991. Da esquerda para a direita, Abdias
Nascimento, Elisa Larkin Nascimento, José de Ribamar Marinho Caldeira, João Francisco dos Santos e o prefeito de São
Luís, Jackson Barreto.

Vista da Escola Professor Abdias Nascimento, criada pela Associação Cultural Akomabu.
Pronunciamentos
Livro sobre São Luís do Maranhão 1 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 10 de julho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Satisfação com a publicação Reviver, este pronunciamento.
editada pelo senador Epitácio
Cafeteira, que mostra a arquitetura
Preservar a memória histórica
de São Luís, prestes a ser declarada
constitui a melhor maneira de se mante-
Patrimônio da Humanidade.
rem vivos os elos que ligam o passado e
o presente de um povo, fortalecendo sua
identidade e garantindo a continuidade
cultural entre as gerações. Infelizmente,
nós brasileiros não temos tido, em geral,
a consciência da importância de nossa
memória. Permitimos, assim, a degra-
dação de nossos referenciais artísticos e
arquitetônicos, ou mesmo sua total des-
truição, substituindo-os por shopping
centers, condomínios luxuosos ou ou-
tros ícones de uma “modernidade” que
pretende desvencilhar-se do passado na
ilusão de que isso propicie um atalho
para o futuro.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

É, assim, com enorme satisfação Moura ao seu sucessor, Jerônimo de Al-


que recebemos a publicação Reviver, buquerque, em 9 de janeiro de 1616.
editada por iniciativa do excelentíssi- O plano de Francisco Frias de
mo senador Epitácio Cafeteira, ex-go- Mesquita – provavelmente o primeiro
vernador do Estado do Maranhão, que realizado no Brasil – foi decisivo para
focaliza a arquitetura da cidade de São conferir à cidade um aspecto de regula-
Luís. Em 140 páginas de primorosa im- ridade geométrica, servindo para orien-
pressão em papel couché, com texto em tar o crescimento da capital maranhense
português e inglês, revela-se não apenas até o final do século XIX. Representou,
o importante trabalho de recuperação do assim, um grande avanço em relação ao
centro histórico daquela cidade, empre- estilo medieval, de ruas estreitas e tor-
endido durante seu governo, mas prin- tuosas, adotado pelos portugueses no
cipalmente as verdadeiras joias que a Rio de Janeiro, bem como em Olinda e
colocam entre as mais belas expressões Recife.
de nossa arquitetura colonial. A invasão holandesa, que durou
Fundada pelos invasores france- de 1641 a 1644, marcou um período de
ses em 1612, São Luís constituiu por saques e destruição. Embora a partir de
muito tempo, juntamente com Belém, então se consolidasse a presença portu-
o principal porto e centro político-eco- guesa, somente um século e meio depois
nômico da região Norte, concentrando a região começaria a se desenvolver do
o fluxo de riquezas provenientes dessa ponto de vista econômico, com a criação,
área vastíssima e, então, virtualmente pelo marquês de Pombal, da Companhia
inexplorada. Logo em seus primórdios, de Comércio do Grão-Pará e Maranhão.
a nova capital colonial foi privilegiada O futuro estado se integrava, assim, às
pela chegada – pode-se dizer providen- grandes correntes do comércio mundial,
cial de Francisco Frias de Mesquita, en- com o plantio e exportação de algodão
genheiro-mor do Estado do Brasil, cuja e arroz para a Europa e a “importação”
principal missão consistia em projetar das primeiras levas de africanos escravi-
edificações capazes de assegurar a defe- zados, que logo constituiriam o grande
sa da cidade contra ataquei; dos france- motor da produção.
ses, recentemente expulsos. O trabalho dos africanos e seus
Ocorre que, além das fortalezas, descendentes possibilitou, em apenas
o engenheiro-mor deixou também um duas décadas, uma transformação eco-
plano de urbanização que a partir daí nômica que ensejaria, por sua vez, o
constituiu o referencial para a expansão surgimento do extraordinário centro
e desenvolvimento da cidade. A ponto urbano de São Luís. Muito precárias e
de determinar a construção de uma casa construídas de taipa e palha, as velhas
“como modelo para as que viessem a ser casas foram substituídas por sólidas
feitas”, como se pode ler no Regimento edificações de alvenaria, à base de pe-
deixado pelo capitão-mor Alexandre de dra argamassada com sal de sarnambi e
Pronunciamentos
Livro sobre São Luís do Maranhão 1

óleo de peixe, juntamente com madeira mento e estagnação – paradoxalmente,


de lei, serralheria e cantarias de lioz im- responsável, em grande parte, pela pre-
portadas de Portugal, Surgiram detalhes servação não só de seu patrimônio ar-
construtivos mais sofisticados e adap- quitetônico, mas de recursos urbanos e
tados ao clima tropical úmido, como as ambientais que já se perderam na maior
varandas posteriores em madeira. guar- parte das capitais brasileiras. Não por
necidas por rótulas móveis, o forro em acaso, a UNESCO vem de aprovar pa-
“espinha de peixe” e o pé-direito ele- recer técnico que indica São Luís como
vado, deixando passar a ventilação. Em Patrimônio da Humanidade.
meados do século XIX, intensificou-se Quero, portanto, dar meus para-
o vão dos revestimentos de azulejo nas béns ao senador Epitácio Cafeteira pelo
fachadas, que passaram a se constituir arrojado projeto de recuperação urbana
num dos mais belos e característicos as- empreendido em sua passagem pelo Go-
pectos da arquitetura de São Luís. Tudo verno do Maranhão, tanto quanto pela
isso fez dessa capital uma das principais iniciativa de registrar em livro a obra
cidades do império brasileiro, cantada realizada. Revelando, a quem não teve
em prosa e verso por viajantes de todas o privilégio de conhecê-la de perto, a
as procedências. singular beleza arquitetônica da capital
Primeira cidade do Norte/Nor- maranhense.
deste a contar com os então modernos
sistemas de transporte por bondes e de
iluminação a gás, São Luís viveria no Axé!
século XX um longo período de isola-
Pronunciamentos
Descaso com a Educação no Rio de Janeiro 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 23 de julho de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Descaso com a educação no este pronunciamento.
Rio de Janeiro
A decadência do ensino no Brasil
é um dos problemas mais preocupantes
com que nos defrontamos nesta virada
de milênio. Iniciada nos governos mi-
litares, que preferiam alocar recursos
nas Forças Armadas e em obras espe-
taculares, mas sem consistência, como
a Transamazônica, em detrimento de
nossas necessidades educacionais, essa
política suicida acabou gerando uma sé-
rie imensa de distorções, agravadas pela
difícil situação vivenciada nos últimos
anos pelo setor público, quer em âmbito
federal, estadual ou municipal.
Uma das heranças mais funestas
que recebemos dos governos pós-64 é
a ênfase no ensino superior, principal
destinatário dos recursos federais desti-
nados à educação, com o que se deixa
a ver navios a educação fundamental –
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

justamente aquela que, pela Constitui- permanecer no poder a qualquer custo e


ção, é dever do Estado proporcionar à pelo maior tempo possível – projeto que
população como um todo. No ano pas- assenta, em parte, na existência de uma
sado, por exemplo, segundo relatório do população pouco instruída, logo pouco
TCU sobre as contas da União, de 6,8 informada e, portanto, pouco crítica –,
bilhões de reais investidos pelo Gover- a classe dominante brasileira parece não
no Federal em educação, apenas 67,5 perceber que a superação de nosso sub-
milhões, ou 1% do total, foram destina- desenvolvimento passa, necessariamen-
dos ao ensino fundamental. Essa opção te, pela melhoria do nível de instrução
é mais um fruto da visão elitista que pre- de nosso povo, ainda mais indispensá-
domina em nossos meios intelectuais e vel num mundo em que a informação é,
políticos, sempre prontos a privilegiar cada vez mais, a chave para o progresso.
uma minoria à custa do sacrifício im- Ou pior: embora se perceba claramente
posto às grandes massas. o erro dessa política. prevalece o egoís-
mo dos setores privilegiados, mais inte-
Dentre as inúmeras distorções
ressados em manter o status quo do que
que caracterizam a situação do ensino
em ver o país progredir.
no Brasil, uma das mais graves diz res-
peito aos salários pagos aos professores Se para a totalidade da população
de primeiro e segundo graus, em espe- deste país a situação do ensino pode ser
cial aqueles vinculados à rede pública. considerada muito grave, esta se torna
Sou do tempo – e com certeza também o catastrófica do ponto de vista mais es-
pecífico da população afro-brasileira.
são meus colegas desta Casa, mesmo os
Recente estudo cujos resultados foram
mais novos – em que professor ganhava
parcialmente publicados pelo jornal Fo-
salário decente. As greves de professo-
lha de S.Paulo no dia 2 de junho último
res, hoje parte de uma nefasta rotina, a
aponta, mais uma vez, o enorme fosso
ponto de terem praticamente perdido o
que separa negros e brancos em nos-
valor como instrumento de reivindica-
so país, segundo todos os indicadores
ção, constituem fato relativamente novo
sociais pertinentes, dentre os quais se
neste país. Tão novo que nenhum de
inclui, obviamente, a educação. O Re-
nós, tenho certeza, jamais viveu tal situ- latório de Desenvolvimento Humano no
ação no período em que frequentávamos Brasil, realizado por pesquisadores da
os bancos escolares. FASE (Federação de Órgãos para Assis-
Com todas as suas consequências tência Social e Educacional), respeitada
nocivas, as greves de professores são ONG de âmbito nacional, mostra que
apenas um sintoma do descaso das auto- cerca de 35% dos afro-brasileiros (“pre-
ridades em relação à educação, sobretu- tos” e “pardos”, como prefere o IBGE)
do a educação pública, numa atitude que são analfabetos, contra apenas 15% dos
demonstra, como tantas outras, a falta brancos. Entre os que têm segundo grau
de perspectiva política de nossas eli- completo, a probabilidade de ingresso
tes. Movida tão somente pelo desejo de na universidade é de 43% para os bran-
Pronunciamentos
Descaso com a Educação no Rio de Janeiro 1

cos, mas de pouco mais de 20%, em mé- enorme de fracasso escolar e abandono
dia, para os descendentes de africanos. da escola entre os alunos negros, situ-
Por esse e outros fatores, o Brasil, que ação reforçada pela inserção social da
ocupa um razoável 63º lugar segundo população afro-brasileira, que, mostram
o Índice de Desenvolvimento Humano os números, sofre em dobro os efeitos
das Nações Unidas, desceria para a 120ª da pobreza, dentre eles a dificuldade de
posição, ficando entre as nações mais manter os filhos estudando, dada a ne-
pobres do mundo, caso se levasse em cessidade de que estes contribuam para
conta exclusivamente a população ne- a minguada renda familiar.
gra. Isso dá uma ideia bastante precisa Nessas condições, é com imensa
da distância entre negros e brancos neste tristeza que assistimos à criminosa des-
pais, assim como do esforço necessário
montagem do programa dos CIEPs, as
para superarmos essa desigualdade.
escolas de tempo integral criadas nos
No caso específico da educação, dois governos de Leonel Brizola no Rio
embora não haja discriminação no aces- de Janeiro, sob a orientação e supervi-
so à escola pública, o racismo está pre- são do saudoso professor Darcy Ribei-
sente como importante fator a explicar ro, uma das maiores autoridades em
essas disparidades. Estudo realizado educação que este país já produziu. O
pela prestigiosa Fundação Carlos Cha- ponto-chave da concepção dos CIEPs –
gas, vinculada ao Governo do Estado não por coincidência, alvo central dos
de Minas Gerais, mostra claramente o ataques de seus detratores – é a ideia
modo como a escola fabrica o fracasso de manter o aluno na escola pelo tem-
do aluno negro, para depois atribuir esse
po máximo possível, fornecendo-lhe
mesmo fracasso a uma suposta incapa-
uma educação de qualidade, integrada
cidade desse aluno em aprender ou em
ao esporte e ao lazer, com alimenta-
se adaptar ao meio e às exigências do
ção, assistência médico-odontológica e
ambiente de ensino. Sem referências
orientação higiênica, incluindo o banho.
positivas nos textos de História, sem
De modo não só a prepará-lo adequada-
sequer se ver representado nas ilustra-
mente para o sucesso em uma socieda-
ções dos livros em geral – para não falar
de cada vez mais competitiva, o que é
na imposição de uma cultura totalmen-
te europeia, desvinculada dos valores fundamental, mas também a lhe ocupar
da cultura afro-brasileira, tão louvada ao máximo o tempo livre, evitando os
quando se pretende provar a suposta to- desvios da violência e das drogas.
lerância do brasileiro à diversidade –, o Evidentemente, uma proposta tão
jovem afro-brasileiro acaba encarando avançada e generosa não poderia agra-
a escola como um ambiente estranho e dar aos que têm na ignorância do povo
hostil. Como se vivêssemos num pais um dos principais instrumentos de sua
ocupado e fôssemos obrigados a absor- manutenção no poder. Em resultado
ver uma cultura alienígena, imposta por disso, uma das primeiras ações do atu-
conquistadores. O resultado é um índice al Governo do Estado do Rio de Janeiro
O primeiro traço do CIEP por Niemeyer
O CIEP construído. Foto reproduzida da revista Carta 15, 1995, publicação de Darcy Ribeiro.
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

foi exatamente a extinção do Programa afortunados – viraram depósitos de água


Especial de Educação, vítima da ira dos suja, vigiados ante o perigo de algum alu-
poderosos e dos privilegiados. Isso re- no resolver desafiar as advertências dos
sultou num escandaloso desperdício, professores e dar um mergulho em águas
que já ultrapassa a casa dos 30 milhões poluídas ou infectadas. Até as quadras de
de reais, segundo reportagem publica- ginástica estão abandonadas. sem profes-
da, dia 30 de maio último, no insuspeito sores para as aulas de Educação Física.
jornal O Globo. São CIEPs desativa- Um país como o Brasil não pode
dos, piscinas abandonadas, consultórios dar-se ao luxo de tamanho desperdício.
médicos e dentários fechados, antenas Mais que um resultado das rivalidades
parabólicas transformadas em peças de e ciúmes políticos, a extinção do Pro-
decoração, livros postos de lado pela grama Especial de Educação e o aban-
mudança do programa. Sem falar nos dono dos CIEPs são emblemáticos de
laboratórios de Química, Física e Bio- uma mentalidade que enxerga no pobre
logia, que não podem funcionar devido – quase sempre negro – um ser infe-
à falta de professores. Com isso, a educa- rior, que por isso merece uma educação
ção no Rio de Janeiro voltou à sua triste igualmente inferior, destinada a mantê-
rotina, tão do agrado de nossas irrespon- -lo no “seu” lugar. Força-se, assim, a re-
sáveis elites: professores que fingem en- alização da profecia de que “não adianta
sinar, alunos que simulam aprender, num mesmo instruí-los”, para depois brandir
ambiente decadente e desmotivador. os números de seu induzido fracasso
Dos 508 CIEPs construídos, ape- como “prova” de que qualquer esforço
nas metade mantém o horário integral, teria sido em vão. Mas alguém já disse
quase sempre convivendo com turmas que é impossível enganar todo mundo o
em tempo parcial. O programa de te- tempo todo. Aos trancos e barrancos, o
leducação, destinado a alunos e pro- povo brasileiro vai tomando consciência
fessores, foi desativado, enquanto 11,2 de sua situação, e identificando os res-
milhões de livros e revistas impressos ponsáveis por ela. Em algum momento,
exclusivamente para os CIEPs encon- que espero não demore muito, os exclu-
tram-se empilhados em prateleiras em- ídos acabarão percebendo que a educa-
poeiradas. Muitos deles jamais foram ção é o verdadeiro nó górdio a ser cor-
abertos. O uniforme, que unia os alunos tado para que nos aproximemos do ideal
dessas escolas em todo o Estado, com de uma sociedade capaz de oferecer aos
calças, camisetas e tênis fornecidos pelo seus filhos, se não a igualdade total, pelo
Governo, foi substituído pelos trajes menos a igualdade de oportunidades.
que a condição econômica dos pais dos Quando isso acontecer, o Brasil terá dado
alunos lhes permite adquirir. O que, em um enorme salto de qualidade no rumo
muitos casos, significa chinelos e rou- do progresso e do desenvolvimento.
pas remendadas. As 21 piscinas constru-
ídas – outro alvo preferencial da ira dos
Axé!
Hilton Cobra, diretor do Centro Cultural José Bonifácio, discursa na inauguração do Centro. Rio de Janeiro, dezembro de 1995.

Escadaria e Galeria Heitor dos Prazeres, Centro Cultural José Bonifácio, Rio de Janeiro (foto reproduzida do folheto
informativo do Centro).
Pronunciamentos
Centro Cultural José Bonifácio 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 5 de agosto de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Homenagem da Câmara Municipal este pronunciamento.
do Rio de Janeiro ao Centro Cultural
José Bonifácio
Se a cultura de um povo é o ci-
mento da sua identidade, para nós,
africanos e seus descendentes dos dois
lados do Atlântico, ela representa há
muito tempo o ferro em brasa com que
forjamos nossa sobrevivência e coesão
como um povo. Manifestando-se não
apenas na música e na dança populares,
e também na culinária, como quer fazer
crer o reducionismo eurocêntrico, mas
abrangendo as artes plásticas, a litera-
tura, sem esquecer a tecnologia na agri-
cultura e na mineração, a cultura trazida
pelos africanos e desenvolvida no Bra-
sil, em contato e fricção com indígenas
e europeus, tem na religião sua verda-
deira matriz e síntese. Pois em torno da
religião se organiza a vida do indivíduo
e do grupo; nela se estrutura a forma de
pensar, de ser e estar no mundo, que,
para além da superficialidade dos traços
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

físicos, consubstancia a originalidade e luntariamente, os africanos deixaram a


a contribuição dos povos africanos à ci- marca indelével da sua cultura. De tal
vilização. modo que, na maior parte das Américas,
Não foi à toa, portanto, que a es- no Brasil como nos Estados Unidos, na
tratégia de dominação dos brancos eu- Colômbia, na Venezuela, no Equador e
ropeus sobre os povos de cor da África, no Peru, para não falar nas nações da
da Ásia e das Américas sempre teve na América Central e do Caribe, as mani-
cultura, de modo geral, e particular- festações culturais mais características e
mente na religião, um de seus pontos originais, as que são exibidas como tí-
focais. Sabiam eles que, para esmagar picas da nacionalidade, são exatamente
fisicamente esses povos e transformá- aquelas que brotam da fonte africana.
-los em escravos ou vassalos da nova No Brasil, o cruel massacre da
ordem global que se instalava, era pre- escravidão não impediu o florescimen-
ciso domar seus corações, escravizar e to de uma cultura negra tão poderosa
colonizar suas mentes e consciências. que se impõe como a verdadeira cultura
Era necessário suprimir sua cultura, ou, do povo brasileiro. Relegada por muito
quando possível, domesticá-Ia, cortan- tempo a um segundo plano, vista pela
do-lhe as raízes e colocando-a a serviço lente caolha do exotismo e do folclore,
do dominador. Esse processo envolveu a cultura afro-brasileira tem passado nos
fundamentalmente a religião africana, últimos anos por um processo de revita-
sempre reprimida, mas incluiu também lização e revalorização promovido, fun-
a negação da existência de grandes ci- damentalmente, pelo Movimento Negro
vilizações no Continente Africano, a e seus aliados nas arenas acadêmica e
transformação dos antigos egípcios num sociopolítica. A criação, pelo poder pú-
povo “branco” e o “esquecimento” das blico, de organismos voltados à preser-
contribuições destes à cultura grega e, vação e à dinâmica da cultura desenvol-
por meio desta, à moderna cultura oci- vida pelos africanos e seus descendentes
dental. Tratava-se de negar aos afri- se destaca entre as vitórias que vimos
canos, escravizados nas Américas ou obtendo ao longo de nossa árdua luta
transformados em súditos coloniais na pela valorização dos afro-brasileiros. O
África, a própria humanidade, expressa Centro Cultural José Bonifácio brilha
na capacidade de construir civilizações como um dos belos exemplos dessa vi-
e de contribuir para a evolução da espé- tória.
cie humana como um todo. Além do orgulho militante pelo
Mas a força da cultura africana sucesso de uma instituição que defende e
pode ser atestada por sua própria so- põe em prática ideais pelos quais sempre
brevivência nas condições adversas em pugnei, dois aspectos me ligam afetiva-
que ela, a despeito de tudo, conseguiu mente ao Centro Cultural José Bonifácio.
florescer. Assim, em todos lugares a que O primeiro deles prende-se à sua origem,
chegaram, por vontade própria ou invo- pois a ideia de criar uma instituição mu-
Pronunciamentos
Centro Cultural José Bonifácio 1

nicipal voltada para a cultura afro-bra- discriminação e do racismo, mas sobre


sileira no Rio de Janeiro nasceu durante o valor da cultura de origem africana e
meu mandato como deputado Federal, dos homens e mulheres que a produzem.
no início da década dos 80, quando a O Teatro Experimental do Negro foi o
então administração pedetista da Pre- instrumento que criamos, lá se vão mais
feitura a acolheu. Questões burocráticas de 50 anos, para sacudir uma socieda-
retardaram por muito tempo a concreti- de atrasada e reacionária, obrigando-a
zação do projeto. Inclusive, justifica-se a se confrontar com alguns dos piores
registrar os esforços no sentido de sua fantasmas de seu inconsciente coletivo,
implementação despendidos pelo então e ao mesmo tempo a enxergar o valor
presidente da Rioarte, o poeta Gerardo de uma cultura que ela preferia reduzir
Mello Mourão. O projeto atravessou, aos limites do exotismo. Laços de ori-
ainda, a segunda administração pede- gem também me prendem, então, a este
tista do Município, sustentado pelos es- enérgico homem de teatro, redobrando
forços da Divisão de Cultura Afro-Bra- o prazer de perceber que essa ideia não
sileira da Secretaria de Cultura. Até que morreu.
por fim a tenacidade e a competência Quero, portanto, dar minhas calo-
prevaleceram, incorporadas na inquie- rosas felicitações a Hilton Cobra e sua
tação criativa de Hilton Cobra. Laços equipe, tão bem equipada de talento e
de origem, portanto, redobram a minha habilidade, e ao mesmo tempo saudar a
alegria nesta noite. nossa valente guerreira e vereadora do
O segundo aspecto está na minha PT, Jurema Batista, o Comdedine e as
admiração pessoal pelo talento e deter- organizações afro-brasileiras respon-
minação do ator e diretor de teatro Hil- sáveis pela oportuna iniciativa. Tenho
ton Cobra, responsável pela formação e certeza de que, graças à divulgação que
condução da valorosa equipe que vem este evento propicia, o trabalho desen-
realizando esse trabalho admirável no volvido pelo Centro Cultural José Bo-
Centro Cultural José Bonifácio. O en- nifácio vai inspirar pessoas e organiza-
tusiasmo e a dedicação de Cobrinha, ções, em todo o Brasil, empenhadas em
indispensáveis para o êxito que hoje brandir a cultura como instrumento de
se festeja, lembram-me de outro jovem transformação das relações raciais neste
que, décadas atrás, também por meio do país.
teatro e das artes, buscava elevar o nível
de consciência dos afro-brasileiros em
particular, e dos brasileiros de maneira Axé!
geral, não só quanto aos problemas da
Pronunciamentos
Dia da Arte e do Sociólogo Betinho 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 14 de agosto de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Homenagem ao Dia da Arte e ao este pronunciamento.
sociólogo Betinho
A criação e apreciação da beleza
constituem uma experiência puramente
humana. Não por acaso, alguém já defi-
niu o ser humano como o único animal
dotado de capacidade estética. Diferen-
temente da natureza, onde só é feio o
que é monstruoso, ou seja, imperfeito
ou incompleto, a arte aproveita as coisas
naturais e delas se vale para produzir re-
presentações em que se incorporou um
sentido humano. Assim, para o artista,
as formas naturais são como que um
esqueleto permanente sobre o qual este
elabora sua obra.
Sirvo-me dessas eloquentes ima-
gens para introduzir o tema de meu dis-
curso de hoje, que é a comemoração do
Dia da Arte, celebrado a 12 de agosto.
Homem que tem usado diversas formas
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

de expressão artística, em especial a de pesquisadores como o alemão Leo


pintura, a poesia e o teatro, como ins- Frobenius. Sob o impulso dos pintores
trumentos de minha luta em defesa dos fauves e cubistas, num processo em que
africanos e seus descendentes, não pos- se destaca a obra de Pablo Picasso, bem
so deixar passar em branco a oportuni- como a de escritores como Apollinaire
dade de registrar essa importante data. e Cendrars, as “curiosidades” africanas
Embora se manifeste nas mais va- passam a ser reconhecidas em seu va-
riadas facetas de nossa cultura, é exata- lor artístico, transformando-se, nas pa-
mente no campo das artes que melhor se lavras de P. Guillaume, em verdadeiro
apresenta a riqueza advinda da singular “esperma vivificador do século XX es-
mistura de grupos humanos que consti- piritual”. Assim, as “selvagens” escultu-
tui a sociedade brasileira. Formada pela ras africanas tornaram-se instrumentos
fusão de matrizes indígenas, africanas e de provocação, revelando uma estética
europeias, a arte brasileira pode ser con- inspiradora de formas simplificadas,
mais preocupadas em “significar” ou
siderada uma verdadeira síntese da arte
“simbolizar” do que em se submeter às
universal, contendo em si virtualmente
referências naturais. Marcos desse reco-
todos os elementos constitutivos das va-
nhecimento são a publicação, em 1915,
riadas formas encontradas pelo homem
do livro Negerplastik, de Carl Einstein,
para expressar o sentimento estético que
em que o autor identifica a escultura
lhe é característico.
africana como aquela que melhor resol-
Durante muito tempo, a cultu- ve o problema estético da expressão dos
ra ocidental, no seu modo peculiar de volumes; e também a organização em
atribuir um cunho universal às suas ex- Paris, pela Galeria Devambez, da pri-
pressões particulares, acostumou-se a meira exposição de obras africanas e da
definir a arte segundo os clássicos parâ- Oceania.
metros da tradição greco-romana. Nessa Na verdade, a história da arte afri-
visão, caberia à arte representar as coi- cana se confunde com a própria história
sas da natureza. tal como captadas por da humanidade, pois é nas pinturas e gra-
nossos sentidos, sem espaço para a ex- vuras rupestres do Saara, bem como em
pressão de sentimentos outros que não seus correspondentes da África Oriental
a contemplação embevecida de paisa- e Austral, que encontramos pela primeira
gens, animais, plantas e seres humanos. vez os lampejos da genialidade humana
Essa visão reducionista e etno- na representação perfeita de uma fauna
cêntrica começou a ser demolida nas e de uma flora então ainda pródigas. Co-
derradeiras décadas da última centúria meçavam a se desenvolver aí as próprias
e nos primórdios do século XX, exata- raízes do gênio africano, que encontra
mente no momento em que a vanguar- nas variadas formas de arte a expressão
da das artes plásticas europeias trava mais acabada de sua maneira peculiar
contato com a arte africana, no seu de ser e estar no mundo. Fibras vegetais,
encontro com o Ocidente, em função couro, madeira, pedra, terra-cota, bronze
Pronunciamentos
Dia da Arte e do Sociólogo Betinho 1

e outros metais permitiram aos africanos temática de sua arquitetura, constituem


manifestar seu talento criador, expresso o mais belo exemplo do gênio humano
também na música, na dança, numa rica na antiguidade.
literatura de transmissão oral e até mes- Desse modo, era inescapável que
mo em sua forma de adornar o corpo, a arte africana viesse a fecundar a cultu-
com roupas, tatuagens e penteados que ra das Américas, e particularmente deste
constituem um irresistível convite à pes- nosso Brasil, pelas mãos dos africanos
quisa decorativa. e de sua criativa descendência, verda-
Na visão africana, que chegou ao deiros responsáveis pela invenção deste
Brasil com os milhões de homens e mu- país. Não vou aqui me estender sobre
lheres transplantados pelo tráfico de es- esse tema, tão bem explanado dias atrás
cravos, arte não é coisa a ser contempla- por essa extraordinária mulher negra e
da e reverenciada em galerias e museus. favelada, a senadora Benedita da Silva,
Ao contrário, faz parte da própria vida, a quem sou muito grato pelas elogiosas
manifestando-se por excelência no do- referências a minha pessoa e ao Teatro
mínio do sagrado, como testemunham, Experimental do Negro, que fundei já lá
onipresentes, as máscaras e representa- vão cinco décadas. Quero, porém, apro-
ções da ancestralidade. Assim, enquanto veitar o ensejo para falar brevemente
as cabaças gravadas do Daomé fixam o de um grande artista que acabamos de
ensinamento dos provérbios, os objetos perder. Pois se a função da arte é expres-
usados para pesar o ouro em Gana cons- sar a vida, ninguém merecia mais esse
tituem verdadeira enciclopédia que se título do que o nosso querido Betinho,
exprime com a ajuda de símbolos e ale-
cuja existência foi um raro exemplo de
gorias, elementos que também se fazem
inteligência. sensibilidade, determina-
presentes nos utensílios domésticos das
ção e dignidade a serviço da nobre cau-
diferentes culturas africanas. Da mesma
sa da justiça social. Amigo feito no exí-
forma, os bronzes de Ifé e do Benim ma-
lio, continuamos ligados pelo coração e
nifestam a grandeza e o esplendor das
na luta por justiça quando regressamos
admiráveis civilizações que se desen-
ao Brasil. Na qualidade de secretário
volveram às margens do golfo da Guiné,
de Estado de Defesa e Promoção das
fazendo parte, ao lado das enigmáticas
muralhas do Zimbábue e da estatuária Populações Afro-Brasileiras no segun-
em pedra do Congo, de um riquíssimo do Governo Leonel Brizola, no Rio de
acervo pertencente ao tesouro comum Janeiro, Betinho foi até meu gabinete
da humanidade. Um acervo no qual se levar-me solidariedade. Anos depois
destacam os fantásticos monumentos Betinho indicou-me o médico que nos
que nos foram legados por um povo livrou a ambos da labirintite. Foi meu
africano cuja negritude até hoje inco- último contato com esse missionário da
moda os racistas encastelados no mun- solidariedade.
do acadêmico: refiro-me ao Egito dos Em carta datada de 27 de agos-
faraós, cujas pirâmides, na precisão ma- to do ano passado, endereçada a outro
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

grande brasileiro de igual status huma- sorar o Alvarado. Essa mania que
no recentemente falecido, o também nós, brasileiros, temos: pensar
querido Senador Darcy Ribeiro, Beti- que somos deuses. E no entanto
nho mostrou claramente a alma de artis- tudo isso se deu. Fui trabalhar
ta que animava seu ofício de sociólogo com Joan Garcez, assessor pes-
e político. Referindo-se a uma polêmica soal de Allende. Você foi embora
menor em que Darcy se metera, movi- para descobrir lá longe o próprio
do por um gênio que não lhe permitia câncer e montado nele voltar para
esquivar-se a qualquer provocação, Be- o Brasil. Da morte para a vida.
tinho assim se expressou: Enfim, nossa história é
Darcy, aquele abraço uma permanente disputa pelo ab-
Você é de Montes Claros, surdo, até que eu te venci: criei
eu sou de Bocaiúva. Sou mais a Grande Bocaiúva e incluí nela
importante que você por razão de Montes Claros, Belo Horizonte,
nascimento, mas você não tem Rio e uma parte de Paris, sem fa-
culpa. Você tem câncer e eu, além lar em Nova Iorque.
de hemofílico, tenho Aids. Ganhei Mas agora estou triste com
mais uma vez. Você não pode co- esse debate pelos jornais que
migo. Mas isso é entre nós. você fez com gente do tempo da
Vivemos mais ou menos a ditadura. Esse debate não merece
mesma época, você tem alguns ser feito por você. Que importa
anos mais que eu, você viveu o passado? Os títulos, os currí-
mais perto do poder e eu mais culos? Essa gente tem o passado
perto da planície, da sociedade. da ditadura, você tem a luta pela
Não é virtude, é destino. democracia! Eles são doutores da
Você conheceu a morte ditadura, você é um eterno aluno
mais tarde, eu já nasci com ela. da democracia, às vezes perigosa-
Vantagem minha? Não sei. Você mente perto do poder. Mas não há
foi mais livre que eu, ousou mais nenhuma dúvida sobre o seu lado:
em muitos campos. Em outros o do oprimido, do segregado, do
você foi poder, com Jango e tan- danado, o da maioria. E isso é que
tos outros. Não importa. Somos é o saber.
grandes amigos e irmãos, apesar Pelo amor de Deus, não
de não nos vermos como se de- perca seu tempo com esse tipo de
veria. E vivemos no mesmo Rio. debate! Com esse tipo de gente! A
Quando cheguei no Chile vida é mais importante.
escapando da ditadura no Brasil Discutir títulos é discutir
você foi logo me dizendo que eu bestage, como se diz em Minas.
deveria assessorar Allende. Por- Discutir diplomas é discutir ordem.
que você iria para o Peru asses- Pare com isso. Continue a discutir
Pronunciamentos
Dia da Arte e do Sociólogo Betinho 1 1

a vida, a democracia, a rebeldia, a Você, também de longe, me


liberdade. Ou não serás digno da vendo viver meus anos com raiva
Grande Bocaiúva, da qual Montes de envelhecer, incapaz de achar
Claros é apenas uma parte. que meu feito mais importante eu
Do seu irmão, doa a quem já fiz. Senti, por vezes, seus olhos
doer, claros me olhando carinhosos.
Betinho. Agora, Betinho meu, os
anos se somaram, tantos, e as do-
Também um artista das le-
res, ainda suportáveis, anuncian-
tras, dois dias depois Darcy res-
do dores maiores, e eu estou com
pondeu na mesma linha:
medo de baquear. Antes que des-
Querido Betinho, graça maior me aconteça, enfren-
Li comovido sua carta. Mi- tei a desgraça menor que é assu-
nha namorada até chorou. mir que eu venho de longe e já fiz
Vivemos vidas paralelas, meus feitos. Que é hora, portanto,
meu irmão. Belas e bravas vidas de escrever minhas Confissões. É
de combatentes de nossa geração. o que estou fazendo. Vou publicar
Vidas sofridas, mas também go- nelas sua bela carta.
zosas. Do seu irmão, doa a quem
Eu, de longe, olhando você doer,
viver, enfrentar suas tempestades Darcy Ribeiro.
e delas sair íntegro, sonhador. Às Lá no Orum, receba Betinho, re-
vezes ferido no corpo, feridas de ceba Darcy, o nosso mais comovido.
sangrar, mas você passava a mão
por cima, fazendo de conta que as
curava e seguia, montado no seu
Axé!
cavalo.
Pronunciamentos
Ensino religioso na LDB 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 21 de agosto de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Ensino religioso na Lei de este pronunciamento.
Diretrizes e Bases da Educação
Juntamente com as manifestações
artísticas, a religiosidade se encontra en-
tre as formas de expressão que caracteri-
zam a singularidade do ser humano. Ne-
nhum povo, cultura ou civilização existe
hoje em dia, ou jamais existiu, sem o
lastro de um ou mais sistemas religio-
sos. Assim, a religião talvez seja a mais
conspícua manifestação da espirituali-
dade humana, o terreno por excelência
em que se expressam as preocupações
fundamentais que nos têm afligido des-
de que nossos mais longínquos ances-
trais na escala evolutiva começaram a
se indagar sobre quem somos, de onde
viemos, para onde vamos.
Nas culturas africanas e indíge-
nas, a religião ocupa um espaço que há
muito perdeu na visão europeia e oci-
dental. Para esses povos, religião não
é apenas um ritual que se pratique num
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

determinado dia da semana, como fon- brasileiro, que se alicerça sobretudo em


na de garantir uma possível salvação na nossa matriz africana, o terreno propício
vida após a morte ou, o que é mais fre- para a sua manifestação. Num momento
quente nos dias de hoje, no cumprimen- de acentuada crise moral, traduzida no
to de uma obrigação social para com os desrespeito e no descaso em relação aos
membros do grupo a que se pertença. valores fundamentais que regem as re-
Muito pelo contrário, nessas culturas lações humanas em qualquer sociedade,
a prática religiosa é parte integrante esse substrato espiritual tem, com toda a
da vida quotidiana, nela se encontran- certeza, um importante papel a desem-
do todos os elementos constitutivos da penhar.
identidade de cada grupo, bem como os Foi por essa razão que fizemos
valores essenciais que orientam a vida
questão de nos manifestar com refe-
das comunidades. Assim, não foi por
rência à nova redação, recentemente
acaso que os europeus, no seu empre-
aprovada por esta Casa, do artigo 33 da
endimento de conquista e “colonização”
Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
da África e das Américas, procurassem
estabelecendo a obrigatoriedade de as
sempre destruir – ou, quando isso não
escolas ministrarem um ensino religio-
era possível, pelo menos neutralizar – as
so interconfessional, que respeite a “di-
religiões dos vencidos, como forma de
versidade (...) religiosa do Brasil, veda-
lhes solapar a coesão interna, impondo-
-lhes um sistema de valores que lhes era das quaisquer formas de proselitismo”.
estranho e no qual só poderiam ver a si Além de estatuir que os sistemas de edu-
mesmos como derrotados. Um ditado cação regulamentarão os procedimentos
africano ilustra muito bem esse proces- para a definição do ensino religioso, es-
so: “Quando os europeus aqui chega- tabelecerão as normas para a habilitação
ram, eles tinham a cruz e nós tínhamos e admissão dos professores e ouvirão
a terra. Hoje, eles têm a terra e nós, a entidade civil, constituída pelas diferen-
cruz”. tes denominações religiosas, para a defi-
nição dos conteúdos do ensino religioso,
Um dos muitos e diversos le-
o novo texto suprime a restrição ao em-
gados que o povo brasileiro deve aos
prego do dinheiro público para custear
africanos e seus descendentes é, todos
reconhecem, a nossa decantada reli- os gastos ocasionados por tal disciplina.
giosidade. Com efeito, a religião ocupa Homem que venho de longe, do
na vida diária dos brasileiros, qualquer tempo em que o dispositivo constitu-
que seja sua origem, um espaço muito cional que assegura a liberdade de cul-
maior e mais importante do que na Eu- to era apenas “para inglês ver”, sendo
ropa ou nos Estados Unidos. Em suas desmentido na vida real por práticas
formas “puras” ou misturadas entre si, abertamente discriminatórias, sobretu-
igrejas, seitas, cultos e denominações do em relação às religiões de origem
das mais diversas procedências encon- africana, foi com muita satisfação que
tram no substrato espiritual do povo assisti à tramitação e aprovação final
Pronunciamentos
Ensino religioso na LDB 1

dessa alteração, elemento importante na a uma discussão que se acendeu, logo


concretização de uma sociedade multir- após a aprovação do novo texto, com a
racial e pluriétnica. Conhecedor, porém, declaração do Excelentíssimo Senhor
das muitas armadilhas que se colocam Ministro da Educação, Paulo Renato de
diante daqueles que ousam defrontar- Souza, de que “os Estados serão livres
-se com o status quo religioso no Brasil, para decidir” sobre o tema, pois “não há
chamaram-me a atenção dois aspectos determinação de que os professores se-
do artigo alterado. Em primeiro lugar, jam remunerados”. Nesse caso, a opção
o dispositivo que fala da “definição dos caberia não só aos sistemas estaduais de
conteúdos do ensino religioso” sem a ensino, mas igualmente ao federal e aos
prévia definição dos objetivos educa- municipais, conforme o texto da lei. No
cionais, ou seja, dos comportamentos, cerne dessa discussão, uma dúvida fun-
valores e atitudes a serem adquiridos, damental: poderia o Poder Público optar
mudados ou reafirmados pelos educan- entre cobrir ou não as despesas do ensi-
dos – um deslize evidente aos olhos dos no religioso?
especialistas em educação. Em segundo
De fato, se a lei for interpretada
lugar, a obrigatoriedade de se constituir
ao pé da letra, fica patente a ausência
uma entidade civil permanente, com a
de qualquer mandamento a respeito do
participação de representantes das di-
ônus financeiro. Em princípio, poderia
ferentes denominações religiosas, para
opinar sobre os objetivos e conteúdos haver a alternativa de o Estado arcar ou
do ensino religioso – o que constitui não não com ele. A interpretação, no entanto,
apenas um enorme entrave à aplicação não pode ser apenas literal. Faz-se indis-
da lei, mas também uma intromissão pensável considerar a intenção do legis-
indevida do Estado na vida das institui- lador, manifesta nos próprios projetos
ções privadas, em flagrante ameaça ao de lei, bem como em pareceres, discur-
direito de livre associação. Em razão de sos e outros documentos. Desse modo,
tudo isso, apresentei Emenda Aglutina- cabe registrar primeiro a Justificação do
tiva de Redação, alterando o Projeto de Projeto de Lei nº. 2.757-A, de 1997, de
Lei em pauta, mas não obtive sucesso autoria do deputado Nelson Marchezan,
em convencer meus nobres colegas se- em que este destaca ser o ensino religio-
nadores do acerto ou oportunidade de so “de vital importância para a forma-
meus argumentos. ção da personalidade”, não devendo ser
Outra questão que nos chamou a confundido com doutrinação religiosa.
atenção, e que continua em pauta, refe- Trata-se de parte integrante da formação
re-se ao custeio do ensino religioso. Ao e do currículo, incompatível, portanto,
suprimir do artigo 33 da Lei nº 9.394, de com o custeio privado. Diz a Justifica-
1996, a expressão “sem ônus para os co- ção do deputado Marchezan:
fres públicos”, a Lei nº 9.475, de 1997, ( ... ) A presente proposição legis-
não define expressamente a quem deve- lativa objetiva corrigir um equí-
rá caber tal ônus. Abre espaço, portanto, voco da atual Lei de Diretrizes e
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

Bases da Educação Nacional, ao tre o Estado, que deve oferecer o


suprimir a expressão ‘sem ônus ensino, e a Igreja, responsável pela
para os cofres públicos’ do art. oferta ou não do ensino religioso
33, caput, da referida lei e, com sem ônus para os cofres públicos.
isso, assegurar a todos a possibi- Assim sendo, o cumprimento do
lidade de um ensino religioso que dispositivo constitucional acaba
seja instrumento para a constru- por refugir da capacidade decisó-
ção de uma sociedade mais soli- ria do Poder Público.
dária, fraterna e cidadã. O documento ainda assinala que
Já o Projeto de Lei nº 3.043, de o ensino religioso com a perspectiva de
1997, encaminhado em regime de ur- proselitismo não deve ser subvenciona-
gência pelo Poder Executivo, é ainda do pelo Estado. Por isso mesmo, afirma
mais explícito, na Exposição de Moti- que o respeito à pluralidade religiosa,
vos nº 78, de 12 de março de 1997, de assim como ao princípio constitucional
autoria do Senhor Ministro de Estado da da separação entre Estado e Igreja, im-
Educação e do Desporto: põe que “o ensino religioso seja tratado
(...) Esta é a questão mais delica- menos como ‘ensino de uma religião’ ou
da – a lei determina que o ensino ‘o ensino das religiões’ e mais como o
religioso, quando ministrado nas ensino de conceitos que ajudam a crian-
formas prescritas, tem que ser ça e o adolescente a compreender a im-
oferecido ‘sem ônus para os co- portância de abraçar uma religião (...)”.
fres públicos’, o que pode repre- Destaca ainda que, “em sua quase totali-
sentar uma restrição para a atua- dade, os sistemas estaduais de educação
ção das diferentes denominações já haviam assimilado, há anos, o ensi-
religiosas, uma vez que teriam no religioso como parte indissociável
que ou dispor de recursos para a dos currículos da escola fundamental e
remuneração dos professores ou equacionado formas aceitáveis de ofer-
contar com a disponibilidade de tá-lo, com caráter interconfessional e às
trabalhadores voluntários. Fica expensas do Poder Público”. E enfatiza:
claro que, nessas condições, a es- “(...) sempre com o ônus da remunera-
cola nem sempre poderá atender ção dos professores para os cofres pú-
à demanda da sua clientela – e, blicos”.
portanto, cumprir a determinação Coincidiram, portanto, as inten-
constitucional –, uma vez que es- ções dos Poderes Legislativo e Executi-
tará na dependência da disposição vo. E o Parecer do Relator na Câmara dos
das comunidades religiosas de ar- Deputados – uma proposição aprovada
car com o custo, coletivo ou in- – destacou que os projetos em análise
dividual, da oferta da disciplina. adotavam o princípio de que “o ensino
Estabelece-se, assim, uma relação religioso é parte integrante essencial na
de dependência ou de aliança en- formação do ser humano como pessoa
Pronunciamentos
Ensino religioso na LDB 1

e cidadão, estando o Estado obrigado a neração” do parágrafo lº do art. 33, não


promovê-lo, não só pela previsão de es- prejudica a intenção expressa. O dispo-
paço e tempo na grade curricular do en- sitivo que veio a ser aprovado dispõe
sino fundamental público, mas também que os sistemas de ensino estabelecerão
pelo seu custeio, quando não se revestir as nonnas para habilitação e admissão
de caráter doutrinário ou proselitista. dos professores, mas os princípios cons-
(...)” Com isso, conclui, satisfazem-se tantes das intenções dos legisladores
os princípios constitucionais que tratam deixam claro que as redes públicas estão
da relação entre o Estado e as igrejas, obrigadas a remunerar os docentes. Tal
Dessa forma, fica claro o entendi- é a intenção expressa dos representantes
mento dos legisladores de que o ensino eleitos do povo. Só resta que a cumpram
religioso financiado por pessoas jurídi- as autoridades competentes.
cas de direito privado não atende aos Axé!
princípios constitucionais de separação O SR. JOEL DE HOLANDA
entre o Estado e a Igreja. Sua adoção (PFL – PE) – Permite-me V. Exª um
abriria as portas ao proselitismo das que aparte, nobre senador?
tivessem – e somente das que tivessem
O SR. ABDIAS NASCIMENTO
– recursos para tanto. Para evitar tal in-
conveniência, o Poder Legislativo, com – Ouço V. Exª com muito prazer.
a sanção presidencial, entendeu que o O Sr. Joel de Holanda (PFL-PE)
ensino religioso, sob o teto da escola pú- – Acompanhei com muita atenção o
blica, respeitará a diversidade cultural e pronunciamento de V. Exª, que fez uma
religiosa do País e não poderá ser prose- apreciação muito lúcida e completa das
litista. Coerentemente, para que o Esta- questões envolvendo o ensino religioso
do tenha controle, possa baixar e aplicar do País e, sobretudo, da contribuição
normas, seguirá a tradição de custeio do Congresso Nacional, ao aperfeiçoar
do ensino religioso, inclusive com o a atual legislação brasileira que trata da
pagamento dos professores pelas redes questão do ensino religioso nas escolas
escolares públicas. É o que fica patente públicas. V. Exª salientou bem a preo-
nos documentos referentes à tramitação cupação do Congresso, tanto da Câmara
do Projeto na Câmara dos Deputados. quanto do Senado, em fazer prevalecer
Nesta Casa, tanto o Parecer do rela- os princípios estabelecidos na nossa
tor, eminente senador Joel de Holanda, Constituição, ou seja, que o ensino re-
quanto a discussão do projeto acolhem ligioso deve ter caráter facultativo, bus-
tacitamente as intenções cmitidas no cando a interconfessionalidade, e deve
texto originário da Câmara. Foi também ser visto com um fator de contribuição
manifesta a preocupação no sentido de para a fonnação da pessoa humana e do
que os professores sejam efetivamente cidadão. Tal responsabilidade deve ser
remunerados. Desse modo, o acordo distribuída entre o Governo Federal, os
mencionado na sessão de 17 de junho Estados e as entidades representativas
último, para se retirar a palavra “remu- de várias religiões, para que estabele-
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

çam a melhor forma de se prover as es- aos alunos, servindo, sobretudo, como
colas dos professores necessários para o contribuição para a construção da sua
ensino religioso, nas várias confissões. personalidade, dos princípios da ética e
Portanto, parabenizo V. Exª pela análise da moral, da cidadania e assim por dian-
que acaba de fazer. A nossa preocupação te. Portanto, fiquei muito feliz em ouvir
não foi, de forma alguma, no sentido de o pronunciamento de V. Exª e o cumpri-
impor qualquer religião aos nossos alu- mento pela forma precisa e competente
nos nas escolas públicas. Não houve a como abordou essa importante questão
intenção em estabelecer conflito entre o que, por certo, irá dar uma contribuição
Estado e a Igreja nem em atender pleitos muito importante à educação do nosso
da religião a, b ou c. Preocupamo-nos, país.
sim, como educadores, que o ensino O SR. ABDIAS NASCIMEN-
religioso possa ser viabilizado, porque, TO – Agradeço o seu aparte. V. Exª, na
se não houver ônus para o setor públi- qualidade de presidente da Comissão de
co com relação ao pagamento desses Educação desta Casa e tàmbém de rela-
professores, assistiremos ao desapareci- tor da matéria, ajudou a esclarecer, a dar
mento do ensino religioso das nossas es- mais amplitude aos conceitos e à análise
colas por falta de professores ou, então, que vinha fazendo a respeito dessa lei.
essas aulas se transformarão em proseli- Assim, agradeço muito a V. Exª e peço
tismo, em propagandas de determinadas ao Senhor Presidente que integre o seu
religiões; não seriam aulas onde os con- aparte como essência do meu discurso.
ceitos religiosos seriam apresentados
Muito agradecido a V. Exª.
Pronunciamentos
Homenagem a Getúlio Vargas 1

Discurso proferido no Senado Senhor Presidente,


Federal em 27 de agosto de 1997 Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
Homenagem a Getúlio Vargas este pronunciamento.

Na última sexta-feira, acompa-


nhando o ex-governador Leonel Bri-
zola, estive na Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, em Porto Alegre. Convidado pe-
los estudantes a proferir uma palestra,
o presidente de honra do PDT, o meu
partido, foi recebido na sala da Reitoria.
Nesta tivemos a oportunidade de obser-
var uma fotografia antiga em que, num
grupo de professores e alunos, sobres-
saía a figura jovem e simpática do então
acadêmico de Direito Getúlio Vargas.
Diante da foto, minha memória
fez um recuo no tempo. Quando teria
eu pela primeira vez me defrontado com
uma referência a Vargas? Fora em 1930.
Apenas alguns meses antes acabara de
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

ser incluído nas fileiras do Exército, no a instauração do chamado Estado Novo.


2º Grupo de Artilharia Pesada, na Guar- Falava-se em tropas norte-americanas
nição de Quitaúna, perto de São Paulo. em navios ancorados na baía de Gua-
Nada entendia de cavalos, menos ainda nabara. Na época eu era estudante de
de obuses ou canhões. Entretanto nota- Economia. Junto a colegas de outras
va-se certa inquietação no quartel, com áreas, organizamos um grupo para fazer
sobreavisos, prontidões, cancelamento alguma coisa em favor da nossa sobera-
de licenças e saídas. Mas estava proibi- nia. Como não tínhamos armas, só nos
do aos soldados comentar sobre política. restou redigir boletins mimeografados
Os rumores de uma possível e convocando o povo a defender nossa au-
iminente revolução permeavam secreta- tonomia de nação livre. Fomos presos,
mente as reflexões dos praças de pré, até condenados pelo Tribunal de Segurança
que certa noite de outubro fomos tirados Nacional, e cumprimos pena na peniten-
das camas e ordenados a colocar as mu- ciária da Frei Caneca, no Rio de Janeiro.
las, os cavalos, os obuses em condições Intensas movimentações popula-
de marchar. Lembro-me, na escuridão res constituíam, por sinal, a marca da-
daquela noite e na noite da minha lem- quela década. Eram anos agitados, de-
brança, do esforço que despendi carre- esvaziamento do movimento tenentista,
gando nos ombros sacos de milho e far- da citada Revolução Constitucionalista
dos de alfafa. Íamos partir para a frente de 1932, de enfrentamento dos graves
de batalha: Ourinhos... Nossa missão, problemas nacionais. De mero “caso de
sabíamos aos cochichos: imobilizar a polícia” na visão dos plenipotenciários
força militar de Getúlio Vargas em Ita- da Velha República, a questão social e
raré. Sem embargo, a famosa batalha trabalhista passara a merecer especial
de Itararé não houve, não aconteceu. Só atenção do Governo Provisório, que
contemplei os trens vindos do sul, com acenava com a introdução de importan-
os revolucionários de lenço vermelho tes conquistas para os trabalhadores: or-
flutuando no pescoço. Foi minha pri- ganização sindical, férias remuneradas,
meira e involuntária oposição a Vargas. limitação da jornada de trabalho, salário
A segunda viria dois anos depois. mínimo, comissões de conciliação, cai-
Eu já cabo de esquadra no 4º Regimen- xas de pensões, seguro social, proteção
to de Infantaria, na mesma guarnição de a mulheres e menores. Tudo isso sob um
Quitaúna. Estala a chamada Revolução intenso jogo de pressões que criava uma
Constitucionalista de São Paulo. Nova- permanente instabilidade.
mente combatendo contra Vargas, fui Era preciso institucionalizar a
ferido na frente de Cunha, mas pude dar Revolução de 30 para, desse modo,
minha contribuição àquele justo e patri- neutralizar as forças políticas mais ra-
ótico movimento. dicais e apaziguar as oligarquias, ain-
O terceiro enfrentamento à polf- da poderosas. Foi assim convocada a
tica de Vargas aconteceu em 1937, com Assembleia Nacional e promulgada a
Da esquerda para a direita: Miguel Costa, Goes Monteiro – chefe do estado-maior revolucionário – e Getúlio Vargas,
na Revolução de 1930. Foto reproduzida do livro A revolução de 1930 e seus antecedentes, org. pelo Cepedoc (Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980).
Pronunciamentos
Homenagem a Getúlio Vargas 1

Constituição de 1934. Getúlio Vargas juntamente com todos os partidos políti-


consolidava ainda mais sua posição po- cos, e empurrada para a marginalidade.
lítica, agora como Presidente constitu- Em março de 1938, os.integralistas, em
cional do Brasil, obtendo boa margem aliança com setores liberais, tentam um
de manobra para futuros jogos políticos. golpe, num assalto ao Palácio Guanaba-
Vai enfrentar, porém. até 1938, os anos ra rapidamente esmagado.
mais críticos daquela década, em per- O Estado Novo não foi um proje-
manente confronto com diversos grupos to exclusivo de Getúlio Vargas. Ao con-
e forças sociais contrários ao seu projeto trário, teve o beneplácito das forças oli-
político. gárquicas estaduais e também da Igreja,
Crescia então, liderada por Plínio e a participação, em sua concretização,
Salgado, a Ação Integralista Brasileira. de militares e grupos burocráticos que
inspirada numa posição nacionalista que pretendiam modernizar o País “de cima
lembrava, em sua forma de organização, para baixo”. Na visão destes, somente
a postura de direita do tipo europeu. Já um regime autoritário e estável poderia
a esquerda se encontrava agrupada na fazê-lo, racionalizando a administração
Aliança Libertadora Nacional, liderada pública e promovendo o setor terciário
pelo Partido Comunista de Luís Carlos por meio de incentivos e da criação de
Prestes, cuja estratégia era a “frente úni- uma poderosa indústria de base.
ca” contra o imperialismo, o fascismo Dentre as realizações do período,
e o latifúndio. Uma análise incorreta destaca-se a busca de autossuficiência
da correlação de forças leva a Aliança na produção de matérias-primas e bens
a radicalizar, partindo, em 1935, para o manufaturados, bem como o estupendo
levante armado. O rápido e total fracas- incentivo ao setor básico da economia,
so desse movimento fornece a Getúlio com a criação das Companhias Siderúr-
Vargas todos os pretextos para recuperar gica Nacional e Vale do Rio Doce, ao
os instrumentos de poder e coerção que lado da construção da Hidrelétrica de
lhes haviam sido retirados pela Consti- Paulo Afonso. Ao mesmo tempo, graças
tuição de 1934. O regime torna-se cada à habilidade política de Getúlio, a in-
vez mais autoritário, sustentado pelos tensa repressão ao movimento sindical
militares, com apoio da Igreja e dos in- não impediu que o trabalhismo se con-
tegralistas. solidasse: com efeito, bastaria a criação
A 10 de novembro de 1937. o e implementação das leis trabalhistas
Diário Oficial publica a nova Constitui- para fazer de Vargas, dentre os políticos
ção, redigida por Francisco Campos, en- brasileiros oriundos das classes domi-
quanto o Congresso é fechado por uma nantes, aquele que mais sensibilidade
simples operação policial. O Brasil mer- demonstrou às questões do trabalho.
gulhava no Estado Novo. No mês se- A aparente aproximação com as
guinte, a Ação Integralista Brasileira cai forças do Eixo, em especial com a Ale-
na dura realidade ao se ver dissolvida, manha nazista, foi antes a expressão
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

de uma política externa pragmática do co – PSD, aliança entre o lalifúndio, a


que uma demonstração de inclinação burguesia e as altas finanças.
doutrinária – embora agradasse aos se- Antenado com o irrefreável retor-
tores mais conservadores do regime. no da atividade polftico-partidária, em
Na verdade, Getúlio Vargas tinha plena 28 de fevereiro de 1945, Getúlio sur-
consciência de que a América Latina preende as oposições, decretando a Lei
se encontrava na esfera de influência Constitucional nº 9, que determinava a
norte-americana. Dada a inevitabilida- realização de eleições à presidência da
de da guerra, tratava-se de obter, como República, Governos Estaduais, Con-
contrapartida à participação brasileira gresso Nacional e Assembleias Legisla-
– importante no contexto estratégico tivas. A 10 de abril, é decretada a anistia
do Atlântico Sul –, a colaboração dos e liberada a organização partidária. Fa-
Estados Unidos na montagem de nosso lando em anistia, quero registrar a ação
setor siderúrgico. Lembro-me de certa do Comitê Democrático Afro-Brasilei-
noite de 1970 em Middletown, no Es-
ro, braço político do Teatro Negro que
tado de Connecticut. após uma palestra
eu dirigia, com o objetivo de lutar ao
do famoso engenheiro norte-americano
lado das forças democráticas pela liber-
Buckminster Fuller, no Centro Wes-
tação dos presos políticos e pela queda
leyano para Humanidades, do qual eu
do regime discricionário.
era um professor-visitante. Naquela
ocasião, tive longa conversa com o Dr. Afastado do Governo, Vargas
Buckminster Fuller, e ele me relatou em recolhe-se à sua estância em São Borja,
detalhes a missão que recebera do Pre- só rompendo o silêncio para se mani-
sidente Roosevelt de organizar um gru- festar em apoio à candidatura do gene-
po de especialistas capazes de ajudar o ral Dutra (PSDIPTB) – sua mensagem
presidente do Brasil a montar uma side- praticamente decidiu a sorte das elei-
rúrgica. ções – e lançar-se ele próprio em dispu-
A participação do Brasil no esfor- ta de uma cadeira no Senado. Acabou
ço de guerra contra os países do Eixo, eleito senador por dois Estados (Rio
num momento em que o País vivia no Grande do Sul e São Paulo), além de
plano interno uma situação de anorma- deputado pelo Distrito Federal e mais
lidade institucional, pôs a nu as contra- seis estados, dedicando-se então ao for-
dições do regime estado-novista. Até talecimento do PTB.
então enfraquecidas, as oposições se O Governo Dutra foi na verdade
unem, num descontentamento que se uma continuação do Estado Novo no
expõe no “Manifesto dos Mineiros”. que este apresentara de pior. Além de
Cria-se, no segundo semestre de 1944, uma feroz repressão aos trabalhadores,
a União Democrática Nacional – UDN, traduzida no fechamento da Central Ge-
inicialmente incluindo até mesmo so- ral dos Trabalhadores Brasileiros e na
cialistas, enquanto Getúlio estimula a intervenção em quase 400 sindicatos,
fundação do Partido Social Democráti- Dutra cassa o registro do Partido Comu-
Pronunciamentos
Homenagem a Getúlio Vargas 1

nista Brasileiro, que retoma à clandes- Foi nessa altura do processo po-
tinidade. Enquanto isso, Getúlio Vargas lítico que me identifiquei com Getúlio
preparava cautelosamente a sua volta ao Vargas. Ajudei a fundar, no Rio de Ja-
Palácio do Catete. Aos 67 anos, havia neiro, o Partido Trabalhista Brasileiro –
compreendido profundamente as trans- o PTB, ao lado de Segadas Viana, Bení-
formações socioeconômicas por que cio Fontenelle e muitos outros.
passava o País, apresentando-se muito A imensa habilidade na arte da
próximo às reais aspirações da classe conciliação não impediu que Getúlio
trabalhadora. Seu grande adversário Vargas fosse sendo paulatinamente si-
político, a UDN, apresentava a candida- tiado. Enquanto suas iniciativas sociais
tura do Brigadeiro Eduardo Gomes, re- e trabalhistas eram bombardeadas pe-
presentando um liberalismo antipopular las forças conservadoras, sua decidida
e bacharelesco que prenunciava seu fu- atuação em favor de um desenvolvi-
turo de partido golpista e conspiratório. mento de base encontrava forte resis-
Eleitoralmente inconsistente, Cristiano tência dos setores políticos ligados ao
Machado, candidato do PSD, não cons- capital externo. Destes seriam alvos
tituía obstáculo. preferenciais importantes criações de
Getúlio, como o Plano do Carvão, o
Assim, depois de seis anos afasta-
Banco Nacional de Desenvolvimento
do do Catete, Getúlio Vargas conquistou
Econômico, o projeto da Eletrobras e,
novamente, pela força do voto e com o principalmente, a Petrobras.
aval das massas trabalhadoras, a cadeira
Em fins de 1951, Getúlio Vargas
presidencial, arrasando seus adversá-
enviou ao Congresso o projeto de lei que
rios com quase 4 milhões de votos, ou
criava o monopólio estatal do petróleo,
cerca de 49% do total. Sem maioria no
por meio de uma empresa de economia
Congresso, contudo, teria de se impor
mista sob controle acionário do Estado.
mediante uma administração vibrante e Esse projeto foi talvez o mais sério divi-
vigorosa. Getúlio soube compreender as sor de águas entre “nacionalistas” e “en-
necessidades de um Brasil muito dife- treguistas”, e fator de desgaste de Vargas
rente daquele da década de 30, um país perante muitos setores – inclusive mili-
cuja expansão capitalista e urbana fize- tares. No plano parlamentar, o projeto
ra crescer, em número e importáncia, as gerou acirrados debates, polarizados
massas trabalhadoras. Estas lhe dariam entre, de um lado, a bancada do PTB e
seu apoio fundamental numa política seus aliados nacionalistas e, de outro, os
que, além de levar a conquistas práticas políticos da UDN, apoiados por forças
de interesse popular, também permitia, articuladas ao capital estrangeiro. A es-’
com o estímulo à sindicalização, bem tes últimos se juntavam, contra a tese do
como às greves e manifestações nacio- monopólio, entidades representativas
nalistas, um sensível salto organizativo das classes patronais. Mas a campanha,
dos trabalhadores. da qual pude participar ativamente, não
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Atuação Parlamentar

se restringiu aos limites da Câmara e do das exigindo-lhe a renúncia. Solitário,


Senado. Pelo contrário, ganhou as ruas, Getúlio se recolhe aos seus aposentos e,
em constantes comícios e manifestações pouco depois, se suicida com um tiro no
em que a palavra de ordem “O petróleo é coração. Seguia, como registrou em sua
nosso!” era levantada por organizações carta-testamento, o destino que lhe era
sindicais, associações profissionais e imposto. A comoção com que o povo re-
entidades representativas, como a UNE agiu ao suicídio atrasou por dez anos o
e o importante Centro de Estudos de De- projeto acalentado pela UDN e parte da
fesa do Petróleo, formado por militares cúpula militar, o qual só viria a se con-
nacionalistas. A 3 de outubro de 1953, cretizar com o golpe de 64.
depois de o projeto inicial ter sido deba- Hoje, mais de quatro décadas
tido linha por linha, seus principais as-
passadas desde sua morte, os ideais de
pectos exaustivamente discutidos e seu
Getúlio Vargas continuam pulsando
texto inicial modificado e melhorado, o
na consciência dos brasileiros que não
Congresso aprova e Getúlio sanciona a
aceitam ver nossos interesses mais le-
Lei nº 2.004, instituindo a Petrobras.
gítimos subjugados àqueles do grande
Todos esses fatos contribuem capital internacional, cujo controle é
para que aliança de classes perca terre- essencial para a manutenção de nossa
no para a orientação trabalhista – o que soberania. Num mundo em que as gran-
aumenta a reação dos adversários civis e des corporações assumem mais e mais o
militares de Getúlio, em geral movidos poder de decidir sobre os destinos glo-
por uma mentalidade estreita e apoiados bais, em proveito dos interesses, quase
por uma imprensa com a qual o Presi-
sempre disfarçados, das grandes nações
dente mantinha, desde os tempos do Go-
capitalistas, não é à toa que a herança
verno Provisório, uma relação no míni-
de Vargas é rejeitada pelos arautos dessa
mo conflituosa. Ruidosos e rancorosos,
nefasta “globalização”. Estão empenha-
udenistas e aliados políticos, em estreita
dos na tarefa de remover a legislação
colaboração com parte da oficialidade
trabalhista – para eles um entulho no
das Forças Armadas, tratariam de liqui-
caminho da “modernização” –, sucatear
dar o velho estadista. Após o atentado da
a infraestrutura do Estado e entregar de
Rua Toneleros, a 5 de agosto de 1954,
contra o jornalista Carlos Lacerda – tal- mão-beijada ao capital estrangeiro um
vez seu mais ferino opositor –, Getúlio patrimônio duramente acumulado com
Vargas tinha plena consciência de que o o suor de nosso povo.
golpe era iminente. Num ato derradeiro, Exemplo dessa fidelidade aos
quem sabe inspirado no Raul Pompeia ideais de Vargas e de decisão corajosa
das suas leituras juvenis, Getúlio Vargas na defesa do patrimônio que ele legou
daria sua última aula de política. Às 8 ao nosso povo, tivemos na posição as-
horas da manhã de 24 de agosto, o gene- sumida por essa extraordinária senadora
ral Zenóbio da Costa apresentou-lhe o Emília Fernandes. Deixou a sigla PTB
ultimato irrevogável das Forças Arma- por considerá-la infiel aos sonhos e às
Pronunciamentos
Homenagem a Getúlio Vargas 1

conquistas do Presidente Vargas. Por os inimigos do Brasil, que se envergo-


isso retornou ao PDT, onde Brizola toma nham de sermos quem somos e de ter-
o fio da história e dá continuidade à luta mos a cara que temos, inspirados em
getulista em favor dos trabalhadores e inconfessáveis motivações em que o
dos destituídos. Principalmente, luta em desprezo pelo povo brasileiro tem papel
defesa do patrimônio do povo brasileiro. significativo. Guiado pelas ideias e ide-
O reingresso da Senadora Fernandes na ais de Getúlio Vargas, o povo brasileiro
última sexta-feira constituiu evento po- saberá encontrar o caminho que o con-
lítico que não se registra há tempos em duza a um desenvolvimento autônomo.
Porto Alegre. Pode-se afirmar com mo- Jogando, sem dúvida, com as forças do
déstia que a senadora galvanizou a cons- poder e do mercado, mas sem jamais
ciência cívica do Rio Grande do Sul. submeter-se a elas passivamente.
De onde quer que esteja, porém,
o espírito de Getúlio Vargas nos há de
inspirar e estimular em nossa luta contra Axé, Getúlio Vargas!
Estudo de um aspecto da história
diplomática da Revolução de 1817

Este breve ensaio pretende abordar


A Revolução um aspecto da história diplomática da Re-
volução de 1817 que, como diversos outros
Haitiana no Brasil aspectos da história daquela Revolução,
viria a desempenhar papel importante no
desenrolar de nossa história nacional. Que-
ro me referir à influência e repercussão da
Revolução Haitiana na História do Brasil.
Na História mas ainda não na historiogra-
fia, pois pouquíssimos são os textos em que
se pode encontrar alguma alusão, ainda que
tênue, ao tema de que me ocuparei aqui.
À época da Revolução Republica-
na de 1817, a problemática da escravidão
negra era assunto emergente no cenário
internacional e a relação que com ele teria
aquela Revolução viria a ser, sob muitos
aspectos, inovadora e precursora na Histó-
ria do Brasil. Um daqueles aspectos será a
contribuição – embora involuntária, é certo
– para que o poder latifundiário da época
se distanciasse definitivamente da causa
republicana e para que se viesse a pintar
Gonçalo de Barros Carvalho com cores ainda mais radicais o perigo de
e Mello Mourão* seu triunfo, em oposição à adoção de um
sistema monárquico. Conforme assinalo
no subtítulo acima, este pretende ser antes
de mais nada um estudo de história diplo-
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

mática, embora sua finalidade seja susci- breve duração daquela nossa primeira
tar questões e dúvidas que extrapolam os república, mas um estudo, cuidadoso e
limites de seu campo. Não pretende ser isento, da vasta documentação existen-
este, tampouco, um estudo exaustivo, mas te sobre a Revolução demonstraria, sem
principalmente sequer provocador. dúvida, a rota que trilharia um eventual
Revoltas de escravos houve mui- poder republicano sedimentado revolu-
tas antes do 6 de março de 1817 e muitas cionariamente – a exemplo dos demais
depois, pelo Brasil afora. O que ocorreu na América Espanhola – e imbuído da
quando daquela Revolução, entretanto, ideia radical de liberdade em um país
estando bem vivos, na memória de todos, com o grau de escravidão do Brasil e
os sucessos surpreendentes do Haiti, foi por meio de um movimento que incor-
inaudito, pois representou não apenas a porou, como a Revolução de 1817, os
participação de negros e mulatos, ao lado negros em todos os seus principais pas-
dos brancos, no poder que se institucio- sos. Não enveredarei por aquele cami-
nalizou, mas sobretudo porque significou, nho, que foge a meu escopo aqui, mas
em um dado momento, a criação da pos- que está a merecer um estudo amplo e
sibilidade política de um levante geral no aprofundado; apenas, sugerindo, aqui e
Brasil, com uma ampla reestruturação do ali, por onde ele poderia passar, tentarei
panorama social. E essa percepção foi com mostrar, por meio de aspectos diplomá-
muita clareza expressa pelos observadores ticos da Revolução de 1817, o quanto
internacionais daquela Revolução. impressionou a todos os observadores o
extraordinário relacionamento da Revo-
A realidade não foi tão drástica
lução com a problemática da escravidão
quanto aquela possibilidade pode dei-
no Brasil e como aquela percepção in-
xar parecer, tanto em vista sobretudo a
fluiu no desenrolar de nossa história1.

1 Embora, como disse, não esteja no âmbito deste estudo discutir o assunto em seu aspecto mais amplo, não me posso
furtar a um comentário sobre esse tema, suscitado por duas passagens de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil,
sobretudo em virtude da importância que adquiriu aquele livro nos estudos sobre o processo político brasileiro. A primeira
passagem estava já em sua primeira edição, de 1936 (Rio de Janeiro, José Olympio, p. 157, Capítulo VII), e ali Sérgio Bu-
arque de Holanda, rendendo perfeita justiça a aspectos da Revolução de 1817 (“aqueles pioneiros de nossa independência e
da república (...) foram de uma sinceridade que nunca mais se repetiu no decurso de nossa vida de nação”), comete o equí-
voco de afirmar que os revolucionários “não desejavam em nada modificar a situação dos negros escravos”, repetindo uma
percepção apressada, quando não facciosa, mas de resto compreensível em 1936, quando os Documentos históricos da Re-
volução de 1817 na Biblioteca Nacional não haviam sido ainda publicados. A segunda passagem consta do volumoso texto
acrescentado, na edição de 1948, ao Capítulo III do livro, intitulado “Herança rural”, e ali, mais uma vez, aquela percepção
errônea é brandida, e de maneira mais ampliada (cito em espanhol pois apenas pude compulsar a tradução de 1955 do Fundo
de Cultura Econômica do México): “(...) la misma Revolución Pernambucana de 1817 (...) puede decirse que fue en gran
parte una repetición de la lucha secular del indígena contra el advenedizo, del dueno del ingenio contra el comerciante. Es
poco probable que de haber triunfado hubiese introducido alguna transformación verdaderamente substancial en nuestra
estructura político-económica.” Tampouco em 1948 aqueles Documentos históricos estavam publicados, e isso justificaria
o julgamento generalizado de Sérgio Buarque de Holanda. A importância de seu livro, entretanto, é razão suficiente para
que atenção seja chamada aqui sobre a necessidade de uma reavaliação daquela percepção. Não é, como disse, meu tema
aqui essa reavaliação, mas em alguns de seus aspectos espero que aquela antiga percepção apareça claramente questionada
nos poucos parágrafos a seguir neste estudo. Incidentemente, assinale-se que da Revolução participaram tanto donos de
engenho quanto comerciantes, ao contrário do que sugere Sérgio Buarque de Holanda, que também nisso deve ser revisto.
A Revolução Haitiana no Brasil
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão 1

O impacto do que ocorrera recente- época junto à Corte portuguesa, o minis-


mente – e que de certo modo ainda ocor- tro de Sua Majestade britânica no Rio de
ria – no Haiti foi marcante, na época, para Janeiro, Henry Chamberlain, já em seu
o Ocidente: pela primeira vez na história primeiro ofício a Londres dando conta do
do mundo uma revolta de escravos era ocorrido, encontra espaço para observar,
bem-sucedida e chegava à constituição certamente aliviado – embora com des-
de um Estado soberano e independente2. conhecimento dos fatos –, que “os negros
As peripécias das lutas dos negros e mula- felizmente permanecem inteiramente neu-
tos do que então se chamava também São tros”4. Sua preocupação era tanta, porém,
Domingos, contra os brancos e entre si, que já no ofício seguinte em que trata da
ficaram gravadas entre os coetânens pela Revolução volta ao assunto, expressando
crueldade com que se desenrolou, por seu dessa feita com clareza o temor pela re-
lado humano, e, por seu lado econômico e volta generalizada dos negros: “Enquanto
político, pelo que significou de ruína para os negros não tomarem parte na disputa o
um território que era a pérola colonial perigo será comparativamente pequeno;
francesa em todo o mundo3. mas se tais homens se juntam, seja pelo
Aquele exemplo aterrorizador sentimento de sua própria força, seja pelo
seria constantemente lembrado por oca- desejo de readquirir sua liberdade, ou se
sião da Revolução de 1817 e, a partir são chamados às armas pelo desespero
dela, constantemente assimilado, como dos rebeldes, é inútil tentar calcular a ru-
parte da estratégia política monarquis- ína que inevitavelmente se seguirá: o Mi-
ta, à noção de revolução republicana ou nistério está tão consciente desse perigo
mesmo simplesmente liberal no Brasil. que o governador de Minas Gerais, que
fora chamado à cidade para estar presente
Assim, logo por ocasião da eclosão
à Aclamação, foi mandado partir de volta
do movimento de 6 de março, o represen-
dentro de uma hora”5.
tante diplomático da maior potência da

2 O Halti foi o segundo país, depois dos Estados Unidos. a se tornar independente nas Américas, fato que ainda hoje não
é tão lembrado.
3 Impressionante e bem-documentada história do Haiti é o livro de Robert Debs Heinl, Jr, e Nancy Gordon Heinl, Written
in blood. lhe story of lhe Haitian people. 1492-1971 (Boston, Houghton Mifflin. 1978). Nele se encontram os seguintes
dados, que informam minimamente o que venho de asseverar: por volta de 1783 o comércio do Haiti significava mais de
um terço do comércio exterior da França e em 1790 era o Haiti, depois da Grã-Bretanha, o segundo parceiro comercial dos
Estados Unidos; em 1791 exportava mais de 35 mil toneladas de açúcar refinado, em 1789. mais de 375 toneladas de anil;
em 1801, entretanto, dez anos depois do início das guerras de independência, a exportação de açúcar refinado fora de oito
toneladas, a de café caíra 55%, a de anil fora de 804 libras e a de algodão caíra a cerca de um terço. Isso quanto à economia.
Quanto à crueldade daquelas guerras. dizem aqueles mesmos autores que a população do Haiti, que em 1789 andava por
volta de pelo menos 700 mil pessoas, sem contar os poucos brancos, em 1824, por ocasião do primeiro censo demográfico.
totalizara 351.819: mais da metade teria desaparecido naquelas lutas.
4 Ofício número 22, de Henry Chamberlain ao secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, lorde Castlereagh. de
28 de março de 1817 (“the negroes fortunately have remained entirely neutral”).
5 Oficio número 29, de Henry Chamberlain a lorde Castlereagh, de 5 de abril de 1817 (“So long as the negroes take no part
in the dispute the danger will be comparatively small; but if these men join in it. either from a feeling of their own strength,
or a wish to regain their freedom: – or are called to arms by the despair of lhe rebels, ir is useless to attempt to calculate
the ruin that will inevitably follow: the Ministry is so well aware of this danger that the Governor of Minas Geraes, who had
been ordered to town to be present at the Acclamation, has been sent off again at an hours notice”).
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

Do mesmo modo o comodoro fragata Pérola – mandada armar pelos


William Bowles, comandante da Esta- negociantes de Lisboa e despachada
ção Naval britânica no Atlântico Sul, diretamente de Portugal para colaborar
que ainda no Rio de Janeiro tomara co- no bloqueio ao porto do Recife –, (pro-
nhecimento das primeiras notícias que clamação publicada em Londres pelo
chegaram à Corte sobre a Revolução, es- Investigador Português em seu volume
crevia, já de volta a Buenos Aires, para XIX, de julho de 1817, às páginas 88 a
o Almirantado em Londres, em maio 92) que a alturas tantas dizia, depois de
daquele ano, manifestando seu entendi- tecer considerações sobre as desgraças
mento de que, se a insurreição no conti- das revoluções no Velho Continente:
nente não se acabasse, o Brasil poderia “Se tais vêm a ser indispensavelmen-
se transformar em uma segunda São Do- te os efeitos que os princípios revolu-
mingos: “Desejo de todo o coração para cionários modernos devem produzir, e
meu próprio bem, mas muito mais para realmente produziram na Europa; que
o da humanidade, que algum meio possa incalculáveis males não ameaçam o
ser encontrado para pôr fim a hostilida- Brasil no seu estado atual? O exemplo
des que, se continuarem e aumentarem, da ilha de São Domingos é tão horroro-
como a insurreição de Pernambuco só so e está ainda tão recente, que ele só
nos dá muita razão para temer que irão, será bastante para aterrar os proprietá-
possam terminar pela expulsão de todos rios deste continente”7.
os brancos deste continente e o estabele- Na Europa, sem conhecer ainda
cimento de uma segunda São Domingos o desfecho da Revolução, mas já ten-
nos territórios brasileiros”6. do tido dela notícia, o famoso polígrafo
A repressão portuguesa teve abade de Pradt escrevia, ainda em prin-
também consciência plena do peri- cípios de 1817: “(...) e se, pela maior das
go, conforme vemos, por exemplo, na infelicidades, eles [os revolucionários]
proclamação aos habitantes de Per- viessem a pôr em movimento os escra-
nambuco emitida pelo comandante da vos, que seria do Brasil?”8.

6 Oficio do comodoro William Bowles para lorde Fitzharris, no Almirantado em Londres, desde Buenos Aires. em 26 de
maio de 1817, transcrito por Gerald S. Graham e R. Humphreys. orgs., em The Navy and South America 1807-1823 (Lon-
dres, The Navy Records Society, p. 200) (“I heartly wish for my own sake, but much more for that of humanity. some means
could be devised for terminating hostilities which, if they continue and extend, as the insurrection at Pernambuco gives us
but too much reason to fear that they will, may end in the expulsion of all whites from this continent and the establishment
of a second St. Domingo in the Brazilian territories”).
7 Transcrita por Mello Moraes em História do Brasil-Reino e do Brasil-Império, Belo Horizonte, Itatiaia, 1982. Tomo I.
p. 477-80
8 Dominique de Pradt, Des trois derniers mois de l’Amérique Méridionale et du Brésil. Paris. F. Bechet. 1817, p.(“et si par
le plus grand des mulheurs, ils venaient à mettre en mouvement les esclaves, que deviendrait le Brésil?”).
A Revolução Haitiana no Brasil
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão 1

Apenas liquidada a Revolução, co- na, o inimigo maior seria o espírito re-
meçou a ser posta em prática aquela cons- publicano, a que era então convenien-
tante ameaça dos horrores do Haiti como temente ajuntada sempre a ameaça da
arma contra o republicanismo, da qual já sublevação dos escravos; o enviado es-
falara sem rodeios Alfredo Varela9. Assim panhol na Corte do Rio, José Delavaty
é que no próprio Manifesto de D. Pedro Rincón, informando sua Secretaria de
às nações amigas, de 6 de agosto de 1822, Estado do término da Confederação do
já se usa daquela ameaça das “cenas hor- Equador, em 10 de dezembro de 1824
rorosas do Haiti, que nossos furiosos ini- congratula-se com o fato de que em
migos muito desejam reviver”10. Nas dis- meio àqueles acontecimentos “se há
cussões acaloradas sobre a conveniência conservado tranquilo [sic] la numerosa
da manutenção da unidade da monarquia escravatura que existe en dichas pro-
portuguesa, defendida desesperadamente vincias”, “acrescentando, entretanto,
às portas do 7 de Setembro e até mesmo cauteloso: “pero no porque hasta aho-
depois dele, aquele fantasma seria tam- ra este mal no se haya verificado dexan
bém constantemente lembrado11. de estar en inminente peligro de que se
Lutando o Império nascente por realicen”12.
sua consolidação internacional e inter-

9 Alfredo Varela, Duas grandes intrigas, Porto. Renascença Portuguesa, 1919, volume I, p. 729-30, nota 44: “Era com esta
criação dos pretos antilhanos, apresentada como horripilante espantalho, que nossos maiores, reiteradamente, buscavam
dissipar os sonhos do idealismo político indígena. A menção da Republiqueta é constante em todos os artigos de imprensa
ou livros de polêmica, da autoria dos legitimistas ou monárquicos, desde os albores do Império, até o período regencial.”
10 “Manifesto do Príncipe Regente do Brasil aos Governos e Nações Amigas”, in Mello Moraes, op.cit., tomo II, p. 416-25:
“À vista de tudo isto já não é mais possível que o Brasil lance um véu de eterno esquecimento sobre tantos insultos e atroci-
dades; nem é igualmente possível que ele possa jamais ter confiança nas cortes de Lisboa, vendo-se a cada passo ludibriado,
já dilacerado por uma guerra civil, começada por essa iníqua gente, e até ameaçado com as cenas horrorosas do Haiti, que
nossos furiosos inimigos muito desejam reviver.”
11 Veja.-se, apenas como exemplo, um dos seis folhetos publicados em O debate político no processo da Independência,
Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1973: Reflexões sobre a necessidade de promover a união dos Estados de que
consta o Reino-Unido de Portugal. Brasil e Algarves nas quatro partes do mundo. Lisboa, Antônio Rodrigues Galhardo,
1822, onde, na reflexão 8ª, p. 14, diz-se: “Se algum partido republicano se levanta, e toma corpo, veremos reproduzidos no
Brasil os espantosos estragos da América Espanhola; e se os negros se sublevam, veremos renovadas as horríveis cenas da
Ilha de S. Domingos.”
12 Ofício número 58, de 10 de dezembro de 1824. de José Delavat y Rincón a Francisco Zea Bermudez, primeiro secretário
de Estado em Madri. em Documentos para a história da Independência. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1923, volume I,
Lisboa – Rio de Janeiro, p. 471-2. É interessante transcrever a passagem pertinente: “Afortunadamente para este Gabinete
en medio de estas convulsiones políticas se há conservado tranquilo la numerosa esclavatura que existe em dichas provin-
cias pera no porque hasta ahora este mal no se haya verificado dexan de estar em inminente peligro de que se realice. Si
desgraciadamente para la humanidad aconteciese tal evento es incalculable los resultados políticos que tendría: pues es
um territorio tan extenso. de tantos recursos para la guerra defensiva, si llegase a poner en el estado que hoy tiene la Isla
de Santo Domingo es imposible prever la fuerza que seria necesario emplear para pacificarlo. y aun algunos inteligentes
en el pays lo jusgan impraticable. Por tanto. parece que el Portugal se halla en el caso de accelerar la conclusión de sus
diferencias com este pays, del modo que jusgue mas conveniente a sus intereses, pero sin perder de vista que la situación
política del Brasil exige para que no se pierda para todos, que se consolide un Gobierno que tenga recursos de que echar
mano si llegase a poner en practica tan terrible suceso.”
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

O republicanismo haitiano, de 15 pardos e pretos14, e Amaro Quintas


resto, seria temido até mesmo como enumera outros 45 pretos e pardos ativa-
produto de exportação, e não apenas nas mente envolvidos no movimento15. Não
Américas13. cabem nos limites deste ensaio o exame
A utilização do espectro da suble- da participação dos negros nas ativida-
vação generalizada dos negros como ar- des da Revolução, nem o estudo da po-
gumento de peso contra o republicanis- sição que os revolucionários adotaram,
mo tornou-se normal após os sucessos tanto institucionalmente, sobretudo
de 1817, devido não apenas às suges- por meio dos atos dos Governos Pro-
tões de que o novo Governo Provisório visórios de Pernambuco e da Paraíba,
republicano realizaria a abolição, mas quanto pessoalmente, no nível de suas
sobretudo devido ao papel que efetiva- ações individuais. Registre-se, entretan-
mente desempenharam negros e mula- to, como base para argumentação, que
tos – escravos e libertos – nas peripé- em nenhum outro movimento do gênero
cias daquela Revolução. José Murilo de na História do Brasil a participação da-
Carvalho, de um total de 160 acusados quele segmento da população seria tão
nos processos montados contra aqueles intensa e tão acorde com a dos demais
primeiros brasileiros pela repressão do segmentos, numa demonstração de de-
Governo português no Brasil, elenca mocracia racial para a qual a sociedade

13 Domingos Borges de Barros, por exemplo, representante do Império em Paris, de lá oficia ao ministro de Estrangeiros
no Brasil, Luís José de Carvalho e Mello, em 18 de março de 1824, informando (Arquivo diplomático da Independência,
Brasília, Ministério das Relações Exteriores, 1972, edição fac-similada da edição comemorativa de 1922, vol. III, p. 115):
“Apresso-me também a comunicar que a um francês de Bordeaux, Capitão de navio, chegado de S. Domingos com quem
concorri ontem, ouvi o que muitas outras vezes tenho sabido, que de S. Domingos partem constantemente emissários para
revoltarem escravos onde os há, e que para a Bahia o cabra Perrier sujeito capaz de grandes coisas, e quando outros dados
não tivéssemos para que este negócio mereça particular atenção basta ler-se o que se passou naquela Ilha por ocasião do
aniversário de sua emancipação (Constitutionel de 12 do corrente)” (o trecho em destaque estava cifrado no original). A
cooperação do Haiti, aliás, nas lutas de independência era conhecida na época. Não somente promoviam aqueles envios
de emissários a que se refere Borges de Barros, como tinham já apoiado Miranda em sua primeira tentativa de sublevação
da Venezuela, assim como Bolívar por duas vezes (Heinl, Jr. e Heinl, op.cit., p. 157 a 159, contam como o presidente Pé-
tion, ao lhe perguntar Bolívar como lhe poderia agradecer pela ajuda que lhe dava, disse-lhe com grandeza que o melhor
agradecimento seria a libertação de todos os escravos das colônias espanholas). A fama da disponibilidade do Haiti para o
auxílio aos que procuravam a própria liberdade era tamanha que, contam aqueles mesmos autores, os insurgentes gregos
procuraram o presidente Boyer atrás daquela ajuda e obtiveram, se não homens, de que não podia dispor, 25 mil libras de
café, e com café haitiano foi regada a independência da Grécia.
14 José Murilo de Carvalho, A construção da ordem, a elite política imperial, Brasília, Universidade de Brasília, Coleção
Temas Brasileiros, volume 4, p. 145, logo após concluir que “a rebelião mineira [1789] apresenta-se como feita por ricos,
a baiana [1798] por pobres e a pernambucana [1817] por ambos”.
15 Amaro Quintas, A Revolução de 1817, Rio de Janeiro-Recife, José Olympio/Fundarpe. 1985. p. 124-7.
A Revolução Haitiana no Brasil
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão 1

que realizaria a independência monár- por todas as aristocracias, oligarquias e


quica absolutamente não estava e nem plutocracias de então; as próprias revo-
tão cedo esteve preparada16. luções norte-americana e francesa não a
Aquele exercício de fato, em- conceberam de outra maneira.
bora brevíssimo, de uma democracia A Revolução de 1817, ao engajar
racial inaudita nos fastos do mundo de a participação ativa, política, adminis-
então somente poderia, aos olhos dos trativa e militar de negros – escravos e
contemporâneos, e sobremodo dos an- libertos – e mulatos indistintamente ao
tirrepublicanos, ser avaliada, como sob lado dos brancos, ao proclamar alto e
este aspecto de fato o foi, com base no bom som que “deseja uma emancipação
que ocorrera e ocorria no Haiti; o que que não permita mais lavrar entre eles
ocorrera e ocorria ali era a derrocada o cancro da escravidão” e que não po-
não somente do sistema colonial, mas dia “acreditar que os homens, por mais,
da estrutura política como concebida ou menos tostados, degenerassem do

l6 Enumero. a seguir, algum poucos exemplos tomados aleatoriamente que creio contundentes o bastante para servirem de
embasamento mínimo ao que venho de afirmar: a) dentre os 17 cidadãos que, segundo o padre Dias Martins (Joaquim Dias
Martins. Os mártires republicanos vítimas da liberdade nas duas revoluções ensaiadas em 1710 e 1817. Pernambuco. Tip.
de F. C. de Lemos e Silva. 1853. p. 48-9), se trancaram no Erário no Recife e subscreveram a ata de eleição do Governo
Provisório em 7 de março, dois eram negros: Joaquim Ramos de Almeida e Tomás Ferreira Vila-Nova (note-se. entretanto.
que o “Bando” emitido quando da eleição, e transcrito por Muniz Tavares em sua História da Revolução de Pernambuco
em 1817, terceira edição comemorativa do primeiro centenário, revista e anotada por Oliveira Lima, Recife, Imprensa
Industrial, 1917, p. CVI-CVII, lista apenas 16 signatários, omitindo o nome de José Xavier de Mendonça); b) Domingos
Teotônio Jorge, membro do Governo Provisório e general das Annas da República, estabelecera para si um corpo de aju-
dantes de ordens de dez membros, sendo quatro brancos, três mulatos e três pretos (Documentos históricos da Revoluçdo
de 1817 na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Ministério da Educação e Saúde, vol. CI, p. 128);
c) a primeiro ultimátum dos revolucionários, levado pelo advogado José Luís de Mendonça, depois membro do Governo
Provisório, ao governador Caetano Pinto, refugiado na Fortaleza do Brum, ia assinado por oito pessoas, duas das quais eram
negras, (idem. vol. CVI. p. 78); d) o comando da Fortaleza das Cinco Pontas fora entregue a um negro (idem, vol. CI, p.
39); e) os dois regimentos de Henriques, o velho e o novo, foram extremamente ativos desde a primeira hora da Revolução
(Amaro Quintas, A Revolução de 1817, op.cit., p. 121); f) O ministro britânico no Rio, Henry Chamberlain, em sua carta
ao representante de Londres em Lisboa, Ward, dizia que os revolucionários “estão atentamente ocupados em juntar tropa
e há informações de que oito regimentos estavam quase completos por volta de meados do mês passado: dois deles são de
negros livres (terrível!) [sic]; dois, mulatos: e quatro, brancos” (“are intently occupied in raising troops, and report says
that eight regiments were nearly completed by the middle of last month: two of these are free black, (terrible!) [sic] two.
mullatoes; and four. whites” – Publlic Record Office, doc.cit.); g) finalmente, nunca é demais repetir o célebre trecho da
importante proclamação que a respeito transcreve Muniz Tavares (op.cit.. p. CCV), com as palavras com que a apresenta,
e que tem sido apreciada quase que universalmente sob a ótica de valores atuais que lhe descaracterizam a pureza histórica
e o valor político (mas este já não é mais meu tema aqui): “O Governo Provisório pareceu assim pensar; um como nunca
havia divulgado os seus sentimentos respectivamente à liberdade dos escravos, e a acusação sobre este ponto [acusação de
que decretaria a liberdade tota1 e imediata dos escravos] não era menos forte, julgou oportuno manifestá-los com clareza
na seguinte Proclamação: Patriotas Pernambucanos! A suspeita tem-se insinuado nos proprietários rurais: eles creem que
a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor, e escravos. O
Governo lhes perdoa uma suspeita, que o honra. Nutridos em sentimentos generosos não podem jamais acreditar que os
homens por mais, ou menos tostados degenerassem do original tipo de igualdade: mas está igualmente convencido que a
base de toda a sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade. Impelido destas duas forças opostas
deseja uma emancipação, que não permita mais lavrar entre eles o cancro da escravidão: mas deseja-a lenta, regular e legal.
O Governo não engana ninguém, o coração se lhe sangra ao ver tão longínqua uma época tão interessante: mas não a quer
prepóstera. Patriotas, vossas propriedades ainda as mais opugnantes ao ideal da justiça serão sagradas; o Governo porá
meios de diminuir o mal, não o fará cessar pela força. Crede na palavra do Governo, ela é inviolável, ela é santa.”
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

original tipo de igualdade”, não pode- mente, para o fortalecimento das hostes
ria indicar, naquela época, aos que não monarquistas com a caracterização do
lhe eram simpáticos, senão um caminho espírito republicano como perigosa-
acelerado em direção ao haitianismo. Os mente abolicionista, extremista e con-
partidários da monarquia rapidamente dutor à desestruturação social, política e
compreenderam essa lição e a república econômica.
foi imediata e exaustivamente associa-
da àquela noção de barbárie igualitária. * Gonçalo de Barros Carvalho e Mello
Desse modo, a revolta haitiana, filtrada Mourão é poeta, pesquisador e diplo-
pelos acontecimentos de 1817, interferi- mata, atualmente ministro-conselhei-
ria profundamente na História do Brasil, ro da Embaixada do Brasil em Paris.
contribuindo, ainda que involuntaria-
É muito dificil para um artista fa-
lar, sobre si próprio, que amadureceu, ou
que encontrou um caminho definitivo.
Sebastião Januário: Ainda mais quando se trata de um artis-
ta plástico, um pintor, que, não satisfeito
um mundo que se com os labirintos das telas, atende aos
chamados da criação em outros desafios,
pinta por aqui como a poesia e a música.
As dezenas de exposições já reali-
zadas, os prêmios recebidos, a presença
obrigatória nas enciclopédias e dicioná-
rios de artes plásticas fazem de Sebastião
Januário um artista requintado, precioso,
com uma obra desde o início carregada
de maturidade, mas que ao longo do tem-
po foi moldando uma identidade própria,
com a consciência da impossibilidade de
que se pudessem alterar as impressões
digitais.
Nascido em 1939 no Município
de Dores de Guanhães, Minas Gerais,
Sebastião Januário tem vivas lembran-
Éle Semog ças da infância, da mãe, dos avós e das
outras crianças de quem destoava, pois
conta que caía em devaneios desenhando
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

figuras no chão de terra, com pedaços dros de alguns dos nossos melhores ar-
de carvão e gravetos. Descendente de tistas. Um belo acervo que as constantes
africanos Watusis, em Minas chamados mudanças e a falta de condições de ma-
vitus, os familiares e vizinhos não com- nutenção estão destruindo lentamente.
preendiam, não aceitavam, que o peque- O menino triste e solitário, por-
no Tião não se envolvesse, com a mesma causa do acontecido com o pai, não se
responsabilidade que as outras crianças adaptava ao trabalho com o gado, ou na
se envolviam, no trabalho infantil coti- lavoura. A casa espaçosa, com chão de
diano da fazenda. Por isso era chamado terra coberto por uma fina camada de
de lesma, molenga e outros ditos. esterco de boi – que servia para afastar
Desenhar, rabiscar o chão era os escorpiões e refrescar o ambiente –,
uma coisa instintiva no meio da inocên- era varrida diariamente com vassoura
cia da idade e à revelia das obrigações de alecrim, ou vassourinha de cigano,
que lhe eram delegadas. Como a anun- como eles chamam por lá. E a cada var-
ciar um mistério, Sebastião Januário re- rida a poeira fina levava os desenhos de
lata, depois de algum silêncio reflexivo, carvão do pequeno Tião, que ali vivia os
que quando tinha quatro para cinco anos conflitos de crer ou não crer em Deus, o
a mãe, por ordem do pai, foi obrigada medo do inferno e a angústia para não
a dá-lo a parentes para que o criassem. se tornar um pecador. Tudo sob a rigoro-
Ainda não compreende ... Por que ele? sa crendice católica de uma avó – índia
Mais tarde, já adulto, insistindo para que guarani –, casada com o avô negro, da
a mãe falasse sobre o ocorrido, ela foi corte africana. Aquele povo, a maioria
lacônica e triste: “Quando eu estava grá- era da corte africana, como se diz.
vida de você, seu pai tentou enfiar uma Sempre que chegavam os jornais,
faca na minha barriga para lhe matar. trazidos por fazendeiros vizinhos, o ra-
Eu protegi você escondendo a barriga pazola se enfurnava em algum canto,
[e a si própria embaixo da cama.” Com ávido por saber das notícias do mundo;
certeza, essa não é a melhor história que pois tudo era mundo para além das fron-
alguém pode contar sobre si mesma. teiras de Dores de Guanhães. Inspirado
Ainda mais que as conversas com o pai por um ‘’tio’’ artista e escritor – Orlando
sempre foram muito reticentes, mesmo Djogh Horid, que escreveu o livro A mu-
depois de adulto, e sem justificativas lher e o anjo –, de quem lia as cartas en-
para aquele ato desvairado, talvez uma viadas do Rio de Janeiro lá para a roça,
cisma. Naquele tempo existiam muitas Sebastião Januário recorda com vívida
cismas. ternura imagens, quase materializáveis,
O apartamento, como que surpre- da margem do ribeirão, da beleza das sa-
so com esse caso revelado tão abrup- racuras, o canto dos pássaros, as cauãs e
tamente, parece uma galeria de arte, as tardes ensolaradas; o sol das almas,
misturando em espaço reduzido uma in- como era chamado. Lembra-se também
finidade de estilos, entre objetos e qua- da despedida dos trabalhadores e suas
Pintor Sebastião Januário
Éle Semog 1 1

cantigas, depois que lavavam e guar- Quando, em 1967-68, Sebastião


davam as ferramentas. Durante o dia, o Januário conhece Abdias Nascimento,
avô, no meio da plantação, gritava para ocorre uma mudança radical em sua for-
os roceiros: “Desenvolve, pessoal! De- ma de compreender o mundo e de mane-
senvolve que o dia tá acabando e não vai jar suas próprias ferramentas – tintas, te-
dar conta ... Desenvolve!” las, pincéis, espátulas. Foi como se seus
A descoberta da pintura de Se- São Franciscos, suas santas, seus anjos
bastião Januário passa por um encon- se energizassem e adquirissem uma pul-
tro com a família do brigadeiro Délio são orixalizante. Ele mesmo fala disso
Jardim de Mattos, numa época em que com voz emocionada:
Sebastião trabalhava como copeiro na – É um amigo a quem devo mui-
casa do genro do brigadeiro, o arquiteto to, que me ajudou pela raça. Me ensi-
Mauro Salgado Brandão. Uma pessoa nou muitas coisas afro-brasileiras. Eu
muito boa que, após os jantares ou re- era um negro que não sabia da minha
cepções, depois da obrigação concluí- negritude, que a negritude está e cresce
da, pedia a Sebastião que exibisse suas dentro da gente. Aprendi sobre os orixás
pinturas aos convivas. Essas relações e toda uma consciência floresceu e me
possibilitaram que o nosso então jovem fortaleceu muito. Nós pintávamos jun-
pintor frequentasse alguns cursos no tos naquele apartamento, trocávamos
Instituto de Belas-Artes, onde foi alu- ideias, e ele falava que eu era um artista
no de Oswaldo Teixeira. Sentiu, nesse e que não podia ficar naquela coisa de
período, inquietantes conflitos entre a um quadrinho aqui, vende outro ali...
linguagem acadêmica e a forma natural Foi com o Abdias que eu saí para ser co-
e livre que fundamentava a sua técnica e nhecido como pintor negro pela socie-
experiência. Apreendeu os recursos que dade, pois antes dele partir para o exílio
a academia oferecia, mas deixou-se le- organizou, sozinho, na Galeria Giro, em
var, e criar, pelos saberes e intuições que Copacabana, uma exposição dos meus
a vida lhe oferecia para que ele fosse ele quadros e um coquetel para me apresen-
mesmo. tar. Era tanta gente importante: artistas
Durante o Governo Castelo Bran- plásticos, embaixadores, atores, impren-
co, Délio Jardim de Mattos foi nomeado sa... E tem mais: quando ele foi para o
adido militar na França. Convidou en- exílio mesmo me deixou o apartamen-
tão Sebastião Januário para que fosse to com um ateliê completo, tudo, tudo,
trabalhar como copeiro em sua casa e, tudo... tintas, pincéis, telas.
ao mesmo tempo, aproveitasse aquela Após a festa de abertura da expo-
oportunidade para se aprimorar artisti- sição na Galeria Giro, Sebastião Janu-
camente. Ao retornar ao Brasil, o pintor ário, foi se encontrar com amigos que
participa de uma sequência de exposi- estavam por lá, num botequim de Co-
ções coletivas, recebendo uma série de pacabana. Voltava para casa quando foi
críticas elogiosas ao seu trabalho. abordado por um camburão. Não teve
Desenho de Sebastião Januário
Foto: Elisa Larkin Nascimento

Sebastião Januário, com suas mais novas obras. Rio de Janeiro, outubro de 1997.

Pintor, poeta, compositor, ilustrador e cenógrafo, Sebastião Januário tem exposto


seus trabalhos em numerosas mostras individuais e coletivas, no Brasil e no exte-
rior. Seu trabalho é mencionado em diversos livros sobre a arte brasileira contem-
porânea, incluindo a Enciclopédia Mirador internacional; o Dicionário brasileiro de
artistas plásticos, de Carlos Cavalcante (Brasília: INL, 1974); o Dicionário das ar-
tes plásticas no Brasil, de Roberto Pontual (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1969); O Brasil por seus artistas, de Walmir Ayala (Brasília: Alvorada, 1979); Brasil
vivo, de Roberto Moriconi (Rio de Janeiro: Renes, 1971); Arte/Brasil/hoje/ 50 anos
depois, de Roberto Pontual (Rio de Janeiro: Collectio, 1973); Arte naïf brasiliana,
de Giani Gelleni (Brescia, Itália); Dicionário de artistas brasileiros, de Walmir Ayala
(Rio de Janeiro, Bozzano Simonsen); Panorama da arte contemporânea, de Narciso
Martins; e Dicionário crítico da pintura no Brasil, de José Roberto Teixeira Leite
(Rio de Janeiro: Artelivre, 1989).
Pintor Sebastião Januário
Éle Semog 1

jeito de se livrar do racismo da polícia. com delicadeza e obediência em relação


“Que exposição, que nada! Olha só: às normas das escolas ocidentais, seja
crioulo de mão lisa! Entra aí na caçapa, na pintura, na dança, no teatro, na lite-
negão!” No outro dia, depois da inter- ratura, na música, ou na cama.
ferência de Abdias Nascimento, ele foi E, sendo assim, não é dificil per-
liberado e o delegado pediu as desculpas ceber o traço maliciosamente carregado
de sempre. de influências e de religiosidade cristãs
As exposições e o sucesso pas- de Sebastião Januário. São encontros
saram a ser uma constante na vida de que deixam nas telas as marcas explíci-
Sebastião Januário. E os criticos não tas dos vitrais, cujas figuras de aparên-
poupavam estranhos elogios ao seu tra- cia angelical, de insinuantes e latejantes
balho, falando das “qualidades que lhe coloridos, são dessacralizadas por pre-
marcam os guaches de agora, nos quais cisões negras, bem definidas e incisivas,
repercute, curiosamente, uma nota aria- que significam “a sua identidade negra,
na...”, como afirmou José Roberto Tei- esse ser forte da África”.
xeira Leite em 1971. Mas, por outro À semelhança de outros artistas
lado, “suas figuras de santos, sua Ma- plásticos, músicos e poetas que viveram
dalena com aspecto de moça do interior, atormentados com problemas de sobre-
suas cenas da mitologia em que perso- vivência material ou crises existenciais,
nagens em combate (de amor e morte) tais como Van Gogh, Cruz e Sousa,
são sempre arrebatadas por carros sobre Lima Barreto, Solano Trindade e tantos
nuvens com girassóis, tudo isto é um outros, Sebastião Januário tem tido uma
mostruário claro e vibrante de uma de- existência tão dramática que às vezes
núncia”. parece haver chegado ao fim da linha.
Seria danoso falar da obra de Se- Mas, sustentado pelos orixàs, na escuri-
bastião Januário e classificá-Ia tão so- dão do seu abismo, sempre a esperança
mente no enredo barroco ou primitivo. renasce. E o pintor e poeta emerge para
Principalmente porque se trata, desde a criatividade, exorcizando, por meio
tempos incompatíveis com a temporali- das formas e das cores, os fantasmas da
dade judaico-cristã em que está inserido, angústia e do desespero.
de um filho de Obaluaê. E é exatamen- Sebastião Januário não pertence
te essa latência africana, incontida, dos à raça dos artistas malditos. É antes um
afrodescendentes, que não permite que iluminado pela esperança, a generosida-
um artista afro-brasileiro se comporte de, o sonho e a solidariedade humana.
Desenho de Sebastião Januário
Este texto foi escrito em 1976 e
traduzido por Carlos Alberto
Relações raciais Medeiros.
no Brasil: uma
visão alternativa

O aparecimento de uma série de


livros e artigos de e sobre Abdias Nas-
cimento tem sido especialmente valioso
em preencher algumas lacunas em nos-
so conhecimento sobre a vida e lutas dos
afro-americanos das Américas Central e
do Sul. Os dois mais recentes livros de
Nascimento publicados em inglês (“Ra-
cial democracy” in Brazil: myth or re-
ality. A critical reappraisal of the histo-
rical and contemporary structures and
systems of education in Brazil – Ibadan,
Nigéria, Sketch Publishing Company,
Anani Dzidzienyo* 1977, e Mixture or massacre? Essays in
the genocide of a black people – Buffa-
lo, Afrodia pora, 1979) oferecem uma
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

oportunidade de discutir o significado cendência” ou “preconceito” de origem.


da política e do protesto nas Américas Em consequência, embora se enfatize a
Hispânica e Lusófona1. aparência do indivíduo, os produtos de
Nascido em 1914, Nascimento uniões racialmente mistas – e não neces-
pertence a uma geração de afro-brasi- sariamente de casamentos mistos – não
leiros que cresceu no período imedia- estão condenados à categoria “negro”,
tamente posterior à Abolição da Es- considerada negativa. Constituem, em
cravatura, em 1888. Suas introvisões e vez disso, uma categoria intermediária
análises sobre as realidades das relações – a dos mulatos2. Embora haja muitas
raciais no Brasil, especialmente no que permutações de mistura racial no Brasil,
se refere aos afro-brasileiros, consti- geralmente se afirma que o Brasil evi-
tuem um contraponto à imagem popular tou as armadilhas da América do Norte,
sobre esse tema e ao papel que nelas de- onde a ideologia e a prática de dividir
sempenham os afro-brasileiros. a população nos grupos negro e branco,
sem o reconhecimento de categorias in-
A contradição entre a imagem po-
termediárias, resultou na condenação de
pular das relações raciais no Brasil e a
todos os que não pudessem ser conside-
visão contrária tem se tornado mais agu-
rados brancos “puros” a uma indesejável
da na última década e, embora a maior
negritude. (Essa observação de fato não
parte do material publicado sobre o as-
ignora a obsessão com a pureza de san-
sunto esteja escri:a em português, há, fe-
gue que caracterizou a América Latina
lizmente, um crescente corpo de litera-
no período colonial; resíduos dessa pre-
tura em inglês. Talvez ninguém melhor
ocupação com pureza aparecem na atual
do que Nascimento para simbolizar essa
obsessão com a cor da pele.) Não obstan-
contradição.
te, na escala de preferência, a brancura
A essência dos padrões de rela- está no topo e a negritude. na base, regra
ções raciais no Brasil pode ser encon- geral que se aplica às Américas como um
trada na ausência de uma “regra de des- todo, bem como ao Caribe3.

1 Diversos trabalhos importantes sobre os afro-latino-americanos têm sido publicados em inglês nos últimos anos; ver. em
especial, Paulo de Carvalho Neto, “The folklore of the black struggle in Latin America”, Lattin American Perspectives 5,
nº 2 (1978); Antonio Olliz-Boyd, “The black protagonist in Latin American literature: a study in ethnic and cultural assi-
milation”, Secolas Annals: Journal of the South Eastern Conference on Latin American Studies 9 (março de 1978); David
Brookshaw, “Black writers in Brazil”, Index on Censorship 6, nº 4 (julho-agosto de 1977); Leslie Rout, The African expe-
rience in Spanish America (Nova York: Cambridge University Press, 1966); Richard Jackson, the black image in Hispanic
American literature (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1976).
2 Ver Hermanus Hoetink, Caribbean race relations: the two variants (Nova York: Oxford University Press, 1967); e Mar-
vin Harris. Patterns of race in the Americas (Nova York: Walker, 1964).
3 Ver Rhett Jones e Anani Dzidzienyo, “Africanity, structural isolation, and black politics in the Americas”, Studia Afri-
cana 1, nº I (1977).
Relações raciais no Brasil: uma visão alternativa
Anani Dzidzienyo 1

Gilberto Freyre tornou-se o prin- a ausência de violência nas relações


cipal proponente da existência de um inter-raciais. Dada a popularidade des-
singular padrão brasileiro de relações se modelo tanto entre brasileiros como
raciais, cujas raízes profundas se fin- entre observadores estrangeiros – que
cam no sistema familiar patriarcal dos aprovariam manifestações empíricas da
tempos da Colônia, caracterizado por “realidade” brasileira tais como as pe-
laços afetivos entre senhores e escravos. ças de literatura popular que exaltam as
Esses laços históricos é que teriam defi- virtudes das mulatas; a atitude “liberal”
nido o atual padrão de relações raciais, em relação à religião afro-brasileira5; a
o qual não submete os afro-brasileiros popularidade da culinária afro-brasilei-
aos mesmos padrões racistas de com- ra; a inegável amistosidade que tipifica
portamento legal e informal geralmente o temperamento dos brasileiros –, só
reconhecidos como marcas distintivas poderia haver, logicamente, uma con-
das relações raciais nos Estados Unidos. clusão válida: de que no Brasil existiria
A tipologia de Freyre foi levada além do uma “democracia racial”.
Brasil e aplicada aos países africanos de À reflexão, o que é mais intri-
língua portuguesa em face das gritantes gante sobre essa afirmação de abertura
contradições entre teoria e prática no da sociedade brasileira é que ela ignora
“mundo que os portugueses criaram nos a tradição de protesto dos afro-brasi-
trópicos”, tendo como resultado o endos- leiros. Com efeito, essa longa tradição
so de Freyre à missão civilizatória portu- – que nos últimos anos tem assistido a
guesa num momento em que o colonia- um surpreendente surto de atividade –,
lismo luso era amplamente condenado reforçada por estudos acadêmicos que
por sua natureza e práticas retrógradas 4. examinam as manipulações ideológi-
Um ingrediente essencial do mo- cas da democracia racial, é obrigada a
delo de Freyre é a ausência de leis que se confrontar e, de fato, competir com a
relegassem os afro-brasileiros a uma ci- mitologia popular na luta para estabele-
dadania de segunda classe, bem como cer sua legitimidade 6.

4 Ver este recente artigo em inglês sobre Freyre: “Afro·Brazilian experiment”, The UNESCO Courier (agosto-setembro de
1977). No mesmo número, ver também, de Jorge Amado, “Where gods and men have mingled”.
5 As organizações religiosas afro-brasileiras têm tido sua quota de constrangimentos oficiais. Até janeiro de 1977, os ter-
reiros de candomblé precisavam de licença da polícia para funcionar; o governador Roberto Santos, da Bahia, suspendeu
essa exigência.
6 Entre os intelectuais, Florestan Fernandes tem sido de há muito o mais avançado no esforço de desmistificar a “demo-
cracia racial”. Seu trabalho tem recebido o reconhecimento nos círculos acadêmicos de todo o mundo. Embora o grosso
de seus escritos esteja em português, seu clássioo estudo dos negros em São Paulo é disponível em inglês, embora numa
versão ligeiramente resumida: The negro in Brazilian society (Nova York: Columbia University Press, 1969). Ver também,
do mesmo autor, “The weight of the past”, in Color and race, org. por John Hope Franklin (Boston: Beacon Press, 1969).
Nascimento dedicou Racial democracy a Florestan Fernandes.
1 0 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

Nos últimos 15 anos, uma nova e afetivas, ele propõe um padrão de in-
onda de acadêmicos norte-americanos sidiosa e sutil “violência” cujo objetivo
tem publicado trabalhos que enfatizam final é equivalente ao que ele denomina
as similitudes das relações raciais no “linchamento étnico”, que promove a
Brasil e nos Estados Unidos, em vez assimilação como exigência e não como
de assumir a posição convencional de opção8. Efetivamente, a “democracia
que as duas situações constituem polos racial” oculta uma realidade de opres-
opostos. E, assim fazendo, esses autores são dos negros; e, o que é ainda mais
têm trazido uma nova dimensão à litera- sério, ao negar a própria existência do
tura sobre o tema em inglês7. Nesse con- problema, nega também o imperativo da
texto, deve-se enfatizar que o Brasil não adoção de medidas corretivas. Assim,
é absolutamente singular, de vez que os a sociedade pode acusar as vítimas do
argumentos em defesa das relações ra- racismo – um grupo já fragmentado a
ciais no Brasil são, em grande medida, tal ponto que qualquer ação conjunta se
aplicáveis à América Hispânica como tem mostrado extremamente difícil de
um todo. conseguir – que ousam protestar de se-
É contra esse pano de fundo que rem elas próprias culpadas de racismo 9.
se deve avaliar a importância de Abdias Abdias afirma que a mais louvada
Nascimento. Talvez mais do que qual- peça antidiscriminatória – a Lei Afonso
quer outro afro-brasileiro vivo, Abdias Arinos – constitui mera peça de retórica
tem desafiado, de modo vigoroso e em vista das enormes dificuldades em
consistente, a imagem popular das re- abrir processo judiciário contra os indi-
lações raciais no Brasil, fornecendo-nos víduos ou instituições que a infringem.
uma visão alternativa da realidade que De fato, desde sua aprovação, em 1951,
caracteriza a vida dos afro-brasileiros. não houve nenhum caso importante que
Em lugar de relações raciais pacíficas pudesse demonstrar sua eficácia 10.

7 Ver Thomas Skidmore. Black into. white: race and nationality in Brazilian thought (Nova York: Oxford University Press,
1974), bem como, de sua autoria. “Toward a Comparative analysis of race relations since Abolition in Beazil”, Journal of
Latin American Studies 4, nº I (1972); Carl Degler, Neither black nor white (Nova York: Macmillan, 1971); Leslie Rout,
“Brazil: study in black, brown and beige”, Negro Digest 19, 4 (fevereiro de 1970); Robert Brent Toplin. “The problem
of double identity: black Brazilians on the issue of race conciousness”, Journal of Ruman Relations (primeiro e segundo
trimestres, 1972).
8 Nascimento usou a expressão linchamento étnico já em 1968, durante uma mesa-redonda por ocasião do octogésimo
aniversário da abolição da escravatura no Brasil.
9 Na última década têm ocorrido vários eventos que apontam para um renascimento da luta afro-brasileira; o mais simbó-
lico destes talvez seja o ato realizado em agosto de 1978 pelo Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial.
10 A lei ganhou o nome de Afonso Arinos de Mello Franco, advogado, professor universitário, senador e ministro de Rela-
ções Exteriores durante o curto Governo Jânio Quadros (1961), também destacado por ter nomeado o primeiro embaixador
negro em todos os tempos a representar o Brasil no exterior. Este foi Raimundo Souza Dantas, que serviu em Gana.
Relações raciais no Brasil: uma visão alternativa
Anani Dzidzienyo 1 1

Sobre a questão da diáspora afri- (1966)12. É irônico que as contribuições


cana, Abdias sublinha a importância de de artistas e escritores negros que traba-
forjar laços em seu próprio interior. A lham nas fímbrias do cenário cultural de
tarefa é informar e explicar a posição seu país, e assim percebem ser difícil,
dos negros na sociedade brasileira e em se não impossível, alcançar o reconheci-
toda parte como precondição para o me- mento “oficial”, não possam encontrar
lhoramento geral da posição de todos os um canal de expressão nem mesmo em
povos de ascendência africana 11. É nes- países africanos independentes. Com
se contexto que os eventos que cerca- efeito, é tarefa dos países africanos
ram a publicação de Racial democracy olhar além da sabedoria oficial – que,
in Brazil ganham uma significação es- no caso do Brasil. significa a ênfase nas
pecial, talvez mesmo pungente, parti- sobrevivências religiosas e folclóricas –
cularmente na medida em que se rela- para ver expressões discordantes quanto
ciona aos esforços da política brasileira à condição dos africanos na diáspora, as
de relações raciais em nível nacional e vozes de Abdias Nascimento e seus no-
internacional. Originalmente submetido vos e articulados herdeiros 13.
à Comissão Educacional do Segundo Para todos nós, porém, uma coisa
Festival Mundial de Arte Negra e Afri- é clara: nosso débito para com Abdias
cana (Nigéria), o manuscrito foi rejeita- Nascimento. Ele nos mostrou um Brasil
do – rejeição que, curiosamente, evoca despido de seus trajes de viagem – sem
um incidente anterior, desta vez envol- samba, sem futebol. sem candomblé
vendo o Governo brasileiro, que vetou isolado da vida sociopolítica – e, ao fa-
a participação, como parte da delegação zê-lo, reforçou significativamente nossa
oficial brasileira, do Teatro Experimen- compreensão comparativa das relações
tal do Negro, criado e dirigido por Ab- raciais e da política nas Américas, tanto
dias, no Primeiro Festival de Arte Negra do Norte quanto do Sul 14.

11 Em busca desses laços, Abdias participou do VI Congresso Pan-Africano, realizado em 1975 na Tanzânia, e trabalhou
como professsor-visitante na Universidade de Ifé, Nigéria (1977).
12 Ver, de sua autoria, “Palaver: open letter to the First World Festival of Black Arts”, Présence Africaine 30, nº 58 (l966).
13 Infelizmente para o leitor de língua inglesa, a maior parte das publicações dos jovens afro-brasileiros de hoje só se
encontra em português.
14 Para uma profunda discussão do tratamento reservado à religião afro na literatura brasileira, ver Doris Turner, “Sym-
bols in two Afro-Brazilian literary works: Jubiabá and Sortilégio”, in Teaching Latin American Studies, org. por Miriam
Williford (Latin American Sludies Association, 1977). Turner efetivamente desafia a imagem da caracterização, por Jorge
Amado, da cultura africana, que alguns autores têm visto como uma forma de preservação (e portanto positiva), visão com-
partilhada por Maria Luísa Nunes em “The preservation of African culture in the novels of Jorge Amado”, Luso-Brazilian
Review 10 (1973): 86-101.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

Abdias Nascimento: leituras (Dorchester: Museum of the Natio-


sugeridas em inglês nal Center of Afro-American Artists,
1971).
“The B1ack Experimentai Theater in Lynn Sharpe, “Getting to black Brazil:
Brazil”, African Forum (primavera interview with Abdias do Nasci-
de 1977). mento”, Encore (agosto de 1973).
The Orixas (Middleton, Connecticut:
Wesleyan University Press, 1969).
Sortilege: Black mistery (Chicago: * Anani Dzidienyo. nascido em Gana,
Third World Press, 1978). é estudioso da experiência africa-
na nas Américas, em particular no
Brasil. Professor titular do Departa-
Trabalhos em inglês sobre Abdias mento de Estudos Afro-Americanos
Nascimento da Brown University (EUA), é atual-
mente senior fellow do seu Wayland
Guerreiro Ramos, “Abdias do Nasci- Clolloquiun for Higher Learning
-mento’s Tribal World”, in Abdias (Colóquio Permanente para Ensino
do Nascimento: a Brazilian brother Superior).
Foto: Elisa Larkin Nascimento

Anani Dzidzienyo, 1997.


Este texto foi publicado em inglês, em
1979, na revista First World Y.2 : nº 2,
editado por Hoyt Fuller, saudoso intelec-
Democracia racial tual afro-norte-americano, e traduzido
para a revista Thoth por Carlos Alberto
no Brasil: mito ou Medeiros e Gilson Cintra.

realidade
São muito poucos os livros que
conseguiram abalar totalmente a minha
sensibilidade – Crime e castigo, O filho
nativo, O homem invisível, Os conde-
nados da terra, Da próxima vez o fogo,
Black boy, Os filhos do pai Tomás, So-
ledad brother. Pouquíssimos consegui-
ram alargar os parâmetros de meu Wel-
tanschuung para poder seguir adiante.
Agora, com Democracia racial no Brasil
(mito ou realidade), Abdias Nascimento
dá uma generosa contribuição ao seleto
conjunto de obras destinadas a nos sacudir
os sentidos. Concebido originalamente
como um texto a ser apresentado sob a
Sterling Plumpp* forma de palestra ao colóquio do Segun-
do Festival Mundial de Artes e Cultura
Negras e Africanas (Festac), Democracia
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

racial no Brasil é uma análise de como simplesmente porque o aparecimento


os afro-brasileiros têm sido submetidos de Abdias como “representante oficial”
a uma política de genocídio muito cruel, do Brasil teria o significado de um soco
embora negada, contra suas pessoas e internacional desferido sobre a política
sua cultura. Os grandes livros têm para brasileira de “democracia racial” – se-
mim o efeito de confundir de tal manei- ria mesmo um golpe mortal sobre esse
ra a minha percepção que preciso me mito. Além disso, a razão subjacente
reorientar com a realidade. As obras an- para que a Nigéria honrasse o pedido
teriormente mencionadas fizeram isso brasileiro de não reconhecer Abdias pa-
basicamente porque articularam para rece ser de ordem econômica: os dois
mim o que era obscuro em períodos de países têm laços econômicos muito
caos, períodos de crescimento e de bus- íntimos. Por conseguinte, esse estado
ca. Todavia a obra de Nascimento rasga cliente africano formalmente livre re-
a pele das minhas certezas, passa um cebeu ordens de um patrão neocolonial
ferro quente na minha tranquilidade. e, desse modo, negou ao povo negro o
O relato de Abdias sobre como o direito de ouvir uma voz autêntica expli-
establishment nigeriano deixou de apro- cando a situação dos negros no Brasil.
var seu trabalho, mais tarde transforma- O simples fato de a Nigéria, um estado,
do em livro, enquanto ao mesmo tempo haver honrado um pedido do Brasil, ou
dava suas bênçãos a uma delegação de se mostrado sensível aos sentimentos
palhaços cuidadosamente escolhidos e brasileiros – quaisquer que estes fossem
enviados pelo Governo brasileiro, le- –, negou ao Segundo Festival Mundial
vanta uma questão muito séria sobre a de Artes Negras qualquer possibilidade
capacidade de estados nacionais afri- de ser algo próximo de uma conversa de
canos em expressar os interesses dos negros com negros. Também aqui a feia
povos negros oprimidos sem que seus mão do imperialismo tenta espalhar seu
patrocinadores neocolonialistas inter- veneno sobre as aspirações dos negros.
pretem tais clamores como má publi- O autor documenta suas afirmações
cidade. Sua alegação é que Pio Zirimu, com reportagens de jornais nigerianos e
o ugandense que presidia o Colóquio, portugueses, e também com uma carta
morto inesperadamente em dezembro escrita pelo finado Pio Zirimu.
de 1976, havia apoiado pessoalmente Para compreender a análise que
o seu paper somente para ver o esta- Abdias faz da sociedade brasileira em
blishment nigeriano engavetá-lo no ar- termos de raça e cultura, é essencial o
quivo morto. Na verdade, o coronel Ali, entendimento de que sua visão é a de
substituto de Zirimu como presidente um “quilombola”, um descendente da
do Colóquio, mostrou-se evasivo quan- República de Palmares, formada no sé-
do indagado sobre o motivo por que o culo XVII por escravos fugidos e esta-
paper fora rejeitado. Quando, porém, belecida de acordo com valores cultu-
se disseca a volumosa retórica de Ali, rais africanos. Assim, o que ele defende
percebe-se que o trabalho foi rejeitado é, em última análise, a restauração dos
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 1

valores africanos, a restauração dos sis- sil contra os africanos. O principal foco
temas de pensamento africanos como de sua vingança contra o establishment
pré-requisito para a sobrevivência dos nigeriano por recusá-lo e reconhecer o
negros – embora estes vivam hoje em Dr. George Alakija como “representante
um estado modernizado, Essa perspec- permanente” do Brasil não foi uma ati-
tiva nacionalista cultural coloca-o em tude do tipo “a raposa e as uvas”, mas
pé de igualdade com Karenga, Gay- algo substancioso. Ele viu Alakija como
le, Madhubuti, Fuller, tal como com o perpetuando perigosos mitos a respeito
Baraka de fins dos anos 60. Todos eles da inferioridade dos afro-brasileiros,
veem a ressurreição de um sistema de mitos gerados e alimentarias por Nina
valores africano como base essencial na Rodrigues por volta da virada do século.
busca da autonomia cultural necessária Tanto Alakija quanto Rodrigues usam
para guiar os negros em sua luta pela suas ferramentas psiquiátricas de análi-
conquista de uma sociedade fundamen- se para mostrar a religião africana como
tada em valores africanos que, embora uma patologia negra; enquanto se permi-
idealista, seja mais humana do que a te que essas ideias prevaleçam, aquelas
sociedade capitalista em que vivemos. de intelectuais e cientistas esclarecidos,
Deve-se ter em mente, contudo, que os tais como Anani Dzidzienyo, Guerrei-
nacionalistas culturais combatem com ro Ramos, Álvaro Bomílcar, Thales de
maior veemência a “brancura” (aliena- Azevedo, A. da Silva Mello, Fernando
ção) do capitalismo, seu caráter racista, Henrique Cardoso, Clóvis Moura, Tho-
do que sua natureza exploradora, de- mas Skidmore, Doris Turner, Angela
monstrada pelo domínio desumano que Gillian, Flora Mancuse Edwards e Carl
exerce sobre o proletariado... O que er- Degler, permanecem pouco divulgadas.
gue a visão de Abdias acima da de qual- Mesmo que seja difícil culpar
quer outro irmão idealista, chauvinista e entidades como estados por agirem na
oportunista da Diáspora é sua inteligên- base daquilo que percebem como suas
cia aguda e sua ampla perspectiva. Pois necessidades, o fato de haverem recusa-
ele está genuinamente preocupado com do o paper de Abdias, combinado com
a situação dos afro-brasileiros, e seu tra- o fato de a Nigéria e o Brasil terem ín-
balho mostra essa preocupação com um timas relações econômicas, demonstra
raro sentido de urgência. cabalmente como é impossível. na pre-
Democracia racial no Brasil faz sente era do imperialismo, falar de um
três coisas: 1) dilacera o Governo nige- encontro negro internacional que não
riano por negar Abdias como “represen- seja influenciado pelo imperialismo.
tante oficial” do Brasil; 2) fornece uma O livro é organizado em 15 capítulos.
análise muito clara dos mecanismos mais três documentos que servem como
usados para destruir os afro-brasileiros; apêndice. O eloquente “Prefácio” foi
e 3) oferece sugestões quanto às alter- escrito por Wole Soyinka, e o Prólogo
nativas que devem ser úteis em reverter faz a crônica da rejeição do paper de
as práticas genocidas exercidas no Bra- Abdias, No Capítulo l, “Introdução”, o
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

autor expõe principalmente as sinistras africanos no Brasil: (1) por ter entusias-
teorias de Gilberto Freyre, o inventor de ticamente defendido o bestial comércio
termos como “lusotropicalismo”, “mo- de escravos, como se evidencia por este
renidade” e “colonização”. Com o pri- excerto de uma homilia jesuítica: “Vo-
meiro termo, Freyre sustentava que os cês deveriam agradecer infinitamente
seres humanos haviam fracassado em a Deus por lhes dar o conhecimento
desenvolver grandes civilizações nos de si mesmos, e por tê-los retirado de
trópicos antes de os portugueses obte- suas terras de origem, onde vocês e seus
rem sucesso em erigir tanto civilizações pais viviam como pagãos (...)”; e por
avançadas quanto “paraísos raciais” na ter endossado a formação de “nações”
África e no Brasil; o tenno “co-coloni- (“agrupamentos constituídos sobre uma
zação” acusa os africanos escravizados frouxa base étnica que funcionavam
de co-colonizar o Brasil ao lado dos por- como organizações sociais, culturais
tugueses, e assim os implica, na qualida- e religiosas”) entre os escravos; com
de de cúmplices, no genocídio praticado esse esquema de “nações”, as autorida-
contra os indígenas; e o termo “more- des permitiam a realização de batuques
nidade” está ligado a “metarraça” para (comemorações periódicas que termina-
formar um “morenismo metarracial”, vam com música e dança africanas), os
indicando que a cultura brasileira foi quais tornavam possível reforçar as di-
produzida por uma “além-raça” – a raça ferenças tribais entre os escravos e, por
responsável pela base da consciência conseguinte, eram vantajosos para os
brasileira. O “morenismo metarracial” senhores. A Igreja Católica também per-
é contrastado com o arianismo e com a mitiu a instituição de “fraternidades re-
negritude, ambos rotulados de racistas; ligiosas” entre os escravos africanos, as
mas Abdias habilmente demole as ridí- quais se tornaram “irmandades” – uma
culas ideias de Freyre com citações de notável função de tais “irmandades” era
Thomas Skidmore, Florestan Fernandes açoitar escravos delinquentes.
e Anani Dzidzienyo. No Capítulo III, “Exploração se-
O Capítulo lI, “Escravidão: o xual da mulher africana”, o autor rapi·
mito do senhor benevolente”, faz um damente rejeita como absurda a ideia
resumo do desenvolvimento da escrava- de que as relações inter-raciais no Bra-
tura no Brasil e refuta vários mitos po- sil seriam superiores àquelas prevale-
pulares com respeito à sua suposta sua- centes na América anglófona: elas são
vidade. Dentre as distorções corrigidas igualmente infernais para os negros em
está a falsa noção de que “havia um grau ambas as sociedades. Isso é particular-
significativo de humanidade e benevo- mente válido para a mulher africana,
lência no caráter da escravidão [prati- pois esta precisa submeter-se à dupla
cada] na América Latina Católica – as opressão do trabalho forçado e da luxú-
colônias portuguesa e espanhola”. Além ria europeia. Apresentando as atitudes e
disso, a Igreja Católica é objeto de duas mitos brasileiros com relação ao mulato,
acusações de agressão cultural contra os Abdias enfatiza, a base da duplicidade
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 1

racial brasileira; eles encobrem a luxú- o efeito liquido de produzir “africanos


ria e a exploração da mulher africana, livres” sem nenhum mecanismo de re-
apontando o mulato como prova de re- distribuição da terra ou de educação foi
lações saudáveis entre as raças. Muito colocá-los fora da sociedade e, desse
ao contrário: o mulato simplesmente modo, isentar os senhores de escravos,
significa que uma mulher africana foi o Estado e a Igreja de qualquer respon-
estuprada por europeus. Um adágio po- sabilidade por seu desenvolvimento.
pular brasileiro resume adequadamente Abdias demonstra como os africanos
a miserável conspiração para destruir a substituíram os brancos portugueses e
dignidade da mulber negra: brasileiros na guerra de expulsão dos
Branca pra casar holandeses, no século XVII, e contra o
Paraguai, no período 1865-70. A ameaça
Negra pra trabalhar
biológica africana aos brancos do Brasil
Mulata pra trepar. vem da afirmação dos brancos em geral,
Essa conceituação é ainda mais e dos cientistas sociais em particular,
terrível quanto se percebe que a cons- de que os africanos tinham sangue infe-
piração para relegar a mulher africana rior, constituindo uma “mancha negra”.
à categoria do trabalho, enquanto sua Mesmo Nina Rodrigues, ele próprio um
filha é colocada na categoria de obje- mulato, divulgou esse mito por intermé-
to sexual, constitui a forma mais vil de dio de estudos ditos “científicos” – ”A
genocídio. raça negra no Brasil constituirá sem-
O Capítulo IV, “O mito do afri- pre a base de nossa inferioridade como
cano ‘livre”’, elucida o significado da povo.”
abolição para os escravos brasileiros, No Capítulo V, “O embranqueci-
mostra como portugueses e brasileiros mento da raça: uma estratégia de genocí-
usaram um procedimento operacional dio”, o tema geral da “liquidação da raça
padrão que substituiu o sangue europeu negra mediante o embranquecimento da
pelo africano nas guerras de que o Brasil população brasileira” é fundamenta-
participou, e demonstra o grau crescente do historicamente e sustentado por da-
em que, depois da abolição, em 1888, dos que ilustram um declínio gradual
se passou a ver os africanos como uma do percentual de negros na população
ameaça biológica aos brancos no Bra- desde 1872. A realidade da exploração
sil. Com referência à abolição, o autor sexual da mulher africana foi o geno-
a considera uma continuação da prá- cídio (os mulatos não eram considera-
tica do senhor de escravos de alforriar dos negros, embora o tratamento que os
“os velhos e os fracos, os aleijados e europeus lhes dispensavam fosse quase
os mutilados” depois de “sete anos de igual àquele de que eram objeto os afri-
trabalho”; se antes tais libertações eram canos). O autor mostra como todas as
simplesmente “assassinatos coletivos”, vozes importantes no Brasil saudaram
em 1888 elas se tornaram “assassinatos essa exploração sexual, esse embran-
coletivos multiplicados”. Isso porque quecimento paulatino, como uma coisa
00 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

boa e progressista; assim, esse esquema uma “suposta superioridade racial ne-
infame, combinado com a baixa ferti- gra”. Nesse tipo de inferno, onde não há
lidade dos homens africanos em razão distinções oficiais com relação a raça,
dos números desproporcionais relativos mas onde, não obstante, toda a história
às mulheres africanas, bem como às al- mostra como a raça influencia quem é
tas taxas de mortalidade, criou condi- discriminado, ou quem enfrenta o ter-
ções favoráveis ao desaparecimento da ror do genocídio, é fácil compreender
“mancha negra”. O autor mostra como a porque Abdias, o quilombola, defende
política brasileira de imigração teve his- o retorno às coisas africanas e a preser-
toricamente uma orientação racista: os vação destas – sua marca registrada de
não europeus eram excluídos. Essa polí- nacionalismo tem os dentes fincados no
tica vil chega ao ponto de dar boas-vin- solo da realidade afro-brasileira.
das aos emigrantes brancos que fogem No Capítulo VII, “Discrimina-
de áreas recém-libertadas na Guiné-Bis- ção: realidade racial”, somos apresen-
sau, Rodésia, Angola e Moçambique. tados às táticas desenvolvidas pelos
Com uma história tão racista, não sur- negros para acabar com as práticas de
preende que a categoria raça tenha sido emprego racistas; obtemos uma análise
retirada do censo brasileiro desde 1950; adicional de como a “democracia ra-
com efeito, essa gritante negligência ga- cial” coloca os africanos nos buracos do
rante a redução do número de “cabeças próprio inferno, os guetos, lá chamados
pretas”, tornando impossível chegar aos mocambos e favelas; e recebemos uma
fatos inegáveis. chocante revelação estatística – de que
O Capítulo VI, “Discussão racial “cerca de 80% (...) [da] população de
proibida”, reitera, agora com voz ampli- 110 milhões de habitantes encontra-se
ficada, o tema da “democracia racial” no definitivamente contaminada pelo san-
Brasil como um genocídio mascarado, e gue de origem africana”. Abdias afir-
esclarece como é possível que os brasi- ma que a Lei Afonso Arinos, de 1951,
leiros se apeguem àquilo que Florestan “que pretensamente proibiu a discrimi-
Fernandes chama “o preconceito de não nação”, só foi promulgada depois de
ter preconceito”. Desde que, em 1889, uma intensa luta travada pelos negros,
Rui Barbosa, na qualidade de ministro sob a liderança da Convenção Nacional
da Fazenda, destruiu os registros sobre do Negro; entretanto, acrescenta ele, até
o tráfico de escravos e sobre a escrava- hoje ela permanece “ineficaz e não cum-
tura, tem sido difícil reconstruir as expe- prida”. Quando se revela a realidade de
riências dos africanos no Brasil. O que a que a maioria dos guetos – chamados
negativa oficial da discussão de relações mocambos no Nordeste e favelas em
raciais no Brasil faz é impedir qualquer São Paulo e no Rio de Janeiro – é habi-
tentativa de se criar uma consciência tada por negros, a resposta brasileira é
negra, pois isso seria interpretado como que estes moram nesses lugares porque
“agressão retaliatória” ou como tenta- preferem, ou porque não têm dinheiro;
tiva, da parte dos africanos, de impor em suma, eles moram em tais lugares
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 01

por numerosas razões, exceto por serem a prosperidade da elite branca dominan-
negros, Finalmente, o autor conclui o te no Brasil – numa época como esta, os
capítulo com a observação de que, no representantes oficiais do Brasil vêm a
Brasil, “nós estamos lidando com uma Lagos para reforçar sua presença e pro-
nação cuja maioria negra é governada mover uma vez mais a notória imagem
por uma minoria branca: uma versão racial de seu país.
sul-americana da África do Sul. Portanto, o Festac 77, um encon-
No Capítulo VIII, “Imagem racial tro negro internacional de proporções
internacional”, o foco é sobre como os épicas, tornou-se a plataforma a partir
propagandistas alimentam o mito de o da qual o Brasil racista lançou suas fal-
Brasil ser uma nação “nascida da fusão sas declarações a respeito da história e
harmoniosa de várias raças que apren- condições dos africanos que vivem den-
deram a viver e a trabalhar juntas, numa tro de suas fronteiras.
comunidade exemplar”. Essa gritante No Capítulo IX, “O embranque-
mentira é promovida apesar de não ha- cimento da cultura: outras estratégias do
ver negros no corpo diplomático brasi- genocídio”, uma definição mais clara da
leiro; o autor vê a participação do Brasil “democracia racial” mostra-a como um
no Festac 77 como reforçando sua du- “racismo à brasileira”, em que:
plicidade em distorcer as realidades da o racismo (...) é institucionaliza-
vida do negro. do nas políticas oficiais do país,
A participação oficial brasileira assim como no tecido social, psi-
no colóquio do Segundo Festival Mun- cológico e cultural da socieda-
dial de Artes e Cultura Negras e Afri- de. Da classificação dos negros
canas, realizado em Lagos, em janeiro como selvagens e inferiores à
de 1977, representou a continuidade louvação das virtudes da mistura
da propagação dessa imagem racial in- racial como tentativa de erradicar
ternacional. Os motivos? Numa época a “mancha negra”, às simultâneas
em que o Brasil está realizando um co- operações de transculturação, ao
mércio de automóveis altamente lucra- linchamento jurídico dos negros
tivo com a Nigéria, em que empresas por meio da “segurança nacio-
brasileiras de telecomunicações estão nal” e das proibições da censura
ampliando seus já grandes interesses – por todos esses meios, a histó-
naquele país, em que empresários brasi- ria brasileira registra o genocídio
leiros estão competindo por um contra- dos negros. A ideologia racial
to, altamente desejável, para construir a brasileira, dessa forma, tornou-
nova capital nigeriana – em suma, numa -se conhecida como “democracia
época em que os interesses brasileiros racial”.
na África em geral, e na Nigéria em par- Também somos presenteados
ticular, se tornam cada vez mais transpa- com análises concretas de como o “im-
rentes e cada vez mais importantes para perialismo da brancura” opera em ter-
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Depoimentos

mos de assimilação, aculturação e mis- É, portanto, compreensível que


cigenação. Porque os negros não têm Abdias enfatize tanto a integridade cul-
poder e: tural dos africanos quando, em sua opi-
(...) as classes dominantes bran- nião, estes “nunca ( ...) foram integrados
cas têm à sua disposição pode- (...), exceto sob a forma de aculturação,
rosos instrumentos de controle assimilação ou miscigenação [deles pró-
social e cultural: o sistema edu- prios] e de suas culturas à população e à
cacional, os vários veículos de cultura brancas dominantes”.
comunicação de massa, a impren- No Capítulo X, “A persegui-
sa, os órgãos literários, todos eles da persistência da cultura africana no
planejados e utilizados para des- Brasil”, o autor afirma que, desde os
truir o negro como pessoa e como primórdios da escravidão, a cultura
produtor e portador de cultura. africana tem sido submetida à agressão
Esses “poderosos instrumentos de por parte das autoridades exploradoras.
controle social” são construídos de ma- Abdias acredita que a cultura africana,
neira a que a assimilação cultural seja particularmente as sobrevivências reli-
tão efetiva a ponto de a herança cultural giosas, persiste no Brasil de hoje a des-
negra viver em permanente confronto peito – e não em razão – dos esforços
com um sistema planejado precisamen- do Estado e da Igreja Católica. Dando o
te para negar os fundamentos da cultura exemplo do candomblé, ele observa que
africana. este teve de procurar refúgio em lugares
Assim, podemos ver que o “racis- ocultos e de difícil acesso, uma vez que
mo à brasileira” se esforça para desen- atravessou sua longa história sofrendo
raizar o tronco da cultura africana como uma incessante violência policial.
passo final no processo de erradicar da Ele vai além em sua análise da
história brasileira o africano e sua ima- agressão policial ao candomblé: um re-
gem. Esse tipo de desumanidade é abun- sultado direto dessa perseguição foi a
dante numa sociedade em que o sistema criação de uma nova ordem na hierar-
educacional se torna um instrumento de quia religiosa dos terreiros – o ogã. Os
controle nessa estrutura de discrimina- ogãs são patronos honorários do can-
ção cultural. domblé, cuja função é proteger os ter-
Nada pode surpreender numa reiros e seus fiéis das perseguições da
sociedade em que descobrimos ser “O polícia, bem como das autoridades ca-
tratamento da História Negra” uma “de- tólicas e civis, e também das dificulda-
plorável ausência”. Essa sociedade ma- des financeiras. O ogã é geralmente uma
lévola em que um centro de estudos da pessoa influente na comunidade maior
cultura afro-brasileira objetiva combater e, como tal, quase sempre é branco.
“as tentativas (...) de autoafirmação em Candomblé é “o nome dado à re-
qualquer nível, seja ele social, estético, ligião do povo iorubá, originário da Ni-
econômico ou polftico”. géria, mas também incorpora variações
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 0

de outros grupos culturais trazidos da canas no Brasil segundo sua distribui-


África”. Essa perseguição policial che- ção geográfica: assim, na Bahia existe
gou ao máximo com a discriminação re- um candomblé “com origens em Angola
ligiosa contra os africanos, expressa no e no Congo, que tomou emprestada das
fato de só as religiões afro-brasileiras práticas iorubás sua organização ceri-
serem obrigadas a se registrar na polícia. monial e eclesiástica”; em São Paulo,
No Capítulo XI, “Sincretismo ou no Rio de Janeiro e no Sul do país, a
folclorização”, que ridiculariza o “mito religião chama-se macumba (embora a
do sincretismo ‘religioso”’, Abdias exe- influência mais forte seja banta, ela está
cuta sumariamente a fusão das religiões assimilada a elementos indígenas, ioru-
bás, espíritas e católicos); no Rio Gran-
africanas com a católica, suposta prova
de do Sul, “as religiões afro-brasileiras
de um saudável e espontâneo intercâm-
relacionadas à macumba são chamadas
bio cultural entre africanos e europeus.
de batuques”; e, finalmente, a partir de
O autor menciona diversos exemplos
todas as religiões de origem banta se de-
em que as autoridades católicas e poli-
senvolveu “um misto de culto africano
ciais usaram seu poder para impedir os
com influências indígenas, kardecistas,
africanos de praticarem suas religiões:
hindus, chinesas e outras, que recebeu o
em primeiro lugar, apresenta o caso do
nome de umbanda”.
bispo do Espírito Santo que, “após as-
sistir a uma cerimônia banta chamada No Capítulo XII, “A bastardiza-
Cabula, prontamente anunciou contra ção da cultura afro-brasileira”, temos
uma reafirmação do fato de ter havido
ela uma sentença de anátema”; em se-
sobrevivências culturais africanas no
gundo lugar, mostra como as cerimô-
Brasil apesar do controle exercido pe-
nias “sincréticas” da “lavagem da igreja
los europeus; foi particularmente esse
nas festas do Senhor do Bonfim” foram
o caso das esculturas inspiradas no can-
proibidas por autoridades católicas e ci-
domblé encontradas nos terreiros. Tal
vis. Trata-se aqui de cerimônias religio-
criatividade foi a causa principal das
sas de origem iorubá em louvor de Oba-
frequentes incursões policiais; apre-
talá. Em terceiro lugar, registra como
endidos, muitos desses artefatos cos-
um arcebispo denunciou como “profa- tumavam ser livremente expostos nos
nação da ‘pureza religiosa’” a defesa e museus da polícia existentes no Brasil.
a instituição, em São Paulo, do Dia de Mas os dois principais propósitos desse
Ogum e do Dia de Oxóssi, entidades capítulo são: 1) demonstrar cuidadosa-
de origem queto e iorubá; e, em quarto mente como as equivocadas teorias de
lugar, o caso dos candomblecistas que Nina Rodrigues reduziram a religião e a
queriam celebrar missa na Igreja do Ro- arte africanas ao nível de uma patologia
sário, mas tiveram seu desejo recusado primitiva; e 2) mostrar como o total des-
pelas autoridades eclesiásticas. prezo dos europeus pelos africanos e sua
Também nesse capítulo, Abdias cultura lhes permite rotular a arte africa-
define as sobrevivências religiosas afri- na de folclore para depois mascateá-la
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Depoimentos

nos mercados, competindo pelas belas tura africana de seu status folclórico,
moedas dos turistas. pitoresco e marginal ( ...)”; 2) “erradicar
O Capítulo XIII, “A estética da dos palcos brasileiros os atores brancos
brancura nos artistas negros acultura- pintados de preto que eram usados nos
dos”, apresenta um levantamento de papéis de negros quando estes exigiam
como “o negro brasileiro se vê forçado qualidade artística”; 3) “pôr fim ao cos-
a se tornar física e culturalmente bran- tume de usar atores negros apenas em
co”. Entre os afro-brasileiros proemi- papéis grotescos, tais como moleques
nentes que sucumbiram à crueldade de sorridentes recebendo pontapés (...)”; e
virar branco por dentro estão Raimun- 4) “desmascarar como inautêntica toda
a literatura pseudocientífica puramente
do Sousa Dantas, o único negro jamais
descritiva – histórica, etnográfica, an-
nomeado embaixador, e Diegues Júnior,
tropológica, sociológica, psiquiátrica
um mulato que foi membro do Conse-
( ...)”. Além de preparar os primeiros
lho Federal de Cultura e diretor, no Rio
atores negros e organizar, em 1950, o I
de Janeiro, do organismo da UNESCO
Congresso do Negro Brasileiro, o TEN
para pesquisa social na Ámérica Lati-
realizou o seguinte: compilou uma co-
na. Historicamente, Abdias vê os artis-
letânea, O negro revoltado; publicou
tas afro-brasileiros como “alienados de
uma antologia do teatro afro-brasileiro,
suas origens raciais e sociais por força Drama para negros e prólogo para
da pressão social”; isso é verdade em re- brancos; e publicou Teatro Experimen-
lação aos poetas negros Domingos Cal- tal do Negro: Testemunhos. Todos esses
das Barbosa e Manuel Inácio da Silva trabalhos foram organizados por Abdias
Alvarenga, é confirmado na sátira por Nascimento e publicados no Brasil em
Gregório de Matos e exemplificado na português.
música pelo padre José Maurício e na
O Capítulo XV, “Conclusão”, é
pintura por Manuel da Cunha. A notá-
um resumo final das análises de Abdias,
vel exceção à síndrome do negro-que-
somado a um fortíssimo desafio, diri-
-vira-branco-por-dentro é Luís Gama,
gido ao Colóquio do Segundo Festival
político, intelectual e poeta, precursor
Mundial de Arte Negra, no sentido de
distante dos poetas da Negritude, Sen- que este apresentasse, como uma voz
ghor, Césaire e Damas, pois era “a voz unificada, 17 recomendações ao Go-
vingadora do povo negro”. verno brasileiro a fim de provocar o
No Capítulo XIV, “Uma reação tipo de mudança pelu qual “possam
à brancura: o Teatro Experimental do assumir seu lugar o pensamento e a
Negro”, temos a descrição de como se ação negro-africanos, baseados nos
formulou um plano de luta institucional valores negro-africanos, criticamente
organizada contra o genocídio dos afro- atualizados e/ou adicionando valores
brasileiros. Fundado no Rio de Janeiro de outras origens, adequadamente mo-
em 1944, o TEN se propõe quatro ob- dificados para se ajustar aos interesses
jetivos: 1) “resgatar os valores da cul- e necessidades dos africanos (. ..) [que)
Democracia Racial no Brasil: mito ou realidade
Sterling Plumpp 0

têm um papel agressivo na modelagem ploração prosseguem em sua marcha.


da civilização ecumênica da cultura”. Por ser um livro altamente inteligente,
Vemos, portanto, que o nacionalismo uma análise pungente da luta contra o
cultural de Abdias não é simplesmente genocídio físico e cultural dos africanos
uma forma de elitismo, exclusivismo no Brasil, ele nos força a lidar realistica-
ou chauvinismo raciais. Pois ele de fato mente com o papel desempenhado pela
imagina uma ideologia suficientemente cultura na desestruturação dos povos
lúcida para incorporar ideias relevantes africanos em sociedades nas quais estes
de origem externa e, ao mesmo tempo, constituem uma minoria dentro de um
suficientemente concreta para indicar a universo branco mais amplo. Concordo
ação. com Abdias em que, além do imperialis-
mo no sentido estritamente econômico
As 17 recomendações atribuem
do materialismo dialético, os africanos
ao colóquio o ônus de se transformar na
oprimidos da Diáspora deveriam enga-
plataforma a partir da qual se possa lan-
jar-se na luta contra o “imperialismo da
çar uma forte campanha contra o Bra-
brancura”. Mas o que falta a esse livro
sil em razão de suas políticas racistas e
é uma ideologia apontada diretamente
exploradoras com respeito aos africanos
contra a sociedade brasileira, fascista,
que lá vivem. Os princípios vão desde
neocolonialista e racista. A questão é:
recomendar que o Brasil permita a livre o que é principal e o que é secundário
discussão a respeito dos negros e seus numa situação em que o sistema prati-
problemas a aconselhar que o país “con- ca um genocídio ao mesmo tempo físi-
cretize” sua “amizade” com as nações co e cultural contra os africanos? Creio
independentes da África, oferecendo- que, em Uma abordagem dialética da
-lhes ajuda material para “legitimar as cultura, Sekou Touré definiu adequada-
lutas e movimentos do Zimbábue, Áfri- mente a sua responsabilidade – e a dos
ca do Sul e Namíbia”. Em seu conjunto, africanos na Diáspora –, quando afir-
essas recomendações pedem à comuni- mou: “(...) temos diante de nós (...) uma
dade negra internacional que funcione escolha fundamental entre duas e mais
como poderosa advogada em favor da possibilidades que são mutuamente ex-
imediata reparação das terríveis condi- cludentes, ou seja, entre: 1 – a ideologia
ções em que vivem os afro-brasileiros. da dominação, e a prostração ante a do-
Democracia racial no Brasil é minação; 2 – a ideologia da luta contra
um trabalho importante precisamente qualquer tipo de dominação e pela total
porque nos perturba num momento em soberania do povo, sendo o poder exer-
que nos havíamos estabelecido confor- cido pelo povo e para o povo”.
tavelmente em nossas versões do nacio- Obviamente, uma perspectiva
nalismo, do pan-africanismo, do mar- cultural rigorosamente formulada, to-
xismo e do nacionalismo cultural – num mando a segunda opção e tornando con-
momento em que as atividades de nosso creta “a ideologia da luta” em termos
povo se reduziram e os monstros da ex- de planos específicos para pôr fim à do-
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Depoimentos

minação e devolver o poder ao povo, é o Abdias é importante, embora não


curso de ação correto para os africanos na tenha explicitado a segunda opção; mas
Diáspora. Pois não pode haver soluções o fervor com que denuncia as várias
para a opressão dos africanos no interior mentiras construídas para mascarar a
de estados imperialistas e neocoloniais de realidade da destruição contra os africa-
maioria branca sem uma revolução. Bas- nos coloca-o definitivamente nas fileiras
ta ver como as vitórias do movimento de dos lutadores. Podemos agradecer-lhe
direitos civis no final dos anos 50 e na por escrever um trabalho oportuno num
década de 60 estão se desintegrando nas momento em que predominam o confor-
mãos da inflação, da “proposição 13” e mismo e a confusão. Talvez de seus es-
do processo Bakke. Ou pensar na ma- forços surja uma condenação ao Brasil
neira tirânica como os soldados da Bél- semelhante àquela dirigida ao apartheid
gica e da França caíram de paraquedas sul-africano. Os líderes da África devem
sobre o Zaire a fim de proteger os in- aprender a investigar como seus parcei-
vestimentos desses países na mineração. ros comerciais tratam os africanos que
A presente realidade dos africanos, onde vivem dentro de suas fronteiras antes de
quer que possam estar vivendo, determi- fazer negócios com eles.
na que estes se engagem na luta contra o
imperialismo; qualquer esforço de refor-
ma deve dirigir-se a algum melhoramen- * Sterling Plumpp é poeta e crítico lite-
to tático ou estratégico. Os africanos não rário afro-norte-americano, com for-
podem viver como homens livres em so- mação e pós-graduação em Ciências
ciedades dominadas por uma oligarquia Sociais.
financeira racista.
No ano de 1978 surgiram os Ca-
dernos Negros. A sociedade brasileira
vivia um clima efervescente, os setores
progressistas contestavam o Governo mi-
Cadernos Negros litar e exigiam liberdades democráticas.
e Quilombhoje: Havia greve no ABC, protestos estudan-
tis. O Movimento Negro se rearticulava,
algumas páginas de com a criação do MNUCDR (Movimento
Negro Unificado contra a Discriminação
história Racial, depois somente MNU), lançado
com a realização de ato nas escadarias
do Teatro Municipal, na cidade de São
Paulo. Em São Paulo surgiu também o
Feconezu (Festival Comunitário Negro
Zumbi). No início da década o grupo Pal-
mares, de Porto Alegre, havia proposto a
celebração do dia 20 de novembro – data
do desaparecimento de Zumbi – como o
“Dia do Negro”.
O primeiro volume dos Cadernos
era um livro em formato de bolso, reu-
nindo oito poetas. Foi lançado no Feco-
Márcio Barbosa* nezu, realizado nesse ano de 78 na cida-
de de Araraquara. Antes dos Cadernos já
haviam sido realizadas tentativas simi-
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Depoimentos

lares. Em 1977. o jomalista Hamilton da literatura professada pelos arautos da


Cardoso havia organizado a coletânea negritude e, mais ainda, pelos escritores
Negrice. Em 1976, uma entidade da ci- afro-americanos? É fato que nem os mi-
dade de Santos publicara uma Coletâ- litantes negros acreditavam nessa pro-
nea de poesia negra1. posta, mesmo porque consideravam li-
Essas publicações tinham em teratura um passatempo burguês. Assim,
comum o fato de serem mimeografa- Cadernos Negros já nasceu enfrentando
das e pertencerem a um movimento de oposição dentro da própria comunidade,
imprensa negra que, assim como o mo- desviando energia que deveria ser utili-
vimento político, procurava se firmar: zada na briga contra o establishment.
subversivo no seu conteúdo, falava de A verdade é que a literatura sem-
revolução e consciência. Um dos seus pre foi elemento presente nas mobili-
organizadores, Jamu Minka, costuma- zações da comunidade negra brasileira
va distribuir os jornais no Viaduto do ao longo do presente século. Os poetas.
Chá, ponto de encontro de jovens afro- especialmente. desempenharam papéis
-paulistanos, muitos dos quais eram importantes. Lino Guedes, por exemplo,
atraídos até aquele local por conta do um jornalista atuante, buscava promo-
movimento soul. ver a “regeneração da raça”. Para David
Nesse clima, Cuti e Hugo Ferrei- Brookshaw, ele é símbolo da renascença
ra propuseram os Cadernos Negros. A do negro brasileiro, embora Zilá Bernd
sugestão do nome foi de Hugo. O escri- discorde dessa afirmação, na medida em
tor Cuti diz que “o Cecan – Centro de que, segundo ela, Lino Guedes procura-
Cultura e Arte Negra –, naquela época va construir uma identidade defensiva.
situado na Rua Maria José, no Bairro do em oposição ao branco3. Mas a poesia de
Bixiga, foi o ponto de encontro dos es- Lino Guedes. debaixo da casca moralis-
critores que iniciaram a série”2. ta e doutrinária, carrega a postura ousa-
da de um homem que quis mostrar ao
A pergunta que parecia estar se
“negro preto cor da noite” os passos que
colocando naquele momento era a se-
deveria dar para afirmar sua dignidade.
guinte: seria possível fazer no Brasil
uma literatura que expressasse a vida e Solano Trindade tem o mesmo
os valores afro-brasileiros. nos moldes objetivo, mas sua postura é outra. Patro-

1 Conforme Cuti (Luiz da Silva. no texto “Um louco de História”, publicado no Cadernos negros 8 (arg. Quilombhoje).
São Paulo: Ed. dos Autores, 1985.
2 Id. Ibid.
3 Bernd, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 0

no da cidade do Embu, foi pesquisador, limpam-se de algumas ideologias e es-


ator e pintor. Fundou várias entidades, tereótipos”4, deixando vir à tona o lado
como a Frente Negra Pernambucana e dramático, o qual explode na cara de
o Comitê Democrático Afro-Brasileiro. quem nos quer contentemente alienados
Seu Teatro Popular Brasileiro percorreu e abobalhados.
a Europa e ganhou prêmios. A poesia de Essa atitude literária desmasca-
Solano tem o ritmo do povo, tem sim- ra e recusa o conformismo. Segundo
plicidade e coragem para denunciar as Jamu Minka, os escritores estilhaçam
injustiças. Dinâmico e atual, Solano dei- “os mais cristalizados e caros mitos que
xou textos que levaram vários jovens a engordaram o orgulho nacional do euro-
descobrir a própria negritude. -brasileiro e ajudaram a esculpir a más-
Outro poeta fundamental nesse cara da democracia racial”5. Tal postura,
processo de se registrar uma orientação no entanto, não resulta numa atitude de
étnica e mobilizar pessoas em direção a exclusão do branco, pois a consciên-
ela foi Carlos de Assumpção. A decla- cia negra veio a acontecer no Brasil já
mação do clássico poema “Protesto” enriquecida de outros valores e pers-
em encontros e reuniões da comunida- pectivas, com significados e símbolos
de sempre teve efeito devastador. As- inexistentes à época em que Césaire e
sumpção traz a força dos nossos griots Senhor elaboraram o conceito de Negri-
ancestrais para um contexto urbano, traz tude. Assim, segundo Jamu Minka, essa
energia de umbigadas para o prazer dos consciência “deve recusar um racismo
ouvintes. às avessas, um fanatismo fardado de
Também o poeta, escritor e jor- pretidão que pretenda endeusar tudo o
nalista Oswaldo de Camargo tem sua que derive de raiz negra”.
vida ligada à trajetória das entidades Nesse sentido, a literatura afro-
criadas em São Paulo. Oswaldo, homem -brasileira não poderia cometer o erro
de vasta cultura, tem estado presente de ser não crítica em relação aos negros,
em momentos-chave das mobilizações nem de ser excludente em relação aos
afro-paulistanas. não-negros, embora eles nos tenham
É inegável, assim, a importância sempre reservado essa excludência,
dos poetas para a dinâmica do movi- nunca se poupando o trabalho de recor-
mento social negro brasileiro. Podemos rer ao lugar-comum para retratar perso-
afirmar com Míriam Alves que os escri- nagens e cultura negra. Embora estudio-
tores, “ao penetrarem no fundo do ser, sos como Sílvio Romero já apontassem,

4 Alves, Miriam. “Axé Ogum” in Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. São Paulo: Quilombhoje: Conselho de Par-
ticipação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985.
5 Minka, Jamu. “Literatura e consciência” in Reflexões. Op. Cit.
10 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

há muito tempo, o caráter miscigenado ta a Jorge Amado ressalta a cristalização


da nossa cultura, parece que essa mis- de uma certa imagem das personagens,
cigenação sempre se deu segundo a su- especialmente as femininas: sua insis-
posição de que cada um deveria saber o tência no tipo da mulata sensual e lasci-
seu “lugar”, e de que o lugar privilegia- va ajuda a criar um estereótipo falso em
do caberia ao branco. O próprio Rome- relação à maioria das mulheres negras.
ro previa o desaparecimento dos negros Hoje em dia, autores geniais ain-
por meio do processo de miscigenação e da mantêm o negro no seu “lugar”. Na
não considerava seriamente o negro um obra de Dalton Trevisan, por exemplo,
produtor de cultura6. negros só aparecem cumprindo uma
Já o Modernismo deixou vir à função sexual determinada: são os tara-
tona os preconceitos das elites diante dos; é o negão ameaçando a polaquinha.
da necessidade de encarar o negro, visto Diferentemente de outros personagens
que ele não desaparecia pelo efeito das também imersos na perversão, o negão
correntes migratórias. É interessante aparece e some silenciosamente, é uma
notar como Mário de Andrade concebe presença quase animalesca, que espreita
a questão racial no seu Macunaíma. O atrás do muro da esquina, não tem mo-
herói sem nenhum caráter, negro, após tivações nem conflitos, age por instinto.
tomar um banho e se livrar da sujeira, Nos contos de Rubem Fonseca,
torna-se branco. Dificilmente aparece- os personagens negros são mais den-
rá metáfora mais poderosa para o ideal sos, embora sempre ocupem posições
de embranquecimento que perseguia o marginais. São malandros, bandidos,
Brasil no início do século. excluídos em geral. Raramente são pro-
Mais à frente, Jorge Amado in- tagonistas. Mas o autor vai em busca de
troduziria na literatura personagens que suas motivações, da sua humanidade,
são humanizados, em oposição à dicoto- dos seus conflitos e, embora os mante-
mia herdada do século passado, segundo nha à margem da sociedade, consegue
a qual os negros se dividiam em “bons” dar-lhes personalidade.
(os servis e leais) e “maus” (os rebeldes, Por outro lado, as imagens dos
os quilombolas)7. Mas a crítica atual fei- escritores de ascendência africana que

6 Ver Romero, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949.
7 Ver Marotti, Giorgio. Black characters in the Brazilian novel. Center for Afro-American Studies. University of Califo-
mia. 1987.
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 11

conquistaram, pelo mérito da sua obra, são características genéticas, pois estas
um lugar ao sol na história da litera- apresentam maior variação dentro de
tura brasileira sofreram, por parte dos uma assim considerada raça do que en-
meios de transmissão do conhecimen- tre raças diferentes. Características físi-
to e informação (como escolas, acade- cas como cor da pele, formato da cabeça
mias e mídia), um perverso processo de e traços fenotípicos têm sido os índices
branqueamento, Machado de Assis é o mais usados para se definir uma raça,
exemplo mais atual. Sua condição de Mas mesmo essas características variam
afrodescendente foi resgatada contem- muito dentro de um mesmo grupo racial.
poraneamente, depois de permanecer Além disso, Otto Klineberg mostra que
sublimada durante muito tempo. a “raça” das pessoas não tem influência
Os autores mais marginalizados sobre coisas como inteligência, cria-
como o genial Cruz e Souza ou o grande tividade, etc. Mesmo padrões de com-
Lima Barreto – são os escritores identi- portamento estão muito mais sujeitos à
ficados como negros pelo establishment. influência de variáveis como ambiente
Vale lembrar que Cruz e Souza dirigiu familiar e condição socioeconômica,
um jornal abolicionista e Lima Barre- Nesse caso, a herança genética conta
to sempre afirmou (ao contrário de um pouco9, Mas, se não basta ao poema a
Mário de Andrade, por exemplo) a sua cor da minha pele, tampouco ela é indi-
condição de mulato. Significativamen- ferente. A literatura negra evidencia um
te, esses escritores morreram pobres e modo de estar no mundo e atualiza uma
sem o prestígio que mereciam na época. herança cujas raízes estão no continente
que deu origem ao homem moderno: a
Nesse contexto, fazer literatura
África, África onírica, África ancestral,
negra é assumir uma posição existen-
África que gerou em nosso inconscien-
cial e uma postura étnica muito bem
te coletivo uma forma singular (embora
definidas. Ramatis Jacino diz que “não
dinâmica e aberta) de nos relacionarmos
basta ser negro, é necessário também
com a natureza e com as outras pessoas,
se entender enquanto negro”8, Obvia-
mente, a literatura tem pouco a ver com Em 78, a proposta dos Cadernos
raça. Aliás, o próprio conceito de raça foi levada adiante por Cuti e Hugo Fer-
é nebuloso. O que define uma raça? reira, com a participação de Jamu Minka,
Os cientistas têm demonstrado que não Outros escritores vieram juntar-se a eles,

8 Jacino, Ramatis. “O escritor enquanto trabalhador intelectual” in Criação crioula nu elefante branco. São Paulo: Secre-
taria de Estado da Cultura, 1987.
9 Cf. Klineberg, Otto. As diferenças raciais.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

como o já citado Oswaldo de Camargo. jamais recebeu qualquer tipo de subsí-


Em 1979, o segundo volume dos Cader- dio. Nem de instituições negras nem de
nos foi de contos. O número de autores não negras. Os autores, até recentemen-
subiu para 12. O processo de divisão de te, foram os pilares mais sólidos dessa
custos da edição entre os autores (ado- construção. A partir de 1994, uma edito-
tado no primeiro volume) continuou ra de porte médio viria a se responsabi-
prevalecendo e se mostrou a úrtica lizar pela coedição dos livros.
forma de viabilizar o projeto. As edi- Em 1980, reuniões e encontros
toras não se interessavam por literatura que tinham a finalidade de discutir os
afro-brasileira. Bem poucas vieram a livros da série e obras de autores indi-
se interessar. É compreensível: o lugar viduais acabaram resultando na criação
reservado ao negro na literatura sempre do Quilombhoje. A formação inicial do
foi o de tema. Quilombhoje era a seguinte: Abelardo
Uma grande editora paulistana, Rodrigues, Cuti, Mário Jorge Lescano,
apresentada algum tempo atrás ao proje- Paulo Colina e Oswaldo de Camargo.
to dos Cadernos, respondeu que ele não As discussões ocorriam em bares e, nes-
se adequava à linha editorial da casa. O sa época, era Cuti quem organizava os
interessante é que essa editora tem no Cadernos. A partir de 1982, durante o
seu catálogo, ao lado de livros de ficção, processo de orgartização do volume 5,
uma quantidade imensa de livros sobre novos autores se aproximaram do gru-
o negro, de autoria de historiadores, so- po. Os antigos acabaram se afastando e
ciólogos e antropólogos. o Quilombhoje passou a ser formado por
De forma similar, outra grande Cuti, Esmeralda Ribeiro, Jamu Minka,
editora recusou uma proposta de edição José Alberto, Márcio Barbosa, Miriam
de um dos livros da série. Publicou, po- Alves, Oubi Inaê Kibuko, Sônia Fátima
rém, dois livros de uma professora que e Vera Lúcia Alves. O Cadernos 6 foi
fala exatamente sobre literatura negra organizado por esse grupo, que assumiu
e sobre os Cadernos. Contradições de integralmente as responsabilidades e en-
um país que se pretende não racista. Por cargos que a edição da série demanda-
isso, como afirma Cuti, “a melhor ousa- va. Em 1984 entrou Abílio Ferreira, no
dia nossa é não esperar”10. mesmo ano em que saiu José Alberto.
Ao longo dos anos em que a sé- Em 1985 quem sairia seria Vera Lúcia
rie foi se erguendo, Cadernos Negros Alves.

10 Cuti (Luiz Silva). “Fundo de quintal das umbigadas”, in Criação crioula nu elefante branco. Op. Cit.
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 1

As reuniões do Quilombhoje, nes- que o sol brilhava mais forte. O pagode


sa segunda fase do grupo, começaram costumava rolar solto nas imediações
a ser realizadas na casa de Cuti, então e nós ficávamos num apartamento dis-
morador da Rua dos Ingleses, na Bela cutindo assuntos, na maioria das vezes,
Vista. Os mais constantes eram Esme- burocráticos. Mas de que importava
ralda Ribeiro, Miriam Alves, Oubi Inaê isso? Cada um de nós tinha uma satis-
Kibuko, Vera Alves e Márcio Barbosa. fação muito grande. Era como se cada
Varávamos a madrugada discutindo po- reunião fosse uma aula. No meio da reu-
esia, mergulhando em cada um dos tex- nião, ideias brilhantes aconteciam. Saí-
tos trazidos pelos presentes, procurando amos com a certeza de termos ensinado
refletir sobre a nossa condição de cria- e aprendido algo. E, o mais importante:
dores negros numa sociedade racista. A sabíamos que estávamos tecendo, com
tarefa da produção de livros e o ativismo trabalho, o nosso próprio destino.
literário impulsionaram-nos para outras Trabalho era o que não faltava.
atividades. Embora só nos reuníssemos nos finais
Organização era a palavra-chave. de semana, havia tarefas para todos os
Todos nós queríamos ver o trabalho do dias. Todos faziam um pouco de tudo.
Quilombhoje crescer. Resolvemos abrir Desde escrever textos até entregar cor-
mão de nossos finais de semana para respondências. Dávamos entrevistas
nos dedicarmos ao grupo. Sim, porque para rádios e jornais ou colávamos eti-
ninguém tinha ilusão de que o grupo quetas em envelopes de mala-direta. Foi
e é assim. No começo, a grande moti-
poderia garantir a sobrevivência de um
vação das reuniões eram a organização
único dos seus componentes. Entretanto
dos Cadernos e as discussões de textos
um dos membros, desempregado, vi-
dos autores do grupo. Depois lançamos
vendo da venda de livros em bares, se
a série “Livro do Autor”, cuja finalidade
ofereceu para trabalhar em tempo inte-
era possibilitar a cada um dos quilom-
gral para o Quilombhoje. A maioria não
bhojeiros publicar seu livro individual.
aceitou esse parece ter sido um erro. O
Em seguida passamos a organizar rodas
grupo deixou de oferecer a um dos seus
de poemas (atividades de declamação
membros uma perspectiva profissional, de poemas entremeada com pontos can-
baseando-se na ideia de que ninguém tados) e debates. Fizemos a revisitação
deveria ser diferente ou privilegiado. dos seguintes autores: Cruz e Souza,
Assim, durante a semana cada um Luís Gama, Lima Barreto, Machado de
exercia suas atividades profissionais e Assis, Aimé Césaire e Richard Wright.
aos domingos as reuniões aconteciam, a Organizamos discussões a respeito de
princípio, na casa de cada um dos com- livros desses escritores, promovendo
ponentes. Depois, os encontros foram uma leitura negra dos seus textos. Tam-
ocorrendo unicamente na casa de Sônia bém duas peças foram montadas pelo
Fátima, localizada num bairro central de Quilombhoje. A primeira se chamava
São Paulo. Nos dias de reunião, parecia Despacho poético e foi apresentada no
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

Centro Cultural São Paulo. A segunda da rebeldia e da força acusadora com


peça aconteceu após a visitação a Cruz e que a literatura negra se apresenta”11.
Souza e teve a participação do poeta Ar- Mesmo alguns estudiosos da nos·
naldo Xavier. Foi encenada durante um sa literatura têm tido dificuldade em fa-
Projeto Zumbi promovido pela Secreta- zer uma crítica interna dos textos. Zilá
ria de Estado da Cultura no Ginásio do Bernd, ao analisar os Cadernos, chega
Ibirapuera. Apesar de acidentes durante a dizer que eles “têm revelado uma im-
sua apresentação, foi bem recebida. portância mais social e cultural do qúe
Como o trabalho de organiza- propriamente artística”12. Outros, que
ção dos Cadernos fosse ficando cada talvez nem se tenham dado ao trabalho
vez mais complexo, essas atividades de ler os autores, também metem sua
foram passando para segundo plano. A colher. Por exemplo, em entrevista à
série ia, gradativamente, exigindo mais revista Veja de 13/4/94, um crítico pa-
empenho. Mas adquiria visibilidade e, ranaense deu a entender que os autores
assim, dava visibilidade a textos de au- negros contemporâneos indicados para
tores afro-brasileiros. As críticas tam- leitura em escolas de Salvador teriam
bém começaram a surgir com mais ve- sido escolhidos por critérios estritamen-
emência. A verdade é que a visibilidade te políticos, jamais literários. Por outro
da literatura afro-brasileira despertou a lado, um excelente trabalho de crítica
incompreensão e a raiva de muitos. E interna tem sido feito por professores
isso é coisa mais que previsível numa afro-brasileiros, como Leda Martins,
sociedade que ensina a menosprezar os de Minas Gerais. Os textos são tratados
valores culturais de origem negra. Além segundo uma perspectiva estética, não
disso, na visão de Jamu Minka, “se as antropológica.
possibilidades do desenvolvimento de Mas, tentanto dialogar com os
uma literatura afirmativa feita pelo afro- críticos, o Quilombhoje continuou em
-brasileiro são naturalmente bloqueadas frente. Organização! Como grupo negro
nas esferas literárias do mundo branco, – e mesmo como criadores –, a organi-
na esfera popular, onde trabalhamos e zação interna tornava-se uma coisa im-
convivemos com o branco operário, es- perativa. A lavagem cerebral promovida
tudante ou de classe média, o mal-estar pela classe dominante nos leva a enfren-
tem sido constante diante da franqueza, tar dificuldades para trabalharmos em

11 Minka, Jamu. Op. Cit.


12 Bernd, Zilá. Negritude e identidade na América Latina. São Paulo: Mercado Aberto, 1987.
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 1

conjunto. Questões básicas, que já de- uma transformação que não diz respeito
veriam estar tranquilamente resolvidas, somente aos afro-brasileiros. Na verda-
tornam-se obstáculos sérios. Exemplo: de, essa transformação implica também
horário. Qualquer grupo negro que ten- a modificação do branco. É uma tarefa
te se organizar conhece as dificuldades demasiado complexa – exige muito tra-
para se fazer uma reunião começar no balho e paciência – e são poucas as pes-
horário. Os atrasos já vêm acompanha- soas que se dispõem a enfrentá-la, sub-
dos das desculpas mais inverossímeis: metendo-se às renúncias que ela exige.
resquícios da opressão a que fomos Embora nos dedicássemos bas-
submetidos, da desorganização que nos tante, os resultados sempre foram mui-
foi imposta. Ora, nós não queríamos to poucos. A expectativa de ver o texto
aceitar essa situação, fazer o papel de
causar impacto, ser lido por muitos, não
vítima, por isso resolvemos levar a sé-
se concretizava no curto prazo. De com-
rio o aspecto disciplina. Uma das reso-
pensações financeiras, é bom nem falar.
luções tomadas dizia que cada membro
Os desgastes passaram a minar a resis-
teria direito a um determinado número
tência dos quilombhojeiros. Muita dedi·
de faltas e atrasos. Quem excedesse tal
cação e pouco retorno são ingredientes
número seria desligado do grupo. Tal
fatais. O grupo não tinha dívidas, mas
regra, colocada em prática, acabou re-
também nunca teve dinheiro suficiente
sultando – dentro de um curto intervalo
de tempo – na saída de dois escritores: para contratar profissionais. Todo traba-
Jamu Minka e Miriam Alves. Difícil de- lho era voluntário. As discussões entre
finir a sensação de ver dois importantes os membros do grupo sempre ocorre-
companheiros deixarem o Quilombhoje. ram. Mas elas se situavam no terreno
Com pesar e dúvidas, a regra foi cum- do con· flito de ideias e não dos ataques
prida, o coração apertava-se, mas a so- pessoais. Mais de uma vez algum dos
brevivência do grupo dependia de res- componentes saiu da casa de Sônia ba-
peitarmos as nossas próprias decisões. tendo a porta, jurando não voltar. E vol-
Esse ato significava respeitarmos a nós tava. Casamento difícil de administrar,
mesmos. egos e vaidades acendendo-se a todo
instante. Mas o trabalho a ser desenvol-
É lógico que o Quilombhoje fos-
se visto com desconfiança por quem vido impunha um ótimo aprendizado:
estava fora. Essa busca de organização conviver com as diferenças, respeitar a
e disciplina tornava-se incompreensí- personalidade do próximo, fazer de cada
vel para muitas pessoas, afigurava-se discordância não um ponto de parada e
como rigidez, como limitação. De fato, sim de continuidade.
a inexistência de perspectivas concretas Com a motivação, mas sem o re-
para o futuro faz com que a maioria dos torno necessário, a desesperança ia der-
grupos tenha a tendência de ser indul- rubando ânimos. Num certo momento, o
gente. É um erro. Estamos comprome- trabalho do Quilombhoje veio dar numa
tidos com uma transformação profunda, encruzilhada. Embora soubéssemos da
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

importância do ativismo literário, do “voava”. Projetos como fazer dois volu-


fazer acontecer, havia aqueles que já mes de Cadernos Negros por ano, parar
não dispunham mais de gás para tanto. a cidade com grandes eventos dedicados
Problemas pessoais e familiares come- à poesia ou realizar megafestas para o
çaram a pesar. No início de 1994, Cuti lançamento de livros foram sendo siste-
deixou o grupo, em 1995 foi a vez de maticamente substituídos por objetivos
Oubi. Abalos profundos da nossa dispo- mais realistas: um volume de Cadernos
sição, o desânimo rondando o peito jus- e um de livro de autor por ano (durante a
to às vésperas da celebração do tricen- euforia do Plano Cruzado, foram dois li-
tenário de Zumbi. Mas a certeza de que vros de autor), rodas de poemas realiza-
o Quilombhoje e os Cadernos Negros das em eventos do Movimento Negro e
eram projetos que dependiam única e em quadras de escolas de samba (como
exclusivamente de nós mesmos impul- a da Mocidade Alegre).
sionou-nos. Haja pique para tirar garra e Com relação aos lançamentos,
vontade do pouco-muito que tínhamos. durante uma certa época (por volta de
Felizmente, a entidade que rege 1990), parte do grupo resolveu que a
o Quilombhoje nunca nos abandonou. organização desses eventos demanda-
Em 1994, quando o grupo já contava va um tempo que poderia ser dedicado
com quatro componentes, chegamos até a atividades ligadas ao ato de escrever.
a Editora Anita, por meio do vereador Ora, nessa época os lançamentos já ha-
Vital Nolasco e de Juarez Xavier, da viam se tornado eventos anuais bastante
Unegro. Certamente esse encontro foi aguardados. Isso se iniciara em 1982,
muito importante, pois nos possibilitou quando a entrada de novos componentes
dividir os encargos da parte editorial dos deu ao Quilombhoje um empurrão em
Cadernos. Também proporcionou maior direção à popularização da literatura ne-
inserção no mercado, haja vista que a gra. Oubi e eu, tomados por essa ideia,
chancela de uma editora ajuda o livro a oriundos do movimento soul e respon-
ter melhor aceitação quando chega à re- sáveis pela publicidade do Cadernos
dação de um jornal, por exemplo. Como volume 6, iniciamos uma peregrinação
se a qualidade literária dependesse des- por salões de bailes, escolas de samba
sa chancela! e pontos de encontro do nosso povo.
O Quilombhoje sempre funcio- Panfleteávamos e divulgávamos a nossa
nou num sistema colegiado. Todos os literatura.
seus componentes sempre tiveram di- Década de 80: era uma época em
reito de falar, ouvir e votar. Assim, to- que a maioria dos jovens negros ainda
das as decisões refletiam a vontade da se conservava distante da discussão po-
maioria. Difícil, com poucos braços, era lítica a respeito da questão racial. Em-
viabilizar todas as ideias que apareciam. bora na década de 70 os movimentos
Assim, tínhamos que puxar um pouco Black Rio e Black São Paulo tivessem
mais para baixo aquele ou aquela que despertado nosso orgulho étnico, alguns
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 1

anos depois se tornou quase uma heresia que grande parte dos militantes vem das
chegar nos salões e falar sobre negritu- camadas “plebeias”, sabemos também
de. Havia a preocupação dos empresá- que grande parte dos negros “letrados”
rios de bailes com a repressão. E, para procura fugir da discussão étnica. Sem
a maioria das pessoas, o orgulho étni- dúvida, a história mostra que universitá-
co não havia resultado em consciência rios e agregados têm sido os mais ativos
política. A população ainda estava dis- nessa tarefa de levantar o véu e expor
tante do Movimento Negro. Sobre esse as vergonhas do racismo nacional. Mas,
distanciamento, é bom lembrar aanálise se isso denota uma determinação socio-
que faz o historiador Clóvis Moura a econômica, é precisó adicionar outro
respeito do universo afro-brasileiro13. ingrediente a essa receita: a questão da
Moura identifica dois segmentos: mentalidade. A forma como cada indiví-
o “letrado” e o “plebeu”. O universo duo afro-brasileiro responde às solicita-
“plebeu”, proletário e marginal, estaria ções da ideologia dominante é também
preso a uma luta cotidiana pela sobre- definidora.
vivência econômica, social e biológica. Quando saíamos para panfletear
Em tal situação, perderia sua consci- (a partir de uma certa época e durante
ência étnica. O universo “letrado”, de um curto período de tempo, todo o Qui-
classe média, é que estaria sensibilizado lombhoje passou a saír junto), o que en-
com a questão étnica e com suas mani- contrávamos era um certo interesse dos
festações imediatas: a afirmação de uma jovens negros e uma indiferença dos
cultura e uma ancestralidade africanas, a mais velhos. No entanto, nas ruas de
luta contra a discriminação no mercado samba da Barra Funda e da Bela Vista
de trabalho, particularmente em áreas de ou na porta dos salões de baile, a mensa-
prestígio social ou privilégio econômi- gem negra era, na maioria das vezes, re-
co, como a televisão e o teatro. A grande cebida com ar de desconfiança e temor,
massa não teria lugar para preocupações como se tocássemos num ponto muito
desse tipo. delicado, num problema que aquelas
A análise de Moura lança luz so- pessoas apaixonadas pelo Camisa Ver-
bre diversos pontos, explica por que é de, pela Vai Vai, pela Nenê de Vila Ma-
tão difícil a mensagem do Movimento tilde – pessoas também produtoras e
Negro chegar até a grande população, já consumidoras de cultura afro-brasileira
que esta não conceberia seus problemas – fizessem questão de esquecer.
imediatos em termos raciais e tampou- Qualquer grupo negro militante
co estaria preocupada em classificar sua se deparará com problemas desse tipo.
cultura, apenas em vivê-la. Mas restam Se, como Clóvis Moura afirma, o seg-
muitas dúvidas: sabemos, por exemplo, mento negro “letrado” está preocupa-

13 No livro Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita. 1994.
1 THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

do em adquirir valores brancos, o que ca de 150 pessoas. Se pensarmos que,


acontece com o segmento “plebeu” não dois anos antes, o lançamento do volu-
é muito diferente. O que singulariza este me 10 tinha levado mais de mil pessoas
último segmento é o fato de ele estar ao salão do Sesc, na Rua do Carmo, en-
confinado a determinados espaços, en- tenderemos por que era tão importante
quanto a classe média tem maior mobi- ir às ruas e fazer o corpo a corpo com a
lidade. O que parece, entretanto, é que o rapaziada. A partir do volume 13, volta-
segmento “plebeu” tem mais confiança mos a fazer esse trabalho de divulgação.
na ideologia da democracia racial, acre- Só que resolvemos contratar pessoas
ditando que posicionar-se como “negro” para isso. Não éramos mais nós que sa-
pode ser um obstáculo à ascensão. Luta íamos para distribuir panfletos e colar
desigual para os grupos negros: fazer cartazes. A disposição de fazer tudo, de
suas ideias chegarem até a população sermos autossuficientes. tinha encontra-
sem dispor de poder financeiro ou polí- do seu limite.
tico nem de meios tecnológicos. Sequer O fato é que os lançamentos de
têm podido contar com o apoio de gran- livros do Quilombhoje vêm crescendo
des empresários negros. ano a ano. Já chegamos a reunir duas
Naquela época em que começa- mil pessoas num único evento. Tal cres-
mos a distribuir nossos panfletos, pou- cimento de público, porém, não se re-
cos empresários tiveram a atitude de flete num crescimento proporcional de
Luís Carlos, da equipe de bailes Os Car- vendas. As tiragens continuam na casa
los, que abriu suas festas para a divul- de mil exemplares. Ocorre que o públi-
gação da literatura negra e apoiou o lan- co leitor se toma mais diversificado e as
çamento do volume 10 dos Cadernos, tiragens se esgotam mais rapidamente.
um dos maiores eventos realizados até A participação da Editora Anita leva os
então. Mas a verdade é que, apesar das Cadernos para outros círculos.
dificuldades, o Quilombhoje conseguiu Qual o impacto que a literatura-
angariar leitores para os seus livros en- afro-brasileira tem tido na sociedade?
tre uma população cujo acesso à leitura Difícil avaliar neste momento. A ten-
era precário. Organizamos uma mala-di- dência é acreditarmos que literatura
reta que ainda dá um trabalho incrível, não modifica nada. Mas, quando vemos
mas que funciona com alguma eficiên- tantas mudanças acontecendo no que
cia. Entretanto, quando o Quilombhoje diz respeito à questão racial no Brasil, é
resolveu, em 1990, diminuir o esforço difícil não imaginarmos que a literatura
empenhado nos lançamentos, reduzindo deu sua contribuição. Especialmente no
a divulgação de rua e restringindo-a ao que se refere ao ressurgimento de uma
envio de mala-direta, houve uma sensí- imprensa negra.
vel queda de público leitor. Além disso, os Cadernos, como
O lançamento do volume 12 dos diz Éle Semog, redescobrem a beleza de
Cadernos, por exemplo, mobilizou cer- nossa gente e têm colocado mais africa-
Cadernos Negros e Quilombhoje
Márcio Barbosa 1

nidade na literatura brasileira14. Traba- nambuco e Rio Grande do Sul), saímos


lhando com o imaginário, no sentido de a campo para chamar a atenção de aca-
enriquecê-lo, a literatura contribui para dêmicos, do mercado e do leitor comum.
alargar as possibilidades de autoconheci- Este último é o centro de nossas atenções,
mento e autoaceitação de negros e não- o destinatário das nossas oferendas depo-
negros. Questões como a autoestima são sitadas aos pés da esperança. Somadas as
levantadas, assim como temas referentes à tiragens de todos os títulos lançados pelo
luta mais específica das mulheres. Quilombhoje (14 Cadernos Negros de
A participação das mulheres, se um total de 19, oito livros de autor, um li-
tem sido tímida no aspecto quantidade (os vro de ensaios, um livreto), temos 29 mil
Cadernos costumam receber mais textos exemplares colocados na rua. É pouco,
de homens do que de mulheres), tem sido diante do gigantismo do mercado edito-
muito forte no que se refere ao conteúdo rial. É bastante, se considerarmos o que
dos trabalhos, nas propostas e ideias apre- foi feito em outras épocas. Atravessamos
sentadas. Concordamos com Esmeralda a década de 80 e estamos atravessando
Ribeiro quando ela diz que “é necessário a de 90. Mas o futuro ainda depende da
que a união de esforços, entre mulher e nossa modesta energia.
homem negro escritores, reforce cada vez No fim do magistral romance de
mais a luta para que os dois intervenham Lima Barreto, Clara dos Anjos, aban-
no processo de participação política e for- donada, diz à sua mãe: “Nós não somos
mem uma nova consciência nacional”15. nada nesta vida”. Na bela e atualizadora
Desde o início de 1995 o Qui·· releitura feita por Esmeralda Ribeiro no
lombhoje tem apenas três componen- conto “Guarde segredo”, publicado no
tes: Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa Cadernos 14, a avó diz à personagem
e Sônia Fátima. Apoiados pelos braços que representa Clara: “Nós não deve-
amigos de eventuais colaboradores, te- mos aceitar o destino com resignação.”
mos trabalhado para conquistar o espaço Sabemos que essa é a grande batalha.
que a literatura afro-brasileira merece. Não aceitar o lugar imposto. Reiventá-
Escritores que saíram do grupo conti- -lo é tarefa para uma vida. Tarefa para
nuam publicando nos Cadernos e vêm se fazer hoje e sempre. Agora, neste ins-
dando seu fundamental apoio. Se exis- tante. O grande desafio é não parar.
tiram mágoas ou rancores, isso não nos
tem impedido de trabalharmos juntos.
Incentivamos também a participação de * Márcio Barbosa é escritor, pesquisador e
membro do Quilombhoje desde 1982. Publi-
autores de todo o Brasil (até agora par- cou Paixões crioulas, narrativa, em 1987, no
ticiparam, com seus textos e confiança, Projeto Livro do Autor do grupo. Tem poemas
autores dos Estados de São Paulo, Rio e contos publicados em diversas antologias no
de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Per- Brasil. Alemanha e Estados Unidos.

14 In Cadernos Negros 9 (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1986.
15 Ribeiro, Esmeralda. “A escritora negra e seu ato de escrever participando”, in Criação crioula nu elefante branco. Op. Cit.
Comunicação apresentada ao seminário
internacional Superando o Racismo/
Consulta ao Brasil, África do Sul e
Estados Unidos, promovido pela Inicia-
Raça, classe e tiva Relações Humanas Comparadas,
identidade nacional da Southen Education Fundation, Rio
de Janeiro, 2 a 4 de setembro de 1997.
Reproduzido com permissão da autora.

Primeiro gostaria de expressar o


meu prazer em participar deste seminá-
rio contando com a presença expressiva
de brasileiros, afro-brasileiros, africanos
e afro-americanos. Sabemos como são
raras e importantes essas oportunidades
para o amadurecimento e aprimoramento
de nossas estratégias políticas e saberes.
Além disso, com o sugestivo titulo
proposto nesta abertura – Raça, Classe e
Identidade Nacional –, não poderia dei-
Sueli Carneiro* xar de mencionar o quão gratificante é
poder, como afrodescendente, discutir o
significado de algo como identidade na-
cional. Digo isso pelo fato de termos sido
THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

nós, os negros, o elemento que suposta- ca imigratória esteve longe de respon-


mente deveria ser diluído – na química der apenas às necessidades de força de
da miscigenação na representação feliz trabalho abundante e barata por parte
de uma identidade nacional brasileira. da elite agrário-cafeeira e demais seto-
Ser nacional, ser brasileiro, significa res produtivos a ela ligados. A política
não ser negro ou afrodescendente. de imigração foi também uma resposta
É impossível deixar de mencio- ideológica ao ideal de cidadão brasilei-
nar que o discurso sobre a identidade ro. Essa política serviu aos interesses
nacional brasileira foi construído sob a políticos de criar-se aqui uma “socieda-
perspectiva de, um dia, não ser preciso de branca brasileira” e diluir dessa ma-
notar explicitamente a presença africana neira, não apenas o passado escravista
no Brasil. brasileiro, mas também o que constituía
Um pouco de história é sempre uma inquestionável testemunha do sis-
importante às análises comparativas. tema: a população negra.
Assim, vejamos, ainda que de maneira Apenas para citar um entre mui-
breve. De acordo com o Censo de 1872 tos estudos recentes, Marinho Azevedo,
– o último a ser realizado antes de o em seu estudo sobre a imagem negra
Brasil tornar-se uma República –, ape- no imaginário da elite daquele período
nas 15,2% da população brasileira per- Onda negra, medo branco – o negro
manecia escrava; portanto, o advento da no imaginário das elites do século XIX
Abolição teria apenas consolidado o que – demonstra como a elite brasileira, fa-
já se apresentava como uma incontes- zendo uso de seus intelectuais e políti-
tável realidade. A emancipação trouxe cos, advogou a necessidade de renovar
à cena política a intensa e ampla dis- a população brasileira por meio da imi-
cussão sobre ser negro, ser ex-escravo gração branca. Além disso, como essa
e ser ou não ser cidadão brasileiro. A política esteve combinada às teorias ra-
questão sobre o que era ser brasileiro ciais produzidas na Europa e a compre-
não podia mais negligenciar a herança ensão, então corrente, sobre uma supos-
étnica, isso se pudéssemos dizer ter sido ta inferioridade racial dos negros.
possível negligenciar isso antes. No caso brasileiro, o discurso
O fato é que a Abolição impôs sobre identidade nacional possui ainda
uma redefinição das relações entre uma dimensão escondida, a dimensão de
brancos e negros, e todas as discussões gênero. A teoria de superioridade racial
em torno do futuro da nação no que diz sozinha não explica como esse discurso
respeito aos seus aspectos sociais, eco- operou, buscando na subordinação fe-
nômicos e políticos incluíam essa rela- minina seu elemento complementar. A
ção como ponto de partida. O discurso expressiva massa de população mestiça
sobre a necessidade de empreender uma foi construída na relação subordinada
política imigratória de massa demonstra das mulheres escravas com os seus se-
isso com bastante precisão. Essa políti- nhores. Após a Abolição, especialmente
Foto: Filipe (Jean Lucas)

Lélia González, militante amefricana e antropóloga. Reunião de fundação do Movimento Negro Unificado, Salvador, 1978.
Falecidas em 1994, Lélia González e Beatriz Nascimento – historiadora e militante do Movimento Negro –, simbolizam o
legado de valentia na luta da mulher afro-brasileira.
Raça, classe e identidade nacional
Sueli Carneiro

entre machos portugueses (leia-se a raça que hoje habitam as franjas vulneráveis
forte branca, para o discurso) e mulhe- do sistema de produção e da cidadania
res negras e indígenas. No auge da imi- fragmentada?
gração europeia e masculina, a literatura Mas, a despeito de todas as estra-
nacional não deixou de fora a alusão ao tégias racistas de eliminação da mancha
potencial de aclimatação das mulheres negra presente neste país, o imaginário
de ascendência africana em relação a es- social assimilou a versão romântica das
ses recém-chegados aos trópicos. relações raciais no Brasil.
Na redefinição sobre o lugar da Então, como diria Nelson do Val-
população negra após a Abolição, temos le Silva: “Era uma vez um país chama-
nesse período, final do século passado do Brasil, que era conhecido como um
e início deste, um momentum único de paraíso racial.” A partir dessa visão da
análise e, consequentemente, visão so- democracia racial, desenvolveu-se no
bre o que temos a administrar hoje. O Brasil uma forma sofisticada, perversa
Brasil republicano, cioso de sua inser- e competente de racismo, por meio da
ção na ordem capitalista, vinculado ao qual a intolerância racial se mascarou
pensamento europeu e a teorias racistas, em igualdade de direitos no plano legal
alimentava uma perspectiva em que a e na absoluta desigualdade de oportuni-
política de imigração se tornava central dades no plano das relações sociais con-
ao desejo da elite em recuperar seu pas- cretas. Está instituída na nossa cultura
sado europeu. política a eliminação da dimensão racial
São esses aspectos históricos que das nossas contradições sociais, políti-
tornam tão curioso o fato de estarmos cas e econômicas, até porque a história
aqui exercitando a possibilidade de ver brasileira é também marcada pelo temor
o Brasil de uma outra maneira. Vê-lo do potencial explosivo dessa questão.
comparativamente e a partir de nossa Tem-se buscado, historicamente,
perspectiva responsabilizar apenas a dimensão so-
Qual o significado de identidade cial dos nossos problemas, escamotean-
nacional para nós, negros brasileiros? do-se a íntima relação entre raça/etnia
A três anos do final do século, em um e exclusão social em nossa sociedade.
momento de transformações velozes, o E, diga-se de passagem, com absolu-
que existe de comum ou diferente em to sucesso e a colaboração de impor-
relação àquele período? Se a nós foi im- tantes expoentes negros, intelectuais e
posta a impossibilidade de definir um políticos, inclusive alguns considera-
lugar possível e de desenvolvimento dos progressistas. De modo geral, vale
naquele momento, que podemos e de- dizer que a forma com que o conceito
vemos sugerir hoje? Se naquele período de classe social vem sendo utilizado
de reordenamento político e econômico pela ciência e por cientistas políticos no
parecia não haver espaço para os ex- Brasil tem contribuído para neutralizar a
-escravos, qual o caminho possível aos problemática racial.
THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

No entanto, “segundo os dados Em diferentes oportunidades,


do Relatório de Desenvolvimento Hu- esse desprezo é manifestado por homens
mano no Brasil, de 96 (base de dados públicos. Alguém se lembra do discurso
de 94), 35,2% dos pretos e 33,6% dos de posse do presidente do Sebrae, Pio
pardos são analfabetos, contra 15% dos Guerra Júnior, que a propósito de ilus-
brancos. A expectativa de vida para o to- trar a desfiguração que projetos de lei
tal da população brasileira é de 65 anos. sofrem no Congresso, disse que “entra
Entre a população negra ou de origem uma coisa assim tipo Marylin Monroe
negra, a expectativa de vida cai para 59 e sai algo mais para Benedita da Silva.”
anos. Estudo realizado por dois asses- Pio Guerra Júnior é o homem res-
sores da FASE (Federação de Órgãos ponsável por uma instituição suposta-
para Assistência Social e Educacional), mente voltada para viabilizar pequenos
Wânia Sant’ Anna e Marcelo Paixão, re- e médios empresários, pessoas que esta-
vela que o IDH da população brasileira riam mais para Benedita da Silva. Com
corresponde à posição 63 no ranking esse tipo de opinião se pode ter uma
mundial. Esses mesmos cálculos, apli- ideia das chances que microempresários
cados somente à população afrodescen- negros, especialmente mulheres negras,
dente, fazem com que a posição brasi- teriam de conseguir apoio desse cidadão
leira caia para a posição 116. Abaixo da para os seus negócios.
média nacional e da média de todos os
países sul-americanos, ou seja, o Bra- Nem mesmo Pelé, o garoto-pro-
sil ocupa uma posição entre os países paganda oficial da democracia racial
considerados pela ONU como de bai- brasileira, está imune. Disse, a propósi-
xo desenvolvimento humano.” Estudos to dele, o ministro dos Transportes, Eli-
dessa natureza demonstram a magnitu- seu Padilha: “Existem dois pretos que
de da desigualdade racial, que alguns de são admirados por todo o Brasil. Um é
nossos políticos e intelectuais preferem o Pelé, que é o nosso rei de sempre. O
chamar de “apartheid social”. outro é o rei asfalto, todo mundo gos-
ta do asfalto. É o preto que todo mundo
Porém, para além das intenções
gosta.”
escamoteadoras, o descaso social, a au-
sência de políticas públicas específicas O Geledés/SOS Racismo reagiu
para reverter esse quadro de desigual- a essa frase do ministro com a seguinte
dade estão diretamente ligados ao des- nota de repúdio:
prezo que, historicamente, este lado do Que comparação possível pode
Brasil provoca em nossa sociedade. Há haver entre Pelé, um homem negro, o
a ideia subjacente de que estamos tra- maior atleta do século, e o asfalto? A
tando de populações descartáveis, que cor? Nem Pelé é preto, nem o asfalto
nada aportam ao país, a não ser revelar a é negro; nem Pelé é coisa, nem asfalto
face escura, subdesenvolvida e primiti- é gente. O que autoriza alguém a com-
va de uma nação que sempre se desejou parar gente a coisa é a desumanização
branca e ocidental. e a coisificação de seres humanos que
Raça, classe e identidade nacional
Sueli Carneiro

o racismo e a discriminação produzem. sa pautar o problema racial na agenda


Para o ministro Eliseu Padilha, Pelé não nacional.
é comparável a nenhum outro ser de sua Primeiro, no Brasil, é mérito do
raça porque é considerado uma exceção Movimento Negro contemporâneo ter
dentro dela, já que é o único admirável. posto abaixo a falácia de que vivemos
E também não pode ser comparado aos sob uma “democracia racial”. O comba-
melhores de outras raças porque todos os te ao racismo tem sido mola propulsora
seus talentos ainda não lhe garantiram o para o nascimento de inúmeras organi-
status de detentor de plena humanidade. zações negras.
Por isso, ele só seria comparável a um •  Já  no  início  do  processo  de  redemo-
derivado do petróleo, uma das poucas cratização do país, as organizações
coisas pretas valorizadas no mundo. negras conseguiram pautar a temática
Essas são as honras reservadas a racial na agenda dos partidos políti-
um rei negro no Brasil. cos; disso resultou a criação de órgãos
Para os demais negros, e instâncias no âmbito governamental
como Jorge Paulo, 48 anos, quei- destinadas à formulação de políticas
mado enquanto dormia na Cine- públicas de promoção das popula-
lândia, resta o extermínio. Talvez ções negras. Em 1982, por exem-
como forma de punição por não plo, é criado o primeiro Conselho de
ter conseguido ser Pelé nem as- Participação e Desenvolvimento da
falto. Talvez pela expectativa de Comunidade Negra – seguindo-se a
que, como uma fênix, de suas cin- ele outras experiências semelhantes
zas misturadas ao asfalto resulte em níveis estadual e municipal. No
mais um “ser” que possa ser “ad- âmbito federal, é criada em 1988, no
mirado” pelo Brasil como Pelé... Centenário da Abolição, a Fundação
Cultural Palmares.
Dimensões perversas e assusta-
doras do racismo no Brasil: a coisifica- •  Em virtude das mobilizações em tor-
ção/desumanização, a eliminação física no da nova Constituição, promulgada
em 1988, a prática do racismo tornou-
pura e simples.
se crime inafiançável e imprescritível
Apesar de fatos como esse se re- e ganhou regulamentação através
petirem quotidianamente em nossa so- da Lei Federal Especial nº 7.716, de
ciedade, eles ainda dividem a opinião 1989, do deputado negro Carlos Al-
pública brasileira no que diz respeito à berto Caó – lei conhecida como Lei
identificação do racismo nessas práticas. Cáo. Esta tipifica, com rigor, algu-
É nesse contexto que se trava mas condutas discriminatórias de
a luta contra o racismo, que no Brasil base racial, embora os artigos mais
tem consistido fundamentalmente na importantes do projeto do deputado
desmistificação da “democracia racial” Cáo, especialmente aqueles relativos
como condição básica para que se pos- à discriminação no mercado de traba-
THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

lho, tenham sido vetados pelo então •  Em  relaç o  ao  combate    discrimi-
presidente José Sarney. nação no mercado de trabalho, duas
•  pesar dos vetos   inscriç o do antir- importantes iniciativas. Uma, do Mi-
racismo na Constituição, a Lei Caó nistério da Justiça, visa a sensibiliza-
foi saudada pela militância negra ção da máquina governamental para a
como uma vitória política, identifi- adoção de propostas de promoção da
cando-se nessas conquistas legais a igualdade: – o Seminário Internacio-
possibilidade de enfrentamento do nal Multiculturalismo e Racismo: O
problema racial do ponto de vista Papel da Ação Afirmativa nos Esta-
jurídico. Tanto é que os serviços de dos Democráticos Contemporâneos,
assistência legal para casos de racis- em julho de 96, cuja abertura contou
mo e discriminação racial se multipli- com a presença do presidente Fer-
cam pelo país, fomentando inclusive nando Henrique Cardoso. E outra, do
a proposta de criação de uma rede Ministério do Trabalho: o Seminá-
de SOSs Racismo. E, mais além do rio Nacional Tripartite Promoção da
âmbito da organização e fruto da sua Igualdade no Emprego – Implemen-
pressão, inicia-se o estabelecimento/ tação da Convenção nº 111 da OIT,
criação de Delegacias de Crimes Ra- ocorrido de 16 a 18 de julho de 97.
ciais. •  o  ue  diz  respeito    política  de  di-
•  o  tricentenário  da  morte  do  líder  reitos humanos, os movimentos ne-
negro Zumbi dos Palmares, 20 de gros garantiram a introdução de dois
Novembro de 1995, o Movimento pontos relativos à questão racial no
Negro realizou em Brasília a Marcha Programa Nacional de Direitos Hu-
Zumbi dos Palmares pela Cidadania manos, lançado em 13 de maio de 96.
e a Vida. Sua comissão executiva, Concomitantemente a todo
recebida pelo precial”. Nessa mesma esse processo, destaca-se a orga-
oportunidade, o presidente assinou o nização das mulheres negras con-
decreto de criação do Grupo de Tra- tra a opressão de gênero e raça.
balho Interministerial para a Valori- Essa luta vem desenhando novos
zação da População Negra. contornos para a ação política fe-
•  ara  um  país  ue  construiu  a  mais  minista e antirracista, enriquecen-
bem-sucedida fábula de relações ra- do a discussão tanto da questão
ciais harmônicas, consagrando inter- racial, como também da questão
nacionalmente o mito da “democra- de gênero na sociedade brasileira.
cia racial”, é significativo o que vem Esse olhar feminista e antirracis-
sendo promovido em nível federal em ta, ao integrar em si tanto a tradição do
ternos de reconhecimento da proble- Movimento Negro quanto a do Movi-
mática racial, ainda que, na maioria mento de Mulheres, afirma essa nova
das vezes, não ultrapasse os gestos identidade política decorrente da condi-
simbólicos. ção específica do ser mulher e negra. O
Foto: Carlos Moura / CB PRESS

Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania e a Vida, 1995 – Brasília


Raça, classe e identidade nacional
Sueli Carneiro 1

atua1 Movimento de Mulheres Negras, tiça, e a aprovação de um projeto de


ao trazer para a cena política as contra- monitoramento do recorte racial em
dições resultantes das variáveis raça, todas as políticas públicas de promo-
classe e gênero, promove a síntese das ção das mulheres definidas pela IV
bandeiras de luta historicamente levan- Conferência da Mulher e encaminha-
tadas pelo Movimento Negro e pelo das pelo Conselho.
Movimento Feminista. Enegrecendo, de No entanto todas essas estra-
um lado, as reivindicações das mulhe- tégias políticas desencadeadas pelos
res, tornando-as portanto mais represen- movimentos negros do Brasil não têm
tativas do conjunto das mulheres brasi- sido suficientes para dar plena visibi-
leiras; e, por outro lado, promovendo a lidade ao problema racial brasileiro,
feminização das propostas e reivindica- para alavancar processos de desen-
ções do Movimento Negro. volvimento da comunidade negra na
O Brasil foi o principal negocia- dimensão de suas necessidades con-
dor para que se garantisse, no texto da cretas. Na maioria dos casos, até o
Plataforma de Ação de Beijing, a pre- presente momento, as conquistas pos-
sença dos termos raça e etnia. Isso como suem um sentido simbólico. O desafio
resposta ao caráter inegociável, para as é transformá-las em reais instrumen-
organizações de mulheres negras brasi- tos de mudança das condições de vida
leiras, de que fosse claramente explici- da população negra.
tada a origem étnica e racial em todos Esta iniciativa, coordenada pela
os fatores de desigualdade entre as mu- Dra. Lynn W. Huntley, abre novas pers-
lheres. pectivas para o enfrentamento desses
A firmeza da posição brasileira desafios.
garantiu também que, no artigo 32 da Brasil, Estados Unidos e África
Declaração da Conferência, se afirmas- do Sul têm importância fundamental no
se “a necessidade de intensificar esfor- contexto da regionalização econômica
ços para garantir o desfrute em condi- em curso e enfrentam um conjunto de
ções de igualdade de todos os direitos problemas comuns, do ponto de vista
humanos e liberdades fundamentais a das relações raciais, que determinam a
todas as mulheres e meninas que enfren- realização desta iniciativa.
tam múltiplas barreiras à expansão de Esses países, juntos, podem de-
seu papel e seu avanço devido a fatores senvolver instrumentos teóricos e de
como raça, idade, origem étnica, cultu- ação política capazes de alavancar pro-
ra, religião ( ...)”. cessos de desenvolvimento e enfrenta-
O resultado disso em nível na- mento dos problemas comuns colocados
cional é a inclusão da temática racial para as populações negras no próximo
no Plano de Igualdades elaborado pelo milênio.
Conselho Nacional dos Direitos da Creio que, do ponto de vista das
Mulher, órgão do Ministério da Jus- necessidades e interesses dos movi-
THOTH 2/ agosto de 1997
Depoimentos

mentos negros desses três países, es- delo gerado pelo movimento de di-
tudos comparativos como os que agora reitos civis; e os sul-africanos têm a
realizamos sobre Brasil, Estados Uni- missão e o desafio de superar uma
dos e África do Sul devem contribuir sociedade racial e etnicamente divi-
para o aprofundamento das seguintes dida.
questões: 4. O papel que os negros de cada um
1. O processo político de encaminha- destes países podem cumprir num
mento da questão racial nos nossos processo de desenvolvimento da
países. Exemplos: o movimento de consciência e da organização na
direitos civis nos Estados Unidos; a África e na diáspora. Ou seja, que
luta contra o apartheid na África do aportes a esse processo podem ser
Sul; a desmistificação da “democra- dados pelos afro-americanos, que
cia racial” no Brasil. são os que experimentaram maior
2. A necessidade de organização polí- grau de desenvolvimento político,
tica global e regional para o enfren- econômico e social. E os sul-afri-
tamento das contradições colocadas canos, tendo resgatado o poder e
nesta nova etapa do desenvolvi- derrotado o apartheid no país mais
mento capitalista, o neoliberalis- importante, economicamente, da
mo, bem como o enfrentamento África Austral. Os afro-brasileiros,
das novas contradições que estão a maior população negra fora da
colocadas: o crescimento do pro- África e o maior patrimônio cultural
cesso de feminização da pobreza; negro-africano da diáspora.
a ampliação dos níveis de exclusão 5. Sendo Brasil, Estados Unidos e Áfri-
social; o desemprego estrutural; a ca do Sul sociedades multirraciais,
flexibilização do mercado de traba- com absoluta hegemonia dos bran-
lho; a xenofobia, entre outros pro- cos, e sendo o racismo, nesse con-
blemas. E mensurar o impacto des- texto, um instrumento de manuten-
sas questões sobre as populações ção de privilégios, em que bases se
negras dos três países. pode dar um pacto entre negros e
3. Os estágios diferentes em que o com- brancos para a superação das desi-
bate ao racismo se encontra nos três gualdades raciais?
países e as prioridades políticas co- A análise crítica desses pontos
locadas para cada um deles. Os afro- deve apontar caminhos de intervenção
brasileiros têm o desafio de criar política que permitam a construção de
organizações e representações polí- uma poderosa frente antirracista capaz
ticas fortes que possam representar de defender os afrodescendentes das
e defender os seus interesses coleti- práticas de racismo, exclusão e xenofo-
vos; os afro-americanos vivem, tal- bia em todo o mundo.
vez, um momento de esgotamento A importância que cada um des-
de uma perspectiva política, o mo- ses países tem em suas regiões e no con-
Raça, classe e identidade nacional
Sueli Carneiro

texto internacional pode ser colocada que diz respeito ao povo africano e sua
a serviço de um processo de promoção diáspora.
dos negros em toda parte. Muito obrigado.
Do que Brasil, África do Sul e
Estados Unidos forem capazes de fazer * Sueli Carneiro é advogada e militante
depende o futuro das relações raciais, no afro-brasileira, fundadora e líder do Ge-
ledés. organizaçào de mulheres negras de
São Paulo.
Este ensaio, um dos textos básicos do
curso de extensão universitária Cons-
cientização da Cultura Afro-brasileira,
realizado pelo Ipeafro, de 1984 a 1995,
Introdução às na PVC-SP e na VERJ, foi publicado
antigas civilizações como capítulo do livro Sankofa: matri-
zes africanas da cultura brasileira (Rio
africanas de Janeiro: Ed. CIERJ, 1997).

Talvez a área em que mais se ma-


nifeste a tendenciosidade eurocentrista
do academicismo convencional seja a
dos estudos da civilização humana e de
sua história, ambas atribuídas, até muito
recentemente, quase exclusivamente aos
povos europeus. A ideia de uma civili-
zação africana anterior à europeia soava
entre o ridículo e o absurdo:
era preciso ter grande coragem,
como cientista, para levar a sério a
ideia de que a África pudesse ser o
nascedouro da humanidade.
Elisa Larkin Nascimento
Para ser considerado merecedor
de crédito, para ser levado a sério,
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

precisava-se ter cuidado para não África, berço da humanidade


se aliar a tal opinião. Se um afri-
cano advogasse semelhante tese, Os trabalhos da famosa família
seria interpretado unicamente Leakey localizaram na região do lago
como afirmação absurda e resul- Rudolph, no Quênia, o primeiro ances-
tado de um complexo psicológico tral do ser humano, o Australopithecus
criado pela colonização. afarensis. O esqueleto, de uma mulher
O autor dessas palavras é o sábio africana, encontrado em 1972 por Ri-
e cientista senegalês (químico, físico, chard Leakey e popularmente chamado
antropológo, arqueólogo e historiador) de “Lucy”, datava de 5 a 3,5 milhões de
Cheikh Anta Diop, fundador e primeiro anos atrás. A próxima espécie na nossa
diretor do Laboratório de Radiocarbo- evolução é o Homo erectus ou Homo
no do Instituto Fundamental da África habilis. achado por Mary Leakey na
Negra (IFAN), da Universidade de Da- garganta de Olduvai, na Tanzânia, em
car, Senegal. Diop abalou seriamente 1961. Esse hominóide data de 1.800.000
os círculos científicos europeus quando a 100 mil anos atrás, e já tinha uma cul-
publicou suas teses (1955, 1959, 1963). tura lítica com ferramentas rudes, como
Desafiando os conceitos e interpretações o machado de pedra. Foi ele que pri-
básicos do academicismo eurocentrista, meiro saiu da África, espalhando-se até
Diop fundamentava-se em rigorosa pes- a Europa e a Ásia, para onde levou sua
quisa científica dentro dos padrões me- tecnologia primária.
todológicos desse mesmo academicis- O primeiro uso do fogo tem sido
mo e produziu uma obra que o mundo atribuído ao chamado Homem de Pe-
acadêmico não podia ignorar, demons- quim, da caverna de Chonkontien, 500
trando a origem africana da humanidade mil anos atrás. Em 1982, porém, foram
e da própria civilização ocidental. descobertos em Chesowanja, no Quênia,
Vários autores vêm comprovan- os restos de um fogo doméstico feito por
do e ampliando as teses que Diop de- africanos há 1,4 milhão de anos (Diop,
senvolveu, e pesquisas mais recentes as 1985: 25).
vêm reforçando com dados novos (Van Do Homo sapiens, comumente
Sertima, 1983, 1985; Bernal, 1987). No rotulado de neandertal, se supunha que
presente ensaio, pretendemos apenas se originasse na Europa, onde foram
oferecer uma introdução aos fatos e ver- encontrados restos datando de 80 mil
dades levantados por esses pesquisado- anos. Entretanto existe um espécimen
res e pensadores. Dividimos o texto em na Zâmbia, o Homem do Morro Que-
três panes: 1) África, berço da humani- brado, com 110 mil anos, e em 1984
dade; 2) África, berço da civilização; 3) descobriu-se outro neandertal no Egito.
O Egito africano: fonte da civilização Ponanto, há duas provas da existência
ocidental. anterior desse hominóide na África.
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento

O Homo sapiens sapiens é o ho- Tudo indica que o cromagnon


mem moderno como nós o conhecemos evoluiu do Grimaldi durante um pe-
– mas não o branco europeu. Ele teve ríodo de 20 mil anos em que a Europa
origem também na África, 130 mil anos esteve coberta de gelo. O organismo
atrás, conhecida por meio do crânio humano produz a vitamina D por meio
Omo I, descoberto por Richard Leakey de fotossíntese, ou seja, a absorção dos
no Quênia. Fisicamente, ele se parece raios de sol. Nos africanos, a melanina
como o povo twa (pigmeu) ou san (ho- (pigmento da pele) protege o corpo dos
tentote), ou seja: negro, pequeno, com raios intensos do sol. Entretanto, num
as feições bem africanas. E é esse Homo ambiente glacial, ela constitui um im-
sapiens sapiens africano que primeiro pedimento à absorção da luz necessária
se encontra povoando a Europa, mais para a fotossíntese da vitamina D. A mu-
de 40 mil anos atrás. A existência desse tação genética que elimina a melanina,
homem, denominado Grimaldi, sempre resultando no indivíduo albino, sempre
criou um grande dilema para a ciência existiu na África. Durante esse proces-
europeia, pois ele é o responsável pela so de evolução na Europa, o albinismo
primeira indústria conhecida na Europa, teria prevalecido devido às condições
a aurignaciana. Várias teorias foram climáticas, resultando na evolução do
elaboradas para atribuir essa indústria homem cromagnon. Evidentemente, a
a uma espécie humana supostamente cor dos olhos teria c1areado também em
anterior e branca. Hoje, essas teorias função da menor intensidade do sol no
estão afastadas. Não há outro Homo sa- novo meio ambiente (Finch, The evolu-
piens sapiens que possa ter antecedido tion of the Caucasoid, in Van Sertima,
o Grimaldi na Europa ou na Ásia (Diop, 1985, 17-22).
1975). Outro fato que demonstra a ori-
O primeiro homem branco apa- gem africana do Homo sapiens sapiens
rece na Europa no intervalo do período é a anterioridade da sua arte. Existem
glacial Wurrn, há 20 mil anos. Denomi- esculturas, descobertas por Richard
nado cromagnon, é esse que a história Leakey na Tanzânia, datadas de 35 mil
convencional apresenta como o primei- anos, ou duas vezes mais antigas do que
ro europeu. Aí surge outro problema, a famosa pintura de Ascaux, na Fran-
ainda mais grave para a o academicismo ça Essa arte é sempre produzida pelo
eurocentrista. Como poderia o cromag- Homo sapiens sapiens.
non ser nativo da Europa se o único an- Mais recentemente, os geneti-
cestral possível era o Grimaldi? Então, cistas vêm confirmando esses achados
atribuíram-lhe diversas origens exóge- arqueológicos. Pelo rastreamento de
nas, inclusive a palestina. O necessário polimorfismos no DNA mitocondrial de
era eliminar de vez a hipótese de que o mulheres de ascendência africana, asiá-
Grimaldi, africano por excelência, fosse tica, europeia e do Oriente Médio, Allan
o ancestral primordial do povo europeu. Wilson e sua equipe da Universidade
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

À esquerda, a Vênus ou Vênus Aurignaciana, uma estatueta esculpida em tempos pré-históricos. À direita, uma mulher afri-
cana (bosquímana, hotentote ou twa), que poderia ter sido o modelo perfeito para o artista. Encontradas na Itália, na França,
na Europa Central, na Rússia e até na Sibéria, essas estatuetas estão entre as mais antigas obras de escultura criadas pelo
ser humano. Fotos reproduzidas do livro The African presence in early Europe, organizado por Ivan van Sertima (1985:26).
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento 1

de Califórnia em Berkeley concluíram, aquele complexo de elementos


a partir do padrão dessas variações ge- culturais que primeiro aparece-
nealógicas, que a antepassada comum à ram na história humana entre oito
humanidade teria sido uma mulher afri- mil e seis mil anos atrás. Nessa
cana, subsaariana, que batizaram como época, baseada na agricultura, na
“Eva, mãe de todos nós”. criação de gado e na metalurgia,
Confonne relata o jornalista José começou a aparecer a especiali-
Reis, em reportagem especial para a Fo- zação ocupacional extensiva nos
lha de S.Paulo (seção “Periscópio”, 6 de vales dos rios do Sudoeste Asiá-
fevereiro de 1994), “a descoberta dessa tico (Tigre e Eufrates). Apareceu
Eva africana despertou noutros cientis- lá também a escrita, bem como
tas o desejo de encontrar Adão, tarefa agregações urbanas bastante den-
bem mais difícil ( ...)” sas que acomodavam administra-
Um dos primeiros especialistas a dores, comerciantes e outros es-
tentar o rastreamento genético de Adão pecialistas.
foi Gérard Lucotte, do Collège de Fran- Entretanto, está cada vez mais
ce, em Paris. Chegou à conclusão, muito comprovada a anterioridade da evolu-
combatida, de que Adão teria sido um ção no Continente Africano dos elemen-
pigmeu que habitava certa região da tos citados (agricultura, criação de gado,
atual República Africana Central, num metalurgia, especialização ocupacional)
triângulo formado pelos rios Cubangui, que convergem no desenvolvimento da
Sanga e Lobaye. A idade a ele atribuída civilização. Além de dar à luz a huma-
foi de duzentos mil anos. nidade, a África foi também o palco da
Podemos concluir, com Cheikh primeira revolução tecnológica de sua
Anta Diop, que “desde há cinco milhões história. a passagem da existência como
de anos até o fim do período glacial, há caçador e coletor de frutos silvestres
dez mil anos, a África quase unilateral- para a prática da agricultura. Em 1979, o
mente povoou e influenciou o resto do Dr. Fred Wendorf e sua equipe compro-
mundo” (1985: 27). varam a prática da agricultura no vale
do rio Nilo 17.500 ou 18 mil anos atrás,
ou seja, mais de duas vezes mais antiga
África, berço da civilização do que na região do Sudoeste Asiático
(Van Sertima, 1983: 58-64). Na região
Desde a própria definição da do Saara, antes de virar deserto, os afri-
palavra, os conceitos tradicionais de canos cultivavam, há sete mil anos, vá-
civi1ização tendem a excluir a África rios grãos e legumes. De acordo com o
de sua origem. Segundo uma definição Dr. Peter Murdock, cultivavam mais de
padrão (New Columbia Encyclopedia, 25 espécies no vale do rio Níger àquela
1975: 565), a civi1ização seria época (Van Sertima, 1983: 21).
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

A criação de gado, outro traço de- presenta o estágio mais “avançado” do


finidor do nascimento da civilização, tam- desenvolvimento humano, o único em
bém aparece na África, em Lukenya Hill, que o “progresso” leva a uma vida de
a mais ou menos 50 quilômetros de Nai- qualidade cada vez mais superior. As
róbi, 15 mil anos atrás. A conclusão do Dr. culturas dos povos dominados são re-
Charles Nelson, cuja equipe comprovou tratadas como “arcaicas”, “primitivas” e
esse fato em 1980, é de que a sociedade “estáticas”, nada contribuindo ao “pro-
responsável por essa domesticação de ani- gresso” humano. Enquanto os índios
mais tinha elevado grau de sofisticação, americanos ganharam a imagem do bom
e que de lá ela poderia muito bem ter se selvagem, e os asiáticos a fama do an-
espalhado até os vales dos rios Tigre e Eu- tigo saber já morto, nenhuma cultura é
frates (Van Sertima, 1983:20). considerada mais “primitiva” ou “arcai-
Em relação à escrita, a África ca” do que a africana.
testemunhou, nas regiões do Saara e do Qual não foi a surpresa, então,
Sudão, a criação dos sistemas de escrita quando no século XVIII, decifrada a fa-
dos akan e dos manding (que antecede- mosa pedra de Rosetta1, se comprovou
ram por milênios o povo mandinga, da que praticamente todo o conhecimento
época medieval). Também está prova- científico, religioso e filosófico da Gré-
do, a partir de pesquisas realizadas num cia antiga teve origem no Egito, ou seja,
local chamado Qustul, que as escritas na própria África. Nas palavras do con-
egípcia e meroítica originaram-se no de Constantino Volney, membro da Aca-
Sudão (Van Sertima, 1983:24). demia Francesa (1787: 74-7),
Lembrei-me da notável passagem
em que diz Heródoto: “E quanto
O Egito africano: fonte da civilização a mim, julgo serem os colchia-
ocidental nos uma colônia dos egípcios
porque, iguais a estes, são negros
Quando falamos em civilização de cabelo lanudo.” Em outras pa-
ocidental, geralmente nos referimos à lavras, os egípcios antigos eram
cultura de origem greco-romana e euro- verdadeiros negros do mesmo
peia, imposta violentamente pelo colo- tipo que todos os nativos africa-
nialismo aos povos dominados do mun- nos. (...) Pensem só que essa raça
do. A suposta superioridade da cultura de negros, hoje nossos escravos e
ocidental é um conceito internalizado objeto de nosso desprezo, é a pró-
pelos próprios colonizados, sobretudo pria raça a quem devemos nossas
as elites dominantes nacionais. Dentro artes, ciências e até mesmo o uso
dessa visão, a civilização ocidental re- da palavra!

1 Inscrita com hieróglifos e outras línguas antigas conhecidas, a pedra Rose foi a chave do conhecimento dos antigos textos
egípcios.
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento

De fato, a cultura e a ciência egíp- camento dos textos antigos destituiu o


cias foram as primeiras pedras funda- Egito de suas fontes primárias.
mentais de toda a civilização ocidental. A Europa colonialista, que fun-
A astronomia egípcia era tão avançada damentava a justificativa ética da es-
que desde 4.240 anos antes de Cristo ela cravidão na inferioridade congênita dos
foi responsável pelo desenvolvimento africanos, não poderia deixar transpare-
de um calendário mais exato que o nos- cer essas verdades. Criou-se, então, toda
so. Na arquitetura, engenharia e mate- uma disciplina científica, a egitologia,
mática, as pirâmides ainda comprovam a voltada à tarefa de destituir o Egito do
alta tecnologia africana de três mil anos crédito pelas suas realizações. Lançou-
atrás. Os papiros de Ahmes e de Mos- -se mão de vários recursos para fazê-
cou mostram o desenvolvimento da ma- -lo, inclusive o de simplesmente retra-
temática abstrata desde 13 séculos antes tar o Egito como um país branco. Na
de Euclides. O verdadeiro fundador da ideia popular, até hoje prevalece essa
medicina foi Athothis, fIlho de Menés, imagem, vivida por Claudette Colbert
primeiro faraó do Egito unificado, que e Elizabeth Taylor no cinema america-
praticava por volta de 3.200 a.C., ou no. Lançou-se também a teoria de que
então o sábio Imhotep, que em torno de as populações negras do Egito tenham
2.980 a.C. realizava famosas pesquisas sido conquistadas, e até escravizadas,
médicas. Os papiros Smith (1.650 a.C.) por povos arianos, semitas ou asiáticos
e Ebers (2.600 a.C.) registram o legado que lhes teriam ensinado a civilização.
desses médicos africanos, mostrando Chegou-se até a inventar uma suposta
seu conhecimento profundo de quase “raça vermelho-escura”, um gênero hu-
todas as áreas da medicina moderna. Os mano todo diferente que teria surgido
sistemas teológicos e filosófIcos gregos no Egito, para não dizer que lá viviam
também se originaram no Egito, onde negros africanos.
vários escritores gregos, como Sócrates, Cheikh Anta Diop analisa em
Platão, Thales, Anaxágoras, e Aristóte- profundidade e refuta todas essas teo-
les, estudaram com sábios africanos. rias, concluindo (l974:234):
George G. M. James (1954) do- Já que o Egito é um pais negro,
cumenta o fato de que, na verdade, gran- com uma civilização criada por
de parte desse conhecimento foi levado negros, qualquer tese que tentas-
para a Grécia por meio de processos de- se provar o contrário careceria de
sonestos ou violentos. Os escritores gre- futuro. Os protagonistas de tais
gos, em vários casos, se apresentavam teorias não desconheciam esse
como autores de conceitos ou teorias fato. Assim, seria mais seguro e
que eles haviam aprendido com mes- mais sábio destituir o Egito, de
tres africanos. O saque da biblioteca de modo simples e muito discre-
Alexandria foi um episódio central nes- to, de todas as suas criações, em
se processo, pois a destruição ou deslo- favor de uma nação realmente
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Desenho, em escala, da curva cuja definição está indicada no diagrama antigo abaixo.

Diagrama de um arquiteto egípcio, provavelmente da terceira dinastia. Este desenho estabelece o uso de coordenadas re-
tangulares para desenhar uma curva. Os egípcios trabalhavam com ângulos a uma precisão de 0,07° Fonte: Van Serthima,
1983:77.
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento

A esfinge, como a encontrou a missão científica francesa


no século XIX. O tipo fisionômico não parece nem grego Figura proto-histórica do Senhor Tera Neter, do povo
nem semítico, mas banto. Tudo indica que o modelo foi negro Anu, símbolo dos primeiros habitantes do Egito.
o faraó Cefren, da IV dinastia (2.600 a.C.), construtor da Fonte: Diop, 1976:12.
segunda pirâmide de Gizé. Fonte: Diop, 1974:ii.

Narmer, ou Menés, soberano responsável pela unificação Tutamés III, fundador da XVIII dinastia e responsável
do Egito (3.200 a.C.) e seu primeiro faraó. Foto reproduzi- pela expansão territorial do Egito, conhecido como o
da de Diop, 1974:13. “Napoleão da Antiguidade”. Fonte: Diop, 1974:20.
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Sankofa: Memória e Resgate

Acima, o faraó Ramsés II (XIXª dinastia). Abaixo, um tutsi moderno. A cabeleira tutsi é viável apenas em cabelos tipica-
mente africanos. Os pequenos círculos na imagem do faraó representam o cabelo em encarapinhado. Fonte: Diop, 1974: 19
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento

branca (a Grécia). Essa falsa atri- analisado quinze anos depois, revelando
buição à Grécia dos valores de na Núbia a existência de um reino cha-
um Egito chamado branco revela mado Ta-Seti. Antecedendo por treze
uma profunda contradição, que gerações a unificação do Egito em 3.200
não é a menos importante prova a.C., essa cultura já trazia na sua cerâmi-
da origem negra do Egito. ca as imagens de Osíris, Ísis e Hórus, as
Não nos cabe no presente texto marcas simbólicas da filosofia religio-
apresentar as provas da origem africana sa e da estrutura de Estado do Egito. O
da civilização egípcia. Entretanto, me- povo desse reino chamava-se Anu-Seti,
recem registro alguns aspectos. Há, por o que significa “povo negro do reino
exemplo, o testemunho dos escritores Seti” (Williams, ‘’The lost pharaohs of
antigos, como o já citado Heródoto, “Pai Nubia”, in Van Sertima, 1985 a: 29-43).
da História”. que repetiu muitas vezes a Como veremos adiante, o vocábulo anu
observação. Diodorus Siculus e vários adquire uma importância central no pro-
outros historiadores gregos e romanos cesso das civilizações africanas no mun-
confirmam esse testemunho. Na Bíblia, do antigo. Com efeito, não é coincidên-
o Egito aparece como o povo de Ham, cia o anu ser um pássaro preto.
negro e irmão de Cush, o etíope. A descoberta do reino de Ta-Seti
Talvez mais importante seja a confirmava a pista assinalada por Cheikh
própria autodefinição dos egípcios: na Anta Diop desde a década dos 50. A par-
sua língua, se denominavam Kmt ou tir de estudos da escrita meroítica, esses
Kemet, o que quer dizer “cidade negra” são as obras de Edward Wilmot Blyden
ou “comunidade negra”. Na escultura, (Lynch 1967), Martin R. Delany e W.E.B.
os egípicios se retratavam claramente DuBois. Mais recentemente, Chancellor
como africanos. A esfinge, os faraós e Williams, Ivan van Sertima, Yusef Ben-
suas rainhas, além das pessoas comuns, -Jochannen, Molefi K. Asante, Maulana
emergem na arte egípcia retratados Karenga, Jacob Carruthers e outros es-
como africanos clássicos. tudiosos vêm contribuindo ao enriqueci-
Em 1977, surgiu a evidência ar- mento dessa linha de pesquisa.
queológica que confirmou de uma vez Mais uma vez, vamos verificar
por todas a falsidade das teorias euro- historicamente que a afirmação da an-
peias negadoras da origem africana da terioridade da civilização africana re-
civilização egípcia. Nas escavações que sultante desses estudos não contradiz
se realizaram em 1962, para preservar os conceitos que os próprios antigos
os dados arqueológicos do local em que alimentavam sobre os africanos. Citan-
se construiria a represa de Assuã, o Dr. do Heródoto e outros escritores gregos,
Keith Seele resolveu levar à frente o le- o historiador Brasil Davidson, que figu-
vantamento de um sítio chamado Qus- ra atualmente entre as mais respeitadas
tul, na antiga Núbia, ao sul do Egito. O autoridades sobre a África no mundo,
material ali colhido só foi organizado e observa (1974: 28) que:
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Sankofa: Memória e Resgate

A confirmação das fontes núbias da cultura dinástica do Egito, a partir das pesquisas realizadas em Qustul, indica que a
origem de sua civilização é africana, e não uma contribuição de povos estrangeiros, semitas ou arianos, vindos do norte.
A proximidade da Etiópia com o Egito na época da unificação (3.500 a.C.), com a fronteira próxima ao Cairo, reforça as
conclusões da pesquisa em Qustul.
Introdução às antigas civilizações africanas
Elisa Larkin Nascimento

Os gregos antigos davam pre- tristas subjacentes às posturas vigentes


cedência de dignidade e valor, na academia, que, além de escamotear
não aos egípcios, apesar da ma- durante séculos as verdades que ele do-
nifesta superioridade da civiliza- cumenta, ainda reluta ferozmente em
ção egípcia sobre qualquer outra aceitar o conceito de uma origem não
coisa que eles conhecessem esse europeia da chamada civilização “uni-
respeito, mas a todos aqueles po- versal”. Os trabalhos de Martin Bernal
vos que viviam, perdidos no mis- vêm contribuir enormemente, confir-
tério, na “África além do Egito”.
mando e reforçando as conclusões de
Esses africanos, eles chamavam
Cheikh Anta Diop, resumidas neste pe-
de etíopes, e era para a terra dos
queno trecho (1974:XIV):
“irrepreensíveis etíopes” que os
deuses de Homero se retiravam Em vez de se apresentar na his-
anualmente para a festa dos doze tória humana como devedor
dias. insolvente, o mundo negro é o
Randall Maclver, historiador es- próprio originador da civilização
cocês, já escrevia no século passado “ocidental” hoje exibido diante
(apud. Van Sertima, 1985: 35): de nós. A matemática pitagórica,
O que há de mais característico a teoria dos quatro elementos de
da cultura pré-dinástica do Egito Tales de Mileto, o materialismo
se deve ao intercâmbio com O epicureano, o idealismo platôni-
interior da África e à influência co, o judaísmo, o Islã, e a ciência
imediata daquele elemento negro moderna têm suas raízes na cos-
permanente que estava presente mogonia e na ciência africanas do
na população do Egito meridional Egito. É só meditar sobre Osíris,
desde os tempos mais remotos até o deus redentor, que se sacrifica.
os nossos dias. morre e ressuscita para salvar a
Em 1987, publica-se o primei- humanidade. figura essencial-
ro volume de Black Athena, outra obra mente identificável com Cristo.
fundamental a esse processo de resgate
do processo civilizatório africano. Mar-
tin Bernal, linguista e cientista social, Referências Bibliográficas
professor das Universidades Cornell
(EUA) e de Cambridge (Inglaterra), es-
Bernal, Martin. Black Athena: the Afro-
tudou profundamente as raízes africanas
asiatic roots of classical civilization,
e asiáticas da civilização grecoromana,
documentando com fascinante riqueza 1º de 3 vs. New Brunswick (EUA):
de detalhes os seus fundamentos não eu- Rutgers University Press, 1987.
ropeus. No decorrer da análise, Bernal Davidson, Brasil. Africa in history. New
assinala as atitudes racistas e eurocen- York: MacMillan/Collier, 1974.
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

Diop, Cheikh Anta. Nations négres et —.Nile valley civilizations. New


culture. Paris: Présence Africaine. Brunswick: Journal of African Civi-
1955. lizations, 1985A
—. Anteriorité des civilisations nègres: Van Sertima, Ivan (org.) Blacks in
mythe ou verité historique? Paris: science: ancient and modern. New
—. “Africa: cradle of humanity”, in Van Brunswick (EUA) e Oxford (RU):
Sertima. 1985 a: 23-8. Transaction Books, 1983.
Lynch. Hollis R. Edward Wilmot Blyden, Vo1ney, Constantine. Voyages en Syrie
Pan-negro patriot, 1832-1912. Lon- et en Egypte. V. 1. Paris. 1787.
dres: Oxford University Press, 1967.
Van Sertima, Ivan. African presence * Elisa Larkin Nascimento é mestra em Ci-
in early Europe. New Brunswick ências Sociais e J.D. pela Universidade
do Estado de New York em Bufalo. Pro-
(EUA) e Oxford (RU): Transaction
fessora e coordenadora do curso Cons-
Books, 1985. cientização da Cultura Afro-Brasileira.
Este texto faz parte da ampla obra de
crítica deixada pelo autor, que faleceu
em 1987 sem vê-la publicada.

Sebastião
Os livros de caráter sociológico e
Rodrigues Alves e de assunto antropológico de Sebastião
a inquietação social Rodrigues Alves têm de causar pânico,
escândalo e estupefação nos arraiais do
do negro brasileiro racismo branco mais arraigado. Ele é
daqueles estudiosos negros que, depois
de muitos anos enfronlando-se com as
camadas mais humildes e laboriosas das
massas negras, dos guetos miseráveis das
cidades e das favelas, foi levar o resul-
tado de suas buscas científicas para os
seus notáveis livros de teor pedagógico
e doutrinário. Mal podia imaginar esse
pesquisador incansável dos assuntos
afro-brasileiros, que os dados, os moti-
vos dessa busca fascinante e os resulta-
dos a que chegou, após meio século de
sério e laborioso métier, em que todo se
Ironides Rodrigues* entregou, de corpo e alma, à luta pela
emancipação do negro, que essa sua
obra fosse agora reconhecida e respeita-
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

da por notórios expoentes da negritude ilibada, nas páginas evocativas e Minha


hodierna. Por decênios a fio, como um formação. Teria que aliar a essas perso-
beneditino diligente, sem preocupação nalidades plutarquianas outro gigante de
pecuniária nenhuma, só visando a meta nossa negritude cultural: Tito Lívio de
consoladora de ofertar aos nossos ir- Castro, médico, cientista, expoente de
mãos de cor sua projeção psicológica, sua classe no Segundo Reinado, que nas
o espelho verossímil em que retratas- Questões e problemas e A mulher e a so-
se, crua e severamente o leitor. Isso nos ciogenia, deixou o flagrante de sua insu-
primórdios da República e final da Mo- perável capacidade científica. Seu perfil
narquia festiva, culminando com o exí- simbólico já foi bem delineado por mes-
lio de um imperador culto e bonachão. tre Sílvio Romero, que achava José do
Com André Rebouças, negro de gênio, Patrocínio, André Rebouças, Tito Lívio
engenheiro notável, deu-se o mesmo de Castro e Tobias Barreto os autênti-
fato. Tinha que viver no meio da elite cos exemplares do pensamento negro,
imperial, ao lado de D. Pedro lI, que o donos de um estilo correto e clássico.
admirava e prestigiava. Acaso a prince- Tobias Barreto, em seus estudos socio-
sa Isabel não dançara com ele, no Cassi- lógicos e de filosofia (Menores loucos,
no Fluminense, desagravando essa per- Estudos alemães), nada queria com o
sonalidade fascinante contra as damas negro, mas apenas com questões de filo-
racistas que o ofenderam, com aquele logia, semântica elinguística germânica,
gesto intempestivo? ou quando queria polemizar com o vis-
Duas posições antagônicas do conde de Taunay, distinto romancista,
universo negro: José do Patrocínio era que até escreveu belos ensaios sobre o
o populacho inflamado, dentro de sua compositor negro de ritmos sacros pa-
facúndia libertadora, que sacudia todo o dre José Maurício.
poderio rural dos fazendeiros do Impé- Nilo Peçanha, se tinha o aspecto
rio. André Rebouças já é o negro uni- mulato (Hélio Fernandes o nega, com
versitário, a elite negra que ascendeu ao veemência), escrevia como um branco
galarim da cultura e à alta sociedade do de alma e coração, que nunca pensou
seu tempo. Seu exílio e sua ida à África nas suas origens. É só manusear seu li-
ancestral, colocando-se ao lado do mo- vro de itinerário pelo Velho Mundo. Im-
narca generoso e benfeitor, que tanto o pressões da Europa. Patrociná-lo como
prestigiara, tem os lances dos gestos de orgulho de nossa raça é desvairada fan-
suprema renúncia e desprendimento. Fi- tasia, pois Nilo só fez política de branco,
zera aquele regresso às origens afro-bra- cortejando Rui Barbosa, e só ascendeu à
sileiras, da mesma forma que um outro presidência da República, pois que era
líder da raça, Marcus Garvey, em sua jor- vice, após o passamento do presidente
nada de lutas contra o império universal Afonso Pena. Dom Silvério Gomes Pi-
do segregacionismo. Joaquim Nabuco menta é o negro de alta cultura, atin-
delineou, com penetração psicológica, gindo culminâncias no clero nacional
essa figura de elevado caráter e moral por sua santidade reconhecida, seu tino
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

administrativo, seus prodigiosos conhe- cas realizado na cidade de Cáli, Colôm-


cimentos científicos, filosóficos e literá- bia, nos dias 24 a 28 de agosto de 1977.
rios, representado a maior expressão da O autor chama a atenção para a
Igreja na Academia Brasileira de Letras. nossa hipocrisia secular, dizendo que,
A1cebíades Delamare, provecto pensa- apesar de as constituições que se suce-
dor católico, chama a Dom Silvério de dem entre nós gostarem de enfatizar, iro-
“niger sapaiens et sanctus”, negro sá- nicamente, “quando se trata dos direitos
bio e santo. O papa Leão XIII já decan- e garantias individuais, ( ... ) a igualda-
tara com respeito o admirável arcebispo de de todos os brasileiros sem distinção
de Mariana. de raça”. Pensava a constituição, as-
Trouxe toda essa galeria de ne- sim, anular as nossas diferenças raciais,
gros impecáveis para colocar melhor apagar uma tradição escravagista “que
todo o nosso nascimento, de lutas e ainda habita o subconsciente histórico
itinerário, enfrentando toda espécie de de nosso país”. Tudo isso conseguiu
reacionarismo governamental, a regres- enganar o negro segregado desde 1888,
são das falsas elites e a incompreensão iludido por uma igualdade abstrata, pois
alarmante, até dos próprios negros, em que “durante mais de quatro séculos o
relação ao nosso idealismo de paladinos negro foi objeto de troca, instrumento de
históricos desta causa sagrada. Nada trabalho e dominação por uma socieda-
mais expressivo que falar, neste pre- de que lhe negava, explicitamente, seu
âmbulo de apresentação, de duas obras direito à condição humana” (op. Cit. P.
importantes do sociólogo e pensador 1). O mais doloroso é que esse comple-
Sebastião Rodrigues Alves, do que ele xo de inferioridade, que ainda oprime a
representa, dentro de sua coragem dou- minha raça, é reflexo daquele subcons-
trinária, na Negritude pensante brasilei- ciente culposo que está patente desde a
ra. Em um de seus volumes, lá está o Lei Áurea de 1888, e que outro grande
analista seguro de suas pesquisas infor- paladino, pensador e artista de cena da
mativas, não titubeando em dizer verda- nossa negritude, Aguinaldo Camargo, já
des agressivas, desmascarando a nossa estudara, com minúcias e interpretação
falsa democracia, que desde os seus pri- segura, no Êxodo da senzala.
mórdios marginalizou os negros como Deslavada mentira insinuar que
refugos desprezíveis da sociedade. Re- não há negros nem brancos entre nós,
firo-me a um texto de poucas páginas, apenas brasileiros, que não são classifi-
mas de leitura fascinante e ininterrupta, cados pela origem racial. Até a consti-
que nos mergulha em fortes meditações, tuição vigente, outorgada pela Junta Mi-
à medida que lhe percorremos as pági- litar de 17 de outubro de 1969, trata, no
nas sensíveis e sinceras: Todos somos seu Capítulo IV, dos direitos e garantias
iguais perante a lei, comunicação que individuais (art. 153). Afirma, com so-
o polêmico sociólogo apresentou ao 1º lenidade simbólica: “Todos (brasileiros
Congresso de Cultura Negra das Améri- e estrangeiros) são iguais perante a Lei,
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

sem distinção de sexo, raça, trabalho, prendimento heróico e do imaculado ca-


credo religioso e convicções políticas. ráter guerreiro de um obscuro mas notá-
Não será permitido pela lei o preconcei- vel lutador de nossas causas libertárias.
to de raça” (Todos somos iguais perante Não são apenas os brancos a fa-
a lei, p. 2). Quer apagar uma consciência larem, com empáfia, da rebelião de um
de raça que está arraigada no sentimento Espártaco, quando a genealogia negra
nacional, limpar a mancha de uma es- tem até maiores guerreiros e lutares nas
cravidão que tanto nos degradou, pensar massas clandestinas. É o caso de Pací-
que um preconceito de cor desaparece fico Licutã, que participou da Grande
por um simples ato legislativo que não Insurreição Baiana de 1835, conhecida
recebe nenhuma fiscalização quanto à como a Revolta dos Malês, escravos
sua eficácia e à sua prática administrati- muçulmanos sempre rebeldes a qual-
va. Pura balela governamental apregoar quer espécie de freio ou domínio espi-
que “os negros têm as mesmas oportu- ritual. Rebeldes que se bateram, com
nidades, os mesmos instrumentos de
denodo e sobranceria, como Manuel
luta” para afirmar sua personalidade e
Calafate. Luis Sanim, Elesbão Danda-
seus direitos reconhecidos. Que culpa
rá, uns enforcados, outros fuzilados, no
temos, pergunta Rodrigues Alves, se
cômputo de uma rebelião malograda,
fomos arrancados de nossos lares na-
mas que persistiu pelo seu admirável
tivos, separados dos deuses de nossa
espírito de liberdade. E por que não fa-
adoração, de nossos hábitos e costumes
lar, também. do preto Cosme, figura de
tão antigos e tradicionais, para virmos,
lutador irrepreensível, que teve atuação
amontoados como animais desprezíveis
vibrante nas Balaiadas, revolta de cunho
nos tumbeiros ou navios negreiros, para
antiescravagista do Maranhão? Todos
servirmos, neste paraíso tropical, à de-
filiados à chamada camada baixa, mas
gradação escravagista dos senhores das
decentes e de forte envergadura moral,
terras do vasto império? Que a tragédia
da servidão negra é o mesmo capítulo como é o caso da negra revolucionária
de vergonhosa realidade, em todos os Luisa Mahin, mãe de Luis Gama, e que
lugares onde pulsa um coração negro de era a própria revolta personificada da
lutador. Brasil, Colômbia, Porto Rico, raça. E João Cândido, o lendário almi-
Venezuela, Peru ou Guatemala. Claro rante de ébano que, à frente das tripu-
que o negro não pode cruzar os braços lações dos navios de guerra Minas Ge-
e esperar que a liberdade venha à sua rais e São Paulo, acabou pondo fim às
procura, sem que enfrentemos todos os chibatadas e os castigos corporais em
percalços que ousem intimidar a decisão nossa Marinha?
negra de libertação. É uma epopeia de Todo um passado de lutas he-
teor trágico e de epílogo imprevisível, róicas e destemerosas se defronta na
que remonta às páginas de brilhante bra- biografia pretérita do sociólogo negro
vura negra de um Zumbi dos Palmares, Rodrigues Alves. Já em 1938, vinha de
na serra da Barriga, em Alagoas; do des- São Paulo até o Rio de Janeiro, então
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

capital, a fim de pedir ao presidente da tas arianos, quando apregoavam que a


República que “permitisse aos negros África não teve passado histórico, que o
transitarem livremente pela rua Direita, negro não conheceu civilização alguma
então uma principal rua da cidade de e que a única cultura universal do conti-
São Paulo” (op. Cit., p. 3). Em 1944, nente africano, o Egito, é nação consti-
junto do real negro Abdias do Nasci- tuída de raça branca.
mento, orgulho da negritude universal, Heródoto, com sua luminosa cla-
fundou, no Rio, o Teatro Experimental rividência, na História, conta de como a
do Negro. O objetivo dessa grande orga- Grécia, tão jactanciosa de suas prerroga-
nização cênica brasileira foi propiciar o tivas de cultura e conquistas guerreiras,
aparecimento de uma dramaturgia com tudo aprendeu dos egípcios, sendo que
temas sobre os motivos e tradições do
muitas das maiores notabilidades helê-
negro brasileiro, em peças escritas por
nicas foram buscar sua inspiração e co-
pretos e brancos. Oportunidade para o
nhecimentos filosóficos, matemáticos e
negro desempenhar, num palco, papéis
científicos lá no império cujas terras sa-
que não humilhassem a sua origem e
gradas o Nilo banhava e fertilizava. As-
condição de homem livre e de caráter.
sim, Platão, Sócrates, Tales de Mileto,
Repudiava, de vez, o artista branco
Aristóteles ali foram aportar, um dia, em
besuntando-se de preto, como Al John-
busca dos conhecimentos, da sabedoria
son ou Eddie Cantor.
que os sacerdotes egípcios distribuíam,
Houve, nos anos 40 e 50, o apa- prodigamente, para os iniciados sérios
recimento de um movimento político que fossem ali aprendê-los. Heródoto
revolucionário, com aspecto literário,
fala convicto de povos de alto nível cul-
filosófico e social: a Negritude. Surgiu,
tural e civilizados, como os coloquidia-
em Paris, ressoando sua mensagem de
nos e os etíopes, estes últimos até em-
negros esclarecidos e aguerridos por
pregando a circuncisão bem antes dos
todo o nosso planeta. Já era uma guer-
antigos hebreus.
ra declarada, por negros ousados e de
espíritos avançados, contra os racistas O manifesto desses epígonos da
do universo, que se escondiam por trás Negritude foi difundido pelo mundo
dos impérios coloniais da França, Ingla- todo. Uma revista que expressava tão
terra, Bélgica, Portugal, já em face de bem essa pregação apostólica e dou-
desagregação e decadência flagrante. trinária, Présence Africaine, trouxe até
Os seus corifeus mais notórios são Léo- aquele depoimento impressionante de
pold Sédar Senghor, Léon Damas, Aimé um Jean Paul Sartre, Orphée noir, que
Césaire, todos imbuídos da mais forte eu fui o primeiro a traduzir, nas páginas
tradição negra e africana, assim como de um outro órgão do pensamento mais
Cheikh Anta Diop, eminente historia- elevado da negritude brasileira: Quilom-
dor senegalês, que na Unidade cultural bo. Nesse jornal tão sério e compenetra-
da África e África Negra pré-colonial, do do Teatro Experimental do Negro
destruiu a opinião dos sábios e cientis- de Abdias do Nascimento é que foi di-
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Sankofa: Memória e Resgate

vulgado todo o pensamento socialista e Que o Brasil, com seus 110 milhões e
de união de todos os homens de cor do tantos de habitantes mestiçados, conta
mundo, apregoado por Léopold Sédar com mais da metade de sua população
Senghor. Em seu Orfeu negro, analisa de raça negra, que representa cerca de
com muito tirocínio político e literário, 75 por cento do total, a maior concen-
em 1950, a Negritude que aparecerá. Já tração ocorrendo na Bahia, Maranhão,
sentia o romancista do existencialismo Pernambuco, Rio de Janeiro, São Pau-
francês que os negros que escreviam lo e Minas Gerais. Toda essa população
romances e poesias nesse movimento pertence às classes pobres. “Não havia
reivindicatório estavam fazendo a litera- para ela as mesmas oportunidades que
tura mais avançada e revolucionária do para o branco. Não havia as condições
mundo. Que, quando tirassem as morda- de promoção social que qualquer cida-
ças que silenciavam as vozes dos pretos, dão perante a lei possui. Com certa pro-
estes gritariam, impetuosamente, todas teção, consegue-se chegar a um status
as suas aspirações e desesperos de sua humilde. A igualdade ilusória perante a
alma agrilhoada. Que agora os negros lei não garante o acesso aos altos pos-
é que expressariam sua própria dor e tos da administração, das Forças Arma-
desassossego interior, sem que os auto- das, do Itamarati, do empresariado, da
res brancos, erradamente, falassem dos medicina, da engenharia, do direito, da
problemas negros, sem o conhecimento economia, do teatro, que lhe estavam
básico e preciso que tais assuntos reque- proibidos, em sua imprudente ascensão.
rem. Que só o negro, em pleno conheci- O positivo disso tudo é que o
mento de sua própria causa, pode falar negro, para os donos da vida, tem me-
no assunto, sem que o mesmo, feito por nos valia cultural, social e econômica.
brancos, nos soasse com a maior falsi- Como um doutorado exímio em Ser-
dade temática e autenticidade duvidosa. viço Social, qual defendeu uma tese
E é graças a esse acontecimento bem abonada, de fartos conhecimentos
da Negritude que a floração sensível de bibliográficos e da matéria, Sebastião
autores negros tem aparecido em todos Rodrigues Alves, durante anos, subia e
os continentes onde a opressão branca descia os morros cariocas, estudando,
exija a presença desses paladinos indô- como sociólogo respeitável, a situação
mitos. Sebastião Rodrigues Alves, que miserável e caótica dos negros habitan-
foi muito aquinhoado com esse movi- tes das favelas. Todos aí vivem como
mento negrista revolucionário, acen- lixo humano, jogados fora nos montu-
tua os levantes da raça ocorridos, nes- ros da vida, sem registro civil, sem as-
sa mesma época, na África e América sistência, sem escola. Aí o investigador
Latina, contra “outras discriminações social tem amplo campo de estudo das
sofridas pelos negros remanescentes da condições miseráveis desses párias que
abolição: a discriminação educacional, os próprios governos esqueceram, só se
a discriminação econômica, a discrimi- lembrando deles na hora da cobrança
nação social e a discriminação cultural”. dos impostos, como eleitores em pleitos
Três figuras históricas do Movimento Negro. Da esquerda para a direita: José Correia Leite, líder da Frente Negra Brasileira e diretor do jornal Clarim d’Alvorada;
Ironides Rodrigues, coordenador pedagógico do Teatro Experimental do Negro; e Marietta Campos Damas, técnica de administração pública, militante afro-brasileira
e esposa do poeta guianense e co-fundador do movimento poético da Negritude, Léon Damas. 3º Congresso de Cultura Negra das Américas, São Paulo, 1982.
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

de duvidosa sinceridade ou para o servi- que houve foi um consentimento tácito,


ço militar obrigatório. Sair de sua casa, por parte dos brancos racistas, sempre
nos morros ou nas periferias miseráveis rejeitando os valores negros. Nesse pon-
das grandes aglomerações urbanas, já é to, entra aquele substrato de consciên-
forte risco de vida. Pois se está na rua, e cia, enraizado no pensamento dos espí-
por azar não traz documento algum, só ritos arianos, da inferioridade discutível
por ser negro a polícia já o trata dura e do elemento negro.
estupidamente. Jogado num camburão Sebastião Rodrigues Alves, em
de marginais irrecuperáveis, é levado outra página desse seu livrinho de subs-
para as piores prisões do Estado, cor- tanciosa essência doutrinária e de forte
rendo o risco de sumir sem que se lhe teor polêmico e de agitação de ideias
descubra o paradeiro sinistro. Ser negro
sociais, rememora a sua infância pobre,
é, então, trazer o estigma de uma cor ul-
de criança lutadora e infeliz, já sofren-
trajante.
do na alma todos os horrores de uma
O capítulo “O protesto negro” é puerícia miserável e sem horiwntes. Foi
onde Sebastião Rodrigues Alves mais lavrador, candeeiro de bois sempre tra-
aprimora sua dialética desabusada, fa- balhando de sol a sol, sem o descanso
lando com aspereza incontida que, em- que merecia Por essa jornada fatídica.
bora o negro predomine escandalosa- Com sacrifícios, conseguiu adquirir os
mente na demografia do país, ele “não conhecimentos necessários a um negro
está representado no alto centro empre- que, desde o nascimento parece que só
sariàl de sua pátria”, que não há negros viera ao mundo para ser o eterno faze-
nem na diplomacia, nem nos altos postos
dor de escadas para o branco sobre es-
das forças armadas. Isso prova a margi-
tultos e orgulhosos conceitos de casta e
nalização em que foi colocada a infeliz
privilégios terrenos. Lá também predo-
progênie de Cam, e não por inferiodade
minava a tradição escravagista sofrida
cultural dessa raça que construiu o Bra-
por nossa raça. Quatro séculos de odiosa
sil, com seu sangue e seu suor exauri-
segregação, tornaram impossível apagar
do nas lides das fazendas dos senhores.
essa mancha inextinguível de nosso pas-
sem receber um real, só chicotadas e
sado escravocrata.
maus-tratos de seus senhores cristãos
e brancos. O autor continua com seus Mas forças espirituais vigorosas
argumentos persuasivos, num estilo cor- da nossa raça nos fizeram pensar na
rentio e de amena percepção ideológica, derrubada das muralhas humilhantes
de que o negro está presente em todos os do preconceito, dando-nos força para
setores de nossa cultura mais original: enfrentarmos todas as barreiras veladas
na pintura, na escultura, na música e nas dos governos, das instituições, dos ele-
letras. Que Machado de Assis, mulato mentos arianos e dos negros e mulatos
de criação humorística bem profunda de que se envergonham de sua origem e
nosso romance, foi até membro funda- são mais brancos de personalidade do
dor da Academia Brasileira de Letras. O que homens de cor, por convicção he-
0 THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

reditária. O branco conquistador, ao traz no âmbito de seu tema, de palpitan-


jugular no negro seus orixás, o ritmo te atualidade polêmica, tantas verdades
de vida regressa que levava na África, profundas, debates com um delicioso
ao destruir nele tudo que lhe era mais estilo de argumentar, discutir e prender
puro e sagrado, fez-lhe um verdadeiro o leitor, nessa dialética de ideias à es-
estupro cultural. Rodrigues quer dos es- pera de soluções imediatas, sob pena de
tudiosos da antropologia de nossa raça serem prelúdio de inimagináveis con-
um certo respeito e maior sinceridade na vulsões sociais.
sua análise sociológica e de psicologia Somos todos iguais perante a lei,
mais profunda, esquecendo a futilidade comprova o quanto Rodrigues Alves
de certos antropólogos, que só sabem está atento aos problemas mais graves
medir as dimensões da cabeça criou-
que dizem respeito à gente negra. Mas,
la, sua condição fálica, seus instintos e
por um estranho privilégio de nossos
seu comportamento reflexo. Daí é que
orixás de Aruanda, Abdias do Nasci-
nasceu esse protesto grave e solene dos
mento, Aguinaldo Camargo, Rodrigues
negros contra tal estado de coisas. En-
Alves e eu fomos testemunhas contem-
frentando uma discriminação que a lei
porâneas de fatos históricos de imensas
tenta negar, o negro já se insurge, num
consequências culturais para o negro e o
verdadeiro libelo, contra os obstáculos
Brasil, como a fundação do Teatro Ex-
que enfrenta ao ingressar no mercado de
trabalho. Contra a falta de acesso a posi- perimental do Negro, em 1944, além de
ções cuja ocupação lhe é vedada. sermos os guardiães mais extremados e
de maior ardor defensivo da mensagem
Como distinto cultor do serviço
revolucionária da Negritude, em 1950.
social pragmático e humano, em suas
O programa de estudos sociológicos e
pesquisas, nos centros mais empeder-
de Antropologia que Sebastião Rodri-
nidos onde domina o preconceito, Ro-
gues Alves traçou não podia ser no es-
drigues sentiu que o ser que tem a sorte
tilo das improvisações científicas de um
de nascer preto é logo barrado, sumaria-
Oliveira Viana, na Evolução do povo
mente, “em clubes de classe média ou
brasileiro, com um conteúdo racista em
alta, em restaurantes de luxo ou semi-
negar, em mais de 200 páginas, civili-
luxo; em certas lojas de luxo, o negro
é, sem explicação plausível, afastado de zação alguma à gente negra, não tendo
forma insólita, inusitada”. A sua proi- provocado reações mais sérias nos cori-
bição existe nas entradas dos elevado- feus da crítica, que mais exaltaram essa
res sociais dos edifícios aristocráticos. obra clássica do nosso reacionarismo
Quando, em certos restaurantes metidos ideológico: Tristão de Athayde, Montei-
a besta, os garçons fingem que não escu- ro Lobato, Agripino Grieco e até Osório
tam os chamados dos fregueses negros. Duque Estrada (Crítica polêmica).
Tudo o que o nosso sociólogo chama de Rodrigues Alves teria que prosse-
discriminação ornamental vem descrito guir por outro itinerário de verdade mais
nesse texto de poucas páginas, mas que límpida e pragmática: desfazer todas as
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues 1

inverdades pseudocientíficas que um dois estudiosos baianos, são meras fi-


Nina Rodrigues delineou para os seus gurações episódicas, aparecendo mais
epígonos da Escola Baiana, embebidas como motivos de exótica e bizarra orna-
nas piores pregações de um Lapouge ou mentação plástica. Edson, quando não
Gorineau e nas teorias discutíveis do Dr. trata da rebelião do Zumbi dos Palma-
Charcot, analisando um fenômeno de res como mera manifestação marxista,
tão transcendente espiritualismo, quais já olha o cerimonial maravilhoso dos
sejam as manifestações dos mortos de terreiros baianos, nos Candomblés da
Aruanda, com os seus médiuns ou “ca- Bahia, com as vistas obtusas de um Do-
valos”, nas cerimônias de significativa nald Piersen, Jorge Amado (Jubiabá) e
bêleza ritual, dos ritos sagrados da um- as fotografias de bizarros efeitos visuais
banda. Trata-se de um fato de religiosi- de um Pierre Verger que descreveram o
dade profunda, nada tendo de sintomas universo sobrenatural da Aruanda sem
de histeria ou de loucuras possessivas, a visão profunda do analista, tão im-
como asseverava Nina Rodrigues, que pregnado dessa maravilhosa essência
bem ou mal iniciou esses estudos, de do fascínio dos orixás como o douto e
magna importância, dos fenômenos compreensivo estudioso de nossos fe-
mais desconhecidos do universo afro- nômenos d’além túmulo Roger Bastide,
-brasileiro. Mas logo o cientista mara- em Imagens do Nordeste místico, Reli-
nhense, sem o Responsabilidade penal giões negras; ou nos seus estudos, de
no Brasil, já começa a mostrar desgaste monumental capacidade interpretativa e
da regressão científica quando se refe- analítica, escritos junto a outro respei-
re ao negro e ao índio como se fossem tável sociólogo dos problemas negros,
crianças irresponsáveis e incultas, por- Florestan Fernandes, quando ambos
tanto de franca irresponsabilidade penal analisaram o negro na metamorfose ur-
perante a lei que porventura julgasse sua bana e rual de São Paulo.
“inferioridade cultural”. Sebastião Rodrigues Alves abor-
O que causou pasmo foi o apare- dou esse tema da teogonia afro-brasi-
cimento de tantos epígonos, em tratados leira quando lançou a revista Cósmica,
e estudos duvidosos, dando dimensão a em que descrevia, com minúcias de
tamanhos disparates “científicos”. Até informações incontestáveis, o universo
uma mentalidade negra, de reconheci- misterioso dos candomblés do Rio, en-
da celebração na ciência oficial, como trevistando com inteligência e profundi-
Juliano Moreira, mais imperdoável ain- dade exegética os pais de santo, as iaôs
da, por ter a pele negra, também ponti- ou babalorixás conhecidos, quando não
lhou esses ensinamentos reacionários do se definia no cerimonial sagrado com
mestre. Que um Afrânio Peixoto e um que os orixás de Aruanda são invocados,
Edson Carneiro compartilhassem dessas nos rituais de majestosa beleza melódica
ideias, não seria surpresa alguma, pois e encanto plástico, demonstrando seus
eram brancos (?) em tudo que escreviam conhecimentos profundos do universo
e pregavam. Os negros, na obra desses do decantado mistério das macumbas
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Sankofa: Memória e Resgate

e candomblés, assunto que abordou mais puro, de firmeza ideológica mais


com sensivel maestria num livro que acentuada. Todos os epígonos que par-
é modelar no seu gênero: Sincretismo ticiparam dessas campanhas redentoras
religioso. Ele estuda o sincretismo re- saíram com a alma ferida, mas nunca
ligioso nos cultos afro-brasileiros em com desilusão na alma, porque o guer-
que a Igreja Católica tentou conciliar reiro de uma ideia profunda e transcen-
o ritual umbandista com seus cânticos dental só vê uma luminosa aurora a lhe
bizarros, de singular melódica, seguida acenar, com a esperança de uma vitória,
de instrumentos “bárbaros” sincopados, que, queiram ou não os racistas reniten-
de onomatopeias com estranhos ruídos tes, dominará todos os espíritos cristãos
de atabaques, com as orações cantadas e paladinos da maior cordialidade entre
na liturgia católica, com a suavidade os homens. Em Somos todos iguais pe-
rítmica do seu estilo solene, na pureza rante a lei, as páginas de maior frescor
harmoniosa de sua inspiração hierática, idealista, em que a personalidade atuan-
solene, compassada. Essa fusão do culto te desse grande líder mais se exprime,
católico com o mundo de nebulosidade com toda a sua veemência polêmica e
de estilo claro, diáfano, cristalino, esté- vigor analítico, são justamente aquelas
tica das evocações dos orixás sombrios em que se detém, num estilo incisivo e
e misteriosos de Aruanda, já foi bem es- provocativo, num assunto de palpitante
tudada por um cultor respeitável desses atualidade: – A memória da Abolição”;
temas fascinantes, Tales de Azevedo, aqui ele vitupera Rui Barbosa, ministro
em dois livros de primorosa elabora- da Justiça nos pródromos da Repúbli-
ção temática: Cultura e situação racial ca de 1889, quando mandou queimar
no Brasil e Ensaios de antropologia todos os documentos relativos à entra-
social. Tales não aborda o assunto dos da e ao número de escravos existentes
cultos afro-brasileiros como Rodrigues no Brasil. Queria, dessa forma, destruir
Alves, que é senhor desse complexo ou apagar uma lembrança infamante da
território místico, onde o gênio da raça consciência culpada de um povo apá-
negra aparece em toda a transfiguração tico, indiferente, de memória curta no
de seu espírito, ungido de religiosidade que se refere a fatos que nos envergo-
nata. Acompanhando a trajetória de lu- nham, como povo cristão e civilizado.
tas doutrinárias e sociais deste líder in- Anatematiza o conceito abstrato que os
conteste da negritude, Sebastião Rodri- povos imperialistas têm do vocábulo
gues Alves, vê-se que ele, como Abdias “civilização”, escondendo rapinagens
do Nascimento, Aguinaldo Camargo, inconfessáveis, de impérios coloniais
José Correia Leite (São Paulo), Jayme que se desmoronaram por incompetên-
Aguiar (São Paulo), Geraldo Campos cia administrativa e pela rebelião justa
(São Paulo), deu todos os momentos de dos povos escravos e de cor, que não se
sua vida a esta causa, que tem levado, sujeitavam à submissão e ao racismo
no seu âmbito de epílogo imprevisível, dos parasitas europeus. ocidentais. que
as consciências negras de pensamento se diziam de civilização cristã.
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

Bemard Shaw já delineou. com seu intenso conteúdo litúrgico sobrena-


tintas cruas e verossímeis, esses falsos tural” (op. cit, p. 11). E Rodrigues Alves
portadores da mensagem de Cristo, os incrimina os cientistas de araque que
reverendos e pastores bíblicos que, sob tentam definir a imensidade psico!ógica
a capa de pregarem uma religião huma- e de personalidade lutadora do negro
na e de mensagem pacificadora, nada com medidas angulares de seu crânio,
mais fazem do que tornar as massas de sua longitude fática, ou medindo as
escravizadas, numa vergonhosa sub- polegadas dos quadris das negras, que
serviência e submissão, para melhor eles tentam amancebar e levar para a
completarem sua doutrinação conquis- depravação, com uma providencial fita
tadora. O livro que reflete essa patifaria métrica.
branca e que causou tanto espanto entre Outra palavra que merece todo
os que defendiam, em livros, em pre- o repúdio de Rodrigues Alves é acul-
gação ideológica e nas disseminações turação, numa incontida reação ante a
de ideias libertárias, nos meetings e nas passividade, dos negros frente a mais
peregrinações apostólicas, é nada mais essa escravização da raça. Tenta cons-
que Aventuras de uma negrinha que cientizá-los por meio de livros e escritos
procurava Deus. Mostra os resultados difundidos em vários congressos para a
negativos da pregação protestante a libertação de sua gente, em que sua pre-
uma jovem negra, analfabeta e crédula, sença, com teses e debates fulminantes,
que não se deixou embair pelos ensina- foi a palavra de fé e luta de nossas cam-
mentos bíblicos, de sentido um tanto ra- panhas emancipadoras. Isso, com a par-
cista e de dubiedade semântica, em sua ticipação em vários Congressos de Cul-
significação duvidosa. tura Negra, no Panamá, Cáli (Colômbia)
Invectiva o nosso sociólogo negro e São Paulo. À página 14, desabafa,
a desnaturalização dos cultos religiosos com aquela convicção de um líder que
afro-brasileiros, pelo que a religião ca- sabe que esses dias de obscurantismos
tólica busca “a abolição da memória do segregacionistas estão chegando ao seu
negro”, com um odioso “sincretismo desenlace: “É nossa intenção desmistifi-
religioso”, tentando imiscuir os orixás car o chamado combate à discriminação
negros com os santos e rituais católi- através dos textos legais que nos outor-
cos. Querem estes cristãos sectários e gam direitos humanos, mas na realidade
ignorantes dos cultos afro-brasileiros. não temos instrumentos também legais
a desvirtuação inconcebível de uma para defender esses direitos. Nossos
fervorosa crença dos remanescentes da inalienáveis direitos humanos virão, na
África, cuja religião advém de tempos medida em que sejamos conscientes de-
milenares. Pensam que podem transfor- les”. Abaixo a castração do que temos
mar um rito religioso, profundo, solene, de mais tradicional, do que mais fala ao
de filosofia tão transcendental, em sim- nosso glorioso passado, das lutas pela
ples manifestação folclórica, para tirar liberdade da raça, em páginas célebres,
“aos cultos de umbanda e candomblé. de que Zumbi dos Palmares, João Cân-
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Sankofa: Memória e Resgate

dido, Carocango, os negros destemidos dendo essa mistura étnica uma intenção
das revoltas dos Malês, da Balaiada ou recôndita daquele que se envergonha da
da Rebelião dos Alfaiates são mais que convivência diária com o descenden-
suficientes para nos engrandecerem em te de africano. Uma luta que pede uma
face da negritude universal. É o que afir- igualdade real, que se identifica com a
mou uma estudiosa séria e respeitável ação redentora dos negros africanos, em
desses fatos notórios de nossa raça: Eli- batalhas sangrentas contra os últimos
sa Larkin Nascimento, em Pan-africa- resquícios de um colonialismo nefasto
nismo na América do Sul, quando afir- e odioso.
mou que o Brasil nada tem a invejar dos O que se nota antes de tudo,
pretos lutadores de outros países, pois numa análise minuciosa e atenta da
que temos um gigante idealista nesse obra de Sebastião Rodrigues Alves, é
setor marcial de nossas reivindicações a perfeita consonância de ideias, méto-
libertárias: Zumbi dos Palmares. do e estilo polêmico entre o texto que
Acho que, por meio desta exege- acabei de examinar, Somos todos iguais
se de Somos todos iguais perante a lei, perante a lei, e seu outro trabalho tam-
tento alertar a suspicácia do leitor para bém de forte conteúdo polêmico, dentro
uma obra que, em suas discussões so- de uma temática que até então não ha-
bre problemas antropológicos e socio- via sido ventilada nos estudos sobre o
lógicos, abre um caminho alvissareiro negro brasileiro: A ecologia do grupo
para debates polêmicos de ideias efer- afro-brasileiro. É um trabalho de fôle-
vescentes e de pragmatismo benfazejo. go, resultado de suas pesquisas demora-
Com razão, o sociólogo, nessas páginas das, de conclusões reais a que chegou,
vibrantes e sensíveis, abomina um léxi- após estudos e árduas buscas sobre as
co que o branco pronuncia, com senti- condições sociais do negro no Brasil. O
do pejorativo, “negro”, que os racistas prolongamento, o epílogo admirável de
camuflados pronunciam como sinônimo um sociólogo consciente de sua missão
“de escravo, de servil e de marginal”. regeneradora da raça, após a conclusão
Quer devolver a espiritualização semân- de seu curso de Serviço Social. O mé-
tica que o vocábulo “negro” deve pos- todo expositivo desse seu livro modelar
suir, numa acepção mais sutil e profun- é baseado nos seguintes itens: 1º – Das
da. Só pela valorização da gente de cor, teorias raciais e seus efeitos através dos
pela conscientização crescente do ne- séculos. 2º – O elemento afro-brasileiro.
gro, na luta em busca da afirmação dos A proclamação e o reconhecimento dos
nossos direitos e nossos valores, é que direitos fundamentais da pessoa huma-
chegaremos a transpor a muralha gigan- na, em face do Serviço Social. 3º – Ao
tesca do preconceito racial. Estou, como Serviço Social compete solucionar o
Sebastião Rodrigues Alves, divergente “caso” Afro-Brasileiro. No capítulo 1º,
com o conceito racista de miscigenação, discute a eficácia das teorias racistas de
querendo anular a raça negra, quando Gobineau e Darwin, com suas polêmi-
cruzada com o elemento branco, escon- cas concepções biológicas, antropoló-
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

gicas e sociológicas. Rememora todo E, em resumo de todos esses es-


o panorama científico do século XIX, tudos, um critério que consideramos
com o seu absurdo conceito de superio- estreito foi impresso no seio da huma-
ridades e inferioridades raciais no gê- nidade. Esse critério empolgou a todos
nero humano. É esse “um campo onde os que aceitaram com mais ou menos
o Serviço Social terá grande tarefa, no essa ou aquela parte. “Aqui vai grande
sentido não só de contradizer aquilo de culpa ao objetivismo do século” (Eco-
errôneo que havia em tais teorias, como logia do grupo afro-brasileiro, pp. 13
e 14). Rodrigues Alves se estende, na
de ajustar uma maioria que vive à mar-
divisão das raças em preta, branca, ama-
gem da sociedade, e principalmente do
rela, etc., divisão que mais se deve às
nosso meio brasileiro” (pp. 9 e 10).
suas localizações originárias. Depois se
Com que argúcia analítica fala da processou a sua mescla ou fusão, com
falsa verdade científica de ensaístas so- o expansionismo de diferentes povos ou
ciólogos como Gobineau e Lapouge; de gerações, surgindo tipos vários de etnias
antropólogos como Retzuis, que, pela que conservaram, contudo, seus caracte-
comparação de dois crânios, tentou im- res somáticos, devido a influências cli-
plantar com a craniometria a classifica- máticas, quer de solo, alimentação, etc.
ção dos povos; de Gobineau, que apre- Variações somáticas que se trans-
goava a suposta superioridade nórdica, mitem por hereditariedade, de que a te-
com primazia na civilização do mundo oria de Mendel é comprovante absoluta,
aos loiros dolicocéfalos. Teorias obtusas com sua Lei da Dominância. explicando
que não resistiam à análise mais séria, esses fenômenos étnicos. Mas a ciência
porque não se pode provar que homens é falha, em explicar o cruzamento com-
dolicocéfalos, braqui ou mesocéfalos te- plexo dos povos antigos como a Grécia.
nham proeminência uns sobre os outros com seu mosaico heterogêneo de va-
por possuírem o crânio mais volumoso. riedades de tipos raciais. Por que uma
Rodrigues Alves acentua a fatuidade raça de caracteres alvos como a branca
se apoderou dos “bens de progresso”
da ciência, nesse setor, citando Anatole
e depois, por conquistas e rapinagens.
France, com 100 gramas apenas de con-
dominou a Ásia e a África, fazendo re-
fecção craniana, igual à de um simples
gredir as civilizações milenares de seus
cabila e ao de uma mulher. “Curver, colonizados e tentando impor o que
Bichat, Mendel e Morgan, fisiologista pomposamente chamavam de cultura
e biologista, apesar de tudo ainda estão ocidental? É sintoma de ficcionismo
sujeitos ao que diz carrel: aos mistérios científico dos estudiosos da branquitu-
da vida.” Interessante, curioso e promís- de fanática pensar que o branco é que
cuo vêm sendo, através dos séculos, os decide os destinos do mundo. Até na di-
aspectos diversos que os cientistas, filó- visão arbitrária da História. a queda do
sofos e pensadores têm dado à questão Império do Oriente marcava um fasto
racial, em todas as suas particularidades. incontestável de imperialismo flagrante
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Sankofa: Memória e Resgate

e não de superioridade da cultura branca Acentua o nosso sociólogo que


sobre outras raças. Quando os supostos mesmo longe do arianismo, Booker T.
gênios da terra, os alemães, foram der- Washington foi um grande educador do
rotados na Primeira Grande Guerra, de negro americano. Que André Rebouças
1914 a 1918. Oswald Spengler achava se mostrou engenheiro capacitado na
que o mundo iria cair no mais sombrio construção de pontes e estradas brasi-
obscurantismo (?) nas ciências e nas leiras, principalmente durante a Guerra
artes. Daí o falso tom profético de A do Paraguai, em 1865. Que Toussaint
decadência do Ocidente: pensava ele l’Ouverture, herói haitiano, que enfren-
que, com a debacle da Germânia e do tou as hostes de Napoleão Bonaparte,
Império Austro-Húngaro, estava apaga- é uma página brilhante da negritude
da a luz que iluminava o universo. Raça. universal. Invectiva, com argumentos
indivíduos com os mesmos vinte e três persuasivos, a decantada Escola Alemã.
traços somáticos transmitidos por here- que negava cultura própria ao negro, o
ditariedade, supremacia da raça brandi que seria, portanto, incapaz de civilizar
sobre a negra e a amarela, tudo teorias a si próprio. Teoria de nefastas conse-
que se desvanecem ao menor argumento quências, seguida à risca por Nina Ro-
ou discussão dialética. drigues, mas repudiada, sensatamente,
Nessas querelas insensatas, que por grandes cultores dos estudos afro-
não levavam a nenhum terreno firme, é -brasileiros, como Artur Ramos, Flores-
que surge a presença moderada e sensa- tan Fernandes, Guerreiro Ramos, Ab-
ta do papa Pio X, na sua Encíclica Ad dias do Nascimento e mesmo Sebastião
Diem Illum, chamando a atenção para o Rodrigues Alves. E Euclides da Cunha,
fato de Cristo possuir “um corpo igual seguindo as teorias racistas de um Gum-
ao dos outros homens”; enquanto re- plowicz, em Os Sertões, põe em dúvida
dentor da nossa raça, possuía também a validade do nosso mestiço, imbuído
um corpo espiritual, ou, como dizem, que estava da ciência mais reacionária
místico, “formado pela sociedade de to- do seu tempo. Até um sábio, de equilí-
dos aqueles que Nele creem” (op. Cit. brio científico como Roquette Pinto, já
p. 16): Rodrigues Alves, em seu livro acentuava a beleza, o valor e o vigor
de fascinante leitura polêmica. observa racial do elemento negro, chamando a
a insustentável estrutura científica de atenção para o fato de uma capacidade
fatores apregoados pelos sábios, como mental como o genial poeta negro Cruz
de caracteres diferenciais da raça: pig- e Souza ser o melhor aluno que possuiu
mentação cutânea, capacidade craniana, o sábio alemão, então radicado em San-
índice cefálico, certos caracteres eugê- ta Catarian, Fritz Muller.
nicos bem consistentes, variações so- E como conter o nosso repúdio
máticas, seleções genéticas, etc. Pio X aos argumentos esdrúxulos de um Tho-
queria dizer naquelas suas palavras san- maz Buckle, em estudos de antropogeo-
tas e coerentes, que só existe uma raça: grafia, conclamando a inferioridade bra-
a humana. sileira, principalmente em se tratando
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

do negro e do mestiço, e afirmando que tempos que correm, com o engodo con-
esse tipo de produto humano, feito por tínuo para a maior prostituição da mu-
cruzamento étnico, não resistiria à força lher negra, que são os eternos festivais e
implacável do meio ambiente e acaba- shows das mulatas mais belas, atraindo
ria sendo vencido pelo clima implacá- com dinheiro e um falso brilho de estre-
vel. Isso era renomada tolice, porque o las fanadas as mais atraentes azeviches
tipo mestiço foi o único que resistiu às que, incautamente, são atraídas pelo
ardências de nosso clima tropical. pois canto da sereia de empresários inescru-
que “seu cruzamento era de bom san- pulosos, dublês de proxenetas e gigolôs
gue, dadas as grandes nações eugênicas profissionais. O Teatro Experimental do
de negros que vieram para o Brasil” (op. Negro, quando, nos anos 40, instituiu
Cit. p. 18). Buckle, que também nos es- aquela louvação estética da sagração da
tudou, era bem agourento em suas outras Rainha das Mulatas, o fez com o propó-
profecias, pois achava que o homem, sito louvável de prestigiar os atributos
neste imenso país dos trópicos, não era físicos mais belos e fascinantes da mu-
digno de sua opulenta natureza. Para es- lher colored. Rodrigues Alves frisa bem
ses detratores arbitrários é que uma au- o motivo pelo qual Gobineau denegrira
toridade nesses assuntos, como o doutor o negro brasileiro, já que a lembrança do
Silva Melo, escreveu seu livro de im- visconde de Saboia, espalmando-lhe a
pressionante atualidade, A superiorida- cara racista por causa de uma brasileira
de do homem tropical, onde, exaltando a que esse cientista faccioso tratara com
nossa “morenidade”, vai tocar em outro certa grossura maliciosa, pensando que
ponto sensível da pregação de Gilberto fosse a duquesa de Chevreuse; tal humi-
Freyre, que tanto exalta a miscigenação lhação de apanhar de um descendente de
racial brasileira. Só que o sociólogo africanos não poderia deixar o roman-
pernambucano divulga aí seus concei- cista de Adelaide sereno e tranquilo.
tos discutíveis de mescla de raças, pois Nos capítulos seguintes, Rodri-
que na Casa grande e senzala descre- gues Alves explana, em páginas bem
ve a mancebia escandalosa dos senho- pensadas e escritas, a função superior e
res com suas escravas, das servas mais espiritual do Serviço Social, que cuida
bem aquinhoadas pela natureza fazendo da pessoa humana assegurando os seus
prostituição paga com estrangeiros que mais lídimos direitos e apontando os
nos visitavam e levando o dinheiro des- seus deveres essenciais. Daí a ênfase e
se comércio vergonhoso aos cúpidos e o entono com que repete os artigos de
insaciáveis senhores de escravos. E Gil- magnífica expressão da Declaração dos
berto Freyre acha maravilhoso esse tipo Direitos do Homem, quando proclama
baixo de miscigenação do negro com o “que todo indivíduo tem acesso a todos
branco, esquecendo que esse conúbio os direitos e liberdades, sem distinção
carnal não era uma ligação justa e legal, alguma de raça, cor, sexo, idioma, credo
que valorizasse com dignidade a mulher político ou religioso, origem nacional ou
de cor, situação que nada mudou nos social, fortuna, nascimento ou qualquer
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

outra condição”. Ideal político e social brasileiros que desejarem se estabelecer


que já vem apregoado pela Revolução em qualquer ramo industrial e agrícola,
Francesa, em 1789, que sempre defen- com capital não superior a 20 mil cru-
deu a liberdade humana, contra todas as zeiros. O item f refere-se à elevação eco-
prepotências. Em seguida, aborda um nômica, cultural e social dos brasileiros.
acontecimento de grande expressão cul- O item g dá muita importância à orga-
tural para a elevação social dos homens nização dos grupos afro-brasileiros para
de cor, que foi a Convenção Nacional enfrentarem, com galhardia, o problema
do Negro Brasileiro, em novembro de sério da discriminação racial que existe,
1945, marco simbólico de nossa segun- um tanto velado, no Brasil, enganando
da Abolição (op. Cit. p. 26-8). Uma das até as nações amigas com esta gritante
medidas mais prementes desse conclave mentira com que queremos ocultar a
de tanta repercussão política foi concla- nossa revoltante segregação étnica: que
mar todos os políticos e religiosos, ho- todos os brasileiros são iguais perante
mens e mulheres, nacionais e estrangei- a lei.
ros, gente de todas as raças e de todas Se assim fosse, Hamilton No-
as cores, principalmente os homens pú- gueira, senador notável e muito amigo
blicos do Brasil, para cerrarem fileiras de minha raça, não teria interrogado a
em torno dos sagrados princípios que Assembleia Constituinte de 1946, na-
aquela Convenção ardentemente pro- quela interpelação que fere, como uma
clamara: a) Que seja explícita, em nossa chicotada infrene, no rosto de um ra-
Constituição, a referência à origem étni- cista ordinário: “Existe no Brasil uma
ca do povo brasileiro, que é constituído questão racista?”. O próprio senador, de
de três raças fundamentais: a indígena, a saudosa memória, admite que não existe
negra e a branca; b) que se torne matéria escrito na lei, mas que tal racismo exis-
de lei, na forma de crime de lesa-pátria, te de fato, não somente, como ele di-
o preconceito de cor e de raça; c) Que zia, “em relação aos nossos irmãos (...)
se torne matéria de lei penal o crime pretos”, mas também “em relação aos
praticado nas bases do preceito acima, nossos irmãos israelitas”. E que havia
tanto nas empresas de caráter particular, um fato muito grave: restrição à entrada
como nas sociedades civis e nas institui- de pretos na Escola Militar, na Escola
ções de ordem pública e particular; d) Naval, na Escola de Aeronáutica e, prin-
Que, enquanto não for gratuito o ensino, cipalmente, na carreira diplomática. E
em todos os graus, os negros brasileiros que nossa carta constitucional deveria
sejam admitidos, como pensionistas do condenar tais ocorrências vergonhosas,
Estado, em todos os estabelecimentos defendendo, com denodo e nobreza,
particulares e oficiais de ensino secun- “esses direitos do homem de todas as
dário e superior do país, inclusive nos condições e de todas as raças” (op. cit.
estabelecimentos militares. Já o item e p. 29-31). Mas sempre aparecem aque-
fala da isenção de impostos e taxas mu- les que não estão enfronhados nessa dis-
nicipais, estaduais e federais, a todos os criminação odiosa criada pelos brancos
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

e afirmam, peremptórios, que essa ques- vetusto casarão da rua Moncorvo Filho,
tão de racismo é abstrata, inexistente templo sagrado do nosso direito mais
em nosso país, e que nós negros é que a puro, foi o já famoso catedrático de Di-
criamos, com todas essas intempestivas reito Civil Arnaldo Medeiros, de quem
consequências. E esse discurso, de tanta tive o desprazer de sentir a ojeriza pela
importância social para a nossa Negri- minha raça num longínquo vestibular de
tude, datado de 14 de março de 1946 na 1946. Dr. Pompílio estava bem munido
Assembleia Constituinte, teve a força de cultura jurídica, ampla e abalizada,
emocional para sacudir as consciências para ser derrotado no rumoroso concur-
reacionárias. so para mestre de Direito Civil naquela
Depois do impasse dessa denún- faculdade, onde outrora ficava o velho
cia antirracista, o mesmo notável sena- Senado da rua do Areal, palco de tantas
dor faria outras declarações, no justo arengas tribunícias, de muitas parlendas
momento em que a Convenção Nacional oratórias, que o sisudo Machado de As-
do Negro agitava tão palpitante proble- sis imortalizou na página clássica de O
ma político e social: “Os pretos não es- velho Senado.
tão em absoluto criando uma questão. A Para que seu livro tivesse maior
questão de fato existe já suficientemen- autenticidade sociológica, maior rigor
te registrada pelos sociólogos e, mais do de pesquisa e de informações importan-
que isso, denunciada pelos próprios pre- tes dentro do setor do Serviço Social,
judicados, os negros, cujos direitos de servindo de ampla cobertura nas indaga-
cidadãos brasileiros são frequentemente ções do modus vivendi do proletariado
sonegados” (pronunciado em 30-4-46). negro, vêm, em páginas de flagrante re-
Conclui Rodrigues Alves, à mesma pá- alidade informativa, vários depoimentos
gina 31: “E isso é uma grande verdade. de expressivas figuras negras, como o
Ninguém melhor que o próprio negro próprio Dr. Laurindo Pompílio da Hora;
pode sentir o preconceito de cor.” Cita o o Dr. Guerreiro Ramos, eminente soció-
caso do advogado negro Dr. José Pom- logo da Cartilha de um aprendiz de so-
pílio da Hora, formado em Nápoles e ciologia; Raimundo de Sousa Dantas, o
professor de Grego e Latim no Instituto nosso primeiro embaixador negro, que
Lafaiete e outros colégios, que recebeu serviu na Embaixada de Gana; profes-
na própria carne a sanha do racismo fe- sor Luís Lobato, orador e líder negro de
roz de nossa sociedade cristã e demo- alto merecimento; Arinda Serafim, atriz
crática (?). A revalidação, no Brasil, de dramática de muito talento e sensibili-
seu título de bacharel em direito na Itá- dade; Aladir Custódio, poeta sensível e
lia, por influência de certos mestres na inspirado; Solano Trindade, poeta que
Faculdade Nacional de Direito do Rio, celebrizou os temas eternos do universo
trouxe à baila o quanto o preconceito ra- afro-brasileiro; Izaltino Veiga dos San-
cial é forte em certos setores de nossa tos, lutador sincero, figura histórica de
cultura. O mais encarniçado adversário nosso movimento pela emancipação so-
do ingresso do Dr. Pompílio naquele cial e cultural do negro. Isso sem contar
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Sankofa: Memória e Resgate

com expressões do pensamento artísti- nosso Embaixador negro? Não existe.


co do branco que apoiavam a luta sem Outro reduto do preconceito é o oficia-
tréguas que travávamos em torno de lato da Marinha. Qual é o nosso Almi-
nossas ideias mais vigorosas e atuantes: rante negro? Só houve um e apenas por
Joaquim Ribeiro e o poeta Rossini Ca- algumas horas de revolução: o marujo
margo Guarnieri. Destacam-se os depoi- João Cândido” (27-1-46). O respeito de
mentos do pintor negro Tibério Wilson, Rodrigues Alves ante os estudos pionei-
agora radicado em Paris, e do célebre ros de Gilberto Freyre não o demove de
compositor de nossa raça Sinval Silva, criticá-lo sempre que o mestre começa
responsável pelos mais belos instantes a pregar o seu faccioso enunciado da
musicais de Cármen Miranda: “Alvora- “morenidade”, preconizando uma fu-
da”, “Coração” e “Voltei do Samba”. são maior entre negros e brancos, como
O nosso sociólogo, à página 38, para limpar a raça, conceito que o so-
acha que a nação deve cumprir o que ciólogo pernambucano não quer emitir,
a Abolição não teve a competência talvez porque a sua prudência analítica
de fazer, isto é, garantir a reabilitação ou científica o impeça de denegrir a sua
econômica dos negros e colocá-los em imagem, firmada após Casa grande e
igual condição com os outros elementos senzala, quando, a todos os desmandos
étnicos da sociedade que se encontram sexuais ou de concubinato dos lusos com
em posições mais privilegiadas. Que suas escravas negras, o mestre exclama,
essa iniciativa deve partir do Estado e ante este pseudoconúbio de harmonia
subordinar-se a um vasto programa eco- racial, a palavra um tanto forçada para
nômico-social predeterminado, cujos essa patifaria colonial: “formidável”,
itens fundamentais são: 1) serviço de Abdias do Nascimento, pensador mili-
assistência social à família negra (casa, tante e decidido da negritude universal,
alimento, saúde, trabalho); 2) servi- em Quilombismo, arrasou em cheio esse
ço de assistência cultural ao estudante ponto de vista tão retrógrado e obstina-
negro (bolsa de estudo). Que haja re- do de Gilberto Freyre, apontando nisso
cursos necessários para o negro atingir mais um ato indecente da lascívia sexu-
um melhor nível de vida e conseguir a al do que de mescla fraterna entre duas
instrução que lhe possibilite a ampla raças que se atraíam. Rodrigues Alves é
vitória na concorrência desleal que é a textualmente lúcido e respeitoso quando
busca de emprego difícil e arduamente afirma que essa obra é honesta e pionei-
disputado. E, com provas arrasadoras, ra, e que nas páginas de vigor polêmico
Rodrigues Alves diz até onde se escon- de Casa grande e senzala e Sobrados e
de, veladamente, o racismo brasileiro, mocambos estão uns “verdadeiros mo-
sem coragem de denunciar esse flagran- numentos de influência africana na vida
te da vergonha nacional: “No Itamara- do Brasil”, e que Arthur Ramos, embo-
ti, por exemplo, o negro nunca é apro- ra não tenha essa prodigalidade de ins-
veitado nos postos diplomáticos. Só há piração temática, é também de notável
casos de mulatos disfarçados. Qual é o percepção inquisidora e analítica, mais
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues 1

um admirável antropólogo de nossos estranha “para julgar incapazes todos os


fatos étnicos, enquanto Gilberto Freyre negros que se submetessem à inspeção
é mais um sociólogo minucioso e até de saúde, com o fim de ingressar nas
original. O teor científico é tão flagran- escolas superiores militares”. Rodrigues
te nas páginas de luminosa inteligência Alves gasta páginas de saborosa ironia
de Arthur Ramos em O negro brasileiro citando os casos de preconceito de cor
que até um mestiço paulista, jovem por em nosso folclore de tanta malícia, nes-
essa época, como inteligente e culto crí- se sentido. É nesses episódios de tanta
tico Fernando Góes, reconheceu nesse veemência combativa que me parece
autor “o amigo do elemento africano no estar o ponto mais alto desse notável so-
Brasil” e “que antes de mais nada um ciólogo de nossa inquietação social, no
amigo devotado do negro”, E isso num terreno da discriminação racial.
artigo muito badalado nesse prestigioso Pelos dois livros que ora analiso,
jornal que é O Estado de S. Paulo (op, com uma dimensão analítica que os si-
Cit., p, 19-21), tua no melhor contexto de nossa mais
Onde a valorosa obra de Rodri- avançada sociologia renovadora, é que
gues Alves tem mais amplitude criadora procuro ser fiel ou aproximado do pen-
é quando ele é mais incisivo e direto em samento inquietante e de tanta criativi-
seu combate à nossa discriminação ca- dade de conceitos novos e até revolu-
muflada e vergonhosa. Às páginas 44 e cionários, nos estudos mais modernos
45, vem o relato do inesquecível defen- de nossa etnografia, deste já discutido e
sor de minha raça, o general Manuel Ra- surpreendente sociólogo negro, Sebas-
belo, que num discurso no Salão Nobre tião Rodrigues Alves. Amanhã, outro
do Automóvel Clube, no Rio, em 13 de exegeta, com mais vagar e melhor ca-
maio de 1943, falou num “boletim se- pacitado para estes misteres de altos es-
creto do Exército” que “proibia a entra- tudos afro-brasileiros, fará, com maior
da de negros no oficialato do Exército, minúcia explanativa e com mais lúcida
só podendo tomar conhecimento desse visão de conjunto de antropologia so-
instrumento oficiais do Estado-Maior e cial, uma análise mais segura da obra
aqueles que pertencessem aos diversos tão séria, tão polêmica, de tantas obser-
serviços ligados à seleção e à admissão vações de original intensidade comba-
dos candidatos ao oficialato. No Bata- tiva de Sebastião Rodrigues Alves, na
lhão de Guardas, na Polícia do Exército, qual nas páginas de intensa lucidez cria-
não se admitem negros; não se precisa dora, de Todos somos iguais perante a
nada mais do que a observação da au- lei, A ecologia do grupo afro-brasileiro
sência dos elementos de cor naquelas e Sincretismo religioso, pode-se notar
corporações para prová-lo. Não citare- uma unidade temática de ideias, altos
mos alguns casos porque é irrefutável debates sociais e uma vasta mirada nos
tal afirmação. Menciona o fato do Dr. estudos da evolução dos fatos sociais do
Cavalcanti, major médico do Exército, mundo, através da evolução his!órica e
que declarou haver recebido uma ordem científica dos povos.
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

O novel sociólogo é bem analisa- Urbano VIII, Bento XIV, Pio VII, Gre-
do na bibliografia de excelentes autores gório XVI, todos combatendo a escra-
dos estudos negros que ora vai citando, vidão dos neófitos da África. E sobre
ou cujos nomes providenciais inscreve todos esses papas que mencionou Perilo
no final do volume, quando se sabe ser está a luminosa personalidade do papa
mais na prática das ruas e dos morros, Leão XIII, que tanta influência teve no
por meio do serviço social, que sua aná- espírito católico da princesa Isabel, em
lise é mais direta e desconcertante. Sua sua atuação no 13 de maio de 1888,
militância na vida cotidiana da turba Após a Lei Áurea, o sumo pontífice
das urbes citadinas, principalmente da lhe ofertou até a significativa “Rosa de
gente negra, é o que de maior realce se Ouro”, pelo gesto magnânimo daquela
nota nessa obra de interesse crescente que a História consagrou como “A Re-
e de amplas discussões sociais e políti- dentora”, Pode-se discordar destas ou
cas. Capítulos de fina argúcia exegética, daquelas facetas, que culminaram na li-
como quando comenta os sábios padres bertação desenfreada, sem estudos, sem
da Igreja justificando a Escravidão, e os a preparação cultural e psicológica dos
papas humanos e de certa luz espiritual, negros, que desde 1888 estão colocados
como Pio 11, censurando a escravidão à margem de uma sociedade desumana
lusa na Guiné, em 1492; um Pio VII, e insensível. Mas isso já é sair do campo
que interveio, já muito depois de a Fran- teórico da História e penetrar na realida-
ça libertar seus escravos nas colônias de trágica da antropologia social de um
numerosas, e Gregório XVI, em 1839, povo imprevidente... Já outros lumina-
empenhando-se, com todos os países res da Igreja defenderam a escravidão
escravocratas, para darem um termo ao como compatível com as leis divinas e
nefando tráfico de escravos, não esque- humanas e, infelizmente, tais padres são
cendo nem Santo Tomás de Aquino, de de reconhecimento universal em sua au-
Suma teológica. Que a maior parte do toridade teológica e conceitos filosófi-
nosso clero, incluindo bispos, padres e cos: São Cipriano, bispo de Cartago; são
membros de várias ordens religiosas, foi Basílio; São João Crisóstomo, orador de
omissa à sorte dos escravos africanos. grande voga; Santo Agostinho, de ori-
Já o brilhante pensador católico gem africana, alto escritor das Confis-
Perilo Gomes, em sua obra de tanto in- sões; São Gregório Magno; Santo Iná-
teresse para os debates sociais e teoló- cio, bispo de Antioquia, sem esquecer
gicos, Polêmica e doutrina, ostenta, em Santo Tomás de Aquino, que conciliou,
carta a Lima Barreto, a indiferença da em filosofia, o pensamento filosófico de
Igreja em face do elemento servil. Isto Aristóteles com a doutrina rígida e teo-
na página 164 desse seu livro de tanta lógica da Igreja.
atualidade doutrinária, A Igreja e a es- Os capítulos finais de A ecologia
cravidão, em que desfilam vários nomes do grupo afro-brasileiro são minucio-
de pontífices que atuaram em defesa do sos em informações sobre como”Ao
negro marginalizado: Pio lI, Paulo III, Serviço Social, compete solucionar o
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

‘caso’ afro-brasileiro Cp, 55 ss,), den- dades intelectuais (inteligência rápida,


tro do princípio do respeito à dignidade inteligência vigorosa, inteligência sin-
humana, de que os seres humanos são tética, personalidade, iniciativa, visão
iguais e de que não pode haver distinção global, previsão, poder sugestivo, flexi-
de cor, classe ou crença religiosa numa bilidade, simpatia, entusiasmo, rapidez
real democracia, que aí aparece como nas decisões, progressividade). Todos
reunião de grupo que partilha e é res- esses preceitos que o livro enumera são
ponsável pelo bem-estar da comunidade de autoria da mestra Terezita M. Por-
igualitária. Tratam também da função to Carrero, que ensina tudo o que um
benéfica e providencial dos assistentes perfeito assistente social deve aprender
sociais, que militam principalmente em para atingir a meta desejada. Mas a parte
agências ou centros sociais, como plan- mais importante desse capítulo final é a
tonistas de casos sociais, que sabem que fala da ação benfazeja do assistente
como é doloroso observar que um de- social, para a solução mais urgente do
sempregado tem “como causa de seu de- problema afro-brasileiro. Principalmen-
sajustamento” o fato de ser negro e, por te olhando a situação do homem de cor,
isso, recusado em muitas empresas ou em suas relações ambíguas com outros
trabalhos de notória expressão, e da ig- elementos da comunidade, Rodrigues
norância dos candidatos negros a esses Alves tenta elucidar um problema de
empregos, pois, se soubessem desses magnitude imprevisível, mas para o qual
engodos racistas, jamais iriam bater às o novel sociólogo propõe uma terapêuti-
portas dessas agências suspeitas. Que a ca eficaz: 1) que o “caso” afro-brasileiro
função do serviço social é amparar esse é uma questão de educação; 2) que é
homem e estimulá-lo, dando-lhe a opor- preciso reeducar o branco para receber o
tunidade de patentear suas virtudes cria- negro sem preconceito, sem restrições;
doras, assim como o desenvolvimento 3) que é necessário reeducar o negro
de sua personalidade, concorrendo para para que este se intrometa na sociedade
que possa ver realizadas suas legítimas sem o complexo de inferioridade; 4) que
aspirações” (p. 56). o complexo de inferioridade do negro é
O livro fala de como o indivíduo um reflexo do preconceito de cor; 5) que
é tratado pelo serviço social do “depen- deverá ser criada uma cadeira nos cur-
dente social”, dos métodos do serviço sos de serviço social, com os conheci-
social quanto trata de casos individuais mentos de bio-antroposociologia, para a
ou sociais, do serviço social de grupo ou completa elucidação do problema negro
coletivo e da organização da comunida- brasileiro (op. Cit., p. 105).
de. Qualidades exigíveis do assistente Rodrigues Alves culmina assim
social de casos individuais: qualidades esse seu trabalho de tanto interesse
físicas (saúde, acuidade dos sentidos, sociológico com um otimismo sadio,
fisionomia, idade); qualidades morais previdente e de forte alcance antropo-
(honestidade, sinceridade, naturalidade, lógico, o qual lembra um mestre sábio,
discrição, igualdade de humor); quali- lúcido, que muito escreveu com ternura
THOTH 2/ agosto de 1997
Sankofa: Memória e Resgate

sobre o elemento negro: Roquette Pinto. ignorância e pela intolerância da polí-


Por vezes, seu pensamento polêmico, cia racista dos governos autoritários, da
por amar com loucura a progênie ne- mesma forma com que fomos aniqui-
gra, o faz coincidir com os debates de lando paulatinamente o índio brasilei-
incontrolável controvérsia exegética de ro, que de um milhão de seres na época
um dos maiores líderes e pensadores do descobrimento hoje não restam dele
negros do universo: Abdias do Nasci- mais que umas 200 mil pessoas pobres,
mento. É que a obra desse demolidor de miseráveis e expulsas de suas terras de
reputações racistas transcende o âmbito origem por posseiros inescrupulosos,
estreito de uma sociologia conformada que invadem as áreas dessas tribos em
e de argumentação serena para atingir extinção, movidos pela rapinagem cúpi-
as questões de maior gravidade doutri- da e vergonhosa. Abdias do Nascimento
nária e de mais complexa resolução da e Sebastião Rodrigues Alves, duas têm-
antropologia social. Todos os preceitos peras diferentes de lutadores formidá-
expostos em sua teoria política do Qui- veis e autênticos líderes da raça no que
lombismo, Abdias os apresenta com a esta possui de mais destemorosa fibra
convicção política e partidária de um em enfrentar os maiores perigos e danos
revolucionário líder negro que sabe só de uma reação governamental, quando o
poder chegar ao fim almejado depois de problema negro é uma equação de rápi-
luta de vida e morte com os racistas da do solucionamento. Não medem forças
sociedade, que estão refestelados nos e consequências quando a discriminação
da progênie de Cam é solução irrever-
cargos de mando dos governos mais re-
sível. Seria um estudo de literatura so-
trógrados e reacionários da face da terra.
ciológica comparada analisar essas duas
Até nos títulos dessa obra, de tão expressões lídimas de nossa Negritude,
agitadora efervescência das ideias de num estudo de miradas penetrantes no
maior benefício à redenção da raça, se que toca o porvir radioso do negro espo-
nota o quanto Abdias não aceita o meio- liado, mas nunca vencido.
-termo de uma conciliação hipócrita do
Rodrigues Alves mesmo, com sua
negro batalhador com os milhões de
revolta dialética em face dos sociólogos
preconceituosos que o combatem cerra- ou estudiosos parciais da temática ne-
damente. Se não, vejamos o quanto ele gra, jamais perde a fleuma ou a postura
terçou armas com o inimigo de suas teo- aparentemente plácida de sociólogo que
rias avançadas e redentoras pelos nomes se rebela com as leviandades inúteis de
que deu a seus livros de maravilhosa um Costa Pinto (O negro no Rio de Ja-
contemporaneidade, de resolução ime- neiro), Edson Carneiro (Candomblés da
diata dos graves problemas de afligem Bahia e Ladinos e crioulos), Oliveira
a gente negra. Viana (Evolução do povo brasileiro),
O genocídio do negro brasileiro Nina Rodrigues (Os africanos no Bra-
já é polêmico desde o título. Trata-se do sil) ou o sectarismo científico do pior
extermínio da raça negra na miséria, na Afrânio Peixoto em Clima e saúde e nas
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

teorias racistas contra o nosso mulato, branco voluptuoso, e concede uma con-
principalmente em Fruta do mato, Mes- clusão pragmática para dirimir o segre-
mo nessas circunstâncias extremas, Ro- gacionismo e a marginalização de nossa
drigues Alves, não perde a serenidade raça. O negro aí tem de assumir de cara,
expositiva do verdadeiro sociólogo. Ab- de frente, esse embate terrível contra
dias já é um Dom Quixote irado, terçan- opressões deprimentes, em vez de ser O
do armas com todos os inimigos visíveis homem invisível, de Ralph Ellison, que
ou ocultos desta negrada maravilhosa e preferiu esconder dos outros a sua cor
sofredora, que ele defende há mais de negra, talvez porque ela lhe trazia várias
seis décadas. Em outras obras do real restrições na sociedade, perseguições
negro Abdias, há a mesma tônica do sem conta e até odiosas discriminações.
ardoroso combatente que não descansa
Abdias conclui, no Negro revol-
enquanto não fulmina o adversário com
tado, que ninguém existe só e isolado na
a sua dialética absorvente: O negro re-
sua comunidade. Que devemos nos mi-
voltado, falando das teses debatidas em
rar na batalha sem quartel dos quilom-
anteriores congressos negros, o título
bolas, precursores de nossos embates de
da obra lembra incontinenti um pensa-
agora, nas guerras que os negros norte-
dor da Argélia francesa, existencialista,
-americanos e os africanos travam com
marxista. Albert Camus, que tem um li-
racistas poderosos e organizados. Cada
vro com o nome sugestivo de L’homme
revolté. Aqui aborda, com exposição volume assinado por este grande vulto
eloquente, os problemas da democra- de toda a Negritude revela um espaço
cia racial, o pretenso supremacismo em que defronta com as potências pode-
branco no Brasil, seu cerrado combate rosas do preconceito racial, escondidas
ao capital estrangeiro, transformando o no âmago mais fortalecido dos governos
nosso país num poder subimperialista, discriminatórios e racistas
expandindo-se em busca das economias Sitiado em Lagos tem como sub-
mais fracas da África e alguma parte da título “Autodefesa de um negro acossa-
América Latina. Reúne, nesse livro de do pelo racismo”, e é toda a trajetória de
palpitantes debates sociais, as inúmeras um líder afro-brasileiro que foi impedi-
teses do I Congresso do Negro Brasi- do de participar do II Festival Mundial
leiro, em 1950, promovido pelo Teatro das Artes e Culturas Negras e Africanas,
Experimental do Negro. o Festac 77. Com a intromissão indevida
O Quilombismo é outra obra de de nosso ltamarati, que enviou para esse
importância fundamental, quando co- festival indivíduos pouco credenciados
loca em plano uuiversal as lutas que e sem nenhuma expressão nos assuntos
travamos para tirar o negro deste ma- da cultura comum da África e do Brasil,
rasmo vergonhoso que nos acabrunha e nosso governo democrático (?) tentou
envergonha. Preocupa-se com o futuro obstar a participação de Abdias naquele
sombrio da mulher negra, sempre explo- badalado conclave. Temiam que este ali
rada até a mancebia e prostituição pelo chamasse a atenção para a nossa abstra-
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Sankofa: Memória e Resgate

ta democracia racial, e que revelasse, de dissolvente. Depois, esse grande pen-


novo, a situação caótica e marginalizada sador e ensaísta da Negritude publicou
dos nossos homens de cor. Enfim, Sitia- este poético e revolucionário oratório
do em Lagos é um grito de protesto, a religioso, com um título que bem define
elevação da voz de um paladino deste- o seu alto conteúdo profético no futuro
moroso e insistente. para que esses en- de nossas aspirações libertadoras para a
traves odiosos, que nos tentam demover progênie de Cam: Sortilégio II – misté-
de nossas batalhas sem quartel, desapa- rio negro de Zumbi redivivo. Mas Ab-
reçam para sempre do nosso caminho dias não é uma personalidade para se
semeado de escolhos, mas também de acomodar numa única posição artística,
triunfos luminosos. daí as suas múltiplas facetas estéticas,
Dramas para negros e prólogo como o primoroso artista plástico das
para brancos – lá está Abdias propa- divindades sacratíssimas das Aruanda,
gando o teatro como obra educacional do poeta dos Orikis, poemas de louvor
para a nossa raça, por meio da lição de em deferência a um ser muito amado
arte, sabedoria, cultura política e literá- e estremecido, nesses impressionantes
ria das representações cênicas de Euge- cânticos de expressiva poesia a Olorum,
ne O’Neil, Joaquim Ribeiro, Langston deus supremo da teogonia iorubá, no ri-
Hughes, Lúcio Cardoso, ou quando não tual ou padê a Exu, temido e invocado
divulgou, nesse volume, as peças de te- nas cerimônias sagradas, ou quando não
mática negra de autores como Nélson invoca a Oxum do amor e da beleza, nos
Rodrigues (Anjo negro), José Morais Pi- versos em que a alma africana freme e
nho (Filhos de santo), Tasso da Silveira tumultua, em expansões de criação pro-
(O emparedado), Joaquim Ribeiro (Aru- digiosa: Axés do sangue e da esperança.
anda), Lúcio Cardoso (O filho pródigo), Não poderia omitir, aqui, seis
Romeu Crusoé (O castigo de Oxalá), volumes do deputado Abdias do Nasci-
Rosário Fusco (Auto da noiva), Agos- mento, contendo seus discursos e proje-
tinho Olavo (Além do rio-Medéa), sem tos: Combate do racismo, em que nos
esquecer o mesmo Abdias, que, num dá a sua posição fraterna ao combater o
mistério negro do revoltado Emanuel, apartheid da República Sul-Africana,
da prostituta Efigênia, da branca e lirial a sua defesa dos direitos legais dos in-
Margarida, coloca todos esses seres de térpretes artísticos do teatro, cinema e
exaltada expressão racial e religiosa em televisão, ou quando se insurge contra
Sortilégio. Ao som de uma cerimônia o racismo bem nosso, que se espalha
sagrada dos orixás do Candomblé em perigosamente em livros escolares e di-
que se reverencia o poderoso Exu das cionários didáticos. No segundo volume
demandas impossíveis, Abdias nos deu de Combate do racismo, fala do cin-
uma peça de muita expressão dialética quentenário sacerdotal de Mãe Teté e da
da revolta negra contra os brancos que marcha dos negros reIembrando Zumbi,
querem destruir seus deuses sagrados, o patrono imperecível de nossas reivin-
por meio de um sincretismo racista e dicações. No primeiro volume da obra
Sebastião Rodrigues Alves, conduzindo a cerimônia religiosa de abertura do 3º Congresso de Cultura Negra das Américas.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1982.
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues

em questão, ele discute se a data de 13 me escura. Abdias até quer que haja na
de maio deve continuar, para nós, com Constituição brasileira artigos explíci-
o seu valor histórico de nossa emanci- tos e com declaração bem visível, con-
pação servil. Pergunta onde estão os denando essas práticas segregacionistas
negros de cultura e competência que desta nossa incorrigível e malfadada
não preenchem os quadros ou cargos democracia cristã. Daí Abdias estam-
de generais, almirantes, brigadeiros ou par, como preâmbulo do segundo volu-
juízes e ministros do Supremo Tribunal me desse Combate ao racismo, aquela
Federal, do Tribunal de Contas ou do missiva de grande decência e edificação
Supremo Tribunal Militar. O nosso ra- moral de um grande e histórico guerrei-
cismo disfarçado e hipócrita impede o ro da Negritude brasileira, José Correia
nosso negro de ascender a essas posi- Leite, o qual, em sua análise da atuação
ções honoríficas, feitas só para o branco parlamentar do deputado negro, expri-
privilegiado. Temos de esperar por mui- me o pensamento positivo de todos os
to tempo ainda, ou pode acontecer que negros deste país: “São Paulo, 17-11-83.
Exu, que é tão forte em abrir os itinerá- Prezado Abdias. Saúde. Recebi o cader-
rios mais intrincados, nos propicie um no com as separatas de seu trabalho na
milagre supremo e que possamos ven- Câmara dos Deputados e a sua coragem
cer todos os ardis e insídias racistas que e postura de um legítimo parlamentar
os brancos, donos da vida, coloquem à negro. Deputados negros já houve mui-
nossa frente para impedir nossa vitória tos e ainda há, mas pela primeira vez um
inadiável e meritória assume compromisso com os ideais de
Trechos para profunda medita- sua gente, dando com isso um exemplo
ção, aqueles em que Abdias se congra- histórico. Parabéns, obrigado pela lem-
tula com o nosso infortunado irmão brança do meu nome. Abraços do velho
indio, ou quando fala do racismo do Leite, José Correia Leite.”
ltamarati, sempre em ligação amigável Nesta análise da obra de sociolo-
com a África do Sul, ou da solidarieda- gia e antropologia social de Sebastião
de do povo brasileiro para com a luta de Rodrigues Alves, é oportuno abordar as
libertação dos povos da África Austral. questões tão complexas e dificeis desses
Fala, com convicção, que a Lei Afonso estudos de etnia negra que se fazem en-
Arinos, ou Lei nº 1.390/51, não teve efi- tre nós. Rodrigues Alves enveredou por
cácia alguma, pois jamais castigou ou campos sociológicos sobre os quais ne-
prendeu quem quer que proibisse um nhum estudioso antes havia feito qual-
negro de se hospedar num hotel de luxo, quer menção ou ensaio analítico. Cha-
bastasse a sua incursão num edifício, ou mo a atenção para o fato de ser ele um
o segregasse em clubes de diversões, autêntico desbravador de caminhos dos
entidades que vedam a entrada de ho- estudos afro-brasileiros, quando nos dá
mens de cor, barbearias, certos bancos, um alentado volume de conceitos origi-
casas comerciais e até hotéis ou cinemas nais e de profunda perspicácia exegéti-
que não aceitam empregados de epider- ca, no Somos todos iguais perante a lei e
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Sankofa: Memória e Resgate

Ecologia do grupo afro-brasileiro. Mas as naves do mistério e do recolhimento


tem poder persuasivo, de impressionan- místico, tudo reunido no Canto à amada,
te coerência artística, ao narrar todo o versos belos e profundos de uma matu-
mistério que se estende por trás do ce- ridade poética que se ressalta e se deve
rimonial solene, espetacular e de tanta respeitar. Os desgarrados, as prostitutas,
beleza ritualística, nas oferendas e lou- os ascetas do silêncio insondável são
vores aos sagrados e impenetráveis ori- farândolas espectrais que de ambulam,
xás da longínqua Aruanda, dos deuses tristes, solitárias e com amargor nas fa-
tutelares da gente negra, num livro de já ces descarnadas, antes que surja a auro-
clássica concepção religiosa, de respeito ra além da imensidão das distâncias.
às indevassáveis potestades dos espaços Talvez o ladrão, o presidiário, as
siderais: mariposas noturnas, o pecador divíno,
o poeta honesto ou a deusa ninfa pas-
sam responder ao apelo do grito africa-
Sincretismo Religioso no, que leu o Canto à amada e resolveu
convocar esses comparsas de uns poe-
Este exórdio teve o propósito mas belos e transcendentes para se reu-
de chamar a atenção dos estudiosos de nirem na farândola luminosa e sombria
nossa negritude literária e científica do teatro miraculoso da vida. Só faltou
para os nossos vultos mais proeminen- um nome mágico, da inefável poesia,
tes, para aqueles que há tempos vêm para completar essa estranha roda-viva
militando na palavra escrita e falada, do carrossel dos sonhos: Solano Trin-
nos meetings políticos e nas tribunas dade. E ele virá com certeza, quando
de debates e conferências, com a maior no céu morrerem as últimas estrelas do
dignidade, altivez e coerência íntelectu- firmamento. Atendendo ao pedido do
al. Sebastião Rodrigues Alves, como vi- expressivo poeta, Sebastião Rodrigues
mos, se enquadra perfeitamente nesses Alves, que pergunta, assim, ao vate ne-
cânones rigorosos e precisos. Sempre gro dos Cantares do meu povo: “O poeta
se há de falar, também, no poeta inspi- Solano Trindade? / Onde estará o poe-
rado e de muita flama lírica e elegíaca, ta? – Num asilo? – No hospital? /Num
de seus tão decantados versos e amor e necrotério? /E teus amigos Solano? / E
melancolia, ou quando são evocações de teus ideais? / E teu trabalho? / Onde es-
boêmios enluarados, perdidos nos bares tão os artistas? / Que tu descobriste? /
nevoentos das madrugadas sombrias, da Quem está gemendo?” O poeta logo virá
poesia refletindo um canto sentido a Gal de Aruanda, quem sabe conduzido por
Costa, ou relembrando caminhos perdi- Orum, entidade que simboliza a vida e a
dos, um adeus provisório à vida, uma morte, e que, numa prova de eternidade
ode à tristeza, ao poeta Melo Mourão, do poeta, como a divindade helênica de
ou todos os instantes de máxima euforia Orfeu, o trará novamente, em matéria
que, num diapasão de litania, com can- e espírito, para o apelo apoteótico do
to gregoriano e turíbulos, incensando declamador e rapsodo griot. Assim, So-
Sebastião Rodrigues Alves e a inquietação social do negro brasileiro
Ironides Rodrigues 1

lano Trindade estará presente para lou- Canto à amada, Sebastião Rodrigues
var seu irmão poeta, de tantos poemas Alves compreendeu que o poeta do trem
da mais velada e sutil beleza espiritual. da Leopoldina e dos bumbas-meu-boi
E então Solano Trindade lerá todos os do Recife fez a mais calorosa e respeitá-
poemas desse livro de palpitante bele- vel consideração para seus versos amar-
za mística e contemplativa e ficará re- gurados, sofridos, em que a gente negra
citando, para os orixás enternecidos, o aparece em toda a luminosidade estelar
poema de mais homenagem, o de mais de seus prantos, alegrias e desespero por
profundas e sentidas imagens, que um uma vida mais tranquila, sem tropeços.
outro poeta representativo da raça negra Onde nunca mais o negro encontrará
lhe ofertara: “Quem está gemendo? / É os obstáculos dos racistas malditos, em
o poeta na sua dor! / Não é negro, nem preconceitos ultrapassados, onde, enfim,
carro de boi. / Mas daqui, poeta amigo, o negro resolverá todos os conflitos que
ouço teu gemido, / O abandono, os teus lutou para derrubar. E que, finalmente,
sofrimentos, / Poeta, é o gemido e a dor a oportunidade sonhada chegará para o
da tua raça. Quem tá gemendo?” Sola- negro, que verá, para sempre, o racismo,
no, após declamar o poema, fará um si- a intolerância humana e as muralhas da
lêncio mais profundo do que aquele que segregação entre os povos eternamente
se passou após a criação do mundo, das banidas da face da terra.
nebulosas e das estrelas do firmamento.
Mal pode soltar um comentário sequer
sobre a feliz inspiração de um poeta pe- * Ironides Rodrigues, originário do Estado
de Minas Gerais, era advogado, escritor,
regrino, em plena criação de tantos poe-
crítico literário e militante afro-brasilei-
mas de invejável sutileza poética e bele- ro. Coordenou os cursos de alfabetização
za de conceitos tão humanos e sentidos, para os integrantes do Teatro Experimen-
ao falar nesses seres isolados e carentes, tal do Negro e participou, como profes-
no torvelinho indiferente da existência sor, do curso de extensão universitária
implacável. Conscientização da Cultura Afro-Brasi-
Pelo profundo e significativo si- leira (Ipeafro/ UERJ, 1985-1987)
lêncio de Solano Trindade, em face do
Ironides Rodrigues profere aula de alfabetização no curso de formação de atores e atrizes do Teatro Experimental do Negro. Sede da UNE – União Nacional de Estu-
dantes, Rio de Janeiro, 1944.
– Meus velhos companheiros de
guerra, estamos numa guerra por liberda-
de e justiça, e nesta guerra nós não temos
que ter nenhuma condescendência com
Concentração os racistas que ainda hoje pensam poder
negra em impedir que este país seja finalmente de-
mocrático. Pois democracia não é isso
Cabo Frio que vemos por aí: um poder branco que
concede migalhas, uma justiça branca e
racista, um Congresso em que não temos
nem cinco por cento de representantes,
quando a população negra, os africanos
que construíram este país, somam mais
de 70 por cento.
Com essas palavras inflamadas
que acabaram dando o tom do evento
–, o senador Abdias Nascimento iniciou
seu discurso perante as quase 500 pes-
soas que lotaram a Câmara Municipal
de Cabo Frio na cerimônia de abertura
Maturidade política marca do XXII Encontro de Entidades Negras
XXII Encontro do CENIERJ do Interior do Estado do Rio de Janeiro.
Realizado de 19 a 21 de setembro último,
o Encontro, que reuniu representantes de
56 organizações de 44 municípios, foi
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Movimento negro hoje

promovido pelo CENIERJ – Conselho titui ao mesmo tempo uma importante


de Entidades Negras do Interior do Es- conquista da comunidade e uma prova
tado do Rio de Janeiro, que tem como inegável de sua vitalidade e capacidade
finalidade integrar e articular as ações de pressão.
das entidades negras do interior em re-
lação às demandas da comunidade afro-
-brasileira nos campos político, educa- Elogio à diversidade
cional, cultural, religioso e social, com
foco na luta contra o racismo. O obje-
– Não aceitamos mais o mel na
tivo do Encontro foi reunir entidades e
boca. A coisa é cara a cara, é pão-pão,
comunidade para, por meio da troca de
queijo-queijo. Nós queremos participar
experiências, estimular a organização de
em igualdade de condições em todos os
seminários, palestras e outras atividades
níveis de poder. Não é só termos um se-
que possam contribuir no processo de
conscientização da comunidade afro- nador ou uma senadora. Isso não é nada.
-brasileira, bem como despertá-la para a Se o Senado tem 81 senadores, a metade
importância de manter vivas as manifes- pelo menos tem de ser de negros. Pois
tações de matriz africana. se tivéssemos a metade dos deputados
federais, a metade dos ministros, não
O coordenador-geral do Encon-
estaríamos vendo essa coisa vergonho-
tro, Manuel Justino, foi o apresentador
sa que é a concentração de renda neste
da cerimônia de abertura, que teve tam-
país, onde nós somos os mais prejudi-
bém a presença, entre outras autoridades
cados, os mais famintos, os mais mise-
e personalidades, do prefeito de Cabo
ráveis, porque não temos, nos níveis de
Frio, Alair Correia, do vice-prefeito,
decisão, uma representação proporcio-
Marcos da Rocha Mendes, do presi-
nal. Vocês que aqui estão, não deixem
dente da Câmara de Vereadores local,
de concorrer às próximas eleições, seja
Valdir Aguiar, bem como do fundador
para que cargo for: vereador, prefeito,
e da atuaI presidente do Movimento
Negro daquela cidade, respectivamen- deputado estadual, deputado federal, se-
te, José do Carmo e Flávia de Jesus, ao nador ... Não importa o partido, o que
lado de representantes de organizações importa é a consciência de cada um. Eu,
do Maranhão e do Paraná. Ao final da por exemplo, não tenho constrangimen-
cerimônia, Gilson Duarte dos Santos, to em ser do PDT, um fiel seguidor de
conhecido militante da comunidade Leonel Brizola, e estar aqui, no meio de
afro-cabo-friense, foi empossado como gente do PSB, PSDB e PFL, pois estou
diretor do recém-criado Departamento em paz com a minha consciência e fir-
de Assuntos Afro-Brasileiros, da Se- me na fidelidade à minha luta, à luta de
cretaria Municipal de Cultura de Cabo Zumbi e de todos nós.
Frio. Estruturado em duas divisões – a Num ambiente caracterizado pela
de Projetos e Eventos e a de Pesquisa diversidade político-partidária, e com
e Cultura Negra –, o novo órgão cons- grande presença de jovens que nun-
Mesa de encerramento do XXII Encontro de Entidades Negras do Interior do Estado do Rio de Janeiro. Cabo Frio, setembro
de 1977. Da esquerda par aa direita: Jandira, do município de Carmo; Flávia de Jesus, Movimento Cabofriense de Cultura
Negra; senadora Benedita da Silva; Ilma Santos, presidente do Conselho de Entidades Negras do Interior do Estado do Rio
de Janeiro (CENIERJ); Dulce Mendes Vasconcellos, do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro (Comdedi-
ne), Rio de Janeiro; e Magna Almeida de Souza, do município de Volta Redonda.

Vista parcial da assistência, sessão de abertura do XXII Encontro de Entidades Negras do Interior do Estado do Rio de
Janeiro. Câmara Municipal de Cabo Frio, setembro de 1997.
Concentração negra em Cabo Frio
1

ca o tinham visto falar, essas palavras de Reciclagem, bem como o Compro-


do senador Abdias Nascimento foram misso do Educador Militante na Abor-
recebidas com um misto de entusias- dagem das Questões Afro-Brasileiras. O
mo e esperança. Um prelúdio ao clima tema mulher ficou a cargo da professora
que iria reinar durante os três dias do Neuza das Dores Pereira, com a pales-
evento, quando se discutiram os temas tra sobre A Mulher, Direitos e Cidada-
constantes de uma pauta que englobou nia, cujos subtemas foram A Mulher e a
política, saúde, religião, educação, mu- Saúde e A Mulher Negra e o Mercado de
lher e juventude. Carlos Alves Moura, Trabalho. Por fim, Eduardo Nascimen-
secretário executivo do Grupo de Traba- to, do Grupo de Universitários Negros
lho Interministerial para a Valorização do Rio de Janeiro, discorreu sobre O
da População Negra, discorreu sobre O Jovem Negro na Atualidade e Sua In-
Panorama Nacional e as Perspectivas serção no Mercado de Trabalho, quando
do Negro nas Políticas Públicas, tendo se discutiram os subtemas Formação e
como subtemas Avaliação e Performan- Oportunidade Profissional e A Parti-
ce das Entidades no Último Pleito Mu- cipação do Jovem Negro no Cenário
nicipal e Perspectivas para as Eleições Político. Um amplo temário, que com
de 1998. Particularidades de Saúde dos certeza contemplou alguns dos mais ur-
Afro-descendentes e o Papel das Insti- gentes problemas com que se defronta a
tuições de Saúde Pública foi o tema da população afro-brasileira.
palestra de Amaro Luiz Alves, da Secre- Como em todo encontro dessa
taria de Politicas de Saúde e Avaliação, natureza, não poderiam faltar a música
do Ministério da Saúde, com os sub- e a dança, elementos mais marcantes da
temas A Implantação do Programa de cultura negro-africana. Estes se fizeram
Anemia Falciforme nos Municípios e presentes com a emocionante apresenta-
A Participação dos Movimentos Negros ção dos meninos do Projeto Apanheite
nos Conselhos Municipais de Saúde. Cavaquinho e com os belos espetáculos
A palestra de frei David, famoso proporcionados pelo compositor local
religioso negro da Baixada Fluminense, Jorge Vilas e pela cantora e atriz Zezé
teve como tema A Preservação da Reli- Motta. Da parte cultural do evento cons-
giosidade Afro-Brasileira e a Influência tou ainda a exibição do vídeo A exceção
do Negro em Outras Denominações Re- e a regra, bem como a distribuição, pelo
ligiosas, com os subtemas Conceito de senador Abdias Nascimento, de alguns
Ensino Religioso e o Enfoque da Reli- exemplares do primeiro número da re-
gião Afro e A Visão Ecumênica do Mo- vista Thoth, editada por seu gabinete,
vimento Negro. Bases e Estratégias para que trata dos pensamento dos povos
a Introdução da Cultura Afro-Brasileira africanos e afrodescendentes. A profes-
nos Currículos Escolares foi o assunto sora Elisa Larkin Nascimento doou às
da palestra da professora Azoilda Loreto delegações representativas de 12 mu-
Trindade, em que também se discutiram nicípios exemplares do livro Sankofa:
Autoestima, Aprendizagem e Processo matrizes africanas da cultura brasilei-
THOTH 2/ agosto de 1997
Movimento negro hoje

ra, Vol. 1, por ela organizado e lançado homem e de uma mulher negros – que
pela Editora da Universidade do Estado constitui o símbolo do CENIERJ – foi
do Rio de janeiro – Eduelj em agosto entregue à professora Magna de Sou-
passado. za, representante de Volta Redonda, ci-
O encerramento do Encontro teve dade escolhida para sediar o próximo
a presença marcante da senadora Bene- Encontro, que deverá realizar-se na
dita da Silva, acompanhada de seu es- segunda quinzena de março de 1998.
poso, o vereador e ator Antônio Pitanga. Por proposta do senador Abdias Nas-
Em seu discurso, a senadora chamou a cimento, foi elaborada e encaminhada
atenção para a necessidade de reforçar ao secretário nacional dos Direitos Hu-
os laços de solidariedade no interior da manos, José Gregori, uma moção com
comunidade negra, assim como de tra- segninte texto:
balharmos com vistas a elevar o padrão Os participantes do XXII Encon-
da educação pública. A senadora desta- tro de Entidades Negras do Interior do
cou também que é preciso promover a Estado do Rio de Janeiro cumprimen-
tolerância religiosa no seio da comuni- tam Vossa Excelência pela constituição
dade, questão importante num momento do Grupo de Trabalho Interministerial
em que membros de grupos evangélicos para a Valorização da População Negra
fundamentalistas – muitos deles negros e, neste ensejo, solicitam o seu apoio
chegam a agredir fisicamente pessoas li- (com recursos humanos e materiais)
gadas às religiões afro-brasileiras. para a realização de um encontro de tra-
– Nós cultuamos vários líderes balho entre as lideranças do Movimento
disse a senadora – sem questionar sua Negro dos Estados do Rio de Janeiro,
religiosidade. Não interessa a religião de Maranhão e Paraná.
Zumbi, nem a de Martin Luther King, se Trata-se de uma iniciativa que
foram evangélicos ou candomblecistas. tem por objeto aumentar o intercâmbio
Se podemos aceitá-los como heróis, por entre as entidades da comunidade negra
que não aceitar nossos irmãos de outros do Sudeste, do Nordeste e do Sul brasi-
credos? Vamos trabalhar esse tema, pois leiros.
a religião não pode nos separar. Cordialmente, receba a saudação
Ao final das atividades, um en- dos abaixo assinados.
talhe em madeira com os perfis de um [Seguem-se 150 assinaturas.]
EXU E TRÊS TEMPOS DE ROXO
Óleo s/ tela - 76 x 61 cm, de Abdias Nascimento, Buffalo, USA, 1980

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